Em plena campanha, não sei se estamos realmente escolhendo um presidente ou cavando uma crise para que ele se afunde, como afundaram seus antecessores. O Congresso votou uma bomba fiscal e o STF, um aumento que vai repercutir nas contas públicas. No calor da luta política, os candidatos falam em investir. Mas como, se as despesas da máquina do governo vão aumentar?
Tive de explicar a alguns amigos por que tenho uma relação cordial com Bolsonaro. Não sabiam que o conheço há duas décadas, e convivemos no Congresso durante 16 anos e inúmeras viagens Rio-Brasília. Foram 16 anos de divergência no campo dos costumes sem que se tenha perdido o diálogo.
Da mesma forma, conheço quase todos os outros candidatos. Admiro sua coragem. Nunca estive com o Cabo Daciolo, por exemplo, mas o considero uma versão light do russo Iorudivi, um louco de Deus.
Ele não usa correntes amarradas no corpo, mas tem as mesmas visões de cura. Daciolo afirmou que soube por Deus que a deputada Mara Gabrilli iria andar em breve.
São homens e mulheres que se dedicam a uma tarefa muito difícil. É possível que alguns não saibam o quanto. E que alguns tenham até má intenções.
Considero fundamental que todos possam apresentar suas ideias. Na última eleição entrevistei os que estavam fora do debate, porque não pontuaram o suficiente nas pesquisas.
Certamente o farei de novo, com a tática de sempre: nem cúmplice nem algoz. Tudo o que posso fazer é estender uma corda para que escalem a montanha ou se enforquem.
Quanto mais transparência, pelo menos teoricamente, chega-se mais facilmente a uma boa escolha. É possível dizer que nem sempre foi assim, e nem sempre será. Mas não há outra lógica melhor.
Nunca fui tao moderado, reconheço. Mas uma leitura cautelosa destas eleições mostra esquerda fragmentada, direita em ascensão, crise econômica. Para quem conheceu outros momentos históricos, essa combinação é perigosa.
O sistema político-partidário, do qual participei ao longo de alguns anos, está em frangalhos e só se sustenta movido a muito dinheiro público. Terminou um período de redemocratização que deixa grande número de descrentes na importância da própria democracia.
A primeira preocupação é não jogar fora o bebê com a água de banho. O processo democrático precisa se aprofundar, mas em novas bases.
De um modo geral, somos muito atentos aos golpes de Estado, mas subestimamos as outras formas que ameaçam a democracia através de sua erosão cotidiana. A melhor maneira que me ocorre é buscar algum consenso na análise de conjuntura. A esquerda comprometeu sua influência cultural em vários momentos. O mais grave deles foi a corrupção que atingiu sua credibilidade.
Mas, no meu entender, teve peso também aplicar políticas estatais que mexem com o cotidiano, sem um consenso majoritário, apenas por ter vencido as eleições. Essa suposição de que a minoria iluminada precisa conduzir o país em alguns temas da vida produz muitos ressentimentos.
O próprio Supremo, ao discutir a questão do aborto, corre o risco de decidir pelo Congresso, algo que não acontece em muitos países em que o Parlamento funciona. O argumento contrario é de que as coisas demoram a acontecer sem uma intervenção da vanguarda. No entanto, escolhas feitas por uma elite acumulam resistências que contribuem para movimentos contrários com resultados imprevisíveis.
Não tenho a pretensão de ter o segredo para repactuar o diálogo político no país. A única formula que conheço é tentar suprimir ofensas e se concentrar na troca de ideias.
As ofensas acabam reforçando emocionalmente soluções simples para problemas complexos. Ideias geram dúvidas, suscitam revisões — enfim, são o melhor veículo para sair dessa maré.
Os debates entre candidatos começaram. Ainda há pouco de linguagem egocêntrica, cada um repisando suas teses, sem levar em conta a pergunta. A tarefa agora é levá-los à maior clareza possível não só sobre o que vão fazer, mas como vão fazer e com que dinheiro, nesse pântano fiscal em que nos metemos.
Precisamos escolher alguém para eleger, e não para derrubar no ano seguinte.
Escrevo a caminho de Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Saí diretamente do Rio para cá. Suponho que a sociedade também tenha essa tendência ao equilíbrio, uma espécie de sistema nervoso autônomo. Se é assim, creio que já deu sinais de que algo vai mal tanto no organismo nacional como no sul-americano.
O Rio foi tomado por inúmeros casos de violência e assalto. Apesar de tantos avisos, o governador Pezão confessou que o estado não se preparou para o carnaval. Como se uma festa tão antiga e previsível fosse um raio em céu azul. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, disse que iria aproveitar a folga do carnaval e viajar para a Europa, em busca de experiências “inovativas”. Folga, como assim? Trabalhei no carnaval por escolha, se quisesse poderia estar fantasiado em qualquer esquina. Mas um prefeito não tem folga no carnaval. É precisamente o período em que tem de cuidar de tudo, para evitar o pior. Pezão ainda não conseguiu ler o plano de segurança. Crivella se elegeu dizendo que iria cuidar das pessoas. Será que foliões, fantasiados, seminus e alegres, não são pessoas?
Essas coisas nos colocam próximos de uma desordem generalizada. As principais autoridades parecem não entender o que está se passando. A tarefa do equilíbrio, a homeostase, torna-se cada vez mais complicada.
Aqui na fronteira, as coisas não são diferentes. Estive em Pacaraima duas vezes, e uma em Santa Helena, já na Venezuela. Previ que a situação iria se agravar, o que não é nenhuma vantagem, apenas o óbvio. Por aqui já passaram mais de 40 mil. Na Colômbia, um milhão de refugiados cruzaram a fronteira. As ferramentas diplomáticas, Mercosul, Unasul e mesmo a OEA, são incapazes de achar uma saída. Talvez o único caminho seja internacionalizar uma crise que transcende a capacidade sul-americana. Mas o que pode fazer a ONU? A Europa está sobrecarregada pelo fluxo de refugiados no Mediterrâneo. E os Estados Unidos, com a escolha de Donald Trump, fecham-se cada vez mais para as tragédias do mundo.
Como um sistema nervoso autônomo, os mecanismos de monitoramento continuam funcionando. Eles registram os desequilíbrios, indicam as desordens. No entanto, não se encontra remédio. A tarefa do sistema nervoso central está atrofiada, não há antecipação planejada, apenas uma espera na crise para intervir quando for tarde demais. O colapso do governo no Rio, por corrupção e incompetência, já era um sinal de que a crise de segurança se agravaria. A escalada repressiva de Maduro, uma certeza do êxodo em massa para Colômbia e Brasil.
Assim como no corpo, o sistema nervoso autônomo na sociedade precisa de mais atenção. No corpo, é ele que nos desestimula, por exemplo, a disputar uma corrida depois de um farto almoço.
Embora isso não explique tudo, creio que os governantes em Brasília e no Rio não se importam tanto com esses desequilíbrios porque estão atentos a outros sinais. Ambos têm problemas com a polícia, ambos se esforçam para escapar dela. Não creio que uma antecipação conseguiria resolver as crises em Pacaraima ou Copacabana. Mas, certamente, ajudaria.
Um governador que não se prepara para o carnaval, um prefeito que vê nele uma folga para buscar soluções na Áustria, na Alemanha e na Suécia, são figuras inúteis.
No caso da Venezuela, Temer pode dizer que o governo anterior não só apoiou como se tornou cúmplice da tragédia produzida por Maduro. Mas Temer era vice-presidente. Não é possível que só tenha percebido agora como o Brasil errou.
E, agora, as coisas são bem mais difíceis. Em Roraima, segundo as pesquisas, a população, majoritariamente, rejeita os imigrantes. Em termos regionais, nas eleições, pode acontecer ali algo que aconteceu na Europa: um avanço da xenofobia.
Nesse caso, como aliás em tantos outros, é preciso preparar o corpo para pancadas de todos os lados. A direita gostaria de ver a fronteira fechada. E a esquerda, assim como Crivella, que não vê pessoas na multidão carnavalesca, dificilmente enxerga direitos humanos nas milhares de famílias que fogem do socialismo do século XXI, como se autoproclama a aventura bolivariana.
Andei por Salvador visitando mosteiros, templos e terreiros para um programa de tevê. Encontrei o carnaval duas vezes, em Ondina e no Rio Vermelho. Entrei na multidão para documentá-lo, mas não podia deixar de refletir. Não sou especialista em carnaval, nem mesmo fui um observador atento da festa nos últimos anos. Meditei um pouco sobre ele não no sentido que os budistas dão à meditação: um processo que esvazia a mente. Aliás, tenho dificuldade de alcançar esse estado de concentração e o mais perto que consigo chegar dele é quando estou boiando de costas. Meditação no meu caso é dar voltas sobre o tema.
Os entendidos dizem que o carnaval libera sentimentos reprimidos durante o ano de trabalho. Pensei: mas o que falta mais ser liberado? Na medida em que os costumes tornam-se mais ousados, o que restará aos foliões nos dias de festa?
Homem vestido de mulher, por exemplo, pode ser considerado um tipo de liberação num tempo em que isto é feito com profissionalismo e sucesso pelos artistas? Já vi poucos homens vestidos de mulher, mas prevejo uma certa decadência dessa fantasia de carnaval. Com o feminismo em ofensiva, as mulheres podem duvidar se certo modo de travestir é mais uma zombaria do que propriamente imitação.
No que me parecia um bem policiado carnaval, com PMs e guardas municipais em movimento entre os foliões, pensei no carnaval do Rio. Um motorista de táxi me disse: um estrangeiro deve achar estranho que num país em crise e o Rio em guerra civil, tanta gente saia para o carnaval. Mas um estrangeiro não sabe da força que impulsiona as pessoas, uma alegria que precisa sobreviver nas mais duras circunstâncias.
Mas há algo que me preocupa no carnaval em nosso esforço de fazer uma grande festa, apesar de tudo. No meio da semana, três vias importantes foram interditadas: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. De repente, minha reação foi pensar que alternativas teria caso tivesse de entrar ou sair da cidade. É assim que a gente começa a se acostumar.
Muitos já consultam o aplicativo Onde tem Tiroteio antes de se deslocar. Certos lugares, certas horas tornam-se proibidos. E a gente se adaptando.
Com o tempo, descobrimos que a vida está mudada e nosso comportamento é o mais ou menos clássico das populações que vivem em longos conflitos: tocar a vida com alguma normalidade apesar do caos em torno.
Há uma sabedoria nisso, mas também uma certa resignação. E se for a única opção, continuamos com o carnaval apesar de tudo, com nossa vida “normal” apesar de tudo, e as coisas podem piorar.
Claro que a situação e os movimentos do governo, o principal responsável pela segurança pública, são desalentadores. Falou-se num plano de segurança no ano passado e até agora não só saiu do papel como sequer o próprio papel saiu. O governador Pezão disse que o recebeu no meio da semana e não teve tempo de lê-lo. É de se esperar pelo menos que o leia nesse feriado de quatro dias.
Tecnicamente, com um método adequado, suponho que seja um tempo suficiente até para se aprender a ler, quanto mais folhear algumas páginas. Apenas uma fração dessa exuberante energia popular no carnaval seria suficiente para forçar os governos a buscar algo menos reativo, a parar de enxugar gelo.
No momento, as autoridades estão meditando em público sobre a crise. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirma, com razão, que o sistema de segurança está falido. O governador, por sua vez, diz que na Rocinha os policiais são mortos como se mata galinha. O problema é que estão na linha de frente. Quem mói no aspro não fantaseia, dizia Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa.
Comentários a gente ouve no rádio, lê nos jornais e na rede. O que se espera deles é ação. O sistema está falido, os policiais são assassinados, e daí? O que vão fazer, o que podemos fazer para ajudá-los?, esse é foco. A lentidão com que o plano de segurança para o Rio andou é um sintoma de que há algo errado. O governo não pode ficar chorando, embora a situação seja mesmo de chorar, sobretudo com a morte de crianças.
Muitas coisas, espero, serão resolvidas nas eleições de 2018. Mas há algumas que não podem esperar. A crise de segurança pública é uma delas. Por favor, um plano, articulação entre as forças de segurança, foco, aliança com a sociedade – essa é a forma um pouco mais elaborada que tenho para escrever SOS.
A situação das Forças Armadas é diferente da do governo do Rio, composto por um partido que arruinou o estado e cujos líderes estão na cadeia.É dela que pode vir um nível de organização maior, aproveitando o que ainda há de combativo na polícia local.
É um abacaxi para quem se preparou para guerras entre países? Talvez. Mas é de onde pode surgir a capacidade de reação. Não se trata nem de achar a solução para o problema, mas trazê-lo apenas a um nível suportável, para que outras dimensões, como a política social, o crescimento econômico e a própria educação entrem com sua parte.
Dizem que no Brasil o ano só começa depois do carnaval. Não é verdade, pelo menos em 2018. Há várias novelas em andamento e o carnaval será uma simples pausa na sua trajetória.
A nomeação da deputada Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho é uma delas. O governo cometeu um erro na escolha. À medida que os fatos vão ampliando a dimensão desse erro, Temer insiste em manter sua decisão, apesar do imenso desgaste.
O que fazer diante de pessoas que percebem o erro, mas insistem em levá-lo até o fim? Talvez desejar que Deus as proteja delas mesmas.
A outra novela é a tentativa de Lula de escapar das consequências de uma condenação em segunda instância. É uma expectativa que envolve o Supremo Tribunal, a quem se pede, no fundo, a negação do fundamento que inspirou as investigações da Operação Lava Jato: a lei vale para todos. Não há condições de mudá-la sem que isso represente uma imensa fratura na já combalida credibilidade da instituição.
A terceira é mais delicada, porque envolve a Justiça e a sociedade, que a apoiou no curso das investigações e das sentenças. Auxílios-moradia, salários turbinados, juízes combatendo uma necessária reforma da Previdência Social – tudo isso vai criando uma distância que ainda pode ser reparada pelo bom senso.
A Justiça tardou a compreender que o movimento de combate à corrupção com apoio da sociedade certamente traria uma visão mais severa sobre o uso do dinheiro público. O fato de oportunistas tentarem invalidar a luta contra a corrupção porque os juízes recebem salário-moradia em cidades onde têm residência é inconsistente e não está aí o maior problema.
É possível dizer que a Justiça parcialmente triunfou sobre o gigantesco esquema de corrupção. Mas é um tipo de luta que imediatamente leva a um novo patamar: o da coerência.
A reforma é também um confronto com as corporações. A dos juízes está em posição especial para constatar como o País foi saqueado e como a máquina do Estado é inflacionada com cargos em comissão e inúmeros penduricalhos.
Estamos na lona. Mas esperando que as instituições confiáveis, como a Justiça e as próprias Forcas Armadas, se aproximem do esforço nacional de ajustar o País à sua realidade financeira.
Não é só a luta contra a corrupção nem o princípio de que a lei vale para todos que estão em jogo. Há toda uma luta silenciosa no País contra a ideia de que todos querem vantagens públicas, mesmo os que aplicam a lei.
Desejo um final feliz para essa novela, uma vez que dela depende, em parte, o futuro de uma reconstrução baseada na aliança de amplos setores da sociedade com as instituições confiáveis.
Um dos meus argumentos contra a luta armada é que ela precisa criar um exército de salvação nacional para triunfar. Depois, quem nos salvará dos salvadores? Claro que vivemos uma situação diversa, mas é importante que a Justiça, após um trabalho nacionalmente aprovado, reconheça que ela mesma precisa se ajustar aos tempos que ajudou a moldar.
Tudo isso ainda nos espera depois do carnaval, abrindo alas para o enredo maior de 2018: eleições. Delas é possível esperar a escolha de gente que nos possa ajudar a sair do buraco não só da economia, mas também do desencanto geral com os rumos do País.
A reforma da Previdência foi conduzida por um governo impopular. Mas ela não é necessariamente impopular se reduz privilégios, cobra dos devedores e garante um futuro menos instável. Não precisa vir numa situação já de emergência, como na Grécia, trazendo insegurança e sofrimento. Ou como no Rio, para não ir mais longe.
Minha expectativa é de que isso se resolva bem na campanha. Os candidatos sabem que a reforma é necessária. Ou a defendem ou serão obrigados a fazê-la depois, nesse caso com baixa legitimidade, porque mentiram na campanha.
É uma ilusão da esquerda negar uma reforma necessária. Um dos fatores que a levam à resistência é o fato de estar muito enraizada nas corporações. Nesse caso pesa também o cálculo eleitoral. Até que ponto perder parcialmente o apoio dos funcionários públicos seria recompensado em votos pelos contribuintes?
Não só a esquerda vive esse dilema, mas o sistema político-partidário no seu conjunto. Ele não tem fôlego para realizar uma tarefa decisiva. Tornou-se um obstáculo às chances de reconstrução econômica. Entre outras, essa é uma das fortes razões para esperar mudanças a partir das escolhas de 2018.
Se o carnaval dá uma pausa para as novelas políticas, ele é implacável com a tragédia da violência urbana. Tudo continua. No Rio, três grandes vias, Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil, foram interditadas por tiroteios entre polícia e bandidos. Um menino e um homem morreram. Balas perdidas, governo perdido.
Já é um pouco estranho que tanta gente pare para fazer o carnaval. Mas seria mais estranho ainda que o governo parasse sobretudo nesta emergência. Existem graves problemas de violência no Norte e no Nordeste, mas o caso do Rio tem algumas agravantes.
A situação é tão grave que os responsáveis por atenuar o problema o examinam de certa distância. O ministro da Defesa declarou que o sistema de segurança está falido e o governador Pezão disse que na Rocinha se mata policial como se mata galinha. São bons comentários para um programa de rádio, mas quem está na linha de frente, ao dizer isso, imediatamente tem de responder a perguntas como: e daí? E os tiroteios? Como é que vai ser? Significa que estamos sós e desarmados antes, durante e depois do carnaval?
A moderada esperança nas eleições não significa abstrair problemas que não podem esperar, não só porque envolvem vidas, mas porque podem criar um terreno fértil para soluções autoritárias.
Seguir na estrada um longo julgamento como o de Lula é curioso. Há momentos em que a internet vai para o espaço e as emissoras de rádio desaparecem com zumbidos e estalos insuportáveis. O interessante é ouvir muitos programas diferentes, na medida em que passamos pelo raio de ação das emissoras. Não é a mesma coisa que a Coreia do Norte, onde aquela mulher com trajes típicos anuncia os foguetes de Kim Jong-un. A cobertura é bem desconstraída, até um pouco vaga. Num dos programas, o comentarista reclamava: o juiz está chamando cozinha de kitchen, usando a palavra em inglês.
Imediatamente, alguém vem em socorro e explica que Kitchen é marca da cozinha, a mesma comprada para o tríplex de Guarujá e o sítio de Atibaia, ambos atribuídos a Lula. Em seguida, começam as projeções. Alguns calculam que os recursos vão demorar tanto que Lula poderá ser presidente antes de todos serem julgados.
Isso não confere com minha visão. Mas o que fazer? Havia também uma grande excitação sobre o resultado, algo que para mim era previsível, tanto que já tinha escrito sobre essa novela e esperava o seu fim para que se possa discutir o que importa: a reconstrução do país.
O que senti ao longo do caminho, ouvindo fragmentos de debates, foi uma sensação de, para muitos comentaristas, a novela não pode acabar nunca. Os recursos, restam os recursos. Cada recurso será um capítulo à parte da novela e assim, segundo eles, vamos ter confusão até o fim da campanha de 2018.
Tinha de escrever dois artigos à noite. Fiquei temeroso: será que minha visão não é simples demais? Esperava esse resultado, achava-o um desfecho previsível apesar de toda a marola do PT. Já tinha a experiência do depoimento de Lula em Curitiba. Tudo normal.
Num tema tão emocionalmente carregado como esse, era natural que a fronteira do delírio fosse muitas vezes transposta. Gleise Hoffman, por exemplo, teve visões. Conseguiu achar um cartaz pro Lula na torcida do Bayern. Na verdade, era um cartaz escrito Forza Luca, um torcedor que está internado. O deputado cearense José Guimarães viu ônibus levando apoiadores de Lula da fronteira, mas eram apenas ônibus transportando sacoleiros.
Mas os comentaristas não estão livres de alucinações. Uma delas é imaginar um presidente dirigindo o país da cadeia.
No fim da tarde, a maneira como descreviam o resultado de 3 a 0 me desconcertava. Como escrever artigos daqui a pouco? Entendi que Lula foi condenado por unanimidade. Ouvi, e nesse momento o som do rádio estava audível, que ele deve cumprir a pena na prisão.
Como interpretar frases como essa: com essa condenação o destino eleitoral de Lula ficou incerto? Para um viajante na estrada, com pouca conexão, a tendência é achar que uma pessoa condenada a 12 anos de cadeia tem um destino muito mais definido do que a maioria dos mortais que circula em liberdade.
Para mim, a leitura de uma condenação unânime e a conclusão de que a pena deve ser cumprida em regime fechado é o dado essencial. Os comentaristas davam uma volta nele, como se não existisse. Só tratavam da eleição de Lula e, com alguma volúpia, das confusões jurídicas que projetavam para o futuro.
Na estrada concluí que havia uma diferença de enfoque. Todos estavam concentrados na eleição de Lula. Mas o que está em jogo a curtíssimo prazo é a liberdade de Lula. Para que Lula continue representando o candidato que vai salvar o Brasil, é preciso que alguém o liberte. Nesse caso, as esperanças vão se voltar para o Supremo, mais especificamente Gilmar Mendes. Aí, sim, talvez tenha alguma emoção no futuro. O Supremo teria de mudar seu próprio entendimento para que Lula não fosse preso, após o julgamento em segunda instância.
Se isso acontecer, será a revelação final de como a instituição faz parte do sistema político e apodreceu velozmente com ele. A ideia de que a lei vale para todos vai ser contestada de uma forma pedagógica.
O Supremo teria de rever às pressas sua decisão, contrariar abertamente a sentença explícita do TR4. E afirmar que Lula não pode ser preso, exceto quando se esgotarem todos os recursos, inclusive no próprio Supremo. Vejo um cenário desse tipo com certa frieza. Afinal, como dizia Guimarães Rosa, o que tem de ser tem muita força. Alguns ministros, como Marco Aurélio Mello, já declaram que a prisão de Lula vai incendiar o país. Vai ficar mais claro ainda o papel do Supremo na degradação nacional e sua cumplicidade objetiva com a corrupção dos políticos.
Há sempre um incêndio no futuro. Na semana passada, era o resultado do júri. Agora, suas consequências. Muitas ameaças não cumpridas acabam sendo a única uma forma de argumentar. E ela fracassa quando se perde o medo de viver numa sociedade em que todos pagam pelos seus crimes.
Em vez de inventar uma saída para Lula, um Supremo com um mínimo de vergonha na cara deveria estar fechando a dos outros políticos, protegidos pelo foro privilegiado.
A discussão sobre a saúde mental do homem mais poderoso do mundo é algo novo para mim. Mas o tema associando loucura e política certamente apareceu em muitos momentos da História. Nos tempos mais recentes, sempre foi mais comum uma discussão sobre a saúde física. No caso de Franklin Rooosevelt, o que estava em jogo era sua mobilidade, algo aparentemente superado nos dias de hoje: a cadeira de rodas não é um obstáculo intransponível.
A questão da loucura apresenta dificuldades: como definir que uma outra pessoa é louca contra a vontade dela, sobretudo quando ocupa o cargo político mais importante do planeta?
O debate sobre a saúde mental de Trump se acentuou com o lançamento do livro “Fogo e fúria”, de Michael Wolff. Os argumentos que tenho lido não me convencem de que Trump é louco. Às vezes detêm-se em análises de gestos simples como levantar um copo de água, sem considerar que certas hesitações se devem mais à velhice do que à loucura.
A disputa com Kim Jong-un sobre quem tem o botão maior, embora infantil na boca de um presidente, expressa uma tendência à competição onipresente em inúmeras atividades humanas.
No tempo em que Stalin dominava a União Soviética, muitos opositores foram mandados para o hospício. Era algo bastante temido, sobretudo entre intelectuais. O regime comunista não só monopolizava o poder como também se sentia em condições de monopolizar a razão. Ser de oposição era sintoma de uma doença mental. Numa sociedade democrática deve haver alguns protocolos, inclusive para uso da Justiça, determinando se a pessoa cruzou ou não a fronteira da sanidade. Quando se trata de algo tão político, é evidente que se formem duas grandes correntes, cada uma desconfiando abertamente da imparcialidade científica da outra.
Não tenho condições de afirmar se Trump é louco ou não. Outro dia, em Porto Alegre, um jovem me fez uma longa e complexa pergunta, concluindo: acha que estou louco? Quem sou eu para dizer que uma pessoa está louca, respondi. Tenho dúvidas a respeito de mim mesmo. No passado, Francisco Nelson, um grande amigo do exílio, sempre me confortava: tudo bem, você está lúcido.
Chico Nelson morreu de enfarte. Desde então, dedico-me a responder sozinho e falta energia para julgar os outros.
Mesmo para quem vive num país surreal como o Brasil, é estranho ver dois líderes mundiais trocando insultos, e Trump dizendo que tem um botão maior que o do outro.
Às vezes acho que discussão sobre a saúde mental de Trump mascara outra mais delicada: até que ponto ele representa a normalidade estatística, até que ponto o que está em jogo não é a sanidade da própria sociedade americana?
Ainda assim, restaria a dúvida sobre o é que normalidade nos dias de hoje. Antigamente, em Minas, um ditado popular tentava fixar a fronteira entre loucura e lucidez: é louco mas não rasga dinheiro. Que sentido tem essa fronteira numa sociedade consumista? Até que ponto a ostentação dos bilionários não é um rasgar dinheiro com base na realidade? Muitos de nós se lembram que loucura e poder estão associados de tal forma que, num dos clichês das comédias do passado, o louco aparecia sempre dizendo que era Napoleão Bonaparte.
Melhor, no exame dos atos de Trump, é analisar um a um, não sob a ótica da saúde mental, mas de sua eficácia política.
Trump retirou os EUA do Acordo de Paris. É um cético quanto ao aquecimento global. A dúvida dele a respeito de evidências que nos parecem esmagadoras tem consequências políticas. Uma delas é abrir espaço para que China tente ocupar o vácuo deixado pelos Estados Unidos, e a França recupere um pouco de sua grandeza perdida.
Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental.
Na atual fase do capitalismo, o entretenimento de milhões de pessoas tornou a indústria da diversão tão importante que tendem a surgir dela os nomes mais viáveis para liderá-la.
O próprio Trump usou a indústria da diversão para ampliar sua popularidade e, agora, utiliza o Twitter como seu programa particular.
Não nego que os critérios de sanidade e loucura ainda são importantes e mobilizam milhões de profissionais dedicados a, pelo menos, atenuar o sofrimento humano.
Transplantados para a política, esses critérios talvez não tenham a mesma validade. Minha suspeita é de que na luta cotidiana para espantar o tédio, a excentricidade torne-se uma espécie de capital para os candidatos ao poder.
Trump é um sintoma de algo bem mais sério e bem mais louco do que podemos imaginar. Aceitar essa premissa é incômodo mas nos aproxima da realidade. Não foi por acaso que, depois da Segunda Guerra Mundial, os intelectuais se voltaram não para dissecar a psicologia de Hitler, mas para se investigar o que havia na sociedade alemã para tornar possível sua liderança.
São outros tempos, mas, creio, a tarefa ainda é a mesma.
O Brasil tem dois fatos marcados para o início de 2018. Um, com direta repercussão na política, o julgamento de Lula, em 24 de janeiro; e o outro, com impacto na economia, a votação da reforma da Previdência, marcada para 19 de fevereiro.
Em agosto de 2018 o impeachment de Dilma Rousseff completa dois anos, e existe ainda uma discussão aberta sobre se valeu a pena, se foi melhor para o Brasil.
Formalmente, Dilma foi derrubada por causa das pedaladas fiscais, por ter gastado mais do que permitia a lei. Nas comissões e no plenário do Congresso oradores se sucediam para condenar essa prática. Parte do governo de Dilma, o PMDB se voltou contra ela e apoiou o impeachment. Estavam todos horrorizados com as pedaladas fiscais.
Agora, o segundo aniversário do impeachment vem aí e o governo falou em aprovar, antes dele, uma lei que lhe permita pedalar sem ser punido legalmente. Ao que parece, não queria nem pedalar, mas passar da bicicleta comum para uma elétrica, destas que se movem sem o esforço das pernas. Em termos de nossas tradições, nas quais certas leis pegam e outras não, o governo Temer pretendia inovar. Não se trata mais de afirmar que a lei não pegou, e sim de uma lei que tira férias, como, por exemplo, o horário de verão: só vale em certa época do ano. Não há dúvida de que isso desmoralizaria a tese central do impeachment.
Todos sabemos, também, que a esperança do movimento popular era deter o processo de corrupção. Mesmo aí os resultados só podem ser creditados à Operação Lava Jato, porque o governo Temer não só fazia parte do esquema de corrupção anterior, como é muito mais audacioso que o PT, como mostra aquele maroto decreto de indulto no final do ano. Na verdade, são táticas diferentes. O PT faz coisas erradas e tenta convencer de que você é que está equivocado, tem uma visão conservadora, aristocrática – enfim, há um arsenal de adjetivos a serem usados em cada ocasião. O governo Temer usa a tática do se colar, colou. Sem debates, assinou um decreto abrindo uma área da Amazônia à mineração. Ouviu o barulho e concluiu: não colou. No caso da portaria que atenuava as punições ao trabalho escravo, da mesma forma, ouviu o barulho e concluiu: não colou. Vamos fazer algo mais severo ainda porque as eleições vêm aí. O indulto de Natal morreu no STF, por uma decisão de Cármen Lúcia. Duvido que sobreviva ao plenário, embora já imagine quem possa votar a favor. E, finalmente, as próprias pedaladas “dentro da lei” parecem não ter colado também.
O único saldo do governo Temer foi ter conseguido deter o processo de degradação da economia, propiciar uma discreta retomada do crescimento. Somado à reforma da Previdência, ainda que modesta, ganhará fôlego para ir até o fim, um pouco pela inutilidade de, simultaneamente, derrubar um governo e eleger outro em 2018.
Voltando ao calendário, suponho que a decisão do caso Lula este mês e a possível reforma da Previdência definam um cenário relativamente favorável ao debate sobre a reconstrução, implícito na campanha eleitoral.
Não abstraio a existência de protestos, caso a condenação de Lula seja confirmada. Mas o êxito máximo de um movimento desse tipo seria manter Lula em liberdade, apesar da condenação em segunda instância. Dar umas férias a essa determinação legal do STF.
A sentença de Sérgio Moro não será anulada. A tese de que houve uma perseguição judicial é difícil de se expandir para fora do petismo, pois foram vários anos de trabalho de investigação, toneladas de documentos, perícias, provas testemunhais.
Tudo isso aconteceu numa atmosfera democrática, com Congresso aberto, imprensa e, sobretudo, transparência. Aliás, o processo de investigações foi acusado mais por mostrar do que ocultar, como naquele diálogo entre Dilma e Lula em que Bessias levaria um documento de posse para proteger Lula da prisão.
A esquerda decide lançar todas as suas fichas na salvação do líder num momento em que a maioria está preocupada com a salvação do País. Essa energia concentrada em salvar Lula deixa de lado algumas questões vitais que ela teria de encarar num processo eleitoral.
Será difícil de afirmar que a corrupção é algo apenas do governo Temer, que conseguiu se equilibrar porque era o sócio menor no esquema descoberto pela Lava Jato. Será difícil de explicar como acabou com a pobreza e surgiram 52 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza apenas neste curto mandato de Temer. É como se 52 milhões de pessoas estivessem escondidas nos pântanos, nas selvas, favelas e sertões e tivessem aparecido apenas quando ouviram os gritos de “tchau, querida”.
De qualquer forma, mesmo distante do tema da reconstrução, a esquerda é importante fator subjetivo no cenário eleitoral. Ela afirma que as eleições sem Lula são uma fraude, em outras palavras, que a decisão do TRF-4, caso confirme a sentença, não vale. Na verdade, ela pede uma espécie de corredor em que alguns mecanismos legais sejam suspensos, para que ele possa prosseguir na salvação dos pobres, mandando-os de novo para a galáxia onde se escondiam antes do impeachment. Se a decisão do TRF-4 confirmar a de Moro, então seriam necessárias não só as férias da determinação de prender em segunda instância. Seria preciso, também, um congelamento da Lei da Ficha Limpa. Não afirmo que isso é impossível. Apenas muito improvável, uma espécie de distração dos problemas reais do País.
Na Venezuela, foi possível, por exemplo, colonizar a Justiça e corromper os militares com cargos e vantagens. Cada pessoa perdeu em média 5 kg nestes anos de Maduro. Os venezuelanos estão sumindo corporalmente, assim como os pobres sumiram nas estatísticas do PT.
É difícil elaborar os fracassos, partir para outra. Requer capacidade de dúvida, suspensão da fé religiosa em certos projetos políticos. Por enquanto, as esperanças do governo Temer e as do PT são de pedalar, driblando as lei da responsabilidade fiscal e as decisões da Justiça. No fundo, não eram só uma coligação, mas uma equipe de ciclistas.
Viajaram todos no réveillon, fiquei só em casa, com uma delicada missão: acalmar os quatro gatos durante os 17 minutos dos fogos em Copacabana. No fim, deu certo. Vieram todos para a minha cama, redobrei a atenção com uma delas que tem o hábito de fazer xixi fora do lugar, quando contrariada. Nessa breve semana de férias, constatei que em 2018 vou trabalhar mais ainda. São as circunstâncias. Minha pergunta é esta: que tipo de qualidade necessito para encarar as novas tarefas?
Para fazer mais e melhor, destaco sempre uma delas, que nem sempre me acompanha, na trajetória agitada: concentração. Costumo levar na mochila um velho livro do sexto patriarca da Escola do Sul: Hui Neng, um sábio budista. Volta e meia, bate na tecla da concentração. No seu universo, a concentração é indispensável ao caminho espiritual. Mas nada impede que seja também um instrumento valioso na nossa vida cotidiana.
Definidos objetivo e método, nada melhor que usar os restantes momentos de férias para me dispersar. Ou, pelo menos, sentir a força avassaladora das múltiplas atrações que disputam nossa atenção. Dentro de casa, com livro, tevê e internet, é possível se perder completamente, em romances, ensaios, biografias, perfis, curtas, debates inteligentes e bobagens engraçadas.
Vi um perfil de Francis Bacon, cujos quadros sempre me impressionaram e a quem só conhecia de um livro de entrevistas. Fiquei triste com seu cotidiano pontilhado de crises, suicídio de um de seus amantes no momento de sua grande consagração internacional: a exposição no Grand Palais, em Paris. Lembrei-me de Van Gogh, pobre, dando sua própria orelha para uma prostituta. É como se fosse uma lenda: não me comove tanto. E pensei: as dores dos contemporâneos parecem ser as nossas dores.
Vi os episódios de série “Black mirror”, especialmente “Arkangel” me fez divagar de novo. A mãe decide implantar um dispositivo no cérebro da filha. Através dele, pode localizá-la e até mesmo ver e ouvir o que a menina Sarah vê e ouve. Na sua telinha, a mãe acompanha a cena de sua filha fazendo amor com o namorado. Ela vê o namorado de baixo, com os olhos de Sarah. E ouve a menina dizer frases pornográficas. Numa cena anterior, Sarah aparecia vendo no recreio da escola um filme pornográfico.
É apenas um detalhe em toda a história. No entanto, acionou uma conexão na minha cabeça: andei lendo um pouco sobre um debate acerca do tema nos EUA. Uma das críticas enfatizava que o imaginário sexual da juventude estava sendo colonizado pelos roteiristas de filmes pornográficos. Isso alterava o vocabulário e os próprios sentimentos. “Arkangel” me provoca a voltar ao tema.
Passados os momentos de dispersão, ainda fico intrigado como sou atraído por eles. Como se concentrar num mundo em que milhares de focos disputam sua atenção?
Na estrada, às vezes com pobre conexão, isso é possível. O chamado fluxo de trabalho é também uma âncora no presente. Ainda assim, os fatos seguem acontecendo e não se pode descuidar deles. No entanto, é preciso fazer uma espécie de barreira sanitária. Em outras palavras, o volume de informações que nos orgulhamos de consumir e produzir também pode se voltar contra nós, sobretudo em doses cavalares.
De volta ao futuro imediato, está diante de todos nós um ano desafiador. Acompanhar as eleições, tentar extrair delas a maior mudança possível nas relações entre sociedade e governo é uma tarefa inescapável. O primeiro grande traço do ano eleitoral será desenhado no dia 24 de janeiro em Porto Alegre: o julgamento do recurso de Lula pelo TR4. Teoricamente, o Tribunal pode confirmar, rejeitar, reduzir ou ampliar a pena de Lula. Em qualquer hipótese, tudo terá de ser equacionado de novo, a partir dessa decisão.
Pelo que vi em Curitiba, quando Lula foi depor, as tensões que surgem nesses momentos podem ser superadas com serenidade e algum planejamento para evitar a violência.
Protestos, abaixo assinados, todos fazem parte do jogo político. Mas servem mais como um consolo para Lula do que propriamente uma visão apontando para o futuro. Em caso de confirmação da pena, como conduzir uma candidatura que se choca com a Lei da Ficha Limpa?
Não posso prever em detalhes esse primeiro grande momento do ano eleitoral. Na verdade, ainda o encaro como um incidente do passado. Lula resolveu se candidatar para fugir da Lava-Jato pelos melífluos caminhos da política.
Baixando essa poeira de janeiro, será possível discutir um pouco mais amplamente uma agenda para a mudança. Entre o destino de um condenado e as tarefas de reconstrução do país há uma considerável mudança de foco.
Os anos pertencem a uma teia maior do tempo. Nunca são totalmente novos. Como todos nós, trazem consigo a carga do passado. Até os motins nas cadeias são planejados na véspera do réveillon. Esperemos pois, com paciência, 2018 surgir nas brumas de janeiro.
Nesta época sempre tento ver as coisas com a simplicidade de Drummond: “O último dia do ano/não é o ultimo dia do tempo./Outros dias virão”. O ano de 2018 nasce numa segunda exatamente 50 anos depois de 1968. Esse aniversário não deveria ofuscar o ano que entra, mas sim ajudar a entender esse meio século. Em 68, nem tudo aconteceu da mesma forma. Na Praça de Tlatelolco, no México, mais de 200 estudantes foram assassinados. Luther King, assassinado, Robert Kennedy, assassinado.
Nem todas as lutas eram idênticas. Hoje, 68 é associado às românticas revoltas da juventude, aos sutiãs queimados e expectativas de mais liberdade sexual.
No Brasil, esses fatores só chegam mais tarde. Era basicamente uma luta estudantil contra um governo militar, embora tenham ocorrido duas greves de metalúrgicos no período, em Osasco e Contagem.
Na verdade, eles eram um subenredo. Lembro-me que, ao dissolver o congresso da UNE, em Ibiúna, a policia fez questão de exibir todas as pílulas anticoncepcionais encontradas no sítio. A intenção era sugerir promiscuidade sexual. Hoje, talvez fosse um indício apenas de precaução.
Quase nunca falo de 68 porque já me cansei do tema. No entanto, faz alguns anos que sempre me pergunto: até que ponto a mudança de comportamento foi influenciada pelos jovens? Até que ponto o instrumento realmente decisivo partiu de um salto científico com a disseminação da pilula?
O ano de 2018, apesar de começar na segunda, como 1968, enfrenta uma conjuntura bastante desafiadora. Apesar dos 50 anos de lutas por direitos civis nos EUA, a eleição de Trump representa um golpe na ilusão de um progresso linear.
As ondas migratórias, com o crescimento da extrema direita, colocam em xeque as teses do multiculturalismo que estimulou as lutas identitárias dos imigrantes.
No Brasil, a lembrança mais próxima é a de um longo período de dominação da esquerda que, além de falhar nos campos da ética e da economia, revestiu esses temas culturais de uma estreiteza partidária lamentável. Os direitos humanos foram as primeiras vítimas: são vistos hoje com desconfiança.
Em toda a parte, nos EUA, na Europa e no Brasil tornam-se mais fortes as linhas conservadoras que questionam esse possível legado de 68.
Talvez fosse um momento para refletir com a experiência da juventude. Quando se quer o mundo, você pensa apenas no seu objetivo e esquece um pouco dos outros. De repente, descobre que a maioria prefere outro caminho. É hora de dialogar. Em 68, o traço de união era lutar contra um regime ditatorial. Em 2018 é de reconstruir um país, sob muitos aspectos, arrasado.
Mas 2018 acontece 50 anos depois. As lutas continuam se desenvolvendo. As feministas queimavam sutiãs em 1968. Hoje, com a entrada maçica das mulheres na força de trabalho, elas questionam o assédio sexual nas empresas. E não só nas de Hollywood, mas também nas grandes montadoras.
De lá para cá houve a revolução digital e um processo contínuo de mudanças que nos envolvem. É nesse quadro amplo de transformações que precisamos achar um rumo.
O fator nacional de referência é a reconstrução do tecido democrático, mudanças no sistema político partidário, recuperação da economia.
Grandes debates sobre costumes, alguns fundados, outros artificiais, vão seguir acontecendo. O importante é saber em que lugar e em que ano estamos. Reconheço que mesmo nesses quesitos não há unanimidade: as pessoas vivem em tempos diferentes.
Daí a importância das eleições, como troca de ideias, uma oportunidade real de saber para que lado a maioria quer levar o Brasil.
Sempre desejo feliz 2018 lembrando que será um ano difícil.
Mas não os vejo como termos antagônicos. O ano de 1968 também foi difícil. E muitos o viveram com alegria.
Cada época com seus fantasmas. O importante para quem viveu algumas é não confundi-los. Como Drummond, de copo na mão esperar o amanhecer, sabendo que “Para ganhar um Ano-Novo/que mereça este nome,/ Você, meu caro, tem de merecê-lo/ tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,/ mas tente, experimente, consciente./ É dentro de você que o Ano Novo/ cochila e espera desde sempre.”
Um país também não escapa dessa lógica. Para ganhar um Ano Novo, terá de merecê-lo. Ainda que 2018 desapareça na névoa da história e ninguém se lembre dele ao completar meio século. Mas é o ano que temos, o tempo presente. Tão grave no Brasil que nos convida a andar devagar e, se possível, de mãos dadas.
Papai Noel não se esqueceu dos investigados e condenados pela corrupção no Brasil. Nos sapatos na porta do xadrez, ou nas tornozeleiras na beira da cama, caíram vários presentes.
Era previsível essa ofensiva de fim de ano. Sempre foi assim no Brasil. Joga-se com o espírito de Natal, que dissolve todo ânimo de protesto.
Dois presidentes latino-americanos, Michel Temer e Pedro Pablo Kuczynski, do Peru, vestiram a roupa de Papai Noel e desceram pela chaminé dos presídios. Kuczynski libertou o ex-presidente Alberto Fujimori. Temer estendeu o perdão aos condenados por corrupção.
Ambos foram presenteados durante o ano com a permanência no cargo, ameaçada pela relação com empresas brasileiras. Lá, o escândalo envolveu a Odebrecht e Kuczynski. Aqui, o escândalo da JBS acabou abafando o lado Odebrecht nas várias acusações contra Temer.
Kuczynski , pelo menos libertou um adversário. Já Temer indultou os próprios aliados.
No fundo, é uma reação contra a Lava Jato nos dois países. Um tipo de reação que classifico como tentativa de redução de danos.
Existe outra que visa a neutralizar a Lava Jato e se desenvolve no front do STF. Seu maior objetivo, no momento, é questionar a prisão do condenado em segunda instância. A votação a favor dessa prisão, após o julgamento nos tribunais regionais, foi de 6 a 5.
Gilmar fala em mudar seu voto e virar o jogo. Num front combinado no Palácio do Planalto, os jornais indicam uma aproximação de Temer com o ministro Toffoli, que será o presidente do STF em 2018.
Minha intuição é que têm algo a discutir com urgência: o foro privilegiado. Toffoli suspendeu a votação, pedindo vista do processo, quando a vitória de restrição de foro já estava numericamente garantida.
A ideia que pode uni-los é a possibilidade de o tema ser votado na Câmara, da forma que os deputados escolherem. Nesse caso, as tentações serão muitas, como a de estender o foro privilegiado a ex-presidentes.
São incalculáveis as peripécias que podem surgir neste ano de eleição, quando a posição contra ou a favor da Lava Jato estará em jogo. O PT tende a apresentá-la como manobra imperialista. Alguns candidatos já a defendem abertamente, como Bolsonaro, Álvaro Dias e Marina.
Da boca pra fora, o PSDB pode aprová-la, mas há tantas questões internas não resolvidas que o partido não passa confiança no seu discurso.
Não sou chegado a retrospectivas. Mas o tema Lava Jato foi central nas decisões não só do STF, como de Temer, neste fim de ano. Na verdade, nos últimos anos a Lava Jato tem sido o fato determinante, o foco das notícias mais comentadas. Foi assim nos começos, meios e fins de ano. E provavelmente ainda será em 2018, mas em outro contexto.
De onde vem a primeira grande decisão do começo do ano? De Porto Alegre, no dia 24, quando estará em jogo um dos confrontos mais populares da operação: Lula x Lava Jato.
Um dos fatores determinantes da campanha eleitoral de 2018 está sendo jogado ali. Em qualquer hipótese, todos os cálculos terão de ser refeitos após a decisão do TRF-4 sobre Lula.
Isso é apenas um lembrete para aqueles que querem neutralizar a Lava Jato. Não é imaginável que o seu abalo continental não tenha sido sentido no epicentro do terremoto, o Brasil do PT, da Odebrecht e do BNDES.
O Supremo pode fazer voltar a roda do tempo e garantir que os acusados passem longa parte de sua vida redigindo petições e apresentando recursos. Mas até agora o Supremo não condenou ninguém pela Lava Jato. No Rio e em Curitiba já houve dezenas de condenações. Mesmo acabar com a prisão em segunda instância, abrindo prazo para longos recursos, já não terá o impacto de antes.
Maluf foi preso aos 86 anos. Sua penitenciária tem uma área geriátrica. Num futuro em que os recursos se alongam no STF, ainda assim terá de ser construído um complexo só para idosos.
Não adianta tapar o sol com a peneira. O País foi sacudido pela revelação do maior escândalo da História, partidos e empresas envolveram-se nele, o próprio sistema político entrou em colapso.
Ainda não é possível prever o impacto que tudo isso terá nas eleições. Existem pesquisas indicando o desencanto com os políticos. Todavia hoje há métodos que usam dados em quantidades gigantescas, cruzando-os e extraindo algumas hipóteses. Talvez vejam mais que as pesquisas.
É a primeira eleição presidencial depois do impacto sistêmico da Lava Jato. Não há como escapar dessa variável.
Mas a Lava Jato é apenas uma operação policial e o sistema político-partidário em ruínas, uma evidência. Pede mais do que uma defesa – a favor ou contra, digamos.
Daí a importância de questionar os candidatos não só sobre apoio, mas que conjunto de medidas está ao seu alcance para completar no âmbito político e legal a renovação que a Lava Jato inspirou. Na verdade, creio que este sempre foi o desejo da Lava Jato, a julgar pelas entrevistas: que a sociedade e o mundo político completem a tarefa.
Cada país, em circunstâncias como as nossas, faz sua renovação de acordo com as possibilidades históricas. A semente de mudanças que a Lava Jato espalhou é um dos trunfos da renovação. Supor que tudo será como antes é um sonho nostálgico, de adultos que ainda acreditam em Papai Noel.
A chance da sociedade é tirar o melhor proveito das eleições. Por dever, prazer ou mesmo com a resignação de quem toma um remédio amargo.
Certamente, vou encerrar desejando a todos um feliz ano novo. Sei que será difícil. Mas não são termos antagônicos. Difíceis têm sido estes anos e sobrevivemos. Devagar a economia melhora.
Como dizem nove entres dez candidatos, o Brasil tem jeito. Nada de errado com a frase, apenas com quem a proclama.
Os japoneses escolheram um ideograma para definir o ano de 2017: um símbolo gráfico que significa Norte, uma alusão aos coreanos que frequentemente lançam seus foguetes no mar do Japão. Com um inimigo externo desvairado como Kim Jong-un é mais fácil achar um símbolo. Trabalhando com o alfabeto, uma revista norte-americana optou pela palavra feminismo, referência ao furacão de denúncias de assédio sexual que sacudiu Hollywood e se desloca a cem quilômetros por hora rumo à Casa Branca.
Tentei encontrar algo que simbolizasse o ano no Brasil. Pensei na tornozeleira eletrônica, pois este ano estivemos de novo sob o impacto da Operação Lava-Jato. Mas ponderei: as tornozeleiras representam os empresários que já estão saindo da cadeia. Os políticos com foro privilegiado ainda nem chegaram. Pensei num pé com a tornozeleira, outro com uma asinha. Seria difícil, embora o símbolo Yin Yang da filosofia chinesa talvez desse conta dessas energias opostas.
Deixando o território da política e olhando apenas o Brasil, soubemos que, em 15 anos, matou-se mais no Brasil do que na Síria em guerra, mais que em toda a América do Sul, mais do que em toda a Europa.
Há dez minutos que escrevo. Alguém deve ter sido assassinado do primeiro parágrafo até aqui. É a média nesse princípio de século. Nesse momento acho que a imagem da morte é uma forte competidora. Vivemos uma guerra visceral, matadores e mortos compartilham o mesmo país, às vezes o mesmo bairro ou a mesma cama.
Mas também deixaria de fora o turbilhão de vida que fervilha no Brasil, gente como a professora de Janaúba, em Minas Gerais, Helley Abreu Batista, que morreu para salvar crianças.
Desisto de achar um ideograma ou mesmo uma palavra para tudo o que se passou. Prefiro dar umas férias à política e escrever essa crônica como antigamente: falando de pessoas e coisas simples. Esta semana, por exemplo, conheci um Papai Noel em Gramado. Tadeu Salvador é o seu nome. Ele é profissional na Aldeia de Papai Noel, um complexo turístico sobre o Natal, aberto durante todo o ano. Salvador vendia automóveis usados e sofreu três AVCs. Mudou de profissão e está muito bem. Naquela atmosfera onde as árvores vieram da Europa e há praças simulando nevadas, Salvador faz uma discreta concessão à sua condição terrena: um ventilador branco, marca Mondial.
Já que cheguei ao ventilador, gostaria de tratar de alguns objetos com que tentei me entender este ano. Chave, óculos e caneta estão perdidos para o diálogo. Formam uma organização criminosa que não só desaparece em conjunto, como usa armadilhas para me confundir. Se procuro os óculos aparece apenas a chave, ou a caneta, embora esta tenda a sumir para sempre.
Em 2018, buscarei diálogo mais próximo com dois recém chegados à minha vida: o crachá no trabalho e o cartão eletrônico que abre a porta do quarto do hotel. O crachá falhou algumas vezes, talvez porque não tenha visto a data da renovação. Sempre me deixava em dúvida: vai ou não vai. Depois que ele caiu no mar, na Ilha de Algodoal, nunca mais falhou. O barqueiro estava com medo de uma tempestade e voltou rápido ao continente. Jogou a mochila na areia, e uma onda a inundou. Pelo menos aprendi que, se o crachá falar, é hora de levá-lo para umas férias na praia.
Os cartões eletrônicos dos hotéis são o desafio. Chego do trabalho tão cansado que nem sei se deixo as bolsas do equipamento ou sento na cama, ou faço os dois ao mesmo tempo. E a porta não abre.
Não sei se em Porto Velho ou Boa Vista, lembro-me do cartão que falhava todo dia, duas vezes em algumas ocasiões.
Em Gramado o cartão falhou. Fui à portaria e disse ao recepcionista: o cartão falhou.
— Qual o número do seu quarto?
— 1478.
— Desculpe, mas não existe esse quarto.
Tentei uma nova combinação:
— 4178.
— Ah, aí sim — disse ele.
Pedi desculpas pelo erro. Estava acostumado com pousadas, onde o quarto tem dois dígitos, ou hotéis de três dígitos, mas quatro dígitos, para mim, são mais que o número de um brevíssimo quarto de hotel: é uma senha.
Por falar em senhas, talvez escreva um dia sobre como invadiram nossas vidas. Suspeito que tenham relações com a Orcrim formada pelos óculos, chave e caneta. Mas não tenho provas.
Espero encontrar alguém como Papai Noel no ano que vem. Preciso, de vez em quando, de uma pausa para as pessoas e as pequenas coisas da vida.
Em 2017, o Brasil conseguiu ser, simultaneamente, tão intenso e tão vazio que chegamos a saudar sua passagem. A esperança é de que o ano que entra seja melhor, ou, pelo menos, ruim de uma forma diferente.
O que esperar da política em 2018? Fui a São Paulo, na segunda, debater esse tema, num encontro de empresários. Naquele contexto, entendi o verbo esperar como o resultado de uma dedução razoável dos dados existentes. O fato mais importante de 2018 parece ser a eleição. E sobre ela sabemos pouco, além das pesquisas. Existem métodos mais poderosos que utilizam toneladas de dados e não uma simples pergunta de rua. Mas mesmo esses métodos seriam eficazes mais tarde, quando o quadro estiver completo.
Na verdade, usamos cenários: PT e PSDB reproduzem o clássico confronto? Um outsider, como Bolsonaro, pode quebrar essa escrita? Nesse caso, quem sobrará no segundo turno? Trabalhar com cenários é alinhar hipóteses, perseguir uma realidade que nos desafia. Assim como o poeta luta com as palavras, lutamos com fatos ainda embrionários para prever sua evolução.
Na saída do encontro, nas ruas ensolaradas da Chácara Santo Antônio, o motorista, de repente, disse:
– Lá se foi o ano. Passou rápido.
Senti, pela primeira vez em 2017, aquela sensação que em, certo momento, aparece em todo final de ano, quando me dou conta de que estamos próximos do réveillon. Uma sensação esquisita que combina a beleza e o mistério da vida com a certeza de sua finitude. A partir daquele momento, resolvi encarar o verbo esperar no seu outro sentido, o de desejar. O que, afinal, gostaria de ver acontecendo em 2018? E até que ponto estou disposto a contribuir para que isso aconteça?
Nesse sentido, o ano de 2018 já começou para mim. Tenho planejado com amigos um novo site para acompanhar os acontecimentos do ano, com o objetivo de contribuir com informações e análises para que as pessoas façam boas escolhas nas eleições.
Um leitor me disse outro dia que há uma certa desolação nos meus artigos. No entanto, acho que refletem a realidade. Nem sempre é possível fazer boas escolhas com as alternativas disponíveis. Esse é um ponto mais ou menos comum em nossas conversas. Em qualquer hipótese, entretanto, não basta contribuir para que haja boas escolhas. É preciso desenvolver uma segunda tarefa: a de fortalecer os mecanismos de controle da sociedade.
Já há um esforço de controle do mundo político por grupos independentes. Pesquisam gastos partidários, parlamentares, execução de orçamento. Na semana passada, em Teresópolis, cidade em que o prefeito e toda a Câmara estão envolvidos em corrupção, encontrei um exemplo disso. É o Observatório Social, que acompanha todas as despesas da prefeitura e já conseguiu evitar que cerca de R$10 milhões fossem jogados no lixo com gastos inúteis.
A articulação de todos os grupos voltados para a transparência é uma forma de controle. Vai ser difícil esconder da garotada tudo o que se passa com o dinheiro dos contribuintes. Outro dia, um caso de corrupção em São Bernardo foi descoberto através do WhatsApp. Num grupo, uma jovem contou que pagou para ganhar um cargo público. “Como assim?”, uma das participantes perguntou. Conversa vai, conversa vem, o caso acabou caindo nas mãos do Ministério Público, e descobriu-se que o secretário de Gestão Ambiental estava vendendo cargos.
Reconheço que a fiscalização das contas é algo limitado. É preciso fiscalizar também as políticas, a coerência entre promessas e prática. Tudo isso virá com o tempo, se reconhecermos o valor dos grupos que trabalham com a transparência. Sempre é possível argumentar que, no Brasil, mesmo quando conhecidos, os crimes políticos não são punidos adequadamente.
De fato, esta é uma outra batalha. Governo e parlamento ainda resistem aos novos tempos, mesmo quando todos os seus erros são demonstrados de forma inequívoca. O Supremo Tribunal Federal é um espaço de insegurança jurídica, onde alguns ministros jogam abertamente o jogo dos políticos com os quais estão comprometidos. Se a sociedade se prepara para denunciar esses crimes, e eles não são punidos, muito possivelmente para chegar a essa situação anômala, os juízes terão de contrariar a Constituição.
Nesse momento é razoável contar com as Forças Armadas, não para uma intervenção militar, mas para que declarem, com nitidez, que a Constituição deva ser respeitada. Diante do panorama, a grande tarefa em 2018 não é só votar bem, nas circunstâncias. É também a de preparar a sociedade para que se defenda melhor do banditismo político.
Apesar da aspereza de um confronto que ainda não acabou, nem acabará tão cedo, minha intuição, percorrendo o Brasil a trabalho, é a de que vamos sair desse buraco. É difícil traduzir essa esperança em palavras num seminário ou mesmo numa crônica de jornal. Por enquanto, considerem que é apenas uma licença poética supor que a sociedade possa derrotar o crime político organizado e seus cúmplices nos altos tribunais.
Mas quando alguém descobrir, em dezembro, que 2018 passou rápido e voltar aquela sensação mista de beleza e nostalgia pela vida, pelo menos poderemos dizer que a realidade não foi algo assim totalmente incontrolável e aleatória. Teríamos conseguido influenciar, pelo menos, o que estava ao nosso alcance.
Parei algum tempo para pensar na história do deputado que levava queijo provolone e biscoitos na cueca. Ele foi condenado a sete dias no isolamento. O queijo provolone custa R$ 35, o quilo. Na cela de Cabral foram encontrados queijos tipo Saint Paulin e Chavroux, ambos rondando os R$ 300, o quilo. Nada aconteceu, exceto a retirada dos alimentos importados.
Na verdade, acho que ambos os casos são simples infrações das regras do presídio. O do deputado Celso Jacob acabou resultando numa pena quase que perpétua. Durante muitos anos, ele será conhecido como o deputado do queijo na cueca. De um ponto vista social, é um ato inofensivo. Descoberto, revela um ser humano numa situação patética, dessas que podem acontecer com muitas pessoas ao longo da vida. São, ao mesmo tempo inofensivas mas destruidoras, se divulgadas.
Minha conclusão sobre esse caso não é nada popular, a julgar pelas reações das pessoas com quem comentei meu desconforto. Sinceramente, acho que ele deveria sofrer algum tipo de punição por infringir a regra e que não deveria exercer o mandato desde quando foi condenado. No entanto, o sistema penitenciário poderia tratar o caso como a centenas de outros no presídio, sem exposição pública.
Sei que a luta contra a corrupção é uma grande causa. Exatamente por abraçar algumas grandes causas, tenho também um pouco de medo delas. Às vezes, fazem com que gente ignore o outro e sua precária condição humana, no embalo da defesa de nossas ideias.
A revolução cultural chinesa foi um impacto para mim. Estava em Lisboa, rumo ao País de Gales, onde faria um curso de jornalismo. Aquelas imagens de homens seminus com cartazes pendurados no peito me traziam desconforto. Com o tempo, conheci melhor o que se passou na China, e cada vez mais a ação daqueles jovens com o livro vermelho de Mao Tsé-Tung na mão, prendendo e humilhando, pareceu-me uma maneira doentia de como uma sociedade autoritária pune as pessoas.
Até num filme sobre julgamento de líderes nazistas, lembro-me de uma cena, de um dos acusados mais velhos segurando a calça porque estava sem cintos, em que senti também um desconforto.
Os tempos passam, e a sociedade renova sua maneira de punir. Além da luta contra a corrupção, grandes temas como racismo, machismo, homofobia são causas que mobilizam. Nos Estados Unidos, há um grande movimento de denúncia de assédio sexual, derrubando um a um os acusados. No Brasil, o eixo do confronto esquerda-direita acabou se deslocando para essa área de costumes.
Sei que não posso evitar que toda essa energia emotiva se extravase. Mas sei também que os tribunais se deslocaram para as redes e que aí são feitos grandes julgamentos, de um modo geral aceitos de imediato pelas empresas. As opiniões individuais ganham peso, no entanto trazem também a responsabilidade de se informar melhor. O que nem sempre acontece.
Na rede, não existe um código pré-estabelecido, como na lei, ponderando crime e castigo. Ela não sentencia ninguém à perda da liberdade, ou qualquer tipo de multa. Ela trata da imagem e, às vezes, decreta o fim de uma carreira pública.
E, nesses casos, a distinção entre esquerda e direita é inócua. Recentemente, surgiu uma campanha afirmando que Caetano Veloso era pedófilo, porque fez amor com uma garota de 14 anos que se tornou sua mulher e mãe dos seus filhos.
O caso mais doloroso foi a saída de William Waack de seu posto de trabalho. Ele disse uma frase condenável. Mas existe ponderação entre a pena e a frase? Eu o conheci na Alemanha, éramos correspondentes, ele para o “Estadão”, eu para a “Folha”. Convivemos na época, estivemos juntos quando os sérvios invadiam a Croácia, no início dos grandes conflitos na região. Sempre o achei um excepcional jornalista. E nós precisamos dele no Brasil, com sua experiência e conhecimento do mundo.
Sou um dos responsáveis pela valorização desses temas no Brasil. Influência dos anos de Europa. Também de lá, creio, muitas ideias se transportaram para as universidades americanas. Respeitadas as diferenças nacionais, é um mesmo movimento por direitos civis aqui e nos Estados Unidos. A experiência americana é um dos temas que me preocupam. Trump ganhou as eleições. É um equívoco pensar que não existem retrocessos. Como evitá-los nesse contexto tão apaixonado?
Nesse domingo de manhã, a única pista que me ocorre é esta: o conhecimento do outro, do que não concorda com suas ideias liberais. Entender o apelo nostálgico a um passado mais ordeiro, a ansiedade com as transformações muita rápidas, o medo de aniquilamento de seu universo cultural, da dissolução da família.
Nada evitará que o debate seja intenso. Mas talvez possa ter um nível de respeito e senso de justiça que permitam em certos momentos, a todos, ultrapassarem sua luta identitária para a condição de brasileiro num país arruinado.
Há coisas na democracia brasileiro que não entendo bem. Uma delas é essa possibilidade que o Supremo dá ao ministro com voto vencido de pedir vista e adiar a decisão da maioria. Talvez essa dificuldade se explique pelo fato de ter uma experiência parlamentar, na qual defendi causas minoritárias.
No Parlamento, depois que a maioria se manifesta, o resultado é proclamado e só resta ao perdedor fazer uma declaração de votos, o direito de espernear, como dizíamos no plenário. Daí não entendo por que o ministro Dias Toffoli pode adiar a proclamação de um resultado indiscutível numericamente. Tenho a impressão de que, se me fosse dada a chance de bloquear uma decisão majoritária, hesitaria.
De certa forma, eu me sentiria numa brincadeira que perdeu a graça. Se a maioria não consegue impor uma decisão majoritária, acaba despertando certa compaixão pela sua fragilidade.
Os defensores do foro privilegiado já perderam a batalha. Deveriam contentar-se com o choro e abrir mão de manobras protelatórias. Adiar a decisão apenas atrasa uma experiência que já foi decidida, no debate pela imprensa, nas redes sociais, nos movimentos cívicos e nas pesquisas de opinião.
Um grupo minoritário de ministros do Supremo não pode decidir o que é melhor para nossa experiência democrática. No Brasil, o atraso é tão entranhado nos costumes que se consagra até o direito de atrasar, que agora está sendo exercido pelo ministro Toffoli.
Mas não é só desejo de voto mais pensado. Ele tem algo articulado com os políticos, os principais interessados em manter o foro privilegiado.
Enquanto o STF pisa no freio, a Câmara se apressa a votar um projeto no mesmo sentido, restringindo o foro privilegiado.
Aí pode entrar um gato: a extensão do foro privilegiado aos ex-presidentes, algo que favorece Temer, Lula e Dilma, até Collor, quando deixar o mandato de senador. É realmente algo inédito no mundo: o País que derrubou dois presidentes no período de democratização conclui que devem ser protegidos também depois do mandato.
Durante o mandato presidencial, já são de certa forma blindados. Só podem ser processados por crimes posteriores à sua posse. Assim mesmo, quando são acusados por crimes cometidos durante o mandato, a investigação é submetida à Câmara, onde a maioria é hostil à Lava Jato.
Estamos todos atentos, embora a atenção nem sempre baste para inibir os políticos desesperados. Eles nem se importam mais com as consequências para a democracia.
As coisas podem não ser tão simples como se pensa. Num programa de televisão, Gustavo Franco, ao lançar seu livro sobre a história monetária no Brasil, afirmou que o mercado acha que qualquer dos candidatos favoritos no momento continuará a reconstruir o País.
No caso do PT, o mercado tem esperanças de que, vitoriosa, a esquerda volte a se encontrar com a classe média e abrande sua linha. Não tem sido esse o discurso do PT. Lula afirmou várias vezes que vai estabelecer o controle social da imprensa. Em quase todas as análises, a esquerda conclui que foi derrubada porque não soube radicalizar.
Pelo menos no discurso, o caminho aponta para a Venezuela. Além do mais, tenho minhas dúvidas quanto à reconciliação com a classe média. Acho, sinceramente, muito improvável, mesmo com a ampla admissão dos erros e das trapaças.
No caso de Bolsonaro, tudo indica que caminha para uma visão liberal na economia, dura na repressão ao crime e conservadora nos costumes. É formula que tenta conciliar o avanço do capitalismo com as tradições que ele, naturalmente, dissolve na sua expansão global.
Tanto para os eleitores de Trump como para os de Bolsonaro, há uma força nostálgica em movimento. Voltar atrás, no caso americano, explorando carvão, tentando ressuscitar áreas industriais arruinadas. No caso brasileiro, voltar aos tempos do regime militar, durante o qual não houve escândalos de corrupção nem a violência urbana.
O Brasil de hoje é muito diferente do País dos anos 1960. E também não é o mesmo dos anos 1990, quando o PT chegou ao poder.
O economista Paulo Guedes, que deverá ser o homem da economia na campanha Bolsonaro, afirmou que, ao se encontrarem os dois, uniram-se ordem e progresso. Se entendemos por ordem o combate à corrupção e uma política de segurança eficaz, tudo bem. Mas a eficácia não se mede pelo número de mortos, e sim pelas mortes evitadas. E o progresso? Assim como está no lema da Bandeira, é bastante vago. Muitos o associam ao crescimento econômico.
Mas tanto os marxistas como os liberais tendem a uma visão religiosa do mundo, abstraem a limitação dos recursos naturais, algo que envolve todas as espécies. Num contexto de campanha radicalizada, qualquer das hipóteses terá muita dificuldade em governar um País dividido. E no processo de reconstrução será preciso encontrar alguns pontos que unam a Nação para além de sua clivagem ideológica.
Na sua entrevista ao Roda Viva, Gustavo Franco deu uma pista que me pareceu interessante: ao invés de falarmos tanto em reformas, sempre empurradas com a barriga, por que não buscar uma sociedade de inovação?Essa história de deixar as coisas apodrecendo, mas só mexer nelas em reformas, tem de ser substituída por uma ideia de inovação permanente.
É esse o mundo em que vivemos. Se não nos adaptamos a ele, seremos, de certa forma, engolidos.
A campanha eleitoral ainda nem começou. Fala-se num candidato de centro. De fato, suas chances serão boas. No entanto, na política não se trabalha apenas com chances, mas também com a encarnação da proposta, o candidato.
O PSDB, com Alckmin, fala em choque de capitalismo, algo que vi e ouvi em 98. De choque em choque, vai acabar a energia. Um mesmo empresário alemão levou 56 dias para abrir uma empresa em São Paulo e apenas 24 horas para abrir outra nos EUA. Que tal segurar os fios e experimentar o choque antes de aplicá-lo no País?
Saí do Rio arrasado com a história de Picciani e dos outros deputados soltos pela Assembleia. Amigos tristes, desolação com o Brasil, enfim, a história de sempre. Sabia que a estrada e o trabalho atenuariam a dor. Em poucas horas, já estava em Brasília, tentando achar um veículo 4 por 4 para chegar até aqui e visitar o Refúgio da Vida Silvestre das Veredas do Oeste Baiano.
Minha pousada nesta pequena cidade de Goiás não tem TV. Na primeira noite, vi rapidamente, no bar, uma declaração do novo chefe da PF que pareceu estranha. Ele acha que apenas a mala cheia de dinheiro ainda é pouco como prova. Mas na terça à noite, ao chegar moído pelos buracos, lamas e poças da estrada, soube que Picciani e os dois outros estavam presos de novo. E que Raquel Dodge questionaria o STF sobre a a autonomia da Alerj para libertar os seus.
Sempre imaginei que a Constituição, ao dizer que o Congresso pode soltar um parlamentar, em certas condições, refletia um momento: o país acabava de sair de um longo período autoritário. Era uma pequena salvaguarda política. Da mesma forma, o foro privilegiado surgiu da necessidade de se poder votar e falar com liberdade. Seu sentido foi desvirtuado, assim como o poder de libertar um congressista.
Eles começaram a roubar descaradamente e a usar os instrumentos que, teoricamente, protegiam ideias para proteger assaltos e outros crimes. A Constituição acabou se voltando contra nós, sobretudo porque os políticos corruptos souberam encontrar apoio entre ministros do STF.
No passado, o Congresso decidia sobre prisão. O STF resolveu ampliar esse poder, estendendo-o, no caso Aécio Neves, também para medidas cautelares, como, por exemplo, não sair de casa à noite. Os ministros podem até alegar ingenuidade. Mas era evidente para os que conhecem a vida política no Brasil que a sua decisão iria se espalhar como um rastilho de pólvora. Nas assembleias estaduais, a disposição é a de libertar os deputados sempre, independentemente do que fizeram de errado.
Não tenho condições de prever em detalhes a saída para esse impasse. Vendo as coisas de forma realística, o STF é o lugar onde é possível corrigir algo. O movimento dos ministros foi o de agravar o problema, pois estavam em vias de reduzir o foro privilegiado e acabaram dando uma ajuda à impunidade no caso Aécio Neves. Eles precisariam voltar atrás e concluir a votação da reforma do foro privilegiado. Ela foi suspensa porque o ministro Alexandre de Moraes pediu vista, possivelmente para agradar aos políticos que o colocaram lá. Seria a boa notícia da semana.
O movimento, na verdade, é apenas uma etapa na luta contra a corrupção no Brasil. Algumas pessoas pensavam que a batalha seria simples: bastava denunciar, comprovar e prender. Isso só seria pensável num outro sistema mais avançado. Os políticos que desviam dinheiro público no Brasil o fazem há muitos anos. São eles que escolhem cargos de confiança, indicam e aprovam ministros para o STF.
Seria fácil expulsá-los se fossem estranhos no ninho. Mas foram eles que construíram o ninho, ajuntaram cada pedaço de palha: um ministro aqui, um chefe de polícia ali, o controle dos meios de comunicação em seus remotos estados. A arquitetura é sólida e complexa.
Para derrubar isso tudo, será preciso tempo e muita luta. Se as pessoas acham que a trama será desfeita por si própria, apenas com a descoberta dos escândalos, estarão enganadas. O Brasil é dominado por esquemas criminosos. Essa dominação foi fortemente atingida pela Lava-Jato e outras operações. Mas os próprios juízes, procuradores e delegados sempre advertiram que seu trabalho não basta para resolver o problema.
A situação é tão desanimadora que, às vezes, há gente defendendo uma quadrilha no governo com o argumento de que a quadrilha afastada pode voltar. Nisto há uma certa resignação. No entanto, nos países que, de certa forma, superaram a fase aguda do problema, é impensável escolher quadrilhas mais ou menos devastadoras.
A esta altura da vida, com a precária conexão, não sei se Picciani e os outros seguirão presos. No meio da semana, foi a vez de Garotinho e Rosinha. Detrás das grades, 20 anos de poder no Rio nos contemplam. Assim como acontece aqui, é possível desmontar progressivamente o gigantesco esquema de corrupção montado no Brasil.
Isso passa por melhores escolhas eleitorais, mas também por uma nova atitude no cotidiano. Muitos grupos dedicados à transparência já existem. Se cada pequena unidade de trabalho conseguir romper seu isolamento, se houver um permanente intercâmbio sobre o tema, é possível encontrar uma estratégia que transcenda as eleições, pois todos sabemos que santos não se candidatam a cargos públicos.
O movimento caiu na armadilha da aceitação da imprensa. Os comentaristas pensam claramente como um engenheiro: se houver muita gente, sucesso, menos gente, fracasso. Não é assim que se escreve a história dos protestos. Se dependesse de multidões, por exemplo, o Greenpeace já tinha morrido.
Quando menino, vi as luzes do Rio e me apaixonei. A escola nos trouxe para uma excursão a Petrópolis. A professora, generosamente, permitiu que o ônibus avançasse um pouco para nos maravilhar com a visão. Mais tarde, li no romance “Judas, o obscuro”, de Thomas Hardy, uma experiência semelhante: o personagem também admirava a cidade grande longe, fixado em suas luzes.
Assim que minha segurança profissional permitiu, ainda quase adolescente, mudei-me para o Rio, apenas com a mala de roupas, decidido a nunca mais sair. Ao voltar do exílio, apesar do avanço cultural em São Paulo, decidi, ou algo decidiu dentro de mim, ficar. Sei apenas que moro aqui, tive filhas e neto no Rio e não pretendo sair.
Mas a crise que o Rio vive é a mais grave que presenciei. Às vezes, repito aqui a pergunta de Vargas Llosa sobre o Peru, nas primeiras linhas de seu romance “A cidade e os cachorros”: quando é que o Rio se estrepou? É um reflexão que pode começar com a mudança da capital, passar pelas várias experiências de populismo de esquerda para acabar se fixando no encontro do PT com Cabral e toda a sua quadrilha. Entre eles, um coadjuvante de peso: o petróleo.
Às vezes, pergunto se fiz tudo o que poderia para evitar esse desastre. Confesso que, apesar de denunciá-los em várias campanhas, não tinha a verdadeira dimensão da rapina que iriam promover no Rio. Lembro-me que, em 2010, a “Folha de S.Paulo” publicou uma fala em que eu tentava descrever o projeto de Cabral. Comparava-o à tática das milícias que dão segurança a uma determinada área e são livres para cometer crimes. Disse que o instrumento dessa barganha eram as UPPs. A opinião pública ficaria satisfeita e Cabral teria as mãos livres para a pilhagem.
Questionei Cabral em vários debates de TV, sobre corrupção na saúde, politicas sociais etc. Não poderia imaginar que o arrogante adversário gastava R$ 4 milhões mensais com suas despesas particulares. O esquema monstruoso que contou com generosas verbas federais, royalties do petróleo e uma desvairada política de isenção de impostos corrompeu todas as dimensões do governo e talvez mesmo da vida cultural do Rio, entendida num sentido mais amplo.
Cabral caiu com seus asseclas. Em seguida, tombaram os conselheiros do Tribunal de Contas. Começa a cair agora a base de sustentação parlamentar de Cabral, Picciani à frente. O círculo da corrupção estava fechado. Não havia brechas. Era uma trama criminosa perfeita, com todos os seus anéis de legitimação. Nada ficou de pé, exceto sombras do passado, como Pezão e uma Assembleia, com raras exceções, totalmente desmoralizados.
A performance de Pezão como morto-vivo é patética. Ele indicou um deputado para o TCE. O procurador recusou-se a defender essa escolha: era inconstitucional. O procurador foi demitido por defender a Constituição. Felizmente, o deputado indicado por Pezão está para ser preso. Foi indicado ao TCE porque é cúmplice do assalto. A lógica da quadrilha ainda domina o estado. Em outras palavras, o Rio foi arruinado pela maior quadrilha da História, e coube aos remanescentes do grupo reconstruí-lo. Eles não sabem nem querem fazer isto. Seu único objetivo é escapar da Justiça.
No livro “Sobre a tirania”, de Timothy Snyder, o autor mostra 20 lições do século XX. Uma delas pode ser adaptada para o Rio: mantenha a calma quando o impensável chegar. Snyder fala do terrorismo nessa lição. O impensável chegou ao Rio não na forma do terrorismo, mas na ruína profunda de suas instituições. Ele explode na violência cotidiana, crise econômica, desemprego e miséria.
Em outras circunstâncias, a única saída seria uma intervenção federal. Mas o governo de Brasília é também um remanescente do esquema gigantesco que arruinou o país. Não tem força nem legitimidade. A última esperança está na própria sociedade. Uma ilusão a enfraquece: esperar 2018 para realizar a mudança.
Em outros estados, isso pode fazer sentido. Não consigo imaginar como o Rio resistirá a mais um ano de bandidos no poder e a todas as consequências da presença da quadrilha no governo. De que adianta prender deputados como Picciani se a Assembleia está pronta para soltá-los?
No espírito de manter a calma quando o impensável chegar, a sociedade precisa discutir logo não apenas as grandes saídas, mas também a solução emergencial. O problema central é este: o que fazer com as grandes quadrilhas que dominam o estado? Como tomar iniciativas imediatas, para não ter de mudar daqui no futuro próximo? Não tenho resposta pronta. Sei apenas que é preciso enfrentá-los, derrubá-los e substituí-los. Isso precisa ser feito agora.
Já disse no alto de um caminhão de som, em debates e palestras: é insuportável viver num país onde os bandidos fazem a lei. O Rio é o núcleo dramático dessa desgraça nacional
De passagem pelo Brasil, um dirigente espanhol do Podemos, Rafael Mayoral, afirmou que a esquerda não vai salvar as pessoas e o essencial é fortalecer a sociedade para que ela possa controlar qualquer governo no poder. Não vi o restante do seu discurso. Mas até onde li, concordo. De certa forma, tenho usado esse argumento com novos grupos que querem a mudança no Brasil.
Muitos deles estão legitimamente preocupados com a falta de alternativas na eleição presidencial. Mas, ainda assim, afirmo que a descoberta de um nome não é tão importante quanto fortalecer a sociedade para que possa monitorar ativamente o governo.
No fundo, o objetivo maior deve ser a construção de um controle social tão preciso, diria até tão virtuoso que possa tornar mais amena a constatação de que não elegemos anjos, mas pessoas de carne e osso. Isso é válido para qualquer sociedade, mas no Brasil parece que somos mais intensamente de carne e osso.
De certo modo, já exercemos algum controle sobre o governo Temer. Duas medidas foram revertidas por pressão social: a abertura de uma área de mineração na Amazônia e o abrandamento da lei que pune o trabalho em condições análogas ao de escravo. Mas esse esforço de controle só tem surgido em grandes temas. Estamos tratando como normais e cotidianas várias aberrações que nos transformam num país virado de cabeça para baixo.
Um exemplo que me espantou foi o pedido oficial de Geddel Vieira Lima para saber o nome e o telefone de quem o denunciou. No apartamento ligado a Geddel foram encontradas as malas com R$ 51 milhões. Até agora não sabemos, e creio que a polícia também não, de onde veio o dinheiro atribuído a Geddel. Mas ele quer saber quem o denunciou. Se a polícia desse o nome e o telefone de quem denunciou, Geddel iniciaria uma prática internacionalmente nova: quebrar o anonimato dos informantes, para serem devidamente assassinados.
Raquel Dodge negou o pedido de Geddel. Mas o fato de ter existido e circulado como uma notícia normal revela como o País, no cotidiano, foi posto de cabeça pra baixo.
No caótico Estado do Rio de Janeiro, outra dessas barbaridades que quase passam em branco: o governador Pezão indicou um deputado para o Tribunal de Contas do Estado (TCE), o mesmo cujos membros foram presos. Questionado na Justiça, Pezão chamou o procurador Leonardo Espíndola para defendê-lo. Impossível, disse o procurador, sua decisão é inconstitucional. Ato contínuo, Pezão demitiu Espíndola. Felizmente, o indicado por Pezão caiu nas garras da Polícia Federal antes de tomar posse no TCE. É acusado de corrupção, ao lado do presidente da Assembleia Legislativa, deputado Jorge Picciani.
São só dois fatos cotidianos. Há algo comum em sua origem. Nascem de políticos do PMDB envolvidos em corrupção. Um quer o nome de quem o denunciou, o outro considera defender a Constituição algo incompatível com o serviço público.
E a vida continua. Engolindo alguns sapinhos no cotidiano, nosso estômago é preparado para os grandes sapos de fim de mandato.
Um deles, que está sendo preparado nos bastidores, é a derrubada da prisão em segunda instância. As articulações correm no Congresso e no próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Tanto ministros do Supremo como parlamentares veem nisso uma saída para neutralizar não só a Lava Jato, como todas as operações que envolvam políticos corruptos.
Enunciado apenas como uma tese jurídica, o fim da prisão em segunda instância é palatável. Todos são inocentes até que a sentença seja confirmada pelo STF. Na prática, resultará em impunidade geral. Todos terão direito a uma trajetória semelhante à de Paulo Maluf, que de recurso em recurso vai tocando sua vida, exercendo seus mandatos e até defendendo outros acusados de corrupção, como Michel Temer.
No momento em que as aberrações se acumulam, a tendência é criar um País monstruoso. Algo que já tentei definir num discurso, no alto de um caminhão, em protesto de rua: um País onde os bandidos fazem a lei.
Enquanto essas coisas acontecem, o debate entre os que querem a mudança tende a concentrar-se no perfil do líder que nos vai salvar. Em que rua, em que esquina vamos encontrá-lo? No Acre, em Alcácer Quibir?
Enquanto não aparece, creio ser necessário fortalecer as organizações que trabalham com a transparência. Estão surgindo de vários pontos. Hoje se investiga como os partidos gastam seu dinheiro. Há um grupo que cuida exclusivamente de despesas de parlamentares. A intensa busca da transparência fortalece a sociedade. Da mesma maneira, ela ficará mais forte se todos os grupos que buscam a mudança se unirem num esforço comum.
Nem todos pensam da mesma maneira, estamos cansados de saber. Mas é preciso um mínimo de maturidade, na situação dramática do País, para encontrar pontos de convergência.
Não importa tanto se um grande líder vai emergir dos escombros. Mesmo se aparecer, não será um anjo. Não elegeremos anjos em 2018. Nunca o faremos, creio eu.
A fronteira do pessimismo não nos deve desesperar. Há algumas instituições funcionando, há grupos trabalhando na busca da transparência, há a possibilidade real de que todos os que querem mudança encontrem pontos de contato, um denominador comum.
Como o poeta que fabrica um elefante de seus poucos recursos, a sociedade brasileira terá de construir seu sistema de defesa. Alguns móveis velhos, algodão, cola, a busca de amigos num mundo enfastiado que duvida de tudo – o elefante de Drummond é inspirador.
Quem sabe, como em Portugal, conseguiremos construir nossa própria geringonça? Prefiro essa visão modesta e realista a esperar dom Sebastião. Curado de sua megalomania, talvez o Brasil aceite, finalmente, tornar-se um grande Portugal.
No vestiário da piscina, cumprimento um amigo.
– Tudo bem – responde.
– Família?
– Tudo bem conosco, família, amigos. Mas o país…
Mesmo entre as pessoas que passam bem e tocam seu barco cotidiano, as conversas tendem a terminar assim, com um lamento sobre o Brasil. Isso acontece também em diálogos na rede social. Mas é diferente. Com a presença física do outro, sentimos mais fortemente o desencanto com o país.
Não sei se por nostalgia dos tempos de manifestações, passeatas, assembleias, às vezes sinto um vazio que a internet não preenche. Era como se estivesse numa sala e perguntasse: onde estão todos nesse momento? Sei que posso encontrá-los num simples clique. Mas não é a mesma coisa. A respiração ofegante, olhares, o suor escorrendo, gritos – tudo isso faz parte do mundo que convencionamos chamar de presencial.
Creio que 2018 será diferente. Eu mesmo já me desloco para ouvir amigos, conversar com eles sobre o buraco em que nos metemos. Não tenho grandes certezas, nem um discurso acabado. Ambos não ajudam numa boa conversa. De que adianta falar com quem acha que sabe tudo?
Suspeito, no entanto, que um período se fechou com os 13 anos do governo de esquerda. Suas políticas, no campo econômico, mostraram-se insustentáveis no sentido mais elementar do termo: o Brasil praticamente quebrou. Na dimensão ética, a passagem da esquerda pelo governo foi uma catástrofe maior que os desastres do passado. Um período fora do governo fará bem a ela. Os conservadores ingleses tendem a considerar bem-vindos os momentos de oposição. Podem descansar do poder e refletir sobre o período em que estiveram lá. A esquerda continuará lutando para voltar ao governo, como ponto central de sua agenda. Não é dada a longos períodos de reflexão e tem uma dependência física do poder, seus cargos e benesses. No quadro brasileiro, suponho que haverá uma alternância e deve se seguir uma etapa em que forças liberais e conservadoras ocupem o espaço na direção do país. Ignoro ainda como vão combinar essas duas tendências, que tipo de arranjo surgirá daí. Constato apenas que existe uma contradição bastante nítida entre preservar os valores da família e comunitários e apoiar a revolução do mercado global.
Tenho ouvido falar de Margaret Thatcher como um exemplo luminoso. Se analisarmos a experiência da Dama de Ferro, veremos que as profundas mudanças que provocou na Inglaterra enfraqueceu os conservadores. Sua tese de que o importante era impedir que os trabalhistas voltassem um dia ao governo tinha um tom de arrogância que acabou resultando em Tony Blair, com propostas liberais e um rótulo de terceira via, inventado pelo marketing politico. Em ambos os casos, as forças de mercado cresceram e se espraiaram por serviços públicos. As organizações quase governamentais tornaram-se um forte setor da economia.
No Brasil, existe uma simpatia maior pelo papel do Estado. O processo será mais difícil. Thatcher, ao assumir, revelou que gostaria de um retorno aos rígidos valores vitorianos. Mas isso parece ter escapado de suas mãos, pois a Inglaterra tornou-se mais tolerante, inclusive com uma maior aceitação do homossexualismo. O que quero dizer com isso é que assim como a realidade mostra-se um pouco irredutível, sempre colocando armadilhas na trajetória da esquerda, ela o fará também com o sonhos das forças que tendem a substituí-la.
Todas essas interrogações que tenho sobre o futuro, respeitando os que têm certezas acabadas, tornam o quadro mais complexo com a septicemia nos órgãos públicos. Nesta semana ficou mais clara ainda como o processo se espalhou pelas milhares de prefeituras brasileiras. Em Porto Seguro, Cabrália e Eunápolis, os prefeitos foram afastados por corrupção. Circulou um vídeo em que a prefeita de Porto Seguro confessa, alegremente, sua propensão a roubar 50% dos investimentos numa obra pública. Em Teresópolis, o prefeito Mario Tricano, ele mesmo já afastado, denunciou um esquema de corrupção que envolve todos os 12 vereadores.
No Rio, a Polícia Federal revela que Cabral comprou dossiês para atacar o juiz Marcelo Bretas. Até aí nada de surpreendente. O que surpreende é a Justiça, na pessoa de Gilmar Mendes, recusar-se tão ostensivamente a aceitar as evidências das ameaças de Cabral. O que importa mais alguns casos de corrupção e gangsterismo num país que já viveu tantos deles, ao longo dos anos?
A tese central é que o povo espera as eleições para corrigir os erros. Recentemente, surgiu uma notícia de que os militares duvidam desse roteiro. Temem que a crise econômica se aprofunde, o Estado quebre mais completamente e traga com sua ruína grandes inquietações sociais. A reforma da Previdência foi para o espaço, ao que tudo indica. O chamado Centrão vai controlar os ministérios. As hienas prosseguem seu banquete devorando o que resta dos recursos públicos.
É hora de conversar, trocar ideias, criar vínculos. Candidatos fazem caravanas; amigos fazem visitas. Com todo respeito pelo intenso debate na internet, suspeito que é hora de levantar da cadeira.
Uma querida amiga disse que leu um artigo meu três vezes para entender bem. Prometi que na próxima, reescreverei três vezes. Italo Calvino disse que o texto do século XXI teria de ser leve. Mas como são pesados os temas do Brasil de hoje.
O ministro da Justiça, Torquato Jardim, disse que os comandantes da PM estão ligados ao crime e que o governo não controla sua polícia. Não ficou aí, nessa sinistra generalização. Disse que a esperança de mudar só viria mesmo após as eleições de 2018. Estamos em novembro de 2017. Quantos tiroteios, quantas balas perdidas, quantas mortes nos esperam até lá? Se o quadro é esse mesmo que o ministro pintou, o governo federal deveria fazer algo para transformá-lo.
O ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirmou há algum tempo que havia relação entre políticos e o crime organizado. Eles precisam de voto, o crime organizado controla mais de 800 pontos apenas no Rio. Quem vai à Baixada, viaja a cidades como Campos e Macaé ou cruza a Baía de Guanabara, vai até Niterói, constata que o número de territórios ocupados é muito maior.
Jungmann propôs uma força-tarefa para desvendar os vínculos entre crime e política no Rio. Raquel Dodge concordou. Até aí, tudo bem.
Uma revelação bombástica antes mesmo da força-tarefa começar o seu trabalho é inadequada. Acaba complicando a vida das pessoas já amedrontadas no seu cotidiano. O ministro Jardim nem mata a cobra nem mostra o pau. É como se dissesse: “Xi, a segurança está na mão de bandidos mas isso pode mudar depois de 2018.”
Felizmente não é bem assim. Ouvi alguns amigos da PM e eles garantem que há bons e honestos comandantes.
O Rio foi abalado por um governo que era, na verdade, uma organização criminosa. Todas as estruturas do poder foram de alguma forma contaminadas. Certamente será necessário um paciente e árduo trabalho com ajuda federal para desfazer todas as teias, os nichos da corrupção.
Quando o Exército veio pela primeira vez nessa crise, defendi a ideia de que deveria estabelecer um contato maior com a sociedade, oferecer um trabalho comum. Com as formas de comunicação de hoje seria possível criar um sistema de defesa muito mais poderoso. A própria sociedade se mexe. O aplicativo OTT (Onde Tem Tiroteio) é um um dos exemplos disso.
Nas primeiras investidas, a operação fez inúmeros cercos, apreendeu poucas armas. Era uma indicação de que o trabalho de inteligência precisava melhorar. Da soma que o governo federal destinou, foram usados apenas 22% para enfrentar a crise de segurança pública no Rio. E os cercos são a tática mais cara com menores resultados.
No meio do áspero caminho, uma crise no relacionamento entre os governos. Parecia haver algo no ar entre o ministro Jungmann e as autoridades estaduais de segurança. Ao invés da possibilidade de uma cooperação em grande escala, incluindo as pessoas que vivem aqui, o que nos ofereceram foram crises de relação, desconfiança mútua.
É preciso formar um bloco bem intencionado entre as forças de segurança. E pedir a ajuda da sociedade. Não temos armas. Mas o conhecimento coletivo é um instrumento que potencializa o trabalho armado, em certas ocasiões, pode até dispensá-las.
De uma certa forma, a luta contra o terrorismo na Europa e nos Estados Unidos, os esforços emergenciais após uma catástrofe natural – todos esses grandes embates demandam um vínculo através da rede. Nas inundações do Texas foi impressionante acompanhar o mapa das pessoas ilhadas; bastava clicar no ponto que aparecia a mensagem: falta comida, dificuldade de respirar, rompeu a bolsa d’água. Um terrorista procurado na Europa pode ter seu retrato passado para todos os smartphones de uma extensa área onde opera.
O potencial de descobrir os caminhos para programas que reforcem a segurança no Rio não está em governos combalidos, mas na própria sociedade. Como acionar esse poder sem ter o mínimo de credibilidade? O que os que ainda sobrevivem nos governos poderiam pelo menos tentar. E tentar com uma visão clara do que distingue propaganda de resultado real.
O grande problema não é só que os bandidos furam facilmente os cercos. O difícil é furar os cercos mentais que às vezes dominam as cabeças no governo. Quase todas têm medo de falar com pessoas reais. Preferem fazê-lo através das grandes máquinas de propaganda que filtram as críticas ou enfatizam as pequenas vitórias.
Sem que os sobreviventes no governo peçam socorro e a sociedade lhes dê mão, não vai prosperar uma defesa real diante da crise de segurança. De outra forma, voltamos aquela história de esperar 2018. É muito tempo, sobretudo para os que perdem a vida em segundos nas ruas do Rio.
É tudo tão grave, certamente não é uma dessas dores estranhas que simplesmente passam se ficamos em repouso. Nossas chances dependem também da percepção do abismo: quanto mais rápida, melhor.
Nos últimos anos de vida política em Brasília, disse a amigos que queria incluir uma nova bandeira entre as lutas cotidianas: o direito ao delírio. Sabiam que a palavra delírio não designava alteração da consciência, produzida por drogas. Ainda assim, não entendiam bem. Minha referência eram as alucinações que épocas, partidos, grupos e indivíduos cultivam sobre si próprios e, na maioria dos casos, são dissipadas pelo curso dos fatos.
Agora, posso voltar ao tema e avançar um pouco na explicação sucinta daquele momento. Pressinto que o próprio país caminha, depois de tantos embates, para uma fase que chamo de pós ideológica, consciente da precariedade do termo.
As duas correntes que as pesquisas indicam como as preferidas, no momento, são as que travam um debate ideológico. Minha própria ideia de que se caminha para uma fase pós ideológica também é uma dessas ilusões que precisam ser testadas na prática. O problema não é ter ilusões, mas sim buscar a maior proximidade com os fatos. Tanto o marxismo, de certa forma herdeiro do iluminismo, como os liberais conservadores partem do que pode ser um erro fundamental.
Não me interessam aqui as explosões radicais, as brigas cotidianas em si próprias. Mas sim o nobre fundamento sobre a qual estão apoiados os contendores. Ambos os lados procuram, através do diálogo e dos confrontos, um consenso sobre a melhor maneira de viver bem. Nesse sentido, perseguem uma ilusão inalcançável. Nas sociedades complexas e diversificadas, o consenso não existe, nem está no horizonte. No seu lugar, é preciso introduzir a ideia de convivência pacífica, o que alguns autores chamam também de modus vivendi.
Encontrar o modus vivendi entre tantas concepções antagônicas é muito difícil porque os conflitos prosseguem, envolvem as instituições, explodem desejos contraditórias por liberdade.
Tanto os herdeiros do iluminismo que trabalham com a hipótese de um consenso racional sobre a melhor vida, como os liberais que acreditam em preservar os valores tradicionais, tendem ao fundamentalismo, sobretudo quando entram em choque.
Assim como a existência das ilusões não quer dizer que a realidade inexista, a busca do modus vivendi não significa um relativismo amoral. É apenas uma constatação que, se aceita, pode reorientar a energia não apenas para o confronto, mas para hipóteses de acordo em temas de interesse mútuo, sobretudo os de reconstrução nacional.
Para o marxismo, talvez isso não seja um problema pois parte do princípio de ter uma saída para os problemas sociais, uma forma única de ver o mundo, uma vontade de convencer que o leva a uma ação missionária.
Para o liberalismo, tornar-se fundamentalista, no entanto, é contradizer algumas de suas principais correntes teóricas. Isso aparece, claramente, nos debates que antecedem as guerras dedicadas a implantar a democracia em países distantes, com história e costumes diferentes. Será que funcionam?
Ao longo desses anos, hesitei um pouco em lançar mão da ideia da liberdade de delirar. Não pelo fato de levar pancadas dos dois lados, pois considero isso parte do jogo. A ideia de que é possível estabelecer uma hegemonia no campo cultural foi, na verdade um dos estopins do debate. Ela é ingênua e inadequada às instituições flexíveis, baseadas na pluralidade.
Mesmo os que não conhecem Antonio Gramsci ou se importam com suas teorias percebem que a ideia de hegemonia significa a neutralização de outras correntes, um domínio amplo e detalhado do espaço cultural, uma negação do próprio conceito de cultura.
Não é possível clamar por tolerância e sonhar com a hegemonia. A tolerância é moldada precisamente na aceitação da pluralidade. Afirmar isto, vale também acusações de proteger o status quo, eternizar o capitalismo, bloquear mudanças.
Isso revela também uma outra divergência sobre a ação política. Não há na realidade salvação nem salvadores. Há apenas soluções provisórias para alguns problemas recorrentes, até mesmo a admissão de que alguns não serão resolvidos a curto prazo.
Na casa de Câmara Cascudo, li uma frase interessante na parede: o Brasil não tem problemas, mas sim soluções adiadas. Uma coisa é tentar viabilizar algumas dessas soluções adiadas. Não é isso que costuma aparecer nas eleições.
Muitos candidatos dizem que trarão consigo um projeto nacional. Isto dá a impressão de que o país é uma folha em branco e será esculpido para as próximas gerações. Não é bem assim, embora seja legítimo o delírio de moldar um país por muitas décadas. Ainda não descobri se os principais partidos que passaram pelo poder usaram a expressão com o objetivo de plasmar um novo país ou apenas para racionalizar seu desejo de ficar muitos anos no governo. Os fatos apontam para esta última hipótese.
Quanto mais se acredita no sonho de um consenso racional, mais escasseia a tolerância. O delírio de um, modus vivendi, acho eu, é mais próximo de nossa realidade diversa.
Questão colocada para mim no Twitter: o que responderia sobre o Brasil de hoje, se alguém me perguntasse: “O que é isso, companheiro?” Responderia que isso que estamos vendo é o fim de um sistema político partidário. A própria palavra companheiro, diante da derrocada moral da esquerda, já não tem mais da conotação de afeto recíproco, mas de cumplicidade com um projeto desastroso.
Com a decisão do Supremo de entregar para o Congresso a decisão final sobre medidas cautelares, que favorecem as investigações, criou-se, para o sistema agonizante, uma blindagem dentro da blindagem, um upgrade do foro privilegiado. Nada mais distante de que as esperanças despertadas nos últimos anos de que a lei vale para todos. O STF favoreceu a indiferença, de um lado, de outro, a crescente aspiração por um regime autoritário.
Não só diante do fracasso da esquerda, como do próprio curso da do mundo, pressinto que uma perspectiva liberal em economia deve prevalecer nos próximos anos. No caso brasileiro, ela aparece junto com uma visão conservadora, numa combinação talvez parecida com as ideias do Partido Republicano nos EUA.
Não há dúvida de que o embate nos últimos anos não se travaram apenas em torno das questões econômicas mas também no plano cultural. Exposições, performances, versões de Machado de Assis para os mais pobres, ocupação ideológica de universidades – tudo isso fermentou também um sentimento defensivo, aspectos defensivos, como os de 64, quando se marchava por Deus, Família e Propriedade.
Mas é uma ilusão supor que o avanço do liberalismo venha precisamente fortalecer o credo religioso e os laços de família, apesar de garantir o direito de propriedade. Digo isso porque, ao contrário do que se pode pensar, a batalha cultural não se dá apenas no contexto da polarização esquerda e direita. Muitos dos temas que inquietam as famílias decorrem precisamente do avanço do capitalismo.
O escritor inglês John Gray fez uma avaliação interessante sobre essa hipótese. Segundo ele, na medida em que a economia cresce, os desejos são satisfeitos; a economia não se move apenas para produzir coisas mas também para combater o tédio. É um tipo de economia que não depende apenas da demanda dos consumidores mas cria necessidades. Ela não teme apenas a saturação do mercado de objetos mas também a saturação das experiências.
Como nas sociedades tradicionais, afirma Gray, a virtude não pode passar sem o consolo do vício. No século XXI, sexo e drogas são produzidos por designers. Um gigantesco setor produtivo se volta para aliviar o peso de uma vida de lazer, diz Gray, e cita J. Ballard:
“Restou apenas uma coisa que pode excitar as pessoas. Crime e comportamento transgressor – e com isso quero dizer todas as atividades que não são necessariamente ilegais mas que nos provocam e satisfazem a necessidade de emoções fortes, estimulam e fazem saltar as sinapses amortecidas pelo lazer e a inação.”
Esse papo meu parece estar pra lá de Marrakesh. O que isso tem a ver com o Brasil de hoje, com mais de 13 milhões de desempregados? Considero esse nível de desemprego um dado provisório, assim como é provisório esse sistema político partidário agonizante. Logo logo, estaremos discutindo os caminhos do futuro. E, no momento, vejo no horizonte apenas alternativas que não respondem à complexidade dos novos tempos. Sou uma espécie de observador nem nem. Só que, diferente dos jovens que nem trabalham nem estudam, não consigo ver saída numa esquerda sepultada no século passado nem na visão liberal que, ao mesmo tempo, queira impor valores abalados com um mundo em transformação.
Não sei se posso responder completamente à pergunta, quando falamos de Brasil de hoje. Creio que é um país em movimento, apenas não posso precisar ainda sua trajetória. Sei apenas que os acontecimentos desta semana, a blindagem de Aécio e nova blindagem de Temer, são muito perigosas. Elas nos remetem a uma tarefa preliminar. Convencer os indiferentes a não abandonarem o barco e, aos adeptos de uma intervenção militar, de que as eleições de 2018 são a grande oportunidade de mudança.
Só então, num contexto de 2018, poderíamos passar à segunda etapa. Em vez apenas de atenuar os choques entre posições extremas, aí teríamos pela frente a produção de um conjunto de ideias do tipo ganha-ganha, dessas que realmente podem unificar um país em reconstrução. Por exemplo: há gente a favor do aborto, gente contra. Por que não se juntam numa campanha de informação contra gravidez indesejada? Ela pode reduzir o problema, sem prejuízo do debate.
Se conseguirmos êxito em alguns temas, poderíamos achar um acordo na educação. Foram anos de bombardeio ideológico. Ele não apenas irrita as famílias mas também escandaliza os especialistas pela sua ineficácia. Num país em que a educação suba ao topo da agenda, teremos de suprimir ilusões de formar revolucionários ou santos de qualquer outra igreja.
O que é isso, como será isso? Para mim, é o enigma de cada dia. Obrigado pela pergunt
Os idos de 64 já vão longe, embora existam algumas semelhanças com o presente. Hoje a situação internacional é favorável à democracia, o Brasil está mais ligado ao mundo. E a tese fundamental é de que sociedade tem a capacidade de resolver por si a grande crise em que está metida.
Essa tese é também a razão da nossa esperança, não há a mínima condição de abandoná-la. No entanto, ela sofreu um golpe no processo que envolveu o Supremo e o Senado, culminando com a suspensão das medidas cautelares aplicadas ao senador Aécio Neves.
Já é grande o número de pessoas que não acreditam em solução democrática para a crise. Quem observar o discutido discurso do general Mourão, que admitiu a possibilidade de intervenção militar, verá que ele coloca como um dos fatores que a justificariam a incapacidade da Justiça de punir a corrupção no mundo político. E a melhor maneira de negar essa perspectiva sombria é, precisamente, demonstrar o contrário: que a Justiça cumprirá o seu papel, restando à sociedade completar a tarefa com mudanças em 2018.
O Supremo ia nesse caminho quando esteve prestes a derrubar o foro privilegiado. Quem assistiu às discussões teve a impressão de que venceria a expectativa da sociedade de que a lei vale para todos. Mas o mesmo Supremo que mostrava tendência a derrubar o foro privilegiado suspendeu a decisão e, em seguida, deu um passo no sentido oposto: ampliou a blindagem dos políticos, submetendo medidas cautelares ao crivo do Parlamento.
Quem ouviu o discurso da ministra Cármen Lúcia num primeiro momento teve a impressão de que sua posição era contrária ao foro privilegiado. Na votação posterior, porém, recuou. Titubeando, mas recuou.
O Supremo decidiu abrir mão de uma prerrogativa. Afastar do mandato ou determinar recolhimento noturno não é o mesmo que prisão. É uma contingência das investigações.
Claro que, ao entregar a decisão ao Senado, as medidas cautelares seriam derrubadas. Entre todos os discursos, o mais cristalino foi o do senador Roberto Rocha. Ele citou um poema que dizia mais ou menos isto: se deixarem levar alguém hoje, amanhã levarão outro e o último estará sozinho quando vierem buscá-lo. É uma ideia interessante no contexto de países totalitários, a prisão é ameaça válida para todos os indivíduos. Mas Rocha não estava falando de um país, e sim do próprio Senado, uma Casa cheia de investigados pela Lava Jato cavando a última trincheira na areia movediça.
Outro passo atrás está a caminho no Supremo: recuar da prisão após sentença em segunda instância. Isso significa a possibilidade ser preso só depois de morto, no caixão!
Não sei como esses recuos serão metabolizados. Certamente, tornam mais difícil o caminho de uma solução democrática. Provocam indiferença enojada em muitas pessoas, em outras apenas reforçam o desejo de uma saída autoritária.
Apesar de tudo, não se pode dizer que todo o Supremo e todo o Senado tenham cavado mais um fosso de decepção. Tanto num como no outro há vozes discordantes.
No Supremo deu empate, resolvido com um hesitante voto de Minerva. No Senado, pouquíssimos entre os que votaram contra Aécio defendem a tese de que o Supremo deveria ter a decisão final, retomar o poder de definir medidas cautelares sem consultar o Congresso.
Isso significa que a maioria, incluído o PT, já considera como uma conquista irreversível o poder de dar a palavra final. Ganharam um escudo e vão usá-lo quando quiserem.
Imagino que o STF tenha tomado a decisão de abrir mão da palavra final na expectativa de evitar uma crise entre instituições, num momento de desemprego, tensões políticas. Mas certas crises têm de ser enfrentadas e vencidas. O Congresso está de costas para a sociedade. Se a Justiça, no caso de Aécio, não se impõe e, no caso de Temer, não consegue permissão para investigá-lo, acaba transmitindo a impressão de que é impossível a lei valer para todos.
O Supremo, penso eu, poderia voltar a dar um passo adiante, retomando a votação do foro privilegiado. O ministro Alexandre de Moraes pediu vista. É estranho que um ministro não tenha ainda posição sobre o tema. Ele tem concedido entrevistas sobre revisar a prisão em segunda instância, o que significa caminhar no sentido inverso.
Moraes transmite a impressão de que está pronto para dar um passo atrás e precisa estudar muito ainda para votar um passo à frente. “Which side are you on?”, pergunta a canção de Dropkick Murphys.
O caminho que reforça o velho sistema político-partidário e fortalece a impunidade acaba sendo um grande obstáculo à democracia, embora se revista de uma retórica democrática, sempre defendendo a Constituição, o direito dos acusados, a liberdade. Mas algumas belas abstrações se revelam, na prática, apenas uma forma de proteger um sistema poderoso e sofisticado de corrupção.
A versão poética do senador Roberto Rocha é mais próxima da realidade. Se deixarem levar um a um, acabam levando todos. É uma variante dramática do verso “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”. Mas apenas próxima da realidade: alguns votaram com naturalidade contra a blindagem não só de Aécio, mas do conjunto dos parlamentares.
Essas batalhas, contudo, não se resolvem apenas dentro das instituições. Elas dependem da sociedade, ou pelo menos de quem compreende que e a solução autoritária é um trágico passo atrás. Um passo razoável seria acionar mais o que resta de apoio nas instituições e travar um amplo diálogo sobre como evitar o pior. No desespero da autodefesa, o sistema político-partidário não hesita em pôr em risco a própria democracia.
Gostaria de estar dramatizando. Sei que 64 está distante, todavia a conjuntura externa favorável e o nível de informação ampliado na era digital são fatores que não bastam para garantir uma saída democrática. Ela precisa de uma pequena ajuda dos amigos.
Para se defender, o sistema político não hesita em pôr a democracia em risco.
As pesquisas confirmam o que quase todos sentimos nas ruas: as pessoas querem mudança e consideram as eleições de 2018 o melhor caminho para impulsioná-la. É uma boa notícia, cercada de dados negativos. Um deles é a reforma política nada amigável às mudanças. O velho sistema político partidário parte com uma vantagem financeira respeitável: um fundo eleitoral de R$ 1,8 bilhão.
E a decisão do Supremo é outro dado da blindagem dos políticos: o Congresso deve rever em 24 horas todas as medidas cautelares que atinjam o exercício do mandato. Isto significa que, se o STF afastar um senador, certamente seus pares vão anular a medida. A última palavra, nesse caso, não pertence mais aos juízes. O sistema político partidário deve estar comemorando. Aécio também. Mas, se analisarmos o contexto da disposição popular, essas medidas vão acabar isolando mais ainda os detentores de mandatos políticos. Pelo menos teoricamente, para se salvar das investigações e de suas consequências, o sistema partidário terá de ir mais longe no seu longo processo de suicídio. Naturalmente, a disposição pela mudança não é suficiente para que ela aconteça. Há muitas arestas a aparar.
Tenho refletido e lido sobre o conceito de tolerância. Cheguei à conclusão de que é muito flexível, depende de circunstâncias históricas, de quem tolera ou é tolerado. A tolerância como conceito moderno nasceu do liberalismo e é um fruto das guerras religiosas e da separação entre as autoridades do estado e da igreja, abrindo uma brecha para o indivíduo diante dessas forças gigantescas. Mais urgente que falar dela é tentar entender o quadro em que se move.
Tenho observado um deslocamento de calores no debate político brasileiro. No período anterior à queda de Dilma, o confronto se dava, além, é claro, da roubalheira, em torno de sistemas políticos. Tanto que os adversários do PT sempre diziam: “vai para Cuba, vai para Cuba”. Nem o mais radical dos críticos do artista pelado no MAM ousaria mandá-lo para Cuba, por achar a pena pesada demais. Toda uma geração de artistas foi esmagada pela revolução cubana – isto é bem descrito nos livros de Reinaldo Arenas. Durante muito tempo, a revolução decidiu encerrar homossexuais em campos de trabalho.
A sensação que tenho é de que o choque entre socialismo e capitalismo está em segundo plano. Sobe para o topo uma espécie de resistência à globalização e suas tendências multiculturais. Isso aconteceu na eleição de Trump e também na vitória do Brexit. Só que até nos Estados Unidos a globalização é sentida por alguns setores como uma ameaça econômica, perda de postos de trabalho, ruína de regiões que perdem sua competitividade global. No Brasil ninguém vê a globalização como causa da crise. Todos sabem que a nossa foi causada pela incompetência e pela corrupção das forças internas. No entanto, no campo dos costumes e, sobretudo, com a aceleração do mundo digital, muitas famílias se sentem inseguras diante de rápidas mudanças e temem por seus valores, tradição e até mesmo pela ideia que têm da própria identidade nacional.
O debate sobre os caminhos da saída econômica revela uma predominância do liberalismo. Ainda assim, no Brasil, isso precisa ser relativizado. O MBL, um movimento que se destacou na oposição ao governo de esquerda, tem uma clara opção liberal. No entanto, nos temas comportamentais, aproxima-se da posição de Bolsonaro. Este, por sua vez, apesar de seu enfoque nacionalista, se aproxima do liberalismo econômico. Essa discrepância em adotar o liberalismo econômico, abertura para o mundo, e, simultaneamente, combater algumas de suas consequências é apenas um dado. Os chineses sabem combinar elementos de liberalismo econômico com seu regime político de um só partido. Posições liberais na economia não correspondem mecanicamente a uma posição liberal nos costumes. Aqui, os artistas continuarão produzindo com liberdade e, em certos momentos, sendo provocativos como têm sido em toda a história da arte. E uma maioria da população tende a sentir-se ultrajada por saber que, apesar de maioria, sua visão de mundo não é levada em conta. Verdades políticas surgem daí. As duas mais visíveis são a tentativa de articular o desconforto com certas consequências do mundo moderno e a outra se entrincheirar em ideias de vanguarda descartando a opinião majoritária como atrasada. Nenhuma delas me parece adequada para o Brasil.
A admiração com que Barack Obama foi recebido aqui mostra que existe uma simpatia por posições que tentam navegar de olhos abertos para um mundo em transformação sem perder o contato com o fio terra. A própria Angela Merkel venceu uma grande batalha pela tolerância ao receber os imigrantes. Conseguiu se reeleger. Sempre foi crítica da trajetória do multiculturalismo, que acaba deixando ao relento o pobre, que não está integrado em nenhuma das identidades culturais que disputam o espaço.
Isso que chamo de pé na terra, por falta de melhor definição, pode ser, no Brasil, essencial para tirar o barco do lodo.
Parei algumas vezes esta semana para pensar 2018. Compreendo o pessimismo em que estamos envolvidos no momento. Mas, olhando para trás, as eleições de 2018 podem se livrar de alguns sérios problemas deste período democrático.
O primeiro instrumento para isso é a Lei da Ficha Limpa. Independentemente até do alcance que a interpretação do STF lhe der, é um filtro imposto pela própria sociedade. Um segundo filtro potencial, que também depende do STF, é acabar com o foro privilegiado. A Ficha Limpa exclui condenados, o foro privilegiado é um refúgio para os que querem escapar da condenação.
Se o Supremo escolher esse caminho sensato, não estará fazendo bem apenas ao processo político-eleitoral, mas a si próprio. Pode se livrar de centenas de processos e, simultaneamente, livrar-se do Código Penal, cuidar mais da Constituição.
Nas mãos do Supremo está outro fator de mudança: a liberação de candidaturas independentes. Reconheço que é contraditória com o princípio que levou à cláusula de barreira, um mecanismo que exclui partidos pouco votados. A ideia, aqui, era de combater a fragmentação, que torna o País ingovernável e o predispõe ao toma lá, dá cá que marcou o colapso do chamado presidencialismo de coalizão. Mas candidatos independentes estarão propondo mudanças e tendem a ser mais monitorados por seus eleitores, que, nesses casos, costumam ter papel decisivo na eleição. Aliás, se houve um momento neste longo período democrático em que valia a pena testar um novo caminho, esse momento é este.
A posição de procuradora-geral Raquel Dodge foi favorável às candidaturas avulsas. Não há nada que as proíba na Constituição e estão, segundo ela, amparadas no Pacto de São José, que vem a ser a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Todos esses fatores contribuem para um tipo de eleição melhor que no passado. No entanto, quando penso em 2018 ainda não consigo equacionar alguns problemas das eleições brasileiras que percebi agudamente em 2010. Naquelas eleições descobri um pequeno exército de robôs trabalhando para Sérgio Cabral. Juntamos o material para denunciar o uso de empresas no exterior para produzir mensagens e interferir nas eleições. Mas naquela época era até um pouco esotérico denunciar as trapaças eletrônicas de Cabral. Vejo em pesquisas realizadas no exterior que os partidos brasileiros já utilizam esse mecanismo em grande escala, após a virada da década. Exércitos nacionais e estrangeiros de robôs entraram em cena nas redes sociais.
A eleição de Trump, nos EUA, revelou como a atmosfera é favorável à massificação das fake news. Existem suspeitas da participação dos russos no processo americano. No momento em que o eixo das campanhas se desloca da televisão para a internet, certamente os robôs terão impacto maior agora do que em todas as outras. O único caminho, naturalmente, será multiplicar o combate às fake news, o que já é feito pela imprensa. Num processo eleitoral as coisas acontecem rapidamente, às vezes no apagar das luzes, como os vazamentos contra Macron, na França.
Mesmo aqui, onde há problemas, reside também uma novidade nas eleições de 2018. Mais do que nunca, milhões de pessoas podem se informar sobre os fatos e compartilhar as suas ideias.
Se aquelas expectativas razoáveis se confirmarem no Supremo, aumentam as possibilidades de boas eleições em 2018.
O fracasso do sistema político-partidário é uma evidência para a sociedade. Candidaturas avulsas, grupos renovadores que optem por entrar em partidos, enfim, vai se criando uma base para mudar.
É uma ilusão pensar que novos nomes sozinhos modificam isso. Terão de se apoiar em parlamentares experientes que também querem mudar. Ainda assim, não serão maioria. Mas se representam grande parte da sociedade, jogam com 12, jogam com a torcida.
Pode parecer prematuro adiantar hipóteses para 2018 num país com tantas surpresas. Mas os sinais são de que o ano acabará sem grandes novidades. A segunda denúncia contra Temer caminha para ser rejeitada na Câmara. Não se esperam surpresas por aí, as próprias crises do hamletiano PSDB se parecem com as da primeira denúncia.
Segundo as pesquisas, grande parte da população quer que ele fique até o fim do governo e, ao mesmo tempo, seja investigado. Isso é impossível. Mas, pelo menos, dá um alento a quem votar contra a denúncia. O famoso se ajeita comigo e dê graças a Deus.
É nesse caminho que entra 2018, um ano que vai exigir muito de nós. Será realmente a primeira grande eleição sob impacto direto da Lava Jato. Ela contribuiu para que políticos e empresários saibam que a corrupção é mais arriscada. Ela pode ter filtros e também receber sangue novo.
Claro que todo o quadro depende de novas crises. A do momento envolve Senado e STF. É possível aplicar medidas cautelares contra deputados ou senadores? O Supremo proibiu Eduardo Cunha de ir à Câmara e recolheu Aécio durante a noite. Como resolver essa questão, a não ser pelo próprio Supremo? O embate é um novo centro de resistência às investigações. Se não houvesse foro privilegiado, o STF não teria desgastes pontuais, apenas definiria se juízes podem ou não aplicar medidas cautelares contra acusados.
Se os Parlamentos tivessem resposta adequada a cada caso de quebra de decoro, os juízes não precisariam adotar medidas cautelares. Em alguns países o próprio acusado se afasta, em outros é afastado pelo Conselho de Ética. A mensagem que a resistência ao Supremo passa é a de que medidas devem ser submetidas ao Congresso.
Com as decisões punitivas restritas aos comitês de ética e excluindo o STF, os parlamentares vão criar uma espécie de limbo onde tudo se dissolve. Aliás, é nele que se dissolvem em discursos e troca de favores as denúncias contra o presidente Temer.
Só mesmo em 2018 a sociedade poderá responder a tantos anos de ultraje.
Nas horas de folga, tenho conversado com amigos, quase todos preocupados com o Brasil. Alguns pensam até em se candidatar e contribuir com o processo. Por que não? Em todo o país há um apelo por renovar. Aos que tomam o caminho de concorrer a cargos públicos, lembro apenas que não basta uma troca de nomes. Com as mesmas regras do jogo, o sistema resulta em perversão.
Há ainda os que querem fazer algo, sem deixar o seu trabalho, só como eleitores. O que fazer? Sinceramente a melhor resposta é trocar ideias entre as pessoas que querem fazer algo. Dessa teia de relações, acabam surgindo os rumos e possibilidades.
Há sempre no ar uma certa nostalgia de um nome, um líder para o processo de renovação. No entanto, é é preciso seguir conversando, independente disso. Quanto mais amadurecida estiver a sociedade no seu desejo de renovação, quanto mais tiver clareza do que quer e não quer mais, mais fácil aparecer alguém para liderá-la. Não são necessárias qualidades extraordinárias.
Outra vantagem de uma sociedade mais informada é que pode trocar seus líderes com facilidade. Não depende de um salvador. A recente tragédia da esquerda brasileira foi também ter depositado todas as suas esperanças num líder. Ela não estava preparada para o ocaso de Lula e simplesmente não consegue admiti-lo.
Palocci descreveu, em sua carta, algo que já mencionei em alguns artigos. A necessidade de dar as costas às evidências, a transformação num movimento religioso que cultua o líder e o considera um perseguido apesar dos fatos. Nem sei se a expressão religiosa é adequada. Não faz justiça, por exemplo, ao budismo, que estimula o encontro da iluminação por um caminho próprio e afirma que ela está dentro de cada um.
Na história do budismo, houve momentos em que não havia Buda e, mesmo sem ele, um grupo de pessoas compreendeu todos os ensinamentos por contra própria. São tratados com admiração: os que chegaram ao conhecimento sem a ajuda de um grande mestre.
A política não dispensa lideranças. Mas as virtudes necessárias dependem do momento histórico. O fracasso do populismo de direita abriu caminho para líderes messiânicos de direita.
Lula é uma divindade para os adeptos, Bolsonaro é um mito para os seus. Naturalmente essa emoção domina milhares de pessoas. Mas é crescente o nível de informação da sociedade e, na medida em que amadurece, a tendência majoritária é não acreditar em mitos ou divindades políticas.
Durante alguns anos, presenciei a transformação que o mundo digital nos trouxe. No princípio, a cena política a considerou apenas algo que estava aí, fervilhando, mas correndo em paralelo, sem influenciá-la. Agora, os mecanismos de controle são muito maiores. O próprio governo Temer foi levado a mudar de posições por pressão da sociedade.
Outro fator positivo é o impacto da Lava-Jato. O processo de corrupção pode até continuar, mas hoje se está mais equipado para investigá-lo, e tanto políticos como empresários conhecem o alto risco dessas práticas. Se a maioria moderada conseguir impor um caminho, certamente terá de derrotar o populismo, os futuros luminosos, os amanhãs que cantam, o paraíso prometido. Mais informada e consciente, a sociedade poderá escapar de outras divindades que às vezes se apresentam como absolutas: o mercado e o Estado.
Sem um grande líder messiânico, sem soluções radicais mas apenas um esforço para reerguer o Brasil e deixar que siga os seus passos, a alternativa pode parecer até um pouco monótona. No entanto, não tenho visto ninguém se abalar, nos novos grupos e experiências que, às vezes, mostro na televisão, por ideias fantásticas, fórmulas revolucionárias.
A maioria das pessoas com quem falo está preocupada com a decadência do Brasil, querendo fazer algo para que o país não se derreta no pântano em que foi lançado. São jovens que chegam à política agora, em 2018, com uma grande compreensão de como as pessoas informadas podem influir no processo. Certamente estarão preparadas para concluir que o caminho de consolidar as conquistas será pela educação.
Talvez esteja terminando também, com tantos outras deformações, um tipo de político que não se importa com a educação, que depende de ignorância para se manter na carreira. Reconheço que isso é uma posição otimista: apoiar-se na clássica ideia de que o ser humano pode saber, logo tornar-se livre.
Segundo Karl Popper, existe também o polo contrário: o do descrédito na capacidade humana de achar a verdade. Esses polos estão sempre em confronto e dividem os que querem ampliar a democracia e os que, baseados na sua convicção pessimista, tendem para a busca de uma autoridade forte para evitar o pior. Se estivesse na conferência do general Mourão, aquele que admitiu a possibilidade de intervenção militar, concordaria com suas críticas aos políticos. No entanto, diria apenas que acredito na capacidade de resolvermos nossos problemas, sem recuar na democracia.
O ano que entra é o começo de um novo ato. Um oásis potencial para nossos olhos, voltados hoje para a sujeira do passado e a mediocridade do presente.
A segunda denúncia contra Temer vai à Câmara e, como a primeira, deve ser rejeitada. É possível, portanto, prever uma situação bizarra: Temer, que só tem 3,4% de aprovação, segundo as pesquisas, ruma para um desgaste ainda maior, com a repetição de cenas da mala de Rodrigo Rocha Loures, a fortuna encontrada no apartamento usado por Geddel. Toda aquela dinheirama passará de novo pelas telas e aprovação de Temer deve encolher. Mas ele continuará na presidência e, se chance houver, vai querer ser candidato de novo.
Não é provável uma grande manifestação popular. Afinal, o impeachment derrubou uma quadrilha para colocar outra no topo do poder. São muito modestas as razões para lutar pela ascensão de uma nova quadrilha. O sistema se autoimunizou, não há salvação dentro dele.
Como a grande maioria acha que houve corrupção e Temer já era impopular, vamos ouvir, aqui e ali, gritos de “fora”. Um escritor na Bienal do Livro, ao se apresentar, disse: “Antes de tudo, fora Temer”. O grito será incorporado ao nosso universo das ruas, do vendedor de pamonha, os gritos de gol nas tardes de domingo.
O humorista José Simão antecipou, brilhantemente, essa situação bizarra ao imaginar a faixa com que o presidente foi recebido na China: Welcome Mister Fora Temer.
Mas nem todos vão rir todo tempo dessa situação. O presidente se refugiou no agonizante sistema político partidário. Essa ampla posição de resistência às investigações da Lava-Jato acaba fortalecendo posições mais radicais. De um lado, explorando a incapacidade de solução na política, cresce na rede social a posição dos que querem uma intervenção militar. Na arena institucional cresce também o potencial de votos de Jair Bolsonaro. Ele aparece para seus seguidores como alternativa eleitoral como a esse sistema apodrecido. Bolsonaro cresce também porque assim como Trump, usa a mídia a seu favor. Seu estilo é fazer uma declaração bombástica e ir relativando aos poucos, terminando por culpar a mídia pelo mal-entendido.
Estive em Minas mais ou menos na mesma época que Bolsonaro. Decidi analisar as duas polêmicas que surgiram na sua passagem. Na primeira delas, prometeu levar o mar a Minas. É algo que no passado mobilizou um célebre populista mineiro, Nelson Thibau. Ele tinha essa bandeira e chegou a transportar um barco para a Praça Sete, no centro de Belo Horizonte. Acontece que Bolsonaro usava suas frases como uma armadilha. Por exemplo, logo após prometer o mar a Minas, disse “Brincadeiras à parte…” e seguiu seu discurso.
No outro momento, Bolsonaro montou de novo sua armadilha. Declarou: os caras que fizeram a exposição lá no sul mereciam ser fuzilados. Em seguida, disse: é uma força de expressão.
Minha hipótese é a de que ele atravessa o discurso politicamente correto para provocá-lo e trazê-lo para uma boa briga, na qual reforça sua posição entres os adeptos e, simultaneamente, enfraquece o outro. Em síntese, Bolsonaro cria uma situação caricata, que tanto ele como Trump consideram mais inteligível para a maioria de seus seguidores.
As táticas de Bolsonaro e Trump são mais eficientes que as ameaças do populismo de esquerda de controlar a mídia. Eles transitam da mídia para as redes sociais e vice-versa, usam as duas de forma sincronizada, algo diferente do populismo de esquerda.
Ainda preciso avançar um pouco no tema, mas desde já acho que as falas de Bolsonaro deveriam ser avaliadas na cobertura presidencial com uma pergunta: qual é o jogo?
A inglória derrocada da esquerda e a mediocridade do PSDB acabam abrindo o caminho para que uma rebeldia juvenil seja atraída por Bolsonaro e seu discurso crítico ao sistema.
É algo que devemos também à insistência de Mister Fora Temer de se manter no poder, com tão pouca credibilidade. Os partidos políticos e Temer se enterram juntos em Brasília. Mas da maneira que o fazem não deixam nem capim nascer sobre o seu túmulo. Eles contribuem para nos lançar em campanhas de slogans e arranca-rabos, num momento em que é necessário discutir os rumos do país.
Os discursos bombásticos vão animar as eleições. Mas não devem dominá-las. Suponho que uma tendência mais equilibrada é majoritária. E também a mais adequada para pensar a saída da crise e projetar algumas linhas do futuro.
Muita gente tem esperança de que o Brasil saia desse imenso pantanal. Essa esperança, os adeptos da cura gay não podem curar. E a Justiça ainda não autorizou.
Nas circunstâncias nacionais, parece uma heresia lembrar que está chegando a primavera. Mas, além de boa notícia, é algo de que estou seguro. Algo que posso anunciar nas segundas-feiras, quando tento prever os fatos da semana, num programa de rádio. Em nosso processo histórico tão imprevisível, a constância das estações do ano é um bálsamo.
Claro que poderia melhorar as previsões. Garotinho já foi preso três vezes. Dava para prever a época em que seria preso de novo. Mas, se contasse com a prisão de Garotinho, o imprevisível, o realismo fantástico me surpreenderia. Garotinho foi preso apresentando um programa de rádio. O locutor que lhe sucedeu naquele momento disse que Garotinho tinha perdido a voz. Os médicos recomendaram silêncio. Ele poderia voltar amanhã ou daqui a alguns dias.
A prisão de Garotinho foi a única que teve uma versão para as crianças. No plano mais amplo, tempestades se formam e, pela primeira vez, pressenti um quadro mais completo. Com as gravações de Joesley Batista e documentos de uma advogada da JBS, entregues por seu ex-marido, a empresa insinua relações promíscuas com o Poder Judiciário.
Aliás, o próprio Joesley já tinha definido a situação ao afirmar, num dos áudios, que o Congresso foi atingido pela delação da Odebrecht e a ele cabia denunciar Temer e o STF. Os dados que havia num dos áudios, no qual se gravou o ex-ministro José Eduardo Cardozo, eram tão problemáticos que o procurador Marcello Miller previa até cadeia para quem os mencionasse. Mas a gravação não foi destruída, e sim enviada para o exterior. Sinal de que Joesley ainda conta com ela no seu poder de barganha.
Tudo isso está sendo investigado, suponho. Há pedidos da própria Cármen Lúcia e de Janot nesse sentido. O Poder Judiciário está diante de um desafio: rigor e transparência nas denúncias sobre ele mesmo.
Joesley Batista gravou muito gente, além de Temer. Alguns, como Gilmar Mendes, já se adiantaram afirmando que podem ter sido gravados. O áudio mais importante para Joesley foi o gravado com o Temer. Tornou-se moeda de troca na delação premiada. Mas, naquele momento, ele tinha com quem negociar. Agora, talvez interesse mais ocultar essas gravações e esperar uma nova oportunidade. Ou mesmo ocultá-las para sempre, em sinal de boa vontade em relação aos seus potenciais julgadores.
Pode ser que o vento afaste as nuvens de tempestade. Mas, por outro lado, as denúncias foram publicadas. O material divulgado pela revista “Veja” sugeria compra de ministros do STJ e uma enigmática frase: Dalide ferrou o Gilmar. Essa frase, na verdade, é vista numa mensagem da ex-advogada da JBS. Diz respeito a uma gravação entre Dalide Correa, ex-sócia de Gilmar, e o diretor jurídico da JBS. Vale a pena investigar tudo isso e colocar mais um poder na berlinda? Os próprios ministros mencionados mostram-se interessados numa investigação, para esclarecer os fatos. Que venha a transparência.
Na temperatura das águas, nas amoreiras, a primavera traz leveza. O bastante para abordar esse grande debate político-cultural em torno da exposição patrocinada pelo Santander em Porto Alegre.
Durante muitas anos participei de lutas minoritárias no Brasil. Minha experiência é que a única forma de não perder o respeito da maioria é procurar sempre o caminho democrático.
A liberdade de expressão artística é inegável. No entanto, ao trabalhar com verbas e educação pública, é necessário reconhecer a grande maioria das famílias que quer ter a primazia na educação sexual de seus filhos. Enfim, saber em que país está se movendo, e negociar, de forma que não se produzam reações em cadeia que acabem fortalecendo o retrocesso.
Creio que a experiência americana que resultou na vitória de Donald Trump merece uma avaliação. Será que não corremos, em circunstâncias diferentes, o mesmo risco? Um fator que sempre me impressionou na vitória de Trump era de como o universo informado dos leitores, acadêmicos, enfim todos, levou um susto com o país real.
Num mundo, Hilary era a vencedora, no outro, Trump. É preciso levar em conta a maioria e avançar de forma não ameaçadora, respeitar, em todos os momentos, a pluralidade das posições.
Quando digo não ameaçador, não quero dizer sorrateiro, mas, sim, um processo claro, uma proposta de convivência onde todos se sintam seguros.
No caso dos Estados Unidos, a insegurança tinha raízes também na economia, os empregos perdidos na globalização. Aqui há um grande nível de desemprego e incerteza econômica.
É nesse contexto que vejo o debate cultural. Poderia ser tudo mais simples se não houvesse dinheiro público nem visitas escolares como compensação ao incentivo fiscal. Com recurso do banco e obedecendo aos parâmetros legais, como todos os outros espetáculos, seria apenas uma exposição de arte. E com grandes nomes.
São visões de caminho. É um palpite de quem tem experiência de tratar com as maiorias e um conhecimento de regiões distantes do país.
Certeza mesmo, só a primavera.
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LARANJAL DO JARI — Tenho viajado pelo interior do Amapá, divisa com o Pará, para conhecer melhor a região que Temer quer abrir às empresas mineradoras. Não estava satisfeito com o debate. É preciso ver de perto. Tenho falado com geólogos, pilotos extrativistas, garimpeiros, para ouvir suas opiniões.
Devo refletir um pouco sobre algumas experiências decisivas do Amapá. Uma delas foi a extração de manganês na Serra do Navio. A outra é o projeto Jari, do famoso Daniel Ludwig, que aconteceu a poucos quilômetros do lugar onde estou baseado. Elas deixaram um rastro de decepção.
Navegando num calor de rachar, vi algumas pessoas no rio, à sombra de uma árvore, apenas com a cabeça fora d’água. Invejei seu conforto. Gostaria de estar assim no momento em que escrevo sobre a semana no Brasil. É preciso muito sangue-frio para falar de alguns temas, como as Olimpíadas de 2016 e as malas cheias de dinheiro de Geddel Vieira Lima, ou mesmo os diálogos de Joesley Batista.
As Olimpíadas foram desastrosas para a imagem do Brasil. No princípio, argumentávamos que elas foram pensadas num momento de euforia econômica. A chegada da crise iria mostrar ao mundo nossa vulnerabilidade. Depois, surgiu o debate sobre a Baía de Guanabara e a poluição nas lagoas do Rio. Era ingênuo supor que, ao se revelar para o mundo, os observadores não iriam descobrir que ainda estamos no século XIX em termos de saneamento.
Passados os jogos, reacendeu a discussão sobre o legado. Piscinas abandonadas, velódromo em chamas. Percebemos ali que a tendência era perder muitas das construções, algumas delas superfaturadas.
Quando o “Le Monde” denunciou o suborno para que o Rio fosse escolhido, emergiu de novo a figura de Arthur Soares, o Rei Arthur da corte de Sérgio Cabral. Mas o tema caiu num certo vazio. Era muito constrangedor para nós. Alegrei-me quando Malu Gaspar fez um perfil de Rei Arthur na revista “Piauí”. Pensei: agora sim, não só o enigmático personagem viria à tona como vai ficar mais claro o mal que esse gente fez ao Rio e o tremendo desgaste que os dirigentes, eufóricos com a escolha, impuseram à imagem do Brasil.
A Operação Unfair Play, em colaboração com investigadores franceses, confirma a denúncia do “Le Monde”. E mostra que além de Cabral e do Rei Arthur, contaram também com Carlos Nuzman. Os dirigentes esportivos disputam hoje com os políticos quem joga mais baixo a imagem do Brasil. Nuzman está proibido de participar do sorteio das Olimpíadas. A polícia não o deixa mais sair do país. O presidente da CBF também não deixa o país, com medo de ser preso lá fora.
Devem olhar para as cadeiras vazias do Brasil e lamentar como um país de importância internacional tenha chegado a esse ponto. A medalha de ouro no constrangimento nacional foi a descoberta das malas e malas de dinheiro no apartamento usado por Geddel Vieira Lima, em Salvador.
R$ 51 milhões, horas de trabalho contando o dinheiro nas máquinas. A imagem dessas malas cheias de dinheiro correu mundo, um político de segundo escalão no Brasil tornou-se uma espécie de Tio Patinhas. Creio que o melhor caminho para contornar o constrangimento no exterior é o que usamos aqui dentro para nós mesmos: tudo isso está acontecendo porque há uma competente investigação policial, que conta com o apoio da maioria da população.
Os mecanismos de justiça ainda não parecem à altura do desafio quando vemos que Geddel estava solto, sem tornozeleira, porque não havia dinheiro público para comprá-las. A um quilômetro dali, Geddel acumulava dinheiro para comprar todas as tornozeleiras do país. Suspeito que o dinheiro daria para comprar a fábrica. De qualquer forma, o dinheiro foi recuperado, e, segundo ouvi no rádio, Geddel ocupa hoje o sétimo lugar no ranking de maior assalto no mundo.
Ao pensar nas gravações de Joesley Batista, enquanto descia o rio de volta para Laranjal, tive inveja de novo dos meninos mergulhando no rio Jari. A delação de Joesley foi o ponto mais vulnerável da Lava-Jato, e por ele entraram também os adversários que querem enfraquecer o combate à corrupção e deixar tudo como está. Há sempre tempo, numa operação complexa como essa, para reparar erros. O melhor caminho, creio, é o de anular a delação de Joesley, mantendo as provas que ele entregou.
Lula, Dilma e o dirigentes do PT foram denunciados. A situação do partido se agrava, e seguem numa caravana pelo Nordeste que lembra um pouco a Caravana Rolidei, numa espécie de despedida. Apesar de o filme de Cacá Diegues “Bye Bye Brasil” ser mais poético e complexo; por isso foi tão discutido por ensaístas no exterior.
A aposta do PT em negar as acusações, reduzi-las a uma perseguição política, continua de pé. Mas vai transformá-lo em algo mais próximo da religião. Será preciso acreditar neles, apesar de todas as evidências, supor que a crise econômica nasceu com o governo Temer, que os assaltos gigantescos à Petrobras não aconteceram.
Benza Deus, como se dizia em Minas. A semana merecia um banho de rio.
Aqui onde estou, no interior do Amapá, as coisas me parecem confusas. Creio que parecem confusas em toda parte. Mas é sempre difícil de alcançá-las quando as conexões são pobres.
Rodrigo Janot deverá apresentar uma segunda denúncia contra Michel Temer. Teremos de ouvir tudo de novo, cada um com seu voto. Espero que seja menos dramático e que o mercado não leve tão a sério um enredo previsível. Afinal, a economia segue adiante.
Não conheço a delação de Lúcio Funaro. Sei apenas que é o réu mais violento no nível verbal: ameaça literalmente comer o fígado de adversários. Funaro já enrolou a Justiça uma vez. Deve ser uma pessoa cheia de truques, como parecem ser os irmãos Batista.
Janot afirmou que, enquanto houver bambu, vai lançar suas flechas. É uma afirmação quantitativa. Sabemos que a última flecha tem de ser mais certeira e eficaz. Isso se levarmos a sério a analogia com os índios. Não tenho conhecimentos antropológicos para afirmar, apenas suponho que os índios não gostem de errar a última flecha, porque depois dela ou o bicho pega ou o adversário ataca.
A delação da JBS é um dos pontos mais vulneráveis da Lava Jato, embora nada tenha que ver com o trabalho em Curitiba. Foi na esteira do acordo com Joesley que os adversários da operação bateram pesado.
Mesmo quem se coloca abertamente a favor do desmonte do grande esquema de corrupção no Brasil custa a entender não só a liberdade de Joesley Batista, mas também o fato de os procuradores não terem mandado periciar o gravador antes de desfechar o processo.
No front da Lava Jato no Rio de Janeiro avançou, finalmente, o tema denunciado pelo Le Monde há alguns meses: a escolha do Rio para a sede da Olimpíada foi comprada. E reaparece um personagem chamado Rei Arthur. Tive de falar dele em 2010. Suas empresas faturavam bilhões durante o governo Sérgio Cabral. Ele mandava nas escolhas do governo para contratar serviços. Daí o apelido Rei Arthur.
O que aconteceu com os Batista pode ser uma lição. Rei Arthur andou pelo Rio e escapou para Miami, onde vive. Ele certamente vai usar ao máximo sua presença nos EUA para dificultar a prisão. Quando preso, Rei Arthur já deverá saber com antecedência o que falar e o que esconder – a velha tática de oferecer os anéis para salvar os dedos.
A quadrilha montada por Sérgio Cabral, com inúmeras ramificações, tinha alcance internacional, comprou uma Olimpíada. Seu combate se deu com a ajuda decisiva de investigadores franceses.
Os donos da JBS mostraram, também, alto nível de audácia, na medida em que tinham a chave do BNDES, projetavam um crescimento internacional, enquanto no País compravam quase 2 mil políticos. Era inverossímil esta história de que decidiram colaborar porque tiveram uma espécie de epifania e descobriram que trilhavam o caminho do crime.
É importante que a Lava Jato não aceite os anéis para salvar os dedos, não por uma vocação repressiva. Os adversários são fortes. A história da repressão aos tráfico de drogas na Colômbia está cheia de cooptação dos investigadores pelo crime. Os próprios repressores transformavam-se em chefes de segurança dos esquemas do tráfico. Não eram simplesmente subornados, mas contratados pelo seu conhecimento técnico.
No campo político, no Brasil, não houve nenhuma reforma. O máximo possível é acabar com coligações proporcionais e criar a cláusula de barreira. Os passos dados não neutralizam a tendência em não votar em quem tenha mandato. E isso não é garantia nem de uma modesta renovação. Muitas pessoas novas entraram no Congresso e, ao cabo de algum tempo, estavam falando a velha linguagem. É o que acontece quando as regras do jogo não mudam.
Aqui, no interior do Amapá, observei algo comum em outros pontos do Brasil. Em quem confiar?, perguntam uns aos outros ao verem a sucessão de escândalos. A ideia de que a lei vale para todos foi fortalecida com a prisão de alguns poderosos. Não pode haver brechas nela, caso contrário, o desânimo será ainda maior.
Janot precisa avaliar o impacto da delação premiada de Joesley Batista. Afinal, valeu a pena? Quantas informações importantes ele deu? Até que ponto as investigações seriam incapazes de chegar a elas sem prêmio a Joesley?
Possivelmente, a última flecha de Janot ele vai arrancar de seu próprio corpo. Nada de excepcional numa longa batalha.
Pode ser que avance para compreender que errou ao não periciar as gravações, mas encontrar nelas o caminho da reparação.
O quadro geral é mais inquietante quando a desconfiança transborda o universo da política e se expande pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
As mais recentes pesquisas já apontam nessa direção. Certamente, foram influenciadas pela atuação de Gilmar Mendes, mas não se esgotam nele.
A iniciativa de Cármen Lúcia de pedir uma rápida e esclarecedora investigação sobre referência ao STF nas gravações de Joesley vai numa boa direção. No entanto, ela deve saber que a crise na dimensão da Justiça é corrosiva.
Quanto a Geddel Vieira Lima, ele foi solto e voltou para Salvador. As pessoas estão, agora, estupefatas com a descoberta de milhões de reais num apartamento que ele usava. O Estado não tinha dinheiro para a tornozeleira eletrônica de Geddel. Geddel tinha dinheiro para comprar todas as tornozeleiras eletrônicas do Brasil. Por isso é que vale a pena considerar que estamos diante de quadrilhas extremamente capazes e ousadas, não só prontas para assaltar, mas também dispostas a dar uma volta na repressão.
Tantos inocentes, tantos arrependidos, tantos falsos colaboradores – a competência dos bandidos brasileiros é medalha de ouro em qualquer Olimpíada em que tenha a corrupção como modalidade.
Não será fácil vencê-los, embora a Lava Jato tenha alcançado um nível superior e seja o melhor instrumento que encontramos para isso em toda a nossa história.
Tenho discretas razões para supor que Temer compreenderá o equívoco de abrir para a mineração, na Amazônia, uma área do tamanho da Dinamarca. No passado, ele se tornou dono de terras em Alto Paraíso, e a comunidade que trabalhava há anos ali foi a Brasília pedir ajuda. Terras em Goiás foram distribuídas a políticos do PMDB. Temer nem sabia exatamente como eram e o que produziam. Pressionado pelos agricultores alternativos que trabalhavam ali, Temer resolveu abrir mão de suas terras e as doou à cidade de Alto Paraíso. Agora, não se trata apenas de alguns, mas de 47 mil hectares. As terras não são de Temer, mas do Brasil e, de uma forma indireta, de toda a Humanidade. Quando os militares criaram a reserva, a ideia era pesquisar e explorar os recursos de uma forma estratégica. Não creio que pensaram nisso como um momentâneo desafogo a uma crise econômica provocada pela incompetência e corrupção.
Não quero raciocinar em termos de estatal ou privado, ou mesmo de nacional ou estrangeiro. Depois que os militares criaram a reserva, muita água passou por baixo da ponte, ou mesmo por cima, com os eventos climáticos extremos.
No fim da década dos 1980, o Brasil ainda era um vilão internacional porque desmatava a Amazônia. Lembro-me de uma reunião de cúpula na Holanda em que Sarney não foi porque tinha medo de uma reação negativa. Na época, além das queimadas e de outros fatores, houve ainda o episódio de negarem passaporte a Juruna.
Com a realização da Rio-92, o maior encontro de estadistas no pós-guerra, o papel do Brasil começou a se alterar. De vilão ambiental, tornou-se um interlocutor importante e passou a ser visto como ator decisivo nos acordos sobre o aquecimento global. A Amazônia tornou-se para o mundo um espaço a ser preservado, respeitada a autonomia nacional sobre suas terras. Países como a Noruega acharam que se a Amazônia era importante para a sobrevivência de todos, deveriam investir nela em projetos sustentáveis. E fizeram isso.
Você mesmo esteve na Noruega, embora a tenha confundido com a Suécia.
A grande crise iniciada em 2008 e fatos posteriores, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, enfraqueceram mas não destruíram a disposição planetária de contribuir com a Amazônia.
Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta. E de uma certa maneira, despreza os potenciais investimentos em projetos sustentáveis em nome de uma saída que me parece anacrônica e predatória.
Tudo bem, Temer, você dirá que serão respeitadas as regras ambientais para a mineração. Mas quem percorre Minas Gerais e outros pontos do país constata rapidamente que elas não são respeitadas no Sudeste, onde teoricamente, concentrase o grosso da fiscalização.
No segundo decreto, você criou um comitê ligado à chefia da Casa Civil para monitorar as atividades de mineração nessa faixa que engloba parte do Amapá e do Pará. Não consigo me convencer disso. O chefe da Civil, Eliseu Padilha, é investigado por crimes ambientais no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul. E as acusações são amplas, vão de desmatamento a construção de pistas de pouso clandestinas. Pouca gente sabe disso. Mas está disponível na internet e no próprio Supremo.
Além de arruinar o trabalho de construção da imagem nacional, o governo nos propõe uma fórmula de controle na qual a raposa toma conta do galinheiro. O namoro do PMDB com as riquezas naturais da Amazônia vem de longe. Romero Jucá é o mais destacado parlamentar buscando fórmulas para regulamentar a mineração nas terras indígenas.
Nesse momento, Temer, você está cedendo às piores influências no manejo da Amazônia. Se fosse simplesmente um opositor, talvez pudesse me alegrar com essa decisão. Antes de ser opositor, sou brasileiro e lamento ver o Brasil caindo de novo naquele desprezo internacional que sentimos em Haia, no fim da década de 1980. É uma ilusão você pensar que tudo dará certo. Até mesmo Padilha e Jucá, que devem estar comemorando, não percebem que estão atraindo um furacão contra eles. Deveriam ser mais discretos, mas a aposta é de levar tudo porque aqui não se pune ninguém.
No momento em que publico este artigo, estou tentando entrar na reserva, que não tem acesso fácil. O argumento de que garimpeiros clandestinos estão por lá não justifica esta abertura às grandes empresas. Aliás, Temer, existe uma possibilidade de você estar se deixando execrar inutilmente. As empresas que você quer atrair também estão no mundo e devem sofrer pesadas campanhas em seus países de origem.
Não me importa que você confunda Noruega com Suécia, Paraguai com Portugal, ou mesmo reviva a União Soviética. O essencial é não confundir a Amazônia com Goiás, onde tantas terras foram passadas a líderes do PMDB. É um lugar tão complexo, capaz de sepultar não apenas os sonhos pioneiros como o de Henry Ford, mas também as grandes trapaças.
A crise brasileira é tão brava que, às vezes, nos esquecemos de que existe uma outra mais ampla nos envolvendo: a decadência dos valores ocidentais. Alguns escritores franceses teorizam sobre a decadência da civilização judaico-cristã e chegam a prever a futura dominação muçulmana. Michel Onfray acha que os muçulmanos tendem a predominar, entre outras coisas, porque estão dispostos a morrer por sua crença.
Não tenho a mesma certeza da força da fé, sobretudo no universo político. Sem conhecimentos tecnológico e científico, tática e estratégia adequadas, a disposição de morrer por uma causa pode representar um autoextermínio em grande escala.
O que me atrai nisso tudo é estabelecer um nexo entre a crise ocidental e a brasileira; a mesma realidade, só que em dimensões diferentes.
No final do século, a European Science Foundation realizou uma ampla pesquisa e publicou cinco livros sobre ela. Um deles tem o título “O impacto dos valores”. A tese dos sociólogos e pesquisadores envolvidos no trabalho era que estava havendo uma mudança de valores. Esta mudança não era compreendida pelos governos que insistiam apenas em falar de melhorias materiais e mais riquezas, quando despontavam aspirações novas: desejos não materiais e emancipatórios. Isso acontece no Brasil em alguma escala, quando se defende qualidade de vida ou se constata o crescimento da espiritualidade.
Mas a crise ocidental, pelo menos no meu estudo ainda precário, acabou sendo atropelada, no Brasil, pelo colapso material e pela vulgaridade com que os valores são negados. A crise de valores no Ocidente refere–se à ausência de um sentido numa vida confortável e relativamente bem administrada.
No Brasil vivem-se a escassez e a roubalheira, o que nos dá a impressão de estarmos em outro compartimento; e só alcançaremos as angústias ocidentais quando sairmos do singular sufoco.
No Brasil, deputados se articulam para criar um esquema de sobrevivência eleitoral que inclui um fundo milionário. Juízes como Gilmar Mendes desandam a soltar corruptos, apesar de seus visíveis laços de amizade com eles. Basta ver um pouco de televisão para observar como o caos se espalhou: assaltam até velhos em cadeira de rodas.
Discordo quando se fala em ausência total de valores no Ocidente e insinua-se a possibilidade de uma supremacia muçulmana. Quando acontecem atentados terroristas, governos e sociedade são unânimes em defender um valor essencial: a liberdade. Para ser mais preciso, as vítimas do terrorismo morreram porque vivem num mundo em que a democracia e a liberdade prevalecem.
Essa ideia de morrer por uma causa, que Onfray destaca nos muçulmanos, é romântica e já a adotei na juventude. Mas é inferior à ideia de viver humildemente por uma causa. Valores não materiais e emancipatórios combinam com a democracia e podem significar um avanço na sua inacabada trajetória. É uma aposta no futuro.
Por enquanto, no Brasil, vivemos ainda o que pode ser chamado de fase selvagem da decadência. A lei não vale para todos. Políticos nos assaltam de cara limpa. A elite nacional se recusa, por preconceito, a examinar o grave problema da violência urbana.
Os valores cambiantes na Europa já se anunciavam nos anos 60 e alguns acabaram se materializando na diversidade de lutas e no politicamente correto. Tudo isso tem um impacto bem grande no Novo Mundo. Nos Estados Unidos, a vitória de Trump representou uma espécie de antídoto ao politicamente correto. No Brasil, Bolsonaro encarna esta corrente conservadora, assustada com as ameaças voluntaristas à estabilidade da família.
Na verdade, a família hoje já está bem distante do modelo que os conservadores têm na cabeça. Mas ela existe e não pode ser ignorada, como querem alguns, impondo cartilhas de cima para baixo, avançando, sem diálogos num campo da educação que era exclusivo dela.
Creio que levarei muito tempo ainda para estabelecer todas as conexões entre a crise singular do Brasil e a crise envolvente dos valores ocidentais. O grande problema das duas, tanto aqui como lá, é que tornam atraentes as soluções autoritárias. Soluções externas, como o avanço muçulmano, ou de dentro, sofisticados sistemas de dominação tecnológica.
Um jovem executivo do Facebook já abandonou o trabalho e foi para um bunker se defender de um apocalipse que ele supõe ser o destino do avanço do mundo digital.
O fato de termos problemas anteriores a toda essa agitação crepuscular nos dá um fôlego para vivermos como no Velho Oeste, desejando que os xerifes expulsem os bandidos em todas as esferas em que atuam.
Mas será preciso fazer um esforço adicional para compreender o Brasil dentro do Ocidente. Sair da decadência galopante para a decadência elegante é uma rima, mas, como dizia o poeta Drummond, não é uma solução.
Gilmar Mendes rides again. Há um mês escrevi que ele foi padrinho de casamento da Dona Baratinha. Numa mensagem em que condenava meus textos sobre ele, afirmou que não foi o padrinho mas acompanhou sua mulher, madrinha do noivo.
Se ele afirmava que não foi o padrinho, estava disposto a escrever isso, limitando-me a informar que ele foi apenas para prestigiar a festa no Copacabana Palace, que terminou em pancadaria e presença policial.
Apesar de sua flor branca na lapela do terno, Gilmar sabe melhor que eu se foi ou não padrinho. Para mim a presença de Ministro do Supremo naquele lugar e naquele momento é o problema.
As manifestações na festa de Dona Baratinha não foram um relâmpago em céu azul. Há décadas circulavam notícias de corrupção dos politicos pelas empresas de transporte dos Barata.
Não era uma corrupção qualquer. Houve rumores de distribuição de dinheiro pelo próprio presidente da Assembleia, na época Sérgio Cabral, num dos banheiros da casa.
Na Câmara Municipal, houve também entrega de dinheiro repassada pelo próprio presidente. Era, portanto, uma corrupção das instituições democráticas de cima para baixo.
Os Baratas compravam politicos porque queriam maiores lucros, as vezes sintetizados em preços altos e precárias condições de conforto. Era uma corrupção que repercutia no cotidiano tornando-o mais áspero e caro.
Agora, Gilmar Mendes concede um habeas corpus em tempo recorde para Jacob Barata Filho. Confesso que, como quase todo mundo, fiquei estupefato.
No mês passado, achava que Gilmar Mendes era inimigo de Rodrigo Janot e isto estava repercutindo negativamente não só nos rumos da Lava Jato e também na própria imagem da justiça que realmente se desgasta com choques pessoais no topo dada instituição.
Estava equivocado porque mesmo com a saida de Janot, Gilmar Mendes não será conquistado para o campo dos que apoiam o desmonte do gigantesco esquema de corrupção no Brasil.
Ao libertar Barata, passou da hostilidade aos procuradores à proteção aberta aos acusados de corrupção.
Lamento porque Gilmar Mendes é inteligente e corajoso. Não é mais um adversário a ser neutralizado, mas derrotado.
Sua assessoria, segundo os jornais, confirmou que foi padrinho (aquele flor branca na lapela) mas informou também que o casamento não durou mais do que seis meses.
As pessoas estavam se referindo apenas à cerimônia e não à estabilidade do casamento. Não cabe ao padrinho mencionar esse tema em público.
Em defesa de Gilmar, o advogado Sérgio Bermudes, dono banca onde trabalha a mulher de Gilmar, fez uma defesa que não me convence.
Ela é corretamente abstrata quando descreve os limites da lei e afirma que parantescos longínquos, laços de amizade se fossem impedimento acabariam reduzindo muito a produtividade da justiça.
Mas a defesa que me parece abstratamente correta não toca num ponto central: quem é o juiz, quem é o réu, em que circunstâncias históricas eles são envolvidos?
Declarar-se suspeito é uma forma de entender a lei. E ela foi feita para os especialistas em leis. O Ministro Edson Fachin declarou-se suspeito num processo porque foi padrinho de casamento do filho de um dos advogados da defesa.
Gilmar costuma dizer que não teme os clamores da multidão. Mas dito dessa forma supõe-se uma turba enfurecida. Mas não é isso que acontece agora onde cerca de um milhão de pessoas assinam uma petição pelo seu impeachment.
Pessoas que questionam o trabalho de um Ministro do Supremo e utilizam esse instrumento são, de um modo geral, cidadãos com um nível de consciência política superior ao das multidões.
No seu destemor, Gilmar tornou-se o anti Lava Jato. Todas as esperanças de impunidade passam por ele e os ministros de sua turma.
Ele costuma citar um jurista português para quem a lei no Brasil é usada com malandragem.
Ele devia refletir um pouco se está mesmo passando boa imagem internacional da justiça brasileira.
Durante vários dias menções a ele ocupam os postos de temas mais comentados na Internet. E negativamente.
Quem examinar o Brasil através da rede, é isso que fazem a maioria dos estrangeiros, vai perceber que existe uma rejeição nacional ao trabalho de um ministro do STF.
Carmem Lúcia vai decidir se Gilmar é ou não suspeito para atuar no caso de Jacob Barata. Ela terá todos os dados da relação, do casamento onde as pessoas jogavam objetos nos manifestantes, do patrocinio de Barata ao Instituto de Gilmar, enfim dados que podem o não preencher os requisitos da lei.
Mas ela sabe que estará julgando algo muito mais importante. É a própria imagem do Supremo, num momento em que, não só pelas interferências políticas mas pela sua resistência à luta contra corrupção, a opinião pública quer Gilmar fora do STF.
Na troca de mensagens, Gilmar foi muito agressivo. Na minha idade e na atual situação catastrófica do país, não acho adequado trocar insultos com ninguém.
Por isso, continuo a vê-lo de uma forma política. Assim como pensei que fosse possível neutralizá-lo passada a fúria anti Janot, cordialmente agora peço o seu impeachment.
Reconheço a coragem para enfrentar a opinião pública. A opinião pública `as vezes erra, `as vezes acerta. Estar contra ela no momento que defende suas melhores aspirações, é uma escolha audodestrutiva.
Daí o advérbio cordialmente ao lado da minha assinatura pelo impeachment. Quantos milhões a mais serão necessários para Gilmar compreender que não se trata de uma opinião difusa mas de uma quase unanimidade?
Poderíamos dar uma ajuda. E não seria nada raivoso, nada parecidocom choques de esquerda e direita, apenas uma campanha humanitaria: Vamos salvar Gilmar de Gilmar.
Se as autoridades andassem na rua, veriam que além de abaixo assinados, Gilmar desperta também os piores instintos.
Quando cheguei à Argélia para o exílio, o pernambucano Maurílio Ferreira Lima já morava lá. Levou-me para um passeio e passou num açougue para comprar carne. Fez a transação em francês mas, ao sair, disse da porta: “pendura”. Fiquei surpreso com a naturalidade e o sorriso do açougueiro. Maurílio revelou que esta era a única palavra em português que ensinou a ele.
Cada vez que o governo vem anunciar uma nota fiscal, lembro-me de Maurílio. É como se dissessem: “mais R$ 20 bilhões, pendurem”. Maurílio pagava suas contas em dia. Ao contrário do governo, tratava apenas do que comprava, e não de projeções para o ano seguinte. O governo pendurou R$ 20 bilhões em 2107 e anunciou que vai pendurar R$ 30 bilhões em 2018.
Quem vai pagar tanto dinheiro? Eles falam em economia nos gastos públicos. Não acredito. Os dados estão aí: deputados e senadores querem alguns bilhões para financiar suas campanhas.
Se fossem só os políticos, ainda havia uma esperança. A Justiça, que tem sido aliada da sociedade na luta contra a corrupção, é muito reticente quando se discutem os supersalários que excedem o teto legal. Nesta semana, falando com um procurador que atua no Norte do país, ele me passou um quadro desolador. Há promotores que chegam a ganhar R$ 125 mil mensais.
As notícias sobre juízes do Mato Grosso que receberam até R$ 500 mil frequentaram o noticiário e saíram em paz. Um dos juízes chegou a declarar: “não estou nem aí para o espanto que a notícia causou”. Ele não está mesmo. Considera legal receber, e pronto. O próprio Supremo Tribunal Federal sempre tem se manifestado a favor de quem ganha tanto dinheiro com salário e penduricalhos.
Nesse sentido, a orfandade dos brasileiros é total. Os políticos não só desviam dinheiro como inventam fórmulas para receber fortunas através de suas leis eleitorais. E a Justiça não mostra nenhuma sensibilidade para o problema. O que fazer nessas circunstâncias?
Dentro do quadro de apatia que se criou no país, parece que a alternativa é trabalhar e separar o dinheiro do imposto, assim como muitos, em áreas de risco, saem com o dinheiro exato do assalto. Mas é uma tática que tem seus limites. A máquina burocrática brasileira é muito pesada para o país. Ela se comporta como se estivéssemos nadando em dinheiro.
O grande problema da necessária austeridade é o próprio governo. Se ele tem um projeto de reforma da Previdência que implica em sacrifícios para alguns, quem vai apoiá-lo sabendo que não há reciprocidade nos esforços? O resultado disso é a marcha da insensatez que vai nos levando progressivamente ao caos. No momento, falamos em bilhões com tranquilidade, mas já há quem calcule em meio trilhão o rombo nos próximos anos.
Mas toda essa conversa sobre números acaba sendo abstrata. Nas estradas, caiu o policiamento; nas fronteiras, a redução de verbas dificulta a ação das Forças Armadas. Nos hospitais, então, a escassez mata.
Em 2013, a sociedade intuiu que isso estava errado e se manifestou nas ruas, queria serviços decentes para os impostos que paga. Naquele momento, as grandes empresas estavam tranquilas. Se reclamavam dos impostos, a resposta foi simples: ampliar isenções. O BNDES emprestava dinheiro a juros reduzidos, e os próprios políticos ofereciam isenções. De tal forma ofereceram que, no Rio, cabeleireiros, joalherias e até um prostíbulo tornaram-se isentos. A corrupção mostrou como recursos públicos eram drenados. A quebradeira agora vai colocar também em cena algo que não era tão discutido em 2013. Pedia-se um serviço decente em troca do imposto.
Agora, num momento em que cogitam a alta dos impostos, o Brasil merece um grande debate sobre como o bolo dos recursos públicos é dividido.
Por que há tantas isenções e qual o benefício que trazem para o país? Por que uma máquina com tanta gente é tão pouco produtiva? Por que salários tão altos,
tantos penduricalhos?
No Congresso participei de inúmeros debates sobre isso, tentando convencer o governo, na época, a reduzir radicalmente as viagens, que custavam em torno de R$ 800 milhões por ano. Já havia os meios para isso: teleconferência, Skype. Hoje foram ampliados com novas alternativas.
O alto custo não é apenas com passagens, mas também com as diárias pagas aos funcionários. Por isso, quando se fala em reduzir custos e aumentar a produtividade, há sempre uma resistência. Apesar de haver gente bem-intencionada entre os funcionários, o ânimo para aumentar a produtividade de serviços públicos deveria vir do universo político.
Do mundo político não virá nada. Foi o próprio sistema político-partidário que criou esse monstro dispendioso. Os políticos, nesse episódio, não são uma solução, e sim uma parte substancial do problema. Se depender eles, o atraso se eterniza. Sempre que apertar, vão dizer: “pendurem”.
“Quantas toneladas/exportamos de ferro? Quantas lágrimas/disfarçamos sem berro?” Estes versos de Drummond contam uma longa história da mineração em Minas. Uma história que se confirmou pela anulação do processo de Mariana sobre o mar de lama que provocou 19 mortos, dezenas de lares perdidos e um rio envenenado.
O processo foi anulado porque a polícia teria lido e-mails da empresa, sem autorização. Ela só poderia ler e-mails de um período determinado. O argumento da anulação: violência contra a privacidade da Samarco.
Tenho dificuldades em entender por que a quebra da privacidade de uma empresa é superior à morte de 19 pessoas, destruição de comunidades e envenenamento do mais importante rio do litoral brasileiro.
Foi o maior desastre ambiental do Brasil. Precisa ser julgado. Se a polícia leu e-mails demais, basta neutralizar as informações não permitidas. O essencial está lá: a lama, as mortes. O desastre não é um segredinho da Samarco. É uma realidade que todos que viram sentiram e choraram.
No fim da semana, ao chegar em casa, soube que houve um saque a um caminhão de carne tombado. Para mim isso não é novidade. Vejo e filmo, constantemente, saques a caminhões nas estradas brasileiras. No entanto, este tinha um componente especial: ninguém se importou em socorrer o motorista. O saque se prolongou por quase uma hora, antes que chegassem os bombeiros e retirassem o pobre homem dos escombros.
Se junto esses fatos é para enfatizar como é grave um momento em que a vida humana perde seu valor. Um vereador do Rio chegou ao extremo de cobrar propina para liberar corpos do IML. A própria morte passa ser um objeto de negociação.
No seu livro sobre o homo sapiens, Yuval Noah Harari reflete sobre a linguagem humana. Ela não nasceu apenas da relação com as coisas, da necessidade de alertar sobre o perigo, ou mesmo do interesse das pessoas pela vida das outras, da fofoca. Uma singularidade da linguagem humana é sua capacidade de falar de coisas que não existem materialmente, de um espírito protetor, de um sentimento nacional. Esses mitos que nos mantêm unidos ampliam nossa capacidade produtiva e nossas conquistas comuns.
O que está acontecendo no Brasil é o esgarçamento dessa ideia de pertencer ao mesmo país, de partilhar uma história e um futuro.
O mito da nacionalidade é bombardeado intensamente em Brasília por um sistema político decadente. Eles voltam as costas para o povo e decidem, basicamente, aquilo que é de seu interesse pessoal.
Os laços comuns se dissolvem. Não há mais sentimento de comunidade, e daí para adiante é fácil dissolver os laços entre os próprios seres humanos.
No sentido de partilharmos aspirações comuns, já não somos mais um país. E caminhamos para uma regressão maior desprezando as possibilidades abertas pela linguagem, pelos ancestrais que a usavam para grandes conquistas coletivas.
Somos dominados por um sistema político cínico, que se alimenta, na verdade, da repulsa que nos provoca. Mais repulsa, mais indiferença, isto é, menos possibilidade de mudanças reais.
Quando visitei Israel, um motorista de ônibus, ao ver um incêndio, parou, desceu e foi apagá-lo. Muitas vezes na Europa vi gente reclamando quando se joga lixo na rua. E os próprios suíços chamando a polícia quando há barulho depois das dez da noite.
Isso não é aplicável à nossa cultura de uma forma mecânica. Eu mesmo devo fazer barulho depois das dez. Mas o que está por baixo dessas reações é a sensação de pertencer a um todo maior, de ter responsabilidades com ele.
A degradação política conseguiu enfraquecer esse sentimento no Brasil. Eles fingem encarnar um país e quem os leva a sério acaba virando as costas também para esse país repulsivo.
O resultado desse processo destruidor está aí. Reconheço que mecanismos de desumanização estão em curso em todo o mundo e que fazem parte de um processo mais amplo. Mas é uma ilusão pensar que nossas vidas são apenas um reflexo de uma época que tritura valores. Existem razões específicas, made in Brazil, que nos fazem recuar em termos civilizatórios.
A expressão “elite moralmente repugnante” foi durante muitos anos aplicada aos setores dominantes do Haiti. Ela pode ser transferida para Brasília.
A coexistência silenciosa e indiferente diante dessa realidade vai minar os próprios fundamentos da vida comum.
Os versos de Drummond não se limitam a descrever a tragédia mineral: quantas toneladas de ferro, quantas lágrimas disfarçadas?
O Brasil vai recuperar a força de sua humanidade quando se rebelar. Enquanto aceitar silencioso as afrontas que vêm de cima, a tendência é abrir mão de suas conquistas de homem sapiens e mergulhar numa noite de Neandertal.
O sinais estão aí. Adoraria estar enganado.
Cai ou não cai, o cara? O que é que vai acontecer por lá? As perguntas se sucedem nas ruas e não consigo respondê-las a contento. Não importa, também não há assim grande tensão nas perguntas. Se Temer cai, haverá apenas uma troca de seis por meia dúzia, parecem dizer. Todos pressentem um período medíocre, incapaz de provocar grandes paixões. Há quorum, falta quorum? Que interesse há nisso, uma vez que os deputados já fizeram suas apostas em cargos e emendas? E vão esperar um outro momento em que Temer se sinta com a corda no pescoço.
As pesquisas indicam que 81% dos entrevistados querem que a investigação sobre Temer prossiga, com todas as suas consequências. Mas essa mesma correlação de forças não se repete no Congresso. A opinião pública é refém dos eleitos, e eles se acham seguros para negociar. Ainda não se convenceram de que uma catástrofe eleitoral os espera.
Mesmo num quadro tão negativo, é possível se encontrar um certo alento. Se Dilma estivesse no governo, seria uma semana dura.
No auge de uma crise prolongada, mais de uma centenas de mortos nas ruas, a Venezuela entra numa ditadura: um fanfarrão de camisa vermelha dança “Despacito” e baixa o pau nos opositores. Pensei que a esquerda brasileira, na maré baixa, fosse mais discreta. Mas alguns dos seus partidos manifestaram seu apoio a Nicolás Maduro. Isso revela que, no fundo, o modelo bolivariano ainda a atrai. Está implícito em certas bandeiras, como no projeto de controle da imprensa.
Os projetos comuns no Brasil, como uma refinaria em Pernambuco, acabaram sendo um fardo para o Brasil. Chávez tirou o corpo fora e, no âmbito nacional, a corrupção correu solta. O governo petista mandou a Odebrecht que, para não perder a viagem, pagou US$ 9 milhões de propina à cúpula chavista, segundo a procuradora Luisa Ortega. A reeleição de Hugo Chávez contou com um decisivo apoio petista, somado à grana da Odebrecht, que, na verdade, era a grana do BNDES. Essa campanha foi narrada por João Santana e Mônica Moura e foi orçada em US$ 35 milhões.
Incapaz de compreender seus erros internos, parte substancial da esquerda brasileira mergulha nos erros alheios e defende um regime autoritário, violento e isolado internacionalmente.
O Brasil nunca seria uma Venezuela, talvez pudesse chegar perto se a crise avançasse. No entanto, a tentação de avançar nesse rumo não abandonou a esquerda e agora, com a queda de Dilma, ficou mais evidente por que o PT radicalizou.
O controle do Congresso, na base de cargos e verbas, é uma tática que se desdobra até hoje. Mas não é 100% eficaz em momentos dramáticos. O chamado controle social da mídia nunca foi palatável até para os aliados do governo petista. A única saída foi construir uma rede de apoios com blogs e guerrilha digital.
Resta outro ponto, presente na experiência da Venezuela, que jamais aconteceria no Brasil: o apoio das Forças Armadas. Sem esse apoio, o próprio Maduro já teria ido para o espaço.
Dilma pode ter sentido uma tentação de acionar os militares. Mas os sinais que vinham de lá eram desalentadores para um projeto de esquerda.
Apesar de ressaltar seus laços ideológicos e programáticos com o chavismo, no Brasil a esquerda não é protagonista no drama que se desenrola. Ela apenas é um ponto de apoio de um regime brutal. As lentes ideológicas de nada servem para tratar dos problemas que surgem com o mergulho da Venezuela numa ditadura.
Temos fronteiras comuns. Embora num nível menor do que na Colômbia, refugiados chegam em levas maiores em Pacaraima. Já temos um problema social na região. Roraima depende da energia produzida na Venezuela. Talvez seja necessário pensar em alternativas mesmo porque os constantes apagões são um aviso.
O território dos ianomâmi atravessa os dois países. Na década de 1990, chegamos a formar comissão mista Brasil-Venezuela para discutir uma política comum para os ianomâmi. Mas naquele tempo, ainda que imperfeitos, havia parlamentos com espaço para essa discussão.
Nas últimas viagens que fiz à fronteira, voltei com uma sensação de que era preciso uma avaliação do Brasil em face do novo momento. Um cenário provável é que a ditadura de Nicolás Maduro, produzindo mortes diárias, vai ser um tema global tratado na própria ONU.
No momento em grandes atores entram em cena, seria bom que o Brasil soubesse o que quer e o que precisa fazer. Caso contrário, seremos engolfados por uma política internacional sobre um tema que envolve, de uma certa forma, o nosso próprio território.
Não importa se Temer, Maia ou qualquer desses políticos assuma o comando, muito menos se o período é de desesperança. Escapamos, por exemplo, de ver um governo, em nome do Brasil, apoiar o golpe de Maduro e recitar a cantinela da solidariedade continental contra a pressão da direita. Pelo menos disso, escapamos. Agora, o resto está bravo.
Esta era a filosofia da mãe da atriz Charlize Theron, que matou o marido bêbado e agressivo. Foi o que disse à filha quando a tragédia aconteceu.
É uma frase dita num contexto familiar e definindo uma reação individual. Mas pode ser aplicada ao momento em que o país anda tão decadente.
O que fazer diante de tantas notícias ruins no campo da política e dos vários níveis de governo? Nadar talvez signifique o que fazemos cotidianamente: trabalhar, tentar os melhores resultados possíveis, avançar.
Ao deixar a esfera individual e aplicar a frase à trágica situação do Rio de Janeiro, o que significa afogar-se ou nadar? Creio que uma braçada inicial seria encarar de frente o problema da segurança pública. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, descreveu a situação de segurança pública no Rio como o “coração das trevas”
A cidade tem mais de 800 comunidades, a maioria sob domínio territorial do tráfico. Este domínio acaba se refletindo na própria política: traficantes elegem aliados em vários níveis.
O ministro advertiu que não são todos, mas muitos políticos do Rio eleitos, de uma certa forma, em sintonia com o mundo do crime, pois dependem dos traficantes para fazer campanha nas áreas dominadas.
A proposta de criar uma força-tarefa federal para o Rio parece muito sensata nesse contexto. Jungmann propõe a articulação de vários órgãos, PF, Ministério Público, Polícia Rodoviária, entre outros. E um prazo de alguns anos para corrigir essa situação tenebrosa, na qual o crime não só domina territórios, mas, no mínimo, aniquila a vontade política de combatê-lo. Minha suposição é de que uma força-tarefa desse tipo encontraria um amplo apoio social. Não me refiro apenas a um apoio do tipo que a sociedade brasileira dá à Lava-Jato. As pessoas comuns rejeitam, mas desconhecem os mecanismos de corrupção nas altas esferas de governo.
No caso do Rio, trata-se de algo palpável, um drama que atinge a todos no seu cotidiano. As pessoas têm boas ideias, informações. Alguns países vivem o mesmo problema. No México, discute-se uma lei que cassa o mandato de um partido caso um de seus candidatos tenha relações com o crime. Em Medellín, que tive a oportunidade de visitar, também houve uma experiência vitoriosa de pacificação. O período inicial foi o enfrentamento ao cartel de Pablo Escobar, no qual a Colômbia contou com o apoio dos EUA.
Trabalhei com Jungmann por muitos anos no Congresso. Ele era um dos melhores formuladores em política de segurança pública, uma referência na área. Deve saber muito bem que o enfrentamento é só a primeira fase. Medellín compreendeu que a saída a longo prazo era política, envolvia outras dimensões além da policial. Tanto que, quando se fala em milagre de Medellín, as pessoas contestam. Foi preciso muito trabalho, liderado por um grupo de sonhadores em torno do prefeito Sergio Fajardo, um professor de matemática. Adotaram uma tríplice prioridade: educação, cultura e urbanização. E definiram como lema empregar o dinheiro público onde fosse mais necessário.
Uma força-tarefa atuando com eficácia no Rio não terá vida fácil. Mas certamente vai polarizar a esperança da sociedade e estimular o desejo por soluções mais duráveis. Isso certamente passa por melhores escolhas políticas. E pode ser também o começo de uma revolução cultural no Rio. Uma reavaliação das tênues fronteiras entre o crime e a cultura.
É de um dos mais talentosos artistas que viveram por aqui, Hélio Oiticica, a célebre frase: “Seja marginal, seja herói”. Isso comporta uma discussão em alto nível. No entanto, para simplificar, no estado a que chegamos, basta virar a frase de cabeça para baixo: os policiais que atuam dentro da lei são os heróis de uma sociedade aterrorizada.
Uma força-tarefa eficaz seria um marco nessa transformação simbólica. A única dificuldade que vejo é a financeira. O governo é rejeitado, vai mal das pernas. O pouco dinheiro que lhe restou, pensa em aplicar nas escolas de samba. Mas um grupo de instituições que funcionem pode conquistar uma legitimidade própria. E até pensar, se isso não for ilegal, em receber contribuições espontâneas.
O projeto das UPPs foi parcialmente financiado por empresários. Ele também deveria ter o seu lado social. Mas ali, em termos de segurança, visavam-se os grandes eventos. E em termos de política social apenas, alguns votos a mais para a gangue no poder. É possível refazer o caminho se o longo trabalho de uma força-tarefa se complementar com mudanças políticas e culturais. Pelo menos é uma ideia de braçada. Há outras, certamente. Há quem nade crawl, peito, costas, borboleta.
Do jeito que está, afundamos. Outro dia, o vice-governador errou ao abotoar o paletó e apareceu meio estranho em público. Isso acontece com qualquer um. Mas no momento pareceu um inconsciente pedido de socorro.
Ao decretar o aumento do imposto da gasolina, Temer rompeu com uma das mais importantes expectativas criadas pelo impeachment de Dilma. Na época em que ela caiu não se discutiam apenas as pedaladas, razão formal, mas todo o conjunto do movimento da bicicleta: uma dispendiosa máquina de governo pesando insuportavelmente nas costas da Nação.
Verdade que Temer conseguiu aprovar a lei que impõe limite aos gastos públicos. Mas a a vida real está mostrando que uma simples lei não resolve se não houver mudança no comportamento do governo. Temer, por exemplo, decreta aumenta de impostos e libera verbas para deputados, algo que não é essencial no Orçamento. Ele vive uma contradição paralisante: governar para a sociedade ou para o Congresso?
Sua cabeça depende de ambos. Mas no momento ele teme mais os deputados, que têm o poder de cortá-la, aceitando a denúncia de corrupção passiva. A decisão de aumentar impostos não o enfraquece apenas na sociedade, mas também no próprio Congresso, que está em recesso, portanto, teoricamente mais próximo da vida real.
A escolha de usar um decreto, driblando uma decisão congressual, vai desgastá-lo. Está implícito na escolha que nem o Congresso aceitaria esse caminho. Mas as contradições não param aí. Embora não aceite o aumento de imposto, o próprio Congresso, no jogo de trocas com Temer, não trabalha com reduções nos gastos.
As contradições estendem-se ao projeto de demissões voluntárias. É um movimento legítimo, mas toca funcionários concursados. Economiza R$ 1 bilhão depois de aumento de salários que chegam a R$ 22 bilhões. Os próprios procuradores, cujo trabalho apoiamos, querem mais 16% em 2018 . Aqui, na planície, quem tem a sorte de trabalhar se contenta apenas em não perder para a inflação.
O departamento de cargos em comissão continua de vento em popa. Em especial neste momento em que o Congresso tem o destino de Temer nas mãos.
Ao dizer que o povo iria compreender o aumento do imposto, Temer acabou expressando um desejo. Nesse campo prefiro a Dilma, com seu desejo de não ter meta e dobrá-la ao atingir esse intraduzível marco.
Todo mundo sabe que paga imposto. Ainda mais quanto incide sobre a gasolina. Mesmo os habitantes do interior do Nordeste que trocaram os jegues por motocicletas compreenderam imediatamente que foram atingidos.
O aumento de impostos tem força no imaginário histórico brasileiro: luta pela independência, derramas coloniais, Tiradentes esquartejado. Nos últimos anos os empresários acharam no pato amarelo uma versão pop de sua luta contra a pesada carga tributária.
Depois de tantos escândalos de corrupção, do espetáculo de políticos de costas para o povo, as pessoas começam a perceber que tudo isso é financiado por seu trabalho. E para simbolizar a revolta quando ela chega ao cotidiano, o pato é pinto. As coisas podem ser muito mais graves.
Temer arriscou tudo nesse aumento. Tenta o suicídio numa hora em que sua energia está concentrada em sobreviver.
Não houve, depois do impeachment, um esforço sério para conter os gastos da máquina. O déficit orçamentário previsto já era generoso, em torno dos R$ 130 bilhões. Neste momento, muitos se perguntam: por que financiar a máquina oficial, corrupta e incompetente na entrega dos serviços essenciais?
Quem se lembra das manifestações de 2013 reconhece nelas uma aspiração a serviços decentes em troca dos impostos pagos. Os serviços pioraram de lá para cá. E os impostos aumentam. Isso não quer dizer que estejamos às vésperas de manifestações do tipo de 2013. Mas quem autoriza os estrategistas de Temer a supor que o decreto não trará sérias consequências?
Estrategistas podem até pensar em jogar todas as cartas no Congresso, subestimando a reação da sociedade. Mas têm de levar em conta que há um momento em que o próprio Congresso salta do barco se a pressão social o empurrar.
É um exercício retórico falar em estrategistas. A máquina tem uma lógica própria. Ele não pode mudar o rumo porque nela está ancorado um sistema político-partidário.
O desdobramento da máquina é cruel para os que pagam impostos e ao mesmo tempo é autodestrutivo. Temer apenas deu mais um passo na direção do abismo, não necessariamente pessoal, mas do próprio sistema político, em degradação. Mas é um passo que enfraquece as perspectivas de soluções políticas com mudanças em 2018. E favorece a entrada numa zona de turbulência perigosa para a própria retomada econômica.
Mas como definir outro caminho? A máquina tem seus desígnios, ela se desloca como um iceberg que se desprende do continente. Temer já era impopular. Pode-se tornar detestável. Como um iceberg que se respeita, a máquina de governo quer fazer do Brasil o seu próprio Titanic.
Ultimamente, porém, o degelo é mais rápido. Um aumento de impostos como o da gasolina terá poder pedagógico e vai aquecer muito as aspirações por um reforma política que reflita diretamente nos rumos da máquina de gastar.
Nunca se pagou tanto por espetáculo tão desolador. Os atores contam com a tolerância da plateia, clichês como a cordialidade do brasileiro. Creio que o futuro próximo vai desvendar a natureza da máquina. O que funciona hoje como marcha da esperteza pode revelar-se amanhã a marcha da estupidez: um sistema político em extinção.
A opção de aumentar impostos abriu uma nova conjuntura, sem os lances sensacionais de uma delação premiada, mas com potencial corrosivo tão ácido como ela. Piores dias levando a melhores dias: está chegando a hora de a sociedade ajustar as contas não só com a máquina de gastar, mas com o sistema político que a anima.
Não é apenas pelos 20 centavos, dizia-se nos protestos de 2013. O aumento da gasolina representa R$ 11 bilhões por ano. Ainda assim, não serão apenas 43 centavos por litro. É toda uma forma de governar que está em jogo.
Quase todo dia somos obrigados a demonstrar em nossa vida digital que não somos um robô. Michel Temer, ao lado de Rodrigo Maia, anunciou um grande plano de segurança para o Rio. E até o meio da semana não tinha feito nada. Para milhões que não os conhecem pessoalmente agora precisam provar que não são robôs, que não passavam apenas de uma combinação de vozes gravadas e milhares de pixels. A situação tornou-se insustentável.
O próprio Maia, presidente da Câmara, reconheceu que o governo do Rio perdeu o controle. Temer e Maia estavam discutindo no princípio da semana quem ficaria com um grupo de deputados do PSB. Em suma, estavam absortos na luta pelo poder. Os tiroteios são diários, escolas são atacadas, crianças, alvejadas ou atropeladas no ventre da mãe, os policiais morrendo mais do que em qualquer época de nossa história recente.
Há outro problema: o crescimento do roubo de cargas. As estradas estão perigosas para quem chega ao Rio. O perigo assombra os motoristas de caminhão. As consequências já estão anunciadas: seguradoras não aceitam mais cobrir cargas que têm o Rio como destino, e as empresas podem parar de abastecer a cidade. Um colapso no abastecimento nos jogaria na Venezuela e seríamos forçados a emigrar para Roraima em busca de supermercados.
Se Temer não é um robô creio que já se fez uma pergunta elementar: por que um país que teve a capacidade de desmontar um gigantesco esquema de corrupção não consegue desarticular as quadrilhas de assaltantes que operam nas estradas do Rio?
Talvez não tenha percebido, como se percebe daqui, que o governo está no chão. Num spa de Penedo, mas de qualquer forma no chão. O ideal seria resolvermos nossos próprios problemas. Mas estamos numa federação, e o país, nesse caso, precisa intervir. A única saída que me parece trazer alguma possibilidade não só de evitar o pior como de recolocar o Rio nos trilhos é uma intervenção federal.
O universo político imerso na luta pela sobrevivência, diante da Lava Jato, não consegue incluir esse tema na agenda nacional. Pode haver até a necessidade de convencer outros estados da federação. Há custos que, na verdade, podem se transformar em investimentos.
Guardadas as proporções, a inclusão do lado oriental custou muito à Alemanha. Mas o país continua crescendo. Sinal de que os gastos, na verdade, foram investimentos. Acho o exemplo precário. No entanto, o raciocínio, em termos abstratos, é válido. Temer não é Helmut Kohl, as economias tinham dimensões e produtividades diferentes.
Em compensação o Rio daria, proporcionalmente, muito mais do que a Alemanha comunista. Retomar a segurança pública reanimaria sua grande fonte de renda, o turismo. E numa posição estratégica como porta de entrada do turismo internacional.
A produção do conhecimento, apesar dos embates que a crise lhe impôs, como declínio da pesquisa, fuga de cérebros, ainda é um recurso também estratégico para a economia nacional. No momento em que esses temas são secundários no universo político, a esperança é a de que as Forças Armadas também não deem as costas para ele, sob o argumento de que sua tarefa é defender o país de inimigos externos.
Mas o povo do Rio está desamparado. É preciso que os agressores vistam um uniforme estrangeiro para que se saia, provisoriamente, em sua defesa? Não se trata aqui apenas de fazer o papel da polícia, mas sim de evitar que ela seja dizimada. Vivemos uma situação grave a que os próprios estudiosos de guerra deveriam dar alguma atenção. O projeto das UPPs, que reuniu recursos do estado e de empresas, foi uma opção com resultados muito rápidos, portanto muito mais gratificantes de um ponto de vista político e eficazes para garantir Copa e Olimpíada. Ele ignorou as leis da guerra de guerrilha que se aplicam a uma realidade assimétrica independente de ideologias. Seria preciso o Exército chinês, com seus milhões de soldados, para instalar UPPs operantes em cerca de mil comunidades do Rio.
A lei da guerrilha acabou se impondo no comportamento do mundo do crime: quando o inimigo se concentra, você se dispersa; quando o inimigo se dispersa, você se concentra. A dispersão para comunidades sem UPPs, para a Baixada, para cidades médias foi uma realidade. Campos tornou-se a mais violenta do estado.
Agora, com a crise nacional, prisão de políticos do Rio que se mostraram assaltantes em escala monumental, vivemos o que o inesquecível Marinho Celestino chamava de a volta do retorno. Numericamente, nossas perdas se igualam ou superam as provocadas pelo terrorismo. Sem governantes aptos, a própria sociedade terá de demonstrar que não é um robô. Num outro país, os líderes políticos teriam visitado as mães atingidas, prestariam homenagem aos policiais mortos. Existe ainda, ao lado da alienação dos políticos, um caldo de cultura que estigmatiza a polícia e romantiza o crime.
Simpathy for the devil, como no título da canção.
A notícia da condenação de Lula chegou num momento especial. Acabara de escrever um artigo sobre o apagão no Senado. E comparava aquilo aos apagões nos estádios de futebol: a luz volta aos poucos. E concluía que, no universo político, as luzes só voltarão completamente em 2018. A condenação de Lula é uma pequena lanterna para enxergar parcialmente o cenário das eleições presidenciais. A estratégia de lançar a candidatura para escapar da Justiça, de politizar o processo, sofreu um golpe. Talvez por falta de alternativa, a esquerda pode insistir nela. Mas é um equívoco fixar-se no destino de uma só pessoa e esquecer o país.
O Tribunal Regional em Porto Alegre pode levar até nove meses para julgar um recurso, uma condenação fundada em provas testemunhais, documentais e periciais. Pode até levar mais. Legalmente é possível ser candidato. Mas será preciso levar um guarda-roupas de candidato e uma malinha com as coisas indispensáveis na cadeia.
O candidato vai se mover sempre com essa espada na cabeça, e supor que isso não influa na sua viabilidade só é possível aos que o seguem com um fervor religioso. Ao mesmo tempo em que Lula era condenado por Sergio Moro, a Câmara discutia se aceitava ou não a denúncia contra Temer.
Embora esses fatos apareçam de forma isolada, fazem parte de um mesmo processo histórico. O governo petista caiu, em seu lugar ficaram os cúmplices da aventura que arruinou o país. Agora, a coisa chegou a eles.
Um ex-presidente condenado, um presidente denunciado, dois presidentes impedidos. É o momento de avaliar, não só um governo mas todo o processo de redemocratização.
É possível começar de novo? As diretas eram uma bandeira clara. A luta contra a corrupção, também. Mas o principal cenário dessa luta acontece na Justiça, onde os processos correm.
Resta o caminho eleitoral. Em alguns países da Europa, como a Dinamarca, num determinado momento, e a França agora, eleições costumam ser um sopro de vida ao sacudir um sistema envelhecido. Aqui no Brasil, o sistema não apenas envelheceu mas também se corrompeu. Muito possivelmente a renovação será orientada por valores que estiveram soterrados nesse período. No entanto isso não basta. Estamos vivendo problemas diante dos quais apenas a honestidade não resolve. As questões emergenciais estão aí, muitas delas decorrentes do colapso dos governos corrompidos.
Segurança, por exemplo. Meu projeto era escrever sobre isso até apagarem as luzes do Senado e ver aquelas mulheres comendo quentinhas. Isso me fez refletir sobre luzes e trevas.
Mas quando pensava em segurança, minha ideia era mostrar alguns reflexos psicológicos de quem mora numa cidade como Rio. Um deles é o perigo de se acostumar com a violência. Começava por mim mesmo. Vivo na base de um morro onde sempre houve tiroteio. Numa visita a Porto Príncipe, no Haiti, hospedado na casa de um diplomata brasileiro, ouvi tiros ao longe. Virei para o canto e dormi como se estivesse em casa.
Não sei que impacto teria a morte de inocentes em outros lugares. Mas a morte de crianças e adolescentes no Rio é recebida com uma certa resignação.
O terrorismo não é o melhor parâmetro. Mas suas vítimas são cultuadas e as próprias autoridades aparecem para visitar as famílias. Absortos em suas manobras defensivas, os políticos não têm sensibilidade para isso. Nem espero que tenham nesta encarnação.
No entanto, não importa que governo fique de pé, é essencial conseguir dele alguma resposta à violência urbana. Na verdade, seria necessário que tivesse uma visão clara de como gerir os colapsos que explodem em vários pontos da máquina.
A sucessão de crimes nas cidades e sucessão de escândalos no poder produziram uma certa anestesia. Suspeito que muita gente vai se perguntar se ainda vale a pena gastar alguma energia em mudanças. Creio que uma resposta negativa tende a perpetuar essa etapa constrangedora da história moderna brasileira.
Não porque goste de eleições e tenha muita paciência com o festival de demagogia que gravita em torno delas. É que não vejo outra saída. Ainda assim uma saída estreita, precária. Esta é sociedade mais extensamente informada de nossa história moderna. Talvez consiga um Congresso renovado que, apesar de modesto, pelo menos não atrapalhe.
A política tornou-se um tema central porque a corrupção e suas consequências roubaram a cena. Sem esses fatores dispersivos, é possível concentrar mais energia em campos que, realmente, nos empurram para a frente: trabalho, inovação, conhecimento.
A política terá o seu papel, que certamente vai se desenhando pelo caminho. Mas não pode mais ser essa pesada mala nas costas do país. Mala cheia de malinhas: dinheiro, joias, obras de arte, cartões de crédito, contas no exterior.
Mas o grande peso mesmo não é monetário. É a perda de esperança num futuro comum, o eclipse de um sentimento de país.
Vivemos momentos desoladores. O apagão do Senado é um fato simbólico que nos provoca a pensar sobre como sobreviver no escuro.
Nos apagões em estádios de futebol as luzes nunca voltam de uma vez só, o campo vai se iluminando aos poucos. Creio que as luzes só voltarão totalmente no Congresso depois das eleições de 2018.
Daqui até lá teremos de nos acostumar com a penumbra. A realidade histórica obrigou-nos a derrubar presidentes com uma frequência maior. A repetição nos obriga também a um espetáculo constrangedor, os deputados se sucedendo na tribuna: voto sim pela família, pelos netos, pelo marido, por sua cidade natal e o pelo coronel Brilhante Ustra.
Estamos no caminho dessa desse velho enredo. Sempre se diz no final que a sociedade se surpreendeu com o nível de seu Congresso. A chance de evitar as surpresas que se repetem, apesar de tudo, está concentrada na capacidade social de mudar o quadro em 2018.
Outro dia alguém me perguntou o que esperava do eventual sucessor de Temer nesse período de transição. Nada, respondi distraidamente. Aos poucos fui obrigado a precisar esse nada. Basta que toque a máquina do Estado, num momento em que muitos setores ameaçam entrar em colapso.
E basta que o Congresso tenha aprovado a reforma mais negociável, que é a do trabalho. Na política, que ao menos reduza o número de partidos.
No quesito tocar a máquina será preciso considerar emergencial a crise da segurança pública. Talvez por uma visão limitada e pessoal eu destaque esse tema. Vivo no Rio de Janeiro e viajo semanalmente pelas estradas do Brasil. O Rio vive um clima trágico: crianças mortas, balas perdidas, tiroteios. E as estradas agora estão menos policiadas, pois faltam recursos à Polícia Federal.
Não sou favorável à tese do Estado mínimo, penso como John Gray que o Estado tem vários tamanhos possíveis, dependendo das circunstâncias históricas.
Se Rodrigo Maia for presidente, terá chegado ao cargo com 53 mil votos. Em algumas configurações partidárias esse número não chega a ser suficiente para eleger um deputado. O ideal, portanto, seria tocar as obrigações cotidianas, sem muitas marolas.
O Congresso ficaria na penumbra, o que não significa opacidade, porque a transparência é uma conquista. Seria apenas uma forma de não atrapalhar mais a recuperação econômica, evitar os sobressaltos dedicando-se a projetos que não tem mais legitimidade para aprovar
Isso talvez possa liberar alguma energia social. Perdemos muito tempo ouvindo discursos, dispersamo-nos muito com as nuvens da política.
Toda semana o PSDB se reúne para decidir se sai ou não do governo. Como dizia Cazuza, vivemos num museu de grandes novidades.
As próprias discussões sobre o destino do Temer, embora tratando de crimes diferentes dos atribuídos a Dilma, têm a mesma monotonia jurídica. O relator Sergio Zveiter afirmou que os indícios eram suficientes para autorizar que fossem investigados. Disse que, nesta fase, não se trata de afirmar que in dubio pro reo, algo que se aplica ao julgamento. E concluiu que, nesse caso e etapa, a dúvida é pró-sociedade.
O advogado de Temer questionou a tese em abstrato, afirmando o direito do indivíduo. Algo louvável. No entanto, a sociedade é feita de indivíduos que ocupam lugares diferentes, arquitetos, cozinheiros, encanadores e um presidente da República. No caso de denúncia contra o presidente da República, a sociedade tem o direito de conhecer as suas consequências.
O enigma de todo o processo é a própria sociedade. Embora atenta, não parece ter ânimo par ir às ruas. No “fora Dilma” havia emoção, confrontos.
A oposição a Temer revela-se mais nas pesquisas de opinião do que nos movimentos de rua. Tornou-se algo do cotidiano, inspirou até a marca de uma cerveja artesanal Fora Temer. Como toda bebida algo alcoólica, imagino que sugira também moderação para evitar uma ressaca brava.
A liquidação do grupo de Temer, amigos presos, assessores presos, é mais uma etapa da derrocada de um gigantesco esquema de corrupção. O que restava do grupo dominante vai deixando a cena e em seu lugar um apagado Congresso deve tocar o País num regime parlamentarista não escolhido como resultado de um de debate sobre o rumo da política. Um parlamentarismo acidental, que deveria ter o cuidado de um zelador noturno que trabalha apagando as luzes lentamente.
Até que amanheça. Com sol ou nublado, radiante ou cinzento, mas amanheça. Foi muito longo o período de decomposição do processo político-partidário, ele tende a anestesiar, como os tiroteios do Rio e a sucessão de mortes de crianças alvejadas em casa, na escola, no carro e até na barriga da mãe.
As eleições em período de desencanto político costumam marcar novas etapas. Na Dinamarca o desencanto foi devastador para os partidos dominantes, na França surgiu como um movimento por fora deles.
Não sei o que acontecerá aqui, mas duvido que continuaremos nessa sequência de quedas de presidentes e deputados votando pela mãe, pelos netos. Presidentes e deputados serão possivelmente melhores. Com um nível de informação como nunca teve antes sobre o universo político, a sociedade deve se manifestar.
Ainda aí, nas eleições, poderá surgir de novo a questão: vale a pena dedicar alguma energia a essa mudança? A resposta negativa pode perpetuar esse horror, em nome da mãe, dos netos, da cidade natal e do coronel Brilhante Ustra.
Já se discute muito no Rio se a cidade não se tornou impraticável. Muitos brasileiros se deslocam para Portugal, que exerce grande fascínio. Mas 517 anos depois na dá para voltar todo mundo para Portugal e encobrir o Brasil. A saída só se encontra por aqui. Mesmo depois de resolvida a escassez de passaportes.
Há coisas que não entendo no Brasil. Ou melhor, coisas que me esforço para entender. O STF, por exemplo, negou a liberdade a uma prisioneira que roubou xampu e chicletes. Mas decidiu soltar Rodrigo Rocha Loures, que recebeu a mala preta com R$ 500 mil numa pizzaria. Sou leigo e fiquei sabendo que a mulher foi mantida na prisão porque era reincidente. Provavelmente roubou um tubo de creme dental no passado e, como essas pessoas são insaciáveis, deve ter levado também a escova de dentes.
Leio no belo livro “Triste visionário”, de Lilia Moritz Schwarcz, sobre o escritor Lima Barreto, que o médico Nina Rodrigues, expoente da Escola Tropicalista Baiana, defendia no fim do século XIX que negros e brancos eram diferentes biologicamente e o Brasil precisava ter dois códigos penais. Felizmente, as ideias racistas de Nina, que conheci pelo seu trabalho pioneiro sobre a maconha, foram sepultadas. Existe apenas um código penal.
Suspeito, no entanto, que existam diferentes estados de direito. A mais generosa versão desse conceito surgiu no país quando começou a ser desmontado o gigantesco esquema de corrupção.
A Lava-Jato é responsável apenas por um terço das conduções coercitivas no país. Nunca houve problemas até que, depois da centésima experiência, a operação trouxe Lula para depor. Resultado: um grande debate nacional sobre condução coercitiva. Em 2013, o Congresso aprovou o instrumento da delação premiada. Era destinado a desarticular o crime organizado. Ninguém protestou. Ao ressurgir na Lava-Jato, a delação premiada precisou se revalidar no contexto do novo e delicado estado de direito.
Marcelo Odebrecht disse que ensinava aos seus filhos que era feio delatar. No Congresso, a delação premiada foi definida como a tortura do século XXI. E Dilma Rousseff comparou os delatores a Joaquim Silvério dos Reis, nivelando a Inconfidência Mineira ao assalto à Petrobras.
Mostrei num curto documentário como as famílias dos presos sofrem para visitar os parentes no Complexo de Bangu, às vezes, passando a noite ao relento, à espera de uma senha.
A televisão revela agora como Sérgio Cabral recebe visitas à vontade, inclusive como chegam encomendas da rua no setor onde está preso agora. Sua mulher, Adriana Ancelmo, está solta para cuidar dos filhos, e a polícia encontrou nas casas da irmã e da governanta joias escondidas por ela. Leio nos jornais que numa excursão da Escola Britânica ao exterior, o filho de Cabral foi o único a viajar na classe executiva.
Se a mulher de Cabral ajudá-lo, de novo, a roubar R$ 1 bilhão do povo do Rio, inclusive com prêmios por conceder aumento da passagem de ônibus, creio que, pela leitura da lógica do STF, irá para a cadeia. Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex, dizia o velho anúncio. A mulher que roubou o xampu deve ser jovem, desconhece slogans publicitários do passado.
Há algum tempo, desisti de esperar uma reação previsível do Supremo. Carmem Lúcia, de vez em quando, me consola prometendo que o clamor das ruas será ouvido.
De vez em quando, sim, o clamor das ruas será ouvido. Mas o sistema politico partidário brasileiro envolve com seus tentáculos os próprios ministros do Supremo. O ubíquo Gilmar Mendes articula leis no Congresso, encontra-se com investigados, discute o preço do boi com Joesley Batista e foi padrinho da casamento de Dona Baratinha, herdeira do clã que enriqueceu cobrando caro para que o povo do Rio viaje nos seus ônibus vagabundos.
A Lava-Jato lançou a ideia de que a lei vale igualmente para todos. É uma ideia tão antiga que pronunciá-la parece apenas repetir um lugar comum. Vencemos a etapa em que o racismo teorizava um código penal para brancos e outro para negros.
Mas a realidade mostra como existe ainda um grande caminho a trilhar. A lei não é igual para todos. Ela afirma que os portadores de diploma universitário têm direito à prisão especial.
E cria uma dessas situações que talvez só possa se resolver numa peça de ficção. Nas cadeias do Rio, em condições tão distintas, os cariocas que Sérgio Cabral arruinou e o novo rico que a corrupção alimentou.
Na realidade concreta do cotidiano, é um conflito insolúvel. A lei vale para todos, contudo, entretanto,você sabe como é, estamos no Brasil, um país que, definitivamente, não tolera roubo de chicletes. Como dizem os defensores do estado de direito, vivemos o perigo de um estado policial. Hoje o chiclete, amanhã um quilo de açúcar, daqui a pouco os homens podem nos levar pelo simples desvio de um milhão de dólares.
No tempo da corrupção, éramos felizes e não sabíamos. Ninguém tinha feito delação premiada. Era possível comprar eleições em nove países do continente e, sobretudo, comprar uma Olimpíada. O complexo de vira-lata foi jogado no lixo; do pingue-pongue ao polo aquático, gritávamos: Brasil, com muito orgulho e muito amor.
Aí, chegou a polícia.
Na semana passada nosso barco encalhou perto da Baía dos Pinheiros, no litoral sul do Paraná. A maré baixou rápido e ficamos mais ou menos perdidos: só tínhamos as coordenadas e um rádio. Não havia o que fazer, exceto esperar a maré subir. Alguém me provocou: nosso barco está encalhado como o país.
Nessas horas de espera a gente alonga a conversa. Disse que de uma certa forma só voltaríamos a flutuar quando viessem as eleições de 2018. Até lá estaremos encalhados de uma forma diferente do pequeno barco colado na lama do fundo do mar. Haveria muita turbulência e, como estamos no final de uma grande investigação, muitas situações repetidas.
A de Temer, por exemplo, afirmando que não há provas, dizendo-se vítima de uma perseguição. Quem não ouviu essa fala em outros atores da grande série político-policial?
Embora às vezes a gente se sinta perdido na complexidade da crise brasileira, é possível achar um rumo. Ele passará pela sociedade e pelo Congresso. Vamos entrar num período eleitoral, e a sociedade costuma ter mais peso nessas épocas. O Congresso torna-se mais sensível às pressões populares. De memória, lembro-me apenas de uma grande exceção: a derrota na emenda Dante de Oliveira.
Enquanto o barco não sai do lugar, movido pelos ventos da legitimidade, há muito o que fazer na espera. Num barco, temos de distribuir as bananas, agasalhar a garganta do sudeste frio que sopra no litoral. Num país é preciso saber o que se quer enquanto estamos à espera de voltar a navegar. Fora Temer, ou fica Temer.
A Câmara terá que decidir isto. Mas não o fará sozinha. Se a pressão social a levar a aceitar a denúncia contra Temer, é o fim para ele. Só restará, depois de visitar a União Soviética, passar umas férias no Império Austro-Húngaro.
Começaria aí uma nova etapa, a escolha do novo presidente. É preciso algumas precauções básicas, pois não é possível derrubar presidentes com tanta frequência.
Entregue a si próprio, o Congresso tende a escolher alguém que o proteja da Lava-Jato. Mas não existe mais possibilidade de tomar as decisões nas madrugadas. Uma vigilância social pode conter os passos do escolhido para a transição.
O que se espera de um presidente de país encalhado é principalmente tocar a administração. Quando a maré subir, com eleitos no poder, tomam-se as grandes decisões.
Alguém me lembra que isso é não é uma situação sonhada. Mas a que a realidade nos coloca. Mesmo as eleições de 2018, embora tragam mais legitimidade aos eleitos, não devem ser vistas na categoria de sonho, mas sim de uma oportunidade, depois de tudo o que pessoas viram e ouviram sobre o sistema político partidário.
Na rua ouvem-se muito os nomes de Lula e Bolsonaro. Potencialmente pode surgir uma força de equilíbrio que suplante as duas. Não creio que aconteça o mesmo que aconteceu na França, onde houve uma ampla renovação, da presidência ao Congresso.
Mas alguma coisa vai acontecer. Enquanto a maré não sobe, há muito o que fazer no barco encalhado. É preciso que o essencial funcione.
No momento em que escrevo ouço os helicópteros da PM sobrevoando o morro. Uma dezena de tiroteios por dia, uma onda de roubos de carga, imagens de crianças deitadas no chão da escola enquanto os tiros ecoam.
Temer chegou a anunciar um plano de segurança para o Rio. Era pura agenda positiva, esse tipo de ação que fazem quando a barra está muito pesada e é preciso mudar de assunto. A dimensão da crise no cotidiano, a existência de 14 milhões de desempregados, esse pano de fundo inquietante torna a tarefa mais difícil. Quando governantes já caídos se apegam ao poder, na verdade colocam seu destino acima do destino nacional. Os reflexos na economia são sempre negativos.
Encalhamos um pouco mais.
A compreensão do momento vai exigir da sociedade evitar que o barco encalhado torne-se um barco naufragado. Será preciso um amplo entendimento entre todos que reconhecem a gravidade da crise, para que cheguemos em condições razoáveis em 2018.
Esta semana faltaram passaportes na Polícia Federal. É um sintoma. Se não houver o mínimo de energia na administração, daqui a pouco não faltarão apenas passaportes mas as próprias saídas.
Não é nada agradável se desfazer de dois presidentes num curto espaço de tempo. Mas o roteiro, de uma certa forma, estava escrito. Retirado o PT do governo, restaram em seu lugar os companheiros de uma viagem suja pelos cofres públicos brasileiros.
A investigação chegou a eles e à própria oposição. Não importa qual o desfecho jurídico desse imenso esforço, ele serviu para desvendar para a sociedade um gigantesco esquema de corrupção e um decadente sistema político partidário.
Daí pra frente a bola está com a sociedade.
O naufrágio é a perda do horizonte. Estamos todos em busca do horizonte. O período que se abre com a denúncia contra Temer tende a ser bastante confuso. Mas é, de certa forma, um passo previsível na trajetória da crise em que nos metemos.
Procuro alguns elementos na conjuntura que nos possam ajudar a navegar na neblina. Os barcos dispõem de sensores precisos. Não temos instrumentos científicos, apenas algumas intuições. Nossa neblina é mais densa que a simples condensação de água evaporada.
No entanto, algo se move e duas pequenas luzes parecem tremular ao longe. Uma delas tranquiliza: a corrupção não acabou, mas dificilmente terá, nos próximos meses, a mesma intensidade e ousadia do passado. O risco ficou maior: políticos e empresários não ignoram esse fator. A outra pequena luz é apenas uma referência. Ela indica que todas as saídas de curto prazo passam pelo Congresso. Aceitar ou não a denúncia contra Temer, eleger seu substituto ou mesmo alterar a Constituição, tudo passará por ali.
À medida que nos aproximamos do ano eleitoral, cresce o poder da sociedade sobre o Congresso. Pelo menos tem sido assim: com voto aberto formam-se maiorias que o segredo sufoca.
É verdade que esse Congresso abriu um imenso abismo entre ele e a sociedade. Mesmo assim, o instinto de sobrevivência costuma reaparecer nessa época. Não creio que a sociedade vá moldar o caminho em todos os seus detalhes, mas tem condições de escolher as linhas gerais, na medida em que as escolhas sejam postas.
Será difícil a cada instante debruçar-se sobre uma realidade deprimente, vencer a repulsa diante de um jogo político tão baixo. Mas é preciso.
De modo geral, o interesse pela política cresce nas vésperas das eleições.
A denúncia contra Temer encontra nele a mesma resistência que encontram as denúncias contra Lula. Não há provas concretas, dizem ambos, antes de atacar os acusadores, ressaltando que são perseguidos políticos.
Ela pode ser rejeitada ou não pela Câmara dos Deputados. Uma vez que o presidente duvida das provas, questiona sua concretude e conclui pela inépcia da denúncia, o ideal seria levar o tema ao STF.
Naturalmente, qualquer pessoa tem ideia do que é uma prova. Mas ultimamente essa palavra tem sido tão questionada que, ao contrário de outros povos, os brasileiros terão um grau superior de conhecimento sobre prova. Num futuro próximo talvez todos nós tenhamos uma ideia de prova, assim como temos uma escalação ideal para a seleção brasileira.
Para alguns, não há provas de que a mala com R$ 500 mil levada pelo deputado Rocha Loures tenha relação com Temer. Há apenas uma conversa entre o presidente e Joesley Batista, na qual Temer indica Loures como seu interlocutor de confiança.
Não há imagens de Rocha Loures entregando o dinheiro a Temer. Não há certidões oficiais que liguem Lula aos imóveis que a Justiça lhe atribui.
Os defensores mais ardorosos sempre poderão perguntar: onde está a imagem de Temer no táxi, recebendo a mala com que Rocha Loures saiu correndo da pizzaria? Onde está o registro de posse de Lula?
Uma das razões por que a denúncia contra Temer deveria ser aceita pela Câmara é a possibilidade de o tema ser discutido pelo Supremo, onde cada um dos juízes pelo menos já discutiu centenas de vezes o que é uma prova e os limites de sua validade. Mas mesmo no caso de a questão subir para uma decisão do STF, a sociedade está sempre sujeita, como no caso do TSE, a um conflito típico da fábula O Lobo e o Cordeiro.
A suposição é de que gastarão horas e latim para definir o que é um prova, qual a superioridade de uma prova sobre outra, antes de apresentarem o seu veredicto. Ao cabo dessa discussão podem concluir que existem provas e que são abundantes, mas devem ser ignoradas, em nome da estabilidade do País.
Creio que a sociedade esteja acompanhando tudo isso. E o fato de não se ter manifestado com ênfase se deva à própria confusão do quadro político.
O que seria eficaz nessas circunstâncias? O movimento “fora Temer”, inspirado pela esquerda, tem uma visão clara de combater as reformas. Até mesmo a reforma trabalhista, que contempla as transformações do capitalismo e uma nova correlação de forças.
Os trabalhadores reais que se viram num mundo precário não contam tanto como os sindicalizados, os que trabalham com relógio de ponto, numa disciplina fabril. Trabalhadores, para a esquerda clássica, são os que alimentam os cofres dos sindicatos com os impostos e povoam a ideia de uma classe operária dos livros marxistas do século 20.
À precarização do trabalho a esquerda responde com uma aspiração saudosista de voltarmos todos à segurança do passado, algo desejável, mas distante da vida real de quem se vira para sobreviver num mercado em mutação. Essa reforma seria importante no momento.
A da Previdência é necessária, no entanto, mais complicada. Precisaria de ter um foco no serviço público, que tem grande peso nos gastos e na cobrança da dívida das grandes empresas.
Isso só se consegue com apoio popular. As corporações têm muita capacidade de mobilização e as grandes empresas, poderosos defensores. Daí a expectativa de uma reforma da Previdência a partir da legitimidade do novo governo.
Apesar de toda a confusão, a sociedade não pode observar o que se passa como se tivesse um satélite explorando Jupiter. A crise é real, sobretudo para quem vive no Rio, onde há uma dezena de tiroteios por dia e um roubo de carga por hora.
Não se trata apenas do fracasso de um sistema político-partidário. Sem interferência da sociedade ele acabará arruinando o País por décadas.
O que fazer nessa confusão, o que escolher como prioridade para evitar o pior? Já observamos muito o caos. Talvez seja hora de atenuá-lo.
Sempre que ligo a tevê no noticiário político, o PSDB está deixando o governo ou decidindo ficar com ele. O partido não conhece aquela teoria da dissonância cognitiva. Ela afirma que, uma vez feita uma escolha, a tendência é reforçá-la com racionalizações. Se escolhemos rosas brancas no lugar das amarelas, tendemos a ressaltar a beleza das brancas e a enfatizar os defeitos das amarelas. O PSDB ou está saindo ou ficando. Se decide ficar, faz precisamente o contrário do que acontece na dissonância cognitiva: começa a refletir sobre as vantagens de sair. No momento em que toma a decisão do desembarque, certamente vai falar muito das vantagens de ficar no governo. Enfim, parece ter uma permanente incapacidade de tomar decisões e seguir com elas.
O drama do PSDB se acentuou com as denúncias contra Aécio Neves. Sua tendência quase genética a subir no muro torna-se mais compulsiva no momento em que tem de escolher entre a Lava-Jato e o sistema político em colapso.
O interessante é observar como a existência das investigações mexe com a sorte dos partidos. O PT, por exemplo, torce para que Aécio Neves não seja preso, pois isso destruiria o argumento de que o partido é, seletivamente, perseguido. A prisão de Aécio pode tornar mais fácil a de Lula. Ambos olham com esperança para Temer, não porque o admirem e sim porque é o único com instrumentos potencialmente capazes de salvar todo mundo.
Escolha de Procurador Geral, mudanças na direção da PF – o sonho de consumo das estruturas partidárias cai nas mãos de Temer, por sua vez, preocupado com sua própria situação, sobretudo com o avanço das delações premiadas.
Janot deixa o cargo em setembro. Fala-se em corrida de delações. Ao mesmo tempo, fala-se num acordo para fixar a diferença entre receber dinheiro pelo caixa 2 sem oferecer nada em troca, ou receber em troca de favores oficiais. Quando setembro chegar, talvez termine o primeiro ato. O PSDB vai hesitar muitas vezes, os adversários políticos continuarão fingindo que não estão umbilicalmente ligados no barco que naufraga.
As raposas políticas trabalham para que Temer escolha um substituto amigo para Janot. É preciso ver como isto vai se passar na instituição, se ela se rende com sem luta, ou resiste ao lado da sociedade. Diz a imprensa que a candidata Raquel Dodge tem apoio de Sarney, Renan e Moreira Franco. Se a eleição dependesse do voto popular, esse apoio seria um abraço mortal.
Tudo é possível num país como o nosso. Surreal mas não o bastante para apagar de nossa consciência o gigantesco processo de corrupção que arruinou o país.
Terça-feira acordei em Curitiba e olhei pela janela do hotel: manhã fria, cinzenta e chuvosa. Pensei nos presos que estão por aqui. O inverno será duro para eles. E, certamente, alguns outros virão para cá.
Mas ainda assim, creio que uma fase esteja acabando. Ela não resolve nada sozinha. Mas abre a possibilidade do país enterrar o sistema politico partidário, buscar algo novo, ainda que questionável, como fizeram os franceses, por exemplo.
O esforço de Sarney, Renan, Moreira e outras raposas do PMDB para deter o curso das mudanças é patético.
Pessoalmente não acredito que uma procuradora de alto nível iria se prestar ao papel histórico de se tornar cúmplice da quadrilha que mantém o país oficial na lata do lixo.
Quando setembro chegar, com o ritmo intenso dos acontecimentos, o perigo de um retrocesso talvez já não esteja no ar. Qualquer substituto, minimamente decente, terá de concluir o trabalho já feito. Muitos fatos ainda devem ser desvendados. Algumas delações devem ajudar. Não creio que a de Eduardo Cunha possa ser uma delas. Cada vez que se fala em sua provável delação, é possível que ele enriqueça mais, vendendo o silêncio, inclusive para inocentes.
Mas a carta de Cunha revela uma reunião entre ele, Lula e Joesley que o dono da Friboi não mencionou sua delação premiada. Isso reforça a suspeita de que Joesley esteja escondendo jogo.
Semanas favoráveis, semanas negativas, semanas no muro, tempo vai se passando, as ruínas do velho sistema político partidário se acumulam. No entanto, o debate sobre a renovação ainda não ocupa o espaço merecido.
Com os dados que temos, é possível que as instituições que sobrevivem realizando seu trabalho e a sociedade que as apoia saiam vitoriosas dessa luta.
De nada adiantará essa vitória se não houver uma alternativa de mudança. Nem todos os bandidos serão presos e a força da inércia pode trazê-los de novo ao topo da cadeia alimentar. Eles comem, anualmente, cerca de dois por cento do PIB.
Por que mantê-los, sobretudo agora que estão se desintegrando? O preço do silêncio e da indiferença pode nos levar a perder uma nova chance de tirar o Brasil do buraco.
Plenário do Senado Federal vazio após divulgação da delação da JBS que atingiram
diretamente o presidente Michel Temer
No terceiro ano da Lava-Jato, um assessor do presidente é filmado correndo com uma mala preta. No interior da mala, R$ 500 mil de uma pizzaria. Antigamente, tudo acabava em pizza. Aqui começou numa pizzaria chamada Camelo. Depois da delação da JBS, Temer entrou em guerra com a Lava-Jato. Os métodos são os mesmos, politizar a denúncia, investir contra juízes e investigadores. Os detalhes da denúncia da JBS são conhecidos, foram repetidos ad nauseum na televisão. A iniciativa de Temer ao partir para o confronto marca mais um capítulo de uma resistência histórica à Lava-Jato.
Nas gravações divulgadas, Lula foi o primeiro a articular uma reação, criticando os procuradores, confrontando Sérgio Moro, politizando ao máximo a luta ao que chama de República de Curitiba. Lula tentou articular uma reação. Ele percebeu que todo o sistema politico partidário poderia ruir. Não conseguiu avançar. Havia a possibilidade do impeachment, e o tema da luta contra a Lava-Jato caiu para segundo plano.
Num outro compartimento, as gravações de Sérgio Machado mostram a cúpula do PMDB tramando para deter as investigações. Nas intervenções de Romero Jucá fica claro que a expectativa era deter a sangria. Mas ao mesmo tempo era preciso derrubar o PT. Possivelmente, julgavam-se mais capazes, uma vez no poder, de realizar o sonho de preservação do sistema.
As intervenções de Aécio Neves, presidente do PSDB, são mais ambíguas. Aécio não assumia publicamente que era contra a Lava-Jato. No entanto, articulava leis para neutralizá-la, seja pela anistia ao caixa dois ou pela Lei de Abuso de Autoridade. No terceiro ano da Lava-Jato, Aécio é gravado tratando de dinheiro com Joesley Batista, um empresário, por boas razões, investigado em várias frentes.
A resistência do velho sistema foi se esfacelando até encontrar, agora em Temer, o último general, com uma tropa de veteranos da batalha de Eduardo Cunha, como o deputado José Carlos Marin. É um presidente impopular que se escora apenas na cativante palavra estabilidade. A mesma que Gilmar Mendes utiliza ao absolver a chapa Dilma-Temer diante de provas que o relator Herman Benjamin classificou de oceânicas.
Que diabo de estabilidade é essa? O Tribunal Superior Eleitoral, num espetáculo caro aos cofres públicos, perdeu toda a credibilidade. Mas mesmo ali, julgando um fato passado, a Lava-Jato estava em jogo. Não só porque desprezaram provas da Odebrecht.
O ministro Napoleão Nunes mostrou-se um bravo soldado do sistema em agonia. Referindo-se aos seus delatores, falou na ira do profeta passando a mão pelo pescoço, como se fosse decapitá-los. Num mesmo espetáculo, soterram provas contundentes, e um deles se comporta, simbolicamente, como se fosse um terrorista do Estado Islâmico.
Nada mais instável do que abalar a confiança na Justiça. As reformas necessárias, os 14 milhões de desempregados são uma realidade inescapável. Mas a estabilidade que o núcleo do governo está buscando é uma proteção contra a Lava-Jato. Oito ministros são investigados. O chamado núcleo duro, Moreira Franco e Padilha se agarram ao foro privilegiado.
Olhando o futuro próximo, não é a estabilidade que vejo, e sim turbulência. Um presidente desmoralizado pelos fatos policiais vai buscar todas as maneiras de se agarrar ao poder. Quando tiver de hesitar entre a estabilidade fiscal e a do seu cargo, certamente lançará mão de pacotes de bondades.
Mesmo um presidente indireto teria de seguir a sina de Lula, Renan, Jucá, Aécio e do próprio Temer. Uma das condições para que o Congresso escolha alguém é a promessa de proteção contra a Lava-Jato. Tarefa inglória. Todos falharam até agora. Por que um presidente nascido de uma escolha indireta teria êxito?
O seu trabalho seria desenvolvido num período eleitoral. A experiência mostra que nesses períodos a sociedade tem um peso maior sobre as decisões do Congresso.
Isso completa a visão de que não há estabilidade à vista, mas uma rota de turbulência. A escolha portanto é voar para frente ou para trás. Desligar ou não os aparelhos do velho e agonizante sistema politico partidário, ancorado na corrupção.
A ausência das manifestações de rua não significa que a sociedade perdeu o interesse. Pelo contrário, o impacto de espetáculos como o do TSE tem um longo alcance. É muito provável que, num momento em que achar necessário, vá comparecer com a célebre voz da rua. Se tudo o que aconteceu passar em branco, corremos o risco de nos transformar numa nação de zumbis. Com a exceção de praxe: os índios isolados da Amazônia.
O Brasil não é para principiantes. Tantas vezes ouvimos essa frase que se tornou lugar-comum. A fase de combate à corrupção iniciada há três anos pela Lava Jato pode levar-nos a conclusões maniqueístas, do tipo bem contra o mal, republicanos contra patrimonialistas.
Olhando de perto, a frente que se coloca contra o trabalho da Lava Jato é muito mais ampla do que o grupo dos grandes partidos que articulam para destruí-la, no governo e no Congresso.
Líder entre os juízes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que absolveram a chapa Dilma-Temer, apesar das provas, Gilmar Mendes fixou-se num argumento importante: o da estabilidade. Quem a rejeita, num país com 14 milhões de desempregados? O argumento de estabilidade deveria sempre estar sobre a mesa.
No entanto, conforme mostrou Bolívar Lamounier, em intervenção recente, um julgamento visto por todo o País no qual se enterram as provas é um fator de instabilidade. Cava um novo fosso entre a sociedade e as instituições, revelando uma Justiça Eleitoral, pouco conhecida até então, como um artefato de outra galáxia.
Em outra posição dentro da grande frente adversária estão os responsáveis, jornalistas próximos ao Planalto e o próprio PSDB, que saltou para a enganadora maciez dos cargos no governo.
Interessante classificar os que pedem a queda de Temer como irresponsáveis. Já que estamos usando a palavra, é bom lembrar que não somos presidentes nem recebemos um empresário investigado à noite, sem anotação na agenda, usando senhas no portão de entrada.
Não nos parece responsável um presidente que mantém aquele tipo de diálogo, tarde da noite, com o dono da Friboi. Tampouco parece responsável designar como interlocutor do empresário Joesley Batista um assessor especial que, horas depois, é filmado carregando a mala com R$ 500 mil.
Para ficar no universo mínimo de uma só palavra, a irresponsabilidade decisiva foi de Temer. Supor que três anos depois da Lava Jato não só tudo terminaria em pizza, como o dinheiro da propina seria pago diretamente na Pizzaria Camelo.
Foi Temer sozinho que arruinou suas chances de conduzir as reformas e jogou para fora da pinguela uma grande parte da sociedade, já constrangida com ela, mas vendo-a como a única saída momentânea. A maioria tem o direito de rejeitar um presidente que se envolve em práticas tão sospechosas. De achar que ele deva ser investigado, mas que os dados já expostos o desqualificam para o cargo.
Neste instante, a pergunta dos que defendem a instabilidade: se Temer cair, não pode ser pior, o caos não tomaria conta? A hipótese das diretas é bom tema para uma pajelança, mas não é uma proposta viável, na medida em que sua aprovação depende do Congresso.
Não tenho ilusões sobre um presidente eleito pelo atual Parlamento. Também ele seria escolhido com base numa promessa de neutralizar a Lava Jato. Independentemente de seu perfil, ele terá, de alguma forma, de comandar a frente contra as investigações.
Lula cumpriu o seu papel, a cúpula do PMDB e o presidente do PSDB também o cumpriram. Nesse particular, até o momento foram derrotados.
Temer está em guerra aberta contra a Lava Jato. Usa a mesma tática de Lula contra Moro. Agora o general a abater nas hostes adversárias é o ministro Edson Fachin. Esta semana surgiu a notícia de que Temer teria usado a Abin para investigar a vida de Fachin, descobrindo seus pontos fracos. Atribui-se a notícia a um assessor de Temer. Se isso foi mesmo assim, fico em dúvida se ele queria atingir seu chefe ou deixar no ar uma suspeita sobre Fachin.
Na Câmara, um dos veteranos da batalha Eduardo Cunha, o deputado José Carlos Marin, tornou-se vice-líder do governo. E disse que é perfeitamente legal a Abin investigar um ministro do STF.
Marin e outros veteranos da batalha de Cunha articulam uma CPI da JBS e o objetivo principal é levar Fachin para depor. Fachin é o Moro de Temer, até que Temer caia do governo nos braços do próprio Moro.
Estranha estabilidade a que nos oferecem os defensores da presença de Temer. Nos tribunais as provas não valem. Durante as investigações também pouco importam: em vez de se defenderem, os acusados passam a atacar os investigadores.
A máquina do Estado volta-se agora contra as instituições que realmente estão trabalhando com seriedade, desvelando o esquema continental de corrupção. Temer assumiu a mesma tática de Lula. E sem nenhuma combinação prévia se prepara para gastar dinheiro com um pacote de bondades que o tire do isolamento de hoje. Nem os próprios defensores da estabilidade econômica pensavam num desdobramento como esse.
Quando se desenha uma estabilidade com um presidente na corda bamba, as pretensões, mesmo legítimas, vão esbarrar a cada instante na sua própria negação. Ao invés do termo estabilidade, para conservar o que já existe, prefiro uma expressão para mudar o que está aí: equilíbrio dinâmico.
Se Temer incorreu em crime, ele precisa sair. Um novo presidente, eleito pelo Congresso, fará parte do mesmo bloco contrário ao da sociedade que apoia a Lava Jato. Mas como seria o último a tentar a batalha final, talvez tivesse algum cuidado – nessa guerra já caíram alguns dos principais expoentes da política brasileira. Num ano eleitoral existe uma chance de a sociedade controlar um pouco mais o Parlamento e o presidente escolhido por ele.
Não é um futuro dos sonhos. É um caminho difícil no rumo das mudanças, mas é o que a Constituição nos oferece. Teremos muito ainda que suportar. Mas será um fardo menor que enterro de provas nos tribunais e guerra contra investigações que podem destruir o gigantesco esquema de corrupção.
Por enquanto, vamos assistir à guerra de Temer contra a Lava Jato. Apertem, pois, os cintos: o que chamam de estabilidade nós chamamos de turbulência.
Na Avenida Paulista, duas manifestantes tiram “selfie” durante um dos protestos organizados pelos movimentos
“Vem Pra Rua” e MBL (Movimento Brasil Livre), que aconteceram neste domingo pelo Brasil
O que será de nós? É uma pergunta que ouço com frequência nas ruas, feiras e bares. Respondo com um discreto otimismo. Ninguém exige precisão na resposta, pois todos sabem quão nebuloso é o momento… Mas o que vejo na face e nos olhos das pessoas é ansiedade. Não tenho condições de estudar o assunto mais amplamente. Creio que outros o farão: qual o impacto psicológico de anos de notícias negativas na vida de um país?
A decomposição do sistema político eleitoral é uma novela longa e arrastada. Um roteirista de cinema já teria acabado com ela para não aborrecer os espectadores. Ainda que fosse uma série, do tipo “House of cards”, ele certamente estaria pensando em férias para escrever a nova temporada.
O ritmo dos acontecimentos no Brasil depende dos trâmites da Justiça. Além disso, as evidentes mentiras se arrastam. Quem acompanha fica irritado, sabe que não é bem aquilo, mas o processo legal não pode ser concluído como uma novela.
Minha experiência pessoal é a de que o trabalho em campo me diverte e que os momentos de lazer, diante do noticiário, trazem mais ansiedade. Se é assim com todos, imagino como estão os que não perdem, por interesse ou dever de ofício, um simples lance do psicodrama político-policial.
A experiência histórica talvez possa nos confortar. Isaac Deutscher, na célebre biografia de Trótski, oferece uma boa pista. Ele afirma que certas forças políticas tomam decisões estúpidas, não porque sejam necessariamente pouco inteligentes, mas sim porque sua margem de manobra torna-se muito estreita na crise.
Isso aconteceu com Dilma e acontece agora com Temer. Basta analisar a sucessão de erros que seus movimentos defensivos provocam para dizer que, nessas circunstâncias, o maior adversário de Temer é sua própria cabeça.
Temer substituiu o ministro da Justiça e esqueceu de comunicar ao que saía, tal a pressa em conter o avanço da PF. Demitido sem honras, o ministro voltou à sua cadeira no Parlamento e desalojou Rodrigo Rocha Loures, o homem da mala de Temer. Resultado: Temer não conseguirá controlar a PF, e um dos seus cúmplices está preso, sob o risco de delação premiada.
E como se não bastassem tantas saídas estúpidas, Temer desmentiu a notícia de que viajou num avião de Joesley Batista para, logo em seguida, admitir que o fez sem, contudo, saber quem era o dono do avião ou quem pagava pela viagem. Sabemos que é mentira, inclusive Temer. Nesse momento, já não se preocupa mais com credibilidade, apenas a se agarrar ao cargo.
O julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE foi mais um momento em que fatos exasperam e provocam enjoo de estômago nos espectadores. O ministro Herman Benjamin fez um excelente trabalho, mas desde o início o resultado final do julgamento já estava definido.
A Odebrecht constava da petição inicial, Herman Benjamin realizou audiências na presença de todos, mas os juízes pró-Temer consideram que os dados da Odebrecht deveriam ser retirados do processo. Ambos argumentos, de defesa e acusação, podem ser desenvolvidos ad nauseam, inclusive com citações de juristas, professores acadêmicos e o diabo a quatro.
Herman Benjamin apenas cumpriu seu trabalho, foi atrás da verdade, respeitando a petição inicial que se referia à Odebrecht várias vezes. O que aconteceu depois, com as delações, foram novas evidências perfeitamente articuladas com as denúncias.
Ao excluir as evidências da Odebrecht, os ministros não negam sua realidade, apenas acham que chegaram tarde demais. Fora dos prazos.
O julgamento nos ajuda a compreender que não estamos diante de um fenômeno linear no Brasil, do tipo todos contra a corrupção. Na verdade, existe muita gente do lado de lá. Em, primeiro lugar os próprios corruptos, que sonham com a impunidade.
Todas as maiores forças políticas são contra a Lava-Jato. Lula tentou bombardeá-la, e ouvimos suas lamúrias, nos grampos da PF, sobre a passividade do STF. O PMDB tentou, e as gravações colhidas na delação premiada de Sérgio Machado indicam que a cúpula do partido queria deter a Lava-Jato. Aécio Neves, na época presidente do PSDB, também foi descoberto, em grampos, articulando anistia ao caixa dois e leis que inibem juízes e promotores.
Em torno do PT existe um grande número de militantes que acreditam que a Lava-Jato é apenas um processo de perseguição a Lula e seus líderes. Admitir a verdade obrigaria a um exame muito profundo da própria situação, assim como foram as denúncias dos crimes de Stálin. Para não ameaçar o edifício ideológico é melhor ignorar suas mazelas.
Quando o “Casseta & Planeta” lançou a ideia do conglomerado de empresas Organizações Tabajara, não tinha como objetivo lançar o desenho do futuro do Brasil. Muito menos, o patriarca da OT, Gilvan Saturnino Tabajara, ao aportar no Brasil trazendo na bagagem apenas um produto, o Supositório de Magnésia Bisurada, não tinha a mínima ideia de como seu império iria crescer, faturando bilhões e abarcando 27 empresas.
O “Casseta & Planeta” se desfez, e das Organizações Tabajara não resta mais nada de pé, nem o Salsichão Brasil, uma das joias do império de Gilvan. Sobrou apenas um nome próximo de Gilvan, Gilmar, Gilmar Mendes, para lembrar a epopeia do criador do Supositório de Magnésia Bisurada, ao afirmar que o Brasil se parece com as Organizaçõs Tabajara.
A ideia dos criadores do “Casseta & Planeta” era apresentar sob o rótulo Tabajara empresas toscas, precárias, ridículas, uma crítica indireta ao que não funcionava bem no país. Surgiu até o Tabajara Futebol Clube, que, na sua trajetória de derrotas, jamais conseguiu superar a realidade do Íbis de Pernambuco, o pior time do mundo.
Ao comparar o Brasil com as Organizações Tabajara, Gilmar Mendes se esqueceu de um dado essencial do momento: o país está sendo passado a limpo e, pela primeira vez na sua história, vivemos algo parecido com uma sociedade na qual a lei vale para todos.
Inegável que vivemos numa crise. Mas supor que essa crise está nos jogando para trás é obra de um personal enganator, para usar linguagem comum aos memorandos das Organizações Tabajara.
Gilmar recentemente foi grampeado combinando com Aécio Neves como iria cabalar votos de senadores para a lei contra o abuso de autoridade, destinada a inibir a Lava-Jato e proteger os políticos. Um ministro do STF que articula nos bastidores do Congresso votos para uma lei escapa completamente de suas funções. É um ministro Tabajara.
Em outro momento, numa situação anterior à Lava-Jato, Gilmar foi grampeado consolando o ex-governador de Mato Grosso, Silval Barbosa, famoso por conceder milionárias isenções fiscais, inclusive à JBS. Gilmar, no áudio, considerava absurda a incursão da PF para apreender documentos na casa de Silval.
Mais recentemente, depois do célebre grampo de Joesley Batista, Gilmar admitiu que se encontrou com o empresário da Friboi, mas apenas para discutir questões ligadas ao comércio de gado, pois sua família vendia carne para os irmãos Batista.
Não seria um pouco Tabajara um ministro do Supremo tratar de negócios de gado com um empresário investigado. Pode-se dizer que Joesley ainda não era investigado. Mas todas as pessoas bem informadas sabiam muito bem que se ele não era ainda investigado, fatalmente o seria, pois seus negócios cresciam milagrosamente.
Na conglomerado de Gilvan Saturnino Tabajara, se me lembro bem, não houve assaltos ao dinheiro público, embora, certamente, tenha havido uma série de atos politicamente incorretos, sem os quais o humor não prospera.
Falar mal do Brasil é comum. É uma prática antiga que usamos sempre que algo nos incomoda. O momento é difícil, uma razão a mais para a multiplicação das críticas. Mas é preciso acentuar que, pela primeira vez na história, surgiu uma oportunidade consequente de desmontar o gigantesco esquema de corrupção formado por partidos políticos e empresas ambiciosas. É um momento de valor inestimável, que abre inúmeras possibilidades para que o Brasil entre no rol dos países avançados, nos quais a corrupção existe em escala menor; em outras palavras, ela não é banida totalmente mas é administrável.
Isso significa desde já, com os riscos maiores para os corruptos, que grande parte dos recursos nacionais podem ser canalizados para os serviços públicos. Em seguida, vai abrir também a possibilidade de um planejamento baseado nas necessidades do povo e nas limitações dos recursos naturais.
Isso já é algo bastante diferente de obras construídas para atender a empreiteiras ou isenções fiscais que, simultaneamente, nos empobrecem e tornam inviáveis alguns aspectos vitais, como, por exemplo, a mobilidade urbana.
Se Bussunda estivesse vivo, creio que interpelaria o ministro: fala sério, Gilmar. Livrar o país da promiscuidade entre empresas e governo, colocar corruptos na cadeia, conquistar um alto nível de liberdade de imprensa, viver numa sociedade em que as pessoas são mais informadas e compartilham, incessantemente, suas ideias, tudo isso é indicação de um novo país surgindo.
O que parece Tabajara para alguns é, para outros, a desordem natural de um grande movimento renovador.
O Brasil que está acabando nesses anos tumultuados até que poderia vender, maciçamente, no mercado de Brasília, inclusive para o residente Temer, um produto de alta necessidade nesses tempos convulsionados: o olho mágico de caixão, o que daria uma boa ideia do que acontece do lado de fora.
Foz do Iguaçu, Cascavel, Maringá, Londrina. Tenho discutido a crise brasileira em algumas cidades, a propósito do lançamento de um livro. Nessas conversas, a primeira parte é sempre mais fácil. Trata de uma análise dos fatos e erros que nos jogaram nesta crise e secaram as esperanças inspiradas pelo movimento das Diretas-Já. A segunda parte, que trata de uma saída para a crise, é bem mais nebulosa. Repito a imagem de uma navegação na neblina, com todos os perigos que ela implica, inclusive o risco de o barco encalhar.
A Constituição é uma bússola, mas segui-la apenas não supera todos os obstáculos do caminho. Não há nada na Constituição, por exemplo, que impeça a escolha de um idiota para o cargo de presidente. Da mesma maneira, a Constituição não nos protege das tentativas do governo de controlar e bloquear as investigações da Polícia Federal (PF). Falta nela um dispositivo que garanta a autonomia da PF, para protegê-la desses ataques.
Dilma trocou o ministro da Justiça duas vezes. Temer, na mesma situação, utiliza a velha tática. Eles nos colocam numa situação delicada. De modo geral, em situações difíceis somos obrigados a contar com a ajuda de desconhecidos.
As escolhas de Dilma e Temer nos obrigam a espancar desconhecidos. Eles escolhem pessoas que mal conhecemos, com a tarefa de enfrentar e neutralizar a Lava Jato.
De acordo com os grampos, Aécio Neves, por exemplo, conspirando com Temer, queria que o ministro da Justiça escolhesse os delegados para os inquéritos envolvendo políticos. Era uma forma de neutralizar as investigações.
Os delegados da PF já perceberam o que está em jogo. Temer, na mesma operação, designou Osmar Serraglio para o Ministério da Transparência. Houve resistência dos próprios funcionários. Como sair chamuscado da Carne Fraca e assumir um cargo vital no combate à corrupção? Serraglio saltou fora.
Os derradeiros movimentos de presidentes em queda costumam ser patéticos. O medo está implícito em suas decisões: é mais importante sobreviver no cargo do que considerar a gravidade e a urgência dos problemas nacionais.
A Constituição prevê a escolha indireta de um novo presidente até 2018. Mas quem teria força para vencer no Congresso? A tendência é escolher o candidato que mais atenda aos anseios dos políticos, e não da sociedade. O programa desse período-tampão não importa tanto, mas, sim, o que fazer para evitar que a polícia os alcance e, mais ainda, que ela não possa deter os futuros processos de corrupção.
A solução desse impasse, para quem gosta de saídas simples, são as eleições diretas. Outro dia ouvi alguém defender diretas para o período até 2018 e diretas de novo em 2018. Num país com 14 milhões de desempregados, duas eleições nacionais quase seguidas são um remédio com grande chance de matar o paciente.
É difícil o Congresso eleger alguém que se comprometa a apoiar a Lava Jato. Assim como nas manobras presidenciais a tendência é procurar um nome que enfrente a polícia e a Justiça. É compreensível que atuem assim. Os presos querem fugir da cadeia, os investigados querem escapar das suspeitas. Mas é uma reação de desespero.
Os danos políticos sobre o sistema político-partidário são indeléveis. O destino legal de cada investigado leva mais tempo para se definir.
As eleições de 2018 podem se tornar uma hecatombe para todos. Há um caso da eleição de 1973 na Dinamarca, que derrotou os principais partidos e abriu caminho para novas forças. Ficou célebre.
Quando escrevo isto, imediatamente me vem à cabeça: o Brasil não é a Dinamarca. Mas os fatos que o País acompanha desde o governo petista são estarrecedores. Não creio que exista nada parecido no mundo.
Nas ruas ouço muito a expressão “não temos para onde correr”. Mas, quem sabe, essa situação se altera, gente da própria sociedade dá um passo adiante e enfrenta a tarefa? No momento, todos têm medo de se confundir com os políticos. Se conseguirem se distanciar deles, talvez o fardo seja menor.
Uma coisa é certa: presidentes e políticos jogam sempre com a possibilidade de deter investigações, trocar delegados, intimidar procuradores.
Não estão conseguindo. Sua escolha é um equívoco. Não percebem que a luta contra a Justiça piora sua situação política. Supõem que, abafando agora, todos se esquecerão num futuro próximo e o tradicional processo de acusações recíprocas nas eleições acabará funcionando como um escudo.
Por isso a sucessão de Temer será um momento decisivo. O Congresso pode querer utilizá-la para entrar em guerra com a Lava Jato e a maioria da sociedade que apoia as investigações. Nesse caso, a instabilidade apenas prosseguirá e não é totalmente descartável que mais um presidente caia antes de 2018.
Lembro-me dos asilados bolivianos na Europa. Eles voltavam para viver um novo governo na Bolívia, mas não jogavam fora o cartão mensal do metrô europeu. Era sempre possível voltar antes do fim do mês.
O cinismo de grande parte dos políticos, sua insistência em impedir que o Brasil faça justiça a quem o lesou são fatores muito delicados. Eles estão muito próximos de um diagnóstico de internação compulsória. Não só representam um perigo para a sociedade, como sua miopia implica também um perigo para a própria vida, em caso de revolta popular.
Lembro-me de um western em que um mexicano pendurava um americano numa corda, apontava a arma para ele e dizia: “Gringo, vou ter de matá-lo para mostrar que gosto de você”. Aqui, vamos precisar interná-los para proteger sua vida.
Eles não andam na rua, não sentem o pulso das mudanças que acontecem no espírito dos brasileiros. Acham que, desmantelando a PF, contratando bons marqueteiros para contar sua história, tudo recomeçará como antes. São ilusões perigosas, devastadoras.
Numa carta endereçada a Robert Louis Stevenson, o escritor Henry James diz que gostaria que ela fosse um mingau de boas notícias. Infelizmente, não é possível preparar esse prato no Brasil, com notícias tão tristes que nem podemos homenagear e conhecer melhor as vítimas do atentado em Manchester, algo que aconteceu nos principais países do mundo.
Apesar das más notícias, é possível demonstrar que o Brasil está preparado para uma situação melhor se olhar para algumas decisões recentes. Por exemplo: as desordens que aconteceram em Brasília não aconteceram em Curitiba, quando Lula foi depor. E, se acontecessem, seriam rapidamente debeladas, tal o aparato policial e sua articulação com outros setores do governo.
É preciso evitar e combater a barbárie, aceita ainda por uma esquerda que flerta com a violência e não superou o viés autoritário das teorias do século passado. Uma esquerda que não sustenta dois minutos de discussão se for chamada a defender com ideias a destruição de prédios públicos e propriedades particulares, sobretudo os primeiros, que pertencem ao povo que ela supõe representar.
Curitiba foi diferente, dirão alguns. Além do mais, o que estava marcado em Brasília era apenas mais uma das inúmeras manifestações. Ficamos acostumados com manifestações dominicais pacíficas, feitas por gente que trabalha a semana inteira e derrubou o governo Dilma sem quebrar uma janela.
E nos acostumamos também com manifestações marcadas com antecedência de quase um mês, algo que já comentei aqui, reforçando a importância de analisar a conjuntura, sobretudo num país de mudanças tão rápidas.
Uma nova conjuntura foi aberta com a delação dos donos da Friboi. Ela atingiu Temer em cheio e criou uma situação insustentável para ele. O PT finge que não foi delatado também, que o partido não recebeu US$ 150 milhões para as contas das campanhas de Lula e Dilma. Daí sua fuga para a frente, firme na tentativa de fazer com que Lula escape da cadeia, vencendo as eleições presidenciais, se possível ainda neste ano.
Li que a inteligência do governo tinha captado os sinais de possível violência no movimento Ocupa Brasília, convocado no auge das contraditórias respostas de Temer às acusações que pesam contra ele. No entanto, esta antevisão não resultou num esquema mais complexo de prevenção, que poderia ser realizado pela relativamente bem paga polícia de Brasília.
Sempre se pode argumentar que o governo de Brasília é de oposição a Temer e iria ou confraternizar ou fazer vista grossa diante dos excessos dos manifestantes. Mas isso também poderia ser previsto por uma inteligência modesta e deveria ter sido levado em conta na organização do esquema preventivo, que poderia contar com a Força Nacional e a logística do Exército.
Além dos ministérios que simbolizam o governo, o prédio mais importante do Exército, o chamado Forte Apache, está em Brasília. As condições não eram idênticas às de Curitiba. Mas isso faz parte de uma inteligência modesta: adaptar experiências bem-sucedidas a realidades diferentes. A incapacidade de preparar um esquema preventivo praticamente deixa como alternativa o aumento da repressão. É precisamente isso que interessa à esquerda, atrair uma forte repressão, de preferência excessiva.
Isso faz com que a imprensa priorize os excessos da repressão e jogue para um segundo plano os atos de vandalismo que a motivaram. A esquerda não é inteligente, se você der a esse termo uma dimensão estratégica, mas é esperta. Se o governo responde com uma pobre informação e uma tática burra, os antidemocratas nadam de braçada.
Concordo que Temer deve deixar a Presidência. Mas discordo dos métodos e dos objetivos das pessoas que estão na rua para derrubá-lo. Elas querem apenas um escudo para seu líder escapar da polícia. Primeiro você arruina o país com uma irresponsável política populista. Em seguida, você começa a destruir prédios públicos com a esperança de voltar ao poder e prosseguir na rapina.
Isso não acontecerá pelo caminho do voto, em eleições limpas. Mas a fragilidade do governo e sua incapacidade de analisar o momento favorecem as tendências autoritárias e destrutivas da esquerda.
Não há razão para dizer que o Brasil não tem jeito e que a barbárie é um destino inescapável. Nem é preciso olhar para fora em busca de exemplos nos países avançados. Aqui dentro mesmo é possível encontrar as bases para uma política que defenda a civilização da barbárie. Milhões de pessoas nas manifestações dominicais provaram que é possível combater um governo corrupto e incapaz sem verter uma gota de sangue. Curitiba viveu serenamente um momento de tensão, a vida e os bens da cidade foram protegidos com competência.
São essas qualidades que farão a balança pesar a favor da democracia, isolando cada vez mais os setores que não se adaptam a ela. Mas, é claro, serão necessários alguma coisa que você possa chamar de governo e algum presidente que, pelo menos, esteja preocupado com o país e não com as investigações que rondam seu palácio.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 28/05/2017
Estava no meio de um artigo sobre a conversa com Deltan Dallagnol no Teatro do Leblon, a respeito dos livros que publicamos. Mandei o artigo para o espaço. Durante muitos anos trabalhei, no Congresso, para proibir bombas de fragmentação. Elas ficam no terreno, às vezes parecem um brinquedo e, de repente, bum: explodem. Nesse terreno minado, no entanto, a JBS nunca me enganou. Faz alguns anos que a menciono em artigos. Ela recebia muito dinheiro do BNDES. E doava também muito dinheiro para as campanhas políticas. O PT levava a maior parte, mas não era o único.
A Polícia Federal já estava no rastro, investigando suas fontes de renda, BNDES, FGTS, todos esses lugares onde o dinheiro público flui para o bolso dos empresários. Assim como no caso da Odebrecht, as relações com o mundo político eram muito amplas. Elas são suficientes para nos jogar, pelo menos agora, numa rota de incertezas.
Temer foi para o espaço, Aécio foi para o espaço, embora este já estivesse incandescente, como aqueles mísseis da Coreia do Norte no momento do voo. O PT e Lula já sobrevoam o mar do Japão. Tudo isso acontece num momento em que há sinais de uma tímida recuperação econômica. Como navegar nesses mares em que é preciso desmantelar o grande esquema de corrupção e não se pode perder o foco nos 14 milhões de desempregados?
Escrevo de noite, num quarto de hotel, não me sinto capaz de formular todos os passos da saída. Mantenho apenas o que disse no Teatro do Leblon: a história não recomeça do zero, haverá mortos, fraturas expostas, ferimentos leves, algo deve restar para receber a renovação que, acredito, virá em 2018. E até lá? Não creio que se deva inventar nada fora da Constituição. Mas será tudo muito difícil. Mesmo porque, em caso de necessidade, a Constituição pode ser legalmente emendada.
No Teatro do Leblon, ainda no meio da semana, não quis fazer considerações finais. Não há ponto final, dizia. As coisas ainda estão se desenrolando num ritmo alucinante. O sistema político no Brasil entrou em colapso. Isso já era uma realidade para muitos, agora deve se tornar um consenso nacional. A sociedade terá um papel decisivo, pois deve preparar uma renovação e simultaneamente monitorar os ritos fúnebres do velho sistema. A grande questão: que caminho será o menos traumático para uma economia combalida?
No meio dos anos 1980 já existia uma forte discussão a respeito de partidos políticos. Não seriam uma forma de organização condenada? Discutia-se isso também em outros países. Partido ou movimento, o que é melhor para reunir as pessoas?
A discussão na França, creio, deve ter influenciado, anos depois, a eleição de Macron, agora em 2017. Ele estava à frente de um movimento, mas precisará dos partidos para governar. As fórmulas da renovação política trazem inúmeras possibilidades. Talvez seja difícil falar delas com tantos obstáculos a curto prazo no universo político.
No momento em que escrevo há surpresas, eletricidade, sensação. Só há clima talvez para se discutirem as medidas mais imediatas. O processo de redemocratização no Brasil chegou a um impasse. Precisa de um novo fôlego, algo que, guardadas as proporções, traga de novo as esperanças despertadas pelo fim do longo período ditatorial.
Foi um longo processo de degradação. As últimas bombas que ainda estão espalhadas pelo terreno ainda podem explodir. Mas a explosão de cada uma delas deve ser celebrada.
A corrupção, apesar das recusas da esquerda em reconhecer sua importância, tornou-se o grande obstáculo para o crescimento do país. Não vamos nos livrar totalmente dela. Há um longo caminho para fortalecer a estrutura das leis, desenvolver uma luta no campo cultural – onde as transformações são mais lentas – e sinceramente mostrar às pessoas que é razoável que estejam surpresas com tantas revelações escabrosas. Mas um pouco mais de atenção já teria detectado o escândalo na fonte, nas relações da JBS com o BNDES, na sua ampla influência nas eleições. Até que ponto tanta surpresa seria possível num universo não só com um pouco mais de transparência, mas também com menos ingenuidade?
O tom de prosperidade, crescimento, projeção internacional ajudou a JBS a dourar a pílula, mesma fórmula de Cabral para encobrir seus crimes.
Nos dias anteriores ao escândalo da JBS, a presidente do BNDES ainda achava estranhas as notícias de corrupção no banco e anunciava que iria apurar as irregularidades na gestão anterior.
E falamos delas há anos. Se essa gente insiste tanto em nos infantilizar é porque, ao longo desse tempo, a tática se mostrou eficaz.
A vigilância pode nos libertar dela, embora sempre vá existir um grupo numeroso que vê nas denúncias contra seus líderes uma conspiração diabólica. Esses, entregamos a Deus, sua viagem é basicamente religiosa.
Escrevo no avião vindo de Curitiba. Não sei se ganhei ou perdi meu dia, vagando pela cidade numa quarta-feira cinzenta e com uma garoa esporádica. Para mim, Curitiba ia viver uma batalha de Itararé, aquela que não aconteceu, nos anos 30, apesar de alguns choques e escaramuças. É uma cidade fascinante, sobretudo agora que ganhei um belo livro de Rafael Greca, com quem convivi em Brasília. Poucos prefeitos conhecem tão bem a história de sua cidade.
Andei de um lado para outro e trago na lembrança o guardador de automóveis do Parque Birigui. Disseram que iam soltar mil balões verde e amarelos às cinco horas da tarde. Fui ver e não havia nada, por causa do mau tempo. O guardador me consolou dizendo: veja os quero-quero comendo na minha mão. E deu comida aos pássaros.
O essencial do dia, o depoimento de Lula, não me trouxe surpresas. Ainda no fim da tarde, gravei algo dizendo que ele ainda estava sendo interrogado, Moro deveria estar fazendo perguntas e Lula fazendo campanha. Ao sair para o discurso noturno na Praça Santos Andrade, Lula afirmou que seria candidato e que a votação popular iria absolvê-lo.
É o núcleo da história. A suposição de que a popularidade absolve, não importa o que diga a Justiça do país: o número de eleitores define o grau da inocência de um político. Em casos clássicos, como o de Paulo Maluf, as sucessivas eleições não o absolveram, mas trouxeram o conforto da lentidão dos processos no Supremo, uma esperança de impunidade.
Lula não conta com isso. Num dos seus discursos, já afirmou que vai enquadrar a imprensa e insinuou que prenderia os procuradores que hoje o denunciam. Entra aí um pouco da minha análise que previa calma em Curitiba, apesar de toda a sensação de confronto que alguns setores da imprensa esperavam.
Tenho pensado em aviões e estradas, um pouco aos solavancos. Nas longas viagens por terra, cochilamos e a fronteira entre a vigília e o sono constantemente se dissolve. Uma campanha política cujo objetivo é livrar o candidato da polícia pode ter êxito no Brasil de hoje?
A Justiça será tão lenta a ponto de não julgar o caso de Lula, em segunda instância, antes das eleições de 2018? São fatores que não pesam agora porque 2018 está longe. O país vive uma crise de liderança, e quando olhamos para o universo político não vemos nele capacidade de encontrar um caminho.
Mas são problemas que podem ser resolvidos com o tempo. A sociedade mudou, está mais informada, dispõe de instrumentos nunca vistos para compartilhar suas ideias. Talvez essa mudança na sociedade facilite a aparição de novos nomes, gente que ouça, de verdade, o que pedem as ruas e, em casos raros, seja também capaz de, por razões estratégicas, desafiar o senso comum.
No momento, tudo parece difícil e complicado. As últimas decisões no Supremo indicam resistência ao curso da Lava-Jato e despertam a ilusão de que nada vai mudar, o velho esquema de corrupção vencerá de novo. Digo ilusão, porque é impossível dirigir uma sociedade como a brasileira a partir dos velhos métodos. O próprio Temer, que precisa realizar reformas, tem percebido como é difícil conduzi-las diante da desconfiança generalizada.
Fala-se tanto em ódio, ressentimento, mas a quarta-feira em Curitiba foi calma. Houve apenas um incidente na madrugada, um ataque de rojões a um acampamento dos simpatizantes do PT.
O forte esquema policial, a insistente garoa e um número de simpatizantes abaixo do esperado contribuíram para a calma. Mas a cidade, com seu pulsar cotidiano, voltada para o trabalho num dia útil, acabou absorvendo tudo e transformando o anunciado espetáculo num episódio menor. Na verdade, era apenas um interrogatório. Outros virão e, talvez, a vantagem do episódio da semana tenha sido a de desdramatizar, tornar um encontro como o de quarta-feira mais uma etapa do processo penal.
Quando afirmo a viabilidade das mudanças, muitos contestam com as pesquisas. Segundo elas, nada de mais profundo aconteceu. No entanto, as pesquisas têm falhado às vésperas de campanha. Com quase dois anos de antecedência elas tratam de algo mais imprevisível ainda.
É uma estratégia desesperada buscar a eleição para fugir da Justiça, ou para anular suas decisões. O Brasil precisa de perspectivas. Boa parte das pessoas hoje acredita que a capacidade de manipulação política é infinita e que o povo brasileiro será, nos próximos anos, prisoneiro da demagogia. São apostas mais amplas que estão em jogo. Mudar ou não, vencer ou não os populismos de direita e esquerda. Cada um lê o futuro de acordo com suas possibilidades.
O que vi na calma de Curitiba, na sua imersão na vida cotidiana enquanto lhe ofereciam o espetáculo do ano, me deu a esperança de que, no momento certo, o país responderá da mesma maneira. Enganar as pessoas será tão difícil como enganar a Justiça.
Como escreveu Samuel Beckett, não se passa um dia sem que algo seja acrescido ao nosso saber, desde que suportemos as dores. Eu diria, desde que consigamos ver além da cortina de fumaça.
Foi uma semana dura no Rio. A crise na segurança pública é alarmante. Tiroteios, saques, ônibus incendiados, um cenário de guerra. Concordo com os especialistas quando dizem que é preciso ajuda federal. Qualquer tipo de ajuda. Sei das reservas que as Forças Armadas têm em participar diretamente. Mas algo podem fazer. Na área de inteligência, por exemplo. O importante em termos de governo é se antecipar às tragédias anunciadas por esse incessante tiroteio.
Não entendo por que a segurança pública não está no topo da agenda nacional. Existem, é claro, outros problemas de peso, como as reformas ou a Segunda Turma do STJ, que resolveu, por uma escassa maioria, libertar alguns presos da Lava-Jato. Este é um debate difícil, porque quando você contesta uma decisão como leigo, às vezes ouve argumentos pesados: ignorante em leis, autoritário. Os ministros Celso de Mello e Edson Fachin também acham que a libertação dos presos é inoportuna. Seriam ignorantes em leis, como nos querem convencer os adversários da Lava-Jato?
Um pouco de humildade bastaria para reconhecer que é um problema complexo, decidir o momento adequado para soltar os presos. Um bom número deles já está em casa. Uma referência para mim é a lógica das investigações. Perigo à ordem pública, destruição de provas, ocultação do dinheiro roubado, continuidade no crime, como é o caso de José Dirceu, são fatores que pesam quando se avalia um habeas corpus.
Na decisão que manteve Sérgio Cabral na cadeia, o STJ incluiu um outro fator: amenizar a sensação de impunidade que se espalha, arrasando a confiança no país. Essa sensação de impunidade se adensa com as decisões da Segunda Turma, na qual a maioria é formada por Gilmar Mendes, um adversário declarado da Lava-Jato, e dois ministros fiéis ao PT.
Cerca de 40% dos presos no Brasil são provisórios, o goleiro Bruno é um deles. Mas nem todos têm condições de chegar ao Supremo ou a sorte de Eike Batista e seu sócio Flávio Godinho, que aterrissaram, precisamente, na mesa de Gilmar.
A mensagem da Lava-Jato de que a lei vale para todos fica abalada. As pessoas acabam acreditando que nada vai acontecer. Existe o forte argumento de que não importa se a pessoa é poderosa ou não, a lei tem de ser aplicada. Mas quando é aplicada só para a minoria que dispõe de competentes advogados, é preciso ser aplicada com rigor. Foi uma votação apertada, que derrotou dois competentes juristas. Para eles e para milhões de leigos, entre os quais me incluo, foi um erro motivado pela vontade de enquadrar a Lava-Jato.
Isso não significa que ela não possa ser enquadrada por instâncias superiores da Justiça. Uma coisa é corrigir erros para avançar, outra é se lançar contra os procuradores como faz Gilmar Mendes, ironizando uma denúncia como “brincadeira juvenil”. A impressão que Gilmar Mendes dá é a de que quer derrotar a Lava-Jato. Conheço os dois lados da moeda; o ímpeto juvenil e a experiência dos velhos. Aprendi que esses dois fatores podem andar juntos quando há um objetivo comum. E o objetivo deveria ser desmantelar o gigantesco esquema de corrupção que arruinou o país.
Gilmar e os dois ministros fiéis ao PT afirmam que estão cumprindo a lei. Celso de Mello e Edson Fachin veem uma outra maneira de cumprir a lei. O choque entre essas duas concepções não é uma luta contra ignorantes e letrados, autoritários e democratas. É apenas uma escolha diante da qual seremos responsáveis no futuro. Uma escolha entre fortalecer a Lava-Jato, inclusive criticando-a, ou simplesmente engrossar a ampla conspiração para liquidá-la.
Minhas dúvidas sobre a posição de Gilmar Mendes acabaram quando ele sugeriu a anulação das delações da Odebrecht porque houve um vazamento. Naquela altura, com todo o Brasil e parte do continente esperando os dados para conhecer o que houve, a sugestão de Gilmar Mendes trouxe um calafrio. Percebi que não só estava em luta contra os procuradores da Lava-Jato, como queria derrotá-los amplamente, inclusive o seu trabalho.
Não vejo problema em ministros e procuradores discordarem ou mesmo debater em público suas diferenças. As coisas complicam quando a luta entre concepções distintas chega a ponto de ignorar ou mesmo sacrificar um objetivo que deveria ser comum a todo o aparato da Justiça. Ignoro as razões mais profundas da cruzada de Gilmar Mendes contra a Lava-Jato. Na sua formulação, está garantindo o estado de direito. Na prática, não só através de sentenças, frases e sugestões, está tendo uma atitude destrutiva.
O que foi revelado até agora pelas investigações, o dinheiro recuperado, as delações – tudo marcou muito o imaginário brasileiro nos últimos anos. Vai ser difícil derrotar a Lava-Jato. É poeira demais para se esconder embaixo do tapete. No entanto, nesta fase de sua trajetória, encontrou um forte adversário: a turma que vai julgá-la no STF.
Novo cenário, novas aflições.
Em maio, as manhãs no Rio costumam ser lindas e, ao entardecer, em Minas, começam a aparecer crianças vestidas de anjo. Mas é em Curitiba que grande parte da atenção se concentra. O depoimento de Lula diante de Sérgio Moro é tido como um grande momento. Talvez contra a corrente, acredito que nada de essencial será mudado.
Em confronto com as evidências que o ligam ao triplex de Guarujá e o sítio de Atibaia, Lula vai negar e, possivelmente, reafirmar que não há documento oficial que o ligue a essas propriedades. Imagino também que, se houver provocações, Sérgio Moro terá a habilidade e vai contorná-las, seguindo com as perguntas que realmente possam esclarecer.
A ideia de que um processo dessa natureza se resolve com manifestações políticas é mais um equívoco da esquerda. Aliás, apoiado em outro equívoco: o de que uma performance num interrogatório pode ser transformado numa alavanca para a campanha presidencial. Se, por acaso, têm como modelo o famoso “A História me absolverá” de Fidel Castro, independentemente de comparar oratórias, é gritante a disparidade de situações. Uma coisa é ser acusado de tramar contra a ditadura de Fulgêncio Batista, outra é ser acusado de receber propinas por negócios na Petrobras. Lula está numa situação incômoda, tentando revertê-la em seu favor, e apreensivo com a possibilidade de prisão. Algo que, creio, não vai acontecer. As forças de esquerda no Brasil jogam toda a sua sorte num líder carismático e resolvem acompanhá-lo na aventura, pois temem desaparecer sem ele.
Não sou muito de discutir processos, notas frias, assinaturas falsas. Talvez por isso me interesse mais pela experiência vivida, aquilo que meus olhos e ouvidos revelaram. Por exemplo, estou voltando de Porto Velho, onde aprendi um pouco sobre a história da Usina de Santo Antônio, aquela em que a Odebrecht comprou todo mundo: governador, senadores, deputados, centrais sindicais, polícia e índios.
A delação da Odebrecht fala que as centrais sindicais foram lá, a pedido da empresa e pagos por ela, para controlar os motins dos trabalhadores. O que o delator não contou é que a Odebrecht precisava terminar a obra com muita rapidez, pois assim teria um tempo para vender a energia no mercado livre, por um preço três vezes maior. Os trabalhadores foram submetidos a um intenso ritmo de trabalho, e por isso se rebelaram. Não é a maneira mais racional de reagir. Mas era um trabalho intenso no calor insuportável de Rondônia. Eu mesmo, depois de um dia de trabalho levíssimo se comparado com os deles, não me sentia muito capaz de reagir racionalmente. Não antes, pelo menos, de um banho frio.
As duas obras de Rondônia foram a famosa estrada Madeira-Mamoré, com o sacrifício de muitos na selva, e a Usina de Santo Antônio, imposta em ritmo extremamente duro para os trabalhadores.
A História vai registrar que a CUT e a Força Sindical se colocaram a serviço de uma empresa que, ansiosa por sobrelucros, oprimiu milhares de peões. Lula surgiu com aquela frase dos bagres impedindo a construção da usina. Como bom funcionário da Odebrecht, omitiu que não eram os bagres, mas todas as espécies de peixe que se movimentam no Rio Madeira para a reprodução.
O julgamento dos 20 mil trabalhadores, dos atingidos pela barragem, dos moradores da Jaci Paraná quando tomarem conhecimento de tudo isso, certamente vai dispensar a ida ao tabelião para buscar provas. É uma verdade histórica.
Com a insistência na negação suicida e jogando todas as suas fichas no destino de seu líder, se a esquerda sonha de verdade em chegar ao governo e não está apenas fugindo da polícia, é um sonho cinzento. Nas circunstâncias, dificilmente venceria e, se o fizesse, a resistência colocaria a todo instante a tentação totalitária.
Isso não é futuro, é punk. O que pode acontecer com essa insistência no erro é um cenário parecido com o da França, onde, por outros motivos, a esquerda nem chegou ao segundo turno.
Não tenho a pretensão de acertar num futuro tão nebuloso como o nosso. Mas algumas coisas, aprendi. O que fizeram na Usina de Santo Antônio, por dinheiro, foi uma vergonha. Todos os que se intitulam progressistas e embarcam nessa canoa furada do lulapetismo, diante do episódio não têm outra saída: ou engolem ou cospem.
Num artigo escrito há quase dez anos, previ que a experiência petista ia acabar numa delegacia da esquina. O artigo era “Flores para os mortos”.
Talvez por isso, maio em Curitiba me pareça tão familiar como as lindas manhãs do Rio e os anjos subindo ladeira ao entardecer numa cidade histórica de Minas. A maioria da esquerda ainda acredita que nada aconteceu e que vai chegar ao poder. O interessante é que muitos que sabem o que aconteceu consideram possível essa hipótese.
Em maio, costumo delirar.