Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Eliane Cantanhêde terça, 29 de dezembro de 2020

O PINO DA GRANADA - ABERTURA DOS ARQUIVOS HACKEADOS DA LAVA JATO (ELIANE CANTANHÊDE É COMENTARISTA DO ESTADÃO E DA GLOBO NEWS)

 

O pino da granada

O acesso de Lula às mensagens hackeadas da Lava Jato vai explodir no STF e em 2022

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

29 de dezembro de 2020 | 03h00

Ao abrir os arquivos hackeados da Lava Jato para os advogados do ex-presidente Lula, o ministro Ricardo Lewandowski tirou o pino da granada e vem por aí uma explosão política com epicentro no Supremo Tribunal Federal e estilhaços nas eleições presidenciais de 2022.

 

Lewandowski escolheu o momento a dedo, com o Supremo já em chamas

 

Os arquivos têm cerca de 7 TB (terabytes) de memória, o que corresponde a toneladas de papel, mas Lewandowski permitiu o acesso da defesa de Lula “apenas” às mensagens de autoridades – o então juiz Sérgio Moro e a força-tarefa da Lava Jato – que tenham relação com o ex-presidente e as ações contra ele. Detalhe: mensagens que digam respeito a ele até indiretamente, o que abre uma janela sem fim.

 

O impacto mais previsível tende a ser no julgamento sobre os pedidos de suspeição de Moro nos casos de Lula, que estão na Segunda Turma do STF e embutem a tentativa de anular suas condenações pelo triplex do Guarujá, pelo qual já ficou 580 dias preso, e pelo sítio de Atibaia. Se o STF declara a suspeição de Moro, tudo volta à primeira instância, à estaca zero. E Lula se torna elegível em 2022. 

A sinalização é pró-Lula, anti-Moro. Em agosto deste ano, a Segunda Turma decidiu pela “parcialidade” do então juiz e anulou a sentença do doleiro Paulo Roberto Krug no caso Banestado, sob alegação do próprio Lewandowski e do ministro Gilmar Mendes de que Moro teria atuado não como juiz, mas como “auxiliar” do Ministério Público até na produção de provas. Essa alegação é a mesma nos casos de Lula.

Diferentemente de Gilmar, Marco Aurélio e Luiz Roberto Barroso, por exemplo, Lewandowski não é dado a palestras, entrevistas e polêmicas públicas. Ele não fala, age. E age sempre na mesma direção: a favor de Lula, para corrigir o que considera erros históricos contra o maior líder popular do País pós-redemocratização. É como se a prisão de Lula estivesse engasgada na garganta.

Não tão petistas, ou nada petistas, outros ministros dividem com Lewandowski a convicção de que a prisão de Lula foi um excesso, logo injusta. “A gente deve a Lula um julgamento decente”, repete Gilmar há anos, enquanto nas redes sociais grassa uma comparação: o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) comprou e vendeu uns 20 imóveis, muitas vezes com dinheiro vivo, mas Lula foi preso por um apartamento que nunca comprou, vendeu ou usou.

A decisão de Lewandowski, portanto, é lenha, álcool e palha na fogueira do Supremo em 2021, que vai chegando ao fim com uma rebelião dos ministros Gilmar, Lewandowski, Marco Aurélio e Alexandre de Moraes contra o presidente Luiz Fux, com Dias Toffoli no banco de reservas. Eles simplesmente decidiram cancelar o próprio recesso e ficar de prontidão. Para quê? Para impedir decisões monocráticas de Fux em processos em que sejam relatores.

Marco Aurélio já cancelou seu recesso durante a presidência de Toffoli, mas não há precedente de quatro ministros agirem assim juntos e isso caracteriza um “atestado de desconfiança” em relação a Fux. Eles são anti Lava Jato, ele é a favor. E a guerra comporta uma provocação: se a mídia usa o vazamento de informações sigilosas, como pode se indignar com o acesso de Lula a tudo o que foi dito – ou armado, como dizem – contra ele?

O efeito político deve ser favorável ao presidente Jair Bolsonaro. Qualquer decisão benevolente com Lula tende a ter correspondência nos processos contra o senador Flávio. E, se os processos são anulados e Lula se torna elegível, isso vai eletrizar o País e acirrar a polarização Lula versus Bolsonaro em 2022, o que ainda é favorável ao capitão, como em 2018. Ao garantir uma “reparação” para Lula, o Supremo pode acabar beneficiando Bolsonaro.

 


Eliane Cantanhêde terça, 20 de outubro de 2020

SENADOR DA CUECA - POR BEM OU POR MAL

 

Por bem ou por mal

Para o ‘senador da cueca’ só restou se licenciar por livre, mas não espontânea, vontade

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

20 de outubro de 2020 | 03h00

Muito se falou da vice-liderança do governo e da “união estável” do senador Chico Rodrigues (RR) com o presidente Jair Bolsonaro, mas o agora famoso “senador da cueca” é do DEM e atinge a corrida do partido para polir sua imagem, aprofundar a transição geracional, disputar prefeituras importantes e se colocar o melhor possível para 2022. Daí porque a pressão pelo pedido de licença de Rodrigues. Ou saía por bem, ou saía por mal.

O DEM é o partido dos presidentes do Senado e da CâmaraDavi Alcolumbre e Rodrigo Maia, do prefeito de Salvador, ACM Neto, da ministra Tereza Cristina, do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e do presidente do Conselho de Ética do Senado, Jayme Campos. Afora Campos, todos têm planos políticos ambiciosos e optaram por um silêncio estridente sobre o vexame do correligionário, a quem só restou pedir licença, “por livre, mas não espontânea, vontade”.

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A licença é um alívio para todo mundo. O plenário do Supremo por não ter de julgar amanhã se acata ou não o afastamento do senador determinado pelo ministro Luís Roberto Barroso. O plenário do Senado por não ter de votar a favor ou contra o colega. Para o DEM, a chance de sair de fininho, como Bolsonaro. O problema foi combinar com o “adversário”: Rodrigues não queria aceita. 

Ele é senador, já foi deputado e governador e é empresário bem-sucedido, logo, não é absurdo ter R$ 33 mil em casa, ainda mais porque, cá entre nós, os filhos e a ex-mulher do próprio presidente da República têm mania de pagar apartamentos, planos de saúde e escolas com dinheiro vivo... Então, por que Rodrigues escondeu a grana na cueca? Caracterizou ocultação de provas e agrediu a máxima de que “quem não deve não teme”. O que ele temia, ao ser acusado de desvios milionários na saúde?

Além de espernear diante da polícia, ele resistia também à pressão dos senadores e, particularmente, do DEM para se licenciar, mas eles colocaram a faca no pescoço: ou se licenciava ou seria cassado pelo Conselho de Ética. Nesse script, o STF derrubaria o pedido de afastamento; sem a liminar, não haveria objeto a ser votado pelo Senado e todos viveriam felizes para sempre. Ele, às voltas com polícia, MP e Justiça, mas com o filho na sua vaga.

Depois de Bolsonaro lavar as mãos e se descolar do problema, o principal interessado nesse roteiro é Alcolumbre, que tem quatro pontos em comum com o “senador da cueca”: foram deputados juntos, são senadores, representam o Norte e tentam driblar a Constituição para dar mais um mandato para Alcolumbre na presidência. Até ontem, ele agia, mas não tinha dado um A sobre o escândalo.

Enquanto isso, Bolsonaro se prepara para uma sucessão de vitórias nesta semana no Senado, com a aprovação dos seus nomes para Supremo, TCU, Anvisa, Anac. Afora um ou outro senador de oposição, e só para marcar posição contra, ele vai vencer por lavada, com destaque para o sem currículo Kassio Nunes Marques no STF e o amigão Jorge Oliveira no TCU.

Tudo caminha do jeito que Bolsonaro gosta: saia-justa no Supremo, Congresso às voltas com velhos “probleminhas”, seus escolhidos alçados a cargos-chave sem empecilhos, enquanto, como mostrou o Estadão, a paisagem nos Estados vai sendo salpicada por outdoors e fotos de Bolsonaro em campanha – uma campanha camuflada.

Tudo vai tão bem para o capitão Bolsonaro que ele já se sente à vontade para trocar o general Hamilton Mourão por um vice do Centrão – com aval dos militares. Tempos estranhos, que o DEM via como uma avenida de oportunidades para o centro responsável, mas, com dinheiro em cuecas e a direita e os militares lavando as mãos para os absurdos de Bolsonaro, vai ficando difícil. O negacionismo está em alta e o inaceitável virou moda.

 


Eliane Cantanhêde domingo, 18 de outubro de 2020

QUEM PODE, PODE! EM VEZ DE BATOM, É DINHEIRO NA CUECA.

 

Quem pode, pode!

Em vez de batom, é dinheiro na cueca, mas o senador Chico Rodrigues não será afastado pelo Senado nem pelo STF

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

18 de outubro de 2020 | 03h00

A semana passada começou com a canetada do ministro Marco Aurélio, que soltou o líder do PCC André do Rap, e terminou com uma outra liminar monocrática, do ministro Luís Roberto Barroso, afastando o “senador da cueca” do mandato e abrindo uma crise entre Judiciário e Legislativo. O presidente do STF, Luiz Fux, tem ou não razão em mirar o excesso de decisões individuais?

Marco Aurélio já beneficiou 79 presos com base na mesma lei que usou para André do Rap e, segundo levantamento do Estadão, o governo e os cidadãos brasileiros estão consumindo fortunas para recapturar 21 desses presos soltos na leva marcoaureliana. O governador João Doria (SP) calcula gastos de R$ 2 milhões só para André do Rap e desabafa: “Dá vontade de mandar a conta para o ministro!” E não é que dá mesmo?

 

Aliás, o traficante ofereceu R$ 8 milhões de propina para os policiais que o prenderam, o que é um agravante. Imaginem a irritação desses policiais com todo seu esforço jogado fora e um sujeito deste tipo solto por aí, no bem-bom.

De útil, esse erro serviu para acordar a opinião pública para decisões idênticas que vinham se repetindo; ratificar a posição de Fux ao derrubar a liminar de Marco Aurélio; avisar ao mesmo Fux que presidentes não estão acima dos demais e só agem assim em casos excepcionais; abrir o debate sobre a avalanche de decisões individuais num tribunal de 11 votos.

O efeito prático, porém, foi jogar luzes no artigo 316 do Código Penal. Ao contrário do que se imagina, e até com boas razões, a intenção do legislador não foi beneficiar corruptos e bandidos como André do Rap, mas sim trazer uma solução para um problema crônico: os mais de 200 mil brasileiros que neste momento estão presos provisoriamente, muitos indevida ou até injustamente. O objetivo foi evitar que provisório se eternize.

Não deu certo. Em vez de beneficiar pobres, negros e desvalidos, o artigo 316 é usado por bandidos cheios de dinheiro, como André do Rap. Por isso, o nonsense de Marco Aurélio serviu também para o plenário limitar a abrangência do artigo: ele não obriga a soltura do preso, só abre o questionamento sobre a manutenção da prisão.

Assim como soltar André do Rap causou uma comoção nacional, os R$ 33 mil na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) mobilizou mídia, redes, chargistas e gozadores em geral. E assim como Marco Aurélio não titubeou em botar um em liberdade, Barroso também não ao afastar um senador do mandato. Nova confusão!

O ministro explica que sua decisão – que só chegou ao Senado na sexta-feira à noite, obviamente para dar tempo a um acordo – não foi por causa da cueca, mas sim porque Rodrigues era simultaneamente (até então) da comissão do Senado sobre recursos da covid e investigado por desvios na Saúde em Roraima. O fato é que isso dividiu o Senado e o STF.

Rodrigues tem a cara do Professor Raimundo do Chico Anísio, mas não é fraco, não. Além da “união estável” com Jair Bolsonaro e da vice-liderança, é amigão do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que depende do Supremo e dos senadores para uma missão que, se não é, deveria ser impossível: a reeleição para o cargo.

Os dois são senadores do Norte e do DEM e Rodrigues liderava as articulações para as ambições continuístas de Alcolumbre, que quebra a cabeça, com a Advocacia do Senado, para sair da enrascada. Uma coisa é certa: com ou sem dinheiro na cueca – que é só a parte pitoresca da história –, o senador não será afastado pelo Senado, nem pelo STF.

Há três anos, a corte decidiu que só Câmara e Senado têm poder para suspender ou cassar deputados e senadores e, vamos combinar, nenhum dos dois tem pressa em julgar colegas, mesmo presos ou de tornozeleira. Não é, deputada Flordelis?


Eliane Cantanhêde terça, 13 de outubro de 2020

MARCO AURÉLIO, QUAL É A SUA?

 

Marco Aurélio, qual é a sua?

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

13 de outubro de 2020 | 03h00

Em 27 de julho do ano 2000, escrevi artigo sobre a decisão monocrática do Supremo que mandou soltar o então banqueiro Salvatore Cacciola, apesar da obviedade da culpa e das evidências de que, assim que deixasse a prisão, ele fugiria do País. O ministro deu a liminar, Cacciola voou para a Itália, via Paraguai e Argentina, e só foi preso de novo seis anos depois, ao cometer um erro primário. Título do artigo: “Marco Aurélio, qual é a sua?”

Vinte anos e muitas decisões polêmicas depois, Marco Aurélio Mello assume a partir de hoje a solene condição de decano, no lugar do ministro Celso de Mello, já empurrando a Corte para o centro do debate nacional – ou melhor, da ira nacional. Qual o sentido de soltar André do Rap, o chefe do PCC que a polícia demorou anos e gastou fortunas para capturar?

 
 
Marco Aurélio Mello
O ministro Marco Aurélio Mello durante sessão no STF Foto: Dida Sampaio/Estadão
 

Dono de helicóptero, lancha, mansões e carrões, o facínora tem duas condenações em segunda instância, somando 26 anos, mas entrou com recurso e estava ainda em prisão provisória desde setembro de 2019. Ao acatar o habeas corpus, Marco Aurélio justificou que sua prisão não fora renovada de 90 em 90 dias, como manda o novo Código Penal, aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro – contra a posição de Sérgio Moro.

Pode? Não pode. Bastava o relator pedir explicações e ganhar tempo até cumprir-se a burocracia. Mas esse não seria Marco Aurélio. Ele tem cultura jurídica, é respeitado tecnicamente, acorda cedo e mergulha em livros, leis e casos. O problema é a personalidade, o gosto de ser “do contra”. Se tal julgamento foi 10 a 1, o “1” é de Marco Aurélio, 74, no STF desde 1990, por indicação de seu primo Collor de Mello.

Ao libertar o líder do PCC, ele determinou: “Advirtam-no da necessidade de permanecer em residência indicada ao juízo, atendendo aos chamados judiciais”. Seria cômico, não fosse trágico. André do Rap deve ter dado boas gargalhadas antes de escafeder-se por esse mundão afora, assim como Cacciola ao fugir para sua Itália natal.

Na época, nem havia o artigo usado agora pelo ministro, mas o resultado foi o mesmo. O então presidente do STF, Carlos Velloso, revogou a liminar de Marco Aurélio e mandou prender Cacciola novamente, assim como o atual, Luiz Fux, fez no caso de André do Rap. Tarde demais nas duas vezes. Eles têm dinheiro, recursos e aliados para fugir da polícia, do MP e da Justiça, que são obrigados a consumir nossos impostos, durante anos, para prendê-los de novo.

Com a “letra fria da lei”, Marco Aurélio jogou o País contra o Supremo, aprofundou o racha na Corte, deixou Fux sem saída e gerou um empurra-empurra infernal. Um ministro condena Marco Aurélio, outro recrimina Fux, o Congresso joga no colo do MP, o MP devolve para o Congresso. Para nós, os leigos, é uma bagunça. Para os traficantes, uma janela de oportunidades.

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão. São seres humanos que estudam e aplicam leis, conscientes de que cada caso é um caso e avaliando personagens, circunstâncias e a gravidade da situação, com bom senso. Afinal, qual o objetivo? Fazer justiça. Por isso o plenário tem 11 votos, 11 formas de compreender e votar, evitando empates.

O Congresso não deveria aprovar um artigo tão burocrático, Bolsonaro não deveria sancionar sem ouvir seu ministro da Justiça, Marco Aurélio deveria ter juízo. André do Rap, definido por Fux como de “altíssima periculosidade”, que “compromete a ordem e a segurança pública”, não estaria solto por uma canetada “técnica”, aterrorizando a sociedade e jogando dúvidas sobre a justiça brasileira.


Eliane Cantanhêde domingo, 27 de setembro de 2020

OUTUBRO EFERVESCENTE

 

Outubro efervescente

Eleição, economia, pandemia e o novo ministro terrivelmente amigo no STF

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

27 de setembro de 2020 | 03h00

Outubro será agitado, com as campanhas eleitorais aprendendo a contornar a pandemia (que ainda mata mais de “dois Boeings” por dia), o governo e o Congresso convergindo para desoneração da folha de pagamentos compensada por um novo imposto e o presidente Jair Bolsonaro se divertindo com a aflição dos muitos candidatos à vaga de Celso de Mello no Supremo, porque ele já tem dois nomes no colete: Jorge Oliveira e André Mendonça.

Bolsonaro está no centro de toda essa efervescência, mexendo as peças sem se queimar e entrando no jogo apenas em caso, e na hora, da vitória. Só apoiará candidato para ganhar, só apoiará o novo imposto depois de Paulo Guedes e o Centrão garantirem o resultado e só vai anunciar o novo ministro do STF depois de ter sugado o possível dos candidatos frustrados.

 
Jair BolsonaroO presidente Jair Bolsonaro ao lado do ministro Jorge Antonio de Oliveira Francisco Foto: Adriano Machado/Reuters
 
 

Até aqui, ninguém deu bola para a eleição municipal e o interesse do eleitor continua caindo a cada pleito, mas a tendência é esquentar, com foco óbvio em São Paulo, pelo seu peso político e econômico, no Rio, pela chocante situação de governador e prefeito, e nos neófitos, como o próprio Wilson Witzel, que caíram de paraquedas pelo sopro do bolsonarismo. Elegerão seus candidatos?

Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) conta com Bolsonaro para fugir da sina de sair na liderança e acabar fora até do segundo turno. O prefeito Bruno Covas (PSDB) precisa driblar a frustração pelo segundo lugar e evitar perda de votos para Márcio França (PSB). Jilmar Tatto empurra o PT para o balaio dos nanicos e para o apoio a Guilherme Boulos (PSOL), a novidade de 2020. No Rio, o prefeito Marcello Crivella (Republicanos) está inelegível. Conseguirá reverter a decisão no TSE e manter o apoio de Bolsonaro?

Na economia, Bolsonaro lavou as mãos: Paulo Guedes que se vire. Se articular apoio para a “nova CPMF”, não vai atrapalhar. Guedes recupera liderança e força, o governo comemora a troca dos novatos do PSL pelo trator Centrão e a pergunta que não quer calar é: como desonerar a folha, como Guedes quer, e encorpar o novo Bolsa Família, como Bolsonaro exige, sem furar o teto de gastos nem aumentar a carga tributária? A conta fecha?

Enquanto isso, Bolsonaro acompanha com prazer o rebuliço em torno da indicação para o Supremo, com as decisões do procurador-geral Augusto Aras sempre sob suspeita por algo que ele jura que não quer e que não vai acontecer, o juiz do Rio Marcelo Bretas repreendido por participar de atos políticos e o plenário do STJ em alvoroço, como sempre, diante de uma vaga na alta Corte.

O ministro “terrivelmente evangélico”, porém, afunila para Jorge Oliveira, advogado e policial militar sem credenciais jurídicas compatíveis com o Supremo, mas secretário-geral da Presidência e filho de grande amigo de Bolsonaro. E para André Mendonça, advogado, pastor presbiteriano, ex-advogado-geral da União e atual ministro da Justiça. Transformou a Justiça em órgão de defesa do presidente, mas ainda é bem aceito no STF.

Celso de Mello deixa a Corte em 13 de outubro, após 31 anos, à frente da investigação do presidente por intervenção na PF. Celso, decano que sai, determinou depoimento presencial para Bolsonaro. Marco Aurélio, o novo decano, jogou para o plenário virtual e defendeu depoimento por escrito. O lance seguinte pode ser tirar do virtual (votos por escrito) para o plenário real (ao vivo).

Logo, Bolsonaro vai trocar um ministro ostensivamente crítico por outro terrivelmente amigo e um decano adversário por outro nem tanto e, na presidência, entrou Luiz Fux com a expectativa de maior independência em relação ao Planalto do que Dias Toffoli. O que se sabia de Supremo não se sabe mais. Exemplo: e a prisão após segunda instância, que caiu por um único voto? 


Eliane Cantanhêde sexta, 11 de setembro de 2020

FUX, SEM SUBTERFÚGIOS

 

Fux, sem subterfúgio

Em vez de defender o combate à corrupção em tese, Fux citou especificamente a Lava Jato

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

11 de setembro de 2020 | 03h00

Se o Supremo Tribunal Federal agir e decidir nos próximos dois anos como se comprometeu ontem o seu novo presidente, Luiz Fux, será um sucesso, um bom momento para a Justiça brasileira. Não custa lembrar, porém, que, entre palavras e atos, há uma enorme distância. Entre o desejo e as condições práticas, também. E é preciso combinar com os “adversários” – inclusive os demais ministros. Logo, a torcida é para Fux perseguir suas promessas e os princípios manifestados, enfrentar as naturais divisões internas e as pressões externas.

Em seu discurso, que abriu com um tributo aos quase 130 mil mortos pela covid-19, geralmente esquecidos nas falas do Executivo, ele disse que “democracia não é silêncio, é debate construtivo”, e defendeu a independência entre Poderes, mas “com altivez e vigilância e não com contemplação nem subserviência”. Ao seu lado, o presidente Jair Bolsonaro, finalmente de máscara, apesar das telas transparentes que separavam os ministros e autoridades, não mexia um músculo.

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Fux toma posse como novo presidente do STF, em substituição a Dias Toffoli  Foto: Marcos Corrêa/PR
 

Fux também criticou a judicialização da política e o excesso de ações que o Supremo julga por ano – 115.603 em 2019. Ao dizer que o Judiciário não é “oráculo”, pregou que Executivo e Legislativo resolvam seus conflitos internos, sem que o Supremo atue verticalmente, e prometeu uma “intervenção minimalista” em matérias sensíveis: “menos é mais”, disse. Além de enaltecer a democracia e a mínima interferência em temas dos demais Poderes, ele se comprometeu veementemente com uma ação firme em favor de minorias, liberdade de expressão e de imprensa e, junto com isso, com o combate à corrupção e ao crime organizado.

O recado mais objetivo do discurso de posse, porém, foi quando Fux saiu dos princípios gerais, das frases de efeito e das citações eruditas para dizer com todas as letras, sem subterfúgio, que sua gestão será pró-Lava Jato. Além de citar diretamente a operação e o mensalão, marcos contra a corrupção no Brasil, ele fez mais: lembrou aos quatro ventos, especialmente para a cúpula do poder nacional, ali presente, que todas as operações foram realizadas com autorização judicial. Inclusive do próprio Supremo.

Essas manifestações têm enorme significado diante das múltiplas frentes de ataque à Lava Jato e da correspondente reação das forças-tarefa. A cada ataque, uma nova operação – como a que atingiu em cheio, na véspera da posse, os advogados, até agora preservados e na linha de frente do tiroteio contra a Lava Jato, por motivos óbvios.

Se o Supremo é unânime ao dizer não aos arroubos antidemocráticos, sejam do presidente Bolsonaro, de seus adeptos e robôs de internet, a Corte se divide quanto o tema é Lava Jato. Por isso a importância da manifestação de Fux. O presidente tomou partido, reafirmou já na posse os seus votos, em plenário e na Primeira Turma, a favor das duas maiores operações de combate à corrupção de que se tem notícia.

Na pauta do Supremo, destacam-se a investigação de Bolsonaro por interferência política na Polícia Federal e o julgamento, na Segunda Turma, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Lula. E, claro, respingarão na Corte as decisões do Congresso sobre a prisão após condenação em segunda instância, que teve idas e vinda tortuosas e julgamentos apertados no plenário – em geral por um voto.

Celso de Mello sai em novembro e Marco Aurélio, no ano que vem. Ambos são contra a prisão em segunda instância. Portanto, se houver um novo julgamento, a decisão vai depender dos dois futuros ministros. Ou seja: de Jair Bolsonaro. Deste que é candidato à reeleição em 2022, não daquele de 2018. A grande interrogação, aliás, é justamente essa: como será a relação deles, Bolsonaro e Fux.

 

Eliane Cantanhêde terça, 01 de setembro de 2020

QUE MUNDO É ESSE? IMUNIDADE PARA FLORDELIS E TRANSFORMAR VÍTIMA DE ESTUPRO E RÉ SÃO IMORAIS

 

Que mundo é esse?

Imunidade para Flordelis e transformar vítima de estupro em ré são imorais

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

01 de setembro de 2020 | 03h00

Em meio à pandemia, à crise econômica, às queimadas, ao esfacelamento do Rio de Janeiro, a Câmara dos Deputados não pode fugir à sua responsabilidade diante de dois temas que misturam nojo, indignação e raiva: a “imunidade parlamentar” da deputada federal Flordelis e a portaria do Ministério da Saúde que obriga os médicos a agirem como policiais diante de abortos legais. Em que mundo nós estamos?

A pastora Flordelis não é flor que se cheire, faz mal à saúde e pode matar. Farsa ambulante, ela mistura religião, política, fake news e manipulação de pessoas, na maioria pobres e ingênuas, mas não só. Tudo nela é falsificado, da benemerência às variadas perucas, da função de pastora à de deputada. E, já que não poderia ameaçar o seu mundo de ficção com um divórcio, matou o marido – que já fora filho e genro – usando como cúmplices os “filhos adotivos”, entre eles uma menina que oferecia sexualmente a pastores estrangeirosDo ponto de vista político, como um partido dá sigla para uma desqualificada dessas concorrer a qualquer coisa? E como ela obtém mais de 190 mil votos do eleitor do Rio de Janeiro? Do ponto de vista jurídico, como é possível mantê-la solta graças à “imunidade parlamentar”? Que os fazedores de lei se tratam muito bem, todo mundo sabe. Mas que tenham o direito de cometer assassinatos e continuar em liberdade, já é um pouco demais.

O instituto da imunidade é para proteger a opinião, as manifestações, as posições políticas que, em democracias, são saudavelmente divergentes no Congresso e entre o Congresso e o Executivo e Legislativo. Daí a estendê-lo para quem pratica crimes comuns e inclusive crimes incomuns, como assassinato, é uma excrescência que nenhuma democracia e nenhuma discussão democrática pode sustentar. Um absurdo, um escárnio.

Quanto à “portaria da tortura” do Ministério da Saúde, só pode ser coisa de fundamentalistas que prestigiam suas crenças acima da compaixão, da humanidade, da própria lei. Têm mães, mulheres, irmãs, filhas? Em resumo, a portaria exige que médicos reportem à polícia os abortos legais em caso de estupro, façam um relatório detalhado sobre as circunstâncias da violência sofrida e ofereçam ultrassom para esfregar imagens do feto na cara da vítima.

O Ministério dos Direitos Humanos nomeia para a área da Mulher uma cidadã contrária à lei do aborto, mesmo com estupro. E o Ministério da Saúde atravessa a pandemia com um ministro interino e uma cúpula sem médicos e cheia de militares que não sabem a diferença entre vírus e bactérias. Assim, não consegue sequer usar os recursos disponíveis para reduzir contaminação e mortes. Não por acaso, o Brasil é líder em mortes por cem mil habitantes.

Se não é capaz de assumir a coordenação central da pandemia, desdenhando do isolamento social e endeusando a cloroquina, o ministério assume ares de delegacia, obriga médicos a agir como policiais e transforma vítimas em rés: crianças, jovens, mulheres adultas. Já imaginaram quem foi alvo de estupro – o crime mais covarde e ignóbil – confrontada com imagens do feto? Um desestímulo para a vítima buscar ajuda. Um segundo estupro. Uma crueldade.

Com 77 deputadas, 15% do total, a Câmara tenta reagir. Há pressão para o Conselho de Ética voltar a se reunir, cassar o mandato e abrir a porta da cadeia o mais rapidamente possível para Flordelis. E há mobilização em Brasília, no Brasil e no exterior para derrubar a “portaria da tortura” e impedir a violência do governo contra quem já foi violentada. Hoje o presidente Rodrigo Maia reúne a Mesa Diretora. Ou o Congresso assume seu papel, ou o Supremo vai agir. Manter Flordelis livre e a portaria em vigor é, antes de tudo, imoral.


Eliane Cantanhêde quinta, 20 de agosto de 2020

CEM DÓ NEM PIEDADE: POBRE MENINA POBRE

 

Sem dó nem piedade

Faltaram tochas e máscaras brancas nos gritos de ‘assassina’ para a pobre menina pobre

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

18 de agosto de 2020 | 03h00

É de chorar copiosamente de raiva, vergonha e desânimo quando um bando de enlouquecidos usa o nome de Deus para transformar uma pequena e sofrida vítima em vilã, aos gritos de “assassina”. É de uma crueldade sem limites, que faz recrudescer uma angústia que só aumenta: a audácia dessa gente que saiu das trevas não tem fim?

 

Hospital Roberto Silvares em São Mateus, no Espírito Santo
Menina de 10 anos foi estuprada e descobriu gravidez após dar entrada no Hospital Roberto Silvares em São Mateus, no Espírito Santo
Foto: Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo/Divulgação
 

A pobre menina pobre tinha seis anos quando passou a ser abusada por um tio, na casa onde morava com os avós. O pai? Não se sabe. A mãe? Também não. Sem os pais e sem o olhar, o cuidado e a piedade dos adultos, responsáveis, amigos e vizinhos, que não viram nada ou não quiseram “se meter na vida dos outros”, o que e quem sobrou? Nada, ninguém. Só o medo, a solidão, a dor do corpo e da alma.

Histórias assim ocorrem o tempo todo, por toda parte, contra milhares de meninas e meninos pobres e desamparados neste nosso Brasil tão lindo, de gente tão alegre e sol o ano inteiro, invejado por natureza pujante. Um Brasil tão solar que abriga um Brasil tão obscuro, soturno, onde a Justiça não é igual para todos, juízas injustas se referem à “raça” do suspeito para condená-lo e crianças não têm o direito de serem crianças. Abandonadas pela família e pelo Estado.

A nossa brasileirinha, tão sofrida, menstruou cedo e engravidou aos 10 anos do criminoso que usava da intimidade da casa para destruir o corpinho, a autoestima e a vida dela. A lei autoriza o aborto em caso de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. Ela se encaixa em dois dos três critérios e a Justiça autorizou, mas médicos no Espírito Santo lavaram as mãos e ela teve de ser acolhida em Pernambuco, num hospital que interrompeu uma gravidez que poderia tê-la matado, depois de longa tortura que ninguém viu, ou não quis ver. The end? Não, foi só mais um capítulo dessa novela macabra. O drama dela continua, assim como o dos quase 70 mil estupros por ano.

Almas do mal rondam a desgraça alheia, como a blogueira que desfilava de peito de fora quando feminista e agora, depois de se metamorfosear em bolsonarista, é alvo da Justiça por jogar fogos de artifício contra o Supremo e capaz de divulgar o nome da criança grávida e o endereço do hospital. Que pessoa é essa? Que mente deturpada é essa? É preciso responsabilizá-la pelo crime, previsto em lei, de expor menores de idade em situações adversas. Além de investigar quem vazou para uma pessoa com essa índole os dados da menina e do seu destino para a execração pública.

É demoníaco, mas mulheres e homens que se dizem religiosos, até pastores, atenderam à convocação e se aglomeraram diante do hospital para aprofundar a dor, a vergonha e a humilhação daquela criança. Só faltaram máscaras brancas e tochas para reproduzir a Ku Klux Klan, reencarnação do nazismo nos Estados Unidos condenada em todas as democracias saudáveis.

Parabéns ao médico Olímpio de Moraes, que cumpriu a autorização judicial e enfrentou a hipocrisia e os ensandecidos para defender, com coragem e generosidade, o direito à saúde e à vida. “Obrigar uma criança a ter uma gravidez forçada é um absurdo”, disse ele. Sim, absurdo, maldade, escândalo, uma desumanidade. Como Nação, não podemos compactuar com perversidades assim. Não se trata de ser contra ou a favor do aborto, mas de humanidade.

Que a violência contra essa brasileirinha acorde a sociedade para esses abusos que acontecem com uma frequência assustadora sob as nossas barbas. É preciso proteger nossas crianças, incentivar as denúncias de quem finge que não vê e punir os culpados. Para as seitas que chamam a pequena vítima de “assassina”, convém lembrar que o real criminoso está solto, ao lado de milhares de outros prontos a destruir a vida e o futuro de crianças como ela.


Eliane Cantanhêde sexta, 31 de julho de 2020

DUAS CAIXAS DE SEGREDO - SE A LAVA-JATO É UMA CAIXA DE SEGREDOS, GUERRA CONTRA ELA TAMBÉM É

 

Duas caixas de segredos

Se a Lava Jato é uma ‘caixa de segredos’, como diz Aras, guerra contra ela também é 

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

31 de julho de 2020 | 03h00

A guerra contra a Lava Jato não é só da Procuradoria Geral da República nem é só contra a força-tarefa de Curitiba. O procurador-geral Augusto Aras é o líder ostensivo e porta-voz, mas o ataque à maior operação de combate à corrupção do mundo vai muito além dele, incluindo Congresso e parte de Supremo, OAB, Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e da própria mídia. É um movimento combinado e visa Curitiba, São Paulo e Rio.

Ninguém questiona a fala de Aras sobre “correção de rumos” e “garantias individuais”, mas é preciso ficar claro se, por trás, não está em curso o desmanche da Lava Jato, punir e demonizar seus expoentes, impactar processos em andamento e até anular condenações já em execução. Ou seja, se a intenção é acabar com “excessos”, “hipertrofia”, investigações indevidas, dribles em leis e regras – que podem efetivamente ter ocorrido –, ou desfazer tudo e demolir, por exemplo, o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.

 
 
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O procurador-geral da República, Augusto Aras (E), ao lado do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (D)
Foto: Dida Sampaio/Estadão
 

Enquanto Aras ataca a Lava Jato por atacado, seus aliados agem no varejo contra Moro e Dallagnol. No Supremo, Dias Toffoli propõe que magistrados só disputem eleições após quarentena de oito anos. Na Câmara, Rodrigo Maia acata a ideia – e já para 2022. É para cortar uma candidatura Moro pela raiz? Do PT ao Centrão, passando por MDB e PSDB, levante o dedo quem apoia Moro e Lava Jato no Congresso!

Simultaneamente, entra em ação o CNMP. O conselheiro Marcelo Weitzel determinou intervenção na distribuição de processos no MP Federal de São Paulo, visando os que têm o carimbo da Lava Jato. Outro, Luiz Fernando Bandeira, pretende retirar Dallagnol da força-tarefa de Curitiba, por ter sugerido um fundo lavajatista com bilhões de reais recuperados do petrolão. Além disso, Dallagnol também foi pivô das mensagens hackeadas entre procuradores e Moro.

Esses movimentos contra a Lava Jato vêm num crescendo. O marco foi a ida da subprocuradora-geral Lindora Araujo a Curitiba para requisitar todo o arquivo e rastrear os equipamentos da força-tarefa. Em seguida, o vice-procurador Humberto Jacques criticou o modelo da operação como “desagregador”, “disruptivo” e “incompatível com o MPF”.

Foi aí que Toffoli autorizou a PGR a centralizar em Brasília todos os arquivos de Curitiba, Rio e São Paulo. Segundo Aras, o MPF inteiro tem 50 terabites de dados e Curitiba, sozinha, 350. É com base nessa documentação fenomenal que ele e sua equipe – que até aqui só jogam no ar suspeitas vagas – pretendem comprovar que o chamado “lavajatismo” grampeava pessoas e investigava alvos com foro privilegiado ilegalmente, usava conduções coercitivas como tortura psicológica, aceitava e compensava excessivamente qualquer delação premiada, dispensando provas daqui e dali.

Ao condenar o suposto “vale tudo” da Lava Jato, porém, a PGR e seus aliados podem estar justamente recorrendo a um “vale tudo” para desmontar as estruturas e demonizar os líderes da Lava Jato, numa repetição do que ocorreu contra a Operação Mãos Limpas, que passou de grande sucesso a triste derrota na Itália. Além disso, há o risco natural da centralização de dados na capital: o uso político. Hoje, o procurador é Aras. E amanhã?

Onde fica o presidente Bolsonaro nisso tudo? Depois de meter a mão no Coaf, mexer os pauzinhos na Receita, romper com Moro e ser investigado por suspeita de intervenção na PF, ele escolheu Aras fora da lista tríplice e reforça a percepção de uma união de Judiciário, Legislativo e Executivo contra a Lava Jato – que, entre erros e acertos, foi importantíssima para o País. E, se a Lava Jato é uma “caixa de segredos”, como diz Aras, a articulação contra ela também é. E seus segredos podem ser bem mais cabeludos.


Eliane Cantanhêde terça, 28 de julho de 2020

O CANDIDATO BOLSONARO

 

 

O candidato Bolsonaro

O governo vai mal, mas a campanha de Bolsonaro à reeleição vai muito bem, obrigada

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

28 de julho de 2020 | 03h00

O governo vai mal, mas a campanha do presidente Jair Bolsonaro à reeleição vai de vento em popa, repetindo os acertos de 2018, mas adaptando o candidato, os aliados, o discurso e as armas às circunstâncias de 2022. O pragmatismo, para evitar o impeachment e garantir maioria parlamentar, mira não só o presente e a governabilidade, mas também o futuro e a sucessão.

 

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O Presidente Jair Bolsonaro durante a cerimônia de arriamento da bandeira nacional, no Palácio da Alvorada
Foto: Gabriela Biló/Estadão

 

Fachin vai relatar ação de Bolsonaro contra suspensão de perfis em redes sociais

Depois de usar o “Jairzinho Paz e Amor” e o retiro da covid-19 para pontes com Judiciário e Legislativo e desanuviar o ambiente político, Bolsonaro volta à rotina diferente. Menos ataques, mais diálogo. Em vez de dividir, somar. No varejo e no atacado: além de apoiadores no Alvorada, viagens pelo País. Segundo o EstadãoBolsonaro até liberou o funcionamento de 440 rádios comunitárias em março e abril, recorde na década. Para tocar música é que não é...

 O “Paz e Amor” passou no primeiro teste: apesar de tudo, de todos e dele mesmo, Bolsonaro segurou seu patamar nas pesquisas, em torno de 30%, e até recuperou uns pontinhos. Mas, na estratégia para 2022, é preciso, a cada desastre, um culpado: governadores, prefeitos e Supremo pelos agora quase 90 mil mortos, o vice Hamilton Mourão pelo desmatamento da Amazônia, Ricardo Salles pelo desmanche do ambiente...

Na mesma toada, transformar derrotas em vitórias. O governo foi contra o Fundeb, apresentou um monstrengo de uma última hora e só se rendeu porque perderia feio. Confirmado o fiasco, cria-se a narrativa: o governo venceu! Um governo da ajuda emergencial de R$ 600 não ficaria contra um fundo para o ensino de milhões de crianças pobres, não é? Os 30% bolsonaristas acreditam piamente. E os beneficiários agregam pontos a esses 30%.

Ato seguinte: reforçar os laços com o Centrão, mas sem perder os bolsonaristas raiz, que não têm muita serventia no Congresso, mas ajudam a manter a ilusão de que Bolsonaro era e continua sendo aquele da família, da religião, contra a velha política e a corrupção. Foi por isso, equilibrar Centrão e bolsonaristas, que Bolsonaro derrubou a deputada Bia Kicis (PSL) da vice-liderança do governo na Câmara, mas depois foi tirar foto sorridente com ela e suspendeu a troca do Major Vitor Hugo, bolsonarista, por Ricardo Barros, do Centrão, na liderança do governo.

Ao mesmo tempo, o presidente usa a Advocacia-Geral da União (AGU) – que não tem nada a ver com isso – para manter no ar as redes bolsonaristas de fake news. Em vez de ajudar, elas passaram a atrapalhar o presidente Bolsonaro, mas ainda serão muito úteis para o candidato Bolsonaro. Como em 2018.

Se equilibra bolsonaristas com Centrão no Congresso e convence os protestos golpistas de deixarem de ser golpistas, o presidente cuida também do outro lado: dos críticos. Assim como a AGU, também o Ministério da Justiça está à disposição para seus interesses políticos. Como informa o repórter Rubens Valente, funcionários e estruturas de governo estão produzindo dossiês contra “antifascistas”, ou antibolsonaristas. Inclusive, acreditem, o humanista Paulo Sérgio Pinheiro.

É preciso saber como Bolsonaro vai retaliar os 152 bispos, bispos eméritos e arcebispos da Igreja Católica que assinam um manifesto contra o que chamam de “mensagens de ódio e preconceito” e aqueles outros “esquerdistas” que criticam seu governo: presidentes de países democráticos da Europa e da América Latina, fundos internacionais de investimento, bancos, grandes empresas, pessoal da Saúde.

Eles não estão ajudando, nada, nada, a reeleição, mas Carlos Bolsonaro, o 02, sabe muito bem como dar um jeito nisso e está se mudando de malas, bagagens e expertise eleitoral para Brasília. O “gabinete do ódio” assume nova roupagem: é o comitê de campanha, a mil por hora.


Eliane Cantanhêde segunda, 27 de julho de 2020

BOBOS SÃO OS OUTROS - DESASTRE DE PT E PSDB ELEGEU E PODE REELEGER BOLSONARO

 

Bobos são os outros

Desastre de PT e PSDB elegeu e pode reeleger Bolsonaro, que faz pirueta de 2018 para 2022

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

26 de julho de 2020 | 03h00

Soa fora de propósito, da razão e do tempo o ex-presidente Lula continuar, ainda hoje, com tudo isso acontecendo, atirando contra o ex-presidente Fernando Henrique e o PSDB. Com toda sua decantada genialidade política, Lula não consegue ver e entender o óbvio: o PT e o PSDB estão no fundo do poço, não ameaçam mais ninguém e o inimigo comum é outro. Sim, ele, Jair Bolsonaro. Não “apesar”, mas exatamente por tudo o que representa.

O PT já afundava, com mensalão e Lava Jato, quando Joesley Batista detonou Aécio Neves e, com ele, o PSDB. Sem PT e PSDB, o que sobrou? Pois é. Sem a polarização que norteou a política brasileira desde 1994, surgiu “o novo”. E o “novo” é o que há de mais velho, corporativista, armamentista, inexperiente, ignorante e com o discurso oportunista do combate à corrupção.

 
 
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Cerimônia de posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva Foto: JOEDSON ALVES/AE
 

O cenário é desolador. Lula envelhecido, sem discurso e sem horizonte, mirando nos alvos errados e imobilizando o PT e as esquerdas. Aécio, José Serra e Geraldo Alckmin, os três candidatos tucanos à Presidência ainda vivos (Mário Covas morreu em 2001), embolados com a Justiça, a polícia e a descrença da sociedade diante dos políticos e da política. Todos viraram passado.

A história, no seu tempo, vai recolocar as coisas nos devidos lugares: o PT, criado em 1980, no rastro da redemocratização, e o PSDB, que surgiu em 1988, junto com a nova Constituição, tiveram um papel fundamental, Lula e Fernando Henrique à frente, para modernizar o País, debelar a inflação infernal, criar programas de renda, elevar o Brasil no mundo, atiçar a cidadania e a inclusão.

Os dois projetos se esgotaram sem sanar as mazelas nacionais e seus líderes e foram tragados por guerras políticas, ganância, impunidade e um sistema político que engole até biografias respeitáveis. O desafio era resistir à tentação de extrapolar o caixa 2 de campanha para o enriquecimento pessoal. Como conviver com mais de 30 partidos? Desmascarar quem fala à alma, não à razão? Enfrentar a pressão das corporações em detrimento da população? Financiar campanhas hollywoodianas? E como vencer sem elas?

Assim o Brasil chegou a Jair Bolsonaro, que driblou todas essas questões. Já pulou em dez partidos, até tentar um para chamar de seu; usou templos, cultos e pastores como palanques; em vez de enfrentar, liderou as corporações policiais e militares; financiou suas campanhas com seus gabinetes, não com empresas privadas. E venceu os adversários na internet e para o W.O. Eles se derrotaram sozinhos.

O resultado é um espanto: o único foco do presidente é ele mesmo e os filhos, a economia parou, a ação na pandemia é acusada de criminosa, a visão de meio ambiente é destrutiva, a educação é inimiga, a diplomacia virou guerra, a cultura desapareceu e a imagem dos militares está em risco. O anormal virou normal: rachadinhas, funcionários fantasmas, Queiroz escondido da polícia na casa do advogado da família presidencial.

E daí?, como diria Bolsonaro. Assim como Maduro sobrevive à destruição da Venezuela, Bolsonaro supera seus erros com a falta de adversários, sustentação militar e da polícia e apoio popular dentro do limite. Continua sendo não só o mais forte, mas o único candidato na sucessão presidencial e faz uma pirueta entre a eleição e a reeleição: joga ao mar o discurso moralista, o PSL e os neófitos vindos do ambiente policial e jurídico e navega com o Centrão, os experientes e os espertos, parando de atacar Congresso e Supremo.

Conclusão: o triste fim da polaridade PT x PSDB, que elegeu o inacreditável Jair Bolsonaro em 2018, corre o risco de reeleger o absurdo Jair Bolsonaro em 2022. E ele continua dando um banho de marketing e estratégia eleitoral. Bobo? Bobos são os outros.

 

Eliane Cantanhêde sexta, 03 de julho de 2020

DEVASSA - A GUERRA DA PGR CONTRA A LAVA-JATO ESTÁ SÓ COMEÇANDO

 

Devassa

A guerra da PGR contra a Lava Jato está só começando e pode virar uma devassa

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

03 de julho de 2020 | 03h00

A guerra da Procuradoria-Geral da República (PGR) com a força-tarefa da Lava Jato está só começando, com troca de críticas em público e de acusações nos bastidores. Vem aí uma devassa numa operação anticorrupção que ganhou fama mundo afora, mobilizou o Brasil e, com a prisão de um ex-presidente, ex-governadores, ex-presidentes da Câmara e os maiores empreiteiros do País, gerou a esperança de que a lei valeria para todos.

Segundo o procurador-geral, Augusto Aras, em conversa ontem com a coluna, “não se trata de linchar quem quer que seja, até porque isso seria cair nos mesmos vícios”. Ele, porém, admite: “Mas é preciso corrigir rumos e seguir regras universais para todos os procuradores. Não podemos ter animais que são mais iguais do que os outros, como em A Revolução dos Bichos (George Orwell)”.

 

Aras não diz isso tão claramente quanto outros integrantes da PGR, mas a avaliação é de que a Lava Jato foi ótima, até “virarem a chave”. Ou seja, até os procuradores de Curitiba passarem a ultrapassar limites e driblar a falta de provas. Assim, há um “esgotamento” do modelo e é preciso transparência e tirar o excesso de poder e voluntarismo da Lava Jato, garantindo compartilhamento de dados e a participação da PGR. “Eu sou procurador-geral e não tenho o direito de saber o que acontece em Curitiba?”, reclama Aras.

 Isso cria mais uma situação estranha num ambiente político já tão estranho. A PGR de Aras, acusado de “bolsonarista”, faz um discurso semelhante ao do PT quando o foco é Lava Jato e Curitiba, algozes do ex-presidente Lula. Como ficam os petistas? Contra Aras, mas a favor da intervenção na Lava Jato? Ou contra tudo e todos?

Aliás, pouco se fala sobre isso, mas o procurador-geral tem tomado sucessivas decisões que contrariam o Planalto. Exemplos: no combate à pandemia; na denúncia contra o deputado Arthur Lira (PP), do Centrão e aliado do presidente Jair Bolsonaro; nas “apurações preliminares” sobre declarações do deputado Eduardo Bolsonaro e do general Augusto Heleno (GSI) com viés antidemocrático. O seu teste de fogo, porém, será denunciar ou não Bolsonaro por intervenção política na PF.

O fato é que as acusações da PGR contra a Lava Jato, e da Lava Jato contra a PGR, vão piorar, com forte questionamento a ações e decisões de Curitiba. Na lista, as delações premiadas. Na avaliação da PGR e outros órgãos de controle, as multas aplicadas aos delatores não chegam a 10% de um valor razoável e eles estão leves, livres, soltos – e nadando em dinheiro desviado.

Na versão da Lava Jato, a intenção da PGR e do próprio Aras é destruir não só a operação, mas o próprio combate à corrupção. Eles dizem que é o oposto: retomar e aprofundar o combate à corrupção, que parou, em novas bases e práticas. Eles acusam a força-tarefa de ter engavetado 1.450 relatórios prontos, sem nenhuma consequência.

A lista da Lava Jato divulgada pelo site Poder 360, camuflando investigações indevidas contra os presidentes da Câmara (“Rodrigo Felinto”) e do Senado (“David Samuel”), foi só um aperitivo para tentar provar o uso de “métodos heterodoxos” da força-tarefa. Eles também não usavam simples gravadores, mas sim interceptadores. Ou seja: a PGR suspeita que grampeavam seus alvos sem autorização judicial.

Nessa guerra, ninguém está totalmente certo nem errado, mas a previsão é de que, entre mortos e feridos, os mais atingidos sejam os líderes da Lava Jato que tanta esperança trouxeram ao Brasil. Aí se chega a Sérgio Moro, o inimigo número um do PT, que passou a ser também dos bolsonaristas e agora corre o risco de ver a Lava Jato, a maior operação de combate à corrupção da história, virar um sonho de verão – ou um pesadelo.


Eliane Cantanhêde terça, 21 de abril de 2020

CHANCE ZERO

 

Chance zero?

Além de recados, cúpula militar tem de manifestar claramente repúdio a golpes e AI-5

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

21 de abril de 2020 | 03h00

Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!

No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.

No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?

O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?

Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas - ambas as funções exigem decoro e compostura.

O episódio - que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” - deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG - ou seja, da imagem das FFAA - para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.

E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?

Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos - e suas famílias - acharam o quê?

O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele me relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, nesta segunda-feira, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.


Eliane Cantanhêde sexta, 17 de abril de 2020

A GRANDE CARTADA

 

A grande cartada

Com quebra do isolamento, Bolsonaro joga o destino dele e de milhões. O futuro dirá

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

17 de abril de 2020 | 03h00

presidente Jair Bolsonaro jogou sua maior cartada na última quinta-feira, 16, ao demitir Luiz Henrique Mandetta, o ministro mais popular do seu governo, e substituí-lo por Nelson Teich, que vai começar tudo de novo com a função de dar um cavalo de pau na política do isolamento social – ou, como disse Bolsonaro, “redirecionar a posição do governo e dos 22 ministros”.

O recado teve endereço certo: os ministros, particularmente os superministros Paulo Guedes e Sérgio Moro, que apoiam, ou apoiavam, a posição de Mandetta, do Ministério da Saúde, da OMS e de todos os países desenvolvidos do mundo pró-isolamento social como a melhor forma de conter a contaminação e, consequentemente, as mortes pela covid-19.

Ainda no carro, a caminho do Ministério da Saúde para se despedir, Mandetta me disse num rápido telefonema que a derradeira conversa com Bolsonaro foi “cordial, gentil”. “Eu não posso entregar o que ele me pede”, conformava-se. “Vem aí uma dinâmica social totalmente nova, que muda tudo”, explicou, desejando sorte ao “Nelson, como é mesmo o nome dele?”. “Que Deus nos ajude a todos”, concluiu.

 Para amenizar o cavalo de pau, ou o “redirecionamento”, como anunciou o presidente, ou a “nova dinâmica social”, como chama Mandetta, o dr. Nelson Teich tratou de deixar claro que a flexibilização do isolamento virá, mas não será “brusca nem radical”.

Isso pode ser bom, se significar cautela, dentro da técnica e da ciência e com base sólida de dados, como prometeu. Mas pode ser ruim, se ele esperar para agir só depois de “um diagnóstico da doença”, de um trabalho de inteligência e de uma massificação de testes (como? de onde?) que, em resumo, pode corresponder a começar do zero. No meio da pandemia? Com o número de mortos batendo em 2 mil pessoas? Emergência é emergência.

Mandetta se vai, aliás, com alta aprovação popular, mas a pandemia fica e, o pior, o presidente Jair Bolsonaro e suas manias também ficam. O novo ministro conseguiu arrancar o compromisso do presidente de parar com provocações, de causar aglomerações, tocar pessoas nas ruas sem máscara, pular de absurdos em absurdos públicos? Provavelmente sim, o que vai confirmar que, mais do que uma questão “técnica e científica” em torno da quebra do isolamento, a birra de Bolsonaro era pessoal, contra Mandetta, e política, por ciúme da sombra que o ministro lhe fazia.

Mandetta sai da Saúde e entra nas bolsas de apostas políticas, mexendo sobretudo com o tabuleiro do DEM, seu partido e dos presidentes da Câmara e do Senado e do mais novo adversário do presidente, Ronaldo Caiado (GO). Mas o que interessa nesse momento não é política, é saúde, vida, combate ao coronavírus e o equilíbrio de tudo isso com economia, empresas e empregos. Um equilíbrio delicadíssimo, agora nas mãos de Nelson Teich. Mas com Bolsonaro mandando.

A quebra do isolamento é certa, mas é preciso saber como, quando, em que bases. E como Teich, muito respeitado no ambiente médico, vai tratar a questão, que exige não só liderança na equipe da Saúde, que não terá dificuldade em conquistar, mas também negociação com governadores, o Congresso e, eventualmente, o Supremo – que estão em pé de guerra com Bolsonaro. Teich tem de ter estratégia e também se familiarizar com a máquina e a política.

Outro grande embate entre Bolsonaro e Mandetta era em torno da cloroquina como a varinha de condão. Alguém notou que o presidente nunca mais falou nisso? E que a cloroquina foi a grande ausente dos discursos no derradeiro dia de Mandetta na Saúde? Pode ser, pode não ser, mas parece que Bolsonaro perdeu essa. Quanto à quebra do isolamento, ao qual o destino de Bolsonaro e de milhões está atrelado, o futuro dirá.


Eliane Cantanhêde sexta, 10 de abril de 2020

CLOROQUINA SIM OU NÃO?

 

Cloroquina sim ou não?

Testes são importantes, mas o fundamental é isolamento, isolamento, isolamento

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

10 de abril de 2020 | 03h00

Enquanto o mundo vai chegando a cem mil mortos (cem mil!), a cloroquina vira o grande assunto nacional, dividindo opiniões de autoridades, médicos, estudiosos, pacientes e qualquer um que esteja acompanhando as notícias sobre a pandemia ao redor do mundo, sobretudo no Brasil: a dona Maria, o seu José, quem faz isolamento, quem não faz. Virou uma febre.

A cloroquina passou a ser associada a outros remédios para tentar salvar vidas de pacientes de covid-19 em estado crítico, depois para pessoas internadas e está perto de virar remedinho para gripezinhas e resfriadinhos, qualquer um toma. Não há, porém, trabalho científico e documento de órgão oficial de saúde atestando que ela efetivamente cura no caso de coronavírus. Como disse uma epidemiologista na TV, há muita suposição, nenhuma comprovação científica.

 O governo está correto em garantir preventivamente estoques – até porque se trata de um medicamento muito barato – e a bola está, não com políticos, seja o presidente, governadores ou prefeitos, mas sim com os médicos. Cabe a eles determinar quem, quando e em que circunstâncias deve usar a cloroquina. E, se a pessoa sobreviver, é preciso comprovar se foi por causa desse remédio específico, já que são administradas diferentes substâncias.

Antes da comprovação científica, boa parte do Brasil, a começar do governo federal, aposta todas as suas fichas numa saída milagrosa: aplicação de cloroquina a torto e a direito. Todos os pacientes se curam alegremente, o número de mortos fica muito aquém das previsões, a pandemia se vai como por encanto e viveremos todos felizes para sempre. É um bom sonho, mas convém combinar com a realidade.

De acordo com a OMS e todos os países desenvolvidos – que se preveniram a tempo ou que tentam remediar após milhares de mortes – o ideal seria dividir essas fichas aí, tá ok? Investir sim nas pesquisas com a cloroquina e aplicação de plasma de curados, por exemplo, mas com prioridade para testes, leitos, adequação do sistema de saúde à emergência e para aquelas duas palavrinhas mágicas: isolamento social.

Quanto mais a realidade grita, mais as pessoas desfilam despudoradamente, sem máscaras e distância mínima, fechando olhos e ouvidos para o colapso à vista no sistema de saúde e acreditando que quem morre são os “outros”, não somos nós, nossos pais, avós, parceiros, entes queridos. Pois deveriam aprender com EUA, Itália e Espanha que, depois, não adianta chorar sobre o leite derramado – e sobre os corpos.

Ficar trancada em casa quatro semanas é chato, estranho, mas isso é o mínimo que cada um de nós tem de fazer para reduzir a contaminação de um vírus que vai se espalhando e chegando à pobreza, onde não há nem água e sabão, quanto mais álcool gel. Não dá para contar com cloroquina, é preciso agir contra o contágio.

O efeito da pandemia é terrível na economia mundial e de cada país. O Brasil não escapa disso. Mas, mais importante do que economia, empresas e empregos – que o Estado tenta proteger como pode –, o fundamental é salvar vidas. Esse é o dever, obrigação e compromisso número um dos governos e de todos nós. Isolamento, isolamento, isolamento! Enquanto seu lobo não vem e não há cura comprovada!


Eliane Cantanhêde domingo, 08 de março de 2020

TRUMP E BOLSONARO

 

Trump e Bolsonaro

Acordo com EUA amplia acesso do Brasil ao mercado de defesa mundial

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

08 de março de 2020 | 03h00

O Brasil poderá dar importante salto no complexo universo de defesa amanhã, em Miami, quando fecha um acordo com os Estados Unidos para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação de produtos nessa área. Esse acordo materializa a aliança extra-OTAN, amplia o acesso do Brasil ao riquíssimo mercado internacional de defesa e, indiretamente, melhora a posição brasileira na disputa por uma vaga à OCDE. 

Depois de jogar todas as fichas na aproximação com os EUA, sem receber o equivalente em troca, finalmente o presidente Jair Bolsonaro - que jantou ontem com Donald Trump em Palm Beach - pode dizer que está fazendo um gol. Para Defesa e Itamaraty, um golaço. Para os céticos, uma dúvida: o governo tem obsessão por defesa, mas e a desigualdade social?

 Não confundir indústria de defesa com indústria de armas e munições, que reúne só 1,7% das empresas do setor no Brasil. Todo o resto é, em resumo, nas áreas de satélites, comunicações, segurança cibernética, plataformas terrestres e navais, controle aéreo e por aí afora. De todas, só três são estatais, Emgepron, Imbel e Amazul.

Do ponto de vista estratégico, essas áreas não dizem respeito só às Forças Armadas, mas trazem benefícios para a tecnologia, a indústria em geral e a sociedade civil, como ocorreu com a internet e o GPS, entre tantos outros.

Do ponto de vista econômico, o governo considera que “o céu é o limite”, pela grande sofisticação, altos preços e mercado internacional do setor. Com o selo RDT&E, os produtos brasileiros terão outro patamar. Há, ainda, a questão da tecnologia e do treinamento de pessoal no Brasil, onde a defesa já responde por 250 mil empregos diretos e igual número de indiretos, com uma renda três vezes maior que a média nacional e um efeito multiplicador poderoso: cada real aplicado tem potencial de gerar 9,8 reais na economia.

O acordo, que será assinado pelo chefe do Estado-Maior Conjunto do Brasil e pelo comandante do Comando Sul dos EUA, não envolve recursos. Isso é uma outra história, ou um outro acordo, ainda não em discussão, mas já no radar do Brasil: o RDT&F, sendo o F de “funding”, ou financiamento. Além do acordo de defesa, Bolsonaro já assinou o decreto do “Global Entry”, para ampliar a dispensa de vistos para grandes empresários, e estão em pauta em Miami comércio, troca de tecnologia, investimentos e infraestrutura. Até por isso, é estranho que Paulo Guedes não vá. De repente, pressa para as reformas?

Não se pode diminuir a simbologia de Trump abrir as portas para um jantar, sábado à noite, para o brasileiro, mas o encontro teve caráter informal, não de reunião de trabalho para percorrer a extensa agenda comum. Até porque, cá pra nós, nenhum dos dois gosta dessas chatices.

Também não custa lembrar: quem é melhor comerciante, Trump ou Bolsonaro? Aliás, se um tema era certo no jantar, era o 5G. Trump não quer nem ouvir falar em 5G da China, só não se sabe como colocaria para Bolsonaro: em forma de advertência, ameaça ou premiação pela decisão. Mas a pressão é forte. A ver.

Para Bolsonaro, o troféu da viagem será a foto com Trump, mas Trump não é eterno, os EUA não são os únicos parceiros e a nossa verdadeira guerra é a tragédia social. Não adianta ser aliado extra-Otan dos EUA e entrar na OCDE só com o discurso de que, um dia, quem sabe, isso reverterá para toda a sociedade. Quem tem fome tem pressa.


Eliane Cantanhêde sexta, 06 de março de 2020

QUE SURPRESA?

 

Que surpresa?

É normal crescer 1%? Não. Não é normal, mas não é surpresa e faz todo o sentido

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

06 de março de 2020 | 03h00

O ministro Paulo Guedes manifestou “surpresa com a surpresa” diante do pibinho de 1,1% de 2019, que conseguiu a proeza de ser menor que o 1,3% de 2017 e  2018, apesar de pesos e condições políticas bem diferentes: o presidente Michel Temer assumiu após um impeachment, Jair Bolsonaro chegou com a força do voto. 

Na verdade, porém, não houve “surpresa” com o pibinho, mas, sim, desânimo, decepção e preocupação com o futuro. Se no primeiro ano de um governo cheio de gás foi assim, como será o segundo? Em 2019, houve Brumadinho, os embates EUA-China, se quiserem dá para incluir a crise suína na China. Em 2020, há coronavírus, Bolsas derretendo, dólar disparando e previsão de desaquecimento global, que já antecedia tudo isso. E não é só. Há muito mais para atrapalhar.

Na barafunda, uma constatação incomoda: a agenda do governo parece ter se esgotado em 2019, com a reforma da Previdência e o programa de privatizações e concessões deixado praticamente de bandeja por Temer. Logo, não dá para pular de otimismo para este ano. Nem para os próximos.

 Como o que está ruim sempre pode piorar, há um mesmo fator político em 2019 e 2020 segurando investimentos, confiança e a própria recuperação do Brasil: o presidente Jair Bolsonaro, que insiste em viver em guerra e ultrapassa limites mínimos de civilidade e de respeito ao  cargo. 

Como investir num país onde o presidente, para fugir de falar do PIB, traz em carro oficial um comediante para jogar bananas em repórteres? Eles estão ali para ouvi-lo (ao presidente, não ao comediante) e informar a população. E, não satisfeito com cenas grotescas, o presidente também age colocando em risco o aquecimento da economia, logo, a retomada dos tão desesperadamente necessários empregos. 

Além da “surpresa com a surpresa”,  Guedes declarou que a economia está “claramente acelerando” e acenou com crescimento de 2% neste ano... “se as reformas forem aprovadas”. É aí que mora o perigo, porque não  adianta botar a culpa nos deputados e  senadores, no coronavírus, em Marte ou na “herança maldita”, como fazia Lula em relação a Fernando Henrique. A responsabilidade maior pelas reformas é do Executivo e não dá para fugir disso. Ele tem de apresentar suas propostas e tem de negociá-las com o Congresso, como em toda democracia.

Há dois consensos, dentro e fora do governo. Um é que a reforma da Previdência foi um ótimo passo, mas só um primeiro passo. Outro é que o Congresso tem uma disposição muito positiva para aprovar as reformas seguintes, mas há uma questão de timing: o ano é eleitoral e, portanto,  deputados e senadores têm interesses diretos nas campanhas, aliás, legitimamente.

Se Guedes condiciona crescimento a reformas e o Congresso está disposto a aprová-las, o que está atravancando o processo? A área econômica, o Planalto, ou o próprio presidente? A reforma tributária do governo, ninguém sabe, ninguém viu. A  reforma administrativa foi fechada pela equipe de Guedes há meses e o Planalto diz que Bolsonaro já assinou, mas é um fantasma. Foi adiada uma, duas, três, sei lá quantas vezes,  atravessou o carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas, a semana seguinte e... ainda não se materializou!

Para piorar, as reformas só saem com acordo entre Executivo e Legislativo (ou “entendimento”, para não contrariar o presidente e os bolsonaristas), mas Bolsonaro, os filhos e seu entorno não param de atacar os “chantagistas” do Congresso e  torcem pelos protestos que terão Rodrigo Maia na mira das pedradas.

Para o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, “não é normal um país como o Brasil crescer 1% ao ano”. De fato. Nada é surpresa, nada é normal, mas tudo faz sentido.


Eliane Cantanhêde quarta, 04 de março de 2020

SEM BICHO-PAPÃO

 

Sem bicho-papão

Não há clima, maiorias e lideranças para dar golpes nem articular impeachment

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

03 de março de 2020 | 03h00

Deveria causar escândalo, mas conseguem no máximo gerar preguiça e cansaço a facilidade e a frequência com que as pessoas fazem duas perguntas perigosas, mas tratadas como corriqueiras, parte da paisagem: Vai ter golpe? Ou vai ter impeachment?

Se fosse apenas questão de estilo, já seria péssimo, mas todos esses ataques vêm num contexto em que Bolsonaro enaltece ditadores sanguinários, seu filho admite a volta do AI-5 (toc toc toc) e já disse, sem a menor cerimônia, que bastaria “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo. 

Assim, quando Bolsonaro transforma o Planalto num QG, o general Augusto Heleno xinga os parlamentares e fala em “povo na rua” e o governo deixa de condenar com a devida veemência o motim de PMs no Ceará... a lista começa a ficar grande e preocupante. 

Só faltava o presidente da República convocar pelo WhatsApp uma manifestação que tem entre os objetivos protestar contra o Congresso e o Supremo. Divulgados os vídeos pela colega Vera Magalhães, o que fez o presidente? Mentiu! Mentiu ao dizer que se tratava de peças de 2015. Com imagens da facada? Foi em 2018. Com o brasão da Presidência? A posse foi em 2019.

Esse roteiro sugere um teste, um avança e recua, de olho nas reações das Forças Armadas e das redes sociais. E é aí que surge um fato novo depois que o Planalto aumentou o tom contra o Congresso: a maioria militar silenciosa, particularmente do Exército, começou a demonstrar desconforto e a dizer algo assim: “Aí, não!” 

Assim, mesmo que houvesse algum projeto ou sonho golpista, fica-se sabendo que não há, em absoluto, unanimidade na área militar. Se há algo próximo a unanimidade é em sentido contrário: ninguém quer ouvir falar em golpes. Marinha e Aeronáutica estavam e continuam mudas e o Exército começa a perceber que tem muito mais a perder do que a ganhar, inclusive historicamente, ao se confundir com arroubos autoritários tão fora de tempo e de propósito. 

Mais do que isso, porém, nunca é demais repetir o que está registrado em várias oportunidades aqui neste mesmo espaço: o Brasil não é uma Venezuela. Tem instituições, mídia, opinião pública, enorme capacidade de reação, ou, antes, de dissuasão de projetos tresloucados. Há uma rede de resistência. 

Quanto a impeachment, não custa lembrar que isso não é como aspirina, que se usa a qualquer hora, para qualquer eventualidade. O Brasil passou por dois afastamentos de presidentes no curto espaço de tempo desde a redemocratização e não se ouve absolutamente ninguém com um mínimo de liderança e de responsabilidade admitindo e muito menos discutindo essa hipótese. 

Aliás, o presidente chamou atenção na live de quinta-feira também ao, do nada, em bom e alto som, anunciar: “Não vou renunciar ao meu mandato!”. Quem disse que iria? Ninguém. Trata-se de uma frase que oscila entre o político e o psicológico, expondo uma característica de Bolsonaro: a mania de perseguição. Ao ver inimigos por toda parte, ele se antecipa e parte para o ataque antes de saber se seria atacado. 

E fica falando sozinho. Nem o seu maior adversário aventa a hipótese de renúncia, ou de impeachment, assim como boa parte dos seus apoiadores militares não quer nem ouvir falar em golpe. A saída é outra, é o presidente se comportar como... presidente. E focar no essencial, a economia, a estabilidade, o País.


Eliane Cantanhêde domingo, 01 de março de 2020

A FORÇA EMERGENTE

 

A força emergente

Governadores socorrem Ceará e se unem a STF e Congresso para exigir espírito republicano

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

01 de março de 2020 | 03h00

O que têm em comum o advogado e ex-juiz Wilson Witzel, do Rio, de direita e do PSC, e o engenheiro agrônomo e professor Camilo Santana, do Ceará, de esquerda e do PT? Os dois integram a nova força emergente, e de resistência, nessa tão emaranhada e preocupante política brasileira: a frente de governadores.

Bastou o presidente Jair Bolsonaro ameaçar não prorrogar o uso da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e lavar as mãos diante da crise no Ceará para Witzel e os governadores de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), e de São Paulo, João Doria (PSDB), articularem o envio de tropas para socorrer o colega Santana e a população cearense.

Doria se dispôs a enviar 100 homens, 20 viaturas e dois drones da PM paulista, enquanto fazia consultas à procuradoria sobre o seguro para os homens da operação em outro Estado. O importante, para os governadores, era dar o recado para Bolsonaro e não deixar o Ceará ilhado entre bandidos agindo à luz do dia e PMs amotinados.

Simultaneamente, Camilo Santana estudava entrar com recurso no Supremo para obrigar o presidente a manter o Exército no Estado, de acordo com a Constituição. Em live na internet, Bolsonaro referiu-se à “minha GLO”. A GLO não é dele, muito menos deve ficar ao sabor de disputas politicas, mas mesmo assim seria drástico jogar o Supremo na mais nova crise entre Planalto e governadores e mais lenha na fogueira entre os Poderes.

Foi pela dupla pressão, dos governadores e da possível interferência do Supremo, que Bolsonaro decidiu e finalmente anunciou a prorrogação da GLO no Ceará, onde as negociações entre o governador e os PMs rebelados empacaram numa palavra: anistia.

Bolsonaro parece tratar tudo isso na base do “bem feito!”. Não percebe que quem está contra a parede hoje é o petista Camilo Santana, mas quem poderá estar amanhã é o País todo. Se o Ceará ceder e anistiar facções de uma força armada que tomaram de assalto quartéis, fecharam o comércio, tomaram viaturas policiais, desfilaram encapuzados e miraram para matar num senador licenciado, isso será um pavio de pólvora. Bolsonaro não lucra nada com isso.

Em reunião no Ministério da Defesa, quinta-feira, ele ouviu um balanço da presença da Força Nacional e do Exército no Ceará e tomou para si a decisão de prorrogar ou não a GLO. No caso dele, uma decisão envolvendo dados reais, a disputa ideológica e, digamos, o seu jeito de ser. A vontade irresistível de dar mais um tranco nos governadores. Eu sou presidente, eu posso...

Como pano de fundo, há a complexa questão das PMs, que são militares, mas não são subordinadas às Forças Armadas e sim aos governos estaduais. Convivem com as regras políticas dos governadores e lembram que são militares quando, por exemplo, tentam absorver regras camaradas na reforma da Previdência.

O fato é que 20 dos 27 governadores unem-se ao Supremo e ao Congresso para defender o equilíbrio da República, a democracia, os bons modos e o velho princípio de que “respeito é bom e eu gosto”. Os de São Paulo e Rio dão voz à reação, os do Nordeste tratam de controlar as contas públicas, atrair investimentos e manter os ganhos sociais. Há muitas divergências entre eles, mas trabalham o que há de comum.

É isso que Bolsonaro deveria fazer: marcar posição no que há de divergente, mas atuar em conjunto no que é de interesse do País e da Nação. Aliás, como ocorre quando governo federal e governo de São Paulo somam esforços contra um inimigo de todos, o coronavírus. Essa, sim, é uma ação republicana, ninguém perde, todos ganham. Mas é preciso algo que parece em falta: postura de estadista, noção da importância e dos limites do cargo. Ou seja, grandeza política e pessoal.


Eliane Cantanhêde sexta, 28 de fevereiro de 2020

UM VÍRUS SEM IDEOLOGIA

 

Um vírus sem ideologia

Acima da política, União e SP fazem tudo contra o coronavírus, mas tudo é pouco

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

28 de fevereiro de 2020 | 05h00

Tudo o que pode ser feito para enfrentar a chegada do tsunami coronavírus está sendo feito pelo governo federal, pelo governo de São Paulo e pelos setores públicos e privados, acima das questões políticas. O grande problema é que esse “tudo” é muito pouco. Como também ao redor do mundo, nos quase 50 países que já convivem com o vírus circulando. 

Sem vacina para prevenir, sem antivirais comprovados para remediar, só é possível fazer o óbvio, como admite o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, um personagem que emerge bem nessa crise. A primeira coisa é tentar detectar os casos suspeitos, não mais só em portos e aeroportos, mas também em solo nacional. Com a confirmação do primeiro caso, de um homem de 61 anos em São Paulo, o vírus está no ar. 

A segunda medida é distinguir os sintomas leves, como no caso desse passageiro, daqueles em estado grave. Os casos leves podem ser tratados em casa, para reduzir o risco de contágio e não sobrecarregar o sistema público de saúde e mesmo os leitos privados. Só os que comprometam a capacidade respiratória devem merecer internação. 

É muito mais fácil monitorar pessoas em ambiente restrito do que ameaçar alastrar a doença em locais congestionados e por onde circulam pessoas que já estão com a imunidade baixa e suscetíveis, como hospitais. 

A terceira medida, de imensa importância, é evitar a qualquer custo que se alastre o pânico, a corrida a hospitais, um corre-corre inútil e perigoso que, como efeito colateral, pode despertar a cobiça de aproveitadores. 

Para que correr às farmácias para comprar máscaras? Há inúmeros artigos e entrevistas por toda parte alertando que máscaras não evitam o contágio e – pior – podem favorecê-lo. A máscara é insuficiente para isolar o vírus, mas faz com que as pessoas fiquem toda hora tentando ajustá-la, ou seja, levando as mãos ao rosto. É péssimo. 

O importante é fazer o básico: lavar as mãos, lavar as mãos, lavar as mãos, ou com a boa e velha fórmula da água e sabão ou usando o álcool gel. E, claro, evitar corrimão, superfícies muito tocadas, multidões, contatos com estranhos e... mãos no rosto. É simples, simplório, mas é o que temos por ora. 

Dez entre dez especialistas sabiam e advertiam que a chegada do coronavírus ao Brasil não era questão de “se”, mas de “quando”. Inevitável. Só não se sabia, como não se sabe, dimensionar nem o tamanho do impacto na população nem na já tão frágil economia. 

Há uma torcida, quase uma reza coletiva, inclusive de Mandetta, para que o grande inimigo do vírus no Brasil seja o clima úmido e quente de verão. Mas só saberemos disso na prática e nunca se pode esquecer que a Região Sul não é tão quente assim. A preocupação aumenta quanto mais se olha na direção ao Rio Grande do Sul. 

Ao mesmo tempo, há doídas, sofridas interrogações sobre o quanto e por quanto tempo a economia global e a economia nacional serão impactadas. A China, segunda maior economia do mundo e nosso parceiro comercial número um, é o epicentro da doença, que se alastra e pegou a Europa em cheio, principalmente a Itália, que nos exportou o vírus. 

Pobre Brasil. Depois dos dois anos da recessão gerada por Dilma Rousseff, vieram Rodrigo Janot, primeiro, e greve de caminhoneiros, depois, para interromper a retomada do crescimento no governo Temer. Agora, quando a aprovação da reforma da Previdência jogou toneladas de otimismo, vem uma pandemia (ainda não confirmada como tal pela OMS) atrapalhar. 

Quanto às investidas do presidente Jair Bolsonaro contra tudo e todos, que só atrapalham, nem é bom falar. É hora de união, paz e segurança. O coronavírus é demoníaco. E se lixa para partido e ideologia. 


Eliane Cantanhêde terça, 25 de fevereiro de 2020

CEARÁ, CASO EXEMPLAR

 

Ceará, caso exemplar

Presidente não pode calar nem governador ceder, para evitar ideia de que motim vale a pena

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

25 de fevereiro de 2020 | 03h00

Se foi rápido no gatilho para falar do capitão Adriano, um dos maiores líderes de milícias do Rio de Janeiro, morto num cerco policial na Bahia, o presidente Jair Bolsonaro até ontem não havia dito uma só palavra sobre os policiais militares que fazem motim no Ceará, aquartelados, armados, encapuzados e atacando carros da própria polícia.

Pode-se pensar que Bolsonaro fala de um caso e ignora o outro em defesa das polícias, mas não se trata disso. Se ele chamasse de “heróis” e defendesse os policiais honestos que têm uma missão difícil, trabalham em condições adversas e arriscam suas vidas em prol da segurança, seria louvável. Mas o foco dele, na fala e no silêncio, é a banda podre, que faz milícia, faz motim, comete crime militar.

Isso é absurdo para um presidente da República, mas condiz com a história de Jair Bolsonaro, acusado e processado por ter planos e croquis para bombardear quartéis militares. Depois, conquistou mandato de deputado com votos de policiais e evangélicos e desperdiçou 28 anos na Câmara com questões corporativistas.

 Num dos maiores motins policiais do País, em 2017, no Espírito Santo, Bolsonaro não se limitava a defender os amotinados. Reportagem do Estado de 25 de fevereiro daquele ano, sob o título “Rede de Bolsonaro na teia do motim”, mostra que o grupo do então deputado estava por trás da grande rede de divulgação do movimento. Num vídeo visualizado por dois milhões de pessoas, ele defende os revoltosos e fala da possibilidade de o movimento se espalhar para outros Estados.

O que se espera, agora, é que Jair Bolsonaro entenda que, como presidente, não pode apoiar motins militares nem movimentos que comprometam a Constituição, a ordem pública e as já tão combalidas contas públicas. Não pode aplaudir ou fechar os olhos para os desmandos de uma categoria específica, sabendo que o prejuízo é da sociedade brasileira.

As polícias estão empoderadas, com assentos em governos e legislativos e achando que, com Bolsonaro, podem tudo. O problema começa quando uma parte delas – a pior – sente que tem costas quentes, pode descumprir a Constituição e se recusar a garantir a segurança dos cidadãos. Isso não corresponde a empoderar as polícias, mas sim a dar sorte ao azar com multiplicação de milícias e ataques ao Orçamento público – como o governador Romeu Zema, por medo, inexperiência ou má assessoria, fez em Minas Gerais.

No caso do Ceará, o governo federal fez o que tinha de fazer: destacou a Força Nacional, decretou Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e enviou os ministros da Defesa, general Fernando Azevedo, e da Justiça, Sérgio Moro, para verificar a situação in loco. Isso, porém, visa a segurança da população, não os PMs amotinados, que são problema do governo do PT e mandaram o comércio fechar portas, atacaram carros da própria polícia e atiraram no peito de um senador, em ações mais de bandido do que de policial.

A questão tem de ser tratada como ela é: motim militar, com os amotinados sujeitos à lei, à justiça e às devidas penas. O presidente não pode se calar e os governos não podem ceder à quebra da lei e negociar anistia. Senão, o recado estará dado para todas as polícias do País, ou melhor, para a parte ruim das polícias: “façam motim, vale a pena”. A questão, portanto, é exemplar. Chantagem por chantagem, nada é pior do que a chantagem armada, que lida com a vida e a morte.

Quanto ao bate-boca dos irmãos Gomes com os irmãos Bolsonaro, é melhor não ver, não ouvir, não comentar, porque nada de útil sai daí. Perdemos todos, perdem eles, perde a civilidade, já tão rara nesses nossos tempos bicudos. Afinal, o que esses dois lados pretendem?

 

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Tropas de militares do Exército reforçam a segurança nas vias públicas da cidade de Fortaleza, no Ceará, nesta segunda-feira, 24.
Foto: JARBAS OLIVEIRA

Eliane Cantanhêde domingo, 23 de fevereiro de 2020

O CONTROLE DO MUNDO

 

O controle do mundo

Recado dos EUA: opção pelo 5G chinês pode comprometer negociações na área de defesa

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

23 de fevereiro de 2020 | 03h00

O Brasil está sofrendo pressões dos dois lados de uma guerra pós-contemporânea que tende a ter grande impacto na humanidade e tem nome curto, na verdade, uma sigla: 5G. Por trás desse avanço revolucionário há uma disputa entre Estados Unidos e China pela dominação do mundo no futuro. 

Parece exagero? Pode ser, mas os estrategistas dos países desenvolvidos se debruçam sobre o tema e o governo brasileiro, providencialmente cauteloso, criou um grupo de trabalho para analisar a questão sob os vários aspectos que ela abrange: financeiro, tecnológico, econômico e político, considerando a segurança de dados públicos, privados e individuais. Não é pouco. E não é fácil. 

Tanto os chineses pressionam o Brasil a favor do 5-G da Huawei, alegando preços menores e capacidade maior, quanto os americanos trabalham em sentido contrário, alertando para a “ameaça” que pode representar para a soberania nacional uma empresa estatal da China na área de dados.  

Em resumo, há temor de que a China, hoje segunda maior potência, possa usar o 5G para não só coletar, mas manipular dados de defesa, comunicações, energia elétrica, estradas, controle aéreo e florestas. Além de reunir o maior banco de dados de indivíduos do mundo. O governo chinês, que não é exatamente uma democracia, teria o controle de algo preciosíssimo nas disputas entre potências: informação. E, pior: poderia ter o controle remoto do funcionamento de todo o País. Com um botão, desligar uma hidrelétrica. 

Evidentemente, nenhum dos dois lados é santo e os Estados Unidos não estão preocupados em preservar dados e bases estratégicas brasileiros, mas sim sua própria hegemonia. Aliás, faz pouco tempo, uns cinco anos, que se descobriu que a NSA, agência de espionagem americana, grampeava a presidente Dilma Rousseff, 29 membros do governo e estatais, como a Petrobrás

Já que o presidente Jair Bolsonaro vai aos EUA em março, é bom lembrar que a diplomacia, a economia e a agricultura brasileiras têm recolocado no eixo as relações com a China, que haviam sido ameaçadas pelo presidente, mas a prioridade das prioridades é a parceria com os EUA, ou melhor, com o governo Donald Trump

Essa parceria vai bem, com pelo menos dez pontos prioritários. Trump lota aviões de brasileiros ilegais (que aumentaram entre 700% e 1000% em 2019) para despejá-los de volta, mas Bolsonaro lava as mãos e até estimula, considerando que esse é um problema menor. Quem arrisca que se vire. O importante é o interesse nacional. 

Brasil e EUA, que se unem a regimes como o da Hungria Polônia tendo como pretexto uma tal de “Aliança pela Liberdade Religiosa”, estão na verdade construindo um eixo internacional ideológico, de direita. E isso serve de liga para uma aproximação bilateral crescente em comércio, investimentos, energia, uso da Base de Alcântara (MA), pesquisa, tecnologia, cooperação em diferentes áreas, inclusive defesa, tão cara a Bolsonaro. 

E é precisamente aí, nesse pacote, que o governo americano tem mandado um recado nada sutil para o brasileiro: as negociações e acordos vão de vento em popa, mas uma eventual adesão do Brasil à tecnologia 5G da China terá consequências e poderá prejudicar a aproximação, principalmente na área de defesa. 

As guerras já foram com soldados em terra, passaram a ser por mísseis, resvalaram para uma fase nuclear e agora caminham para ser mais sofisticadas. A nova guerra é digital, pelo controle do mundo via dados. Não tem jeito: o 5G veio para ficar e, assim como todos os países, o Brasil vai ter que optar pelo modelo que melhor lhe convier, estrategicamente. Mas todo cuidado é pouco na hora de decidir. Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. 


Eliane Cantanhêde terça, 18 de fevereiro de 2020

EVOLUÇÃO DA DEMOCRACIA

 

Evolução da democracia

Quem se lembra de 20 governadores reagindo unidos a ataques de um presidente?

 

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

18 de fevereiro de 2020 | 03h00

Quem planta chuva colhe tempestade, como diz um velho ditado que, hoje, cabe perfeitamente no presidente Jair Bolsonaro. Pode ter havido, mas é difícil lembrar se algum dia, em algum momento da história, 20 governadores se reuniram para reagir à chuva de ataques de um presidente como uma tempestade em forma de carta aberta. Não é trivial, nem foram poucos.

Os líderes dessa reação foram eleitos na onda bolsonarista, como João Doria (SP)Ibaneis (DF) e Wilson Witzel (RJ), mas agora exigem do presidente da República algo que não faz parte da personalidade, da cultura e dos costumes políticos dele: “Equilíbrio, sensatez e diálogo”.

O então recém eleito Jair Bolsonaro participa do Fórum dos Governadores; relação com chefes do Executivo dos Estados vem se desgastando de lá para cá Foto: Ernesto Rodrigues/Estadão

Qual a última do Bolsonaro? Essa perguntinha ácida que não quer calar virou uma constante no dia a dia de Brasília – e não só de Brasília. Pois a última foi, simplesmente, jogar no colo da PM da Bahia, frisando que é “do PT”, a queima de arquivo do capitão Adriano, aquela figura sinistra que tanto fez que acabou sendo preso, expulso da PM no Rio e finalmente morto numa emboscada policial na Bahia.

Para Bolsonaro, antes de dar uma nova “banana” para os jornalistas, um cara com tal currículo em algum dia foi “herói”. E foi nessa condição que ele foi homenageado três vezes pelo então deputado Jair Bolsonaro e pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, primogênito do atual presidente.

Flávio homenageou o capitão Adriano duas vezes, uma delas com a medalha Tiradentes, principal honraria da Assembleia do Rio. Em que ano foi isso? Em 2005. E onde estava o “herói” Adriano naquele momento? Preso! Era suspeito de ter matado um pobre e jovem guardador de carros que tinha tido a coragem de denunciar achaques da turma de Adriano na PM do Rio.

Responda rapidamente: quem é mais herói, o pobre coitado que denunciou abusos da polícia, ou o policial acusado de matá-lo torpemente?

O atual presidente da República já deu sua resposta. Na época, em sintonia com o filho, ele fez um discurso no Congresso Nacional defendendo o crápula. Hoje, insiste em que, naquele momento, tratava-se de um “herói”. Cá entre nós, o Brasil já teve heróis melhores, menos sanguinários.

Bem, essa história já é horrorosa por si só, inclusive porque o gabinete de Flávio quebrou o galho de Adriano , quando ele caiu em desgraça, contratando sua mãe e sua ex-mulher. Não satisfeito, o presidente Bolsonaro resolveu tirar o corpo fora, passar a mão na cabeça do filho e empurrar a culpa por uma eventual queima de arquivo para o colo de um governador, que, não por acaso, é de oposição e do PT.

Responda rapidamente de novo: onde o capitão Adriano liderava a milícia conhecida como “Escritório do Crime” e onde passou a vida inteira, no Rio ou na Bahia? Onde ele virou PM, “herói” e foi preso e expulso da corporação, no Rio ou na Bahia? Afinal, era um arquivo vivo no Rio ou na Bahia? E quem tinha interesse em sumir com ele, a polícia e os poderosos do Rio ou o PT da Bahia?

Assim, Bolsonaro transformou a questão numa chuva que virou tempestade política. Até porque ele é reincidente. Já foi grosseiro e preconceituoso ao dizer que “daqueles governadores de Paraíba (sic), o pior é aquele do Maranhão (Flávio Dino, do PCdoB). Depois chamou todos os governadores para a briga quando lançou um desafio impossível, de zerarem os impostos sobre combustíveis, e assim jogou os governadores contra a opinião pública. E, por fim, excluiu os nove governadores da Amazônia do Conselho da... Amazônia.

Na carta, os 20 governadores destacam que essas declarações e o confronto constante “não contribuem para a evolução da democracia no Brasil”. Muito difícil, por essas e outras, não concordar com eles.


Eliane Cantanhêde domingo, 16 de fevereiro de 2020

ONDE HUCK SE ENCAIXA

 

Onde Huck se encaixa

Huck tira votos do PT, mas precisa ser considerado pelo eleitor de Bolsonaro

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

16 de fevereiro de 2020 | 03h00

Ano eleitoral, nervos à flor da pele e o instinto de preservação da espécie política em alerta. Afinal, para onde vão os ventos da polarização brasileira? E é assim que começam as pesquisas formais e informais, as conversas que extrapolam partidos e os cálculos sobre os investimentos, não só para o outubro como também, ou principalmente, para 2022. O senador Ciro Nogueira, do PP do Piauí, começou a sentir “um declínio muito grande do PT e quis sentir para onde esses votos estavam migrando”. Encomendou pesquisas, ou melhor, levantamentos sem controle de amostra, em cidades representativas, e surpreendeu-se com o resultado. Agora, anima outros partidos, como o PDT, e outros estados, como Tocantins, a fazerem o mesmo: detectar a movimentação dos votos.

No Piauí, foram escolhidas duas cidades onde o PT deu um banho em 2018, refletindo o poder vermelho no Estado e em todo o Nordeste. E esses levantamentos do senador, feitos em dezembro para consumo próprio, sem registro oficial, mostram a entrada em cena de um novo personagem: Luciano Huck, o apresentador de TV que nem partido tem, mas já mostra a cara, monta equipe e prepara plano de governo.

Luciano Huck
O apresentador e empresário Luciano Huck  Foto: Gabriela Biló/Estadão
 

Em Picos, o petista Fernando Haddad teve 74,74% (30.013 votos) no segundo turno e Jair Bolsonaro, 25,26% (10.143). No levantamento agora, Haddad caiu para 38,4, Huck ficou em segundo, com 24,8%, e Bolsonaro recuou para 20,1%. Em Floriano, Haddad teve 74,87% no segundo turno, com 24.011, contra Bolsonaro, 25,13%, com 8.059. Hoje, pelo levantamento, Haddad despenca para 37,9%, Huck dispara para 27,9% e Bolsonaro reduz o seu teto para 17,7%. Obviamente, trata-se de duas pequenas cidades de um único Estado, mas são assim que as coisas começam: daqui e dali, dando indícios, sugerindo rumos. Com o próprio Jair Bolsonaro, poucos prestaram atenção e acreditaram quando ele começou a pipocar. Deu no que deu.

Portanto, é importante detectar tendências, partindo dos votos reais de 2018 e vendo a evolução do humor dos eleitores. Em resumo, a força do PT e de Haddad vem de baixo para cima, concentrada nos menos escolarizados e de menor renda, enquanto Bolsonaro cresceu e venceu no sentido oposto. Seus votos aumentaram na proporção da renda e da escolaridade do eleitor. Cruzando-se essa constatação com levantamentos que o próprio Luciano Huck mantém sistematicamente, há uma base de análise interessante para 2022. Nelas, o potencial de Huck está justamente nas classes C, D e E, onde se concentram seus telespectadores. Conclusão: Huck compete diretamente com o PT, qualquer que seja o candidato petista. Assim, suas chances presidenciáveis, que ainda são uma incógnita (como a própria candidatura), dependem de sua capacidade de tirar votos do PT, para então ser levado a sério entre os eleitores de Bolsonaro. De baixo para cima.

Um processo de reeleição favorece quem, como Bolsonaro, tem o cargo, a caneta e o excesso de exibição à mão, e não se sabe se Huck terá estômago e coragem para entrar em campanha, mas ele está aí, reúne a boa vontade de um ex-presidente, ex-governadores, economistas de peso e líderes partidários consideráveis.

Logo, convém que não se repita com Huck o que ocorreu com Bolsonaro: enquanto as elites torciam o nariz e nós, jornalistas, considerávamos a pretensão absurda, o capitão foi crescendo, se impondo como realidade eleitoral. A internet e a massificação de uma inverdade – de que só ele bateria o PT - fizeram o resto. São três anos, há muito chão pela frente, mas não vamos fechar os olhos para as possibilidades que se colocam, inclusive considerando que o PT, mesmo ferido e dependente patológico de Lula, tem força, recall e discurso. O tabuleiro está em aberto, mas é preciso prestar atenção nas peças e como elas se mexem.


Eliane Cantanhêde sexta, 14 de fevereiro de 2020

DE GUEDES PARA LULA

 

De Guedes para Lula

Ministro devolveu a Lula e ao PT a marca social e o slogan do rico contra o pobre

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

14 de fevereiro de 2020 | 03h00

Em geral correto no conteúdo e desastrado na forma, o ministro Paulo Guedes acaba de dar de bandeja uma superbandeira política e eleitoral para o PT e Lula. “Empregada doméstica indo pra Disneylândia? Uma festa danada. Peraí!”, disse o ministro, que acaba de passar férias em... Miami!

Paulo Guedes

O ministro da Economia, Paulo Guedes Foto: Sérgio Moraes/Reuters
 
 

Assim como há no Brasil o reino da piada pronta, Guedes introduz agora o slogan pronto de campanha. Só que da oposição, do adversário. Já dá para ouvir Lula e candidatos petistas entoando País afora: “Empregada doméstica indo pra Disneylândia? Uma festa danada Peraí!”. Nenhum marqueteiro maquiavélico faria melhor.

Para piorar as coisas para o bolsonarismo e melhorar para o petismo, a declaração foi exatamente na véspera de Lula se encontrar com o papa Francisco no Vaticano, por uma hora e em lugar reservado, para, segundo Lula, discutirem um “mundo mais justo e mais fraterno” e “a experiência brasileira no combate à miséria”. 

“Justiça”, “fraternidade”, “combate à miséria” remetem às origens e aos propósitos anunciados na criação do PT, há 40 anos – ou seriam séculos? E, mais do que isso, marcam um contraponto poderoso ao presidente Jair Bolsonaro e ao bolsonarismo, que investem em “família”, “empresários”, “armas” e “combate à corrupção”.

O maior troféu de Lula, porém, foi a foto com o papa. O presidente mais popular da história recente brasileira e o papa mais humanista, inclusivo e generoso em décadas. Às favas os fatos, ora, os fatos: a prisão, a condenação em primeira e segunda instâncias, os processos, o envolvimento de filhos, as relações promíscuas entre público e privado, o favorecimento pessoal. E os erros do PT, sem autocrítica.

Com o foco obviamente no governo, como sempre é, essas coisas vão perdendo interesse e espaço para manifestações surpreendentes do presidente Bolsonaro, dos ministros da Economia, da Educação, das Relações Exteriores, dos Direitos Humanos. E não são só manifestações, mas, às vezes, também ações que chocam e vão escancarando a real alma do governo.

Nesta semana, Paulo Guedes tinha acabado de pedir desculpas publicamente por chamar os funcionários públicos de “parasitas”, como também de apagar um incêndio criado pelo próprio Bolsonaro. Num rompante populista, o presidente tinha desafiado os governadores: se eles zerassem os impostos sobre combustíveis, a União faria o mesmo. Era uma bravata, praticamente impossível. E lá se foi Guedes acalmar os governadores. Segundo ele, foi só um “mal-entendido”.

Tudo parecia estar se acalmando, mas a guerra continua. Ato contínuo, o governo atacou de novo os governadores, desta vez os nove da Amazônia. Depois de excluir a sociedade civil do Conselho Nacional do Meio Ambiente, limou os governos estaduais do Conselho da Amazônia. Se há uma coisa que Bolsonaro não gosta é de conselhos, contraditório, visões diferentes, debates...

Logo, as empregadas domésticas não estão sozinhas. Fazem parte de uma lista longa, e crescente, de alvos de Bolsonaro e de seu governo: jornalistas, ambientalistas, pesquisadores, professores, estudantes, diplomatas, policiais federais, auditores fiscais, políticos e governadores.

Lula e o PT estão fazendo festa. Eles não acertam uma, mas lucram com os erros absurdos do presidente e seu governo. Basta jogar parado.


Eliane Cantanhêde terça, 11 de fevereiro de 2020

DO CAOS À ELEIÇÃO

 

Do caos à eleição

Chapa Haddad-Marta contra 'azuis', 'verdes' e 'verdes desbotados' em outubro

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

11 de fevereiro de 2020 | 03h00

Nada como o caos de ontem em São Paulo, com a cidade dramaticamente debaixo d’água, para nos lembrar que as eleições municipais estão logo aí e o quanto é importante acompanhar os nomes, articulações e alianças em construção para disputar a Prefeitura da mais rica e estratégica capital do Brasil. Aliás, não só dela.

Há ainda muitas dúvidas, mas começa a se desenhar uma chapa no campo da esquerda: Fernando Haddad, do PT, com Marta Suplicy na vice, ainda sem partido definido. Na avaliação dos articuladores, Haddad e Marta têm “recall”, já foram prefeitos da capital paulista e são complementares eleitoralmente, ele com classe média alta e academia, ela com as periferias e movimentos sociais.

 
 
Marta Suplicy
Marta Suplicy durante campanha das eleições municipais de 2016 Foto: Daniel Teixeira/Estadão
 

Marta não diz claramente, mas já definiu que não quer ser cabeça de chapa, ir a debates, fazer campanha de rua. Também não aceita ser vice de qualquer um, ou uma, apenas de Haddad. São decisões ditadas pelo coração, mas encontram sua dose de pragmatismo nas pesquisas de opinião.

Abdicar de disputar a Prefeitura faz sentido para Marta, que fará 75 anos em março, não quis tentar a reeleição ao Senado, não tem mais prazer em campanhas extenuantes e só mantém uma meta política: voltar à Prefeitura de São Paulo, a função mais gratificante que ocupou em sua vida pública.

Mas, como assim? Ela não quer concorrer a prefeita, só a vice... Sim, mas a campanha à Prefeitura será só um trampolim para Haddad entrar na eleição ao governo do Estado daqui a dois anos. Ou seja: em caso de vitória, ele seria prefeito nos dois primeiros anos e Marta, nos dois últimos.

Haddad ainda demonstra resistência ao projeto, mas soldado não foge da guerra e a gente sabe como é a política: nem sempre se faz o que quer, mas o que é preciso fazer. Isso vale particularmente para o PT, onde todos aguardam o que “o sr. mestre mandar”. O sr. mestre, claro, é Lula

Quanto a Marta, ela ontem jantou com o deputado Paulinho da Força Sindical, principal líder do Solidariedade, assim como tem conversado com a Rede, o PDT e o Pros. Nesses encontros, pede voto para Haddad e dá para apostar que ouve um mar de lamentações contra o PT, o aliado que sempre exige hegemonia, só aceita aliados como coadjuvantes e nunca faz autocrítica.

Em geral, ela ouve convites para ser candidata a prefeita e responde que prefere ser vice. Diante de caretas e má vontade com o PT, joga na mesa um argumento poderoso: pesquisas mostrando que Haddad e Marta têm 80% de chance de chegar ao segundo turno. A partir daí, só pedreira.

Tudo indica que haverá três a quatro forças disputando o primeiro turno. Além da “vermelha”, tem a “azul”, tucana, com o prefeito Bruno Covas e o governador João Dória; a “verde”, bolsonarista, com Datena ou Paulo Skaf, que sonha na verdade com o governo; e a “verde desbotada”, ou dissidente, que pode se lançar solo com a dupla Joice Hasselmann e Janaina Paschoal, ou fechar com a “azul”.

Em todas essas composições há interrogações. E a saúde de Bruno Covas? Datena topa ou vai roer a corda, se preparando para quando 2022 chegar? Se ele desistir, Skaf aceita a vaga? Joice e Janaina têm fôlego para ir tão longe sem o sopro do presidente Jair Bolsonaro? De todo modo, os “vermelhos” parecem mais unidos, os outros se dividem.

Quanto ao segundo turno: é forte a possibilidade de se repetir a velha polarização paulistana, entre direita e esquerda, mas vai ficando inviável os “azuis” de Doria e os “verdes” de Bolsonaro fecharem uma frente contra os “vermelhos” de Lula e Haddad, reforçados por Marta. A ojeriza ao PT continuará sendo um poderoso ativo eleitoral, mas o “Bolsodoria” dificilmente se repetirá. O 2018 já era, o que interessa é 2022.


Eliane Cantanhêde domingo, 09 de fevereiro de 2020

GUERRA SANTA

 

Guerra Santa

Católicos e evangélicos são sugados para a polarização entre Bolsonaro e Lula

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

09 de fevereiro de 2020 | 03h00

O ex-presidente Lula adiou seu depoimento à Justiça no dia 11 para se encontrar com o papa Francisco no Vaticano. O presidente Jair Bolsonaro deu lugar de destaque no palanque e na foto do 7 de Setembro ao bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. E é assim que as religiões vão sendo sugadas para o centro da polarização política no Brasil.

 

Igreja Católica (ou parcela expressiva dela) se aliou a Lula e aos movimentos sociais na resistência à ditadura militar e esteve por trás da fundação do PT em 1980, ao lado de sindicatos, universidades e escolas. A aliança atravessou a Lava Jato sob silêncio e constrangimento.

As igrejas evangélicas, tradicionais e neopentecostais, estão há muitas eleições na base de Bolsonaro, seus filhos e ex-mulheres no Rio e compõem a “bancada da Bíblia”, mais forte e organizada no Congresso do que partido 

O resultado é que o embate direto entre Lula e Bolsonaro e entre esquerda e direita ameaça se transformar num teste de forças também entre a estagnada Igreja Católica e as emergentes igrejas evangélicas. A tentativa de articular uma fusão desses grupos numa frente única no Congresso até existe, mas é duvidosa.

O que falar de uma foto de Lula com Francisco? Terá uma força política considerável, fazendo o link entre a imagem do papa mais popular e mais humanista em décadas com o discurso histórico do PT (atenção: sem entrar no mérito do que é real e do que não é). O uso político e partidário no Brasil será inevitável, em ano eleitoral.

Já a foto de Bolsonaro com Macedo causou espanto, pelo hábito da Universal de recolher o “dízimo” de seus fiéis e de, não raramente, estimular ingênuos, ignorantes e/ou desesperados a entregarem casas, carros e bens para a igreja, em troca do “reino de Deus”.

Essa prática, sob as nossas barbas e com a leniência dos poderes constituídos, começa a chegar à Justiça, com devolução de valores e indenização de vítimas. Mas é tão consolidada que é difícil combater e já extrapolou fronteiras para diferentes continentes. E Lula já age para disputar as graças (e os votos) dos evangélicos.

No Brasil, os governos não veem, ouvem nem falam sobre esse avanço que levou os “donos” de igrejas (uma filhote da outra, com sutis diferenças de designações) a figurar nas listas das grandes fortunas brasileiras. Nenhum político, ninguém que disputa eleições quer bater de frente com essa máquina de manipulação de almas, que pode trazer ou tirar votos.

Com Lula já era assim e com Bolsonaro tornou-se mais audacioso. Já não há dúvida do uso de cultos evangélicos na coleta de assinaturas para o partido do presidente, que prestigia evangélicos na composição do Ministério e já acenou com um nome “terrivelmente evangélico” para o STF e integra uma tal Aliança pela Liberdade Religiosa com EUA, Polônia e Hungria.

Uma curiosidade: apesar dos vínculos de Bolsonaro e de sua mulher, Michelle, com evangélicos, os militares são tradicionalmente católicos – e praticantes. Uma exceção é o ministro e general da ativa Luiz Eduardo Ramos, da Igreja Batista.

A disputa de Bolsonaro e Lula pelas igrejas tem efeito maléfico, inclusive para elas. Seus “podres” tendem a ganhar visibilidade. Na Igreja Católica, os templos ricos, o gosto pelas elites, até a pedofilia. Nas neopentecostais, os espaços espartanos em centros estratégicos das cidades para atrair e lucrar com o corre-corre de trabalhadores.

O direito à liberdade e à manifestação religiosa é reconhecido em todas as democracias e não se trata aqui de discutir religião, teologia, crenças e dogmas e, sim, alertar para o uso político e eleitoral das igrejas e da fé. Pode ser considerado ilegítimo e, de certa forma, imoral.


Eliane Cantanhêde terça, 04 de fevereiro de 2020

CORONAVÍRUS - EM GUERRA

 

Em guerra

O coronavírus é grave e ameaça, mas, por ora, não há motivo para pânico no Brasil

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

04 de fevereiro de 2020 | 03h00

Desde pelo menos o governo do general Ernesto Geisel, no início da transição da ditadura para a democracia, o Brasil tem uma cultura de saúde pública exemplar e quadros de sanitaristas respeitados no mundo todo. Logo, é capaz de reagir à altura numa ameaça global como o coronavírus, que vem da China e se espalha por todos os continentes. 

Aliás, a política de saúde pública de Geisel e seu ministro, sanitarista Paulo Almeida Machado, era baseada na interiorização, no olho no olho, nos “médicos de pés descalços” da... China! O regime brasileiro era obviamente de direita, e o chinês, comunista. Mas pesou menos a ideologia e mais a saúde de massas. Assim foram definidas a política e as equipes que influenciam gerações até hoje. 

Na época, o Ministério da Saúde era voltado especificamente para a saúde pública: atenção às famílias, aos bebês, crianças e idosos, planos de vacinação em massa – prevenção, enfim. Hospitais eram outro departamento. Daí, talvez, o gap atual entre as duas frentes.

 Graças a essa história, e posteriormente ao ministro José Serra, no governo FHC, o Brasil, país continental e tão desigual, virou referência no combate à pior epidemia da era moderna, a aids. Tanto que, já com Lula e George W. Bush, o Brasil e os EUA trocaram informações, acordos e ações na África, onde a aids fez milhões de mortos. 

É por isso que, agora, não há motivo para pânico no Brasil. A situação é preocupante, com a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarando emergência internacional e o governo brasileiro replicando com emergência nacional. Mas todas as medidas possíveis estão sendo tomadas: a detecção de casos suspeitos, o monitoramento, as pesquisas. Todo o ambiente da saúde, no ministério, nos órgãos de pesquisa, na área privada, é de alerta e presteza. 

A crise, inclusive, joga no cenário político o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ele demorou a entrar em cena, mas agiu nos bastidores e gabinetes e já está devidamente seguro e bem informado para enfrentar holofotes e perguntas. Quanto ao envio de um avião fretado para resgatar brasileiros no epicentro da epidemia, na China, foi amadurecido desde a sexta-feira por Defesa, Itamaraty, Saúde e GSI. 

A decisão final ficou com o presidente Jair Bolsonaro. Em seu cálculo, o custo político de largar os brasileiros à própria sorte seria muito mais alto do que o custo financeiro de pagar avião, tripulação, quarentena. A pressão dos que estão confinados em Wuhan já estava insuportável pelas redes. São 55 ao todo, mas 15 deles têm família, negócios ou bases sólidas na China e preferem ficar por lá. Os outros 40 já estão sendo preparados para voltar. 

Por sorte, o Brasil não tinha nenhum caso confirmado até ontem. Mas, se aparecer, não dá para contar com a sorte, mas, sim, com a competência, o treinamento, a rapidez, a dedicação e o principal: planejamento. Esse não é o forte do nosso país, mas na saúde pública tem sido, porque prevenção e planejamento são indissociáveis. 

Além de adoecer milhares e matar centenas até agora, o coronavírus tem efeitos colaterais graves numa economia global já em desaceleração, no confinamento de populações de cidades inteiras, na interrupção no fluxo internacional de mercadorias e – o mais cruel – de pessoas. 

Há, porém, um efeito muito positivo. Num momento em que os EUA estão para reeleger Donald Trump, o Reino Unido faz festa para o nocivo Brexit e o neonacionalismo carimba a globalização e o multilateralismo como inimigos da humanidade, é um vírus letal, o coronavírus, que vem demonstrar o quanto os continentes, regiões e países precisam uns dos outros. E o que seria do mundo sem a OMS, para coordenar a guerra contra a epidemia? O multilateralismo está sob ataque, mas sobrevive e tem força. Ainda bem. 


Eliane Cantanhêde domingo, 02 de fevereiro de 2020

MUDAR PARA NÃO MUDAR

 

Mudar para não mudar

Onyx Lorenzoni no MEC seria aprofundar a crise interminável na Educação

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

02 de fevereiro de 2020 | 03h00

Depois de Vélez Rodriguez e de Abraham Weintraub, só faltava o presidente Jair Bolsonaro nomear Onyx Lorenzoni para o pobre (mas muito rico) Ministério da Educação. O MEC, professores, alunos, funcionários e o futuro não merecem isso. Por sorte, ou por enquanto, a cúpula do governo diz que a chance de isso acontecer é “nenhuma, zero, esquece”.

Apesar de tudo, e de todos, o que está no horizonte é o esvaziado Onyx manter a sua esvaziada Casa Civil e o atrapalhado Weintraub manter o seu atrapalhado MEC. Com um detalhe: Onyx é o amigão de 20 anos, o aliado de primeira hora de Bolsonaro, mas, hoje, Weintraub está mais forte do que ele no governo. Incrível? Pois é. Há muitas coisas incríveis acontecendo. 

Se Weintraub tropeça no português mais elementar, e Onyx? Como se diz na cúpula do governo, ele é muito leal a Bolsonaro e contrariou o DEM para apoiar sua candidatura em 2018, mas não é nenhum gênio e não tem o menor vínculo com Educação. Nunca foi sequer professor e, gaúcho, tem uma fala carregada de regionalismos que desconsideram as conjugações verbais e a letra S. O que, evidentemente, não combina com um ministro da Educação. Seria estender a interminável crise do MEC no governo Bolsonaro. 

Ok, Weintraub vai carregar para o resto da vida aquele “imprecionante”, entre outros erros ardidos de português, mas quem dá uma olhada nos discursos e entrevistas do então deputado e agora ministro Onyx diz que a ida dele para o MEC – justamente o MEC – iria anistiar Weintraub. “Ficaria parecendo um letrado, perto do sucessor”, ironiza quem acompanha a ciranda. 

Então, o que fazer com o chefe da Casa Civil? Aparentemente, mantê-lo onde está, com um título, mesa e cadeira no Planalto, secretária e telefone, mas praticamente sem função nenhuma. Coisa de amigo para amigo, tipo pagamento de dívida de gratidão. No máximo, transferi-lo para um outro cargo, mas é complicado, porque qualquer coisa soaria a “cair para cima”. 

E o que fazer com Weintraub? Nada também. Gregos, troianos e, principalmente, especialistas em Educação acham que é o homem errado, na hora errada, no lugar errado. Mas quem são eles? Para Bolsonaro, não são ninguém. Ou não passam de esquerdistas porque, afinal, a Educação, essa “balbúrdia”, é infestada de comunistas e petistas... 

Na avaliação do Planalto, Weintraub vem fazendo “muita coisa boa”. O que, exatamente? Não se sabe. Mas ele é considerado “corajoso”, “audacioso”, capaz de enfrentar o que o Planalto considera esquerdismo de primeiro, segundo e terceiro graus. E é da “turma”, ou seja, da turma ideológica do governo. 

Quanto ao desastre do Enem-Sisu: o presidente e seu entorno reconhecem que é chato, desagradável, que tantos alunos tenham estudado feito loucos e sido prejudicados por erros técnicos. Sim, tudo é resumido a isso, erros técnicos, de uma gráfica. Na verdade, “um azar danado”, porque estava tudo perfeito, irretocável, até que... 

Enfim, o Bolsonaro, que demitiu ou avalizou a demissão do presidente do INSS, do secretário de Cultura e do segundo escalão da Casa Civil, não parece disposto a dar um upgrade nas demissões. Quando se trata de ministros, eles vão ficando. Inclusive, aliás, o denunciado Marcelo Álvaro Antonio, do Turismo. 

As crises na Casa Civil e no MEC produziram uma boa chance para Bolsonaro parar de dizer que manda e passar a mandar de fato numa área fundamental para o governo e numa outra fundamental para o País. Ele já vinha no embalo das demissões de 2020 e era só aprofundar o ritmo, mas, ao que tudo indica, não é o que vai acontecer. Gustavo Bebianno e Santos Cruz caíram por “deslealdade”. Onyx e Weintraub vão ficando por lealdade. Para Bolsonaro, é o que basta.


Eliane Cantanhêde sexta, 31 de janeiro de 2020

UMA BAGUNÇA

 

Uma bagunça

‘DO’ descartável: demite, readmite e demite de novo, com o PPI de galho em galho

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

30 de janeiro de 2020 | 22h35

Mesmo quando acerta, o presidente Jair Bolsonaro acaba errando. Incrível! Parece viciado em notícias e declarações bombásticas e, quando passa um dia sem disparar uma delas, sofre de abstinência e manda ficha. Lá vem manchete e lá vem a horda bolsonarista caindo em cima do mensageiro, leia-se, da mídia. 

Bolsonaro acertou ao demitir sumariamente o tal Vicente Santini, que era do segundo escalão da Casa Civil, estava temporariamente como ministro e se sentiu no direito de convocar um Legacy da FAB para ir à Índia. Não é só ridículo, custa uma fortuna aos cofres públicos. E é você, leitor, leitora, quem paga a farra. 

Se o presidente estava certo e até os críticos reconheceram isso, por que readmitir Santini na mesma Casa Civil e com um salário apenas R$ 383 mais baixo? Sua audácia até que saiu baratinha, mas só para ele. 

Bolsonaro não tem saída. Ou foi ele quem readmitiu o assessor, depois de se encontrar pessoalmente e acertar tudo com o próprio, ou não foi ele e é sinal de que não manda nada, não sabe de nada e qualquer um faz o que bem entende dentro do Palácio do Planalto, sob suas barbas. Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. 

O que torna a lambança ainda pior é o fato de Santini ser amigão dos filhos do presidente, o que induz à conclusão óbvia de que papai Jair demitiu e os filhotes readmitiram, o que é bem verossímil, já que os meninos têm poder até de fazer o chanceler, o ministro da Educação, o presidente do BNDES. 

Bem, mas era preciso encontrar o mordomo da história e não foi difícil. Ele estava ali, disponível, evidente: Onyx Lorenzoni, o ministro da Casa Civil que não manda nada e só está onde está, consta, porque é o único ser, em todo o universo, capaz de fazer a ponte entre Bolsonaro e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre

Historicamente, desde que era Gabinete Civil na ditadura militar, com nomes como Golbery do Couto e Silva e Leitão de Abreu, a Casa Civil da Presidência da República é o coração dos governos. Seus chefes são os grandes articuladores políticos, ou os gerentes dos ministérios, ou ambos. 

E o que é, afinal, Onyx Lorenzoni no governo Bolsonaro? Nunca coordenou os ministérios, entregou a articulação política já no primeiro ano para um general de quatro estrelas, e da ativa, e acaba de perder para Paulo Guedes o seu prêmio de consolação: o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Perdeu, aliás, o que nunca chegou a ter. 

Alguém sabe dizer o que sobrou para Lorenzoni, além de tirar fotos em solenidades do Planalto? Nada. Ou, como provocam os críticos da internet (esses “esquerdopatas que querem destruir a família brasileira”), só sobrou uma coisa: as mordomias. Até quando? 

Além da profusão de declarações chocantes, Bolsonaro se especializou em demitir sob pressão ou por cisma ideológica. Vélez Rodríguez caiu do MEC e Roberto Alvim, da Cultura, por pressão. Ricardo Galvão (Inep) e Joaquim Levy (BNDES) entram na segunda categoria. Técnicos competentes, ambos irritavam o presidente por terem atuado em governos do PT e por dizerem as verdades que ele não queria ouvir nem divulgar. Mas seus sucessores confirmam exatamente o que diziam. 

A pergunta que não quer calar agora é quando (e não se...) Bolsonaro vai demitir tanto Onyx Lorenzoni quanto Abraham Weintraub, do MEC. Um por não servir para nada e o outro, por atrair chuvas, trovoadas e críticas públicas do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, numa área absolutamente fundamental. 

Até lá, o governo que demite, readmite e demite de novo em 24 horas vai empurrando o Coaf, a Funai, o Trabalho, a Cultura e agora o PPI para lá e para cá. O Diário Oficial da União (DO) virou descartável. 


Eliane Cantanhêde terça, 28 de janeiro de 2020

ESTE 2020 PROMETE!

 

Este 2020 promete!

Coronavírus, sacolejo nas Bolsas, chuvas assassinas e, claro, pérolas do presidente

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

28 de janeiro de 2020 | 03h00

O ano de 2020 começou malvado. A Organização Mundial da Saúde (OMS) demorou, mas admitiu ontem que o coronavírus caracteriza um “alto risco”, não mais só “moderado”. Ou seja: aparentemente afastada a ameaça de uma guerra entre Estados Unidos e Irã, o mundo enfrenta agora o temor de uma epidemia de proporções ainda incertas. 

O vírus já atingiu milhares de pessoas e já matou dezenas na China, extrapolou para o resto da Ásia, a Europa e os Estados Unidos e deixa todos os continentes em estado de alerta. O risco é de morte, mas ameaça também a economia dos países. Obviamente, o Brasil não está fora da mira. 

Para o bem e para o mal, a globalização veio para ficar. O espetacular fluxo de pessoas entre continentes e países corresponde a uma grande facilidade de exportação do vírus aos quatro cantos do mundo. A extensão e as projeções ainda são incertas, mas, certamente, não dá para dormir tranquilo. 

 E o risco de globalização do vírus também impacta diretamente as transações comerciais e financeiras, particularmente de commodities. E é exatamente por isso, e preventivamente, que a Bolsa sacolejou fortemente no Brasil. Vale, Petrobrás, Gerdau, CSN e Suzano chegaram a perder R$ 33 bilhões em valor de mercado na manhã de ontem. O vírus nem chegou ao Brasil, mas o medo já se instalou. 

Ministério da Saúde criou um Centro de Operações de Emergência, junto com a Anvisa, para tomar as medidas possíveis neste momento. Não é simples, porque as ações se concentram em aeroportos, portos e pontos estratégicos de fronteira, mas vamos pensar juntos. Como não há voos diretos do Brasil para a China, o monitoramento não tem foco, é dos mais variados voos, que vêm da Ásia, dos EUA e de capitais da Europa, como Madri, Lisboa, Roma, Amsterdã. E as fronteiras? O Brasil não consegue nem monitorar tráfico de drogas, armas e cigarros... 

As providências cabíveis estão sendo tomadas: alertas em português, inglês e mandarim, comunicados para empresas aéreas, instrução para as tripulações relatarem a presença de passageiros com sintomas. E há planejamento para isolar casos suspeitos e toda uma rede de técnicos se informando sobre como combater a doença já instalada. No mais, é rezar para a disseminação global ser contida. 

Além do vírus assassino, o ano começou com mortes e desaparecimentos por causa das chuvas torrenciais em Minas e no Espírito Santo. Dezenas de famílias destroçadas, milhares de famílias desalojadas. Ok, é verdade que o volume de água em Belo Horizonte, por exemplo, foi o maior em 110 anos. Mas alguém é capaz de jurar que era impossível salvar essas vidas, evitar ou minorar a tragédia? 

O ano também começou com a inacreditável história de um secretário nacional de Cultura que cultuava o nazismo e, agora, a aflição de milhares de estudantes com o Enem e o Sisu. O tal secretário foi demitido após profunda rejeição da sociedade, mas o ministro da Educação continua numa boa e vai ficando. 

Ninguém sabe, ninguém viu ao menos alguma medida, algum anúncio, algum plano do MEC, e todo mundo vê as lives ridículas do ministro, os erros crassos de português, a ideologia contaminando tudo. Só o presidente não vê. Ou não dá bola. 

No início do ano, Bolsonaro escapou da berlinda em Davos e fez viagem produtiva à China, mas caprichou nas “pérolas”: livros cheios de muita coisa escrita, índios mais parecidos com seres humanos, o capitão do Exército versus Gandhi, o secretário nazista “exemplar”. E a reação aos brasileiros deportados por Trump com pés e mãos algemados? Em vez de se solidarizar com os pobres coitados, ele apoiou o “Deus” americano. É... 2020 promete. 


Eliane Cantanhêde domingo, 26 de janeiro de 2020

INIMIGOS POR TODA PARTE

 

Inimigos por toda parte

Moro, Mourão, Doria, Witzel e Huck, sempre na mira de Bolsonaro

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

26 de janeiro de 2020 | 03h00

Pode espantar os bolsonaristas e preocupar o núcleo militar do governo, mas não há surpresa nos ataques e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao ministro Sérgio Moro, como não há certezas sobre o que vai acontecer com a pasta da Justiça. O Ministério da Segurança Pública será recriado? E o futuro da Polícia Federal e da sua direção-geral? No primeiro escalão e no próprio gabinete de Moro, a resposta é direta: “Tudo é imprevisível”.

É assim porque o presidente da República é imprevisível. Pode até momentaneamente voltar atrás, mas no Alvorada, no Planalto, no avião presidencial, ele certamente fica ruminando sobre como baixar a crista desse tal de Moro e como botar alguém “de confiança” no lugar do delegado Maurício Valeixo na poderosa (e, para alguns, ameaçadora) PF. Afinal, “quem manda sou eu”.

Assim como tem fixação em enfraquecer Moro, Bolsonaro já partiu para cima dos governadores do Rio, Wilson Witzel, e de São Paulo, João Doria, do apresentador Luciano Huck e até do vice-presidente Hamilton Mourão, general de quatro estrelas. O que há em comum entre eles? São os nomes que se colocam, ou são colocados, como opções do centro à direita para a Presidência. Ou seja: adversários potenciais de Bolsonaro. No mundo dele, inimigos.

 Moro já levou para casa a desfeita com Ilona Szabó, a cara de tacho enquanto Bolsonaro espanava para o lado o pacote anticrime, o não veto ao juiz de garantias. Só não voltou para casa em 2019 porque, finalmente, ganhou uma: manter Valeixo na PF. E ganhou porque os generais do governo entendem e tentam convencer Bolsonaro da importância política, simbólica e objetiva de Moro. Mexer com ele é rachar drasticamente a base bolsonarista.

“Se demitir Moro, seu governo cai”, alertou o general Augusto Heleno, em agosto passado, depois de esgotar o seu estoque de convencimento na base do bom senso. A passagem é relatada no livro Tormenta, da jornalista Thaís Oyama, que não traz revelações novas, mas acrescenta ambientes e frases a momentos decisivos e capta algo essencial: a psicologia do presidente.

Ficam claras as fragilidades intelectuais, políticas e pessoais de Bolsonaro, mas sobretudo seus vícios. Se não fuma e bebe pouquíssimo, ele tem mania de perseguição. Não confia em ninguém, vê esquerdistas e inimigos em toda parte e não se sente seguro nem nos jardins do Alvorada. Vai que apareça um drone... O gesto de simular uma arma com as mãos não foi só de campanha e não é só para defender a população armada por aí. É também para mirar os “inimigos”, como os adversários potenciais de agora e de 2022, estejam eles de costas ou bem ao lado do presidente.

Mourão leva tudo na esportiva, com a postura superior de cara culto, leitor voraz, mas também leva suas lambadas. Ele está saindo dos meses autoimpostos de sombra e voltando à luz do sol, com enormes vantagens sobre os “concorrentes”. Diferentemente de Moro e Heleno, não é subordinado nem demissível. Diferentemente de Doria e Witzel, não precisa de verbas federais para seus Estados e pretensões políticas. Diferentemente de Huck, tem espaço político garantido. A única coisa que Bolsonaro pode fazer é suportá-lo.

Enquanto, claro, 2022 não vem. Aí, o jogo recomeça do zero e Mourão pode ser forçado a guerrear pela vaga na chapa, Moro terá de decidir o que quer ou catar o que sobrou, Doria e Witzel precisarão medir seu tamanho e Huck, sair do “ser ou não ser”. Até lá, o comando bolsonarista atualiza a ameaça de 2018: ou engolir qualquer absurdo de Bolsonaro ou trazer o PT e Lula de volta. Isso, porém, não depende dos inimigos, das esquerdas e da mídia. Depende do “capitão” e das assustadoras bobagens que ele não para nem de falar nem de fazer.


Eliane Cantanhêde sexta, 24 de janeiro de 2020

MORO, DE TROFÉU A ALVO

 

Moro, de troféu a alvo

Sem Coaf, PF e Segurança Pública, o que sobraria para o ‘superministro’ Moro?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

24 de janeiro de 2020 | 03h00

Ao aceitar um ministério no governo Bolsonaro, o juiz e real mito Sérgio Moro tinha clara noção de todos os riscos, mas encarou como missão e como oportunidade de somar o combate à corrupção (agora em nível nacional) e ao crime organizado. Logo, uma super-Lava Jato. Valia a pena. E agora? 

Os dois objetivos de Moro, anti-corrupção e anticrime organizado, significaram, na prática, reunir novamente os ministérios da Justiça e da Segurança Pública. Moro contava com isso e Bolsonaro anunciou que assim seria. Pois é. Já presidente, ele voltou atrás e está seriamente empenhado em separar as duas pastas. 

É assim que Moro, mito da Lava Jato, símbolo do combate à corrupção, personagem mais popular do governo – mais do que o próprio presidente –, perde uma atrás da outra. Em bom e claro português, engole sapos. 

 Com personalidade fechada, contida, é homem de poucas palavras e menos sorrisos ainda e sempre evitou, no primeiro ano de governo, reagir, reclamar ou fazer muxoxos ao ser atropelado pelo chefe e até se ocupa de elogiá-lo pelas redes sociais. Tudo, porém, tem limite. Qual é o limite do paranaense de Maringá Sérgio Fernando Moro? Essa é a pergunta que não quer calar. 

Perder o Coaf já foi uma pancada, porque o órgão de inteligência financeira identifica movimentações atípicas, aciona o sinal amarelo e detona investigações – que podem ou não dar em nada. Mas, depois de apresentar ao Brasil um tal de Queiroz, o Coaf virou uma bolinha de pingue-pongue, pulando de lá para cá, e acabou virando UIF e pendurado no Banco Central. Logo, longe da Polícia Federal e de Moro. 

Perder o Coaf já não foi fácil, mas o que dizer da possibilidade de perder a PF? Essa seria, ou será, uma consequência direta e imediata da recriação do Ministério da Segurança Pública. Com o Coaf no BC e a PF em outra pasta, o que Moro ficaria, ou ficará, fazendo no abstrato Ministério da Justiça? Articulando politicamente com o Congresso, como foi obrigado a fazer no pacote anticrime? Não é a dele. 

Aí entra uma terceira derrota daquele que adentrou o governo Bolsonaro como “superministro”: depois de acertar com o Senado que Bolsonaro vetaria o juiz de garantias – uma nova figura claramente “anti-Moro” –, o ministro foi solenemente desautorizado pelo presidente da República. O veto não veio, Moro ficou falando sozinho. 

Assim, o ministro ficou no meio de um imbróglio envolvendo os três Poderes, ou melhor, os presidentes do Executivo, que não vetou o juiz de garantias; o do Supremo, Dias Toffoli, que foi atropelado pelo vice, Luiz Fux; e o da Câmara, que classificou de “desrespeitosa com o Congresso” a decisão de Fux de suspender a implantação da mudança sem prazo. 

Fux causou um fuzuê institucional, com críticas de todos os lados, mas com a comemoração explícita de alguém diretamente interessado: o próprio Moro. Segundo ele, uma medida assim precisa ser amplamente debatida e não é uma questão para o Judiciário, mas para o próprio Legislativo. No fundo, quer jogar o juiz de garantias para as calendas. 

Assim, aquela primeira desfeita de Bolsonaro com Moro ficou não apenas distante, como bem pequena: o desconvite para a pesquisadora Ilona Szabó ser uma mera suplente num mero conselho da Justiça. Foi horrível, mas só um aviso. 

E ainda vem mais: Moro perdeu o Coaf e pode perder a PF e a Segurança, justamente a área de sua pasta que rende bons índices e boas notícias. Só sobraria a vaga no STF, mas ela já tem dono: alguém “terrivelmente evangélico”. Moro é? 

Por trás de tudo isso, uma só explicação: Jair Messias Bolsonaro, que tem mania de perseguição e não suporta competição. Moro era um troféu, virou competidor. E alvo.


Eliane Cantanhêde terça, 21 de janeiro de 2020

BRASIL NA BERLINDA

 

Brasil na berlinda

Com Bolsonaro remendando estragos, Doria, Huck e Moro se mostram ao mundo

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

21 de janeiro de 2020 | 03h00

Sem o presidente Jair Bolsonaro, mas com seus rivais João Doria e Luciano Huck, o Fórum Econômico Mundial deste ano, em Davos, pode jogar o Brasil na constrangedora situação de país digno de uns bons puxões de orelha por maltratar o meio ambiente, ameaçar a mídia, provocar líderes mundiais, enaltecer ditadores e, agora, ultrapassar todos os limites trazendo Hitler e o nazismo ao ambiente

O puxão de orelhas deve começar com a Greta, a menina que virou personalidade internacional pela defesa da natureza, foi chamada de “pirralha” por Bolsonaro e devolveu com ironia. Uma adolescente dando lições em Davos a poderosos cheios de pretensão e ideias equivocadas, não raro perigosas. Delicioso. 

Ninguém diz, mas Bolsonaro teve dois bons motivos para não ir a Davos. Um é que certamente baixou uma baita insegurança depois do vexame na estreia no fórum em 2019. Se mal conseguiu falar coisa com coisa quando ainda era cercado de expectativas, imaginem agora, depois de tudo? 

 O segundo motivo é que Bolsonaro achou que Donald Trump não iria. Se Trump não vai, esse encontrinho de grandes líderes internacionais, megainvestidores, homens das finanças e do pensamento não serve pra nada. Mas a aposta foi errada: Trump anunciou que vai, mesmo acossado pelo processo de impeachment – ou até por causa dele. 

Assim, o governo brasileiro é representado pelo ministro Paulo Guedes, integrantes de sua equipe e os presidentes do BNDES e da Eletrobras, que têm o que oferecer e o que pedir a investidores. Só que eles querem falar em privatizações e concessões, mas muitos dos interlocutores preferem ouvir sobre algo mais abstrato, mas potente: democracia. 

Assim, a presença de Doria e Huck tem uma simbologia especial. O governador leva na mala um portfólio de oportunidades e deve ter ensaiado bem o personagem moderno, de braços abertos para investimentos, que se coloca como alternativa a Bolsonaro. Alternativa também à direita e conservadora, mas menos beligerante e de mais bom senso. Nem pró-Pinochet e Goebbels nem terraplanista. Ou seja, “normal”. 

E Huck? Devagar, com uma viagem daqui, uma palestra dali, agora uma ida a Davos, ele vai construindo um nome, uma imagem, uma candidatura. No mínimo, vai perdendo o pânico de quem pulou de véspera da campanha de 2018, depois de aprender que o mundo de celebridades é muitíssimo diferente do mundo hostil, ácido, da política. 

E que personagem Huck apresenta no teatro de Davos? O do cara que deu certo, quer dar sua contribuição para um Brasil melhor e está contra “tudo o que está aí”, principalmente a pobreza, a desigualdade, a exclusão de gerações, uma atrás da outra. 

Com Doria e Huck lá, um terceiro personagem vai metendo a cara cá, aprendendo a enfrentar curiosos, críticos ou inimigos ferozes e se preparando para o futuro. Pode não estar claro nem para ele mesmo, mas com o troféu de personagem mais popular do governo, mais do que o presidente, Sérgio Moro pode não estar em Davos hoje, mas está no jogo de 2022. 

Enquanto isso, Bolsonaro vai convivendo com as próprias fragilidades, tentando remendar o que ele mesmo esgarçou. Começa a testar a atriz Regina Duarte na Cultura, já esqueceu as denúncias contra o ministro Marcelo Álvaro Antonio, assiste de camarote à tragédia no Ministério da Educação e fecha olhos e ouvidos para as peripécias do seu homem da Comunicação. 

Autodeterminado exterminador das esquerdas, Bolsonaro é todo aplausos para Ernesto AraújoRicardo Salles e Damares Alves – como era com Roberto Goebbels Alvim – e já tem o culpado n.º 1 por todas as mazelas do governo: a mídia. Bolsonaristas tupiniquins estimulam, mas o mundo, e não só o mundo de Davos, está de olho. Huck, Doria e Moro, também.


Eliane Cantanhêde sexta, 17 de janeiro de 2020

MILITARES: PAU PARA TODA OBRA

 

Pau para toda obra

Militares fazem ponte, combatem criminosos, limpam praias e... vão parar no INSS

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

17 de janeiro de 2020 | 03h00

Nos estertores do regime militar, toda vez que aparecia alguma encrenca, o presidente João Figueiredo ameaçava: “Chama o Pires!” Era uma senha para tentar assustar a oposição. Ou ela se comportava direitinho, ou o governo convocava o ministro do Exército para dar um jeito. No fim, Figueiredo nunca convocou para valer os militares e, afora os percalços e recuos, a transição foi concluída e o poder reassumido pelos civis. 

Hoje, quatro décadas depois, numa situação bem diferente, a ordem do capitão presidente Jair Bolsonaro é mais genérica e vale para tudo: “Chama os militares!” E, assim, ele entupiu o governo de militares de diferentes patentes, desde oito ministérios até o segundo e o terceiro escalões de praticamente todas as áreas. 

Eles estão na infraestrutura, nos transportes, no meio ambiente, na educação, no turismo, nas agências reguladoras, nas estatais. E as sucessivas demissões de generais, por cima, não desestimularam os colegas de várias patentes, por baixo. Calcula-se que em torno de 80% deles sejam do Exército, mas Marinha e Aeronáutica não ficaram de fora. Pelo menos, não reclamam. 

 O fato é que, com a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que permitiu o uso das Forças Armadas na guerra urbana de cada dia, os militares são pau para toda obra. Já eram essenciais para a construção de estradas e pontes em locais distantes, por exemplo, apagam incêndio na Amazônia, limpam praias do maior derramamento de óleo da história, estão em todas. E vão parar no INSS

Entre hoje e segunda-feira deve chegar ao Ministério da Defesa o decreto do Planalto autorizando o emprego de 7 mil militares da reserva para apagar o novo incêndio, o colapso na concessão de aposentadorias, pensões, auxílio-maternidade, auxílio-doença. 

Nas Forças Armadas, há uma certeza e muitas dúvidas. A certeza é de que não haverá recuos, como houve na intenção de dar subsídio para a conta de luz de templos evangélicos, ops!, religiosos. A decisão está tomada. 

Incertezas: há 7 mil militares da reserva dispostos a descascar o abacaxi por 30% a mais no soldo? Qualquer um pode aderir, sem nenhum tipo de triagem? Subtenentes e capitães, entre outros, vão assumir o balcão de atendimento, cara a cara com idosos, doentes e acidentados legitimamente mal-humorados? 

E o treinamento? Supõe-se que os cerca de 23 mil servidores restantes no INSS saibam o que estão fazendo, conheçam os direitos dos beneficiários, as velhas e novas regras, estejam aptos a solucionar dúvidas diligentemente. E os militares que não têm nada a ver com isso, nunca trabalharam nessa área? 

Enfim, o que era apenas uma trapalhada, com falta de planejamento e gestão, virou um problemaço que afeta mais de 1,3 milhão de brasileiros e só vai piorando a cada dia. O general Santos Cruz, um dos demitidos por Bolsonaro, opina: “Militares no INSS? Não tem cabimento”. E o governo reage: se não forem os militares, quem vai salvar essa lavoura? 

Ok, seria muito melhor deixar os militares na reserva e convocar os recém-formados desempregados. Nunca se esqueçam, porém, da burocracia: militares podem ser arregimentados com gratificações e abonos, mas os desempregados só poderiam entrar por concurso ou por terceirização. E o tempo? E o custo? 

Além disso, despreparados por despreparados para essa guerra, tanto faz os militares ou os jovens que saem de universidades ou do segundo grau. Dê no que dê, quem continua pagando o pato é quem está na longa fila, confirmando que a Previdência no Brasil só é eficiente para arrecadar, jamais para pagar o que deve. Militares podem até ajudar numa hora dramática, mas nem se fizessem mágica dariam um jeito nisso.


Eliane Cantanhêde domingo, 12 de janeiro de 2020

UM CHOQUE NO INSS

 

Um choque no INSS

Faltou ação contra velhos erros e planejamento para enfrentar as novas condições

Eliane Catanhêde, O Estado de S.Paulo

12 de janeiro de 2020 | 02h00

Além da necessária reforma da Previdência, com mudanças de regras para pensões e aposentadorias, o governo deveria ter tomado um outro cuidado: um choque de eficiência no INSS. O problema é estrutural e conjuntural e, como sempre, faltou ação para corrigir erros antigos e planejamento para enfrentar condições novas.

 

Tenha ou não “culpa” pela atual crise no atendimento, a reforma da Previdência joga luzes no velho problema do tratamento a idosos, viúvas, mães, doentes e acidentados que buscam não favores, mas seus direitos. E a situação, que já era ruim, se tornou cruel.

De um lado do balcão, funcionários entediados, mal treinados, mal remunerados e em más condições de trabalho, grande parte sem a noção de sua função de servir ao público que paga não só impostos como os seus salários. Do outro lado, pessoas velhas, cansadas, doentes, que esperam horas, semanas, meses, para receber seus benefícios.

 A isso some-se a questão conjuntural: o governo criou o INSS Digital, que facilitou os pedidos de aposentadoria às vésperas de uma reforma da Previdência que todos sabiam que viria e muitos temiam. Houve uma avalanche de pedidos ao mesmo tempo, e não foram só do distintíssimo público, mas dos próprios funcionários.

Como o porcentual de determinada gratificação (dessas que abundam no serviço público) atingiu 100% em janeiro de 2019, os funcionários que estavam para se aposentar aguardaram essa “data ideal”. Segundo o governo, pouco mais de 6 mil se aposentaram no ano, em torno de um quarto dos 25 mil que sobraram. Resultado: aumentou a demanda e diminuiu o número de servidores.

Um caos anunciado, mas o governo se envolveu demais com a reforma da Previdência e se esqueceu de se planejar para a rebordosa. As telas de TV estão cheias de pessoas humildes que esperam sua aposentadoria ou pensão há meses, mães amamentando seus filhos de três meses sem o auxílio-maternidade, pessoas doentes, operadas, engessadas, sem auxílio-doença. É mexer com a fragilidade e, principalmente, os direitos dos cidadãos.

Sem prevenir, o governo não sabe como remediar e tudo o que tem a dizer é que daqui a uns seis meses, talvez, quem sabe, o sistema estará normalizado. É uma eternidade para quem tem que comer, morar, se locomover e pagar as contas. E também para um sistema que promete o máximo de 45 dias de espera.

É preciso um choque de eficiência e humanidade, com os programas digitais atualizados, informações corretas e disponíveis, treinamento, fiscalização, cobrança e, eventualmente, punição. Como deveria ser sempre no serviço público, tanto quanto no privado.

Minha mãe foi contadora dos institutos de pensão que antecederam o INSS, sem computador, internet, dados digitais, comunicação virtual. Tudo era à mão. Como pode o sistema piorar, em vez de melhorar, com toda a tecnologia e a modernidade? Ok. O público se multiplicou dezenas de vezes. Mas isso não justifica ineficiência.

Eu mesma vi mesas vazias em posto do INSS. Cadê esse aqui? De licença. E aquele? A mãe está doente. E aquele outro? Problema em família. Como informa a repórter Idiana Tomazelli, do Estado, cerca de 20% do quadro está em licença médica. 20%?! Só pode ser alguma epidemia...

É claro que há funcionários exemplares e que os salários são baixos, as condições precárias, o treinamento e a atualização de sistemas, aparelhos e os quadros humanos, falhos. Só não se pode admitir que o usuário pague o pato, vire vítima do Estado.

O ministro Paulo Guedes se reúne amanhã com o secretário da Previdência, Rogério Marinho, e espera-se um plano de emergência e outro de longo prazo. Não é falta de recursos. É falta de planejamento e de respeito.


Eliane Cantanhêde terça, 07 de janeiro de 2020

ENTRANDO DE GAIATO

 

Entrando de gaiato

Essa guerra não é nossa. O Brasil não tem nada a ganhar, só a perder, se entrar nela

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

07 de janeiro de 2020 | 03h00

Se fosse confirmada a retirada das tropas americanas do Iraque, depois de 17 anos de invasão, estaria encerrada uma das histórias mais inacreditáveis e sujas da política internacional recente. O governo George W. Bush atacou o Iraque unilateralmente, sem o aval do Conselho de Segurança da ONU e baseado em mentiras – caso claro de fake news institucionais. 

Um livro revelador e de fácil compreensão sobre essa tragédia moderna, Curveball, do jornalista norte-americano Bob Drogin, foi escrito com base em manifestações oficiais, documentos, entrevistas e bastidores da decisão de Bush de invadir o Iraque. É estarrecedor como uma decisão dessa dimensão pôde ser tomada pela maior potência mundial sem qualquer cobrança ou punição. O mundo assistiu calado, lavou as mãos. 

 Em resumo, sem dar “spoiler”, Drogin conta a história da decisão, que começa com o relato de um desertor iraquiano que se dizia engenheiro químico e descrevia em detalhes, e até desenhava, como o seu país desenvolvia sofisticado programa de armas químicas e biológicas móveis. Espertalhão e viciado em internet, tudo o que ele queria, na verdade, era fugir do Iraque e se asilar na Alemanha. Faria, ou diria, qualquer coisa para isso. 

O espantoso é como a BND da Alemanha comprou a história, repassou para o MI-6 da Inglaterra e o Mossad de Israel e deu de mão beijada para a CIA dos EUA o pretexto para Bush anunciar um ataque daquele porte. A princípio reticente, o secretário de Estado Colin Powell acabou comprando a versão e a invasão foi decretada. E o que os EUA encontraram? Nada. O Iraque não tinha arma químicas e biológica nenhuma. Mal tinha armamento tradicional de guerra, ainda mais contra a potência econômica, política e bélica. 

Com o Iraque transformado em casa da Mãe Joana, foi fácil, quase natural, Washington agora usar um drone sofisticadíssimo para explodir o general iraniano em solo iraquiano. Assim, os EUA saem do Iraque como entraram: tratando o país como se fosse seu quintal, estivesse à sua mercê. 

Nunca vai se saber como o Irã teria evoluído se tivesse vingado o acordo nuclear assinado por ele em 2010, com a mediação de Brasil e Turquia e solapado por EUA e França. Mas todo o mundo, literalmente, sabe que a crise só chegou ao ponto que chegou após os EUA retirarem, em 2015, o aval ao segundo acordo nuclear aceito pelo Irã e sancionado. Sem os EUA, os países europeus que o subscreveram perderam força. E o Irã, isolado, partiu para retaliações e provocações e agora anuncia que vai jogar todo o acordo fora, aprofundando o enriquecimento de urânio e o desenvolvimento de ogivas nucleares. 

Apesar de todos esses erros e de todo esse excesso de pretensão dos EUA, a nota do Brasil sob o conflito abandonou a prudência tradicional da política externa e privilegiou o viés ideológico do governo Bolsonaro, com o danoso alinhamento automático a Trump. Rússia e China de um lado, OTAN de outro, europeus discutindo freneticamente como negociar uma bandeira branca e evitar o pior, ou seja, uma guerra. 

Se a situação degringolar de vez, o Brasil vai ser chamado a se posicionar mais explicitamente e até a agir. Cometerá um erro histórico se ceder ao chamamento, ou pressão, de Trump. Essa guerra não é nossa. O Brasil não tem nada a ganhar, só a perder, se entrar nela de gaiato.


Eliane Cantanhêde domingo, 05 de janeiro de 2020

E O BRASIL COM ISSO?

 

E o Brasil com isso?

No maior teste da nova política externa, Brasil adota neutralidade ou assume lado?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

05 de janeiro de 2020 | 03h00

O conflito dos Estados Unidos com o Irã é o maior teste do governo Jair Bolsonaro e já exibe duas claras guinadas, não apenas em relação aos governos petistas, mas à própria política externa tradicional do Brasil. E o pior está por vir, pois a vingança do Irã é certa, mas não se sabe quando, como e com que grau de ferocidade. O que fará o Brasil?

As duas mudanças perpassam as discussões de cúpula do governo e podem ser identificadas na nota do Itamaraty. A primeira é que o foco no Oriente Médio não é mais o conflito Israel-Palestina e sim o Irã. A segunda é que o Brasil deixa de tratar o terrorismo como uma questão distante, dos países desenvolvidos e do Oriente Médio. O terrorismo passa a ser problema nosso, sim.

No “novo Brasil”, alinhado incondicionalmente não só aos EUA, mas ao governo Trump, o Irã é a maior ameaça internacional, com seu projeto audacioso de hegemonia na região e insinuando-se até como novo líder mundial a partir do seu programa nuclear. Persa, não árabe, é o Irã quem assume a dianteira no enfrentamento a Israel, negando até o holocausto e o próprio Estado de Israel, como já se esgoelava Mahmoud Ahmadinejad, homem forte do país entre 2005 e 2013.

 Tanto Trump quanto Bolsonaro têm forte base política entre judeus e evangélicos, que estão na linha de frente pró-Israel. Não por acaso, o primeiro compromisso e a segunda manifestação de Trump após o ataque que matou o principal líder militar iraniano foram em Miami, num evento evangélico.

Agregue-se à ascensão do Irã a sua proximidade com a Venezuela de Nicolás Maduro e tem-se a suspeita de apoio iraniano à instalação de células do Hezbollah na América do Sul. Bom pretexto para a mudança da posição brasileira sobre terrorismo. Não é mais “coisa dos outros”.

As primeiras manifestações do presidente Jair Bolsonaro foram bem-vindas. Ele admitiu o impacto da crise sobre o preço do petróleo, mas descartou tabelamento. Ponto com o mercado e com o Ministério da Economia. E lembrou que o Brasil não tem armamento nuclear e não pode assumir um lado, ficando sujeito a retaliações. Ponto com os militares e com a diplomacia responsável.

A nota do Itamaraty, porém, é toda em cima do combate ao terrorismo e embica para a condenação ao Irã e o apoio aos EUA, deixando em aberto qual será a posição brasileira se, ou melhor, quando o Irã retaliar. Nesse momento, Trump cobrará posição e ação. O que o Brasil responderá? 

A nota não condena a ação americana e o assassinato do general Suleimani, mas sim, além do “terrorismo”, os ataques à embaixada dos EUA em Bagdá. E diz que o Brasil está pronto para participar de “esforços” para evitar uma escalada. Participar como? Como mediador neutro ou a favor de um lado?

Ouçam-se os generais e estrategistas militares e eles responderão: “não é coisa nossa”. Ouçam-se embaixadores e especialistas em política externa e eles farão coro: “não temos nada a ver com isso”. E, juntos, concordam com a primeira avaliação de Bolsonaro: o Brasil não tem tamanho para entrar nessa guerra. Melhor seguir o exemplo da França: pedir cautela e fim da escalada. Ponto.

Além da questão geopolítica e dos riscos para o planeta, a crise envolve questões internas. Trump convive com o impeachment e a reeleição neste ano. O Irã sofre rejeição em parte do Iraque e do Líbano. Logo, arrumar “inimigos externos” é conveniente a ambos, assim como Hugo Chávez recorria ao “demônio” EUA a toda hora para unir a Venezuela.

Objetivamente, o Brasil pode muito pouco num conflito ou numa guerra assim e tem de se preocupar com a ameaça imediata: o preço do petróleo. Isso, sim, tem reflexos diretos no País. Inclusive, na política interna.


Eliane Cantanhêde sexta, 03 de janeiro de 2020

INCERTAS E NÃO SABIDAS

 

Incertas e não sabidas

Eleições municipais de 2020 encontram velhos e novos partidos em maus lençóis

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

03 de janeiro de 2020 | 03h00

Atenção: vencer ou perder as eleições municipais não significa, pelo menos não necessariamente, vencer ou perder as eleições presidenciais dois anos depois. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. As votações nos municípios confirmam a força ou a fraqueza de partidos e candidatos naquele momento, mas as projeções para as urnas nacionais dependem de vários fatos e fatores atrelados à dinâmica do País e da política. 

Um exemplo recente: o PT foi fragorosamente derrotado nas eleições municipais de 2016, quando perdeu em todas as capitais, exceto uma, Rio Branco, no Acre. Detalhe: com a desincompatibilização do prefeito Marcos Alexandre, para disputar o governo estadual (aliás, sem sucesso), o partido ficou sem nenhuma das 26 capitais e nenhuma das cidades com mais de 200 mil eleitores.

E o que aconteceu com o partido de Lula em 2018, dois anos depois? Ultrapassou todos os demais partidos e empurrou Fernando Haddad para o segundo turno contra Jair Bolsonaro, do até então inexpressivo PSL. Perdeu no final, mas mostrou que está vivo 

Isso não significa que as eleições municipais não sejam importantes. Claro que são, e não só porque se trata da escolha de prefeitos e vereadores que vão definir os rumos das nossas cidades, onde, afinal das contas, as pessoas moram. É importante também para organizar o tabuleiro partidário, testar a imagem de siglas e líderes, desenhar as articulações e alianças nacionais.

As eleições deste ano têm uma característica muito peculiar, porque encontram um quadro político e partidário confuso e completamente desorganizado. Logo, novo, imprevisível. 

Os partidos tradicionais parecem baratas tontas. O MDB, dono do maior número de prefeituras no País, enfrenta dramas éticos e falta de liderança: o ex-presidente Michel Temer é investigado, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha caiu, foi cassado e está preso, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral foi condenado a mais de 200 anos. Sem disputar a Presidência, ora pendurado no PSDB, ora no PT, o partido depende desesperadamente de bases municipais e estaduais.

O PSDB, que foi um sucesso em 2016 e domina o maior número de grandes cidades, acaba de sair de um desastre eleitoral: Geraldo Alckmin teve em 2018 o pior desempenho do partido numa disputa presidencial e os principais líderes tucanos no Congresso naufragaram nas urnas. Restou uma crise existencial: o que é o PSDB? Pior: quem é o PSDB?

O PT... bem... depois de construir sua história em cima da ética, o partido foi atingido em cheio pela Lava Jato, que levou à prisão o próprio Lula, seus ex-presidentes e ex-tesoureiros. Além de ter de responder pelo fracasso de Dilma Rousseff na Presidência. Mas o PT continua visceralmente dependente de Lula, que não aponta para o futuro, e ainda reelegeu uma presidente, Gleisi Hoffmann, capaz de defender o regime macabro de Nicolás Maduro e de brincar de Foro de São Paulo em Cuba, a esta altura da vida e dos acontecimentos.

Se as velhas siglas estão em maus lençóis, o que dizer das novas? O partido do presidente, qualquer presidente, sempre sai na frente e em vantagem em eleições municipais e em processos de reeleição. Já o Aliança, de Bolsonaro, tem uma corrida de obstáculos, a começar da criação da própria sigla. Até lá, é uma incógnita, na dependência de templos, escolas – e quartéis?

E o PSL, que surfou na onda Bolsonaro e conquistou a segunda bancada da Câmara com neófitos da polícia, da área militar, da Justiça, do Ministério Público? Esqueçam. Foi um meteoro que passou. Se tiver um papel na eleição, será o de azucrinar o Aliança, o presidente e seus seguidores. Uma guerra, aliás, nada santa.


Eliane Cantanhêde sexta, 13 de dezembro de 2019

A REAL RENOVAÇÃO

 

A real renovação

O ‘novo Senado’ tem base forte, articulação eficiente e uma líder: Simone Tebet

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

13 de dezembro de 2019 | 03h00

As votações do pacote anticrime e da prisão em segunda instância geraram uma mudança no equilíbrio político do Senado do primeiro para o segundo semestre de 2019. O Congresso viveu um grande ano, com evidente afirmação do seu poder e independência, e o Senado deu visibilidade a Davi Alcolumbre no primeiro semestre e confirmou a liderança e habilidade de Simone Tebet no segundo. 

Alcolumbre ia bem, participando ativamente de um gabinete de crise informal para enfrentar os arroubos de Bolsonaro, ou melhor, dos Bolsonaros, com Rodrigo Maia, da Câmara, e Dias Toffoli e Gilmar Mendes, do Supremo. Mas algo desandou. Alcolumbre perdeu fôlego antes de concluir o seu primeiro ano na presidência do Senado. Talvez por inconstância, ora se aproximando, ora se distanciando de Bolsonaro, mas sempre atrelado ao baixo clero ou à “velha política”.  

Foi aí que Simone Tebet entrou em cena, surfando numa onda que começou em fevereiro. Quando ela se inscreveu para disputar a presidência do Senado com o então poderoso Renan Calheiros, quase todos imaginaram que não era para valer. Era. Ela articulou bem e a grande surpresa foi quando ela perdeu para Renan por um só voto na bancada do partido de ambos, o MDB. Como uma novata como Simone Tebet quase bateu o imbatível Renan? 

Viu-se, então, que a derrota do senador alagoano não era impossível e que Simone não era tão “ingênua” quanto boa parte de seus colegas gostaria. Bem, Renan perdeu, Davi Alcolumbre venceu com apoio do Planalto e o Senado mudou e continua mudando. 

Quando Alcolumbre e Maia fizeram um acordo “por cima” para a Câmara cuidar, e aparentemente empurrar com a barriga, a emenda da prisão em segunda instância, os senadores articularam uma reação “por baixo”. E apontaram Simone líder da rebelião. Não era para o Senado votar nada sobre o tema, mas ela atendeu a um manifesto de mais da metade dos senadores e pôs na pauta da CCJ. Detalhe: onze líderes assinaram. Alcolumbre se isolou. 

E foi também Simone Tebet, advogada, mestre, doutoranda e professora de Direito, além de filha do ex-governador do MS e ex-presidente do Senado Ramez Tebet, quem comandou toda a bem-sucedida operação para aprovar, ainda neste ano, o pacote anticrime de Sérgio Moro e Alexandre de Moraes

Moro já estava a caminho da Base Aérea de Brasília na quinta-feira passada, indo para Curitiba, quando atendeu a um telefonema de Simone e voltou para conversar com ela no Senado. Ali traçaram a estratégia: aprovava-se o pacote (para não retardar e não ter de devolver para a Câmara) e depois cuidava-se do resto. Assim foi feito. Depois de meses de protelações, o texto foi aprovado rapidamente, e por aclamação (sem voto a voto), no plenário do Senado. 

A segunda instância corre por fora, o excludente de ilicitude foi excluído, Bolsonaro está para vetar o “juiz de garantia” (que foi uma provocação a Moro) e, no ano que vem, fecha-se o pacote com o “plea bargain”, pelo qual o réu que confessa escapa de processo e tem pena abrandada. Articulação perfeita. 

Assim, Simone leva para o recesso um elogio e tanto do senador José Serra, a quem admira e respeita: “Ela ensinou que é possível exercer autoridade sem autoritarismo”. Taí uma renovação muito bem-vinda. 


Eliane Cantanhêde terça, 10 de dezembro de 2019

INJUSTIÇA E DESIGUALDADE

 

Injustiça e desigualdade

IDH toca na maior ferida do Brasil: desigualdade social. País rico, cidadãos pobres

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

10 de dezembro de 2019 | 03h00

Brasil ficou na 79.ª posição geral e na quarta da América do Sul no IDH, atrás de Chile, Argentina e Uruguai, mas a pior notícia não é essa, é o pódium da desigualdade. O índice brasileiro vai melhorando devagar, mas continua péssimo e sem reduzir o gap triste e vexaminoso entre os mais pobres e os mais ricos. Simplesmente 1/3 da renda vai todinha para apenas o 1% de mais ricos. 

Os avanços foram mais acentuados de 1990 a 2013, até que a crise Dilma Rousseff, com todos os seus fatores, estancou esses avanços. Em 2018, a melhora foi de um milésimo no IDH. O que puxou o freio foi a educação. Alguma surpresa? E há uma grande previsão de melhora? 

Ao lado disso, a confirmação agora, como ocorre ano após ano, de que as mulheres estudam mais, mas ganham menos que os homens. Muito menos, aliás, em torno de 41,5%. Novamente, há alguma surpresa? E há uma grande previsão de melhora? 

O principal alerta sobre o significado de tudo isso está aqui perto, no Chile. Considerado um oásis, com bons indicadores econômicos, políticos e sociais, o país ficou novamente em primeiro lugar no IDH na região. Então, há alguma coisa fora de lugar. Se o país tem o melhor IDH e indicadores tão elogiados, por que pipocaram manifestações gigantescas contra tudo? 

A resposta, não científica, mas compartilhada pelos meios acadêmicos e diplomáticos tanto do Chile quanto do Brasil, é essa: o país vai bem, mas as pessoas não tanto. A renda é alta, a divisão é precária. E, atenção, quanto mais a sociedade tem informação, serviços adequados e suas reivindicações atendidas, mais ela fica exigente. 

Afinal, informação é poder. Se as pessoas têm mais acesso a escola, a saúde, a habitação e aos seus direitos, mais ela acha que pode conseguir. E está certa. Daí a pressão. E daí o temor no Brasil de que a onda de protestos no Chile venha cruzando fronteiras e desembarque por aqui. Esse temor é reforçado pelo ambiente geral na região. Também vivem graves conflitos de rua Colômbia, Bolívia e Equador, sem falar na Venezuela, um caso perdido. E há troca de governo na Argentina Uruguai

É instigante que os protestos não perdoem os regimes nem de direita (Colômbia) nem de esquerda (Bolívia). O “povo” não quer saber desse mimimi de direita e de esquerda. Quer direitos e serviços: educação, saúde, habitação, transporte, emprego, dinheiro no bolso – e inclusão social. 

No Chile, todas as forças políticas, exceto o Partido Comunista, se reuniram para tentar entender o que está acontecendo e providenciar uma reação consistente à sociedade. O manifesto dessa nova “Concertación”, “pela democracia”, acena com uma resposta ao “clamor dos cidadãos”, um “acordo social” e uma “nova era”, avançando com a atualização da Constituição. 

No Brasil, pego de surpresa, como todos os demais, por essas ondas de rebelião ao seu redor, a questão é tratada superficialmente, só pelo ângulo da repressão. Ou melhor, como caso de polícia, de tropas do Exército ou até mesmo de AI-5. 

O correto, porém, é passar os olhos pelo manifesto chileno e focar num parágrafo sobre o “bom momento” para reformas sociais e econômicas que possam “outorgar justiça e maior igualdade de oportunidades, ajudando aqueles que necessitam da presença de um Estado solidário, de bem-estar e seguridade social”. Esse é o pulo do gato. 

É arregaçar as mangas, lá, como cá, para que o Estado deixe de servir às castas estatais e privadas e passe a se voltar para o interesse da maioria, para aqueles que realmente precisam do Estado. Reformas já! Mas não só enxugando os privilégios de quem não precisa, mas garantindo direitos para quem precisa. O começo de tudo é a Educação. 


Eliane Cantanhêde segunda, 09 de dezembro de 2019

REELEIÇÃO NO PAPO?

 

Reeleição no papo?

No cenário de hoje, Bolsonaro não é só favorito como o único candidato para 2022

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

08 de dezembro de 2019 | 03h00

Os que apoiam estão tripudiando, os que se opõem entram em pânico, mas o fato é que, neste momento, o presidente Jair Bolsonaro não é apenas fortíssimo para vencer a reeleição como o único candidato realmente à vista para 2022. Três anos são uma eternidade na política, mas uma chapa Bolsonaro-Sergio Moro soa como imbatível. Não custa lembrar que Moro é o personagem mais popular do governo, mais até do que o presidente.

A esquerda continua imobilizada pela presença do ex-presidente Lula, que está inelegível. O centro... bem, João Doria recua, Luciano Huck avança, mas os dois nem chegam perto de ameaçar o franco favoritismo de Bolsonaro, que ainda por cima tem o precedente histórico a seu favor: nenhum presidente deixou de ser reeleito depois do instituto da reeleição. Nem Dilma Rousseff, apesar de tudo.

Bolsonaro aprofunda a estratégia da campanha de 2018, mantendo o foco no combate à corrupção, recuperação da economia e dos empregos, defesa da ordem,família e propriedade, ojeriza ao “politicamente correto” e o medo - ou pretexto - da volta do PT e de Lula.

Provoque qualquer bolsonarista, seja ele "de raiz" ou de conveniência, e a primeira resposta é: "O que você quer? A volta do PT?". A segunda: "o governo já tem um ano, você ouviu uma única palavra sobre corrupção?". A terceira: "A Dilma destruiu a economia, mas o Paulo Guedes está recuperando, a economia vai bem".

Pode-se perguntar sobre o aparelhamento indecente da Cultura, o desmonte das políticas e da fiscalização do Meio Ambiente, a bagunça na educação, a falta de notícias sobre a saúde, a esquizofrenia da política externa, as ameaças de autoritarismo dos filhos do presidente. Pode-se perguntar até do terraplanismo, de gurus, do AI-5, das amizades do presidente. Sabem a resposta? Tudo é mimimi de intelectual, de jornalista, ninguém está preocupado com isso.

Aqueles da direita moderna até torcem o nariz para os absurdos ditos e feitos por Bolsonaro e cia, demarcando uma linha clara entre eles e ele, mas não arredaram pé nem estão (até agora, ao menos) buscando alternativas. Pensam assim: Bolsonaro pode não ser adequado, mas que jeito? Ruim com ele, pior sem ele.

Do outro lado, a esquerda continua com o mesmo discurso atrasado, a mesma obsessão em Lula, as mesmas divisões, sem energia para fazer uma oposição consistente no Congresso nem para mobilizar a sociedade. E a situação de Lula é incerta e não sabida. A prisão em segunda instância vai voltar? Quando? Como será o julgamento da anulação do processo do triplex no STF, que pode anular a inelegibilidade? Para onde vai a condenação pelo sítio? E os demais processos?

Já o centro, que virou uma tábua de salvação, ainda é uma miragem. Faltam líderes, convencimento, discurso objetivo, rumos, convicção, reverberação no Congresso. E há dois pontos centrais: no Brasil, o presidencialismo é fortíssimo e a política gira em torno de personalidades. Bolsonaro encarnou o anti-Lula. Para enfrentá-lo, só uma cara e uma voz tanto anti-Lula quanto anti-Bolsonaro.

É cedo para certezas e mesmo previsões, mas no cenário de hoje Bolsonaro corre sozinho, sem adversários, com boas perspectivas na economia e dono único do discurso anti-corrupção. Seus principais inimigos são ele próprio, seus filhos, ministros esquisitões e o danado do imponderável. Este pode estar em cada esquina, em cada gabinete, em cada descuido. E na CPI das fake news.

Enquanto isso, Bolsonaro fortalece sua base militar, evangélica, ruralista e ultraconservadora, dá os cargos da Cultura de mão beijada para Olavo de Carvalho, ajusta a política externa ao pragmatismo e deixa o "gabinete do ódio" do Planalto trabalhar. Todo o pacote de 2018 está ativo e muito eficiente.


Eliane Cantanhêde sexta, 06 de dezembro de 2019

MORO, GUEDES E O VÁCUO

 

Moro, Guedes e o vácuo

‘Superministros’ da Justiça e da Economia viram articuladores políticos

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

06 de dezembro de 2019 | 03h00

É injusto e incorreto classificar a votação do pacote anticrime como derrota do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que fez o que pôde pelo texto e, assim como o ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu um papel que não é dele, para o qual não foi preparado e para o qual ele próprio julgava não ter talento: a articulação política. 

Num governo em que o chefe da Casa Civil só serve para viagens, solenidades e fotos com o presidente e o anunciado articulador político é um general de quatro estrelas, da ativa!, as negociações, conversas e o esforço de convencimento de deputados e senadores acabam sobrando para quem não é do ramo. Se dá certo, é“vitória do governo”. Se dá errado, é “derrota do ministro”.

Na Previdência deu certo porque a importância da reforma decantou na opinião pública, nos partidos, no Congresso, e as mudanças passaram com razoável facilidade e sem grandes protestos. Mesmo assim, o economista Paulo Guedes viu (e sofreu) o vazio da articulação palaciana, arregaçou as mangas e abriu as portas do gabinete para fazer as vezes de articulador. 

Moro, que atuou a vida toda no Judiciário, olhou para um lado e para o outro e viu que, se não entrasse na articulação com o Congresso, o pacote anticrime não seria aprovado nem em parte e corria o risco de ir parar numa gaveta, senão no lixo. E lá se foi ele, com seu jeitão tímido, cara de mau humorado, tratar de convencer deputados e senadores da importância do pacote contra (atenção!), mais do que a corrupção, o crime organizado. Detalhe: Guedes tinha a boa vontade do deputado Rodrigo Maia com a Previdência, mas Moro não tanto com o anticrime. 

O que saiu não foi o ideal, mas foi o possível e Moro sabia disso. Sabia que a prisão após segunda instância teria tramitação própria, paralela, e viu como as chances do excludente de ilicitude, que já eram mínimas, foram definhando a cada criança e jovem mortos em operações policiais. E ainda teve de engolir Bolsonaro numa “live” dando de ombros para o pacote. Logo, o ministro não foi derrotado, ele apenas conviveu com a realidade. E continua na guerra da segunda instância. 

O desvio dos dois superministros para a articulação política já indica como o Planalto vai agir nas reformas tributária, administrativa e trabalhista. Se é que a coisa não vai piorar ainda mais. O presidente pode, nesses casos, ir além de apenas lavar as mãos e passar a trabalhar contra. Guedes tem pela frente um exercício de paciência diário. 

Enquanto isso, Moro estará jantando, trocando telefonemas e mensagens com parlamentares pela prisão em segunda instância, que avança, mas cercada de suspeitas de jogo de cena. A maioria dos senadores desconfia das reais intenções de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e rompeu o acordo entre eles para votar na próxima terça-feira na CCJ, lembrando que os projetos são diferentes: uma emenda constitucional na Câmara, um projeto mudando o Código do Processo Penal no Senado. 

E a CPI das fake news? Ela vai esquentando, especialmente após a ex-aliada Joice Hasselmann acusar os filhos do presidente e o “gabinete do ódio” do Planalto por quase dois milhões de robôs pagos pelos cofres públicos para espalhar mentiras e atingir reputações. Isso está crescendo e é uma dor de cabeça para o governo e o presidente da República. Quem vai pegar o touro a unha? Guedes? Moro? Seria pedir demais. 


Eliane Cantanhêde domingo, 01 de dezembro de 2019

GUEDES E TOFFOLI, OS CARAS

 

Guedes e Toffoli, os caras

Em 2020, Guedes precisa engrenar a segunda e é hora de Toffoli dar marcha à ré

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

01 de dezembro de 2019 | 05h00

Os dois grandes personagens da semana passada, não sob aplausos, foram o ministro Paulo Guedes e o presidente do Supremo, Dias Toffoli. Um falou bobagens e ajudou a tumultuar o mercado e a aumentar as incertezas. O outro não só falou como fez bobagens, atraindo uma derrota fragorosa.

De pavio curto, Guedes não tinha nada que desdenhar da disparada do dólar e muito menos tratar com ligeireza do maldito AI-5, que mexe com velhas dores nacionais e o recente mal-estar institucional causado pelo filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro. 

Se o País ainda se assusta, mas vai se acostumando com manifestações estapafúrdias do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, isso não ocorre em relação ao superministro da Economia. Guedes é um avalista do governo. Assim como persiste o “votei no Bolsonaro para evitar o PT”, mantém-se o “Bolsonaro pode falar o que quiser, o importante é o Guedes recuperar a economia”. Logo, frases enviesadas do ministro sobre câmbio e política causam desconforto desnecessário.

 

 
A marca de 2019 foi a reforma da Previdência, num ambiente fantasticamente calmo, mas Guedes encerra o ano sem engrenar a segunda e avançar nas reformas trabalhista, administrativa e tributária. Num governo em que o ministro da Economia precisa fazer as vezes de articulador político, Guedes foi atropelado pela pauta da prisão em segunda instância no Congresso, a falta de mínimo consenso na questão tributária e a decisão de Bolsonaro de não mexer num vespeiro, o funcionalismo público, já no seu primeiro ano.

Outro problema é que a herança bendita dos quase dois anos e meio de Michel Temer está se esgotando: a reforma trabalhista, o impulso da própria reforma da Previdência, os leilões de estradas, portos e aeroportos, além do Pré-Sal. Agora, é bola pra frente.

Quanto a Toffoli: acostumado a esticar a corda, ele jogou o STF em duas situações delicadíssimas. Na primeira, foi na contramão da antecessora Cármen Lúcia e pôs em pauta a reviravolta na prisão em segunda instância, já sabendo qual seria o placar (6 a 5) e o efeito (a soltura do ex-presidente Lula). Na segunda, causou um atraso de bom tamanho em cerca de 1.500 investigações do MP e da PF. 

Juntando a primeira e a segunda, tem-se uma conta de compensação: favorece Lula, favorece o seu antagônico. E Toffoli usou um Recurso Extraordinário envolvendo a Receita Federal para meter a UIF (ex-Coaf) no meio e, numa liminar monocrática, suspender as investigações sobre o gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado no Rio. O preço foi caro: para livrar um, livrou milhares.

A questão foi ao plenário e virou um suplício para Toffoli. O voto dele foi de quase cinco horas e “em javanês”, na ironia do ministro Luís Roberto Barroso, mas isso foi só o começo. Ao longo dos demais votos, e das horas, sucederam-se dúvidas e críticas ao presidente da Corte, obrigado a ouvir lições elementares dos colegas. 

A principal delas: órgãos de controle não apenas “podem” como têm a obrigação de repassar sinais de crimes para os órgãos de investigação. Elementar, meu caro Watson. Tão elementar que, no fim, para reduzir o vexame, Toffoli recuou e aderiu à maioria. Reduziu o vexame, não a flagrante derrota.

Assim, a liminar de Toffoli caiu, a de Gilmar Mendes que suspendia todas as investigações referentes a Flávio Bolsonaro também caiu e, a partir de agora, o Planalto tende a ficar exposto a revelações nem sempre bem-vindas.

Toffoli até tentou dar uma força para o presidente e seu primogênito, mas pode ter perdido nas duas pontas: não garantiu o fim das investigações de Flávio e atraiu chuvas e trovoadas, até dos próprios colegas. Que o recesso chegue rápido!


Eliane Cantanhêde terça, 26 de novembro de 2019

É GUERRA?

 

É guerra?

Para Gleisi, conflitos chegam ao Brasil; Bolsonaro lança ‘GLO do campo’. Onde nós estamos?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

26 de novembro de 2019 | 03h00

Quando o torniquete apertou em torno do PT e do mandato da então presidente Dilma Rousseff, seu patrono Lula ameaçou “chamar o Stédile”. Nem completou ainda um ano de mandato, agora o presidente Bolsonaro tem a audácia de anunciar que quer chamar o Exército para reintegrações de posse no campo. Lembra do “chama o (general) Pires” da ditadura, mas fora de foco, de tempo e de lugar. 

“Quero paz e democracia, mas também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas”, falou Lula há cinco anos, quando petistas e aliados entraram em confronto com manifestantes contra Dilma no Rio. Poderia ser só mais uma dessas bravatas típicas de Lula, mas continha uma clara ameaça. 

Ameaça nunca cumprida, aliás, nem mesmo quando Gleisi Hoffmann, presidente agora reeleita do PT, disse que ia “ter de matar gente” se Lula fosse preso. João Pedro Stédile, principal líder do MST, não apenas nunca acionou suas tropas como saiu de fininho dos holofotes para se distanciar das denúncias de corrupção que passaram a bater firme no PT e a respingar em toda a esquerda. E ninguém matou ninguém na prisão de Lula. 

 No caso de Bolsonaro, que anunciou ontem um projeto para chamar o Exército nas reintegrações de posse – a “GLO do campo” –, não há bravata, mas, sim, uma intenção clara e um triplo objetivo: agradar à bancada da bala e à bancada ruralista e atender aos interesses dos proprietários de terra. O projeto, ainda em elaboração no Planalto, tem de passar pelo Congresso. Agora, é rezar. 

Qual o risco se Lula reativar a fantasia de acionar o “exército do Stédile”, se os Stédiles do MST estiverem dispostos a bater continência e cumprir a ordem e se, enfim, o Congresso aprovar a tal “GLO do campo” de Bolsonaro? O risco é de uma guerra, com oficiais e soldados armados de um lado e os militantes do MST com seus porretes e facões, do outro. Sem contar os jagunços das próprias propriedades. 

Mais uma vez, Gleisi Hoffmann entra na história para piorar as coisas. Ao assumir mais um mandato de presidente do PT olha o que ela disse, numa referência aos confrontos sangrentos no Chile, na Bolívia, no Equador e na Colômbia: “Quando as grandes manifestações ecoarem no Brasil, porque vão ecoar, nós temos de estar preparados para ajudar a conduzi-las.” 

É de uma irresponsabilidade enorme a presidente de um dos maiores partidos do País falar assim, como é igualmente irresponsável Bolsonaro querer o Exército nos conflitos e fazendas pelo interior. Está todo mundo ficando louco? 

A Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prevista na Constituição, é uma medida em casos muito graves e específicos, quando as forças policiais não dão conta de crises e os governadores pedem socorro à União. É algo, portanto, para exceção, emergência, não para jogar tropas daqui para lá, sob qualquer pretexto, a qualquer hora. 

No caso da “GLO do campo”, há dois agravantes. O primeiro é que, como Bolsonaro deixou claro ontem, não se trata de agir com os governadores e a favor deles, mas passando por cima deles (que, ao ver do presidente, não cumprem as determinações judiciais de posse). 

O segundo é que o presidente só usa seu poder e instrumentos de poder para defender os já poderosos: os desmatadores, que não têm mais seus tratores destruídos; os que pescam em reservas ecológicas, livres para fazer o que quiserem; os policiais que exorbitam; os patrões, cujos direitos se sobrepõem aos dos empregados. 

Um alerta, porém: as Forças Armadas são disciplinadas e cumprem ordens, mas já têm resistência a jogar seus oficiais e soldados para atuar como policiais em favelas, contra bandidos comuns. O que acham da ameaça, e o risco, de vê-los enfrentando à bala acampamentos com homens, mulheres e crianças? 


Eliane Cantanhêde domingo, 24 de novembro de 2019

PARA A FRENTE OU PARA TRÁS?

 

Para frente ou para trás?

Recuo no combate à corrupção, na diversidade, na inclusão; o mundo está de olho

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

24 de novembro de 2019 | 05h00

Tudo embolado: o julgamento da restrição aos dados da Receita e do Coaf, a reviravolta na prisão em segunda instância, o pacote anticrime empacado. E é por isso que o presidente do Sindifisco, advogado e engenheiro mecatrônico Kleber Cabral, adverte, dentro e fora do País, para os graves efeitos dessa investida não mais apenas contra a Lava Jato, mas contra todos os avanços no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.

“Essa é a percepção generalizada e qualquer decisão que restrinja o trabalho da Receita e o compartilhamento de dados de órgãos de controle tem impacto inclusive no desenvolvimento. Se o Brasil for carimbado como ‘não cooperativo’ no combate a ilícitos, isso será um forte obstáculo aos investimentos internacionais”, diz ele.

O Sindifisco, Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais, já entrou com representações em quatro órgãos internacionais para denunciar e tentar brecar os avanços contra os órgãos de controle, Receita, Polícia Federal e UIF (Unidade de Inteligência Financeira, ex-Coaf). E esses ataques não se limitam a apenas um Poder. 

Além dos julgamentos do Judiciário sobre segunda instância e compartilhamento de dados, há também decisões do Executivo e do Legislativo atravancando todo um processo que havia jogado luzes positivas sobre o Brasil, criando uma expectativa do fim da impunidade e uma onda de confiança nos brasileiros. Com tudo isso em risco, a decisão do Congresso sobre segunda instância também se torna crucial. A ver.

Não apenas os recuos no combate à corrupção, porém, preocupam, incomodam, irritam. Um professor universitário xingado de “macaco” e esfaqueado na rua por ser negro em plena semana da Consciência Negra? Um deputado federal vandalizando uma exposição contra o racismo? Um outro falando em “negrinhos bandidinhos”?

Depois da ditadura, destampou-se no Brasil a panela de pressão política e o vapor da democracia trouxe ao ambiente os grupos, interesses e confrontos tão reprimidos em duas décadas. A unidade de esquerda, centro e parte da direita para recuperar a normalidade perdida foi aos poucos cedendo terreno às divergências e nuances próprias das democracias.

Agora, o fim da era PT com a sucessão de mensalão e petrolão destampou uma nova panela de pressão: o que há de pior na pior direita, o discurso assassino das armas, a falsa religiosidade que rouba dos pobres e infelizes, a crueldade contra negros e a comunidade LGBT, a posição retrógrada sobre gênero disfarçada como defesa da família. Os recuos no combate à corrupção e essa barafunda vieram acompanhados de retrocessos em Meio Ambiente, Cultura, Direitos Humanos, pesquisa, educação, política externa. E não se fala aqui do governo, ou não apenas do governo, mas de toda uma classe média que saiu do armário para se assumir armamentista, racista, homofóbica... cruel.

Em meio à balbúrdia, sobressai-se o Ministério da Economia de Paulo Guedes. Ele e Rodrigo Maia trazem racionalidade a um ambiente de preocupante irracionalidade, mas eles podem muito, não podem tudo. A economia tem enorme peso na política e os índices inegavelmente favoráveis escamoteiam os demais problemas, mas a economia também depende da política, da percepção, dos ventos e da sociedade, tanto quanto a sociedade depende da economia.

O Brasil é um país imenso, amistoso, cheio de potencialidades, que tem tudo para se desenvolver e incluir os milhões de miseráveis que sobrevivem por aí não se sabe como. Mas, para isso, é preciso andar para frente, não para trás. Avançar na economia, no combate à corrupção, na igualdade de oportunidades, no respeito às diferenças, na dignidade de todos, não importa o sexo, a cor, a religião, o saldo bancário. Aliás, princípios básicos de humanidade.


Eliane Cantanhêde sexta, 22 de novembro de 2019

NOVAS SIGLAS, VELHAS IDEIAS

 

Nova sigla, velhas ideias

E a direita moderna, liberal na economia e também no social, na cultura e nos costumes?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

22 de novembro de 2019 | 03h00

Após 20 anos de ditadura militar, a balança se inverteu e o preconceito contra os militares passou a andar lado a lado com uma onda de esquerda e centro-esquerda. Falar em direita? Vade retro! Partidos conservadores mais aguerridos se diziam “liberais”, até de “centro-esquerda”, mesmo depois que as Forças Armadas passaram ao 1.º lugar de aprovação nas pesquisas. 

O único político que tentou criar um partido nitidamente de direita foi Luís Eduardo Magalhães, grande promessa política que morreu aos 43 anos, em 1998. Sem ele, até PP, PTB e PL se apresentam como de “centro”. E viraram “Centrão”. Logo, a criação da Aliança pelo Brasil é um movimento importante e um teste sobre o tamanho e a identidade, ou alma, da direita brasileira, hoje mobilizada em torno de um “mito”, Jair Bolsonaro, e de uma novidade, o bolsonarismo. Seus nove partidos anteriores, como o PSL pelo qual se elegeu há um ano, foram apenas utilitários. 

A grande pergunta, porém, é que direita é essa? Aquela direita de Luís Eduardo? Ou uma nova direita de cultos? A resposta pode definir uma linha clara entre os que apoiam o governo Bolsonaro por pragmatismo ou falta de opção e aqueles que realmente comungam as ideias, muitas delas beirando o absurdo, da nova onda de poder.

 

 
 Filho do ex-governador e ex-senador Antonio Carlos Magalhães, o ACM, Luís Eduardo incorporava o que se pode chamar de uma terceira vertente da direita clássica brasileira. Depois do coronelismo bruto da era getulista e do caudilhismo mais envolvente, à la ACM, o jovem deputado baiano era a promessa de uma direita moderna, urbana, liberal no sentido mais amplo. 

Já Bolsonaro é o quê? É conceitualmente de direita e comunga com as premissas clássicas do liberalismo? Ou apenas pensa, fala e age atabalhoadamente, embolando a defesa de UstraPinochet e Stroessner, uma visão tosca sobre globalização, a mistura deletéria de política com religião, a obsessão por armas, a cultura do corporativismo, o desprezo por cadeirinhas e radares, o desdém pela pesquisa e a ciência, a falta de paciência com a ecologia, uma política externa personalista e belicosa, a mal disfarçada tese do “bandido bom é bandido morto”? 

É nisso que desembocou a direita brasileira? Cadê a direita que equilibra o liberalismo na economia com o liberalismo social e cultural? Que combate o dirigismo estatal, defende a iniciativa privada e a política externa pragmática, simultaneamente à responsabilidade social, liberdade de expressão, igualdade de direitos, dignidade da pessoa humana, respeito à diversidade e a globalização? Ou a direita não pode ser generosa e inclusiva? 

A Aliança pelo Brasil – aliás, um nome bom, de grande apelo – nasce como um partido familiar. Jair é presidente, Flávio é vice, Eduardo é ideólogo, Jair Renan é vogal, enquanto Carlos mantém-se na trincheira das redes sociais. 

Pairando sobre a família e o auditório gritando slogans em tom evangélico, ou de seita, estavam lá o tal Olavo de Carvalho, o tal Steve Bannon, a tal obsessão ideológica, a tal visão tortuosa de mundo e uma guerra insana contra uma salada de fantasmas: comunismo, globalismo e nazi-fascismo. Uma barafunda que pode ser bastante útil para eleições, mas bem pouco convincente para articular solidamente a real direita brasileira, inclusive a empresarial. 

E, mais do que as regras da Justiça Eleitoral, prazos e questões práticas sobre assinaturas digitais ou não, um grande risco para o novo partido vem da realidade internacional. Com o afastamento de Trump deixando de parecer absurdo nos EUA e processos se avolumando contra Netanyahu em Israel, os dois maiores ídolos do “direitista” Bolsonaro não só parecem ameaçados como ameaçam o discurso do presidente e do novo partido presidencial. 


Eliane Cantanhêde terça, 19 de novembro de 2019

MORDE E MODULA

 

Morde e modula

Sob pressão, STF discute com demais Poderes 'modulação' de decisões incômodas

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

19 de novembro de 2019 | 03h00

A sensação em Brasília é de que todos estão, ou estamos, paralisados e com a respiração suspensa à espera de quarta-feira, quando o Supremo começa a discutir e pode até concluir o julgamento sobre o que o Ministério Público e a Polícia Federal podem ou não fazer com dados de milhares ou milhões de cidadãos na Unidade de Inteligência Financeira (UIF, ex-Coaf). 

Essa decisão diz respeito não só aos milhares de alvos de processos que fizeram festa com a decisão monocrática do ministro Dias Toffoli, mas também à força-tarefa da combalida Lava Jato, aos órgãos de investigação em geral e à própria sociedade brasileira, exausta com a impunidade. 

Quatro meses depois de parar quase mil investigações, Toffoli repete uma prática que vai se tornando corriqueira em julgamentos de grande impacto: a busca de uma tal de “modulação” – que no fim não dá certo. Fala-se muito em modular, mas na hora “H” não se modula nada. Melhor exemplo: o drástico recuo, por um voto, na prisão após segunda instância. Sem meio-termo, a decisão foi pura, direta. E tirou Lula da prisão. 

O que é “modulação”? É a tentativa de votar a favor dos investigados e contra a vontade da sociedade, mas tentando maneirar e reduzir a avalanche de críticas. Ou seja: o STF se prepara para decidir contra o compartilhamento de dados, tão importante para o trabalho do MP e da PF, mas já pedindo desculpas e amenizando a decisão. Além de dividir responsabilidades. 

No voto sobre segunda instância, Toffoli desistiu de última hora de buscar uma inviável modulação, mas empurrou o abacaxi para o Congresso, compartilhando a pressão e as críticas com o outro Poder. Aliás, um parênteses: em artigo ontem no Estado, o ministro Sérgio Moro bem destacou que, ao admitir que o Congresso poderia alterar o Código do Processo Penal e a própria Constituição, o presidente do Supremo admitia também, automaticamente, que a presunção de inocência não é cláusula pétrea da Constituição. Logo, está sujeita a “uma conformação diferente” da decisão do STF. 

Assim como a segunda instância dizia diretamente a Lula, mas também a milhares de condenados e presos, a decisão de amanhã sobre o Coaf diz respeito a Flávio Bolsonaro, mas igualmente a milhares de sujeitos a investigações. Se não conseguiu soltar Lula sem favorecer também os demais, dificilmente o STF vai livrar Flávio sem beneficiar os outros milhares. 

Apesar de muito difícil, Toffoli tenta uma modulação que evite um efeito tão abrangente e votos envergonhados. É por isso que ele vem conversando e ouvindo muito, inclusive Augusto Aras (PGR), Roberto Campos Neto (BC) e André Mendonça (AGU), enquanto o ministro Gilmar Mendes se reúne com o secretário e o procurador da Receita. 

A intenção é buscar informações e compreender o sistema de troca de informações da nova UIF, da Receita e do próprio BC, para não apenas e simplesmente proibir a remessa de dados para o MP e a PF sem autorização judicial – como decidiu Toffoli originalmente no caso de Flávio. “Serão normas de organização e procedimento, o que não pode é continuar essa terra de ninguém”, disse à coluna Gilmar Mendes. 

Pode-se concluir que o STF tenta chegar a fórmulas um tanto milagrosas para a UIF e a Receita compartilharem dados de uns, não de outros, dados tais, não quais. No caso da segunda instância, não funcionou. Vamos ver se agora funciona. 

Ainda amanhã, o ministro Alexandre de Moraes recebe do deputado Rodrigo Maia a proposta da Câmara para “modular” o pacote anticrime de Moro e se antecipar ao Senado, onde as medidas estão na pauta de amanhã na CCJ. Toffoli já desistiu de brincar de “Grande Irmão” e tudo pode acontecer nesta quarta. A pressão da sociedade não é em vão. 


Eliane Cantanhêde domingo, 17 de novembro de 2019

É TOMA LÁ, DÁ CÁ?

 

É ‘toma lá, dá cá’?

Toffoli e Bolsonaro precisam afastar a suspeita de ‘toma lá, dá cá’ entre Executivo e Judiciário

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

17 de novembro de 2019 | 01h23

O ano está terminando? Depende para quem, porque o Supremo, que está passando por 2019 sob pressão, ainda tem longos dias pela frente até o recesso de fim de ano e promete um 2020 também agitado. Desde já, 2019 está adentrando 2020 no STF. Isso, aliás, vale não só para o Supremo, mas particularmente para seu presidente, Dias Toffoli.

Há uma forte incompreensão sobre a liberação em série de presos e às vezes corretas e necessárias advertências contra o excesso de prisões preventivas e temporárias, nem sempre deferidas dentro da estrita legalidade e geralmente se estendendo além do razoável, ou permitido. 

A isso se some a divisão do STF, o ambiente belicoso e a exposição pela TV Justiça das trocas de desaforos e insinuações entre aqueles senhores tão solenes em suas togas e nem tão elegantes na manifestação de suas divergências. Todos esses fatores somados, o resultado é uma suspeita que se consolidou por toda parte: a de “acordão” para esvaziar a Lava Jato.

O caldo entornou de vez, principalmente no caldeirão das redes sociais, com a reviravolta na autorização da prisão após condenação em segunda instância, com um voto estranho e desconfortável de Toffoli, que foi quem levou a questão à pauta apesar de não haver fato novo nem mudança no plenário e, no fim, num voto mais do que estranho, jogou a confusão no colo do Congresso. 

Câmara e Senado que se virem para trazer de volta a regra, confirmada pela terceira vez e agora derrubada pelo mesmo plenário do STF, o que torna tudo ainda mais irritante para uma opinião pública aflita e exaurida com a eterna impunidade e injustiça quando se trata de réus ricos e poderosos.

Nesse mix de erros, de condução, de decisões e de comunicação, confundindo os cidadãos, desgastando a imagem da instituição e subtraindo confiança na Justiça, só faltava uma coisa: o presidente do Supremo personificar esses erros e concentrar a ira das redes. Não falta mais.

A revelação de que Toffoli exigiu do Banco Central o acesso aos relatórios financeiros produzidos nos últimos três anos pelo Coaf, agora em novo endereço e rebatizado como Unidade de Inteligência Financeira (UIF), joga muito mais lenha na fogueira.

Para piorar, essa decisão de Toffoli veio a reboque de seu ato monocrático que suspendeu centenas de investigações da PF e do Ministério Público com base em dados fornecidos pelo então Coaf sem autorização judicial, beneficiando alvos de toda a natureza. E... Toffoli assim agiu atendendo pedido justamente da defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República.

Enquanto Toffoli se recusa a considerar o recurso do procurador-geral da República, Augusto Aras, e desistir de ter acesso a dados financeiros de 600 mil cidadãos, o plenário do STF se prepara para julgar nesta quarta-feira, dia 20, se mantém ou não aquela primeira decisão do presidente da Casa, favorecendo o senador Flávio e os investigados com base no Coaf.

Esse julgamento é mais um importantíssimo neste 2019 sem fim, porque traz de volta o já bem conhecido Queiroz e joga o foco em Flávio Bolsonaro, Toffoli, Supremo e o próprio presidente Jair Bolsonaro. Ele alardeia que não se rendeu ao “toma lá, dá cá” do Executivo com o Legislativo, mas o que precisa muito é afastar a suspeita de que o “toma lá, dá cá” passou a ser com o Judiciário. Mais grave ainda: dele com Toffoli. 


Eliane Cantanhêde sexta, 15 de novembro de 2019

O NOVO B DO BRICKS

 

O novo B do Brics

Criado contra o ‘mundo unipolar’, o Brics passa a contar com um forte aliado dos EUA

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

15 de novembro de 2019 | 03h00

A reaproximação do Brasil com a China e o entusiasmo do ministro Paulo Guedes com acordos bilaterais de livre-comércio são bons passos para corrigir dois erros da política externa, um bem recente, do início do governo Bolsonaro, e outro lá atrás, do início da era PT. Esses passos vêm em boa hora. 

Além de inviabilizar a Alca, o Brasil foi decisivo para vetar acordos bilaterais dos parceiros do Mercosul, ficando subentendido que não fazia e não permitia que UruguaiParaguai Argentina fizessem acordos de livre-comércio diretamente com os Estados Unidos. Sem Alca e sem bilaterais, a grande aposta foi na Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), que nunca saiu. Ou seja, não sobrou nada. 

Agora, depois do anúncio (por enquanto, um mero anúncio) do acordo Mercosul-União Europeia, o governo Bolsonaro atira para todos os lados. Já acenou com livre-comércio com os EUA, com a China e, depois das duas maiores economias do planeta, sabe-se lá com quantos mais. A palavra de ordem de Guedes é abertura. 

De outro lado, a obsessão em desvincular o Brasil do Tio Sam correspondeu a uma ilimitada aproximação com a China, que começava a desbravar todos os continentes e ultrapassou os EUA como nosso principal parceiro comercial. E com vantagem objetiva enorme: o Brasil é superavitário nas relações com os chineses, ou seja, vendeu mais do que comprou. 

Pois não é que Jair Bolsonaro, eleito, já passou a – também fortemente pautado pela ideologia como Lula, mas às avessas – cutucar e provocar a parceira e gigante China. Quanto mais se assumia pró-EUA, ou melhor, pró-Trump, mais Bolsonaro desdenhava a China, que “queria comprar o Brasil”. 

Ao ser recebido com pompas em Pequim e agora no seu encontro com Xi Jinping em Brasília, o presidente corrige seu próprio erro, recoloca as relações nos eixos e, mesmo sendo a China uma ditadura de esquerda, passa a agir com pragmatismo. O regime da China é um problema dos chineses, as trombadas entre Washington e Pequim são problema dos dois e o que nos diz respeito são os interesses brasileiros nas relações. E isso parece estar, enfim, prevalecendo. 

Quanto ao Brics, há uma mudança importante. Ao se unirem em 2006, Brasil, Rússia, Índia e China (África do Sul veio depois) tinham uma ambição econômica e uma estratégia política: se rebelar contra um “mundo unipolar”, ou seja, contra a hegemonia acachapante dos EUA. Hoje, porém, o B mudou de lado. 

Quatro dos cinco países estão entre os dez maiores, mais ricos e populosos do planeta, logo, capazes de reequilibrar o jogo mundial. O Brasil, porém, abre uma fenda na unidade do grupo. Assim como rompeu sua histórica postura independente para seguir os EUA em votos sobre Cuba e sobre direitos humanos na ONU, o Brasil age para o Brics incomodar o mínimo possível os EUA. 

Assim, o Brics continua sendo forte e importante na economia mundial, mas a unidade política e o futuro do grupo parecem incertos e não sabidos, com China e Rússia de um lado, o Brasil sonhando com um alinhamento automático com os EUA e a Índia e a África do Sul tentando se equilibrar entre os parceiros. 

Só isso explica que a declaração final da cúpula de Brasília tenha se ocupado de Síria, Coreia do Norte, Sudão e Iêmen, sem uma única linha sobre Venezuela e Bolívia. Os negócios vão muito bem, mas os EUA pairam sobre o Brics e as visões de mundo dos cinco são hoje claramente muito diferentes.


Eliane Cantanhêde terça, 12 de novembro de 2019

FOGO NO CIRCO

 

Fogo no circo

A polarização do Brasil extrapola fronteiras e incendeia a região 

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

12 de novembro de 2019 | 03h00

Bolívia ia bem à esquerda, o Chile era um exemplo na centro-direita e, de repente, os dois regimes implodem, com o povo na rua, a oposição fortalecida, os governos acuados. O que há em comum entre eles? A insatisfação crônica da sociedade, que agora usa o poder das redes sociais e cria falsos mitos para por fogo no circo. 

O mundo abriu os olhos. E, quando se olha para a América do Sul, depara-se com o Brasil, o maior, mais rico e mais populoso país da região, o que costumava dar as cartas e agora vive suas próprias tensões internas, sujeito aos reflexos das crises ao redor. 

 Aqui também se dá, como nos vizinhos, mas sem confrontos de rua, tiros e mortes, o grande embate entre a velha esquerda e a nova direita, entre o populismo de Lula e um Bolsonaro que tenta se equilibrar entre o seu reacionarismo e o neoliberalismo de Paulo Guedes

Os 13 anos de Evo Morales na Bolívia trouxeram desenvolvimento e inclusão social. Enquanto o Brasil passou por dois anos seguidos de recessão e patinou em 1% de crescimento ao ano, a pequena Bolívia, país mais pobre da região, atingiu a média de 4,9%. E, se o Brasil atravessa governos e regimes à direita e à esquerda sem efetiva inclusão social, organismos internacionais atestam que a Bolívia reduziu a miséria à metade. 

Então, o que deu errado? O grande erro de Evo Morales, o mais pragmático dos “bolivarianos”, foi institucional. Foi a crença de que só ele é capaz de “salvar” o país. Foi assim, seguindo os passos de Hugo Chávez, que ele driblou a decisão popular contra um quarto mandato e ganhou num Judiciário amigão o direito de concorrer. Daí à denúncia de fraude foi um pulo. 

A sociedade reagiu dando palanque para os líderes de oposição e pedindo a interferência ainda velada das Forças Armadas. Mas a guinada começa mal. Além do gesto da renúncia, Morales pediu aos adversários que pacifiquem a nação, mas o oposicionista Luís Camacho radicalizou, exigindo a prisão dele e seus aliados. Para que? Se Morales, o vice, o governo e a cadeia sucessória ruíram por inteiro, isso só serve para acirrar os ânimos. Vitoriosos devem ter grandeza. 

No Chile, como já explorado, a questão não foi política e social, na medida em que os indicadores iam bem, mas o povo ia mal. Diz-se que quem tem fome tem pressa. E quem está na base da pirâmide grita que as fórmulas de crescimento não estão gerando igualdade e inclusão. 

Os ingredientes e as palavras de ordem já pipocavam no Brasil e emergem com força quando Lula sai da cadeia atacando os três pilares do governo: Bolsonaro, Guedes e Moro. O governo contra-ataca com uma arma válida contra Cristina Kirchner na Argentina, mas é acessória no Chile e na Bolívia: o combate à corrupção. Lula acusa o regime Bolsonaro de antipovo, Bolsonaro e Moro martelam que Lula é “condenado” e “criminoso”. 

Não se trata de um debate sobre o que é melhor para o País e para todos, mas uma guerra de acusações e de desconstrução de adversários, em que vale tudo, principalmente o jogo sujo das fake news. Isso piora muito porque Lula precisa de Bolsonaro para reanimar sua tropa e Bolsonaro usa Lula para reaglutinar o bolsonarismo. 

A reunião dos Brics começa hoje em Brasília com a Rússia acusando a direita de ter dado um “golpe” na Bolívia e os investidores pisando no freio. Quem quer investir numa confusão dessas, que vem de fora para dentro, mas encontra campo fértil dentro do próprio Brasil?


Eliane Cantanhêde domingo, 10 de novembro de 2019

CORREDOR POLONÊS

 

Corredor polonês

Com sociedade entre Lula e Bolsonaro, centro progressista produz tertúlias e ‘papers’

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

10 de novembro de 2019 | 03h00

Já nos primeiros instantes do fim da prisão após segunda instância, com a volta da impunidade, confirmou-se que o objetivo não era o princípio da “presunção de inocência” nem favorecer cinco mil, mil, cem ou dez condenados, mas apenas um: Luiz Inácio Lula da Silva. Todas as peripécias, jeitinhos e ousadias foram em nome do “Lula Livre”, que embaralha o jogo político e recrudesce a polarização entre a velha esquerda e a nova direita.

O símbolo desse esforço concentrado é o ministro Gilmar Mendes, que de petista não tem nada, mas produziu as mais sinceras manifestações ao longo do ano. “Chega, já está na hora de tirar o Lula da cadeia.” “O País está devendo um julgamento justo para Lula.” E, na véspera, quando o resultado de 6 X 5 era dado como líquido e certo, mas havia fiapos de dúvidas quanto à “modulação”, o ministro só tinha uma certeza: “Lula vai ser solto”. E foi.

Os obstáculos ainda não acabaram, porém. Lula está solto, mas continua condenado em primeira instância, pelo TRF-4 e pelo STJ no caso do triplex do Guarujá e responde pelo sítio de Atibaia, Instituto Lula e apartamento vizinho em São Bernardo, tráfico de influência na compra dos Gripen da FAB, “quadrilhão do PT” na Petrobrás e propinas da Odebrecht. Ufa! A Justiça e o Supremo terão um trabalhão para completar o serviço.

Em paralelo, o Congresso tende a deixar em segundo plano as essenciais reformas fiscal, administrativa e tributária para se digladiar em torno de uma Emenda Constitucional que reintroduza a prisão após a segunda instância e encerre o brusco vai-e-vem do Supremo, que derrete a credibilidade da justiça na sociedade brasileira.

Assim, o Judiciário vai continuar dando tratos à bola para garantir Lula livre, leve e solto e Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre vão se esfalfar para, em movimentos opostos, assegurar que as reformas de Paulo Guedes andem e a prisão em segunda instância suma de vista. Enquanto isso, confirma-se que a balança se inverteu. A Lava Jato afunda e Lula emerge bradando contra a “banda podre” do Estado, que ele nomeia: Polícia Federal, Ministério Público, Receita Federal e a Justiça que agora arrisca sua própria credibilidade e a confiança da sociedade para livrá-lo do cárcere.

Atenção, porém: Lula pode sair por aí em caravana pelo País, desancar Sérgio Moro e a Lava Jato, condenar o governo e provocar o presidente Jair Bolsonaro, mas não pode, ao menos por enquanto, se arvorar candidato a coisa nenhuma. A decisão de quinta-feira do Supremo foi suficiente para soltá-lo, não para anular a condenação e a inelegibilidade de oito anos. Para isso, o Supremo teria de ter a incrível audácia de aprovar a suspeição de Sérgio Moro no caso do triplex e anular a condenação. Nem o presidente Dias Toffoli, lendo reportagens de jornais em julgamentos históricos, seria capaz de tanto. Ou seria, nesse ambiente surreal?

Bolsonaro no Planalto e Lula livre são uma combinação explosiva. O presidente é o que a direita insana sempre pediu a Deus: um líder populista civil (no caso híbrido), que sabe pouco, fala muito e não tem pruridos para defender os maiores absurdos e abrir fogo contra a cultura, o meio ambiente, a mídia, os direitos humanos e parceiros internacionais tradicionais. O outro é o único que a esquerda conseguiu produzir: também populista e sem pruridos, boa lábia, capaz de mover as massas.

E o tal “centro progressista” de que Fernando Henrique tanto fala? Vai continuar fazendo tertúlias intelectuais, “papers” teóricos, entrevistas racionais que atraiam aplausos. É bonito, mas nada prático quando o pau está comendo. Cidadãos do sul ao norte estão num corredor polonês entre Lula e Bolsonaro, sem ter para onde correr. Salve-se quem puder.


Eliane Cantanhêde sexta, 08 de novembro de 2019

DECISÃO DO SUPREMO: A GUERRA CONTINUA

 

A guerra continua

Não terá quebra-quebra, mas Dodge vê 'triplo retrocesso' em decisão do Supremo

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

08 de novembro de 2019 | 03h00

O Supremo finalmente cumpriu a ameaça de derrubar a prisão após condenação em segunda instância – instrumento importantíssimo contra os crimes, em especial de colarinho branco –, mas é bom que se saiba que a guerra continua. Agora num outro foro também improvável, mas igualmente legítimo: o Congresso Nacional

Se fosse cláusula pétrea, argumenta ela, o Supremo jamais poderia ter admitido a prisão após a condenação em segunda instância, como até ontem, e, aliás, teria votado por unanimidade contra sua aplicação. 

 Como PGR (aliás, a primeira mulher a ocupar o cargo), Dodge assinou longo parecer contra nova mudança de entendimento. E, muito antes, quando a prisão em segunda instância voltou, era procuradora junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atuou para o cumprimento antecipado da pena passasse a valer rapidamente. 

Dodge, que tem no currículo também três anos na prestigiada universidade de Harvard, elogia a firme decisão da ministra Carmen Lúcia que, em seus dois anos de presidência do STF, se negou peremptoriamente a colocar em pauta, mais uma vez, uma questão já decidida pelo plenário em três oportunidades muito recentes. 

“Não há fatos novos nem mudança na composição do plenário”, diz a procuradora, repetindo quase que literalmente os argumentos de Carmen Lúcia, que enfrentou ameaças, agressões, insinuações e ironias, inclusive de colegas e em sessões transmitidas ao vivo pela TV Justiça, mas não arredou pé da sua convicção. Seu sucessor na presidência, Dias Toffoli, esperou mais de um ano para fazer o oposto e por em votação, mas já assumiu determinado a fazê-lo. Tardou, mas não falhou. 

Como vem dizendo Dodge, o fim da prisão após segunda instância é um triplo retrocesso: falta de estabilidade, com idas e vindas; perda de eficiência do sistema, com a volta de processos penais infindáveis, recursos protelatórios e prescrições; risco de perda de credibilidade junto à sociedade, pela eterna sensação de impunidade, principalmente de réus ricos e poderosos. 

Assim como os especialistas militares defendem pesados investimentos em Defesa e Forças Armadas para garantir o “papel dissuasório” dos países, mesmo os mais pacíficos, como o Brasil, Raquel Dodge lembra da importância da “força inibitória” da Justiça. Uma justiça efetiva, ágil e realmente justa ( pleonasmo necessário) é fundamental para inibir ímpetos criminosos e, portanto, os próprios crimes. A estabilidade e a credibilidade são fatores inalienáveis nessa direção. 

Quanto à questão política, sobre a qual Dodge não fala, há que se destacar que se pode apoiar ou discordar da decisão do Supremo, mas esqueçam a possibilidade de rebeliões, manifestações imensas, tumultos. 


Eliane Cantanhêde terça, 05 de novembro de 2019

CAI MAIS UM GENERAL

 

Cai mais um general

Há um temor de uso político de umas das principais marcas do Brasil: a das Forças Armadas

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

05 de novembro de 2019 | 03h00

Os dois governos Bolsonaro estarão mais uma vez em choque hoje, quando o ministro Paulo Guedes entrega ao Congresso a segunda onda de reformas, enquanto os militares, perplexos, contabilizam a perda de mais um general sob o comando do capitão. E não uma perda qualquer. O general de quatro estrelas Maynard Santa Rosa é tão preparado quanto querido entre os colegas de farda. 

queda de Santa Rosa da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) por falta de suporte do Planalto já seria em si um bom motivo para insatisfação entre os disciplinados militares. Mas se torna ainda mais potencialmente explosiva pela sequência de generais que saíram do governo já no primeiro ano, por demissão ou decisão. 

A demissão mais mal digerida foi a do general Carlos Alberto dos Santos Cruz da Secretaria de Governo. Assim como Santa Rosa, ele também despachava no Planalto, a passos do gabinete presidencial. Logo, gozava de confiança do presidente Jair Bolsonaro. Essa confiança, porém, esbarrou na força de Olavo de Carvalho, o guru, ideólogo ou seja lá o que for, que mora na Virgínia (EUA) há anos e, de lá, emana seu poder sobre os filhos de Bolsonaro, o chanceler, o ministro da Educação, o assessor internacional e o futuro embaixador nos EUA. Entre um general de primeiríssima linha e um guru de quinta, o presidente optou pelo guru.  

Também foram defenestrados os generais Jesus Corrêa (Incra), Juarez Cunha (Correios), Franklimberg de Freitas (Funai), um atrás do outro, sem que se ouvisse um pio da Defesa, do Exército, muito menos da Marinha e da Aeronáutica, primas pobres e com baixa representação no governo. 

O silêncio, porém, não pode ser confundido com amém, concordância, aplauso. Muito pelo contrário. Trata-se de uma cultura, de uma educação, de um comportamento construído ao longo de décadas de história militar e de aprendizado nas casernas e ratificados pelas oito diretrizes traçadas pela Defesa no início do governo. A primeira estabelece que militar não fala. 

Longe de microfones e câmeras, o clima é outro. Há surpresa e muitas conversas entre velhos companheiros de farda, que dividiram cursos sofisticados, passaram por provas difíceis, missões duras, não raro em locais inóspitos e longínquos, muito diferentes de suas cidades de origem, do seu habitat. Impera a disciplina, mas não morreu a crítica – e a autocrítica. 

Como se sentem os oficiais que conhecem bem a integridade e a força moral de Santos Cruz? E a competência de Santa Rosa, que sobreviveu a um curso do Exército no qual só 20% a 25% dos inscritos chegam ao final? Felizes, certamente eles não estão. 

A retumbante declaração do deputado Rodrigo Maia sobre o general Augusto Heleno ecoou em setores das Forças Armadas. Não exatamente por discordância. Segundo o presidente da Câmara, Heleno “virou um auxiliar do radicalismo do Olavo de Carvalho” e acrescentou: “É uma pena que um general da qualidade dele tenha caminhado nessa linha”. O chefe do GSI, muito querido entre os colegas, nem imagina quantos deles podem estar pensando assim. 

Líder natural, com um currículo invejável, o que se esperava de Heleno é que agregasse inteligência, bom senso e equilíbrio ao governo e ao presidente. Ao contrário, suspeita-se que ele esteja ajudando a atiçar o pior lado de Bolsonaro. 

Nesse clima, o presidente da República poderá cometer um grande erro se emprestar o nome, a força do cargo e o capital eleitoral para um tal Partido Militar Brasileiro. É o fim da picada. Só vai reforçar a sensação, que começa a se espraiar entre os militares, de que Bolsonaro está fazendo uso político de uma das marcas de maior credibilidade no Brasil: a marca Forças Armadas.


Eliane Cantanhêde domingo, 03 de novembro de 2019

AOS TRESLOUCADOS E MALUCOS

 

Aos ‘tresloucados e malucos’

Os militares não embarcam no AI-5 e no ‘Três Oitão’ dos Bolsonaro

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

03 de novembro de 2019 | 05h00

Em entrevista ao Estado, em dezembro de 2016, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, me contou que “tresloucados e malucos” batiam às portas das Forças Armadas pedindo a volta dos militares ao poder e que, de pronto, ele advertia que algo assim tinha “chance zero”. Três anos depois, porém, o clã Bolsonaro arrepia o País com sua apologia a ditaduras.

Villas Bôas relatou que respondia com o artigo 142 da Constituição àquela versão atualizada das “vivandeiras alvoroçadas” que, segundo o marechal Castello Branco, primeiro presidente do regime de 1964, exigiam “extravagâncias” do Poder Militar. Por esse artigo, as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Boa lembrança, já que o capitão da reserva Jair Bolsonaro nem completou um ano de mandato e seu filho Eduardo, deputado federal e quase embaixador (em Washington!), choca o País inteiro ao defender a volta do demoníaco AI-5, enquanto o presidente, como informa o repórter Renato Onofre, costura sua filiação ao ainda em gestação Partido Militar Brasileiro.

 Assim, o novo partido embolaria perigosamente o presidente da República com militares, policiais, a bancada da bala e “tresloucados e malucos” de diversas espécies. E sob o número 38, em referência ao revólver mais conhecido, principalmente entre os bandidos, no bang-bang nacional. O presidente no “três oitão”...

Eduardo Bolsonaro uniu o País inteiro, da esquerda à direita, do PT de Lula ao PSC do Pastor Everaldo, ao defender a volta do demoníaco AI-5. Para o pai Jair, quem fala uma coisa dessas está “sonhando, sonhando, sonhando”. Há quem sonhe com o paraíso, ganhar na loteria, a casa própria ou um bom prato de comida. Fazer apologia a ditaduras não é sonho, é pesadelo — além de crime.

Só não é novidade no clã Bolsonaro, já que o patriarca saiu pela porta dos fundos do Exército após ser acusado de planejar explodir quartéis, passou três décadas no Congresso defendendo ditadores, torturadores, censura e dedicou seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff a Brilhante Ustra, a estrela dos livros sobre tortura no Brasil.

Já eleito presidente, Bolsonaro chocou o Paraguai ao elogiar Stroessner e irritou o Chile duas vezes: com loas ao igualmente sanguinário Pinochet e depois atacando o pai da ex-presidente Michelle Bachelet, morto sob tortura. Até o atual presidente Sebastián Piñera reagiu.

Foi assim que Bolsonaro criou os filhos. Eduardo já tinha feito a bravata infantil de que, para fechar o Supremo, bastam um cabo e um soldado. Carlos lidera uma guerra insana pela internet contra tudo e todos. Flávio mantém relações complexas com ex-policiais de má fama no Rio.

Perguntei a um oficial muito entrosado com as três Forças como militares reagiam à fala sobre o AI-5 e ele: “Rindo. Só rindo de um absurdo desses”. E disse que “nunca” haverá um partido militar, incompatível com a missão constitucional das Forças Armadas e um retrocesso gravíssimo no longo processo de profissionalização e descontaminação dos quartéis.

A manifestação do oficial está perfeitamente de acordo com o que me disse naquela entrevista o brilhante general Villas Bôas, ao descartar aventuras golpistas e apelos de vivandeiras: “Nós aprendemos a lição. Estamos escaldados”. Só que o presidente e seus filhos talvez não.

A Câmara, por corporativismo ou preguiça, apenas advertiu o deputado Jair, que em 1999 queria fechar o Congresso, disse que “o erro do regime militar foi (só) torturar, não matar” e lamentou que o então presidente Fernando Henrique não tivesse sido fuzilado. Parecia só bravata e, impune, Jair acabou presidente. Como a Câmara vai reagir agora ao deputado Eduardo?


Eliane Cantanhêde sexta, 01 de novembro de 2019

LEÕES, HIENAS E ABUTRES

 

Leões, hienas e abutres

As feras estão à solta, mas quem é mais perigoso: hienas ou leões pró-ditaduras?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

01 de novembro de 2019 | 03h00

Assim como o vídeo das hienas, os movimentos do presidente Jair Bolsonaro e dos seus filhos têm um objetivo: mobilizar os “leões conservadores e patriotas”, ou seja, os bolsonaristas. Não exatamente para defender a Pátria, mas para guerrear contra os inimigos, reais ou imaginários. 

Há dúvidas, porém, sobre quem são as feras, principalmente depois que o líder do PSL na Câmara Eduardo Bolsonaro, ex-quase embaixador em Washington, dispensou metáforas e filmetes ridículos e ameaçou o País com a volta do AI-5, o mais demoníaco instrumento formal da ditadura militar, que permitiu fechar o Congresso, perseguir ministros do STF, censurar a imprensa, suprimir as garantias individuais. 

 Os dois depoimentos nebulosos do tal porteiro do condomínio de Bolsonaro no Rio serviram de carne aos leões e de munição para a guerra contra as instituições. A longa reação do presidente, de madrugada, num país longínquo, saiu da seara da legítima defesa para a do ataque à “hiena” mídia e ao governador Wilson Witzel. Mais uma vez, soou como chamamento irado aos “leões conservadores e patrióticos”. 

Em sua fala, Bolsonaro referiu-se ao que considera uma perseguição implacável contra ele, seus filhos, sua mulher, seus irmãos, seu governo, apontando motivos eleitorais no caso de Witzel e ideológicos no da mídia. Se o ex-presidente Lula chegou a ver, da prisão, deve ter no fundo concordado com tudo, já que ele, tirando o nome de Witzel, tinha exatamente as mesmas reclamações dessa mídia “canalha” que divulga o que eles não querem. 

Nas redes, Carlos juntou “abutres” às “hienas”. Na CPI das Fake News, Eduardo guerreava com o deputado Alexandre Frota, um ex-“leão conservador e patriótico” que virou tucano e acaba de ser convertido em hiena. Um zoológico cômico, não fosse trágico. 

Tira o foco dos resultados econômicos e comerciais da viagem do presidente a países asiáticos e árabes. Ninguém mais fala de mudar a embaixada de Israel para Jerusalém e ele volta para casa com promessas de investimentos de US$ 10 bilhões só da Arábia Saudita. Uma ditadura brutal, mas isso é outra história. 

Enquanto Bolsonaro e os filhos guerreiam contra as instituições, Paulo Guedes e os ministros sérios se articulam exatamente com as “hienas e abutres” da Câmara, Senado e STF, para retomar o desenvolvimento, destravar a economia, reduzir o dirigismo estatal e, em consequência, como eles esperam, gerar inclusão social. 

Todo esse otimismo com um círculo virtuoso ocorre apesar dos Bolsonaro, que parecem aguardar ansiosos os dois próximos capítulos para defender autoritarismo e convocar os “leões”. 

Primeiro, o fim da a prisão em segunda instância no STF, cutucando onças e leões, conservadores ou não, com vara curta. A leãozada já estará então a ponto de bala para o capítulo final: o Lula livre. Nada mais forte e eficaz para desenjaular de vez os “leões conservadores e patrióticos” do que soltar essa hiena gigante. 

Ninguém jamais dirá isso no Planalto, mas para quem adora AI-5, Ustra, Pinochet e Stroessner é uma festa o STF derrubar a prisão de segunda instância e livrar Lula, criando o ambiente ideal para os leões. Nesse script, o porteiro da Barra seria o novo Márcio Moreira Alves: apenas um pretexto. Ainda bem que tudo não passa de pura ficção.


Eliane Cantanhêde terça, 29 de outubro de 2019

MACRON, MACRI...

 

Macron, Macri...

Depois da França, nova guerra ideológica de Bolsonaro é com a fundamental Argentina

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

29 de outubro de 2019 | 04h00

Quem atacou primeiro, Bolsonaro ou Macron, Bolsonaro ou Alberto Fernández? Cada um tem sua versão, mas o resultado é que as relações do Brasil com a França se deterioraram e com a Argentina têm um horizonte sombrio. E para que? Quem lucra com isso? 

Brasil e Argentina são parceiros inseparáveis, gostem ou não seus presidentes. Juntos, lideram o Mercosul, somam dois terços do território, da população e da economia de toda a América do Sul e, apesar de muito menor do que os gigantes China e EUA, a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial brasileiro, logo atrás dos dois. Crises nesses casos cruzam fronteiras.

As ondas na América do Sul são historicamente coordenadas: o populismo a la Peron e Vargas, as ditaduras militares monitoradas por Washington no Uruguai, Paraguai, Argentina, Brasil e Chile, a redemocratização com hiperinflação de Alfonsin e Sarney, a estabilização econômica (ou “neoliberalismo), liderada pelo Brasil e disseminada por toda parte. 

A onda seguinte foi um tsunami, o “bolivarianismo” de Hugo Chávez na Venezuela, que arrastou Bolívia, Equador, Argentina, Uruguai e, rapidamente, também Paraguai, mas deixando de fora Colômbia, Chile e Peru, que se mantiveram fiéis à abertura do mercado, à desestatização e à globalização. 

Com a debacle venezuelana e os desvios da esquerda no Brasil, os “neoliberais” pareciam o paraíso, soprando ventos conservadores que, de certa forma, reforçaram e vitória de Bolsonaro na potência regional. O paraíso, porém, não era tanto assim e o Chile, sempre citado como exemplo de estabilidade política, econômica e social, virou um verdadeiro inferno com o governo Sebastián Piñera. A classe média, e não só ela, tinha sido expulsa do paraíso. 

A guinada à direita, desde o Cone Sul até os Países Andinos, excluía a Venezuela, conferia ares pragmáticos à Bolívia de Evo Morales e deixava o México falando sozinho à esquerda no Norte. Entretanto, não parece ter ido muito longe. E o que se tem é que a hegemonia da esquerda foi fugaz com Chávez, Lula, Kirchner, Mujica, Lugo e Rafael Correa e, de certa forma, Bachelet. E a direita não se consolidou com Bolsonaro, Piñera e afins. 

Há uma polarização em que ninguém tem razão, ninguém ganha, todos perdem. Assim como o Brasil não enxerga vida além de Lula e Bolsonaro, o subcontinente se digladia entre uma esquerda populista e oportunista e uma direita mesquinha, atrasada, reacionária. Que tal tentar equilibrar responsabilidade fiscal com inclusão social? Rigor com generosidade? Deveres para os poderosos e direitos para os mais desvalidos? 

Enquanto a guerra ideológica corre solta, o maior problema do Brasil e dos países à sua volta continua sendo o mesmo, onda atrás de onda, regime atrás de regime, governo atrás do governo, líder atrás de líder: a desigualdade social. A maioria parece conformada, mas costuma produzir surpresas. As lições do Chile são preciosas para todos os vizinhos da região, particularmente para Bolsonaro e Paulo Guedes. 

Alerta. Bolsonaro fala em criar o Partido da Defesa Nacional, para chamar de seu e abrigar a leva de majores, delegados, generais e capitães do PSL. Nada poderia ser pior para as Forças Armadas, que não estão sabendo avaliar devidamente os riscos da contaminação política dos quartéis. Isso nunca deu certo. 


Eliane Cantanhêde domingo, 13 de outubro de 2019

LARANJAL E RASPADINHA

 

Laranjal e rachadinha

Quadro partidário desolador: o velho caducou, o novo ainda não nasceu

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

13 de outubro de 2019 | 05h00

Na “velha política”, o governo de José Sarney alçou o MDB à condição de “maior partido do Ocidente” e os de Fernando Henrique, Lula e Dilma inflaram o PSDB e o PT, que, aliás, se digladiam por décadas. Mas, na “nova política”, ocorre o contrário: já no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, o PSL está às turras e sob risco de voltar a ser nanico, como antes de 2018.

A única comparação possível é com o governo Fernando Collor, que inventou o meteórico PRN de triste memória e ambos afundaram juntos, rapidamente. A diferença é que Bolsonaro e PSL se desvencilham um do outro, mas à tona. O presidente tem o governo, a popularidade e atrai para São Paulo a CPAC, o maior evento da direita internacional, um “Foro de São Paulo” do lado oposto. Mas, na partilha, o PSL fica com a grana.

O quadro partidário é desolador. Com o recorde (talvez mundial) de 32 siglas registradas no TSE, o Brasil não tem partidos reais, programáticos, com líderes fortes. Quantidade não é qualidade. O gigante MDB está à míngua, o PSDB e o PT não são nem sombra do que já foram, o PSL não dá para o gasto.

Se o “velho” caducou, o “novo” ainda não nasceu. Bolsonaro precisava de um partido, o PSL precisava de um candidato. Foi um casamento de conveniência. O divórcio é só uma questão de tempo. Bolsonaro, que pula de galho em galho, já foi do PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC e, só “por enquanto”, está no PSL, onde entrou de última hora, abandonando o Patriotas (PEN) na porta da igreja.

O presidente até já recebeu ostensivamente seu consultor para assuntos de partidos – ou melhor, de troca de partidos – e, aparentemente, tem pouco a perder. Já o PSL vai perder quadros, bancada e pode voltar à insignificância, mas tem algo literalmente precioso: muitos milhões do Fundo Partidário e do fundo eleitoral. Já seria ótimo, mas com uma eleição municipal bem aí, em 2020, é excelente.

Agora é saber o que o presidente pretende criar: uma sigla para chamar de sua ou juntar duas já existentes, como o PEN a outro “nanico”. O PSL tem 53 deputados federais e quem sai de um partido fora da “janela partidária” pode perder o mandato, a não ser que saia por “justa causa”. Por isso, Bolsonaro pede auditoria interna: para descobrir corrupção e criar a tal “justa causa”. Até lá, só 20 dos 53 (ou seja, menos da metade) assinaram uma nota meio tortuosa, criticando a cúpula do PSL e exigindo “novas práticas”. Logo, assumindo o lado de Bolsonaro contra Luciano Bivar.

Enquanto isso, a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, namora o DEM; o líder do partido no Senado, Major Olímpio, dispara contra os filhos do presidente; Alexandre Frota troca desaforos impublicáveis com eles; e Janaina Paschoal defende “candidaturas avulsas”. Isso só em São Paulo, onde, aliás, João Doria está pronto para acolher o espólio. Mas tem o laranjal de Minas, de Pernambuco e do Rio, onde Wilson Witzel quer ser o novo Bolsonaro do PSL em 2022. Aliás, Bolsonaro tenta a versão heroica de que quer distância de laranjas, mas e das “rachadinhas”, outra praga típica da “velha política” muito ativa na “nova”? Lembram do Queiroz?

A popularidade de Bolsonaro está nos ricos e a de Lula e do PT, no lado oposto, nos pobres. O Data Popular, especializado na classe C, ou média baixa, muito importante para consumo e eleições, acaba de fechar uma pesquisa mostrando que a percepção sobre corrupção é acachapante: 97% acreditam que há corrupção no Legislativo; 96%, nos empresários; 94%, no Executivo e no Judiciário. Ou seja: governos vêm, governos vão, partidos sobem, partidos descem e o “povo” continua com a certeza de que a corrupção é incurável. Bolsonaro está perdendo a marca do combate à corrupção.


Eliane Cantanhêde sexta, 11 de outubro de 2019

BRASIL FIRST?

 

Brasil first?

Lula com Sarkozy, contra os EUA, e Bolsonaro com Trump, contra a França. E o Brasil?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

11 de outubro de 2019 | 03h00

Donald Trump está para Jair Bolsonaro assim como Nicolás Sarkozy esteve para Lula e essas duas situações comprovam a máxima da política externa: amigos, amigos, negócios à parte. Na hora de prometer mundos e fundos, é fácil. Na hora de cumprir o prometido, a história é bem outra. O que vale para Trump é “America first”, assim como o que valia para Sarkozy era “La France avant tout”.

Lula se encantou com Sarkozy, caiu na lábia dele e por pouco não atrelou todo o arsenal brasileiro a uma única fonte: a França. Depois de fechar com os franceses o ambicioso Prosub, programa de submarinos da Marinha, inclusive o submarino de propulsão nuclear, Lula atuou o tempo todo para renovar a frota da FAB com jatos supersônicos do país.

Havia três concorrentes, o Rafale da francesa Dassault, o F-18 da norte-americana Boeing e o Gripen NG da sueca Saab. Depois de se encontrar três vezes com Sarkozy num único ano, coisa rara em relações bilaterais, Lula chegou a criar uma saia-justa ao anunciar a vitória do Rafale antes do fim do relatório técnico da FAB. O então ministro da Defesa, Nelson Jobim, fez um malabarismo para desmentir o presidente.  

Concluído o relatório, com milhares de páginas, o Rafale ficou no terceiro e último lugar, atrás do F-18 e do Gripen, que acabou sendo finalmente escolhido – mas só no governo seguinte, de Dilma Rousseff, quando o namoro de Lula com Sarkozy já tinha terminado melancolicamente.

A obsessão de Lula teve dupla motivação: a empatia pessoal com Sarkozy e a crença de que uma tal “aliança estratégica” do Brasil com a França seria decisiva para combater o “mundo unipolar” – algo como “colocar os EUA no seu devido lugar”. A fantasia ruiu quando o Brasil e a Turquia operaram juntos o acordo do Irã, contra o armamento nuclear do país. Um dos pilares da estratégia era o voto da França no Conselho de Segurança, mas, na última hora, Sarkozy tirou o corpo fora, votou com Washington e deixou Brasil e Turquia a ver navios.

Há que se aprender com a história, principalmente quando se trata de dois lados da mesma moeda: a ideologia empurrava Lula para a França contra os EUA; a ideologia trocada de Bolsonaro joga o Brasil no colo dos EUA, contra a França. E onde fica o interesse do Brasil nesses dois casos?

Diplomatas de diferentes gerações estão perplexos com o excesso de reverência, até de encantamento, de Bolsonaro com Donald Trump, que já foi até comparado a Deus num agora famoso artigo do chanceler Ernesto Araújo. Trump passa, mais cedo ou mais tarde, mas os EUA ficam, o mundo fica e nunca se inventou nada melhor em política externa do que o velho e bom pragmatismo. Adotado, aliás, pelos excelentes diplomatas dos governos Geisel e Figueiredo, no fim da ditadura.

Ao receber Bolsonaro no Salão Oval da Casa Branca, em março, Trump disse vagamente que apoia a entrada do Brasil para a OCDE, mas não disse como nem quando. Saltitante, feliz da vida, o presidente brasileiro se precipitou e já saiu pagando a dívida antes de contraí-la. Aceitou, inclusive, abdicar da classificação de país em desenvolvimento da Organização Mundial do Comércio (OMC), mesmo perdendo condições camaradas de tarifas. Foi temerário, como se vê agora.

Trump apoiou a Argentina (além da Romênia) para a OCDE, mantendo o apoio ao Brasil, mas só depois. Alegou que a Argentina pediu primeiro, sem considerar a grave situação social e econômica e a volta do peronismo.

Após Lula cair como um patinho na tal “aliança estratégica com a França”, Bolsonaro não pode cair no conto da “aliança estratégica com Trump”. Está na hora de parar, pensar e assumir o “Brasil first”.


Eliane Cantanhêde terça, 08 de outubro de 2019

MÁQUINA DE GUERRA

 

Máquina de guerra

Após estrago no meio ambiente, metralhadora ideológica mira a cultura

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

08 de outubro de 2019 | 03h00

Quando surgiu a notícia de que o Ministério da Cidadania havia demitido 19 funcionários do Centro de Artes Cênicas da Funarte, a primeira reação foi de aplauso. Afinal, o governo afastava o diretor Roberto Alvim, que, entre outras barbaridades, ofendeu Fernanda Montenegro como “mentirosa” e “sórdida”. Ledo engano. Era bom demais para ser verdade. 

Logo ficou claro o contrário: foram demitidos os coordenadores, gerentes e subgerentes, menos... o chefe Alvim! Ou seja, o governo “limpou a área” para Alvim fazer o que bem entender. 

Esse é apenas mais um capítulo da nova guerra ideológica do governo Jair Bolsonaro, com o mundo todo já espantado com sua visão e suas declarações sobre meio ambiente – aliás, o tema central do Sínodo que ocorre neste momento no Vaticano, sob a liderança do papa Francisco. 

 

 
É enorme o estrago à imagem do Brasil no exterior, por desmatamento, queimadas e, agora, a gravíssima mancha de óleo nas praias de todo o Nordeste, mas principalmente pela nova política para o setor. Ainda enfrentando essa frente, o governo já aprofunda os ataques, investidas e ingerências na área da cultura, onde habitam velhos fantasmas do bolsonarismo, embolados no tal “marxismo cultural”

A expressão, sempre presente nos escritos e nas falas do chanceler Ernesto Araújo, é também frequente no mundo e nas fantasias do diretor Roberto Alvim, que também vê inimigos esquerdistas e perigosos por toda a parte, prontos a implodir a “cultura judaico-cristã do Ocidente”. 

Alvim, que quer transformar o Teatro Glauce Rocha em “teatro evangélico”, seja lá o que isso seja, também já vinha conclamando “profissionais conservadores” a integrarem uma “máquina de guerra cultural” na Funarte. Ai, que medo! Imaginem só o que vai virar o Centro de Artes Cênicas. Um amontoado de críticos à nossa produção cultural, nossos diretores, nossos atores. 

A Funarte, porém, é só mais um dos alvos do Planalto e do Ministério da Cidadania, que engoliu o da Cultura já na posse. A artilharia contra a cultura se expande por todas as áreas do governo, até a financeira. No mesmo dia do anúncio das demissões na Funarte, veio a notícia de que a produção cultural da Caixa Econômica Federal agora é sujeita ao crivo ideológico da presidência do órgão e da Secom do Planalto. 

Isso remete ao veto de Bolsonaro a uma peça publicitária do Banco do Brasil dedicada ao público jovem, porque incluía a diversidade racial e sexual. Ou ao ataque que ele fez à Ancine, condenando seus “filmes pornográficos” e defendendo que deveriam enfocar os “heróis nacionais” – leia-se, os heróis do próprio Bolsonaro, como o coronel Brilhante Ustra, fartamente apontado como torturador? 

Do outro lado, Chico Buarque, excelente escritor e ícone da música de várias gerações, além de não ser “herói”, é tratado como inimigo: a embaixada brasileira em Montevidéu acaba de suspender um documentário sobre o Chico. O Chico! É inacreditável, mas pode acreditar. 

A reação já começa, com manifestações de apoio e a devida reverência à diva Fernanda Montenegro e com decisões judiciais como a de ontem, da juíza Laura Bastos de Carvalho, da 11.ª Vara do Rio, que suspendeu por liminar uma portaria do Ministério da Cidadania sobre projetos da Ancine para TVs públicas. 

A juíza atendeu a um pedido do Ministério Público, que apontou na portaria, além de prejuízo ao erário, “inequívoca discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”. O STF, diga-se, acaba de criminalizar a homofobia. 

Demissões, perseguições e censura, além de asfixia financeira da cultura... Isso, sim, é muito “sórdido”.


Eliane Cantanhêde domingo, 06 de outubro de 2019

O CHAMADO

 

O 'chamado'

Angélica dá a senha para o 'polo democrático' articular nome de Huck para 2022

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

06 de outubro de 2019 | 03h00

Quem acompanha de perto as articulações do “centro democrático” para se recolocar no jogo político e ter alguma chance em 2022 analisa que o último grande obstáculo à candidatura de Luciano Huck caiu com a entrevista de sua mulher, a também apresentadora Angélica, à revista Marie Claire. Angélica nunca quis o marido presidenciável, mas agora classifica a candidatura como “uma espécie de chamado” e admite: “É uma coisa tão especial que, se ele quisesse se candidatar, eu apoiaria”.

Soou como uma senha para o grupo heterogêneo que cada vez se preocupa menos em esconder almoços, jantares e encontros para discutir o lançamento de Huck, mais ativo do que nunca. Ora ocorrem no Rio, ora em São Paulo, mas com personagens que extrapolam esses Estados e o Cidadania – o partido que primeiro apostou no potencial dele.

Em 2018, Huck esteve a um passo de se lançar, instigado pelo agora ministro de Bolsonaro Paulo Guedes. Quase assinou a ficha do PPS, atual Cidadania, passou acontratar pesquisas de opinião exclusivas e montou equipes de estudo em diferentes áreas, como educação e saúde.

 Por que recuou? O principal motivo foi justamente que o casal, antes, como agora, “teria mais a perder do que ganhar”, como disse Angélica à Marie Claire. De fato, bastou Huck começar a ser citado como presidenciável, inclusive neste espaço, para que seu mundo cor de rosa passasse a ser invadido por fotos, meias verdades, maledicências e fakenews.

Com duas estrelas da TV, o casal sempre aparece rico, lindo, feliz e do bem. Deslizando para a política, o noticiário é totalmente diferente, procurando as piores brechas, os ângulos mais desfavoráveis, as companhias menos indicadas. Huck e Angélica entraram em pânico e políticos têm de ter couro duro.

E por que o recuo do recuo? Angélica politiza a discussão: “Estamos num momento tão louco na política que não quero, jamais, ser egoísta e leviana de impedir algo nesse sentido” – a candidatura do marido. Quem discorda dela quanto ao “momento tão louco”? Não Fernando Henrique, que tem críticas ao PT e a Lula, está preocupado com os rumos do governo Jair Bolsonaro e, desde o início, analisa a candidatura Huck sem preconceito. Foi a partir de declarações dele, aliás, que passaram a olhar para Huck com pragmatismo.

Além de FHC, o presidente e o líder do Cidadania, Roberto Freire e Daniel Coelho, ex-governador Paulo Hartung, economista Armínio Fraga, ex-ministro Raul Jungmann, empresário Guilherme Leal e ACM Neto, Rodrigo Maia e Mendonça Neto, do DEM. Eles buscam um “polo democrático” para tirar o Brasil dos extremos e “das mãos das corporações públicas e privadas”.

Freire, um dos primeiros a apostar em Huck, diz que Lula se transformou num fator perturbador e que Bolsonaro, na ONU, “se associou com a extrema direita, nacionalista, antiglobalista e obscurantista, com laivos de fundamentalismo”. Huck é uma alternativa a essa polarização, mas sair em campo a três anos das eleições é ficar não só sujeito a chuvas e trovoadas, mas também à manipulação de dados que – suspeita-se – o Planalto tende a concentrar depois de intervir no ex-Coaf, na Receita e na Polícia Federal.

Por ora, porém, as reuniões são para analisar cenários e dados de pesquisas: Huck compete com Lula nas faixas C e D e com Bolsonaro na B, mas sua força vai diminuindo e praticamente desaparece na classe A, dos mais ricos, onde só dá Bolsonaro. Logo, a manifestação de Angélica é só uma senha, um começo. Há muitos obstáculos, muitos nomes vão surgir, desaparecer, confundir, e só há uma certeza: presidentes são favoritos em processos de reeleição e nada numa campanha como a velha e boa caneta, Bic ou não.

 


Eliane Cantanhêde sexta, 04 de outubro de 2019

ADÉLIO E QUEIROZ

 

Adélio e Queiroz

O Queiroz some, o Adélio aparece e cresce a versão de ‘crime da esquerda’ 

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

04 de outubro de 2019 | 03h00

O presidente Jair Bolsonaro é o eixo de mais uma gangorra: quanto mais o Queiroz some, mais o Adélio aparece. Há um cerco de proteção ao policial aposentado e pivô das esquisitices no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. E há uma frente para reabrir as investigações sobre Adélio Bispo, considerado inimputável depois de esfaquear o presidente na campanha. 

Ao Estado, Aras defendeu aprofundar as investigações sobre Adélio Bispo, em busca da “verdade real”. Isso joga um balde de suspeição sobre o trabalho da Polícia Federal, que investigou a facada e concluiu que Adélio tem problemas mentais e agiu sozinho – como endossou a Justiça. 

 Adélio, aliás, é a real causa da implicância de Bolsonaro com a Polícia Federal, que já levou pelo menos três sapatadas públicas do presidente. Assim como esperou a posse para se livrar da multa por pesca ilegal e se vingar do fiscal que o multou, o presidente não vai descansar enquanto o MP e a PF não concluírem que, como ele disse na ONU, foi “covardemente esfaqueado por um militante de esquerda”. É uma tese duvidosa, tanto como a de que o Brasil esteve “à beira do socialismo”. Adélio foi filiado ao PSOL, mas é muito menos “esquerdista” do que perturbado. 

Na entrevista, Aras citou suspeitas que contrariam a PF e reforçam os advogados de Bolsonaro: o uso de arma branca, possibilidade de cúmplices na multidão, alguém com o nome de Adélio na Câmara no mesmo dia e advogados contratados por desconhecidos. 

São pertinentes? Especialistas argumentam que já foram consideradas e que um procurador-geral só deveria fazer uma manifestação assim, em público, munido do chamado “fato novo”: uma testemunha, uma prova, ao menos um indício... Na fala de Aras não há isso, o que reforça temores de que ele veio para fazer o jogo do Executivo, particularmente do presidente. 

Do outro lado da gangorra, Queiroz sumiu, ninguém sabe, ninguém viu, a não ser a chata e implicante imprensa. E sumiu sem prestar um único depoimento ou esclarecimento sobre movimentações financeiras atípicas e depósitos dos funcionários do gabinete de Flávio na sua conta. As dúvidas foram levantadas pelo falecido Coaf, que mudou de nome e de endereço. Salva-se o Queiroz, pune-se o Coaf. 

O presidente do Supremo, Dias Toffoli, concedeu uma liminar monocrática, a pedido da defesa de Flávio, suspendendo todas as investigações em curso com base em dados do então Coaf e da Receita, sem autorização judicial. Depois, o ministro Gilmar Mendes completou o serviço, vetando toda a investigação contra o próprio Flávio. E não se fala mais nisso? 

caso Queiroz foi jogado numa gaveta, o de Adélio foi tirado de outra, deixando a sensação de que Bolsonaro quer impor a sua narrativa sobre a facada. A PF, porém, sempre prestigiou a operação conduzida pela superintendência de Minas e há até a intenção de fazer uma entrevista coletiva para, detalhadamente, demonstrar como foram as investigações e explicar as conclusões. 

A dúvida é o quanto uma instituição tão profissional e respeitada como a PF consegue resistir a pressões para adaptar conclusões técnicas a interesses políticos, deixando no ar uma versão sobre uma conspiração de esquerda. De mito, Bolsonaro evoluiria para mártir da direita. E a PF viraria pó. 

PS: As relações entre os paranaenses Sérgio Moro (Justiça) e Maurício Valeixo (PF) já foram melhores. 


Eliane Cantanhêde terça, 01 de outubro de 2019

LULA LIVRE?

 

Lula livre?

A bola está no STF, mas a questão é se Lula vai liderar ou não a resistência a Bolsonaro

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

01 de outubro de 2019 | 03h00

Lula livre ou Lula preso? Esse é o debate da semana, capaz de envelhecer prematuramente a confissão chocante de Rodrigo Janot e deixar em segundo plano a retomada da reforma da Previdência, a derrubada de mais um lote de vetos do presidente Jair Bolsonaro e o fica não fica do senador Fernando Bezerra na liderança do governo. 

 

A história é razoavelmente simples: a legislação diz que presos com bom comportamento podem evoluir para o regime semiaberto depois do cumprimento de 1/6 da pena, como é o caso de Lula pelo triplex do Guarujá. Logo, já pode ser beneficiado pela progressão de pena e não será ilegal se a Justiça conceder a troca de Curitiba para São Bernardo. 

Porém, nada com Lula é simples, tudo é complexo e questionável. Quinze procuradores pediram que o ex-presidente saia da prisão, entre eles Deltan Dallagnol, chefe da Lava Jato e apontado por petistas como líder da força-tarefa anti-Lula. E o que fazem Lula e seus advogados? Passam dias discutindo o que é mais conveniente politicamente para o preso, até Lula escrever uma carta “ao povo brasileiro”, à mão, num tom entre vitimista e heroico e desdenhando: “Não aceito barganhar meus direitos e minha liberdade”.

Por que os procuradores pediram a liberdade de Lula? E por que Lula deu de ombros e respondeu que não? Nem Dallagnol e seus colegas querem ser bonzinhos com Lula, nem Lula, ou qualquer outro preso, prefere ficar trancafiado a ganhar a liberdade. Principalmente com nova namorada. Aliás, que “barganha”? Ninguém barganhou nada. Cumpriu o tempo, sai. 

O que está por trás, nos dois comportamentos de certa forma estranhos, é um cálculo que também é jurídico, mas principalmente político: os dois lados apostam suas fichas no Supremo. A liberdade em função de uma tecnicidade jurídica é diferente de uma vitória no plenário da alta Corte. 

É ali, com os 11 ministros em tom grave e paramentados com suas capas pretas, que será o grande embate das forças pró-Lava Jato e anti-Lava Jato. E Lula, sempre ele, estará no centro dos debates, divergências e resultados. 

Amanhã, o plenário já esquenta as baterias, concluindo o julgamento curioso, muito curioso, que devolve para a fase das alegações finais os processos em que os condenados reclamam que, como delatados, tinham o direito a falar após os delatores, em nome do “amplo direito de defesa”. 

Para não virar uma festa, os ministros pretendem definir uma tal de “modulação”, mas não é nada fácil. Até ontem, a maior probabilidade era que só tivessem direito a rever suas condenações, logo, sentenças, aqueles cujos advogados já tivessem entrado previamente com pedidos nesse sentido. E não se descarta que a proposta da ministra Cármen Lúcia entre no bolo: a revisão só valeria para os que tiveram real “prejuízo” por não serem os últimos a falar. Como e quem vai avaliar o prejuízo? Em quanto tempo? Ninguém tem a menor ideia. 

Depois, vem por aí uma enxurrada de julgamentos que parecem feitos sob medida para Lula. O primeiro deverá ser o pedido de suspeição do então juiz Sérgio Moro, pedido agora bastante reforçado com as revelações das conversas entre procuradores e entre eles e o juiz. 

Só então, sentindo o terreno, viria o grande lance: derrubar a prisão após condenação em segunda instância. No caso de Lula, não mais pelo triplex, mas pelo sítio, que deverá ser, logo, nova condenação dele. 

No mundo político, a questão é saber se Lula se anima e se tem força para liderar a resistência a Bolsonaro nas ruas. Quem lembra a reversão de expectativas na prisão de Lula aposta que, apesar de seus 30% nas pesquisas, ele não move mais as massas. Sai da cadeia, vai para casa e fica tudo como está. A ver. 


Eliane Cantanhêde domingo, 29 de setembro de 2019

O TITANIC LAVA-JATO

 

O Titanic Lava Jato

Gilmar Mendes está na posição de ‘quem ri por último ri melhor’, mas... 

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

29 de setembro de 2019 | 03h00

Com a sucessão de eventos da semana passada, a Lava Jato começa a ir a pique como o Titanic. Hackers, The Intercept Brasil, Supremo, Congresso, Planalto e, agora, a absurda, inacreditável, chocante história do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que entrou armado na mais alta corte do País para assassinar o ministro Gilmar Mendes.

Depois das “flechadas” contra Michel Temer, Janot queria assassinar Gilmar a tiros. Não tirou o mandato de um nem a vida do outro, mas acaba de matar sua própria reputação. Procuradores são servidores públicos e ele não era apenas um procurador qualquer, era o procurador-geral e estava disposto a cometer não um crime qualquer, mas o mais grave de todos: assassinato. E de um ministro do Supremo!

Janot agia como justiceiro, Gilmar era o crítico mais feroz dos personagens, métodos e atos da Lava Jato. O procurador era endeusado e o ministro, trucidado, principalmente nas redes sociais. Mas a gangorra inverteu. Janot cai do pedestal, Gilmar está exultante e a maior operação anticorrupção da história afunda fragorosamente.

 Com seu partidarismo, arrogância e falta de limites, Janot foi o pivô da gravação que Joesley Batista, da J&F, fez com o ex-presidente Michel Temer. O resultado foi uma conversa mole, induzida, picada, que não conseguiu derrubar Temer, mas derrubou a reforma da Previdência e a retomada do crescimento. O País pagou um alto preço.

A J&F virou gigante internacional com o ex-presidente Lula, mas Janot e sua turma atiraram em Temer. Como a gravação não ficou forte o suficiente, eles adulteraram a ordem das frases e correram ao STF sem aprofundar as investigações, seguir o dinheiro ou sequer fazer perícia no áudio. E que acordo camarada com os irmãos Batista! Foi, portanto, uma ação política, que fica ainda mais irritante com a confissão de Janot justamente na semana da inversão da gangorra também no STF.

A força-tarefa ganhava todas. Lula, por exemplo, perdia todas. A mudança começou com liminares monocráticas (contra o uso de dados do antigo Coaf e investigações de poderosos pela Receita). Evoluiu com a Segunda Turma derrubando a condenação de Aldemir Bendine, sob o pretexto de que delatados falam após o delator. Por fim, o plenário consolida a guinada, com maioria a favor dessa tese, perfeita para favorecer dezenas de condenados.

A partir daí, é fazer a festa nas próximas votações: prisão após condenação em segunda instância, suspeição do então juiz Sérgio Moro, revisão ou anulação de sentenças e ações contra Lula... Os mocinhos da Lava Jato vão sendo transformados em bandidos, os réus viram vítimas.

Do outro lado da rua, o Congresso aprova uma lei de abuso de autoridade que, apesar de necessária, chega num momento, e num formato, que exala revanche e soa como ameaça a juízes, procuradores, delegados e auditores que ousem mexer com poderosos.

E no Planalto? O presidente Jair Bolsonaro tenta parecer mero espectador do naufrágio da Lava Jato, mas soltou a voz contra a PF, deixou suas digitais nas mudanças no Coaf (agora UIF) e na Receita Federal e só vetou várias partes da Lei de Abuso de Autoridade para inglês ver. Ou melhor, Moro ver, seus seguidores verem.

Gilmar Mendes passou esses anos todos como Judas nacional, por enfrentar Janot, Dallagnol, Moro e o “lavajatismo”. Hoje, os Judas passam a ser Janot e Dallagnol. Gilmar está na posição de “quem ri por último ri melhor”. Mas... com erros maiores ou menores, personagens maiores ou menores, o fato é que o petrolão existiu, há montanhas de provas da corrupção sistêmica e era preciso dar um basta vigoroso. A Lava Jato afunda, mas a história saberá calibrar erros e acertos, reconhecendo o enorme bem que fez ao País.


Eliane Cantanhêde sexta, 27 de setembro de 2019

MATAR E MORRER

 

Matar e morrer

Há um Fla-Flu macabro, mas as crianças e os policiais são vítimas do mesmo sistema

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

27 de setembro de 2019 | 03h00

Em 2019, Ágatha é a quinta criança morta por bala perdida no Rio de Janeiro. Em 2018, foram 87 policiais mortos no País em serviço e em decorrência de confrontos nas ruas. Também em 2018, 104 policiais cometeram suicídio em meio a tragédias, tensão, medo, impotência diante da violência. 

 

E o que faz o nosso Brasil tão varonil? Repete o Fla-Flu macabro da época do assassinato brutal da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em que as vítimas viram réus e até uma juíza espalhava as mais ofensivas, indignas e grosseiras fake news contra... a assassinada! 

Criou-se novamente agora uma guerra insana pelas redes sociais. Defensores de Ágatha, das crianças mortas e suas famílias despedaçadas destilam ódio contra policiais. Do outro lado, grupos policiais, ligados à polícia ou simplesmente anacrônicos e intrinsecamente violentos têm a coragem – e a desumanidade – de relevar as mortes e desqualificar a dor das famílias. 

 Em que mundo nós estamos? Ou melhor, que país é esse? É tão difícil compreender e admitir que Ágatha, os policiais mortos, os que se suicidaram e todas as famílias e suas comunidades são vítimas? Além de respeito, merecem enorme solidariedade e um grito de todos os grupos pela paz, democracia, empatia, solidariedade. E pela responsabilidade do Estado. 

Quais são as reais políticas públicas dos sucessivos governos federais, estaduais e municipais não apenas contra a violência, mas contra o mal maior do nosso país, a exclusão, a desigualdade social? Bolsas isso e aquilo da era do PT? Ótimo, mas só são paliativos, migalhas, não têm nada de estruturantes. Tanto que a miséria continua aí, à vista de todos, a céu aberto. 

Liberar armas e munições a torto e a direito, como o presidente Jair Bolsonaro fez questão de inaugurar as medidas de seu governo? Como assim? A ciência, as pesquisas, os estudiosos dizem o oposto: não se combate crime e tráfico dando mais armas, mas sim fazendo o oposto: produzindo políticas entre as várias esferas da Federação justamente para reduzir as armas em circulação. Com inteligência e ação. 

Ação não é sinônimo de uma operação atrás da outra nas áreas mais vulneráveis das cidades, como os bairros pobres e as favelas do Rio. A polícia entra, ataca, mata, morre. E tudo continua igual, sob aplausos do governador Wilson Witzel, cada vez mais ousado no estímulo à matança e na sua investida política para alçar voos mais altos, certamente imaginando: “Se deu Bolsonaro, por que não dar Witzel?”. 

Como não há intenção, decisão e esforço para realmente intervir e melhorar a realidade, o jeito é remediar. Como? Matando. No caso dos policiais, matando e morrendo. É cômodo para poderosos sem escrúpulos, mas é uma tragédia para o País. E, como nunca é demais repetir, tragédias quase sempre se abatem sobre os mais fracos, as favelas, a base da pirâmide. 

Soa assim: se o preço para garantir a segurança dos bairros ricos e das elites é matar uma Ágatha daqui, outra dali, o que fazer não é? É o preço! Trata-se do chamado “efeito colateral” de tratamentos graves de saúde e de guerras. 

E quem reclamar e chorar, vai ter de ouvir os governos dando de ombros e dizendo que opositores querem “usar caixões como palanques”. É cruel, desumano, inacreditável, tanto quanto as estatísticas: nenhuma das mortes de crianças com tiros na cabeça, tiros pelas costas e em situações absurdas foi esclarecida, ninguém está sendo processado, foi condenado ou preso. E dificilmente será. Pobres crianças mortas, pobres policiais trucidados, pobres famílias, pobre Brasil. 

Corrupção. De paulada em paulada, lá se vai a Lava Jato


Eliane Cantanhêde terça, 24 de setembro de 2019

BARBÁRIE

 

Barbárie

Quem mata uma menina pode matar as testemunhas e impor a versão de 'legítima defesa'

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

24 de setembro de 2019 | 03h00

Há dor, indignação e desespero com a morte da pequena Ágatha, mas não se pode dizer que haja surpresa. Não só a insegurança do Rio de Janeiro continua desesperadora como há uma onda estimulada pelo discurso do presidente da República e do governador do Estado, no sentido de que tem de endurecer, custe o que custar. Mesmo que custe vidas de inocentes, inclusive de crianças (desde que pobres e negras, bem entendido). Para Wilson Witzel, “é apontar na cabecinha e pou”. Visava a bandidos, mas o diminutivo acaba sendo macabro. 

 

Assassinada com um tiro pelas costas, Ágatha é a quinta criança morta neste ano no Rio em circunstâncias envolvendo policiais. Morre a criança, liquida-se a família, acaba-se de vez com o amor-próprio de uma comunidade inteira e multiplica-se a indignação no País todo e para além das fronteiras, mas... nenhum desses crimes foi de fato investigado, ninguém foi punido. 

É nessa realidade que o Brasil quer aprovar o “excludente de ilicitude”, apelidado de “licença para matar”, porque livra a cara de policiais que saiam matando os outros? O ministro Sérgio Moro diz que, pelo projeto que enviou ao Congresso, isso só vale para “legítima defesa”, e em serviço, e não tem nada a ver com o caso de Ágatha.  Mas os limites são tênues... 

Radicalmente contra a medida, Nelson Jobim, o ex-presidente do Supremo e ex-ministro da Justiça e da Defesa, diz que só a discussão, em si, já “estimula a polícia a fazer, mais e mais abertamente, o que já faz”. Ele explica que seria “legitimar a agressão por parte do poder público e sem o controle da operação, que seria do próprio policial”. Ou seja, corresponderia a outorgar ao policial “um poder discricionário”, porque é ele quem controla a operação, a versão e o desfecho. 

Outro ex-ministro do Supremo vai além: se o policial sabe que não corre risco, que ficará impune e acaba atirando sem pensar até em crianças na escola, brincando e passeando com pais e avós, esse policial pode pisar ainda mais fundo nesse acelerador macabro. Se mata tão facilmente uma menina com um tiro nas costas, que dificuldade teria para matar também as testemunhas? Basta alegar que elas o ameaçavam e foi tudo em legítima defesa. Sem testemunhas, qualquer história ganha asas. Ainda mais se o poder público autoriza, permite, até estimula. Barbárie. 

Mistério. Ninguém entendeu quando Bolsonaro anunciou que iria jantar hoje com Trump em Nova York. Não estava na agenda, a cúpula do Itamaraty não sabia, o próprio Trump depois não confirmou. Aparentemente, não era bem um jantar dos dois na Casa Branca, mas um coquetel oferecido a mais de 190 chefes de delegação que estão nos EUA para a abertura da Assembleia-Geral da ONU. E não é na Casa Branca, costuma ser na residência do embaixador americano na cidade. 

Aliás. O tratamento de Brasília aos embaixadores “banidos” passa dos limites. Bolsonaro está em Nova York, mas tanto o embaixador na ONU, Mauro Vieira, quanto o embaixador alterno, Fred Duque Estrada, estão no Brasil. O Itamaraty determinou que tirassem “férias”. Eles resistiram e exigiram que fossem chamados para “serviços provisórios na chancelaria”. E não aceitaram ficar fora da lista da delegação brasileira. Nem em NY estão, mas fazem parte da lista. Incrível. 

Sórdido. Tal como o chanceler Ernesto Araújo ataca ambientalistas e defensores de direitos humanos como “esquerdistas” contra o Ocidente, um tal de Roberto Alvim, diretor da Funarte, acusou a classe teatral de “denegrir nossa herança judaico-cristã” e fez ainda pior, com um ataque direto a Fernanda Montenegro, que chamou de “sórdida” e “mentirosa”. Tempos difíceis. 


Eliane Cantanhêde domingo, 22 de setembro de 2019

BOLSONARO PÓS-CIRURGIA

 

Bolsonaro pós-cirurgia

Foco na economia e no Senado, com torcida para a ida à ONU não virar um (novo) vexame

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

22 de setembro de 2019 | 03h00

O presidente Jair Bolsonaro usou a sua volta ao Palácio do Planalto, após a nova cirurgia, para uma série de anúncios que têm forte impacto na economia e podem ajudar um bocado a melhorar o humor nacional detectado nas pesquisas contra o governo e o próprio presidente. As medidas são para desbloquear verbas para os ministérios, continuar a abertura da economia e apressar a geração de empregos.

presidente desbloqueou R$ 8,2 bilhões para ministérios apertados e ministros desesperados, principalmente para o MEC, a Economia e a Defesa, onde estão professores e estudantes em pé de guerra, Paulo Guedes precisando desesperadamente mostrar resultados e as Forças Armadas, fundamentais na mesa de operações do presidente.

Ele também sancionou a Lei de Liberdade Econômica, que vai ao encontro das promessas de campanha e das pesquisas de opinião, que mostram perda de apoio em praticamente todos os segmentos, mas crescimento num universo bem específico: o empresariado. Se nunca fala a palavra “social”, Bolsonaro é 100% pró capital e sempre defende menos Estado, mais iniciativa privada.

 Por fim, a escolha de José Tostes Neto para a Receita Federal, substituindo Marcos Cintra, seguiu o perfil traçado pelo maior expert em Receita no País, Everardo Maciel, que comandou o órgão nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso. Tostes é muito respeitado e benquisto pelos colegas. Poderá fazer fortes mudanças sem abrir uma guerra interna.

Com o exato perfil soprado por Maciel, ele é maduro, da carreira e bom conhecedor do tema e da engrenagem, mas... aposentado. Logo, é próximo o suficiente para saber o que se passa e longe o bastante de grupos e intrigas do dia a dia do órgão.

Bolsonaro, porém, embarca amanhã cedo para Nova York deixando várias interrogações. A maior delas é como ele vai se sair ao discursar na abertura da Assembleia-Geral da ONU, função reservada todos os anos ao presidente do Brasil. Há uma espécie de pânico generalizado, mas ele pode surpreender.

A intenção é fazer um discurso restrito aos 20 minutos regulamentares, focando numa palavrinha mágica – “soberania” – e fazendo uma defesa enfática da proteção ao meio ambiente, mas à maneira brasileira, ou melhor, à sua maneira. Nada, porém, que possa chocar o mundo, dar palanque para o francês Emmanuel Macron e animar novos confrontos. E ele deve focar também em família, costumes, ideologia, Ocidente e fazer referência à Venezuela.

Outro cuidado também é um alívio para quem teme vexames e grosserias de Bolsonaro no ambiente internacional: assim como a facada protegeu o candidato Bolsonaro de debates, exposição e erros crassos na campanha, a quarta cirurgia deve preservá-lo de debates, exposição e erros crassos em Nova York.

Serão só 24 horas, sem almoços, comilanças e reuniões bilaterais com presidentes de qualquer continente, com exceção de um jantar com o “Deus” Trump – que, aliás, Bolsonaro anunciou, mas não estava na agenda e era desconhecido pelo Itamaraty.

Por recomendação médica, o ainda convalescente Bolsonaro tem bom pretexto para chegar, dormir, ler o discurso – escrito com Ernesto Araújo, Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins – e voltar. Em contrapartida, não há nenhum indício de que presidentes estrangeiros façam a desfeita da se retirar do discurso ou algo dessa gravidade.

O presidente estará também voltado para questões domésticas: a substituição do líder do governo no Senado, a sanção e os vetos da nova lei eleitoral e a votação de Eduardo no Senado. A aprovação de Augusto Aras para a PGR não preocupa, mas a de Eduardo virou o centro das atenções nacionais – pelo menos nos palácios da Alvorada e do Planalto, além do avião presidencial. Aí, a “velha política” está a pleno vapor.


Eliane Cantanhêde sexta, 20 de setembro de 2019

ALVO É LÍDER DO GOVERNO

 

Alvo é líder do governo

Retaliação da PF? Muito improvável, mas versões são muito mais vistosas do que fatos

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

20 de setembro de 2019 | 03h00

Operação Turbulência, da Polícia Federal, com busca e apreensão em endereços e até no gabinete do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB), vem na pior hora para o Planalto e é lenha na fogueira das teorias conspiratórias. Retaliação da PF? Improvável, mas versões são sempre mais vistosas do que fatos. 

O presidente Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro Sérgio Moro, fora da agenda, e especula-se se foi, no mínimo, para saber o tamanho do estrago no líder ou, no máximo, para assuntar se houve “segundas intenções” da PF, alvo de críticas públicas do presidente. 

A primeira questão é se as acusações são “só” sobre caixa 2 ou se há propina escorrendo para bolsos e contas no exterior, até porque a PF opinou a favor das buscas e a PGR, contra. É constrangedor para o Congresso e mais uma decisão difícil para Bolsonaro. Não dá para ignorar, mas também não dá para jogar o líder logo aos leões. Ele tem sido leal e bom articulador, numa hora de muita negociação. 

A operação contra o líder ocorre também em meio a uma avalanche de críticas ao Congresso pela nova lei eleitoral. As idas e vindas da lei, que bagunça ainda mais as eleições brasileiras, serviram para alguma coisa muito útil: a identificação de caras, nomes e vozes no Senado dispostos a remar contra a corrente corporativa e ouvir a irritação e os alertas da opinião pública. 

Enquanto a Câmara se uniu em torno de medidas que dificultam a transparência e a fiscalização do processo eleitoral, o Senado se dividiu. De um lado, o presidente, Davi Alcolumbre, e os velhos conhecidos de sempre, inclusive do Centrão. De outro, a aliança de uma turma nova com uma turma antiga, mas que tenta fazer diferença. 

Entre os senadores mais experientes que articularam a derrota do projeto permissivo da Câmara se destacam Tasso Jereissati e Antonio Anastasia, do PSDB, Randolfe Rodrigues, da Rede, e Alvaro Dias, do Podemos, junto a nomes do Cidadania e do PSL. 

O embrião desse grupo surgiu na disputadíssima eleição para a presidência do Senado, quando eles se uniram contra o senador Renan Calheiros. Primeiro, cada um teve seu candidato em oposição a Renan. Depois, uniram-se todos pela vitória do ilustre desconhecido Alcolumbre, que oscila, ora com a turma da resistência, ora ao lado daqueles que trabalham para manter tudo como está. Ou até piorar. 

Na votação da nova lei eleitoral, agora nas mãos de Bolsonaro, para sanção ou vetos, Alcolumbre pendeu para os velhos líderes e perdeu. O Senado derrubou o projeto da Câmara, onde os líderes insistiram no erro e retomaram as propostas originais. 

O grupo de resistência acompanha a disposição de Randolfe Rodrigues e Alvaro Dias de questionar no Supremo a constitucionalidade das mudanças na lei eleitoral, como a anistia a multas por desvios de campanhas e o uso do fundo eleitoral para a compra de sedes de partidos e pagamento de advogados para os suspeitos de crime eleitoral, além de afrouxar a Lei da Ficha Limpa e facilitar o caixa 2. 

Em defesa da lei e do fundo eleitoral de R$ 1,7 bilhão, o deputado Rodrigo Maia voltou a condenar a “criminalização da política”. Mas, caro deputado, quem é culpado pela má imagem dos partidos, dos políticos e da própria política? Os jornalistas e especialistas que criticam uma lei assim, ou os senadores e, neste caso, os deputados que a aprovam? 


Eliane Cantanhêde terça, 17 de setembro de 2019

BOLSONARO EM 2022?

 

Bolsonaro em 2022?

Partidos se esfarelam, mas força da inércia empurra Bolsonaro agora e os evangélicos depois

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

17 de setembro de 2019 | 04h00

O presidente Jair Bolsonaro deixou em segundo plano o núcleo militar e o núcleo ideológico do seu governo para investir decisivamente na sua fiel base evangélica, dentro e fora do Congresso Nacional. Entretanto, seu maior aliado para 2022 não é nenhum dos três segmentos, são o vazio de lideranças políticas e a ausência de uma articulação concreta do centro.

O Brasil nunca foi e continua não sendo um país de extremos, nem à esquerda nem à direita. Com toda sua biografia, seu carisma e o enraizamento do PT, Lula perdeu três vezes e só chegou lá após uma real guinada ao centro. A grande pergunta, hoje, é qual é e onde está o centro.

A única liderança de peso a dar cara e voz aos setores moderados e buscar uma alternativa entre o lulismo e bolsonarismo é Fernando Henrique Cardoso, do alto dos seus 88 anos e de uma posição acima de partidos, paixões e pretensões pessoais, políticas e eleitorais. Mas ele encarna a moderação, o bom senso e a defesa da democracia, não projeta o futuro.

Foi-se o tempo dos grandes líderes, na política, na vida congressual, na Igreja Católica, nos sindicatos, na academia, nas carreiras, no empresariado, nas Forças Armadas. Aqueles que abriam a boca e o País parava para ouvir. Ulysses Guimarães, Dom Ivo Lorscheiter, Barbosa Lima Sobrinho, Antônio Ermírio de Moraes e tantos outros que viabilizaram grandes mudanças e capitanearam a Constituinte de 1988.

Foi nesse ambiente, com grandes nomes e essa efervescência de ideias, que o próprio Fernando Henrique foi emergindo como candidato à Presidência e venceu duas vezes, consecutivamente, em primeiro turno. Qual o ambiente hoje? O que é possível florescer?

O grande líder das esquerdas está preso, enquanto seu partido não consegue esboçar nenhum programa, nenhum futuro, nenhuma articulação com as demais forças políticas, refém de duas palavras que não dependem de partidos e não levam a nada: Lula livre. 

O grande líder da direita é um arrivista, que se contentou em passar quase três décadas no anonimato do “baixo clero” do Congresso e, ao subir a rampa do Planalto, se ocupa em promover recuos nos avanços da sociedade e se delicia jogando dúvidas sobre o futuro da democracia.

E onde está o PSDB, que poderia liderar o centro e comandar o debate político no País? Não está nem aí, com seus ex-governadores atingidos pela Lava Jato, João Doria fazendo jogo solo, os velhos líderes fora do tabuleiro e os novos aturdidos e perdidos, em meio a uma divisão paralisante.

Talvez seja a hora de um grande freio de arrumação. Fim do PT, fim do PSDB, uma nova reaglutinação das forças que foram capazes de sobreviver, enquanto o PSL se desfaz em pedaços, desgarrando-se de Wilson Witzel no Rio, resvalando para Doria em São Paulo, insurgindo-se contra Flávio Bolsonaro no Senado.

Com toda essa balbúrdia e a falta de alternativas, quem lucra é quem já está no poder, pela força da inércia: Jair Bolsonaro. As manifestações dele são chocantes, os filhos aprontam coisas incríveis, alguns ministros (vocês sabem quais) são inacreditáveis e, pior, a recuperação da economia continua não dando os ares de sua presença, mas quem desponta para galvanizar a reação a tudo isso? Por enquanto, há um campo livre para a reeleição de Bolsonaro em 2022, contra Doria, Ciro Gomes, alguém, qualquer um, do PT. E não para por aí.

Nessa toada, Bolsonaro não só se reelege como se prepara para fazer o sucessor. Pode até tentar lançar um filho (se lançou para a principal embaixada, por que não para o Planalto?). Como plano B, os evangélicos. Têm muito, muito, muito dinheiro, e TV, rádio, palanque em qualquer bairro do País e rebanho. Só falta apoio político forte. Que tal o do próprio presidente da República?


Eliane Cantanhêde domingo, 15 de setembro de 2019

BIG BROTHER?

 

Big brother?

Controle de dados pode servir, além da defesa de aliados, para ataque de adversários?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

15 de setembro de 2019 | 07h26

O mais novo temor em Brasília é que a Lava Jato original possa ser trocada por uma Lava Jato particular, em que os dados não seriam mais compartilhados por uma força-tarefa de juízes, procuradores, auditores e delegados para o combate à corrupção, mas, sim, centralizados num único gabinete: o do presidente da República.

Em tese, já imaginaram o que pode representar a PF nas mãos de um filho do presidente, eventualmente escrivão de polícia; um secretário da Receita Federal disposto a mudar tudo e a centralizar os dados e investigações para dividi-las com o poder; um chefão do Coaf que admita compartilhar informações sobre movimentações financeiras com o Planalto?

 

 
Significa que, sempre em tese, uma única pessoa, o presidente da República – atual ou futuro – teria a sua disposição um mapeamento detalhado da vida pessoal, da folha policial e dos dados fiscais e bancários de todos os seus desafetos de qualquer área. Além de defender o amigo X, ele poderia facilmente atacar o adversário Y.

Mesmo antes de centralizar as escolhas do novo procurador-geral da República e o comando da PF, Receita e Coaf, o presidente Jair Bolsonaro já usou publicamente, e com seu próprio viés, informações conhecidas contra, por exemplo, Luciano Huck, João Dória, jornalistas. E se tiver acesso a dados de ministros de tribunais, deputados, senadores, governadores, funcionários, cidadãos e cidadãs? Além de divulgar, ficaria tentado a usar esse arsenal para amedrontar quem ousar confrontá-lo ou meramente questioná-lo?

É interessante a aproximação de Bolsonaro, seus filhos, seu chanceler e outros ministros com o autoproclamado guru da direita internacional, Steve Bannon, que foi estrategista da campanha presidencial de Donald Trump e depois demitido por ele da Casa Branca. Entre outras coisas, Bannon é especialista em coleta, análise e uso político de dados de cidadãos.

Aliás, quem gosta de ficção vai ficar fascinado pelo documentário “The Great Hack” (“Nada é Privado: o escândalo da Cambridge Analytica”), que confirma o quanto a realidade anda superando a imaginação e as construções mais mirabolantes dos ficcionistas. O 007 é pré-histórico, quer dizer, pré-internet.

Em resumo, para não dar “spoiler”, ali é contada como foi construída a vitória de Trump, ou melhor, a derrota de Hillary Clinton nos EUA, e como o Reino Unido conseguiu cair na armadilha do Brexit. Primeiros ministros vêm e vão, sem recuos e sem avanços – sem saída. E como se chegou a isso? Com o uso dos dados e mentes das pessoas, identificando e focando nas menos convictas – logo, mais suscetíveis a propagandas maciças e às demoníacas fakenews. Por trás de tudo, a onda mundial da extrema direita. Detalhe: Bolsonaro aparece ligeiramente no filme.

Na era PT, ficamos roucos de denunciar o aparelhamento de órgãos e estatais em favor de um partido, um grupo político e, finalmente, um esquema sistêmico de corrupção. Neste primeiro ano de Bolsonaro, surgem dúvidas sobre o aparelhamento, se não é mais por um partido, mas por um projeto de poder com conexões internacionais e centralizado num presidente que, vira e mexe, dá uma cutucada na democracia.

Com instituições e dados centralizados, sob o risco de uso na defesa de aliados e no ataque de adversários, ou de meros críticos, pode-se criar a mais destrutiva arma política: o medo. É só suposição, mas não é pura ficção.


Eliane Cantanhêde sexta, 13 de setembro de 2019

PROTEJAM A DEMOCRACIA

 

Protejam a democracia!

Por que é preciso clamar por democracia a essa altura da história brasileira?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

13 de setembro de 2019 | 03h00

Em seu último pronunciamento no STF como procuradora-geral da República, Raquel Dodge fez um “pedido muito especial” aos ministros, à sociedade civil e a todas as instituições da República: “Protejam a democracia brasileira, tão arduamente erguida!”.

 

Pode parecer um tanto intempestivo. Apelo pela democracia? Em pleno 2019? Com as instituições funcionando plenamente? Pois é. Mas Raquel não falou por falar, apenas verbalizou uma preocupação que percorre corredores e gabinetes.

O presidente da República faz loas a ditadores sanguinários do Brasil e do exterior. Seu filho 03, o deputado e candidato a embaixador Eduardo Bolsonaro, já declarou que, para fechar o Supremo, “basta um tanque e um cabo”. O 02, vereador licenciado e internauta Carlos Bolsonaro, chocou a opinião pública, o Legislativo e o Judiciário ao postar que, “por vias democráticas, a transformação que o Brasil quer” (seja lá o que for isso) não vai acontecer na velocidade que ele gostaria. 

 E o que dizer da foto de Eduardo ostentando desafiadoramente uma pistola na cintura ao lado do presidente, numa cama de hospital? Foi um recado. Que recado? Para quem? 

Enquanto os irmãos falam, escrevem, fazem ameaças veladas e ocupam-se com “bravatas”, como classificou o general Santos Cruz, o primogênito, senador Flávio Bolsonaro, trabalha habilidosamente num produtivo “toma lá, dá cá” com Judiciário, Câmara e Senado. 

O presidente do STF, Dias Toffoli, atende pedido da defesa de Flávio e suspende todas as investigações e processos com base no falecido Coaf sem autorização judicial. Flávio retribui operando para abafar a CPI da Lava Toga, apelido para uma comissão que – indevidamente, aliás – pretende investigar e expor ministros do Supremo, inclusive o próprio Toffoli. 

Ao redor disso, a cúpula da Polícia Federal continua sendo alvo e a da Receita Federal já foi abatida. Marcos Cintra, bolsonarista de primeira hora, caiu da Secretaria da Receita por insistir em ressuscitar a CPMF – que Jair Bolsonaro combateu nos anos FH, nos anos Lula, na campanha, na transição e agora durante seu governo. Logo, caiu por um motivo forte. Mas não o único. 

Cintra caiu, mas a ideia de recriar o “imposto do cheque” sob nova roupagem não morreu. O ministro Paulo Guedes vai deixar a poeira baixar e mudar o discurso, mas cobrando do presidente da República, da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre: “Se não querem a nova CPMF, que opção vocês me dão para compensar a desoneração da folha de pagamento e assim gerar empregos?”. Até lá, a CPMF continua na pauta. 

O que os três Poderes querem mudar mesmo é a desenvoltura de auditores em investigar pessoas que se sentem “ininvestigáveis”. Enquanto eram ministros do Supremo e parlamentares federais, ainda ia. Mas, quando isso chegou a parentes de Bolsonaro e resvalou em Flávio, a coisa mudou de figura. Definitivamente, não pode. Logo, a CPMF fica, mas a Receita muda e fica mais comportada.

Se o Brasil e o mundo já estão perplexos com as falas de Bolsonaro e seus filhos sobre democracia e meio ambiente, o que dizer do discurso do chanceler Ernesto Araújo no Heritage, um “think thank” conservador dos EUA, sobre os riscos do “climatismo” para o Ocidente? A diferença é que a fala de Carlos foi levada a sério e rechaçada, a de Ernesto virou piada na imprensa americana, às vésperas de Bolsonaro abrir a Assembleia Geral da ONU.

Aliás, Carlos ficou furioso com a repercussão do seu desdém pela democracia e acusou os jornalistas de “canalhas”. E o vice-presidente, o general Santos Cruz, os presidentes da Câmara e do Senado e os cidadãos estupefatos são canalhas?


Eliane Cantanhêde terça, 10 de setembro de 2019

É NEGOCIAR OU NEGOCIAR

 

É negociar ou negociar

Treino é treino, jogo é jogo. Com a pauta pesada no Congresso, o jeito é negociar

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

10 de setembro de 2019 | 03h00

Passada a fase inicial da relação Planalto-Congresso, com a Câmara concentrada na reforma da Previdência, é agora que começa o verdadeiro jogo político do governo Jair Bolsonaro. As pautas legislativas dos ministérios, do Planalto e do próprio Bolsonaro são muitas e arriscadas, exigindo grande capacidade de negociação. 

São pautas difíceis, mas a questão mais emergencial é a pindaíba do governo. Com falta de dinheiro para tudo, há um risco de apagão, ou de “shutdown”, como preferem os economistas. E quem pode resolver? O Congresso, é claro. Mas não de mão beijada. 

 A expectativa é de Aras passar fácil pela CCJ e pelo plenário do Senado, apesar de enfrentar fortes reações na própria casa, o Ministério Público, e nos bunkers de Bolsonaro na internet. Em geral, os políticos de diferentes tendências não têm nada de impeditivo contra ele, que, de quebra, não é exatamente um defensor dos métodos da Lava Jato, muito pelo contrário. 

A mesma facilidade, porém, não deverá se repetir para a votação do “filho 03” e um sinal inequívoco disso é a demora e a reticência do papai Jair em enviar o pedido para o Senado. É muito raro, quase impossível, um candidato a embaixador ser derrubado no Senado. Já imaginaram o filho do presidente não passar? Uma derrota e tanto. 

A votação dos 19 vetos da Lei de Abuso de Autoridade é outra pedreira, inclusive porque a base e o próprio partido do presidente, o PSL, estão divididos. É aquela barafunda: há de bolsonaristas a petistas a favor da Lava Jato e contra a lei, há de bolsonaristas a petistas contra a Lava Jato e a favor da lei. E com uma agravante: a queixa de que os vetos privilegiam policiais – base eleitoral e parlamentar do presidente –, em detrimento de juízes e procuradores. A melhor aposta é que Bolsonaro não vá escapar de uma derrota. Resta saber o tamanho e a gravidade dela. 

A gratuidade das malas nem é prioritária, mas, de um lado, mobiliza as empresas aéreas e, de outro, tem apelo na classe média, que foi decisiva na eleição de Bolsonaro e continua sendo para segurar a erosão de sua popularidade – que não anda nada bem. 

Tudo isso tem mais simbologia e é disputa de poder e teste de força política, mas a questão central mesmo é como dar algum respiro para o governo neste momento de economia a passos de tartaruga e Estado quebrado. Corte de bolsas de estudo, suspensão de pesquisas, falta até de papel higiênico nas universidades, redução de expediente nas Forças Armadas, projetos interrompidos, ministérios parando e ministros choramingando... Algo precisa ser feito e, seja o que for, depende do Congresso Nacional, que foi tão maltratado pelo presidente e agora é tão fundamental para ele. Aliás, para qualquer presidente. 

Na mesa, estão algumas possibilidades, todas difíceis e polêmicas, como revisão do teto, pelo qual os gastos públicos só podem subir pela inflação de um ano para outro. Mexer nessa medida moralizante seria péssimo, mas Bolsonaro chegou a admitir e depois “desadmitiu”. 

Outras opções: mexer na meta fiscal ou na “regra de ouro”, que proíbe o governo de contrair dívida para pagar custeio, inclusive folha de pagamento. Em último caso, se nada funcionar, o jeito será aprovar um crédito suplementar. 

Quem pegou esses touros a unha foi o general e ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, deixando, aliás, uma pergunta no ar: o que anda mesmo fazendo Onyx Lorenzoni, da Casa Civil?


Eliane Cantanhêde domingo, 08 de setembro de 2019

A LAGRIMA

 

A lágrima

O ‘lavajatismo’ derrubou o petismo, o bolsonarismo está derrubando o ‘lavajatismo’

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

08 de setembro de 2019 | 05h00

O presidente Jair Bolsonaro criou e alimentou deliberadamente uma teia de inimigos e críticos, até atrair para ela os próprios bolsonaristas radicais e irascíveis de internet. Na reação à indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, a gritaria mais estridente não é dos adversários, mas dos aliados de Bolsonaro.

E tentou dar uma ordem de comando que já deveria ter dado há muito tempo. Pediu, ou ordenou, aos artilheiros da internet que apagassem “comentários pesados” atingindo o procurador Aras. Contra presidentes de outros países, primeiras-damas, comissárias da ONU, ambientalistas, jornalistas, defensores dos direitos humanos, ONGs, professores, estudantes e qualquer um que pense diferente, pode. Mas contra indicado seu não pode. 

A escolha de Aras aprofunda a guerra no Ministério Público e a percepção de um forte recuo no combate aos crimes de colarinho branco, porque ele já se manifestou contrário aos métodos de juízes, procuradores e delegados da Lava Jato. Mas isso é detalhe, o que agita os bolsonaristas é a suspeita de que o novo PGR, ora, ora, seja um baita de um esquerdista.

Aras pode ser tudo, menos esquerdista, comunista ou algo do gênero. Falante como bom baiano, ele conversa com todos os lados, mas é conservador e crítico, por exemplo, dos excessos da era Rodrigo Janot, acusado no ambiente jurídico e político de proteger o PT e perseguir Michel Temer. Se Aras cometeu um “erro”, foi o de fazer o que candidatos costumam fazer e se tornou questão de vida ou morte com Bolsonaro: falar o que o presidente queria ouvir.

Como ele seria “esquerdista” com um padrinho como o ex-deputado Alberto Fraga, que é líder da bancada da bala e tem mais influência sobre o presidente do que muito general? E seu avalista é o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, uma estrela do governo, já que Aras assume o compromisso de não prestigiar o meio ambiente em detrimento do “progresso”.

Também não vai se meter com direitos humanos, minorias, questões comportamentais. E deve tirar da frente os procuradores identificados com Janot e os recém remanejados por Raquel Dodge, que sai no dia 17. Mais ou menos como o embaixador júnior Ernesto Araújo foi pautado para fazer com os embaixadores seniores do Itamaraty.

Se o MP já anda bem agitado, vai piorar muito agora, mas isso ocorreria fosse quem fosse fora da lista, ou até da própria lista, e a expectativa é que Aras passe no Senado. Uma vez na PGR, não vai tomar decisões absurdas, nem atuar em permanente confronto – como Bolsonaro faz. As coisas vão decantar.

O novo front de Bolsonaro no Congresso é outro: os vetos à Lei de Abuso de Autoridade correm sério risco de serem derrubados, servindo de ensaio para a votação de Eduardo Bolsonaro como embaixador em Washington. Se já pediu aos bolsonaristas de internet para pararem de bater no novo PGR, o presidente vai ter de convencer os bolsonaristas do Congresso a não fazê-lo passar vexame com vetos e filho.

É assim, com um PGR daqui, lei contra autoridades dali, Moro de escanteio, empurrão no Coaf, na Receita e na PF que a era Bolsonaro vai, na prática, vingando o PT e Lula. Se o “lavajatismo” (como diz Gilmar Mendes) derrubou o petismo, o bolsonarismo está derrubando o “lavajatismo”. Os “heróis de Curitiba” ficaram falando sozinhos. Ou nem tanto?


Eliane Cantanhêde terça, 03 de setembro de 2019

PAPAI NOEL EXISTE

 

Papai Noel existe

Em vez de brigar com os dados e só ouvir os áulicos, Bolsonaro devia ouvir mais Terezas Cristinas

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

03 de setembro de 2019 | 03h00

Quando os jornalistas perguntaram ontem ao presidente Jair Bolsonaro sobre a preocupante erosão de sua popularidade, com aumento bem fora da curva dos índices de rejeição, ele voltou-se para um deles e desdenhou, com seu jeitão “simples e transparente”: “Você acredita em Papai Noel?”. 

Não, presidente, acreditamos nas pesquisas de opinião, como no IBGEInpeIbamaFiocruzICMBioAncine, na ciência, nas universidades, na educação que vai além do ensino, na diplomacia dos bons modos, nos direitos humanos e, claro, na defesa do meio ambiente.

Todos os presidentes, em diferentes épocas, reagem mal a dados negativos sobre seu governo e sua popularidade e preferem se trancar nos palácios, ouvir os áulicos cheios de elogios ou circular em ambientes francamente favoráveis – como os militares e evangélicos, no caso de Bolsonaro. É uma fuga da realidade. Quem mais perde é o próprio presidente, além do seu governo. 

Melhor do que filhos, generais, assessores e a legião de “amigos” que frequentam palácios e melhor do que multidões selecionadas, seria o presidente chamar políticos experientes e de bom senso, com coragem e independência, para lhe dizer as verdades que ele não gosta de ouvir e os outros não admitem falar.

Um exemplo é a ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Na crise doméstica e internacional das queimadas, ela jogou um balde de serenidade para apagar as labaredas reais e de comunicação. Enquanto outros atiçavam o fogo e as guerras do presidente, ela lembrou os danos que isso causaria à imagem e aos produtos brasileiros e sugeriu: em vez de botar mais lenha na fogueira, por que não apresentar soluções práticas e agir? 

Bolsonaro mudou de tom, convocou um gabinete de crise, chamou as Forças Armadase o governo passou a anunciar providências. Lucraram todos, principalmente ele e a própria Amazônia. E a guerra particular contra Macron? Bem, é outra história, que foge à alçada de Tereza Cristina. Ela não pode tudo. 

É preciso que mais Terezas Cristinas se aproximem do presidente, fazendo um contraponto aos que só dizem amém e debatendo os dados do Datafolha com seriedade e vontade de captar os recados, aprender e corrigir. Pela pesquisa, a rejeição a Bolsonaro disparou para 38%, um recorde absoluto para presidentes nessa fase de mandato. 

Pela primeira vez, a rejeição (ruim e péssimo) ultrapassou o regular e a aprovação (bom e ótimo), quebrando o equilíbrio anterior entre os três. Mas o mais importante é que essas conclusões não surpreenderam os analistas. Logo, não deveriam surpreender o Planalto e muito menos serem rechaçadas pelo presidente. 

É só enumerar os absurdos que Bolsonaro diz, como a história do cocô, ou faz, como indicar o próprio filho, o “garoto”, para a principal embaixada do planeta. E o “herói” Brilhante Ustra? E remoer a dor do presidente da OAB diante da tortura e “desaparecimento” do pai? E as picuinhas contra a imprensa? E a manipulação, até emocional, de Sérgio Moro? E o ex-Coaf, a Receita, a PF? A cada uma delas, é natural que as pessoas se espantem e que a popularidade caia. Só o presidente e seu entorno poderiam achar que esse conjunto não afetaria sua popularidade. 

 Bolsonaro não admite que está errando. Ao contrário, dá de ombros, diz que ele “é assim mesmo” e tenta capitalizar a imagem de “transparência” e “simplicidade”. Como se vê, não está funcionando, mas o presidente, em vez de frear, mete o pé no acelerador, sob aplausos de quem parece que está ajudando, mas só está pensando no seu carguinho e em se manter nas graças do presidente. Assim como Bolsonaro muitas vezes não ajuda e só atrapalha seu governo, essa posição cômoda de muitos do governo não ajuda Bolsonaro, só piora as coisas.


Eliane Cantanhêde domingo, 01 de setembro de 2019

TRUMP? SÓ TRUMP?

 

Trump? Só Trump?

Quem está de olho na Amazônia e oferece ajuda para ter ‘retorno’? Só a Europa? Os EUA não?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

01 de setembro de 2019 | 03h00

Depois de isolar o Brasil do mundo desenvolvido, com sua retórica virulenta e desprezo à preservação do meio ambiente e às comunidades indígenas, o presidente Jair Bolsonaro tenta dar a volta por cima criando um cerco à França, uma das mais sólidas democracias do Ocidente.

Já telefonou para os líderes dos EUA, Japão, Espanha e Alemanha e recebeu em Brasília o mediador do seu conflito com o mundo, o chileno Sebastián Piñera, mas, obviamente, sua maior investida e grande aposta é o ídolo da família, Donald Trump.

Sem apoio dos EUA o G-7 não decide e não faz nada. Logo, Trump é meio caminho andado para neutralizar Macron e, assim, Bolsonaro marcou um gol quando as portas da Casa Branca se abriram para encontro fora da agenda de Trump com o deputado Eduardo Bolsonaro, candidato a embaixador do Brasil em Washington, e o chanceler Ernesto Araújo. 

 
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Incêndio registrado em 24 de agosto na floresta amazônica de Candeias do Jamari, próximo a Porto Velho, em Rondônia
Foto: Victor Moriyama/ Greenpeace/ AFP

O presidente americano é cabo eleitoral de Eduardo, depois de endossar o pedido de agrément de próprio punho. Ninguém confirma, nem desmente, mas é razoável supor que Bolsonaro aproveitou o telefonema para Trump, no pico das queimadas da Amazônia e da crise com o G-7, para pedir: “Ô, Trump, recebe o garoto aí! Ele tá precisando de uma força pra passar lá no Senado!”

A visita teve duplo objetivo. Dar uma forcinha para Eduardo, que encontra forte resistência da opinião pública e dos senadores para um salto tão absurdamente grande, e arrancar algum compromisso dos EUA em relação à Amazônia, para efeitos políticos internos e externos. Que compromisso? Dinheiro? Equipes? Equipamentos? Ou um chega pra lá público em Macron?

E a coisa não é assim tão simples, depois de Bolsonaro, o pai, ter praticamente rechaçado R$ 300 milhões da Alemanha e da Noruega no Fundo da Amazônia e feito exigências e insinuações para aceitar a “esmola” de US$ 20 milhões (mais de R$ 80 milhões) dos europeus.

“Macron promete ajuda de países ricos à Amazônia. Será que alguém ajuda alguém – a não ser uma pessoa pobre, né? – sem retorno? Quem é que está de olho na Amazônia? O que eles querem lá?”, provocou o presidente brasileiro. Será que Trump, e só Trump, ofereceria ajuda sem “retorno”? Será que só os europeus estão sempre de olho na Amazônia? Os EUA nunca? O que os americanos querem lá?

Duas curiosidades: o americano deu longa entrevista a jornalistas após o encontro com os brasileiros, mas não disse uma palavra sobre Eduardo, Jair, Brasil, Amazônia. Só pensava, e falava, sobre o furacão Dorian. E as fotos só saíram no dia seguinte.

Desse jeito, a seca vai passar, as queimadas vão apagar e nem o Brasil destina parte dos milhões do fundo da Petrobrás, nem os europeus mandam seus euros, nem Trump anuncia seus dólares para salvar as florestas, enquanto Bolsonaro mantém, firme, o discurso da soberania e a tese de que os europeus (só os europeus...) querem mesmo nos roubar a Amazônia.

As queimadas, aliás, começam a perder espaço para a economia, depois que o risco de recessão técnica foi superado pelo crescimento de 0,4% no último trimestre e a Pnad confirmou a tendência de recuperação de empregos. Agora é monitorar a mais nova crise da Argentina e desfazer os nós do Orçamento de 2020. 

O dinheiro acabou, o setor público é o grande entrave para a recuperação econômica e só há uma saída: assim como está aprendendo a negociar com as grandes democracias, Bolsonaro vai ter de finalmente aprender a negociar com o Congresso, por onde passeou por 28 anos.

Ou revisão do teto de gastos, ou fim da “regra de ouro” ou crédito suplementar de R$ 367 bilhões. Senão, adeus investimentos e Bolsonaro vai ter de cortar salário de servidor. Como? Só Deus sabe. Atirar em Macron e fazer reverências a Trump não vão dar um jeito nisso.


Eliane Cantanhêde sexta, 30 de agosto de 2019

O EFEITO MACRON

 

O efeito Macron

Francês deu a Bolsonaro o discurso aglutinador de ‘soberania’ e ‘patriotismo’

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

30 de agosto de 2019 | 03h04

Ao falar em internacionalização da Amazônia, o francês Emmanuel Macron mexeu com os brios brasileiros e deu ao presidente Jair Bolsonaro um discurso poderoso e aglutinador baseado em duas palavras mágicas: soberania e patriotismo. Mesmo antibolsonaristas convictos caíram nessa. Mexeu com a pátria, mexeu comigo.

Com esse discurso, Bolsonaro deu voz unida e reuniu novamente os militares do seu governo em torno dele. Ordem, disciplina, patriotismo. E não se fala mais de demissões de generais nem de medalha para o guru que os tratava aos palavrões. 

Com o escorregão de Macron, todos perfilaram, bateram continência e respiraram aliviados por ter bons motivos para reverenciar o capitão que virou “comandante em chefe.” Ele manda, eles obedecem. Ele cobra soberania e patriotismo, eles adoram. Ele grita “a Amazônia é nossa”, eles fazem coro. O resto é passado. 

Se une os militares, o presidente também usa Macron e a Amazônia para animar a sua tropa real e virtual e deve estar se divertindo à beça com os “inimigos” que tanto falaram mal de suas posições devastadoras sobre o meio ambiente e agora se sentem obrigados a reconhecer que Macron passou do ponto, é um atrevido.

Enquanto os três Poderes dão tratos à bola para reunir recursos para proteger a Amazônia e o governo toma medidas práticas contra desmatamento e queimadas, Bolsonaro vai tirando proveito político da crise e cobra pedido de desculpas de Macron, que o chamou de “mentiroso”, apesar de ele ter atacado primeiro, com a “live” cortando o cabelo na hora marcada para o chanceler francês. 

Sem falar do seu filho, candidato a embaixador – e em Washington! – chamando o presidente da França de “idiota” e do próprio presidente rindo de um ataque vil, grosseiro, contra Brigitte, mulher de Macron, que é muitos anos mais velha do que ele, assim como a linda Michelle é muitos anos mais nova do que Bolsonaro. Quem pode ser a favor de uma coisa dessas?

É um círculo vicioso: Bolsonaro posta na internet ou fala alguma barbaridade qualquer no Alvorada e passa o dia se deliciando com a perplexidade geral, enquanto aumenta os ataques contra a mídia e os jornalistas. Ou seja: ele cria frases e fatos contra ele, espera a mídia divulgar e criticar e joga a opinião pública contra a mídia. Atiça a imprensa de um lado e os seus adoradores de outro. Os dois lados se engalfinham e ele reina acima de todos.

É provável que não seja uma estratégia sofisticada, mas, sim, uma personalidade, um estilo, uma agressividade e uma beligerância que passam de pai para filhos, enquanto eles vão se acertando com Judiciário e Legislativo para manter as coisas “sob controle” e a tropa defendendo o indefensável e mirando os “outros”, os “inimigos”.

Bolsonaro também se revela um craque manipulador de pessoas. Assim como botou os generais nos seus devidos lugares, calou o vice Hamilton Mourão, amestrou o ministro Sérgio Moro e vai usando seus trunfos. Ontem, anunciou para a PGR um interino, que, se não se comportar direitinho, pode ser demitido a qualquer momento. Hoje, esfrega na cara dos senadores uma foto de Eduardo Bolsonaro com Donald Trump nos EUA. Isolamento internacional? Que isolamento?

Porém, não há estratégia e esperteza que resistam à economia frágil. O crescimento de 0,4% no segundo trimestre é um alívio, mas o Brasil se arrasta feito tartaruga e precisa de agilidade de coelho para escapar dos efeitos de mais uma crise na Argentina, num momento de instabilidade global e de muita desconfiança em relação ao Brasil de Bolsonaro. A briga com Macron é quase pessoal, mas a beligerância com o mundo é bem mais grave do que isso.


Eliane Cantanhêde terça, 27 de agosto de 2019

SACO DE GATOS

 

Saco de gatos

STF, Câmara e Senado não veem graça em apanhar dos bolsonaristas enquanto Bolsonaro passa de bonzinho

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

27 de agosto de 2019 | 03h02

Os manifestantes de domingo, em grande maioria bolsonaristas, ainda não entenderam exatamente o que está acontecendo e, quando confrontados com a verdade por Marcelo Madureira, no Rio, dirigiram agressões e impropérios contra ele, retirado sob escolta policial. A verdade dói.

Os atos foram em favor do ministro Sérgio Moro e do procurador Deltan Dallagnol e contra a lei de abuso de autoridade, o Congresso e o Supremo, com foco nos ministros Dias Toffoli, que o preside, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Não ficou claro de que lado desse saco de gatos está o presidente Jair Bolsonaro.

Dia sim, outro também, o presidente dá sinais de distanciamento, até de um certo enfado diante de seu ministro da Justiça, o troféu mais comemorado e um dos dois superministros do início do governo. Tirou-lhe o Coaf, demitiu o chefe do órgão indicado por ele, cortou as verbas da Justiça, disse publicamente que o ministro não manda na PF.

 

Enquanto a turma que defende Moro fazia manifestações pelo País, até com bonecos infláveis do Super-Homem com a cara do ministro, Bolsonaro espezinhava o ícone internacional da Lava Jato. “Cuide bem do ministro Moro, você sabe que votamos em um governo composto por você, ele e o Paulo Guedes”, pedia um internauta. “Com todo respeito, ele não esteve comigo na campanha”, deu de ombros Bolsonaro.

Logo, fica a dúvida: os manifestantes estavam defendendo Moro de quem? Do Congresso? Do Supremo? Ou do próprio Bolsonaro e de todos eles juntos?

Do lado oposto, os grupos nas ruas desfilavam faixas dizendo que a mais alta Corte do País é “uma vergonha” e pedindo “impeachment já” de ministros. E quando Toffoli atraiu a ira popular definitivamente? Quando, atendendo a um pedido de advogados e a um interesse de Flávio Bolsonaro, o 01, mandou suspender todos os processos e investigações com base em dados do Coaf e sem autorização judicial.

Outra dúvida: os manifestantes sabem por que Toffoli tirou o Coaf da frente? Que o principal beneficiário foi o filho do presidente? Que um dos motivos da birra com Moro é que ele foi contra a liminar de Toffoli? E que foi por conveniência do Planalto que o Coaf virou UIF e foi parar no Banco Central?

Os protestos miraram também Alexandre de Moraes, que mandou suspender investigações da Receita Federal sobre 133 autoridades, inclusive de colegas dele no Supremo.

Mais uma dúvida: os manifestantes ouviram as queixas de Bolsonaro de que a Receita estava devassando a vida de seus familiares? Que ele tentou meter a mão na Receita no Rio, sua base? Teve até protesto dos agentes do fisco? Aliás, por que ninguém defendeu a PF?

Por fim, o grande motivo das manifestações foi combater a lei de abuso de autoridade, aprovada rapidinho no Congresso e agora nas mãos de Bolsonaro, que pode vetar, sancionar ou, o mais provável, vetar só partes. Uma das broncas é porque as dez medidas anticorrupção evaporaram e o pacote anticrime e anticorrupção de Moro foi engavetado. Ficou a lei que combate quem combate a corrupção.

Então, uma quarta dúvida: ninguém viu a “live” de Bolsonaro anunciando na internet “uma segurada” no pacote de Moro? E com o Moro como coadjuvante?

Rodrigo Maia (agora alvo direto da PF), Davi Alcolumbre e Dias Toffoli, para ficar nos presidentes, estão cansados de apanhar sozinhos por decisões que dividem com Bolsonaro. E não só nas ruas, mas no próprio Congresso, onde o PSL lidera a articulação da CPI da Lava Toga, mirando Toffoli e o STF.

Bolsonaro lava as mãos diante das manifestações e da CPI, mas Toffoli tem uma bomba: a liminar que favoreceu o 01 e que ele pode retirar a qualquer momento. Se é para apanhar, que apanhem todos. Os alvos dos bolsonaristas não acham graça em apanhar sozinhos, enquanto Bolsonaro fica de bonzinho.


Eliane Cantanhêde domingo, 25 de agosto de 2019

FIM DE UMA ERA DOENTE

 

Fim de uma era doente

Com erros e retrocessos, Bolsonaro pode virar cabo eleitoral das esquerdas e do PT

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

25 de agosto de 2019 | 05h00

Quem brinca com fogo pode se queimar, além de incendiar a Amazônia. O presidente Jair Bolsonaro tanto fez que acabou atraindo a ira do mundo desenvolvido, jogando o Brasil no centro do debate no G7, provocando protestos mundo afora e ressuscitando os panelaços da era Dilma Rousseff. Nessa toada, ele pode virar o maior cabo eleitoral da volta das esquerdas, inclusive do combalido PT e até do presidiário Lula.

Vocês já notaram que o pau está quebrando, mas o PT e as esquerdas adotaram um silêncio ensurdecedor? Bolsonaro defende torturador, desmatador, trabalho infantil, mas não há reação à altura da oposição, que, contundida, decidiu jogar parada, assim: deixa o cara se queimar sozinho que a gente volta depois.

No discurso do governo, só as queimadas na Amazônia, que simplesmente acontecem todos os anos, desde sempre, não justificam protestos, panelaços, críticas da mídia e de cientistas e reações de França, Alemanha, Noruega, Finlândia. Pois o governo tem razão. 

Essas reações não são pontuais, só pelas queimadas. Elas são uma resposta a um ataque incessante do governo e do próprio Bolsonaro aos parceiros, ao meio ambiente, aos órgãos do setor e aos ambientalistas. Isso vem desde a campanha, com a história de tirar o Brasil do Acordo de Paris.

Já empossado, Bolsonaro deu pelo menos dois sinais verdes para crimes ambientais. O Ibama não só cancelou a multa contra ele por pesca ilegal em área protegida como puniu o fiscal que aplicara a lei. E, em 13 de abril, o presidente gravou um vídeo pela internet proibindo a destruição de tratores e caminhões usados para desmatar ilegalmente a Amazônia.

Pela lei, eles podem ser destruídos, sim, se houver perigo contra agentes do Estado e se o custo para a guarda e transporte for excessivo, o que ocorre, claro, em locais distantes, em meio a florestas fechadas. Logo, o presidente mandou descumprir a lei ao vivo e em cores. Como isso soou? Como uma licença para o crime. Os desmatadores devem ter comemorado à beça.

O mesmo ocorre nessa guerra com a França. Sair do acordo de Paris e esfregar uma live cortando o cabelo após alegar “problemas de agenda” para não receber o chanceler francês é um gesto infantil e uma agressão grosseira a um país amigo. E o que dizer do indicado para embaixador em Washington xingando o presidente francês de “idiota”? Para que serve esse nível de beligerância? O que o Brasil ganha com isso?

Com as labaredas torrando a Amazônia e a imagem do Brasil no mundo, finalmente Bolsonaro mudou o tom, foi à televisão sem agredir nada e ninguém e tomou duas providências: uma, interna, chamando o Exército para apagar o incêndio; a outra, externa, telefonando para Trump, o espanhol Pedro Sánchez e o japonês Shinzo Abe, além de distribuir uma cartilha sobre a política ambiental para os diplomatas brasileiros.

A crise, porém, continua e ensina uma lição a Bolsonaro: ele não tem o direito de expor o Brasil assim, falando o que quer, fazendo o que quer, na hora que quer, abrindo mil e uma frentes de guerra e causando desgastes inúteis que não apenas prejudicam ele próprio e seu governo, mas o País.

O PT e as esquerdas assistem à tragédia e à sucessão de erros e retrocessos comendo pipoca, se divertindo, curtindo a ideia de que “quem ri por último ri melhor” e aguardando o aviso (ou ameaça?) do ministro Gilmar Mendes de que “devemos ao Lula um julgamento justo”. Já imaginaram? Uma nova guerra entre lulismo e bolsonarismo? Pobre Brasil.

A única forma de conter essa polarização insana é explorar os espaços de centro e trabalhar alternativas, diante da avaliação, ou constatação, de que o que está aí não é o começo de uma nova era saudável, mas o fim de uma era doente.


Eliane Cantanhêde sexta, 23 de agosto de 2019

O BRASIL EM CHAMAS

 

O Brasil em chamas

Bolsonaro e queimadas atraíram o mundo a favor da Amazônia e contra o Brasil

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

23 de agosto de 2019 | 03h00

Os incêndios na Amazônia e o incendiário Jair Bolsonaro conseguiram atrair a ira do mundo para o Brasil. O desmatamento e as queimadas, que evoluem juntos e extrapolam a Amazônia, atingem vários Estados, saem da área rural, afetam cidades e se transformam numa crise internacional.

 

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, se disse “profundamente preocupado”. O presidente da França, Emmanuel Macron, quer convocar o G-7, que reúne as maiores economias do mundo, para reagir. E astros como Gisele Bündchen e Leonardo DiCaprio potencializam a repercussão. O Brasil está isolado.

  

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Incêndio em Mato Grosso Foto: COMITÊ DO FOGO
 

Enquanto isso... o presidente Bolsonaro, seus ministros e principais colaboradores resumem as árvores derrubadas, as labaredas nas florestas, a fumaça que intoxica e as reações pelo mundo afora como uma mera, mesquinha, questão política e ideológica.

Não se ouviu uma única frase, uma única palavra do presidente lamentando a devastação, tomando providências, agindo para resolver o aumento do desmatamento e as queimadas que assolam uma área imensa do País. Tudo o que ele fez, até agora, foi desqualificar a medição das áreas desmatadas, demitir o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, e tentar adivinhar quem são os culpados: as ONGs!

Assim como os “governadores paraíba” do Nordeste são inimigos e devem ser tratados a pão e água, os do Norte e do Centro-Oeste agora são suspeitos de “conivência” (termo usado pelo presidente) com as queimadas. Sim, senhores e senhoras, ambientalistas torram o ambiente para retaliar o presidente e os governadores fecham os olhos, prazerosamente. Poderia ser apenas uma acusação patética, não fosse algo muito próximo de injúria e difamação. Que provas o presidente tem para falar algo de tal gravidade contra ONGs e governadores?

Esse discurso belicoso, audacioso, é com base na convicção pessoal do presidente de que as ONGs são braços da esquerda internacional e dos países europeus para controlar a Amazônia e criar condições para, mais adiante, se apossarem dela. Quem passar por gabinetes da Esplanada dos Ministérios vai ouvir que as ONGs embebedam os índios, exploram as reservas, dão guarida a quadrilhas que agem na região, são mancomunadas com madeireiras ilegais e garimpeiros clandestinos.

Logo, é uma guerra. Assim, não há nenhuma surpresa na vaia uníssona que recepcionou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na Semana do Clima na Bahia – um evento, aliás, que Salles tentou cancelar e depois voltou atrás. Diante do escândalo das queimadas, lê-se que o ministro agora quer criar uma força-tarefa com ONGs, madeireiras e mineradoras para combater as chamas atuais e prevenir novas.

Só não podem contar com os dois mais fiéis e antigos parceiros do Brasil na defesa do ambiente, a Alemanha e a Noruega, que foram escorraçadas por Bolsonaro e cortaram quase R$ 300 milhões de contribuição para o Fundo da Amazônia. Os dois, aliás, são, ou vinham sendo, os únicos financiadores do programa de... prevenção de incêndios na região!

Assim, o cerco vai se fechando não contra o governo brasileiro, mas contra o Brasil, depois que o presidente decidiu bater de frente com China, mundo árabe, França, Alemanha, Noruega e Suécia, no rastro de sua ira ideológica contra Inpe, Ancine, ICMBio, IBGE, Fiocruz, Ibama, PF, Receita, Coaf, universidades e, claro, imprensa. Aliás, de quem é a culpa do derretimento da imagem do Brasil no exterior? Para o presidente, é da imprensa!

Sinuca. Bolsonaro estabeleceu um padrão para demitir, pela imprensa ou pelas redes sociais. A bola da vez é o delegado Maurício Valeixo, o Eduardo Villas Boas da PF. O líder e referência da instituição.


Eliane Cantanhêde terça, 20 de agosto de 2019

UM FILÉ MIGNON E TANTO

 

Um filé mignon e tanto

Presidente tenta escolher PGR com os filhos e as redes sociais bolsonaristas. É temerário

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

20 de agosto de 2019 | 03h00

O presidente Jair Bolsonaro já disse que, se pudesse dar filé mignon ao filho, ele daria. E não é que ele está distribuindo os filés da República à filharada? O caçula entre os três mais velhos, todos políticos, manda no Itamaraty e quer ser embaixador em Washington, o do meio loteou a equipe de comunicação com amigos que vivem às turras com o resto do Planalto, o mais velho agora quer indicar o procurador-geral da República. E todos tentam controlar a PF, a Receita, o Coaf, o Moro. O governador Witzel que se cuide no Rio.

FAMÍLIA BOLSONARO

 Bolsonaro entre os filhos Flávio, Eduardo e Carlos Foto: RAFAEL CARVALHO/GOVERNO DE TRANSIÇÃO

Só quem compete com Flávio, o “01”, Carlos, o “02”, e Eduardo, o “03”, é um ser difuso, sem nome, cara, alma e coração que responde pela alcunha de “redes sociais”. Trancado no closet do Alvorada, longe de ruídos e interferências, o presidente ouve os filhos e vai se alimentando pelo Twitter, Facebook, Instagram e, assim, tomando  as decisões públicas.

O ministro Sérgio Moro costuma brincar que todo jornalista pergunta a mesma coisa: “E a Ilona Szabó?” Para quem não se lembra, essa foi a primeira derrota de Moronum governo em que deveria ser superministro (aliás, com toda justiça, sem trocadilho). Ele convidou Szabó para uma mera suplência de um mero conselho, os bolsonaristas de internet reclamaram e o presidente mandou desconvidar. E tem sido sempre assim, como se o estardalhaço das redes fosse igual à “voz das ruas”. Não é.

Segundo ministros que entram, como o general Luiz Eduardo Ramos, e que saem, como Gustavo Bebianno, Bolsonaro não é tutelado por ninguém. Em outras palavras, essas barbaridades todas que ele vem dizendo num ritmo de metralhadora são coisas de um tripé: ele próprio, os filhos e as redes bolsonaristas. Um tripé do barulho.

Imaginemos quem será o novo procurador-geral da República, um cargo-chave em qualquer época, qualquer governo, porque chefia o Ministério Público e exerce as funções do MP no Supremo, no STJ e no TSE. Logo, precisa de muito equilíbrio, inclusive emocional, para agir com altivez e independência diante dos Poderes, mas entendendo e respeitando o tabuleiro político. Corajoso, não incendiário – diante também do presidente que o escolhe. Não é essa a expectativa.

Fernando Henrique teve um “engavetador-geral da República”, Lula nomeou petistas-sindicalistas do MP, Rodrigo Janot tinha obsessão em derrubar Michel TemerRaquel Dodge apanha mais pelas virtudes do que pelos defeitos. E Bolsonaro procura alguém à imagem e semelhança dele próprio.

Está difícil e pode dar muita confusão. Aliás, já dá. A indicação atribuída a Flávio Bolsonaro, se verdadeira, é um escândalo. Seria de um sujeito com suspeitas de embolsar duas vezes a mesma verba, falsificar assinatura e daí por diante. Alguém assim incendiaria a PGR e o Ministério Público todo.

A questão não é o procurador-geral ser da lista tríplice ou não, de direita ou não, bolsonarista ou não. Mas, por favor, que seja alguém que tenha, ao menos, reputação ilibada e conduta irretocável, além de óbvio saber jurídico. Tem muita gente boa de direita e conservadora que tem esses atributos. Será que só serve apadrinhado do “01”, do “02”, do “03” ou dos três juntos?

Todo cuidado é pouco, porque a escolha para a PGR coincide com o “strike” que os Bolsonaro tentam fazer, mirando no Coaf, na Receita Federal e na Polícia Federal e ampliando, assim, uma lista interminável de vítimas que inclui Inpe, Ancine, Ibama, ICMBio, Fiocruz, IBGE.

Se o presidente não é tutelado, pelo menos deveria ouvir a voz da razão e dos que conhecem a importância da PGR, o que, definitivamente, não é o caso dos filhos nem das redes sociais. Esse não é um filé mignon qualquer. E pode custar um preço muito mais alto do que o próprio presidente imagina.


Eliane Cantanhêde segunda, 19 de agosto de 2019

BLINDAGEM

 

Blindagem

Fim da crise, Bolsonaro, Moro e Valeixo vivem felizes para sempre. Será?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

18 de agosto de 2019 | 03h00

Vamos falar claramente. É preocupante a investida simultânea do presidente Jair Bolsonaro contra a Polícia Federal, a Receita e o Coaf, além de sua estranha relação com Sérgio Moro e a dificuldade para definir o procurador- geral da República. Pior: no caso da PF e da Receita, os alvos imediatos são os superintendentes no Rio, base dos Bolsonaro e assolado por violência, milícias e “rachadinhas”.

 

O presidente diz que “não é um banana” e é ele quem manda. Isso, porém, não significa sair nomeando os homens da PF e da Receita nos Estados, já que são órgãos de investigação, obrigatoriamente autônomos. Bolsonaro escolher pessoalmente os superintendentes no Rio abre a porteira. Os governadores vão querer indicar, políticos e empresários investigados, também e não para mais. O que vai parar são as investigações de corrupção.

Justiça se faça. Lula foi investigado, condenado e preso, Dilma foi investigada e caiu por impeachment, mas não ousaram meter a mão na PF. E, quando Temer nomeou Fernando Segovia para a PF por apadrinhamento político, ele não durou três meses na direção geral.

 Ao anunciar a jornalistas a troca da PF no Rio, com críticas ao superintendente Ricardo Saadi, o presidente acendeu o sinal amarelo. Não era um caso isolado. Ele já vinha investindo contra o Coaf, empurrado para o Banco Central, e contra a Receita, em pé de guerra com a intervenção no Rio e “otras cositas mas”. Na sexta-feira, o secretário da Receita, Marcos Cintra, já teve uma conversa séria com o chefe imediato, Paulo Guedes.

Para se blindar, a PF lançou como sucessor de Saadi o atual superintendente de Pernambuco, Carlos Henrique Souza. Mas Bolsonaro foi à tréplica, anunciando no dia seguinte que quem manda é ele e que seria o superintendente do Amazonas, Alexandre Saraiva. De amarelo, o sinal da PF virou vermelho.

O diretor-geral, Maurício Valeixo, e toda a cúpula da PF ameaçaram pedir demissão em bloco e comunicaram ao ministro Sérgio Moro que não havia meio termo: ou vingava o nome indicado pela PF, como sempre foi, ou haveria uma debandada. Valeixo é do Paraná, próximo a Moro, destaque da Lava Jato e principal estrela da PF.

Espremido entre o presidente e a PF, Moro articulou a saída: em nova entrevista, Bolsonaro esqueceu a história do “banana” e disse que, tudo bem, podia ser o delegado do Amazonas, podia ser o de Pernambuco. Bolsonaro escapa de uma crise grave, Moro sobrevive a mais uma desfeita, Valeixo fica num cargo onde está brilhando e vivem todos felizes para sempre. Será? Essas coisas deixam cicatrizes. E se as bases da PF e da Receita decidirem retaliar?

Bolsonaro é especialista em abrir frentes de atritos dentro e fora do País, incluindo agora Luciano Huck, potencial adversário em 2022. Mas que motivos o presidente tem para confrontar a PF, que mantém um rumo absolutamente profissional e acumula troféus neste ano? Prendeu dois perigosos mafiosos italianos sem um tiro, rastreou e prendeu eficazmente o “doleiro dos doleiros”, um gol. E o que dizer da operação rápida de identificação, rastreamento e prisão dos “hackers da República”?

Se há uma bronca de Bolsonaro com a PF, além das ocultas, envolvendo seus filhos, é que ele não se conforma com as conclusões sobre a facada durante a campanha, convencido de que Adélio Bispo não é maluco e não agiu sozinho. Pois vai se surpreender com o relato da extensiva e sofisticada investigação feita pelos policiais federais – aliás, comandada pela PF de Minas, não do Rio.

Isso só confirma a essência do governo Bolsonaro. As prioridades número um, dois e três são sempre pessoais: seus filhos, seus interesses, suas crenças, suas obsessões. As instituições começam a reagir e a se impor.


Eliane Cantanhêde sexta, 16 de agosto de 2019

PRÓ-CORRUPÇÃO

 

Pró-corrupção

A Lava Jato foi um sucesso internacional, mas o Brasil recua e volta tudo atrás

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

16 de agosto de 2019 | 05h31

O ministro Paulo Guedes recebeu um ofício do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), vinculado à OCDE, estranhando a decisão do Supremo de vetar investigações com base em dados do Coaf, do BC e da Receita. Desrespeitar as 40 normas do Gafi projeta dificuldade de crédito, de comércio e de relações com organizações e demais países, além de ameaçar a aproximação com a OCDE. É isso mesmo que o Brasil quer?

Não adianta fingir que não sabe, não viu, não ouviu o ataque de forças poderosas e variadas às frentes de combate à corrupção no Brasil, que não se resumem à Lava Jato. Ela é a maior e mais reluzente, não a única.

Na linha de tiro estão o Ministério Público, a Receita, o Coaf (que identifica movimentações atípicas) e o Cade (que, por exemplo, avalia fusões). A Justiça não passa incólume. Veja as tentativas de desgastar Sérgio Moro e as ameaças ao Supremo – que tanto participa dos ataques como é alvo deles.

  
Jair Bolsonaro
 
Jair Bolsonaro, durante entrega de medalha Merito de Mauá no Clube Naval Foto: GABRIELA BILO / ESTADAO

As investidas não partem só do Congresso e de ministros do Supremo, têm a participação direta do governo. O próprio presidente Jair Bolsonaro, que já deu um jeito de intervir no Coaf e dar um chega pra lá na Receita Federal, ontem causou grande alvoroço na Polícia Federal, ao anunciar: “Vou mudar o diretor da PF no Rio. Motivos? Gestão e produtividade”.

Tudo no Rio é mais complicado mesmo, com todos os ex-governadores vivos entrando e saindo da cadeia, por exemplo, mas quem muda superintendente é o diretor-geral da PF, um órgão de excelência que tem mantido invejável independência até no turbilhão do mensalão e do petrolão na era PT. Para que o presidente se meter na PF e criar mais uma confusão desnecessária?

Na versão oficial, a troca do delegado Ricardo Saadi por Carlos Henrique Sousa já estava definida havia tempos, sem dor, sem trauma, como deve ser. Com a interferência de Bolsonaro, que já ataca o Coaf e a Receita, a suavidade foi para o espaço e a corporação chiou.

O curioso é que Bolsonaro fez toda a sua campanha em cima do combate à corrupção e não titubeou ao aceitar a sugestão do economista Paulo Guedes para nomear justamente Moro para a Justiça. Um golaço. Mas, com a posse, a caneta Bic na mão e as notícias nada edificantes sobre os gabinetes políticos da família, tudo mudou.

Mais curioso, ainda, é a aliança tácita entre setores do Executivo, do Judiciário e do Legislativo. Ora eles enfraquecem ostensivamente o Coaf. Ora fazem um conchavo para montar a equipe do Cade. Agora aprovam, em tempo recorde e sem votação nominal, a síntese de tudo isso: a lei de combate ao abuso de autoridade.

O derrotado nesses três exemplos é sempre Sérgio Moro, que deixou de ser superministro e troféu. Perdeu o Coaf, fundamental contra a lavagem de dinheiro, perdeu o direito de nomear metade dos integrantes do Cade, vê o presidente metendo a mão na PF e, em vez de aprovar seu pacote anticorrupção e anticrime, tem de engolir goela abaixo o oposto: a lei do abuso, com alta carga de subjetividade.

Há, sim, exageros de agentes de Estado que se sentem acima das leis e normas e se escudam na máxima de que “os fins justificam os meios”. Logo, uma lei contra abusos, fabricação de provas, exposição desnecessária de investigados, uso de algemas a torto e a direito... faz sentido. A questão, porém, é outra.

Por que agora e tão rápido? E por que engavetar as dez medidas contra a corrupção, depois o pacote Moro e colocar no lugar justamente o oposto? A resposta é clara: a gangorra inverteu. A Lava Jato perdeu fôlego, as forças inimigas dela se fortaleceram. Não se combate a corrupção, combate-se quem e o que combate a corrupção. Isso pode sair muito caro, inclusive internacionalmente. Atenção ao Gafi. Isso é sério.


Eliane Cantanhêde terça, 13 de agosto de 2019

E SE NÃO?

 

E se não?

Macri e PIB ameaçam a crença de que há dois governos: um do Bolsonaro, outro da economia

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

13 de agosto de 2019 | 03h02

A crença, certeza ou argumento de que a economia salva o governo Jair Bolsonarorecebeu duas pancadas doídas. Uma, de fora: a derrota do liberal Maurício Macri para o kirchnerismo nas prévias da Argentina. Outra, doméstica: o risco de nova recessão.

 

Macri é aliado fundamental para consolidar tanto a debacle do chavismo na América do Sul quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia, tão festejado, mas tão ameaçado. Mas é improvável que ele consiga tirar 15 pontos de diferença para a chapa populista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner até outubro. Sem Macri na Argentina e com Mario Abdo Benitez em risco no Paraguai, o acordo evapora. Para piorar, Bolsonaro apostou todas as fichas na chapa errada do país vizinho.

E o que dizer da prévia do Banco Central para o PIB do segundo trimestre no Brasil? Desde a eleição de Bolsonaro, a previsão de crescimento vem minguando. Agora, 0,2% de queda no primeiro trimestre e 0,13% no segundo apontam para recessão técnica. É grave para a economia, é gravíssimo para o discurso político do governo. 

Bolsonaro vai mal, mas as expectativas econômicas iam bem. O presidente fala uma barbaridade atrás da outra, mas os ministros, por obrigação, e os aliados, por falta de alternativa, têm a mesma resposta na ponta da língua: deixa o homem falar, o importante é Paulo Guedes salvar a economia e recuperar o crescimento. E se não?

 

Reunião
 
O Presidente Jair Bolsonaro, em reunião com o Ministro de Estado da Economia, Paulo Guedes e parlamentares no Palacio do Planalto.
Foto: Carolina Antunes/PR

Juros e inflação baixos, reformas caminhando, acordo com UE, negociações com os EUA e liberação do FGTS são um alívio para bolsonaristas desencantados, mas apegados às promessas e sonhos da economia. Esquecem-se de que o Estado está engessado pelo déficit crônico, o setor privado continua assustado, as famílias mantêm-se endividadas, a ociosidade do comércio e da indústria persiste, os empregos não aparecem.

A recuperação deve vir, mas vai ser lenta, demorada. Enquanto Bolsonaro faz das suas, mas a crença na economia resiste, tudo bem. Mas desilusão com ele e com a economia ao mesmo tempo pode ser explosiva.

Bolsonaro cria atritos desnecessários e “relativiza” tortura, impessoalidade, armas, radares, cadeirinhas, dados científicos, desmatamento, reservas indígenas. Mas “ele é assim mesmo”. Enquanto isso, o ministro da Economia tem uma boa equipe, o da Infraestrutura aprofunda o plano de privatizações de Temer, a da Agricultura trabalha com pragmatismo, o de Minas e Energia avança. E o Congresso faz sua parte, aprovando a reforma da Previdência sem desidratá-la.

O problema é se Bolsonaro insistir em falar e fazer o que vem na sua cachola, chocando o País e o mundo, e a economia continuar patinando até passar a andar de marcha a ré. A confluência gera pessimismo e preocupação.

Para tornar esse cenário ainda mais turvo, Bolsonaro passou meses provocando a China e ameaçando históricas relações amigáveis com o mundo árabe. Quando se imaginou que recolhia as baterias viu-se que apenas desviava o alvo para Alemanha, França, Noruega, Suécia, deixando o Brasil numa situação desconfortável. Eles têm o discurso do “bem”, o Brasil assume a posição do “mal” justamente no meio ambiente. E é isso que fica na imprensa internacional.

Bolsonaro afugenta quem votou nele “só contra o PT”, reabre feridas da ditadura militar, escanteia o Coaf em favor da própria família e abre flancos na área externa – Europa, Ásia e Oriente Médio. Assim, ele se apega a dois fatores para manter o poder: sucesso na economia e inexistência de um opositor real.

Pelo andar da carruagem, só falta surgir o opositor, o antibolsonaro. Não da esquerda, mas da centro-direita. João Doria é mais afoito, mas não é o único. Quanto mais Bolsonaro balançar, mais Dorias vão surgir.


Eliane Cantanhêde domingo, 11 de agosto de 2019

MOTOSSERRA

 

Motosserra

Que grande empresa quer colar sua marca num país que involui no meio ambiente?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

11 de agosto de 2019 | 03h08

Só falta agora o presidente Jair Bolsonaro incluir o agronegócio na sua lista de inimigos e a tropa bolsonarista na internet passar a chamar produtores e exportadores rurais de petistas, esquerdopatas e comunistas, por fazerem uma advertência real: proteger o meio ambiente não é coisa da esquerda nem utopia, é uma questão de competitividade internacional.

“Desenvolvimento sustentável” é o equilíbrio entre economia e ecologia. Não é moda nem supérfluo, é um conceito massificado nas democracias e exige responsabilidade das empresas. Ser “environment-friendly” é um ótimo negócio. Não ser pode custar caro.

Marcha para Jesus
 
O presidente Jair Bolsonaro, na Marcha para Jesus em Brasília Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO
 

O Brasil é um dos três maiores exportadores agrícolas do mundo, o governo aprofunda um processo de privatizações que atiça o interesse externo e a equipe trabalha intensamente para atrair investimentos produtivos fundamentais para impulsionar o desenvolvimento e gerar empregos.

As decisões e manifestações de Bolsonaro sobre meio ambiente podem interferir negativamente nisso tudo, afetando a posição de liderança do Brasil na área ambiental e gerando desconfianças desnecessárias nos demais setores, empresas e conglomerados que estão de olho no Brasil.

Ok. O capital é pragmático e pode não dar muita bola para florestas, rios e reservas ecológicas e indígenas de um país distante da América do Sul, mas é exatamente por pragmatismo que é forçado a contemplar todas essas questões na hora de fazer negócio. Não se esqueçam que, quando falamos de imagem do Brasil lá fora, não estamos nos referindo apenas a governos, mas também a parlamentos, mídia, meios científicos e sociedades. Todos têm forte influência nas empresas.

Que grande empresa quer colar sua marca num país que involui a olhos vistos na proteção ambiental? Mais: o governo mira a Europa, mas os EUA também desenvolveram uma forte consciência ambiental e uma ativa militância nessa área, com ou sem Trump.

Ao atacar o então diretor e os dados científicos do Inpe sobre desmatamento da Amazônia – em entrevista a correspondentes estrangeiros, frise-se –, o presidente fez exatamente o que ele acusa o professor Ricardo Galvão de ter feito: denegrir a imagem do Brasil no exterior numa área tão sensível.

Em setembro, Bolsonaro terá um palanque especial e uma ótima chance para abaixar a bola, amenizar suas falas e explicar ao mundo que não é bem assim como parece: que ele não quer facilitar a vida de madeireiros ilegais, escancarar as reservas indígenas a mineradoras até americanas, transformar santuários em “novas Cancúns”, liberar a pesca em áreas protegidas e desqualificar Inpe, Ibama, ICMBio.

Será que ele vai fazer isso? Leais colaboradores do presidente torcem para que sim, mas duvidam que ele o faça, porque, assim como Dilma Rousseff tinha a visão perigosa de que “um pouco de inflação não faz mal a ninguém”, Bolsonaro está empenhado em relativizar a proteção do meio ambiente em nome do que ele considera “desenvolvimento”.

Logo, não há motivo para otimismo na fala do presidente na abertura da Assembleia Geral da ONU, mês que vem, em Nova York. Em vez de amenizar o discurso e a sensação de uma política retrógrada em meio ambiente, o risco é ele fazer o oposto e dobrar a aposta, sob aplausos dos áulicos domésticos.

Essa é mais uma missão para Paulo Guedes, único superministro restante. Ele transformou o estatizante e corporativista Bolsonaro em privatizante e liberal. Agora, tem novo desafio: convencer o pupilo de que cuidar da natureza não é “frescura” nem “coisa de esquerdista”, mas fundamental para a sobrevivência do planeta e o interesse nacional. Ou melhor: os variados interesses nacionais, inclusive o econômico.


Eliane Cantanhêde sexta, 09 de agosto de 2019

E A IMPESSOALIDADE?

 

E a impessoalidade?

Decisões de presidentes devem obedecer ao interesse público, não o pessoal, familiar ou de grupos

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

09 de agosto de 2019 | 03h00

Alguém precisa avisar ao presidente Jair Bolsonaro que ele foi eleito para presidir o País, não para se tornar dono da República e fazer o que bem entende. Pelo princípio da impessoalidade, definido no artigo 37 da Constituição, o mandatário tem de tomar decisões de acordo com o interesse público, não ao sabor dos seus interesses, vontades e crenças pessoais, nem para favorecer a si, à família, aos amigos ou a grupos específicos. Há controvérsias se é exatamente assim que Bolsonaro governa, fala e age.

 
JAIR BOLSONARO
 
Presidente Jair Bolsonaro Foto: GABRIELA BILO/ESTADÃO
 

E os dois exemplos mais recentes são retaliações do cidadão Bolsonaro, que aproveita o principal gabinete do Planalto e uma caneta Bic para se vingar de desafetos. Um é o cancelamento do contrato da Petrobrás com o escritório de advocacia do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Outro é a dispensa de publicação de balanços de companhias abertas em jornais. “Não precisa dar dinheiro para um cara da OAB”, aplaudiu Bolsonaro, que falou de forma cruel sobre o desaparecimento do pai de Felipe na ditadura militar, remexendo uma ferida que não é só da família Santa Cruz, mas de toda a Nação.

Onde está o interesse público no cancelamento do contrato? O escritório, especializado em Justiça do Trabalho, evitou em 2018 rombo de R$ 5 bilhões à Petrobrás em causas trabalhistas. Logo, a companhia não dá dinheiro “para o cara”, remunera um serviço bem feito.

“Retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou”, disse Bolsonaro, assumindo a intenção de vingança quando desobrigou a publicação dos balanços. A decisão é do governo, mas o interessado é o ex-candidato, insatisfeito com as revelações da imprensa sobre seu passado e entorno desde a campanha. Como, aliás, ela tem o dever de fazer.

Lembra a punição ao fiscal do Ibama que multou o cidadão Jair por pescar em área protegida. O fiscal cumpriu seu dever, o cidadão descumpriu a lei. Quem riu por último? Aquele que, flagrado na infração, pensou: “Ah, esse aí me paga!”. Pagou mesmo. O pescador assumiu e usou o poder contra um pobre fiscal.

Também não se pode classificar de impessoalidade a decisão do presidente de “não dar nada para esse cara”. Desta vez, não o presidente da OAB, mas o governador do Maranhão, Flávio Dino, do PCdoB, um desses “paraíba” que ousam ser de esquerda.  Do varejo para o atacado, o governo federal conseguiu punir o Nordeste inteiro, com apenas 2,2% dos empréstimos da CEF.

É um direito de Bolsonaro não gostar de Dino, como é dos governadores do Nordeste não gostar de Bolsonaro. Mas não é um direito da pessoa do presidente usar seu poder contra uma região, a segunda mais populosa do Brasil. O interesse dessa população está acima das birras do Jair.

E o que falar sobre o Coaf, que identifica movimentações financeiras atípicas e, assim, municia os órgãos de fiscalização e controle contra a lavagem de dinheiro, prima-irmã da corrupção? Ia tudo bem, até que o Coaf bateu os olhos numa dinheirama de um tal de Queiroz.

Esse foi o fio da meada de uma história ainda muito mal contada sobre contratações, salários, depósitos e esquemas nos gabinetes do clã Bolsonaro. Tal como o fiscal do Ibama, o Coaf está sendo punido por simplesmente fazer o que tinha de fazer. Podia pegar todo mundo, não o filho “01” do presidente, Flávio, agora senador.

Pimenta nos olhos dos outros é refresco, mas nos olhos do poder arde, causa irritação e, no caso dos Bolsonaro, gera retaliação. O problema é combinar com a Constituição. O artigo 37 é claro, preciso, um alerta.


Eliane Cantanhêde terça, 06 de agosto de 2019

A RICOS E ALIADOS, TUDO

 

A ricos e aliados, tudo

Bolsonaro e os ‘direitos’ dos ricos e poderosos contra os ‘deveres’ de todo o resto

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

06 de agosto de 2019 | 03h00

O presidente Jair Bolsonaro confirma, dia sim, outro também, sua visão peculiar e sectária do que sejam direitos. Diz a Constituição que “todos são iguais perante a lei”. Dizem as democracias que os direitos e deveres são iguais para todos. Para Bolsonaro, não. No seu governo, como na sua fala, uns têm mais direitos do que outros: os ricos, donos do capital.

Num país campeão de desigualdade social, com milhões de pessoas sem direito a emprego, educação, saúde, moradia, transporte, igualdades de condições e respeito, o presidente jamais usa a palavra “social” e está preocupado é com os direitos dos empresários, que chama de “heróis”: “É horrível ser patrão no Brasil”, prega. Bem pior, presidente, é ser pobre.

JAIR BOLSONARO
 
Presidente Jair Bolsonaro Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO
 

Assim, Bolsonaro defende trabalho infantil, produz frases dúbias sobre trabalho escravo e estuda devolver terras desapropriadas. E corta, ops!, contingencia verbas do Ministério do Desenvolvimento Social e da Educação.

Entre a proteção da Amazônia e a ganância de madeireiros ilegais, adivinhem quem ele defende? Em desacordo com a lei, impediu a destruição de caminhões que derrubavam árvores, criminosamente, na floresta.

Entre o direito ancestral dos índios e o desejo de “tarados” americanos de explorar minérios em terras indígenas, adivinhem o que ele prefere? E a ideia de liberar Angra dos Reis para empresários criarem “uma Cancún”?

Entre o Coaf, que identifica movimentações financeiras atípicas, e o interesse do filho Flávio Bolsonaro, cujo gabinete no Rio foi um dos flagrados, adivinhem o que ele faz? O chefe do Coaf cai, o filho Flávio fica feliz da vida. Aliás, cadê o Queiroz?

Sempre crítico à política, Bolsonaro se deu o direito de estar nela há 29 anos e garantir mandatos não só para Flávio, mas também para o “02”, Carlos, e o “03”, Eduardo. Por que será? Essa pergunta, que nunca quis calar, pode estar sendo respondida pelo jornal O Globo, que identificou 286 assessores do clã nessas três décadas, 102 da família Bolsonaro ou de famílias amigas. Alguns receberam a média de R$ 7,3 mil, ou R$ 10,7 mil, durante 14, 15 anos, sem dar as caras no trabalho. Uma era oficialmente “do lar”, outra declarou-se “babá” na Justiça e vai por aí afora. Será que os salários não eram para elas? E qual o direito dos Bolsonaro de fazer isso?

Há também os cartões corporativos: a sociedade tem o direito de saber como são gastas as verbas oficiais, mas Bolsonaro mantém o “direito” de gastar sem dizer onde, para quê, com quem. E não é pouco dinheiro, não.

Quem, por ofício, checa diariamente a agenda do presidente sabe os que têm acesso a Bolsonaro e para quem ele está efetivamente governando. Ele vai a toda e qualquer solenidade militar, frequenta cultos e despacha com pastores evangélicos, leva ministros a estádios de futebol e abre as portas do gabinete a multinacionais, grandes empresários, ruralistas, políticos aliados, a “bancada da bala”. Aos aliados e ao capital, enfim.

Onde ficam as outras religiões, os ambientalistas, as comunidades LGBT, os professores, os defensores de direitos humanos, os cientistas, os cineastas, os escritores, os artistas, os intelectuais, os índios, os quilombolas, os especialistas em trânsito e em desarmamento? E os representantes de trabalhadores?

No mundo de Bolsonaro, o capital tem todos os direitos, o trabalho e as minorias só têm deveres. A uns, a defesa. Aos outros, a cobrança. Mais ou menos como no caso dos Estados: aos governadores aliados, tudo; aos nordestinos, as migalhas.

Entra aí o “direito” do jovem deputado Eduardo de ser embaixador na mais importante embaixada do planeta, a dos EUA. “Indicado tem de ser filho de alguém. Por que não meu?”, indagou papai Bolsonaro. O que responder, minha gente?!


Eliane Cantanhêde domingo, 04 de agosto de 2019

BRASÍLIA EM CHAMAS

 

Brasília em chamas

Supremo dá recados fortes a Bolsonaro, mas os dois lados miram o mesmo alvo: o Coaf

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

04 de agosto de 2019 | 03h00

Agosto começou quente e Brasília está em chamas. Não bastasse a seca inclemente que assola a capital da República nesta época do ano, o Supremo reabriu impondo derrotas ao governo Bolsonaro, já no primeiro dia do mês e do semestre do Judiciário, mas com um movimento estranho, intrigante: a confluência de interesses entre Supremo e o próprio Bolsonaro quando se trata de Coaf. Aí, é o ministro Sérgio Moro quem arde.

SUPREMO
 
Supremo Tribunal Federal Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

No 1.º de agosto, o Supremo fez um “strike”. Derrubou uma medida provisória de Bolsonaro, falou grosso sobre o desrespeito aos Poderes, proibiu a Receita de investigar seus ministros e familiares e confrontou Moro ao proibir a destruição das mensagens captadas pelos hackers e exigir cópia de toda a papelada. O Executivo não terá mais acesso exclusivo às conversas que vêm sendo divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Como na Guerra Fria, os dois lados agora têm bomba atômica.

 
 O arsenal do Supremo, porém, não para aí. Na pauta deste semestre, há o pedido de suspeição do então juiz Moro no processo que levou o ex-presidente Lula à cadeia, há a decisão monocrática do presidente Dias Toffoli de suspender todos os processos com dados do Coaf sem autorização judicial e, “last but not least”, paira no ar a delicadíssima questão da prisão após condenação em segunda instância. Todas com potencial de querosene na fogueira.

Nos holofotes, duras críticas a Bolsonaro e à “transgressão” contra a independência dos Poderes, como bem bradou o decano Celso de Mello. Nos bastidores, intensas articulações para dar um basta na desenvoltura do procurador Deltan Dallagnol, que acumula a dupla condição de porta-voz da Lava Jato e pivô da crise dos hackers e que ousou brincar de investigar as mulheres de ministros da mais alta Corte do País – com direito a posteriores vazamentos para a imprensa.

Num ponto, porém, Bolsonaro e Supremo parecem mirar o mesmo alvo: o Coaf, o órgão de inteligência financeira que detecta movimentações de grandes somas de dinheiro sem explicação aparente, e que, por exemplo, foi quem flagrou aquelas esquisitices do gabinete do filho “01” do presidente, o hoje senador Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio. Para quem se elegeu apontando o dedo contra todo mundo, não ficou muito bem.

Ao aceitar a Justiça, Moro só fez uma exigência: atrair o Coaf para o seu ministério. Assim foi feito no início, mas ele depois não só perdeu o Coaf como agora, como informa a repórter Thais Arbex, pode perder o seu escolhido para comandar o órgão, Roberto Leonel, auditor da Receita que participou diretamente da Lava Jato e atua há décadas em lavagem de dinheiro a partir de Curitiba.

Então, ficamos assim: o Coaf sai da Justiça, Dias Toffoli corta as suas asinhas ao bloquear os processos com base em seus achados e Bolsonaro completa o serviço trocando o chefe do órgão, parceiro de Moro. É isso mesmo? O Coaf, que tanta importância deveria ter assumido com Moro na Justiça, só vai minguando... E, com ele, a Lava Jato e o próprio combate à corrupção em suas diferentes frentes e diferentes dimensões.

Amazônia. Bolsonaro diz que os dados do Inpe sobre desmatamento “denigrem a imagem do Brasil lá fora”, mas muita gente boa acha que quem denigre é o próprio Bolsonaro, ao querer esconder a verdade, anunciar mineração americana em terras indígenas, cortar cabelo na hora da audiência a um ministro da França, demitir em seu próprio favor o fiscal que cumpriu seu dever ao multar pesca em área proibida e, enfim, ao dar tantos passos retrógrados numa área em que o Brasil é superpotência: o meio ambiente. A verdade dói, a mentira destrói.


Eliane Cantanhêde sexta, 02 de agosto de 2019

UFA! UM GOL DO JAIR!

 

Ufa! Um gol do Jair

Brasil seguiu a política e o bom senso ao ceder e salvar o parceiro Benítez no Paraguai

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

02 de agosto de 2019 | 03h02

Logo, há a aproximação histórica, a questão de oportunidade e vários interesses conjunturais e estratégicos. Além das incontáveis empresas brasileiras que se instalam no Paraguai – graças às condições muito mais camaradas para os negócios – o Paraguai é, nada mais, nada menos, o país que mais cresce na América do Sul nos últimos 15 anos. O Brasil patina e passou por dois anos de recessão, enquanto o vizinho cresce à base de 4,5% ao ano. 

 

Jair Bolsonaro
 
O presidente da Republica Jair Bolsonaro, durante lançamento do programa Medicos pelo Brasil, no Palacio do Planalto
Foto: GABRIELA BILO / ESTADAO

Para completar, o Mercosul, que acaba de fechar um acordo histórico com a União Europeia, é formado por quatro membros plenos e, em três deles, há obstáculos, reais ou possíveis, para a implementação das medidas.

No Brasil, Bolsonaro não para de criar atritos desnecessários com os europeus, a ponto de desmarcar de última hora a audiência com o ministro de Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drien. Pior: alegou problemas de agenda e na mesma hora gravou um vídeo cortando o cabelo. Na diplomacia, isso é um tapa na cara.

Na Argentina, o presidente Maurício Macri vai enfrentar uma eleição difícil em outubro. E se ele não for eleito e o peronismo voltar? O Uruguai navega com mais facilidade, mas o Paraguai ganhou força e poder de negociação pelo pragmatismo, política econômica bem-sucedida e estabilidade política. Já imaginaram se Benítez passa por um processo de impeachment e cai? Seria uma tragédia para o pequeno país, má notícia para o Mercosul e um tranco nas negociações com a UE.

Com o país crescendo e a demanda de energia obviamente aumentando, os paraguaios simplesmente usam todo o excedente de Itaipu Binacional e ainda abocanham uma parte da cota garantida do Brasil – e com o mesmo preço camarada do excedente. Assim, o Brasil poderia ter batido o pé e exigido seus direitos, mas foi sensível à complexidade envolvida.

O acordo anulado ontem era justo e tanto o Brasil exigiu quanto o Paraguai admitiu, por saber disso. E por que o acordo foi secreto? Porque o governo Benítez cometeu o grave erro de esconder a negociação para tentar fugir da velha pressão de parte da sociedade paraguaia, especialmente da esquerda, que acusa o Brasil de “imperialista” e insiste há décadas que os paraguaios são sempre lesados. Nada mais falso. Não estavam, não estão.

Diante da decisão do Brasil de ceder, da anulação do acordo e da reabertura das negociações, ganham o governo Benítez, Itaipu, o Paraguai, o Brasil, os “brasilguaios”, o Mercosul e a implementação do acordo com a UE. É melhor para todos manter Benítez no governo.

Aqui vai, porém, uma advertência: isso não significa que o Brasil vá ceder em tudo e voltar ao que era. O que foi prometido pelo governo, e será exercitado, é “flexibilidade nas propostas, mas firmeza nos argumentos”. Ou seja, o Brasil cedeu para ajudar Benítez, mas nem por isso abdica de defender seus interesses.

Não seria nada mal se essa postura pragmática e de bom senso se repetisse nas relações com o resto do mundo e, principalmente, nas declarações do presidente Bolsonaro. Mas, aí, já é pedir demais...


Eliane Cantanhêde terça, 30 de julho de 2019

RÉQUIEM PARA OS ÍNDIOS

 

Réquiem para os índios

Bolsonaro critica o interesse da Europa na Amazônia, mas abre mineração em reservas aos EUA

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

30 de julho de 2019 | 03h01

O mesmo presidente Jair Bolsonaro que definiu o Brasil como “uma virgem que todo tarado quer” é o que, agora, confirma publicamente sua disposição de fazer parcerias nos Estados Unidos para explorar minério em terras indígenas da Amazônia, particularmente a ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. O governo vai entregar a virgem para os tarados? Ou os tarados são só os países europeus?

O discurso de Bolsonaro é um para a Europa, outro muito diferente para os EUA. Ao falar sobre meio ambiente, desmatamento da Amazônia, reservas ecológicas, terras indígenas e quilombolas, ele inevitavelmente mistura um tom agressivo com pitadas de sarcasmo: o diretor do Inpe é mancomunado com ONGs estrangeiras e os europeus só defendem a preservação da Amazônia para depois explorá-la. “Na cabeça dos europeus, a Amazônia não é do Brasil.”

É curioso que, nos tempos dos militares no poder, o temor do olho gordo sobre a maior floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo não era por causa dos europeus, ou, pelo menos, não era principalmente por causa deles, mas, sim, dos irmãos do Norte, dos americanos. Na “nova era” de Bolsonaro, o tarado mudou.

 

 
E os índios? Doido para criar “uma Cancún” em paraísos ecológicos e crítico da “psicose ambiental” que assola Alemanha, França, Noruega, Suécia..., o presidente acha que “índios em reservas são iguais a animais em zoológico” e o que eles querem mesmo é “internet, médico, dentista, banho com sabonete...” Bolsonaro, aliás, disse ontem que não há “indícios fortes” de que um cacique wajãpi tenha sido assassinado por invasores no Amapá. Uma declaração que só piora as coisas. 

O primeiro anúncio da disposição do governo brasileiro de abrir a mineração em reservas indígenas foi feito pelo ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, numa palestra no Canadá. Na época, houve surpresa. Agora, é o presidente quem dá a coisa com certa. Isto é: se o Congresso deixar.

Constituição é clara ao defender os “direitos originários” dos índios sobre suas terras. Para abrir a exploração mineral, agrícola ou de qualquer natureza em reservas ianomâmi, Raposa Serra do Sol e tantas outras, é, ou será, preciso emenda constitucional, com quórum qualificado e votação em dois turnos na Câmara e no Senado. E há questões externas.

Ontem, em Brasília, o chanceler Ernesto Araújo acertou com o ministro de Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drian, a criação de um grupo de trabalho para trocar informações sobre... meio ambiente. Diplomaticamente, como convinha, Le Drian falou da importância, “além do cumprimento do Acordo de Paris, também do respeito a normas ambientais e sanitárias”. E Araújo prometeu um fluxo de informações “precisas e científicas”. Com Bolsonaro jogando descrédito sobre o Inpe, o Ibama e o ICMBio, fica difícil, ministro.

Detalhe: ao falar sobre parcerias com americanos para explorar minérios em reservas indígenas, o presidente voltou a defender a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro, o “03”, como embaixador em Washington: “Por isso minha aproximação com os EUA, por isso quero uma pessoa da minha confiança para a embaixada”. Entenderam?

OAB. É inacreditável o ataque ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, desrespeitando a dor de um filho e a memória de um pai, Fernando Santa Cruz, que, preso pela ditadura militar, integra a lista macabra de “desaparecidos”. Governadores, parlamentares, acadêmicos e pessoas comuns reagiram com espanto e repulsa ao jogo sujo político. Mas Felipe reagiu como ser humano, acusando Bolsonaro de “traços de caráter graves: crueldade e falta de empatia”.


Eliane Cantanhêde domingo, 28 de julho de 2019

COMPETIÇÃO MACABRA

 

Competição macabra

Agosto, mês das bruxas na política, vem aí com o País, Moro e Greenwald na fogueira

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

28 de julho de 2019 | 03h00

Ao trocar a condição de juiz pela de ministro da Justiça de Bolsonaro, Sérgio Morotransformou a própria vida num inferno e agora combina, perigosamente, as condições de vítima, suspeito e chefe das investigações sobre o ataque aos celulares de autoridades dos três Poderes da República. A competição é macabra: quem é mais vítima, quem é mais criminoso.

 

Moro, PF, MP e governistas descarregam as baterias em Glenn Greenwald, que divulga os diálogos no site The Intercept Brasil, mas miram mesmo é nos responsáveis políticos e estão se aproximando do PT, principalmente com a revelação de que Manuela D’ Ávila (PCdoB), vice de Fernando Haddad (PT) em 2018, foi a intermediária entre hackers e Greenwald.

 

SERGIO MORO
 
O ministro da Justiça Sérgio Moro Foto: SERGIO LIMA/AFP
 

Já o PT, o PDT, boa parte do Congresso e até ministros do Supremo aumentam a pressão sobre Moro, seja pelo “Lula livre”, por serem eles próprios alvos da Lava Jato ou simplesmente por terem uma visão mais rígida da Justiça, contrária aos métodos da operação.

Eles, que já condenam os diálogos vazados entre Moro e Deltan Dallagnol, ganharam munição pesada com três erros formais do ministro: demonstrar que teve acesso a informações sigilosas da Polícia Federal, ao avisar os atingidos; anunciar que o material hackeado seria destruído, o que seria em seu próprio benefício; endurecer o processo de expulsão de estrangeiros justamente no meio da tempestade envolvendo o americano Greenwald.

Há justificativas para esses erros. Afinal, é hipocrisia do PT e do PDT considerar “espantoso” Moro ter acesso a dados de investigação da PF, vinculada à Justiça. O ex-ministro José Eduardo Cardozo, do PT, não tinha? Além disso, Moro diz que não viu a lista nem os diálogos hackeados, só soube das principais autoridades atingidas e cumpriu seu dever de avisá-las, a começar do presidente da República.

Ao falar em destruição das conversas, a sensação que passou foi de que ele está louco para incinerar seus próprios diálogos, quando era juiz e ícone da Lava Jato. Como a PF tratou de corrigir, só a Justiça pode destruir material que possa servir de prova em processos. Em favor de Moro, pode ter sido só um escorregão, uma fala impensada.

Quanto ao processo contra estrangeiros, a primeira reação foi fortemente negativa, no pressuposto de que visaria a deportação de Greenwald, o, digamos, algoz do ministro. Mas, como Moro diz, e comprova com os termos da decisão, ela não tem nada a ver com o americano, que, segundo ele, “nem é investigado”. Os alvos, alega, são os suspeitos de terrorismo e de tráfico de drogas. Mas podia ficar para depois, ministro. Evitaria mais lenha na fogueira.

O fato é que o Brasil não está dividido só entre direita e esquerda, mas entre os que querem crucificar Moro e os que tentam trucidar Greenwald e chegar ao PT. Quem não pretende nem uma coisa nem outra, só quer a verdade, deve ver, ouvir, ler e refletir sobre tudo com muita atenção. Por trás de cada grupo, há interesses e intenções muitas vezes políticas, outras tantas ainda mais complexas.

Como fato, a oposição a Moro está a mil por hora. No Congresso, alvos da Lava Jato ou amigos de Lula armam a convocação do ministro para depor e há quem fale até em CPI. No Supremo, os “garantistas” avessos aos métodos do juiz Moro e agora críticos às ações do ministro Moro têm um instrumento à mão: o pedido de suspeição dele em processos contra Lula. Agosto vem aí fervendo.

O Planalto, que mantinha prudente distância até ontem, quando Bolsonaro previu “cana” para Greenwald, defende enquadrar os hackers na Lei de Segurança Nacional, ou seja, tratá-los como terroristas e espiões que ameaçam a República. Eles, porém, são peixes miúdos nessa guerra.


Eliane Cantanhêde sexta, 26 de julho de 2019

REPÚBLICA DOS HACKEADOS

 

República de hackeados

Vale tudo: com Brasília em polvorosa, vem aí uma guerra de acusações e versões

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

26 de julho de 2019 | 03h00

É uma grosseria ultrapassada tentar ainda hoje atingir o Brasil com o carimbo de “Republiqueta de Bananas”, mas parece bem atual considerar o País uma “República de Hackeados”. Nem o presidente da República foi respeitado, imagine-se o resto. E, assim, Brasília está em verdadeira polvorosa.

Naquela época, a motivação parecia econômica, comercial, diplomática. Hoje, os “grampos” evoluíram para “hackeamentos” e a invasão de celulares até do presidente Jair Bolsonaro tem um outro viés. A motivação pode ser pura ganância, mas o uso não tem nada a ver com negócios. Logo, pode ter sido político. Ou não.

 É como a gente diz, a cada surpresa, a cada espanto: a realidade supera a ficção. Estamos vivendo numa sessão ininterrupta de cinema, intercalando filmes policiais, dramas e comédias pastelão, enquanto milhões de desempregados estão na rua da amargura e há uma guerrinha ideológica insana, quase infantil, entre uma esquerda acuada, deslocada da realidade, e uma direita simplória, mas ousada, cheia de si.

Quando hackers têm a audácia de violar os celulares e as conversas do presidente da República, dos presidentes da Câmara e do Senado, da procuradora-geral da República, de ministros do Supremo e do STJ, dos ministros da Justiça e da Fazenda, da líder do governo no Congresso... A gente começa a pensar que tudo é possível. No início das investigações, a PF tinha certeza de que o alvo era a força-tarefa da Lava Jato. Como se vê, vai muito além.

A biografia dos quatro criminosos presos não é animadora. Não se trata de gênios da informática que atuam no ambiente internacional, nem de uma quadrilha sofisticada a serviço de governos ou grandes corporações. Ao contrário, os chefes de Poderes, as instituições, talvez as posições estratégicas e até questões sigilosas de Estado, podem, em tese, ter ficado à mercê de uma gangue cibernética de fundo de quintal. Vulnerabilidade inadmissível.

Walter Delgatti, o “Vermelho”, que parece ser o chefe e mentor das operações criminosas, é um bandidinho com ficha policial manjada: roubo, estelionato, falsidade de documentos. Os demais movimentam volumes de dinheiro incompatíveis com suas rendas oficiais. Todos são uns simplórios, mas capazes de atacar o centro do poder federal e deixar muitas dúvidas.

Que uso Delgatti e seus comparsas poderiam fazer desse material, que era colhido e em seguida publicado em parte? Nem econômico, nem comercial, nem diplomático. O único objetivo, portanto, era vender o material todo a quem interessar pudesse. Quem?

É exatamente nesse ponto que se misturam e se confundem perigosamente as versões, inclusive tentando aproveitar a confusão e o medo para adicionar o ingrediente político-partidário e jogar o PT no meio da fogueira. Cuidado com isso! É cedo para conclusões.

É fato que os quatro presos são peixes muito miúdos para serem os únicos ou mesmo os maiores responsáveis por um ataque com esse grau de gravidade, atingindo os três Poderes. Mas, por enquanto, não dá para concluir se agiram por conta própria para depois vender ou repassar para interessados, ou se, muito diferentemente, receberam uma encomenda de grupos dispostos a botar fogo no circo, implodir as instituições, gerar uma crise.

Meus caros e caras, Brasília está de pernas para o ar e, até a conclusão das investigações, preparem-se para um festival de versões e acusações mútuas. Estamos em plena República dos hackeados. Vale tudo.


Eliane Cantanhêde terça, 23 de julho de 2019

PARAÍBAS E MELANCIAS

 

‘Paraíbas’ e ‘melancias’

Bolsonaro contra institutos, governadores, conselhos, fundações e mais um general

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

23 de julho de 2019 | 03h08

Nas democracias, líderes políticos e governantes devem ter relações institucionais e ampliar contatos, interlocutores e aliados. O presidente Jair Bolsonaro faz justamente o oposto: ele parece determinado a confrontar e irritar todo mundo que não pensa exatamente igual a ele. Uns são “paraíba”, outros são “melancia”, e só ele sabe o que é bom para o País. Isso não soma, só divide e acirra os ân

Na versão do governador, que é do PT, Bolsonaro “excluiu o povo” e transformou a festa numa “reunião político-partidária” com os seus apoiadores, com uma claque organizada. De 300 convites, só 70 teriam sido para o governo local. Rui Costa decidiu não ir e gravou um vídeo de desagravo

Bolsonaro também partiu para cima do general da reserva Luiz Rocha Paiva, que considerou “antipatrióticas e incoerentes” suas manifestações sobre os nordestinos. Segundo o presidente, na tréplica, o general não passa de um “melancia”. Sabem o que é isso? É um militar com a farda verde por fora e alma vermelha por dentro. Ou seja, um militar de esquerda. Ou o general se irritou ou deve ter dado muita gargalhada. E não só ele...

O diretor do Inpe, Ricardo Galvão, é outro que entrou na mira e não abaixou a cabeça. Depois de desqualificado publicamente por Bolsonaro, como se estivesse “a serviço de ONGs”, ele avisou ao Estado que não vai se demitir e classificou a atitude do presidente de “pusilânime e covarde”. E o que será que a Ancine e a turma ativa e organizada do cinema andarão aprontando para se defender dos ataques palacianos?

As investidas do presidente, porém, não param por aí e agora não são mais só de tempos em tempos, mas de horas em horas. Ontem, ele voltou as baterias novamente para os conselhos, tão essenciais para a troca de experiência, o debate, o contraditório e, principalmente, a definição de políticas públicas. E atingiu um em cheio: o de políticas sobre drogas, o Conad.

O Supremo já decidiu em junho, por unanimidade, mas provisoriamente, que o presidente não pode extinguir por decreto conselhos que foram criados por lei, ou seja, com aval do Congresso. Mas Bolsonaro manteve exatamente o mesmo discurso de antes, avisando que vai enxugar os conselhos e extinguir “a maioria” deles. É até possível que haja excesso de conselhos, mas o corte de Bolsonaro tem motivação particular: é um corte ideológico.

Detalhe: ele é o presidente que mais governa via decretos, só atrás (ainda) de Collor. Decretos entram em vigor imediatamente, dispensando aval de Câmara e Senado. Têm, pois, menos força do que projetos de lei. E são mais autoritários.

Após submeter o ministro Sérgio Moro ao constrangimento de desconvidar a pesquisadora Ilona Szabó para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Bolsonaro acaba de excluir do Conad os especialistas que lidam com drogas no cotidiano: jurista, médico, psicólogo, assistente social, enfermeiro, educador e cientista. Um espanto!

É assim que, depois do Inpe, Ancine, IBGE, FioCruz, Ibama, ICMBio, Funai e universidades, Bolsonaro atrai contra si chuvas e trovoadas da OAB, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (a emblemática SBPC) e dos conselhos de Medicina, Psicologia, Serviço Social, Enfermagem e Educação. Já imaginou se o saque do FGTS for só de R$ 500, conforme antecipou o Estado?


Eliane Cantanhêde domingo, 21 de julho de 2019

NONSENSE

 

Nonsense

Bolsonaro se suplantou com uma série de erros e declarações chocantes

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

21 de julho de 2019 | 05h00

Por onde começar? A fome no Brasil é uma “grande mentira”, a tortura da Miriam Leitão também, o desmatamento idem. E temos “filtro cultural”, o “programa” do FGTS, a multa de 40%, os governadores “paraíba”, “vou beneficiar meu filho, sim”, a embaixada nos EUA como filé mignon e, além da fritura de hambúrguer, a entrega de pizza... Ufa! Sempre muito inspirado, o presidente Jair Bolsonaro se suplantou na semana passada. O Brasil amanheceu no sábado de ressaca. 

Segundo o presidente da República, brasileiros passando fome é “uma grande mentira”: “Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com o físico esquelético como se vê em outros países”. Foi tão chocante quanto a defesa do trabalho infantil e, novamente, foi o próprio presidente quem tentou se corrigir mais tarde, admitindo, a contragosto, que “uma pequena parte” da população passa fome.

Ele, porém, não corrigiu os ataques à produção audiovisual no Bra

O governo vai parar de financiar “filmes pornográficos”, instituir “filtros” na cultura e enaltecer “heróis nacionais”. Ai, que medo! Bolsonaro vai assumir pessoalmente o controle da produção cultural, trocando o que considera “pornográfico” por seus próprios valores – talvez, quem sabe, por filmes evangélicos... E o que entende como “herói”? Brilhante Ustra, como Pinochet e Stroessner? Do outro lado, estão os “mentirosos”, como a brilhante jornalista Miriam Leitão, torturada aos 19 anos, grávida.

 

Jair Bolsonaro
 
O presidente Jair Bolsonaro durante solenidade no Batalhão da Guarda Presidencial, em Brasília.
Foto: Marcos Corrêa/PR

E a mania do presidente de desqualificar as pesquisas dos nossos melhores institutos e fundações? Depois do IBGE, da Fiocruz, do ICMBio, do Ibama, entre outros, é a vez do Inpe, pelos dados do desmatamento: “Parece até que está a serviço de alguma ONG”, acusou, e logo para jornalistas estrangeiros. Lá vem punição! As ONGs, aliás, são outro alvo permanente dos Bolsonaro.

Milhares, ou milhões, se frustraram com o “adiamento” da liberação de contas ativas do FGTS, mas a história é simples.

Bolsonaro achou a ideia bacana (é mesmo) e jogou no ar. Casa Civil, Economia, CEF, empreiteiros, todos levaram um susto. Dessa vez, foi Onyx Lorenzoni o destacado para consertar o erro do presidente e avisar, antes da solenidade dos 200 dias de governo, que não ia ter anúncio nenhum sobre o FGTS.

Liberar os saques é só uma ideia. Para uma ideia virar programa, é preciso fazer contas, traçar metas, porcentuais, cronograma e os detalhes operacionais, além de combinar com os “russos”: o setor de construção, que depende das linhas de financiamento da CEF para casa própria, inclusive o Minha Casa, Minha Vida. Segundo Onyx, o anúncio será na próxima quarta-feira. Será mesmo?

No embalo, o presidente também manteve o desequilíbrio: sempre protege o empregador, coitado, mas desdenha do trabalhador, esse ganancioso. Assim, criticou a multa de 40% do FGTS para as demissões sem justa causa. Em seguida, como quem se flagra falando demais, ressalvou que “a ideia ainda está em estudo”. Desse conserto, Onyx se livrou. 

O que dizer das declarações sobre Eduardo Bolsonaro – que, além de fritar hambúrguer, também entregou pizza – para Washington? “Pretendo beneficiar meu filho, sim. Se eu puder dar um filé mignon para meu filho, eu dou.” Alguém precisa ensinar ao presidente uma diferença: qualquer um pode comprar filé para a família, mas um presidente não tem o direito de nomear o próprio filho, e só por ser seu filho, para a mais importante embaixada no mundo. Família é família, Estado é Estado. Elementar, meu caro Watson!

Quanto aos governadores “paraíba”, por favor: ideologia, ideologia; questões institucionais à parte. E mais: toda a solidariedade e admiração ao lindo Nordeste e ao querido, acolhedor e batalhador povo nordestino. Dúvida: o general Augusto Heleno acha mesmo tudo isso normal?


Eliane Cantanhêde sexta, 19 de julho de 2019

ACORDÃO CONTRA O COAF?

 

Acordão contra o Coaf?

Se não investiga e não pode dividir seus dados com o MP, para que serve o Coaf?

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

19 de julho de 2019 | 03h00

Ao suspender processos e procedimentos de investigação com base em dados do Coaf, da Receita e do Banco Central, o ministro Dias Toffoli acionou uma rede não só de críticas, mas também de suposições. Some-se a decisão de Toffoli às investidas contra o procurador Deltan Dallagnol e temos um ataque organizado à Lava Jato? Ou melhor, ao combate à corrupção?

Indicado pelo ex-presidente Lula para o Supremo, Toffoli foi advogado do PT e é amigão do ex-ministro José Dirceu, condenado tanto no mensalão quanto no petrolão. E sua decisão de agora beneficiou diretamente Flávio Bolsonaro, senador do PSL e filho “01” do presidente Jair Bolsonaro.

Logo, a pergunta que passou a circular por corredores e gabinetes é se, enfim, está vingando um acordão. Se houve um do PT com setores do MDB, PSDB, PP, PTB... não chegou a lugar nenhum e a Lava Jato continuou firme e forte. E se envolver até o “01”? 

Se a resposta for não, melhor para o combate à corrupção e para o País. Se for sim, pior para a depuração das instituições, a Lava Jato, seus protagonistas e as investigações. Podem comemorar os investigados e os já condenados, no setor público (governadores, prefeitos, deputados, ministros e até presidente da República) e no privado (empreiteiros, banqueiros, altos executivos das grandes companhias).

Depois de a procuradora-geral, Raquel Dodge, órgãos de procuradores, as forças-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Rio e São Paulo e a cúpula da Operação Greenfield, do DF, manifestarem espanto e preocupação com a medida, Toffoli alegou a “defesa do cidadão”. O temor é de que seja em defesa de suspeitos e alvos de investigações, a torto e a direito, ou da esquerda à direita.

A “preocupação” de Raquel e de todos os demais é que a decisão de Toffoli seja o maior recuo em todos os cinco anos da Lava Jato e o maior presente para corruptos e criminosos de toda espécie, com repercussão negativa até internacionalmente.

O pivô da crise é o Coaf, órgão de inteligência financeira que identifica movimentações de grandes volumes de dinheiro e é fundamental para combater corrupção e lavagem de dinheiro. Ao aceitar um ministério, o então juiz Sérgio Moro, estrela da Lava Jato, pediu a Bolsonaro que mantivesse o Coaf na Justiça. Foi, saiu, voltou, saiu de novo. Agora, o próprio Coaf está sob forte ameaça. Se não investiga e se não pode municiar os órgãos de investigação, para que ele vai servir?

Tentando consertar o desastre, Toffoli explicou ontem que o Coaf pode continuar enviando ao Ministério Público “dados genéricos” e “o montante global” das contas que fizerem movimentações atípicas, fora do padrão daquela conta e do patrimônio do seu dono. O que não pode, disse ele, é o Coaf, a Receita e o BC fornecerem “informações detalhadas” aos investigadores, sem aval da Justiça. Ah, bom!

No caso em foco, envolvendo Flávio Bolsonaro, foi o Coaf quem detectou e comunicou ao MP os “dados genéricos” e o “montante global” da a movimentação de R$ 1,2 milhão do tal Queiroz, o motorista do gabinete do “01” na Assembleia Legislativa do Rio. Abertas as investigações, começou a fazer sentido: os funcionários do gabinete depositavam parte dos seus salários na conta do agora sumido Queiroz.

Ao criar problema para o “01”, o Coaf passou de caçador a caça, agora com um precioso apoio, a decisão monocrática do presidente do Supremo. A previsão de julgamento pelo plenário é em... novembro!

Será que o “pacto” entre Executivo, Legislativo e Judiciário era isso? Um acordão? Eu te protejo, tu me proteges, todos nós nos protegemos. E Flávio se dá bem.

Aliás, o que Moro achou da decisão de Toffoli? E das manifestações das forças-tarefa da Lava Jato?


Eliane Cantanhêde terça, 16 de julho de 2019

EXERCÍCIO DE PACIÊNCIA

 

Exercício de paciência

No olho do furacão, Dallagnol mantém sua agenda, com duas palestras em agosto

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

16 de julho de 2019 | 03h00

No escuro, porque nunca tiveram acesso às conversas do Telegram obtidas ilegalmente, o governo e a cúpula da Lava Jato avaliam que o pior já passou para o agora ministro Sérgio Moro, mas ainda temem o que pode surgir de comprometedor envolvendo procuradores, particularmente o dono do celular e responsável pelo descuido, Deltan Dallagnol. Por ora, eles continuam apreensivos e na defensiva.

Ele e seus companheiros de Lava Jato e de Ministério Público se esforçam para dizer que ali não há nada demais. Primeiro, porque não foi criada empresa nenhuma. Depois, porque o Conselho Nacional do Ministério Público já liberou palestras de promotores e procuradores, sejam remuneradas ou de graça. Não há ilegalidade na prática, portanto.

 Dallagnol, aliás, tem duas palestras marcadas para agosto, ambas em Curitiba, sede da Lava Jato, e sobre combate à corrupção, a R$ 20 mil cada uma. No dia 1.º, no 23.º Congresso de Reprodução Assistida. No dia 25, no Congresso de Urologia. Segundo a rede de apoios a ele e à Lava Jato, um cachê será doado para a Associação Cristã de Assistência Social (Acridas) e o outro será usado na compra de sofisticado equipamento para o Hospital Universitário Cajuru.

As palestras já estavam marcadas bem antes da divulgação das conversas atribuídas a Dallagnol pelo site The Intercept Brasil. O procurador nem pode cancelá-las, porque assinou contrato, nem vê motivo para isso, apesar de os diálogos continuarem sendo divulgados, um atrás do outro, exigindo respostas.

Aliás, essas palestras nem são as primeiras que ele faz neste ano. Em 11 de maio, falou sobre seu tema recorrente – combate à corrupção – no Encontro da Cidadania, em Campos do Jordão (SP), e recebeu R$ 29,7 mil, que, segundo a mesma rede de aliados, repartiu entre três entidades: Fundação Lia Maria Aguiar, que promoveu o evento e tem projetos sociais de dança, música e teatro; Hospital Erasto Gaertner, de tratamento do câncer infantil, em construção; e ONG Amigos do Bem, que desenvolve projetos sociais no sertão nordestino.

Dallagnol, porta-voz e personagem mais polêmico da Lava Jato, até porque é o que mais se expõe, já tinha entrado no redemoinho por palestras pagas, quando, há uns dois anos, foi divulgada a informação – correta – de que ele cobrou R$ 219 mil por uma série de palestras. Na época, alegou que havia doado o dinheiro justamente para a construção do Hospital Erasto Gaertner, que confirmou oficialmente, em seu site, essa versão.

O principal, porém, é que o CNMP analisou o caso e concluiu que promotores e procuradores têm o direito de fazer palestras e dar cursos pagos, podendo doar ou simplesmente guardar o que recebem. Logo, não é por aí que vão “pegar” um dos símbolos da Lava Jato. Podem agastá-lo, podem desgastá-lo na opinião pública e no mundo jurídico, podem exigir explicações dia sim, dia não. Mas, por enquanto, isso se resume a um mar de constrangimentos e a um exercício: o da paciência. De concreto, que possa comprometer objetivamente sua atuação profissional, nada há.

Bolsonaro. Ao largo de tantos problemas, da economia sob risco de recessão e de milhões de desempregados, o presidente da República acaba de abrir mais uma frente de batalha: as taxas de Fernando de Noronha. Como já disse o deputado Marcelo Ramos, presidente da Comissão Especial da Reforma da Previdência na Câmara, há uma total falta de prioridades.


Eliane Cantanhêde domingo, 14 de julho de 2019

EDUARDO BIN BOLSONARO

 

Eduardo bin Bolsonaro

‘03’ nos EUA confirma que Bolsonaro governa em família, como se fosse dono do Brasil

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

14 de julho de 2019 | 03h00

Quando a então primeira-dama Marisa Letícia manchou o gramado do Palácio da Alvorada com uma vistosa estrela vermelha do PT, foi um Deus nos acuda e todos nós criticamos o presidente Lula e sua mulher por se comportarem como se fossem donos da residência oficial da Presidência.

A estrela vermelha era inadequada, mas flores num gramado são apenas um símbolo. Indicar o próprio filho para a principal embaixada do planeta não é só símbolo, mas uma decisão concreta que diz muito sobre o presidente e o governo.

 Quais as credenciais do deputado Eduardo Bolsonaro para ser embaixador, e logo em Washington, para onde vão os diplomatas mais experientes, preparados e reluzentes da carreira? Fez intercâmbio, fala inglês e espanhol, passou frio no Maine. Ah! E já fritou muito hambúrguer para os gringos.

Ele não cursou o Instituto Rio Branco e só passou em um concurso público: para escrivão de polícia. Segundo o embaixador Rubens Ricupero, ao Estado, “trata-se de uma medida sem precedentes em nossa tradição diplomática e na história diplomática de países civilizados e democráticos”.

Na verdade, coisa de paisecos e ditaduras, ou melhor, de uma ditadura, a da Arábia Saudita, onde o monarca nomeou seu filho Khalid bin Salman embaixador em Washington.

Bolsonaro, o pai, anunciou a demissão do embaixador Sérgio Amaral em março, às vésperas da ida aos Estados Unidos. Mas esperou quatro meses para lançar o nome do filho para a vaga. Por quê? O “menino” só completou na quarta-feira passada a idade mínima para assumir embaixadas. Fez 35 anos e o pai lançou seu nome para Washington no dia seguinte. Pela imprensa! Aliás, subvertendo uma praxe diplomática internacional, de anúncio só após o “agrément” do governo amigo.

Desde a eleição, o “03” já é mentor e executor da política externa, sob a influência do tal guru Olavo de Carvalho. Vetou nomes para chanceler, definiu a lista de candidatos, fez sabatinas com eles e se fixou em Ernesto Araújo (embaixador júnior, diga-se). Adivinhem quem manda?

Nos Estados Unidos, a estrela não foi o chanceler nem o embaixador. Foi Eduardo, o único na reunião bilateral do pai com Donald Trump. Nunca se viu algo assim. E ele se meteu nas articulações sobre a Venezuela, visitou o presidente da Hungria ao largo da embaixada do Brasil e nomeou o jovem olavista Filipe Martins como assessor internacional da Presidência da República, fechando o tripé da área externa.

Isso confirma o jeito de ser e de governar de Bolsonaro: com a família, os amigos e quem está próximo o suficiente para incutir ideias em seus ouvidos, como se as decisões de Estado e os planos de governo saíssem de papos no café da manhã ou em mesas de bar. “Cadeirinha é muito chato, né?” “Põe o menino lá.”

Daí a mania de armas e a perseguição a conselhos e ONGs, à filosofia e à sociologia, às políticas indígenas e de meio ambiente, aos radares e cadeirinhas, com loas ao trabalho infantil. E as pesquisas e dados científicos, essenciais para a definição de políticas públicas? As universidades? O IBGE? A Fiocruz? O Ibama? Os Denatrans?

O “03” foi o deputado mais votado da história, com 1,8 milhão de votos. Se for para Washington, perde-se um deputado, ganha-se uma dúvida: ele está sendo preparado para ser presidente? Uma dinastia Bolsonaro...


Eliane Cantanhêde sexta, 12 de julho de 2019

UM NOVO ULYSSES

 

Um novo Ulysses

Ulysses Guimarães foi o maior líder parlamentar; Rodrigo Maia vai no mesmo caminho

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

12 de julho de 2019 | 03h00

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sai da votação da reforma da Previdência com três troféus: é o principal responsável pela vitória, o maior defensor das instituições e o dono da pauta econômica no Congresso que vai retomar o crescimento do País.

Ulysses era um intelectual humanista, autor de discursos memoráveis e com personalidade reservada. Maia é um economista pragmático, que não arroga a condição de intelectual, não se fez conhecido por discursos sofisticados e tem um temperamento bonachão, simples, informal.

 Os dois, porém, têm em comum o talento para a política, a dedicação profunda ao Parlamento, a imensa capacidade de liderança e de fazer as coisas acontecerem. E mais: a defesa incondicional do Congresso, além de confrontar, cada um a seu modo e a seu tempo, os governos de plantão. Ulysses não dava sossego ao governo José Sarney. Maia é o maior defensor do Congresso diante dos ataques do governo Jair Bolsonaro. Aliás, do próprio Bolsonaro.

Até aqui – porque o céu é o limite para Rodrigo Maia – há um outro ponto em comum: apesar de todos os seus méritos e de seu invejável currículo, Ulysses jamais foi um político majoritário. Nunca disputou uma prefeitura, um governo, nem mesmo o Senado, e amargou um constrangedor sétimo lugar ao disputar a eleição presidencial de 1989, que foi no ano seguinte à Constituinte, com a vitória do jovem Fernando Collor de Mello, vendido ao eleitorado como “o caçador de marajás”.

Rodrigo Maia já tentou a prefeitura do Rio e foi um fiasco, já se insinuou como candidato à Presidência da República no ano passado, mas nem levou a aventura até o fim. Teria ele fôlego para se candidatar em 2022, contra o próprio Bolsonaro e contra o aliado João Doria, do PSDB?

Até lá, muita água vai rolar e Rodrigo Maia está obcecadamente empenhado em tirar o País da crise e de manter a independência do Congresso em relação ao Executivo. Bastou a aprovação em primeiro turno da reforma da Previdência na Câmara para ele já lançar a nova etapa: a reforma tributária. 

Ou seja: Maia quer que a Câmara mantenha o protagonismo e lidere a agenda nacional. Com um detalhe: enquanto Bolsonaro nunca fala diretamente na grave situação social brasileira, o presidente da Câmara deu muita ênfase, no seu discurso de quarta-feira, em atacar a pobreza e falou em tom de palanque: “As soluções (contra a pobreza) passam pela política”.

A inegável vitória de Maia, porém, não significa que Bolsonaro não terá bônus político pela aprovação da reforma da Previdência. Muito pelo contrário. Hoje, a festa é principalmente do presidente da Câmara. A médio prazo, o maior beneficiário político poderá ser Bolsonaro.

O discurso bolsonarista está pronto: todos os presidentes tentaram a reforma, mas só um está conseguindo... A seu jeito, sem o “toma lá, dá cá”, instalando a “nova política”.

Todos sabemos que não é bem assim, que Bolsonaro jogou a reforma na Câmara e lavou as mãos. Mas, em tempos de marketing e de redes sociais, a verdade não é a verdade, é a que querem que seja verdade.

EUA. Eduardo Bolsonaro na embaixada mais cobiçada do mundo é uma surpresa geral, mas, cá pra nós, tem tudo a ver com esse governo.


Eliane Cantanhêde terça, 09 de julho de 2019

LAVA-MÁFIA

 

Lava Máfia

Sob pressão, Moro comemora a ação impecável da PF na prisão de mafiosos italianos

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

09 de julho de 2019 | 03h15

Depois de anos de estranhamento, Brasil e Itália retomam as relações a todo vapor, principalmente no combate ao crime organizado, e comemoraram ontem o sucesso da operação da Polícia Federal que prendeu em São Paulo dois importantes líderes mafiosos, Nicola e Patrick Assisi, pai e filho, os “fantasmas da Calábria”.

 

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, e o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, comemoraram a operação impecável, o desfecho e a sinalização para brasileiros e para o mundo: “O Brasil não deve ser refúgio para criminosos”, declarou Moro. “O Brasil não é paraíso de mafioso”, disse Valeixo, sem precisar lembrar dos filmes estrangeiros em que o bandido, de camisa florida, foge, feliz, para o Brasil. 

Moro e Valeixo se reuniram com o procurador Antimáfia e Antiterrorismo da Itália, Federico Cafiero, que gravou vídeo recheado de elogios à PF brasileira. Bem... o fato de ser bem às vésperas da votação da reforma da Previdência no plenário da Câmara deve ser mera coincidência. Policiais da PF, da PRF, da Polícia Legislativa e da Polícia Civil pressionam o Congresso por uma aposentadoria camarada, equiparada à dos militares.

 Sob pressão, por conta dos diálogos com procuradores divulgados pelo site The Intercept Brasil, Moro estava todo saltitante ontem (na medida em que o contido Moro consegue ser saltitante), talvez por, enfim, inverter a pauta. Segundo ele, Nicola Assisi é “um dos maiores traficantes de cocaína do mundo” e a operação da PF foi impecável, merece todos os elogios.

Valeixo endossa: “Foram meses de trabalho, de levantamento, apuração, checagem”, contou, particularmente satisfeito porque seus agentes conseguiram driblar o sofisticado sistema de segurança dos dois mafiosos, surpreendê-los e prendê-los sem que tivessem tempo de correr para o esconderijo do apartamento. E sem troca de tiros, mortos e feridos.

Os alvos ocupavam três apartamentos duplex, com câmeras de monitoramento de última geração, e mantinham em casa um velho hábito de mafiosos na Itália: um cômodo com paredes reforçadas, antirruído e dissimuladas atrás de armários. Tinham, também, em torno de R$ 1 milhão, em dólares, euros e reais; 4 kg de cocaína pura e armas. Mas nada disso foi suficiente para escaparem da PF, que atuou em conjunto com a inteligência italiana.

Ao mover mundos e fundos para manter o terrorista Cesare Battisti no Brasil, contra a opinião de juristas e de pareceres do Ministério da Justiça e do Itamaraty, os governos do PT geraram irritação não apenas no governo e nas instituições italianas, mas também da própria opinião pública do país, sempre tão simpática ao Brasil e aos brasileiros. Os ventos mudaram, Battisti foi cumprir pena no país dele e os acordos e ações de cooperação deslancharam.

Vale dizer que, sem uma ampla e intensa rede de cooperação mundo afora, a PF e o Ministério Público jamais teriam conseguido ir tão longe na Lava Jato, rastreando contas, depósitos, desvios. Foi graças à troca de informações com EUA e países da Europa, da Ásia, do Caribe e da América do Sul que a operação reconstituiu, por exemplo, todo o complexo e tortuoso caminho dos reais, dólares e euros da Odebrecht.

Quanto mais globalizado o mundo, mais difícil fica para doleiros e mafiosos. Nicola Assisi, foragido desde 2014, passou por Portugal e Argentina antes de se instalar no Brasil. Sua extradição já está assinada. A Itália e o combate ao crime transnacional agradecem.

Sob o olhar preocupado das nações democráticas, pelas manifestações sobre meio ambiente, armas, radares, trabalho infantil, o Brasil ganha enfim boas manchetes na Itália. Não passou a mão na cabeça de criminoso, nem foi só para inglês ver.


Eliane Cantanhêde domingo, 07 de julho de 2019

FOCO NO SENADO

 

Foco no Senado

Enquanto Bolsonaro se atrapalha com filhos, armas, índios, é o Senado que vai pegar a reforma da Previdência para dar rumos à bagunça

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

07 de julho de 2019 | 03h00

Quanto mais se aproxima o recesso parlamentar e mais a reforma da Previdência avança na Câmara, mais os holofotes atravessam o Salão Verde do Congresso para se concentrar no Senado, que costuma ter políticos mais experientes e fazer menos barulho, mas já impôs três derrotas ao governo Jair Bolsonaro.

Alcolumbre é uma dupla surpresa. Assim como Bolsonaro se elegeu presidente da República como o anti-PT, ele se elegeu presidente do Senado como o anti-Renan Calheiros, graças ao apoio do chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, do baixo clero do qual fazia parte, da divisão do MDB e do racha das esquerdas (PT ficou com Renan). Ninguém dava um tostão pelo sucesso dele. Um engano.

 Apesar do apoio do Planalto, Alcolumbre não admite o desdém de Bolsonaro pela política e as instituições e assumiu, com Rodrigo Maia e Dias Toffoli, a trincheira da resistência. Continua próximo de Onyx, mas tem lado, o lado do Parlamento. Mesmo sendo um inexpressivo senador do distante Amapá, ou talvez exatamente por isso, ele circula bem na direita, na esquerda, entre governistas e oposicionistas, entre caciques e índios. Sabe ouvir, negociar, decidir.

Importante, porque o Senado será fundamental no segundo semestre e seu presidente está alinhado com a pauta liberal e a reforma da Previdência - que pode ser aprovada na Câmara em julho. Mas também está atento às questões indígenas, ambientais e de costumes, ameaçadas pelo novo governo.

Enquanto a Previdência não chega, o Senado busca alternativas para as pautas de Bolsonaro. Na Quinta-feira (4), uma sessão articulada pelo novato Alessandro Vieira (Cidadania-SE), delegado de carreira e relator do projeto das Armas, debateu um projeto digerível, que flexibilize mais a posse, menos o porte.

E é preciso cuidado com pautas do próprio Legislativo, como a que aumenta o repasse federal para o Fundo de Participação dos Estados (FPE), aprofundando o rombo da União. O autor é Lucas Barreto (PTB), do Amapá, como Alcolumbre, e famoso chef de cozinha. Toda semana, ele chega com um isopor cheio de camarões e de carne de búfalo do estado. Seus jantares são memoráveis. "Quem diz não para um projeto dele?", indaga um senador. Pode ser só brincadeira, mas o projeto que impacta as contas federais já passou pela CCJ e a pergunta passa a ser outra, nada engraçada: "Quem terá coragem de votar contra verbas extras para seu próprio estado?"

Quem entra em ação é Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder de um governo avesso ao Congresso, que desarticulou a rede de assessores parlamentares dos ministérios e cujo partido, o PSL, é cheio de novatos. Como Soraya Thronicke, autora de projeto exigindo que condenados paguem por sua estadia nas prisões. Presídios de três, quatro ou cinco estrelas?

O Planalto, assim como depende de Maia na Câmara, está na mão do independente Alcolumbre, do leal Fernando Bezerra, dos experientes Tasso Jereissatti, Esperidião Amin e Jarbas Vasconcellos, daqueles em ascensão, como Simone Tebet, e da oposição sensata, liderada por Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que até grita, mas não é radical e tem responsabilidade, inclusive com Lava Jato e Moro.

Enquanto Bolsonaro se atrapalha com filhos, armas, índios, santuários ecológicos e, pasmem!, até com trabalho infantil, é este Senado que vai pegar a reforma da Previdência a unha e, apesar de estar sob tiroteio da opinião pública, dar rumos à bagunça. Com Rodrigo Maia ainda no centro da cena.


Eliane Cantanhêde sexta, 05 de julho de 2019

BOLSONARO, O SINDICALISTA

 

Bolsonaro, o sindicalista

Presidente demitiu general por ‘agir como sindicalista’, mas lidera pressão de policiais

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

05 de julho de 2019 | 03h00

O presidente Jair Bolsonaro, que jogou a reforma da Previdência no Congresso e foi para o conforto da arquibancada, entrou em campo aos 45 minutos do segundo tempo, não para ajudar, mas para atrapalhar. Em vez de desestimular pressões corporativas, o presidente liderou a pressão de policiais.

A profissão de policial é, de fato, desgastante e perigosa num país conflagrado como o Brasil. E o que falar de médicos e enfermeiros de hospitais públicos? De lixeiros que carregam peso madrugadas inteiras, descendo e subindo em caminhões? E de trabalhadores em minas e outros locais insalubres?

 Por que os policiais são diferentes? Simples. Eles têm apoio do presidente, em quem sempre votaram no Rio, foram leais em 2018 e estão encastelados no seu partido, o PSL. Então, todos têm de dar sua cota de sacrifício, menos os amigões e a base de Bolsonaro.

Ao enviar ao Congresso uma proposta diferenciada para as Forças Armadas, o governo pôde pelo menos alegar que são condições muito específicas e a defasagem salarial vem de muitos anos. Na reta final da comissão, Bolsonaro ainda tentou equiparar as situações, alegando que os policiais “nunca tiveram privilégios”. Não é bem assim. Que outras categorias se aposentam aos 50 anos, com salário integral?

Os policiais federais, rodoviários federais e legislativos estavam, e estão, no papel deles de pressionar, brigar por condições especiais e bater em todas as portas. Quem vai à residência oficial do deputado Rodrigo Maia se depara, já na enorme mesa da sala de jantar, com várias pastas, separadas por temas. A maioria delas tem o carimbo de categorias de policiais. Mas Maia, o presidente da comissão, Marcelo Ramos, e o relator, Samuel Moreira, pensam no macro: se cedessem para uma categoria, seriam alvo fácil de todas. A reforma viraria pó.

Depois de atuar firmemente a favor da reforma e no fim criticar o primeiro relatório da comissão, o ministro Paulo Guedes saiu de campo, parou de dar entrevistas e foi para a arquibancada, de onde Bolsonaro jamais saiu durante toda a longa e sofrida negociação. O ministro aguentou firme e só voltou a se manifestar em público ontem, com a aprovação do relatório na comissão. Mas Bolsonaro fez o oposto. 

Distante, como se não tivesse nada a ver com isso, o presidente se recusou a liderar as negociações da reforma, empurrando todo o peso nas costas de Rodrigo Maia, e ainda continuou cutucando o Congresso e os políticos, enquanto eles faziam das tripas coração para aprovar algo fundamental para o País.

A reforma deve ser aprovada na Câmara, ainda em julho, e no Senado, no segundo semestre. E depois? Como será a relação do presidente com o Congresso, do qual, aliás, ele fez parte por inexpressivos 28 anos? 

Além de ter dois projetos rejeitados no Supremo, Bolsonaro já perdeu três vezes no Senado e retirou os decretos das armas para evitar a derrota na Câmara. É hora de o presidente recompor suas relações institucionais, para não enfrentar tempos difíceis pela frente. Mas não assim, abandonando a reforma da Previdência durante meses e entrando nela nos últimos dias – e na contramão, a favor do corporativismo que Guedes atribuíra à Câmara.

Por último, a posse do general Luiz Eduardo Ramos na Secretaria de Governo e a aprovação da reforma na Comissão Especial definem o destino do deputado Onyx Lorenzoni no governo. Se seguir o conselho do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, também do DEM, ele se demite, antes que seja demitido.


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