Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 28 de março de 2024

LARGA D*EU, MISERA! (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

LARGA D'EU, MISERA!
José de Oliveira Ramos

 

Hoje relembrei do personagem JOSELINO BARBACENA, vivido pelo ator carioca ANTÔNIO CARLOS PIRES no programa humorístico Escolinha do Professor Raimundo apresentado pela TV Globo e comandado pelo genial humorista cearense Chico Anysio.

Quem se identifica com as coisas e a vida do sertão, com certeza gostava da participação do Joselino Barbacena (Antônio Carlos Pires), logo na primeira fala, ao atender o chamado do Professor Raimundo:

– Ô meu Jesus Cristim! Já me descobriu aqui! Larga d´eu, miséra!

 

Joselino Barbacena na Escolinha do Professor Raimundo

Antônio Carlos Pires nasceu no Rio de Janeiro, a 1 de janeiro de 1927, e faleceu no mesmo Rio de Janeiro, a 28 de fevereiro de 2005. A partir dos anos 70, passou a atuar definitivamente na Globo. Foi nessa época que retornou às suas raízes humorísticas ao atuar em programas como Satiricom, Planeta dos Homens, Chico Anysio Show e Escolinha do Professor Raimundo. Neste último, onde atuou ao lado de antigos colegas como Chico Anysio, Grande Otelo, Zezé Macedo e Nádia Maria, interpretou seu personagem mais famoso, Joselino Barbacena, um aluno oriundo da cidade mineira de Barbacena que sempre tentava inutilmente se esconder do professor Raimundo. Atuou nesta de 1990 a 1994.

Em 1995, após dez anos longe dos cinemas, atuou em seu último filme: O Quatrilho, ao lado de sua filha Glória Pires.

Sofrendo do Mal de Parkinson, parou de atuar pela dificuldade em decorar textos. Em 2002, perdeu a capacidade de falar. Em 23 de dezembro de 2004 foi internado na Clínica São José, na cidade do Rio de Janeiro, onde faleceu em 28 de fevereiro de 2005, vitimado por uma infecção generalizada, aos 78 anos.

Antônio Carlos foi casado com a empresária Elza Pires, falecida no início da década de 1990, com quem teve duas filhas: a terapeuta Linda Pires e a atriz Glória Pires. Eles também fundaram o Instituto Casazul para pessoas idosas.” (Transcrito do Wikipédia)

 


A mania de assar castanha de caju

Pois é. Eu saí do sertão, mais propriamente do povoado onde nasci – Pacajus/CE – nos anos 50. Voltei por lá poucas vezes pois, quando saí, saí com a família toda e não tinha mais ninguém para visitar. Nem para nos suportar durante as férias escolares.

Até Vovó, que tinha o hábito de dar nomes próprios a alguns pássaros que afirmava lhe pertencerem, resolveu deixar a roça no passado e respirar novos ares. Hoje, com toda certeza, ares contaminados – contaminados de violência, contaminados de insensatez, contaminados de desemprego, contaminados de hipocrisia e, a grande maioria, matando as pessoas por asfixia.

Mas, hoje constato que, mais de meio séculos depois, o “sertão num saiu d´eu” – ô miséra, me deixa in paiz!

Quer me matar de saudade por causo de que?

E, uma das coisas boas do sertão, era sentar numa roda, pegar um pau e uma pedra ou coisa parecida e quebrar castanha de caju assada – aproveitando para comer mais que as que juntava numa cuia. E era naquele “trabaio” que a conversa fluía!…

 


 

 

um “caminho” d´água para afazeres domésticos

 

De manhã, ainda cugalo cantano, era meu seuviço ir no açude grande e pegar quatro caminhos d´água. Dois tonéis adaptados para serem carregados num jumento, se não garantiam a qualidade da água potável, pelo menos serviam para “dar de beber” aos animais domésticos que “não carecia” deixar sair de casa: patos, perus, galinhas, porcos.

Adispois dessa labuta, a próxima “brincadeira” era botar a enxada nos ombro e ajudar Vovô a apreparar as mandioca para a farinhada que aconteceria dali a dois meses.

 


Galinha à cabidela – prato top do sertão

 

Mas, o que num larga d´eu mermo, é a santa comidinha da roça, apreparada com carinho numa panela de barro e num fogão a lenha. Uma “galinha à cabidela”, cusangue da bicha aparado num alguidá de barro e, quando cozinhado, seuvido na mesa posta no chão (um surrão de palha, onde todos se assentavam ao redor).

Era, se não a comida dos deuses, o prato que garantia “posses e luxos” dos dias de domingos – mas só comia quem tivesse ido rezar na Santa Missa celebrada pelo Padre Gregório na Igreja Nossa Senhora da Piedade.

– Ô saudade disgramada. Larga d´eu, miséra!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quarta, 20 de março de 2024

GÊNERO – MASCULINO OU FEMININO? (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

GÊNERO – MASCULINO OU FEMININO?

José de Oliveira Ramos

A menina no balanço

 

Presidente, ou Presidenta?

Afinal, o que seria da raça denominada humana, se não fosse a resolutiva interferência da Natureza na designação das coisas que nos cercam, e que estão à nossa disposição?

Por que é prazeroso para a raça humana a “transgressão, o discordar, o contrariar ou até mesmo o querer fazer diferente”?

Depois de alguns anos convivendo com a República, até poucos dias atrás viemos experimentar a “diferença” de estar sentada na cadeira de maior autoridade eleita do país, uma mulher. Nunca isso acontecera antes. Pelo menos de forma direta ou legal (sic).

Pois, entre nós brasileiros, essas aberrações (conceito meu e assumo) linguísticas começaram a acontecer e ganharam terreno entre os seguidores dos métodos paulofreirianos. Criaram, no falar e na gramática, o exuberante “Presidenta”!

Aí eu digo o meu primeiro “arre égua”!

Hoje moro em São Luís. Não há como discutir isso em meio a tanta gente que aprova a mudança. Até por que, quando alguém vai se manifestar em público para uma plateia, inicia da seguinte forma:

– Bom dia para todos e para todas!

E sou obrigado a dizer o meu segundo “arre égua”!

Quer dizer que, quando alguém fala “todos”, está falando apenas com as pessoas do gênero humano masculino?

Não me perguntem por que, pois ainda não aprendi o suficiente, nem tenho lastro para responder, mas aqui em São Luís, quase ninguém fala o “ao invés de”. Fala: “em vez de”. Eu, nesse caso, já me acostumei, e também falo “em vez de”.

E aqui não cabe nenhum “arre égua”!

Aqui faço um registro, e digo que sou leitor e fã do paraibano Ariano Suassuna, usuário contundente das boas e bem faladas palavras, principalmente dos adjetivos. Nada contra quem desdenha e minimiza a importância disso.

Prefiro usar “baitola ou lésbica”, em vez de “gay”. Uma coisa ou outra, dará sempre no mesmo. Não vai mudar a prática apreciada por alguns, que hoje formam um grande contingente nesse país.

E é aqui que coloco que estão querendo nos empurrar goela à baixo, o termo “orientação sexual” para quem faz uma “opção sexual”. Está dito lá no nosso “Aurélio”, o que significa “orientar”, da mesma forma que também está escrito o significado de “optar”. Ambos são completamente diferentes no sentido.

Quem “orienta”, ensina. Quem “opta”, escolhe. Nessa vida pregressa que me permitiu chegar onde estou, nunca tive notícia de que alguém tenha orientado outrem a ceder generosa e prazerosamente o traseiro. Não há escola, tampouco professor(a) para isso. É uma questão de “opção”.

 

 

Balança e seus penduricalhos

 

E por que num bloco acima citei a palavra “Natureza”?

Porque, essa mesma “Natureza” se encarregou de nos mostrar a diferença entre os gêneros, quando nos apresentou o cavalo marinho, um dos poucos ou talvez o único capacitado “para parir filhos”.

Sem pretender entrar no mérito especial do ato sexual entre um homem e uma mulher, há um passeio teórico pela configuração da imagem da Santa Ceia, com Jesus Cristo no “centro”. Esse passeio teórico mostrou no filme (claro, uma obra de ficção!) “Código da Vinci”, que realmente existe um “espaço” mais aberto ao lado direito de Jesus Cristo, simbolicamente em forma de “cálice”. E o cálice, a gente sempre soube, é algo “receptivo”. É algo que recebe, embora também “ofereça” o acesso do visitante.

Na prática do sexo, a mulher “recebe” muito mais do que oferece. E não estamos falando no sentido de oferecer carinho, receptividade, disponibilidade. Estamos falando no sentido de oferecer penetração para o visitante. Trocando em miúdos: dá mais do que recebe. É o sentido simbólico do cálice.

Eis, no meu modo de entender, o sentido do gênero masculino ou feminino. Claro que não sou o dono exclusivo de nenhuma verdade.

Entretanto existem palavras que, “aparentemente” iguais, usadas na configuração masculina tem um sentido e significa realmente outra coisa, enquanto que, usada na configuração feminina identifica algo completamente diferente.

Veja que, impulsionado pelos ventos da saudade, do amor, da inocência infantil ou qualquer outro sentido que o ambiente queira dar, “o balanço” – objeto criado para o lazer prazeroso e poético – tem adjetivação diferente da “a balança” – objeto criado para medição de algo ligado ao comércio, ou, em poucos casos, à cobrança tarifária de impostos.

Ariano Suassuna, o genial, esteve sempre completamente certo. Não há sentido algum em querer mudar a obviedade.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 17 de março de 2024

NO MAR E NA TERRA (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

 
NO MAR E NA TERRA
José de Oliveira Ramos
 
 

Saber quantos somos hoje não é o mais importante, para alguns – os que produzem alimento e os que recebem impostos.

O que comeremos e onde viveremos num futuro não tão distante?

Moraremos na lua?

Comeremos o que?

Moraremos num celular, no “zap-zap” ou viveremos em algum e-mail?

Comeremos algum aplicativo?

Seremos alimentados via conexão USB?

Sei lá. Ninguém sabe.

Será que saberemos, um dia?

Mas, enquanto essas informações não nos chegam, tratemos de dois assuntos, hoje importantes para nós:

* * *

Ensopado de Tarioba

 

 

 

 

Tarioba pronta para preparar a moqueca ou o ensopado

 

Brigar em defesa da biodiversidade não é coisa nova. Não é apenas mais uma “mania passageira” como a tatuagem, o piercing ou tantas outras bobagens praticadas por pessoas que não têm muito o que fazer.

Defender o meio-ambiente é algo antigo. A diferença está apenas na gigantesca massificação da mídia e na velocidade em que tomamos consciência dos fatos. Mas, há coisas novas, sim. As ONGs e até algumas bastante radicais, como o Greenpeace, por exemplo.

Da mesma forma, sempre foi impossível conhecer e catalogar o que tem vida na Terra. Não é menos impossível fazer diferença entre o que é comestível para uns e/ou para outros. Países do Oriente comem (com acentuado deleite) cães e gatos. Outros países comem besouros, abelhas, tapurus – e nós, brasileiros, jamais faríamos isso.

Em compensação, comemos jacaré, camaleão (iguana), cassaco (mucura), teiú, muçum, porco do mato, raposa e até cobra. Da mesma forma, há países que não comem carne bovina e outros que preferem a carne suína.

O Brasil é um país de uma imensa costa marítima, que vai do extremo Norte no Estado do Amapá, fronteira com as Guianas, ao extremo Sul, com o Rio Grande do Sul, até fronteira com o Uruguai. Na parte oceânica, é brasileira a costa no Atlântico, por milhas e milhas. É imensa a quantidade de pescados e moluscos comestíveis (polvo, lula).

Quando estudamos Geografia do Brasil, estudamos de forma rápida os principais rios e, raramente, os seus afluentes. Esses são milhares. E esses são piscosos e servem para enriquecer a cadeia alimentar da população brasileira. Infelizmente, tanto no oceano quanto nos rios, a pesca ainda tem acentuado percentual de empirismo, embora os estados de Santa Catarina e Paraná estejam começando a “navegar” de forma mais desenvolvida e moderna, utilizando novas tecnologias.

Além disso, o Brasil é imensamente rico na qualidade e na diversidade de mariscos, todos de grande aceitação e uso na culinária, com alto valor nutritivo e qualidade aceitável para o comércio exportador.

No Maranhão, vamos além do caranguejo, camarão, mexilhões, siri e sururu. Ostras, sarnambis e tariobas têm larga aceitação, e já são oferecidos em grande escala nos restaurantes da capital e de outros municípios.

Foi no ainda acanhado e rústico Restaurante do Xico Noca, no ainda povoado da Raposa, que conhecemos e consumimos pela primeira vez o excelente “Ensopado de Tarioba”, preparado sem muitos condimentos ou temperos verdes, mas com imperdível molho grosso. Serve-se também como moqueca acompanhada de arroz branco, salada de batatas e/ou pirão.

É algo nosso, da cultura e da culinária maranhense, que precisa ser mais valorizado.

* * *

Baobá e suas raízes destruidoras

Se estivermos com sede, que diferença fará, para nos saciar, se a água é do rio ou do poço do pomar?

Qualquer água, não vai a nossa sede matar?

Li, faz tempo, e não quero lembrar aonde, que só devemos criar raízes se tivermos a possibilidades de produzir bons frutos.

A sombra, aos cansados, é um bom fruto – ainda que não a comamos. Pois, o fruto (ou a sombra) não é apenas aquilo que se come. O bom fruto é sempre o que se faz de bom. O bom resultado vindo da boa colheita.

No planeta do Pequeno Príncipe, de tão pequeno, não podia nascer nem frutificar o baobá, pois, a possibilidade da boa sombra era, ao mesmo tempo, a destruição do planeta pelas raízes. E, destruído o planeta, o que seria do pôr do sol?

O sol é bom, até na despedida de cada dia – pela certeza da volta no dia seguinte. É o sol que, um dia amadurecerá as uvas e estreitará a relação de amizade entre nós – eu, você, a terra e a raposa. Aí, juntos, na sombra, seremos um só.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 17 de fevereiro de 2024

DARCY RIBEIRO - O PROFETA (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

DARCY RIBEIRO - O PROFETA

 

Virgulino de Assis da Silva, já falecido, foi um caboclo agricultor dos bons, ali para as bandas das Queimadas, lugarejo onde este escriba nasceu. Com memória de elefante, lembrava o dia que havia plantado a batata doce, o milho, o feijão, e sabia perfeitamente quando deveria plantar as manivas da mandioca, e, mais ainda, quando estavam “no ponto” para produzir uma boa farinha. Se alguém pedisse para “fazer um O com uma quenga de coco”, ele não acertaria. Não sabia. Mas, era um gênio na agricultura e na praticidade das coisas do nosso sertão.

Era um homem bom, que nasceu para ser bom e fazer a bondade para os outros. Certo dia, sem que ninguém desconfiasse por quê, perguntou para a família se haveria algum problema, se ele quisesse mudar o nome. Queria ser chamado, a partir de então, de Miguel. É que ele descobrira que “Virgolino” era o nome de Lampião, que veio ao mundo para aporrinhar o sossego de muitos.

Claro que ele entendia que, se havia culpa, essa era do pai que, também analfabeto, ao registrar o filho no cartório, levou o nome anotado num papel de embrulho: “Virgulino” e não “Virgolino”. E, “Virgolino” virou “Virgulino”.

Pois, faz muito tempo, foi Virgulino (ou Miguel), quem vaticinou que, “fio da gente, cagente faz e a mulé bota no mundo, é a gente que bota no cabresto”. Traduzindo para a linguagem mais atualizada – a única que os teóricos conhecem! – e compreensível: educação é dada e feita em casa. Dentro das quatro paredes, e com “limites” forçados, se forem necessários. Peia, melhor dizendo – também para os teóricos entenderem.

E, repetimos e continuamos defendendo a teoria de Virgulino: essas coisas que continuam acontecendo por aí, nos presídios brasileiros, todas elas, sem exceção, começaram dentro de casa. Começaram com as mães e os pais super-protetores, que trocaram uma “imposição de limites” por um blá-blá-blá que jamais resolverá coisa alguma. Assuma sua culpa. Assuma dignamente sua responsabilidade. Com certeza, entre aqueles muitos que ali estão, nas rebeliões, existem muitos que deveriam ter apanhado em casa, dos pais – mas escutaram apenas o blá-blá-blá de gente que nunca pariu um filho pela vagina, para sentir a dor do parte. Foi tudo parto cesáreo e, agora, muitos sustentados pelos “bolsas isso” ou pelas leis “rouanets” da vida.

Repito (mais uma vez, até porque não é pecado): isso também é a culminância do mundo capitalista que, entrando na sua casa, impôs a “mentirosa necessidade” de estar sempre aumentando a renda familiar. E, para essa renda familiar aumentar, para atender aos chamamentos capitalistas (consumo exagerado, propriedade, ter sempre ter, etc.), a mulher sem profissão de extrema necessidade saiu de casa para trabalhar na loja de sapatos, nos supermercados, nas faxinas dos prédios e outros empregos que não somam nada no final de cada mês, e entregaram os filhos ao próprio destino, facilitando a ação do tráfico e do traficante. Nas cadeias, com certeza, não moram os anjos ou os arrependidos.

Du-vi-d-ó-dó que algum pai/mãe ainda consiga “re-encaminhar” um filho na faixa etária de 13 anos para cima, que tenha aproveitado a saída dos pais de casa para trabalhar e aumentar a renda, e esteja “ganhando mais fácil” servindo de avião para os traficantes. Repito: du-vi-d-ó-dó!

E mais uma vez repito: veja a faixa etária dos que estão nos PCC, FDN, CV da vida impondo terror nos presídios e me respondam se não são os mesmos que “não apanharam dos pais em casa”, os mesmos que “nunca tiveram limites impostos” e ficaram escutando apenas blá-blá-blá.

E aí, surge como elemento mais importante em todos os sentidos, a educação. E, educação não é papel da escola. É da família. O que muitos chamam de educação pública, é a escolarização.

 

“Darcy Ribeiro (Montes Claros, 26 de outubro de 1922 – Brasília, 17 de fevereiro de 1997) foi um antropólogo, escritor e político brasileiro, conhecido por seu foco em relação aos índios e à educação no país. Foi casado com a etnóloga e antropóloga Berta Gleizer Ribeiro, até 1974.

Suas ideias de identidade latino-americana influenciaram vários estudiosos latino-americanos posteriores. Como Ministro da Educação do Brasil realizou profundas reformas que o levou a ser convidado a participar de reformas universitárias no Chile, Peru, Venezuela, México e Uruguai, depois de deixar o Brasil devido à ditadura militar de 64.

Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, em 26 de outubro de 1922. Filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos e de Josefina Augusta da Silveira. Em Montes Claros fez os estudos fundamentais e secundário, no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e no Ginásio Episcopal de Montes Claros.

Foi para Belo Horizonte estudar Medicina, porém ao cursar disciplinas de Ciências Sociais, decidiu-se por esta área. Em 1946, formou-se em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia (1946-1956).

Carreira – Notabilizou-se fundamentalmente por trabalhos desenvolvidos nas áreas de educação, sociologia e antropologia tendo sido, ao lado do amigo a quem admirava Anísio Teixeira, um dos responsáveis pela criação da Universidade de Brasília, elaborada no início da década de 1960, ficando também na história desta instituição por ter sido seu primeiro reitor. Redigiu o projeto, como funcionário do Serviço de Proteção ao Índio, do Parque Indígena do Xingu, criado em 1961. Também foi o idealizador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Publicou vários livros, vários deles sobre os povos indígenas.

Darcy Ribeiro foi ministro da Educação durante Regime Parlamentarista do Governo do presidente João Goulart (18 de setembro de 1962 a 24 de janeiro de 1963) e chefe da Casa Civil entre 18 de junho de 1963 e 31 de março de 1964. Durante a ditadura militar brasileira, como muitos outros intelectuais brasileiros, teve seus direitos políticos cassados e foi obrigado a se exilar, vivendo durante alguns anos no Uruguai.

Durante o primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983-1987), Darcy Ribeiro, como vice-governador, criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEP), um projeto pedagógico visionário e revolucionário no Brasil de assistência em tempo integral a crianças, incluindo atividades recreativas e culturais para além do ensino formal – dando concretude aos projetos idealizados décadas antes por Anísio.

Foi responsável pela criação e pelo projeto cultural do Memorial da América Latina, centro cultural, político e de lazer, inaugurado em 18 de março de 1989, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, assim como foi responsável pelo projeto de lei que deu origem a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), lei 9394/96 aprovado pelo senado brasileiro.

Exerceu o mandato de senador pelo Rio de Janeiro de 1991 até sua morte em 1997 – anunciada por um lento processo canceroso que comoveu o Brasil. Darcy, sempre polêmico e ardoroso defensor de suas ideias, teve, em sua longa agonia, o reconhecimento e admiração até dos adversários. Publica O Povo Brasileiro em 1995, obra em que aborda a formação histórica, étnica e cultural do povo brasileiro, com impressões baseadas nas experiências de sua vida. (Transcrito do Wikipédia).

Agora me expliquem, “pelamordedeus”, como é que se combate corrupção, criminalidade urbana e ação dos traficantes, instituindo programas como o Auxílio Reclusão, num momento onde os índices de desempregos são alarmantes, ou o “beneficiado” ganha mais que o trabalhador comum que recebe o salário mínimo.

Detalhe: o trabalhador precisa pagar no mínimo duas passagens todos os cinco dias da semana, em quatro semanas por mês. Do que recebe, ainda é descontada a contribuição previdenciária, ao contrário do apenado. O trabalhador que recebe salário mínimo, sempre que é necessário, precisa recorrer à saúde pública (que no Brasil é coisa de primeiro mundo!), com agendamentos, filas, o escambau.

O apenado não desconta nada, não paga contribuição sindical, quando adoece não precisa fazer agendamento para marcar consulta e não compra medicamentos prescritos.

Expliquem pelamordedeus: como é que se combate o que ocorre nos dias atuais nesse Brasil, com toda essa desigualdade?

Auxílio-reclusão:

O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário no Brasil pago pelo INSS aos dependentes do segurado recolhido à prisão, desde que ele não receba salário ou aposentadoria. Para que os dependentes do segurado recluso tenham este direito, seu último salário-de-contribuição (o que o segurado recebe por mês pelo seu trabalho) não pode ultrapassar determinado valor definido a cada ano pela previdência social. Para o ano de 2016, tal valor é de R$ 1.212,64. Assim, se o salário-de-contribuição do segurado, em 2016, for superior a R$ 1.212,64, seus dependentes não tem direito ao auxílio-reclusão.

Sua previsão legal encontra-se atualmente na lei n° 8.213, de 24 de junho de 1991. Antes do início de vigência desta lei, tal direito era amparado pela da lei n° 3.807, de 26 de agosto de 1960 (Lei Orgânica da Previdência Social). O auxílio-reclusão é concedido apenas se o requerente (preso em regime fechado ou semiaberto) comprovar sua condição de segurado, ou seja, desde que tenha exercido atividade remunerada que o enquadre como contribuinte obrigatório da previdência social.

Salário Mínimo 2017:

O reajuste anual do salário mínimo é um dos índices de reajuste estabelecidos pelo Governo Federal mais aguardado pela população, afinal mais de 40 milhões de brasileiros tem o salário mínimo estabelecido diretamente através de seu valor. São trabalhadores e aposentados que aguardam um reajuste salarial digno, e que seja capaz de cobrir a alta dos preços por conta da inflação no último ano. Mas para esses trabalhadores, há uma má notícia: a equipe econômica do Governo Federal sinaliza que o aumento do salário mínimo 2017 possa ser atrasado até abril ou maio, o que certamente é uma medida muito impopular para auxiliar o corte de gastos do Estado.

Valor do Salário Mínimo 2017- Ainda não há confirmação oficial do valor, mas em Agosto de 2016, o Governo Federal assinou o aumento para o valor mensal de R$ 937,00 para o salário mínimo de 2017, o que significa um aumento do salário mínimo de 6,47% em relação ao valor do salário mínimo de 2016, mas que pode ser inferior ao índice de inflação acumulada de 2016, o que significa que apesar de o valor do salário aumentar para o próximo ano, é possível que o poder aquisitivo do salário mínio seja menor já logo de cara. Essa diferença será ainda mais gritante, caso o salário seja reajustado só em maio.

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quarta, 14 de fevereiro de 2024

MOMENTOS DE LEMBRANÇAS (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

MOMENTOS DE LEMBRANÇAS

José de Oliveira Ramos

Nesta última coluna do ano de 2020 que, graças à Deus está terminando, deixando para nós um saldo negativo no que se trata de amigos e familiares, quero aproveitar para renovar a amizade e o respeito que sinto por todos que aqui comparecem, curtindo, comentando, ou postando suas matérias.

Que tenhamos um 2021 diferente. Para melhor. Que sejamos mais sensatos, e que tentemos com o que está ao nosso alcance ajudar na reconstrução desse País – dilapidado e jogado na lama por quase duas décadas.

A Fé reconstrói!

Coloque o seu tijolo nessa obra. Sinta-se participante na correção do que nos usurparam, e sigamos em frente.

Para fechar este ano, volto à infância que foi minha e, com certeza, de outros tantos que foram e continuam peraltas.

 

* * *

1 – Quando chegar em casa a gente conversa!

A varinha mágica

Que chegar em casa qual nada, mermão. A situação era resolvida era ali mesmo. Fosse onde fosse, e na presença de quem estivesse ali. Afinal, o “filho” era dela, e não do Conselheiro Tutelar uma exceção que o Estado nos impingiu, roubando nossos direitos de partícipes na educação familiar dos nossos filhos!

Era assim que minha Mãe era. Pau é pau, e pedra é pedra, doa à quem doer. Homem é homem, e mulher é mulher. Segundo ela, “baitola” é invenção de quem comeu merda ou barro tirado da parede, e se delicia com melecas tiradas das narinas.

Hoje é que acontecem essas marmotas e um monturo de idiotas fica querendo saber por que as crianças são rebeldes! Çei!

E çei, de novo!

Quer mais um “çei”? Então toma: çei!

Se não ficarem satisfeitos com todos esses “çeis”, mando um arre égua!

* * *

2 – Não quero essa comida!

Item da farofa que matava fome

Pense no prato preparado com o maior dos sacrifícios, às vezes até com a “intera” comprada fiado na bodega da esquina, e nos era servido: um baião de dois, farofa de carne em conserva fiambrada Kitut, uma banana prata madurinha.

Quem se atrevesse a dizer que não queria, a solução era a seguinte: “Tá bom, filhinho. Mamãe vai deixar aqui em cima da mesa, e coberto. Quando você estiver com fome, você vem e come, visse?!

E ó, depois lave os dois pratos, seque e guarde. Tá pensando o que?”

Hoje, a mamãe fica assoberbada, nervosa, caçando moedas e trocados em tudo que é lugar da casa e em todas as bolsas, procura nos dois sutiãs e fica atarentada para satisfazer o gosto do fdp, enquanto ele continua dedilhando o celular!

É, ou não é?

* * *

3 – Vá banhar e sem dar um pio!

A tarde era toda de jogar bola na rua na frente daquela vila, onde os moradores escutavam até o ronco dos outros durante a noite. Nunca a escolha dos times era feita sem confusão. Os “traves”, lembro bem, eram montados com camisas emboladas. Os donos das camisas tinham vagas nos times, caso contrário retiravam as camisas e iam embora – nessa situação a pelada acaba antes do tempo. E o tempo, quem determinava era a escuridão da noite que chegava.

Quando começava escurecer, com a claridade do dia dizendo até amanhã, ainda que o placar do jogo estivesse 5 a 5, tinha chegado a hora de entrar. Resmungar era algo natural. Responder ou discordar, ninguém se atrevia, quando escutava: “Chega de bola. Entra e vai direto pro banheiro, sem dar um pio. Lave bem as orelhas e as costas.”!

Hoje, provavelmente por que não existem mais aquelas peladas, o que alguns talvez escutem é o seguinte: “Stefesson (hoje não existem mais os José, Raimundo, Pedro, Francisco), será que não está na hora de largar esse computador, meu filho?”

E, se por alguma audácia materna, ele escutar aquele antigo “sem dar um pio”, ele, desaforadamente responde que não é pinto e até ameaça denunciá-la ao Conselho Tutelar. Pois sim!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 29 de janeiro de 2024

ACÁCIO, O TOLO! (CRÔNICA DO COLUNISTAS JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

ACÁCIO, O TOLO!

José de Oliveira Ramos

Acácio – a simpatia e delicadeza em pessoa

 

Chico, ou o Francisco, viveu o quanto Deus permitiu. Nasceu raquítico, viveu raquítico, e faleceu com a gordura que o destino lhe devia. Na verdade, Francisco de Oliveira Ramos, o primogênito de papai e mamãe. Precisou de orações e promessas desde o dia que nasceu. Sufocado pelo líquido amniótico nasceu puxado, em vez do parto natural. E, no dia que nasceu também iniciou o périplo pela salvação.

A promessa inicial partiu da Avó (aquela que muitos de vocês já conhecem pelas minhas quase falas), que “prometeu” a partir dali ao Santo Protetor, São Francisco, que emprestaria seu nome a alguém nascido no dia 24 de junho, dedicado à São João.

Pois, nascido no dia 24 de junho de 1939, Francisco, o Chico, faleceu no dia 13 de setembro de 2004. Casou e teve uma “reca” de filhos. Dois rapazes e quatro moças. Um rapaz, quase Engenheiro Eletrônico formado pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), abandonou o que disse pretender, quando cursava o nono período. O outro rapaz é Engenheiro Militar formado pelo IME (Instituto Militar de Engenharia), sendo ele civil. Chico chegou à Superintendência Estadual do INSS no Maranhão.

Advogado, Radialista e Jornalista, Chico assinava uma coluna semanal no jornal O Estado do Maranhão. Escrevia crônicas sobre a vida e a cidade. Criou um jardim que nunca possuiu, e nele empregou um jardineiro que sequer conheceu, e jamais assinou a carteira profissional ou pagou salários. Chamava-o de “Acácio”.

Por anos, Acácio cultivou margaridas, samambaias choronas, lírios, girassóis e todas as cores de ipês. Por conta da dedicação ao patrão e ao trabalho, Acácio foi premiado no dia do aniversário, 30 de fevereiro, com uma bolsa de estudos para aprender a plantar e cuidar de orquídeas e bonsais.

 

O primeiro bonsai produzido por Acácio, era um “flamboyant”

 

Eis que, nesta semana recebi uma mensagem de Acácio, pelo “zap”. Garantiu que, no próximo dia 30 de fevereiro, data em que comemora seu natalício, vai comparecer na minha residência, pois entende que, com o falecimento do Chico, faz tempo eu sou o novo patrão dele.

Prometeu me presentear com um vaso em que cultiva um bonsai: ipê róseo que produz abacaxis mais doces que mel. Prometeu, também, mostrar ao mundo a sua obra-prima em orquídeas: uma orquídea fálica cultivada do cactos.

 

Obra-prima fálica produzida por Acácio

 

Sinceramente, eu acho que, além de expert jardineiro, Acácio nunca deixou de ser um verdadeiro tolo. Se vier e tiver a petulância de cobrar alguma coisa, vai ser demitido por justa causa e mandado de volta para Caracas, onde esteve ganhando a vida como jardineiro durante todos os anos que desapareceu.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 13 de janeiro de 2024

A VIAGEM DE PAPEL (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

A VIAGEM DE PAPEL

José de Oliveira Ramos

Cada livro lido é uma viagem realizada

 

Nasci pobre. Continuei pobre e ainda sou pobre. As únicas riquezas que consegui amealhar, poupar e quintuplicar, foram os valores humanos e morais “depositados” nos porquinhos da minha vida pelos meus pais. Prosperei e, com certeza, vou deixar um bom saldo para meus filhos.

Por isso, muito provavelmente, nunca consegui viajar para fora do País. Nunca carimbei passaporte. Entretanto, com muita fé e coragem aceitei que, “ler, é viajar”! Cada livro uma viagem, com os conhecimentos, as paradas e rodopios feito um beija-flor.

Assim, sentado numa confortável poltrona sem numeração, viajei. Conheci até outro planeta e ali fiz amizade com uma raposa, com quem me habituei a cada fim de tarde olhar o pôr do sol e contar quantos lampiões o Acendedor acendia. Até aprendi a esperar o amadurecer das uvas, que a raposa teimava em vê-las sempre verdes.

Passei a juventude quase toda em Salvador. Conheci e convivi com quase todos os capitães daquela maravilhosa areia. Fui ao Pelourinho e os recantos mostrados por cada Jorge antes do encantamento.

 

O conhecimento pelo livro será sempre maior que os carimbos nos passaportes

 

Viajei no Expresso Oriente, bati longo papo com Hércule Poirot, e até o ajudei a descobrir alguns segredos. Ainda nessa viagem conheci vários quilombos e fiz amizades duradouras com mais de dez negrinhos. Na parte da tarde, dei milho aos pombos.

Nos rotulados anos de chumbo e exceção da década de 60, visitei Itaguaí e juntei todas as memórias do cárcere. Tudo parecia sonho. Mas era uma viagem real a cada página virada e uma nova escala a cada capítulo.

Ler é viajar, sim!

 

O livro é o único passaporte que a “esteira” não bloqueia

 

Neste exato momento estou no meu assento preferido. Sempre ao lado da janela, para melhor olhar as belezas que a Terra nos mostra, e que vão ficando para trás, renovando as esperanças que, mais na frente, nossos olhos premiarão nosso coração com o melhor roteiro.

Não suportei viver a arrogância, tampouco as atitudes descabidas dos Onze, cada um escondendo o pudor e o respeito aos semelhantes – como se eles, ao morrer, tivessem pelo menos direito a uma honrosa lápide.

Sentei na cadeira. O ônibus da vida vai partir e, neste exato momento, sigo para me encontrar com uma Pequena Abelha.

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 01 de janeiro de 2024

OS PÉS DE FULÔ (CRÔNICA DO COLUNISTAS JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

OS PÉS DE FULÔ!

José de Oliveira Ramos 

O pé de fulô que Das Dores prantou

 

Faz tempo que usamos a fala popular de lugares, repleta de regionalismo. Ainda que passemos a morar em meio aos conglomerados urbanos, carregamos “a forma de falar” daqueles lugares onde nascemos e vivemos por décadas. Muitos chamam isso de cultura regional. Pode ser. Ninguém duvida.

Mas, isso não fica restrito apenas ao modo de falar. Estende-se, também, aos diferentes e ricos modos de vida. É comum o apego com a poesia do verde e do ter o que fazer todos os dias, ao acordar e levantar. Uma tarefa que ocupa a alma, lubrifica e norteia o ego.

– Diacho, eu prantei um pé de fulô meis passado, e inda num nasceu nadica de nada?

Maria das Dores viera do interior do Ceará, tangida pelas agruras da seca. Ali deixou algumas galinhas que sobraram e resistiram diante da morte de outras tantas, por conta da falta de alimentos. Dona Das Dores não suportava conviver com aquele sofrimento enfrentado pelas aves, e achava estranho ter que abater todas para o consumo. Até porque eram muitas. Também não dava para levar nenhuma daquelas aves para a nova moradia, uma casa num bairro diferente e cheio de pessoas da classe média alta. Ali, ninguém aceitaria dividir o sono do início das manhãs com o cantar de despertar de um galo. Teria que se adaptar a novos hábitos. Mas, outros, nem tanto.

Eis que, na noite daquele mesmo dia o tempo mudou. Nuvens negras apareceram no céu azul, pintando o firmamento de um cinza previsível que, no sertão, o relógio da vida garantia uns bons e generosos dias de chuva. E choveu bastante durante a noite. No dia seguinte, mais chuva, que continuou acontecendo no terceiro dia.

Felizmente, no quarto dia o sol voltou a brilhar, e aquela luz convidou Das Dores à abrir a janela do quarto onde passara a dormir e traquinar sexo com Assis, o marido.

– Deus dos céus, que maravia! O meu pé de fulô nasceu!

Naquela manhã o café foi diferente. A mesa farta com coisas sempre presentes no café da manhã da roça (tapioca, pamonha, batata doce cozida, ovos fritos na manteiga, cuscuz, coalhada e um café que, de tão cheiroso incomodava a vizinhança) era uma forma de dar graças à Deus, e agradecer à Natureza pelo nascimento do pé de fulô.

– Quem pranta, coie!

Das Dores não cabia em si de tanta felicidade. Todos os dias, por três vezes molhava o vaso onde plantara o pé de fulô que trouxera de onde morava. Presente de Deus pelas mãos de Raimundinha.

E todos os dias ela mesma observava que o pé de fulô crescia. Se espraiava tanto quanto as boas coisas.

A danisca da fulô nasceu, cresceu e se espaiou

 

– Aubrigado Deus, foi aquele pezim de fulô que prantei que tá ficano mais que bonito!

Era, realmente, uma poesia que a Natureza escrevia a partir da mão de Das Dores. Tudo tem uma semente. Até a bondade ou a maldade.

Mas como quase todos sabem, não existe bem que dure para sempre, muito menos mal que nunca acabe. Eis que, Dona Das Dores e Assis foram avisados que invasores do alheio estavam se abancando da roça deles.

O casal nem esperou pelo tempo bom. Arrumou aquela velha mala de madeira e pegou o caminho de volta para a antiga vida, agora renovada pela certeza das coisas boas. Um simples pé de fulô serviu para ensinar Das Dores.

A casa da roça tinha um aspecto de abandono. O trabalho árduo seria cansativo, mas valeria à pena para colocar tudo em ordem. E a primeira providência de Das Dores foi aproveitar um pote velho em desuso e um alguidá. O pote serviu de apoio e o alguidá serviu como vaso para plantar outro pé de fulô. Na verdade, rosas vermelhas, que para Das Dores nunca deixaria de ser mais um pé de fulô.

Ai eu plantei outra fulô dendicasa in riba do pote

 

Retomando a roça e expulsando aquele aspecto de abandono, Assis e Das Dores, de tão cansados com a labuta da limpeza da moradia, sequer banharam e foram para o catre como se vivessem uma nova lua de mel.

Nas primeiras chuvas, agora com total assistência e trabalho da mão de Das Dores, a frente da casa tomou novo desenho, recebendo um aspecto europeu da Holanda. Flores por todos os cantos da propriedade, a ponto de chamar a atenção de quem por ali passava.

Nim todo lugá nasciam fulôres

 

Das Dores só tinha motivos para regozijo e se deliciava com tudo que a retina dos olhos alcançava. Até mesmo distante da primavera, o roçado de Das Dores deixava de ser uma simples roça para se transformar um jardim florido – e a qualquer época do ano.

Tudo a partir de uns simples “pés de fulô”!

– Quem pranta tem, e coie”!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 24 de dezembro de 2023

BEM ALI! (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

BEM ALI!

José de Oliveira Ramos

O silêncio reinante no “bem ali”

 

– Ei, bora “bem ali”!

– “Bem ali” é aonde?

– “Bem ali” é muito antes do “acolá”, e distante do “lá na frente”!

– O que é que vamos fazer nesse “bem ali”?

– Vamos saborear a natureza. Vamos escutar o cântico da cigarra, quando começar a anoitecer.

– Nesse “bem ali” só tem cigarras cantando?

– Não!!! No “bem ali” tem a profundidade do silêncio, a natureza, o céu límpido e claro.

Mas, o que tem de bom mesmo “bem ali” é o silêncio. “Bem ali” é tão silencioso, que apenas alguns conseguem escutar a conversa entre o vento e a brisa – e, claro, o vento sempre tentando convencer a brisa para um colóquio amoroso.

Mas a brisa sempre reluta, achando que a conversa pode evoluir para “os finalmente”, e dali nascer uma tempestade.

 

A sonata da chuva que cai “bem ali”

 

– Indo “bem ali” a gente pode conhecer o desconhecido, descobrir o encoberto. “Bem ali”, tem uma lagoa e a gente pode até banhar juntos. Banhar nus, como a natureza nos criou.

– E…. se alguém nos olhar banhando nus na lagoa desse “bem ali”?

– Na lagoa, banhando nus, estaremos só nós dois. Ninguém sabe onde fica o “bem ali”. Só nos, os despidos da maldade.

– E, depois do banho nessa lagoa do “bem ali”, o que faremos?

– Voltaremos para casa, pois a noite estará se apressando para chegar. Aproveitaremos para escutar o vem-vem e até para espantar as corujas que ficam na estrada. Vamos?

– Tá certo. Vamos. Mas, só vou porque você está dizendo que é “bem ali”!

 

A caminho do “bem ali” a estrada estará cheia de folhas que o outono derrubou

 

– Vamos andar um pouco mais rápido! Só assim, o “bem ali” fica mais perto. Bem distante do acolá.

Chegaremos em casa, comeremos alguma coisa e, escutando os vôos rasantes das corujas, sentaremos na ponta da calçada e contaremos estrelas. Separaremos aquelas com brilho muito intenso, das que não brilham tanto. Formaremos, ainda que apenas na imaginação, a nossa constelação estelar.

– E depois que contarmos as estrelas, o que faremos?

– Entraremos. Deitaremos, e faremos o que você quiser. Mas, não faremos tantas vezes pois, com certeza, o amanhecer de um novo dia estará “bem ali”!

 

 

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 16 de dezembro de 2023

O ENCANTAMENTO EM CADA UM DE NÓS (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE LIVEIRA RAMOS)

 

O ENCANTAMENTO EM CADA UM DE NÓS

José de Oliveira Ramos

“Um dia, todos seremos estrelas no firmamento divino”

 

 

A selva que se inicia em cada um de nós

 

Ontem no exato momento que caía uma forte e contínua chuva, sem perceber que os anos se passaram e que envelheci, parei de ler, fechei o livro, e me pus a observar o direito aparentemente sagrado do ir e vir das estrelas, durante a noite.

Um desenho animado e multicolorido nos céus. Parecendo uma chuva de meteoros.

Aflito, resolvi fazer à mim mesmo uma pergunta:

– Por que os nossos direitos de ir e vir, não são assim, como o das estrelas?

Ninguém me respondeu. Não obtive resposta alguma. Nem mesmo de mim mesmo, à quem perguntei. Fiquei calado, pois não tinha mesmo o que responder.
Aliás, não sabia o que responder.

– Por que as estrelas, tão brilhantes e cintilantes, podem passear, ir e vir, e nós humanos, não?

Eis que uma voz distante, que provavelmente somente eu ouvia, respondeu trombeteando:

– Pois, transforme-se numa estrela, ora!

Me bastou a resposta da minha imaginação. Me bastou o campo ocupado do meu tempo – e assim, tudo me bastou.

Reabri o livro. Voltei à leitura.

Mas, ainda com o pensamento viajando – sempre para o passado efervescente da juventude – voltei a fechar o livro. Agora, deixando-o cair no chão de forma proposital.

Voltei o pensamento para a primeira namorada. Corpo bonito. Limpo de muitas coisas ou quaisquer outros problemas. Corpo jovem, viçoso, enfim. Seios rijos, dentes alvos e limpos, boca bonita protegida por um buço que, de tão real, precisava olhar com a lupa para ser percebido.

 

A beleza da terra e da noite de lua

 

Por que envelhecemos?

Que razão há para isso?

Por que, não permanecemos eternamente jovens?

Eis que, distante dali, aquela mesma voz que interferira noutro momento, mas ainda longe, e agora em tom mais suave, voltou a sugerir:

– Pois, transforme-se numa estrela!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 07 de dezembro de 2023

MAURINO JÚNIOR “GO HOME” (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

MAURINO JÚNIOR “GO HOME”

José de Oliveira Ramos

Maurino acompanhado do tutor à espera da nave

 

 

Sniff, sniff, sniff!

Neste mundo que vivemos nos dias atuais, estamos entregues às incertezas. Uma certa OMS (Organização Mundial da Saúde) não sabe sequer para que existe, muito menos quais são suas tarefas além da “cagação” de bolotinhas caprinas. Diz hoje, amanhã desdiz.

Pois, ontem, no exato momento em que o STF, em decisão monocrática do bebedor de whisky determinava um alongado prazo de 48 horas para que Jair Messias Bolsonaro resolvesse a escassez de chuvas no Brasil, capaz de provocar novas queimadas nas águas dos rios Negro e Amazonas, o JBF, aparentado mais próximo do STF perdia um dos mais importantes colaboradores.

É! Maurino Júnior, “go home”!

A partida, um pouco parecida com fuga, não foi das entranhas de Spielberg. Foi do cafofo do “Cabaré do Berto”, até quando não se sabe, gerenciado por professor Assuero, filho da quarta geração do Mestre Yoda.

Lágrimas! Muitas lágrimas!

Até deu pra gente escutar um aboio vindo das Ipueiras, gritado por Dalinha, quando pescava tilápias na beirada do açude com isca de minhoca:

– Eeeeuuu achooo ééééé pooouuuco!

Maurino conduzindo a bike a caminho da “naveporto”

 

Por mais incrível que possa parecer, os meios de comunicação “fora do planeta Terra” funcionam às mil maravilhas, e quem os administra sequer pensa em privatização. Tá tudo nos trinques.

Afirmo isso por experiência própria. Ontem, estava eu observando no circuito fechado a minha criação de camelos de três corcovas, quando a campainha tocou. Era um “mensageiro” vestido de Homem Aranha, que veio entregar uma correspondência com embalagem diferente. Recebi, pois veio endereçada à mim. Observei o remetente.

Com certeza nenhum de vocês vai acreditar. Era a primeira missiva de Maurino Júnior neste primeiro semestre de 2021. Está morando na estrela Sírius, onde abriu uma bodega (filial) em parceria com Jessier Quirino.

A nave que “sequestrou” Maurino pousando em Palmares/PE

 

Na bodega, afirma Maurino, é claro que estão à venda pendrives com todos os shows de Jessier e CDs de Xico Bizerra – DETALHE: lá, afirma Maurino, ninguém precisa usar máscara contra o C-19, pois os hospitais de campanha que foram instalados abusaram de usar a Cloroquina. Ninguém morre por lá. Quando morre, é de morte matada ou morrida, e o legista que informar errado no atestado de óbito, nunca merecerá o beneplácito de “Boca de Priquito”.

Maurino afirma que, por lá, a alimentação é farta. Diferente da Venezuela. O futebol não existe por lá. O único “jogo” que funciona em Sírius, é a filial da Roleta do Cu-Trancado, que paga 0% de impostos e está de vento em popa, pois ninguém ganha, mas também ninguém joga.

Hoje, quando as estrelas começarem a brilhar, vou tentar me comunicar com Maurino Júnior através dos sinais de “Libras”. Meu intérprete será aquele mesmo que trabalha com Bolsonaro. Ganhou o cargo, depois que “mandou todo mundo à puta que pariu”, numa recente live presidencial.

Maurino usa um super telescópio fabricado em Oeiras, que foi enviado para ele por Cícero Tavares.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 26 de novembro de 2023

A ESTRADA E A VEREDA (CRÔNICA DO COLNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

A ESTRADA E A VEREDA

José de Oliveira Ramos

Na longa estrada da vida algumas pedras precisam ser vencidas

 

Ainda consigo lembrar. Eu tinha exatos dez anos de idade, quando precisamos sair de Queimadas, naquele tempo um simples povoado de Pacajus. Meu pai, que havia sido demitido de um colégio onde lecionava Aritmética, voltava a trabalhar. Agora, nomeado como Fiscal da Fazendário (Secretaria Estadual da Fazenda do Ceará), e tínhamos que mudar para a capital.

Antes da viagem, uma olhada rápida no quintal da Vovó. Pela última vez. Eu ia embora, e ali deixava as mangueiras, os cajueiros, as galinhas, os patos, os capotes, uma jumenta, o cachorro Pintado e aquele barulho melódico de todos os fins de tarde do Vem-vem e das cigarras. Também lembro, ainda, que eu fui o último a me despedir de Vovó, abraçando-a também pela última vez. Depois do abraço, corri e deslizei o último pau da porteira, fechando-a.

Nunca mais voltei ali. Nunca mais olhei minha Avó, nem nunca mais cacei passarinhos, nem escutei os voos rasantes das corujas. Os pirilampos ficaram para trás. As mutucas, também. E ali se encerrava um dos mais importantes e construtivos ciclos da minha vida. Ciclo da infância, da liberdade, e das brincadeiras respeitosas.

Fui o último a subir no caminhão. Não tive coragem de olhar para trás, porque ali ficava parte de mim. (“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”)

Naquele dia, primeiros anos da década de 50, a viagem que hoje não consome 30 minutos para percorrer o percurso, levou mais de três horas. E o caminhão não parava. Apenas a distância que não queria diminuir, como se nos convidasse à voltar para continuar a vida na roça, apanhando cajus, pescando piabas, caçando passarinhos – e, vivendo!

A estrada era a continuação da vereda

 

Caminhão da mudança acionado pela manivela. Tudo funcionando. Eu, viajando junto das panelas velhas, redes, cristaleira e tamboretes, tão logo o caminhão teve acesso à vereda, me agarrei ao cachorro pela possibilidade que ele, já sofrendo saudade, resolvesse pular do caminhão e voltar para o aconchego da Vovó. Os animais nunca perdem ou esquecem o “arquivo” do faro. Eu, sem perceber que Vovó entrara na casa, faço meu último aceno – provavelmente para o tudo onde vivi e aprendi a viver como gente.

Felizmente que os tocos que ainda ficaram na vereda aberta à base de foice e machado, não furaram os pneus. A estrada longa foi alcançada e prometia nos levar à uma nova vida, sem muitas coisas que ficaram para trás, mas com a esperança de vitórias.

O caminho que nos levou à estrada

 

A cada árvore da vereda que deixávamos para trás, era um desvio para não machucar. Como se eu conhecesse folha por folha, galho por galho, e tivesse o nome de cada uma. Atingimos a estrada sem problemas.

Agora, como o cachorro não se atreveria mais a pular para tentar voltar, se aquietou sobre um colchão velho de molas. Eu fui para a frente e fiquei à mercê do vento que tocava no meu rosto, lavando-o. Deformando-o pela força da ventania. Enfrentar aquele vento, era, sem dúvida, abrir as portas do futuro.

A “cidade grande” foi atingida. Nos dirigimos na direção do mar, como se algum navio estivesse à nossa espera. Não houvera nenhum milagre de Moisés, tampouco estávamos diante do Mar Vermelho. Era a praia do Pirambu, e ali nos aguardava a “Comissão de Recepção”: um gato mariscado, que provavelmente esperava a maré secar para permitir que os siris viessem à tona como presas incautas a lhe proporcionar o jantar de todos os fins de tarde; um cachorro vira latas, que caçava restos de comida trazidos pela maré enchente.

A casa: paredes e telhado de palhas. Um barracão onde estacas internas permitiam armar as nossas redes. Água, apena a do mar – felizmente havíamos trazido um pote, uma quartinha e algumas latas que poderiam servir de depósito.

Mas, finalmente, estávamos numa nova estrada e poderíamos iniciar a caminhada que nos permitiu chegar até aqui.

Vereda e ao fundo dá para ver a nossa casinha branca que ficou

 

Na manhã do novo dia, o barulho sufocado das ondas do mar, que não ficava distante. Algo em torno de sessenta metros, num espaço separado pela praia pouco frequentada. Não havia urbanização, e os frequentadores que por ali passavam, eram pescadores a caminho de seus barracos – iguais ao nosso.

Teresa, uma jovem criada por mamãe, era uma espécie de Governanta. Tudo mandava fazer ou fazia ela própria. Serviu o café: café preto e um banda de pão com nada. Hoje entendo que aquilo já era o nosso muito.

Mãe saíra à procura de trabalho, enquanto o pai para assumir um novo emprego. Aos sábados e domingos, todos nós saíamos para procurar um novo local de moradia.

Durante a noite, a poesia vinda do mar nos mostrava o caminho que precisaríamos seguir para, como Don Quixote, encontrar um moinho que pudesse nos proporcionar novos ventos, novos ares na continuidade da estrada que a vida nos oferecia.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 19 de novembro de 2023

FAÇA-SE A LUZ! (DISSE DEUS) E, LOGO, AS TREVAS FORAM ILUMINADAS (CRÔNICA DO COLUNISTA JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS)

 

Luzes iluminando a Terra

 

Palavras têm significados mil. Mas, o que vale mais é o significado que queremos dar. Para sair das trevas, qualquer pessoa ou objeto precisa de luz. Ainda que tênue, mas, luz.

Condenar à escuridão é impedir o direito de sair das trevas. O arado ou o trator, qualquer um, impede que o grão saia das trevas, aterrando-o na germinação. A semelhança é voraz, e pertinente ao aborto. Em gestação, ao bebê é negado o direito de sair das trevas para sorrir ou chorar com a luminosidade da vida, também chamada de luz. A mãe, ao dar à luz, tira o bebê das trevas. É legal ou humano negar a luz para quem está nas trevas?

Assim, também, ensinar à quem não sabe e quer aprender, é mostrar a luz. A luz a que todos e qualquer um têm direito. A luz do saber. O direito de sair das trevas do desconhecimento, da ignorância.

 

Uma nova vida ainda nas trevas

 

Não lembro mais onde li: “…. na construção do mundo, quando tudo ainda era trevas, Deus, na sua onipotência, criou a luz, dizendo: faça-se a luz!

E assim a luz foi feita, e tudo ficou claro”. Também não sei “quem soube disso” primeiro, já que não existia nada além das trevas e do mundo que estava sendo criado. Mas, em Deus eu acredito e acreditarei sempre. Deus é a própria esperança e Fé.

Da mesma forma, também não sei de onde viemos, a não ser que somos gerados no ventre de uma mulher (essa, também segundo os ensinamentos religiosos, criado por Deus, o Onipotente, a partir de uma das costelas do homem – também não sei quem viu isso para registrar. É o ensinamento da Fé.)

Há quem diga (e eu mesmo já repeti isso várias vezes) que viemos do barro, e para lá voltaremos. É um raciocínio lógico, principalmente após a morte.

Entretanto, por mais que se aproxime do mais provável início da vida de todas as espécies, incluindo a espécie humana, a ciência jamais terá o crédito do que seja realmente verdadeiro. Afinal, somos a evolução do espermatozoide, somos um transformação do macaco ou somos bonecos feitos do barro.

Se assim for, palmas para o Mestre Vitalino (Vitalino Pereira dos Santos) que fez milhares de “gente e animais” sem precisar produzir espermatozoide – e nem lhe cobraram “espermograma”. Seria Vitalino apenas um Mestre, ou um novo Deus?

Assim, raciocinemos: claro que o caminho mais curto e próximo da verdade é o caminho da Fé. A Fé em Deus, e na sua extrema bondade, ao criar o homem e todos os seres vivos da Terra.

Pois, se Deus criou a luz, tirando das trevas o universo e tudo que existe, por que transgredimos e nos arvoramos do direito de optar pela manutenção de humanos nas trevas. É. Nas trevas da placenta, e os condenamos eternamente às trevas, quando discutimos e aprovamos o aborto?

Ainda que nos casos de violência (estupro) ou malformação genética e reprodutiva, por que “aprovar o aborto” e não entender a cessação do sofrimento e da dor, aprovando a eutanásia?

Haverá sempre alguém que se atreverá à responder: apenas à Deus cabe o destino da vida das pessoas. É mesmo? E o aborto, quem recebeu procuração de Deus, o Onipotente?

Será que, aprovando o aborto, estamos também aprovando o não nascimento e proliferação do grupo sem caráter, do grupo que se alimenta do ódio e procura multiplicá-lo?

Não sei. Se você sabe me explique. Mas, aproveite e desenhe, para meu melhor entendimento e aceitação.

Aproveite e me convença: “por que os velhos morrem”? Claro que eu sei que não apenas os velhos morrem.

 

Velhice a caminho de volta às trevas

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 11 de novembro de 2023

PANDEMIA DO C-19 – O QUE É MESMO “ESSENCIAL”? (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DESTE ALMANAAUE)

 

Hoje nosso texto vai fazer jus, literalmente, ao título escolhido anos atrás para a coluna. Vamos enxugar gelo e, para isso, vamos colocar nossas luvas plásticas – pouco diferentes das que estão sendo usadas aqui e alhures, como meio de prevenir o contágio pelo C-19.

Assim, para não ficarmos tão distantes do assunto Covid-19, que tem tomado até mais da metade do tempo que qualquer padre tem usado nos sermões das missas dominicais, vamos falar do “fique em casa”, que está levando alguns miseráveis à cometer suicídio, por não vislumbrarem qualquer perspectiva de solução.

Dito isso, vamos relembrar de algumas profissões que, ainda que não fossem consideradas essenciais, não haveria, jamais, como obedecer o “fique em casa”.

* * *

Arrumador de pinos de boliche:

Você já imaginou, em algum desses dias atuais, baixar o aplicativo no seu celular e fazer uso de uma assinatura para reservar um horário para jogar boliche com um amigo obedecendo todos os critérios recomendados pelas autoridades sanitárias, com o objetivo de reduzir ao mínimo a possibilidade de contágio pelo C-19?

Ou, digamos, você usa de todos os seus direitos para marcar um horário especial naquela Casa de Jogos do Morumbi, bairro luxuoso da capital paulista e, assim sem mais nem menos, o nazi-governador daquele Estado decreta o “lockdown”?

 

Arrumador de pinos de boliche em plena atividade

 

E agora, você vai se divertir jogando boliche aonde?

Tudo isso, porque o calça-apertada considera que o “Arrumador de pinos de boliche” não tem família para sustentar, e sua profissão não é essencial. Pode até não ser essencial. Mas, você precisa diminuir o estresse jogando boliche, ora! E quem vai usar o tempo para jogar é pagador de impostos.

* * *

Despertador humano (batedor):

Essa profissão de “Despertador humano”, uma dia já foi muito importante. Importantíssima, diríamos!

Sempre foi profissão executada por mulher, quase que na sua totalidade. Foi oficialmente extinta no ano de 1876, época da Revolução Industrial na Europa.

No Brasil, entretanto, a “profissão” teve curta duração, haja vista que nenhum marido aprovava que sua mulher acordasse e levantasse com o dia clareando para ir tocar canudinho de som na janela de alguém. Deu uma confusão miserável e, querendo ou não, os familiares da casa de onde saíra a mulher também acabavam “despertados”. Despertados por tabela, digamos.

 

As antigas “profissionais Despertadoras”

 

Agora, a confusão era maior, quando uma mulher tocava o canudinho ao lado da janela onde um casal dormia, e a dona da casa acordada bradava: “acorda e levanta, pois a rapariga já está te chamando para as safadezas.” Como diria Adonias para Maurino – “deu uma confusão do caraio, para filho-da-puta nenhum ficar sorrindo.”

Nessa pandemia do C-19, com o “fique em casa” determinado pelas autoridades sanitárias, a profissão foi literalmente extinta.

* * *

Leitor de fábrica:

Operários escutam Leitor enquanto trabalham na fábrica de cigarros

 

Evidente que não conhecia todos os acometidos de C-19 que foram a óbito. Mas, uma coisa eu asseguro: mais de 90% dos acometidos pelo coronavírus que moravam em São Luís e foram a óbito, eram fumantes ou ex-fumantes. Os pulmões, aprendi na universidade, não são um órgão que se “limpe” dando descarga, como um vaso sanitário. Nossas constantes mudanças climáticas exigem mais trabalho dos pulmões – que ainda estão sendo sacrificados com o uso intermitente da máscara.

Assim, é evidente, que o “Leitor de fábrica” cuja profissão era promover entretenimento aos operários da fábrica de cigarros e outros tabacos é alguém dispensável. Descartável e nem precisa vir mais ao trabalho, pois foi uma profissão que desapareceu.

Agora, o operário da fábrica de cigarros, nesse ninguém toca. Afinal, quem produz mais linfomas pulmonares ao mesmo tempo que gera mais arrecadação para os estados?

* * *

Coletor de sanguessugas:

Sanguessuga coletado por profissional especializado

 

Até o fim do século XIX, a modalidade de tratamento médico conhecida como sangria ainda era utilizada em boa parte do mundo. E isso podia ser feito com o auxílio de sanguessugas, que eram vendidos aos médicos pelos coletores. Hoje a sangria terapêutica ainda é utilizada em casos específicos, como em pacientes com hemocromatose, policitemia vera e poliglobulia (provocada pelo excesso de glóbulos vermelhos no sangue). Mas sanguessugas não são mais necessários.

Tanto quanto a utilização pela medicina, o “Coletor de sanguessuga” foi abolido e tangido das profissões brasileiras através das leis. Senado federal, Câmara federal, assembleias estaduais, secretarias estaduais e municipais, vereadores e auxiliares fizeram lobby e tangeram com sal grosso e cabo de vassouras não apenas os sapos cururus. Tangeram, também, o “Coletor de sanguessuga”. Daí, a exagerada quantidade que temos desses “insetos”.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 02 de novembro de 2023

AS HEROÍNAS E AS CHORONAS – HOMENAGEM AO DIA INTERNACIONAL DA MULHER (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Lágrimas espontâneas e sinceras – de alegria ou tristeza

 

Prevenir é melhor que remediar. Assim, ensinado que fui por uma mulher (minha Avó) e trazido ao mundo por outra mulher (minha Mãe), alucinado por mulher, na cama, fazendo sexo, ou em qualquer outra atividade – nunca comemorei nem entendo por que de termos um “Dia Internacional da Mulher”. Para mim, sem frescuras, todo dia é dia da mulher.

Mas, também sei – e é essa minha opinião! – há mulheres que sequer deveriam existir. São problemas, sim. E problemas de difíceis soluções que vieram ao mundo apenas para atazanar, inclusive a si próprias. Para essas, tem que ter um dia especial, sim: o Halloween!

Agora, também sem frescuras, há uma situação maravilhosa: essas mulheres difíceis, problemáticas (ainda que sem necessidade de serem atingidas ou provocadas), são em número significativamente menor. E é isso que é bom!

Neste instante, entretanto, o que queremos mesmo é falar sobre o “Dia Internacional da Mulher” – neste momento com comemorações e enfoques diferentes, por conta dessa pandemia que nos prende a tudo e a todos, e nos impossibilita do aconchego da convivência.

 

Acácia Imperial (Cassia fistula), popularmente conhecida como “Acácia chorona”

 

Como escrevemos parágrafos acima, “todo dia é dia da mulher”, para os que gostam da fruta, e para os que respeitam como parceira forte na construção familiar.

Não cerramos fileira ao lado dos que defendem essa coisa do “empoderamento” feminino, haja vista que nossos antepassados nos ensinaram valores que até hoje respeitamos, tipo: “uma casa sem mulher, não é uma casa e jamais será um lar”.

A mulher precisa trabalhar? Tem o direito de construir sua independência?

Claro que tem todos esses direitos. Mas, não haverá como separar as coisas e haverá sempre uma cobrança, ou uma jornada que vai além do trabalho profissional.

A sociedade chamada moderna, nos últimos anos vem conseguindo impor valores diferenciados (e quem não aceita-los, será rotulado de machista), mudando o dia-a-dia de muitas casas, com a mulher saindo para o trabalho e, em alguns casos, assumindo o protagonismo, com fatia maior na assunção das despesas financeiras. Nada de errado nisso.

Queiram ou não, isso tem causado diversos problemas para as famílias. Às vezes, exigindo jornada tripla para garantir o “comando” da família, ou a pecha da desestruturação familiar por conta do “abandono dos filhos” na condução comportamental e educativa. Uma babá, uma governanta, uma cuidadora jamais conseguirá substituir a mãe.

Mas, sentimentalmente falando, a mulher, por sua participação no mundo, faz jus a todas as homenagens – e ainda poderiam ser acrescentadas outras.

Mulher é um ser especial. Quando quer ser especial. E é um ser diferente, quando quer atrapalhar a vida de outrem – jogando fora todos os bons valores.

Eu, particularmente estou no “segundo casamento” (sou divorciado do primeiro – de onde nasceram duas filhas, ambas adultas e independentes. Residem em Fortaleza, com a mãe) – e isso pode significar o quanto gosto da parceria da mulher.

Sou radical. Acho que um casal é formado por um homem e uma mulher. As demais escolhas, para mim, nada mais são que um acinte à religiosidade – e todos que pensam diferente pagarão por isso, no dia da prestação de contas. Mesmo assim, por saber que cada um responderá por si, a escolha de cada um nada me diz respeito.

A mulher é especial. A mulher chora. A mulher não é apenas uma rosa. A mulher é uma cachoeira de acácias distribuindo beleza, vida, perfume e sensibilidade. A mulher é uma acácia chorona.

 

Lágrimas femininas na semeadura do amor

 

Bobagem grande, imaginar que a mulher é uma chorona. A mulher é o ser mais forte que Deus colocou na Terra – deu-lhe não apenas a capacidade de ser o principal meio de geração da vida, com um “ninho” que suporta adversidades, traumas e é de uma estrutura muito frágil, apesar da capacidade ímpar de reconstrução e recuperação. É da mulher, o dom divino da geração da vida.

Como diz o compositor Ivan Lins na letra do seu sucesso que rende homenagem às mulheres:

“Essa firmeza nos teus gestos delicados
Essa certeza desse olhar lacrimejado
Haja virtude, haja fé, haja saúde
Pra te manter tão decidida assim
Que segurança pra dobrar tanta arrogância
Que petulância de ainda crer numa esperança
Quem é o guia que ilumina os teus dias?
E que te faz tão meiga e forte assim
Coragem, coragem, coragem, mulher
Coragem, coragem, coragem, mulher
Como te atreves a mostrar tanta decência?
De onde vem tanta ternura e paciência?
Qual teu segredo, teu mistério, teu bruxedo
Pra te manter em pé até o fim?
Coragem, coragem, coragem, mulher
Coragem, coragem, coragem, mulher”

 

Acácia branca (Moringa oleífera) importante na Fitoterapia

 

A intenção foi essa, sim. Juntar a mulher e a sua disponibilidade a qualquer momento (se for mãe, então, o filho ou a filha – não apenas serão protegidos em qualquer circunstância, como poderão contar com ela, inclusive com a disponibilidade da própria vida) compará-la com as acácias, de quaisquer cor, perfume ou utilidade.

As acácias são, por rigor, qualquer mãe.

Amarela, branca, roxa, rosa ou vermelha – e as mães, nova, meia idade ou velha, estarão sempre disponíveis.

Se me fiz entender, por isso que, todo dia é dia da mulher!

 

Acácia vermelha (Sesbania punicea) de todas é a mais rara


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 19 de outubro de 2023

AFINAL, QUE PAÍS É ESTE? (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AFINAL, QUE PAÍS É ESTE?

José de Oliveira Ramos

Vacinação contra o C-19 – atendimento Drive Thru

 

Não ainda insistir ou teimar. O Brasil não é um país para ser administrado ou vivido por amadores. Tem que ser mesmo “profissional”.

No próximo 30 de abril, se Deus me permitir, chegarei aos 78. Lúcido, revascularizado (safenado) há quase dez anos, vacinado contra o C-19 no último dia 4 (primeira dose), espero conseguir tomar a segunda dose, essa programada para o próximo deia 25. Coronavac. É a que tem, e não a que eu tenha escolhido.

Me entendo como gente que entende as coisas, desde que tinha 12 anos de idade. Já se passaram 66. Nasci no Ceará, de lá saí para o Rio de Janeiro, conheço um pouco do Paraná e já fui várias vezes a passeio em São Paulo. Estive em Recife, que não conheço; em João Pessoa e Campina Grande, que também não conheço; em Natal, em Belém, em Salvador, em Brasília.

Querem minha sinceridade?

Pois bem. Nunca vi, desde os 12 anos de idade, um país tão esculhambado, avacalhado, escrotizado com esse nosso Brasil. Ô país filho-da-puta, que tem um magote de filho-da-puta, gente!

Aqui tudo que é contrário ou do contra, é valorizado e funciona bem. No Brasil, é bonito dar o rabo e quem acha isso feio é rotulado de homofóbico e está praticando crime. O certo é queimar a rosca. Então queimem seus porras. Dêem até virar carvão!

A pessoa pode escolher abortar (está cometendo um crime contra uma criança); pode escolher ser lésbica ou gay, que estará exercendo o seu direito de vida. Mas, escolher ser “bolsonarista”, não pode. Quem faz essa escolha é fascista, é miliciano e outras merdinhas mais.

Roubar é “top” (desde que roube quantia que dê para dividir com quem deveria puni-lo). Ser honesto e correto, é apenas um apreciador da frase célere de Rui Barbosa.

É o país da esculhambação, ou não é?

Estão tentando implantar o auxílio do VAR na arbitragem do futebol. Observem como se com porta o Árbitro de futebol na Europa, e o tempo que ele leva para tirar uma dúvida e decidir o que fazer – e, depois, compare com o tempo que leva um mesmo Árbitro apitando um jogo de futebol no Brasil, quando precisa recorrer ao mesmo VAR. É uma viadagem sem tamanho. Estica o bracinho para um lado, estica o bracinho para o outro lado e acaba decidindo o que o VAR “determina”, e não o que realmente aconteceu.

É o país da esculhambação, ou não é?

No Brasil estão cobrando mais pressa na vacinação contra o C-19. Tem quem cobre que, alguns países até já terminaram de vacinar, mas esquecem que o Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes, que é um país continental de trocentos locais de difícil acesso e o escambau. Mas, cobram pressa na vacinação. E dizem até que não há vacina para atender a todos.

Atendem idosos dentro dos carros de passeio. Atendimento “Drive Thru”. Mas, quem não tem carro, é atendido em moto, bicicleta, velocípede, canoa, cavalo, e bem que poderia ser atendido em avestruz ou camelo.

É o país da esculhambação, ou não é?

 

Grande Otelo – o eterno “Macunaíma”

 

No Brasil, tudo que é sacanagem frutifica. E não é de hoje que isso acontece. Lembrem o “Febeapa” do Sérgio Porto. Lembrem os célebres romances escritos por Jorge Amado, “Dona Flor e seus dois maridos” – tudo é uma sacanagem só. E é uma das obras mais lidas desse autor. Policarpo Quaresma, você já ouviu falar? Pois é. É por aí que vai a coisa neste país.

É o país da esculhambação, ou não?

Mário de Andrade, no século passado escreveu “Macunaíma” e resolveram rotular de “o herói sem caráter”. Não!……. é o puro herói brasileiro, sem precisar acrescentar nada!

 

Raul Seixas – ícone da mistura da verdade com a esculhambação

 

E na música?!

Claro que temos muita cosia boa na música – na música antiga, diga-se. Por que a atual, se misturarem com bosta não fará diferença. Só vai aumentar o “monte” e o tolete. E aumentar a catinga.

De repente, assim não mais que de repente, a mídia (que tem parte que dá para juntar com a música e a bosta e também só vai aumentar o volume) descobre “gênios” e os leva aos píncaros da glória. Endeusam. Leva-os aos Olimpo.

Alguns – por falta de inteligência, mesmo! – confundem letras inteligentes, de qualidade que alguns compositores do passado reuniam. Exemplo? Entre todas as letras escritas por Djavan, quem encontrar uma única que não preste, vai ganhar uma noite de paz e felicidade ao lado do Maurino Júnior, o meu amigo mais querido que eu não tive o prazer de conhecer pessoalmente – mas, qualquer dia Luiz Berto vai nos reunir para saborearmos uma fava rajada com colchão de bode francês. E tendo o prazer de escutar os solos geniais de Goiano ao violão.

Além de Djavan, para mim, um “gênio”, tivemos Belchior, Evaldo Gouveia, Jair Amorim, Dolores Duran, Taiguara, Vinícius de Moraes, Ivan Lins, Tom Jobim, e isso sem esquecer Humberto Teixeira e João do Vale que, por décadas disseram o que de melhor aconteceu em musicalidade e poesia vindo do sofrido Nordeste.

Como esquecer Falcão e Raul Santos Seixas, baiano que veio ao mundo em 1945 e nos deixou aos 44 anos?

Esse, o verdadeiro “Maluco Beleza” que nos presenteou com “Gita”, “Ouro de tolo” e “Mosca na sopa”, coroando e confirmando que, “tudo que é esculhambação” prolifera entre nós.

É o país da esculhambação, ou não é?


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 08 de outubro de 2023

BITÔNIO – O EREMITA (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

BITÔNIO – O EREMITA

José de Oliveira Ramos

Bitônio o velho contador de estórias que virou eremita

 

Meninos, se aproximem. Peguem seus banquinhos e fiquem prestando atenção, sem cochilar, que vou lhes contar uma estória – que, talvez um dia vire história.

Na sequência, ele mesmo, Bitônio, puxou para mais perto o seu tamborete, ao tempo que limpava o cachimbo, preparando-o para mais um suprimento de fumo. Eram aquelas duas coisas que lhe davam o prazer: a atenção da meninada que compunha o “auditório”, e o prazer tragado do velho cachimbo de fumo.

Sentado, limpando a garganta com um pigarro enquanto acendia a “labareda” do tição para tocar no cachimbo, Bitônio atreveu-se a perguntar:

– Tá todo mundo prontinho prumode prestá atenção?

Como se estivessem participando de um ensaio de coral, todos responderam ao mesmo tempo:

– Taaaammoooossss!

Palco armado, plateia aflita e atenciosa, eis que as cortinas se abrem:

“Era uma vez um jovem nascido na riqueza material e na lucidez do trato e da convivência familiar. Ele era parte da família dos Cruz, que criava gado e explorava a agricultura na Espanha, mais propriamente na cidade de Soldeu, em Andorra, na Espanha, fronteira com a França. Antônio, uma forte homenagem que os pais faziam ao Santo. No Brasil, em meio à própria família, era tratado carinhosamente por “Bitônio”.

A família mudou cedo para o Brasil, e escolheu viver num povoado chamado Alegria, em Pedreiras, no Maranhão. Alegria ficava no pé da serra, lugar apropriado para a pecuária e a agricultura. Ali começaram a explorar a plantação de uvas com extensos parrerais; e criar gado, com a intenção de produzir queijos. Tudo ao pé da Serra da Libânia.

Os anos se passaram, a família cresceu com a chegada de outros filhos. Progrediu financeiramente, e acabou por se tornar conhecida e referência de tudo que estava certo. Família exemplar.”

Enchendo o cachimbo de fumo mais uma vez, “Bitônio” tentava fazer mágicas para que a plateia não percebesse que o personagem central daquela estória/história era ele mesmo. E continuou:

“Mas, a bondade só é boa e praticada, porque existem a maldade e os males fortalecidos por ela. Como dizem na maioria dos lugares: não há regra sem exceção.

A família do Cruz não seria a exceção da regra das maldades que destroem tantas coisas boas. Pois o nome dessa exceção era Agamenom, um dos mais novos da família. Ninguém conseguia explicações para sua vinda ao mundo. Com certeza não era obra divina.

Na vivência diária, todos trabalhavam juntos. A família não estava “dando conta de administrar de forma conveniente” os afazeres produtivos daquela “fazenda-família”. Houve necessidade da contratação de auxiliares, e isso começou a reunir pessoas vindas de diferentes lugares.

Eis que, de uma família descendente de franceses, apareceu Luciette, cuja formosura chamava a atenção de muitos. Pois Luciette foi contratada como responsável para atender e encaminhar os pedidos e encomendas dos itens ali produzidos e vendidos.

Não demorou muito, Luciette – embora o objetivo inicial não fosse esse – literalmente, enfeitiçou Bitônio.”

Curioso, demonstrando que prestava atenção à estória/história, Carrinho indagou:

– Tio “Bi”, ela botou feitiço no homem?

Embaraçado com a pergunta e mais ainda com a provável resposta, Bitônio atendeu Carrinho:

“Presta atenção, menino. “Feitiçou”, queria dizer que fez com que Bitônio se apaixonasse por ela.” E continuou a narrativa.

Os dois resolveram casar e o desejo foi atendido e abençoado por todos os familiares. Houve aquela enorme festa com o povo e amigos mais próximos comparecendo em grande número.

Aconteceu, entretanto que, invejoso e preocupado apenas em dificultar a vida e atrapalhar a felicidade dos outros, Agamenom resolveu investir contra Luciette. No início recebeu represália. Mais adiante as coisas começaram a mudar.

O que aconteceu foi que, poucos anos depois, Luciette cedeu e aceitou trair o marido que, até então a tratava muito bem e sem dar motivos para que ela o traísse. Mas acabou traindo. E o fez de forma tão explícita que todos souberam e ela não conseguiu mais esconder.”

A águia voou para o distante além

 

Nesse instante, a plateia embevecida, aguardava a continuidade e o desenrolar da estória/história, enquanto Bitônio voltava a abastecer o cachimbo. Novo pigarro, e continuou a narrativa.

“Quando a maioria esperava uma reação violenta de Bitônio, ele resolveu que a apenas aparente solução que o momento exigia, era acabar com a vida dos dois. Mas, num isolamento inicial, recompôs suas ideias e perguntou à si mesmo: o que ganharia com isso? Ele mesmo respondeu: nada!

Na madrugada seguinte, sem falar nada sequer para os pais, Bitônio arrumou algumas roupas, fósforo, querosene, lamparina, sal, açúcar e uma panela velha e saiu de casa sem destino certo. Acreditava que Deus o iluminaria e o ajudaria a encontrar conforto para continuar vivendo.

Quando o galo cantou anunciando o novo dia, quase todos reunidos para o desjejum, apenas alguns deram pela ausência de Bitônio. A mãe, aflita, ordenou que alguém fosse acordar Bitônio para o café.

Na volta, uma empregada, demonstrando tristeza, disse:

– “Seu Bi, não está na cama, nem dormindo”!

Foi, então, naquele momento que todos os olhares se voltaram para Luciette e Agamenom – e eles puderam sentir que a vida mudaria a partir daquele momento. Terminaram o café e, apressados, levantaram.

A coruja branca virou nova paixão

 

Bitônio procurou Deus e encontrou. Encontrou ensinamento e a luz que iluminou sua vida. Descobriu, entre outras coisas, que é possível o ser humano ter bons propósitos, abominar a violência e, por fim, viver sem a companhia de mulher. O que ele nem ninguém consegue, é viver sem Deus.

Alguns anos depois chegou à família, a informação que dava conta que Bitônio vivia sozinho, como um verdadeiro eremita, na parte mais alta da Serra da Libânia. Se acostumara com tudo, incluindo as dificuldades. Descia quase todos os dias para pescar no riacho que, com certeza, fora colocado ali por Deus e descoberto para saciar sua sede e matar a fome.

Todas as carências de Bitônio eram resolvidas pela Natureza. A Paz chegou junto com o gosto de apreciar os pássaros, como se um São Francisco de Assis estivesse presente nele.

Beija-flor os mensageiros entre Deus e Bitônio

 

Convivendo com as aves, a Natureza, e podendo usar o que Deus colocara à seu dispor, Bitônio transformou-se num homem bom, útil e sem maldades. Com o coração voltado apenas para fazer o bem. Era a retribuição do que Deus lhe proporcionava.

O tempo passou – nada como esperar o tempo passar, para fazer alguém enxergar as melhores soluções! – e Bitônio resolveu deixar o seu casebre humilde entre duas pedras grandes, inicialmente, uma vez por ano. Transformou-se num eremita contador de estórias/histórias, preferindo a plateia de meninos, que ele, dizendo apenas para si, acreditava que poderiam ser seus filhos, se o casamento com Luciette não tivesse sido interrompido pelo destino – mas ele acreditava fortemente, que o acontecido o levou a encontrar Deus e as boas atitudes.

Na primeira visita de Bitônio à antiga casa da fazenda, teve conhecimento que Luciette e Agamenom, envergonhados com o que fizeram, resolveram pelo suicídio através de envenenamento. Os pais também faleceram e os irmãos mais jovens passaram a tomar conta da fazenda.”

Ainda houve tempo para que uma criança, aflita e curiosa, tivesse coragem para perguntar:

– “Tio Bi, o “Bitônio” também morreu?!

A resposta, claro, não poderia ser outra:

– Não filha. Bitônio estará sempre vivo na lembrança de vocês. Vocês lembrarão deles, sempre que tratarem bem um beija-flor.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 26 de setembro de 2023

A POESIA DO FAZER (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A POESIA DO FAZER

José de Oliveira Ramos

Neruda, Camões, Gonçalves Dias, Cora Coralina, Drummond, Patativa do Assaré, Thiago de Mello, Dalinha Catunda, J. G. de Araújo Jorge, Marcos Mairton, Florbela Spanca e tantos outros que formam os campos coloridos da poesia que nos acaricia a alma, purificando nosso âmago e nos colocando na retidão do caminho para o bom e o bem da vida. Suas poesias, independentemente do veio ou das glosas que semeiem, são, verdadeiramente, os sustentáculos das nossas almas.

Mas, o fazer poético em versos são, além de tudo, linhas paralelas que um dia se encontrarão e cruzarão na impossibilidade imaginária, com o fazer das mãos, que transformam o barro em verdadeiros poemas artesanais para o resto da vida e o alcançar dos olhos.

* * *

Patativa do Assaré

 

“Se a terra foi Deus quem fez,
Se é obra da criação,
Deve cada camponês
Ter uma faixa de chão.”

Patativa do Assaré

Nascido, criado e vivido em Assaré, alto sertão do Ceará, a 5 de março de 1909, Antônio Gonçalves da Silva começou a cantar tal qual o pássaro, e virou “Patativa”. Voou em nuvens azuis e brancas, próprias do “céu de Brigadeiro”, para dizer ao mundo que o sertão não brilha e vira notícia apenas pelo sofrer. Tem brilho e encantamento, também, no fazer. E danou-se a fazer poesia. Poesia diferente da maioria dos salões de luxo. Poesia de gente. Poesia real, tanto quanto o sangue que corre célere pelas artérias dos humanos.

* * *

Fazer escultural do Mestre Vitalino

 

Ora, juntar letras no fazer das palavras e dá-lhes sentido e vida poética, não é magia nem feitiçaria. É arte e manifestação divina que Deus, o Onipotente, escreve com nossas mãos para o alento contínuo das vidas.

E, assim pensando, o que dizer com o fazer tirado do barro, da mesma matéria que faz os humanos, e dar-lhes a forma imaginária do viver que o fazer transforma?

Pois, assim fez algum dia, Mestre Vitalino, que produziu com o barro as imagens feitas e guardadas na retina.

“Vitalino Pereira dos Santos, conhecido como Mestre Vitalino, nasceu em Caruaru, Pernambuco, a 10 de julho de 1909, e faleceu na mesma Caruaru, a 20 de janeiro de 1963. Foi um importante artesão, ceramista popular e músico, sendo considerado um dos maiores artistas da História da arte do barro no Brasil.

Era filho de um lavrador e de uma artesã que fazia panelas de barro para vender na feira. Ainda criança, começou a modelar pequenos animais de seu repertório rural, como bois e cavalos, com as sobras do barro usado por sua mãe na produção de utensílios domésticos para serem vendidos na feira de Caruaru. Os primeiros bonecos que criava eram seus brinquedos, e o barro que mais tarde serviria de matéria prima para a sua arte, era retirado das margens do rio Ipojuca, local onde Vitalino brincava durante sua infância.

Nos anos 1920, Mestre Vitalino cria a banda Zabumba Vitalino, da qual é o tocador de pífano principal. Na década de 1930, possivelmente influenciado pelos conflitos armados do período, modela seus primeiros grupos. As cenas que remetem à ordem e ao crime no sertão brasileiro são recorrentes em sua produção. (Informações compiladas do Wikipédia)

* * *

Dalinha Catunda

 

“Quero viver utopias
Tenho tanto amor pra dar
No calor da minha rede
Inda quero me embalar
Mesmo no outono da vida
Ai, ai, ui, ui,
Vejo meu sonho brotar.”

Dalinha Catunda

A cearense Maria de Lourdes Aragão Catunda, mais conhecida como Dalinha Catunda, filha de Espedito Catunda de Pinho e Maria Neuza Catunda, é uma cordelista, declamadora e contadora de histórias. Traz no sangue o dom artístico, pois a mãe era poetisa e a tia contadora de histórias. Natural de Ipueiras (CE), nasceu no dia 28 de outubro de 1952 e radicou-se, ainda jovem, no Rio de Janeiro.

Desde cedo aprendeu a transformar sentimentos em versos e prosas, e ao produzir trabalhos de reconhecido valor literário cultural, Dalinha Catunda conquistou espaço hegemonicamente masculino da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), ocupando a cadeira 25 cujo patrono é Juvenal Galeno.

No balançar da rede, tacando o pé na parede para dar impulso ao descanso, Dalinha dá luz aos versos numa gestação profícua e bela.

* * *

Cerâmica poeticamente produzida na Ilha de Marajó

 

A arte marajoara é um tipo de cerâmica fruto do trabalho das tribos indígenas que habitavam a ilha brasileira de Marajó (próximo a Belém, no estado do Pará), na foz do rio Amazonas, durante o período pré-colonial de 400 a 1400 d.C. O período de produção desta cerâmica tão sofisticada esteticamente é chamado de “fase marajoara”, uma vez que existem sucessivas fases de ocupações na região, cada uma delas com uma cerâmica característica.

A fase marajoara é a quarta fase de ocupação da ilha. Sucessivamente as fases de ocupação são: Fase Ananatuba (a mais antiga), a Fase Mangueiras, a Fase Formigas, a Fase Marajoara e a Fase Aruã. Destas cinco fases, a Fase Marajoara é a que apresenta a cerâmica mais elaborada, sendo reconhecida por sua sofisticação.

A cerâmica marajoara foi descoberta em 1871 quando dois pesquisadores visitavam a Ilha de Marajó, Charles Frederick Hartt e Domingos Soares Ferreira Penna. Hartt impressionou-se tanto com o que viu que publicou um artigo em uma revista científica, revelando ao mundo a então desconhecida cultura marajoara.

Os marajoaras ou cultura do Marajó foram uma sociedade que floresceu na Ilha de Marajó ou Rio Amazonas na Era pré-colombiana. Em uma pesquisa, o arqueólogo Charles Mann sugere datas entre 400 e 1600 para a cultura. Contudo, atividade humana desde 1000 a.C. já tinha sido reportada nesses locais. A cultura parece ter persistido na era colonial. A cultura pré-colombiana do Marajó pode ter desenvolvido estratificação social e comportado uma população de 100 000 pessoas. Pesquisas posteriores encontraram origem natural para grande parte das estruturas, contestando exigência demográfica e de complexidade de relações de trabalho. (Informações compiladas do Wikipédia)

* * *

Thiago de Mello

 

“Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.”

Thiago de Mello

Amadeu Thiago de Mello, nasceu em Barreirinha, a 31 de março de 1926. É um poeta e tradutor brasileiro. É um dos poetas mais influentes e respeitados no país, reconhecido como um ícone da literatura regional. Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Preso durante a ditadura (1964-1985), exilou-se no Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e colaborador.

No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou à sua cidade natal, Barreirinha, onde vive até hoje.

Seu poema mais conhecido é Os Estatutos do Homem, onde o poeta chama a atenção do leitor para os valores simples da natureza humana. A sua poesia escrita foi Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida que rendeu-lhe, em 1975, ainda durante o regime militar, um prêmio concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte e tornou-o conhecido internacionalmente como um intelectual engajado na luta pelos Direitos Humanos.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 19 de setembro de 2023

O BONDE E A GAIVOTA (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O BONDE E A GAIVOTA

José de Oliveira Ramos

Bonde 38 no trajeto para o Centro

 

1 – O BONDE

Era exatos 11 km a distância percorrida pelo bonde 38, do ponto final da linha, no bairro Perizes até o Centro da cidade. Esse percurso demorava um pouco mais de 1 (uma) hora para ser percorrido, por conta do excesso de paradas e o embarque e desembarque de passageiros.

Desde a estação Santo Amaro, até o abrigo público na Praça João Lisboa, naquele sobe-e-desce, o 38 carregava cerca de 250 passageiros do início ao fim do percurso. Na estação Santo Amaro, a demora não era tão grande, haja vista que o motorneiro Saturnino, apelidado por todos com o carinhoso “Salu”, virava a lança elétrica num piscar de olhos – também não demorava mudar de posição e dar partida para mais uma viagem. Agora, de volta.

Mas, algumas paradas estratégicas eram necessárias. Uma, na feira livre, quando o 38 trafegava de Perizes para o Centro, para que alguns vendedores de legumes, frutas e outros que tais descessem para vender seus produtos, e outros para “fazer a própria feira” da semana. Isso sem contar algumas pessoas que se dirigiam para o Centro no percurso da volta, após realizarem suas compras na própria feira livre.

Outra parada que muitos de hoje chamariam de “parada técnica”, acontecia quando o sinal ficava vermelho, avisando que vinha outro bonde no sentido contrário na mesma linha. Havia a necessidade de esperar a passagem do 30.

Pois, nessa espera, a vida de “Salu” foi embalada e teve uma drástica mudança. Durante as cinco ou seis viagens diárias entre os dois pontos finais, aquela parada no sinal vermelho, sempre por volta das 10 horas, foi transformada no alimento sentimental da alma do motorneiro. Na parada para esperar o sinal, “Salu” avistava numa janela de uma casa do outro lado da rua, uma bela e sorridente senhorita. Apoiada na janela, a jovem sorria, distribuindo a alegria que vinha de dentro de si.

Por vários dias, meses e anos, aquele verdadeiro presente acabou cativando “Salu”. Com o tempo, Salu sequer observava se o sinal ficara vermelho ou pouco lhe interessava se o bonde 30 passara ou não. Era o sorriso da jovem que o fazia parar.

Aos poucos, os meios de transportes da cidade e do bairro foram se modernizando. Não demorou muito, até que o novo Prefeito resolveu extinguir o serviço dos bondes, substituindo-os por ônibus, também elétricos, para aproveitar a rede aérea já instalada.

A empresa alocada para a prestação do serviço dos bondes foi avisada da medida drástica e intempestiva do novo Prefeito. Eis que, numa manhã de sábado, consciente de que aquele seria o seu último dia de trabalho, por volta das 10 horas, “Salu” cumpriu a parada técnica. O sinal estava vermelho. O bonde 30 não tardaria a trafegar no sentido contrário. “Salu” parou o bonde 38, se atreveu a acenar para a jovem, que abrira aquele maravilhoso sorriso, como se estivesse retribuindo a gentileza.

O 38 foi ao Centro, cumprindo seu destino. Na viagem de volta passaria ainda mais próximo da janela da jovem sorridente. Ela já não estava mais na janela. Aliás, na viagem de volta do bonde 38, ela nunca permanecia ali, encostada e distribuindo sorrisos. Foi aquela a última viagem do bonde 38.

Demitido, “Salu” recebera proposta para continuar trabalhando na empresa. Mas precisaria mudar de cidade: Rio de Janeiro, ou Santos. Preferiu resolver a vida, e foi fazer uma visita para a senhorita da janela.

Na residência foi muito bem atendido pelos pais da jovem. Inicialmente não demonstrou que era apaixonado pela beleza jovem que enfeitava aquela janela. Mas, ousou perguntar. E perguntou.

Como resposta teve o anúncio de que a jovem havia viajado para a Alemanha, para concluir um tratamento de saúde: era autista. Aquele lindo sorriso das 10 horas, na janela, era inconsciente.

 

Moça linda na janela

 

2 – A GAIVOTA

2304 o voo internacional

 

O voo 2304 internacional da Varig, partindo do Aeroporto de Guararapes (Gilberto Freyre) com destino a Espanha, e pouso programado para o Aeroporto Adolfo Suárez (Madrid-Barajas) acontecia três vezes por semana.

Foi, provavelmente, por conta disso que o sistema de fiscalização federal brasileiro centralizou em Recife a checagem e liberação internacional das viagens. Recife era o centro de atendimento, quando se referia aos viajantes do norte e nordeste. Anos depois, Belém passou a atender esse serviço, e hoje quase todas das capitais nordestinas têm seus serviços alfandegários e federais para esse fim.

Mas, era mais ou menos assim que funcionava, quando ainda existiam as linhas aéreas da Varig e da Vasp.

A rota, quem viajava sabia, era a mesma. Durou anos assim. A Varig também tinha o hábito de manter sempre a mesma tripulação. Isso, entendiam os administradores, garantia o bom desenvolvimento do trabalho, principalmente das atendentes de bordo (Aeromoças) que também ficaram conhecidas de alguns passageiros que viajavam com mais frequência para as terras bascas.

A coisa funcionava tão bem, que, entre as atendentes, um sorriso podia significar mais que um cativante sorriso. O sorriso dizia algo.

Aquela equipe funcionava bem. Suas famílias eram amigas e quase todos se conheciam.

O comandante da aeronave, Filemon, era tão responsável, amável e competente, que jamais confiava em deixar aquele moderno e potente avião (naqueles tempos!) com o piloto automático.

Com o passar dos tempos foi descoberto que ele, Filemon, mantinha um relacionamento forte e fervoroso com a aeromoça Anna Paula, um espetáculo de mulher, poliglota e muito competente profissional nas suas tarefas de bem-atender os passageiros, e manter o respeito dos demais amigos tripulantes.

À medida que o tempo passava e as viagens aconteciam, Filemon e Anna Paula se apaixonaram perdidamente. A responsabilidade na execução diária e pública do trabalho, entretanto, não lhes permitia transgredir ou confundir as coisas.

Eis que, certo dia e num raro momento de folga entre uma viagem e outra, Anna Paula precisou sair da rotina e foi visitar um parente que se encontrava hospitalizado. Ela receava que aquele parente se encantasse num dia e momento que ela estivesse do outro lado do Atlântico.

No percurso para o hospital, um acidente automobilístico ceifou a vida da jovem senhorita. Consternação total, principalmente entre os demais componentes da equipe de trabalho.

O voo 2304 tinha viagem programada para o dia de féretro. Ninguém da tripulação pode comparecer, muito menos Filemon, a quem competia conduzir a aeronave da Varig.

O sol brilhava no céu de brigadeiro, quando a aeronave levantou voo. Os vários sorrisos dos tripulantes, percebia-se, não tinha espontaneidade. Mas existiam.

 

A gaivota em voo transatlântico

 

Quando a aeronave atingiu a altitude estabelecida pelas normas, durante cerca de 20 minutos sobre o Atlântico, incrédulo, Filemon percebeu que, cerca de 200 metros da cabine de comando, uma gaivota plainava acompanhando o avião. Ele não teve dúvidas que, debaixo daquelas penas, com os pés esticados para impelir o voo, tinha alguém que ele conhecia.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 14 de setembro de 2023

A POESIA DA NATUREZA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUND FLORIANO)

 

A POESIA DA NATUREZA

José de Oliveira Ramos

O tapete de folhas do outono tecido pela Natureza

 

Com certeza trabalhando melhor que todos os poetas que existiram ou existem no mundo, entre 20 de março e 21 de junho, a Natureza usa o vento, e escreve no chão com folhas multicoloridas, poemas inteiros dignos de serem inseridos nas mais perfeitas coletâneas.

É o outono!

Naquele tapete multicolorido, por horas, o vento faz o seu papel e propicia o acasalamento das folhas de ipês com as folhas das acácias para garantir a geração de algo tão belo, que ninguém se atreveria a fazer, ou descrever. Só Deus, usando a natureza e o vento.

Nas primeiras semanas de março o ensaio se repete. Como acontece todos os anos. As folhas, no cio, amadurecem e caem abertas, prontas para serem possuídas e fecundadas – e os incautos ainda vociferam que o vento é fresco (no sentido da homossexualidade).

O trabalho do sol não fica fora. O da chuva, idem. Como componentes das ininterruptas edições poéticas, a cada ano, por três meses, o amadurecimento da Natureza numa gestação tão profícua quanto bela.

O viçoso tapete de folhas

 

As várias espécies de árvores, independentemente de qual família pertençam, no outono, se entregam à beleza da transformação e da renovação.
É o rejuvenescer!

É o florir!

É o preparar para o frutificar que se aproxima.

Novos frutos e novas sementes – a garantia da eternização do que existe de mais belo no planeta Terra. A árvore e seus frutos.

Mas, como seria a primavera se, entre ela e o outono não existisse o inverno?

É?!

Se logo após o outono, começasse a primavera?!

Será que as árvores seria mais belas, com seus encantadores ares e cores primaveris?


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 09 de setembro de 2023

A LAGARTA QUE QUERIA VOAR (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAAQUE RAIMNDO FLORIANO)

 

A LAGARTA QUE QUERIA VOAR

José de Oliveira Ramos

A lagarta procurava o luar mais alto – para de lá tentar voar

 

Acostumada a produzir o que comia, mania que herdou dos pais e avós, Zefinha transformou a área onde morava numa verdadeira horta. Nunca pensou em “produzir para exportar” e no futuro ser incluída numa comunidade “Agro”. Sempre se conformou em poder produzir (graças à Deus!) o suficiente para comer ao lado da família.

Semeava e comia batatas. Semeava e comia feijão. Semeava e comia milho. Semeava e comia macaxeira, tomate, jerimum, cebolinha, cenoura, goiaba.
Algumas flores, cultivava. Até construiu um caramanchão, pensando em um dia fazer “selfies” com os netos.

Zefa tinha uma preferida entre todas plantas que cultivava. Um frondoso “pé de lírio” de flores brancas e cheirosas – também usava o “leite” para fins medicinais, para curar “dedos desmentidos”. Fazia um emplasto de pano velho ou algodão, e amarrava no “desmentido”.

Mas, ali naquele “pé de lírio” vivia um morador diferenciado. Uma moradora, aliás.

Era uma lagarta muito bonita. Daquelas que comem todas as folhas até “espocar”. E, tal qual fazia minha Avó, Zefa vivia dizendo que aquela lagarta era propriedade dela. Ela que havia descoberto e alimentado com as folhas do “pé de lírio”. Ninguém a convencia do contrário.

Mas, aquela lagarta fora proibida de sair do “pé de lírio” para tentar passear pelo caramanchão. Se desobedecesse, seria jogada para o chão, onde viraria “jantar das galinhas”!

Eis que Zefa passou a chamar aquela lagarta de “Comadre”. Ninguém entendia essa escolha. Nunca houvera batismos, crismas nem passagens nas fogueiras juninas. Mas, estava decidido por Zefa: era “Comadre”. E pronto!

“Comadre”, enquanto continuava comendo folhas, acalentava dois desejos: voar, era o primeiro. Voar para conhecer o caramanchão, era o segundo desejo.

O tempo passava correndo. “Comadre” rezava todos os dias antes de “pegar o travesseiro reparador”. Rezava pedindo à Deus para que se transformasse num casulo. Acordava durante a noite, em meio aos sonhos onde se “pegava” voando para aquele mundo florido que era o caramanchão.

Estava terminando o outono. Em seguida chegaria o inverno e, se o mundo continuasse mundo, em breve viria a primavera – tempo da floração e da vida colorida.

“Comadre” foi atendida pela Natureza e se transformou numa borboleta

 

Certo dia, com os olhos grandes e quase saltando das órbitas, “Comadre” sentiu calafrios. Olhou em volta de si mesma e percebeu algumas alterações. Tinha em volta de si, o início da formação de um casulo e, quando tudo estivesse concluído, a realização dos sonhos de querer voar. Voar e conhecer o caramanchão.

As folhas protegeram o casulo das fortes chuvas. Foi assim, durante o duradouro inverno.

Na casa, Zefa dava voltas procurando a “Comadre”. Mal sabia que “Comadre” agora vivia a transformação de tudo dentro de um casulo e em breve realizaria o sonho de voar. Na verdade, “Comadre” nunca se conformou em ser uma lagarta devoradora de folhas, sem o direito de conhecer as belezas da vida – pelo menos a beleza que ela imaginava existir ali ao lado. Naquele lindo e florido caramanchão.

Parecendo um milagre – e era, o milagre da transformação pela Natureza! – logo no primeiro dia da primavera o casulo se abriu. Dele, aos voos ainda cambaleantes saiu uma borboleta, que durante alguns meses não passava de uma lagarta.

E agora, realizando sonhos que acalentaram a vida anterior, como se tivesse conhecimento do que a lagarta sonhava, a borboleta voou e pousou nos primeiros ramos floridos que enfeitavam o caramanchão.

MORAL DA HISTÓRIA: “Ainda que você seja uma gorda e vagarosa lagarta, nunca desista do sonho de querer voar.”


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 04 de setembro de 2023

O ANDARILHO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O ANDARILHO

José de Oliveira Ramos

Amâncio “pegando” uma estrada na caminhada sem objetivo

 

Não lembro ao certo quantos alunos éramos na sala de aulas da quarta série ginasial do tradicional, diferente e magnífico Liceu do Ceará. Mas lembro, sim, éramos muitos e nos conhecíamos todos. Éramos amigos, sem as baitolagenzinhas do “bullying”! Se precisasse, a gente saía era na porrada mesmo.

O ano letivo tinha início quase sempre na segunda quinzena de fevereiro. Em junho, ao fim das provas escritas e orais, começavam as férias por todo o mês de julho. Tudo recomeçava no primeiro dia de agosto, a não ser que aquele dia fosse um sábado ou domingo.

Todos que já alcançaram a faixa etária dos 50, e conseguiram ultrapassagem pela esquerda sem causar problemas para quem vem na contramão para chegar aos 60, 70 e mais alguma coisa, sabem que “quem procura, acha” e que “quem semeia, colhe”. Sabem mais ainda: “é para a frente que a gente anda”!

Pois, Amâncio Batista de Queiroz, aluno número 4 no livro de chamada, era natural de Quixadá. Quinto filho da abastada família dos Queiroz, proprietária de quase tudo na “Terra dos Monólitos”, da “Pedra da Galinha Choca” e do açude de Cedro. Como se tornaram proprietários do que ali possuíam, poucas pessoas sabiam ou faziam questão de saber – naquele tempo, sem internet, sem “zapzap” todos se preocupavam mesmo era com o trabalho e o sustento da família.

Por falta de escolas municipais na cidade, Amâncio, que podia e tinha condições financeiras para estudar na Europa, preferiu mesmo foi o tão bom quanto os melhores, Liceu do Ceará.

Presente entre os melhores alunos da classe, Amâncio tinha uma mania – hoje, os frescos chamam de “hobby”. E ainda tem que ser escrito em inglês. Viadagem pura. Coisa de quem gosta de sentar na boneca.

Amâncio gostava de andar. Era “andarilho”. Quem conhece Fortaleza, certamente sabe a distância que existe entre o bairro Benfica, onde Amâncio residia numa pensão de amigos dos Queiroz, para o Liceu do Ceará. Amâncio ia caminhando, diariamente, do Benfica para o Liceu. Ia e voltava. Andar, para Amâncio tinha o mesmo prazer que “tocar uma bronha” com as duas mãos. E gozar.

Eis que terminam aos aulas do primeiro semestre do ano, com a grade curricular rigorosamente cumprida. Após as provas escritas e orais do meio do ano, as férias.

Pernas, pra que te quero?!

A maioria não tinha mesmo para onde ir. Naquele tempo, viajar para a Europa não era coisa tão fácil. A gente aproveitava para passar uma semana com os avós no interior, e outros até que procuravam atualizar seus álbuns de figurinhas.

Mas, Amâncio era diferente. Era outra pessoa. E tinha para onde ir. As férias começavam no dia 15, e no dia 17 ele já estava na estrada.

É foi isso mesmo que você leu: “na estrada”!

 

Pedra da Galinha choca em Quixadá ao lado do açude Cedro

 

Quem serviu ao Exército, sabe bem a dimensão do que o Amâncio fazia. Quem serviu ao Exército, quando fazia “marchas” de 20 km, cansava. Havia até quem “baixasse hospital” e ficava até dois ou três dias em recuperação.

Amâncio, não. Amâncio era “andarilho profissional”. E, pasmem: de Fortaleza até Quixadá, são exatos 167 km. É mole?
Não, não é mole não!

Parece mentira, mas Amâncio levava até três dias caminhando nesse percurso. Claro que parava para descansar e, às vezes, também para dormir em alguma cidade. Mas, na manhã seguinte, após o café, botava o pé na estrada.

Repito: Amâncio era “andarilho profissional”!

Saía da pensão onde morava, no Benfica. Seguia pela Avenida 13 de Maio, até encontrar a Rua Rio Branco, no antigo São João do Tauape. Seguia na direção de Messejana, Horizonte, e pegava a BR-116 até Pacajus. Ali, o destino era Quixadá, sempre pela BR-122. Não caminhava durante a noite, embora a temperatura fosse mais amena. Ele preferia parar em algum lugar, onde descansava, jantava e dormia.

Contava Amâncio, que era comum esse diálogo com alguém que passava por ele, na estrada:

– Tá indo pra onde, meu jovem? Perguntava alguém, com a intenção de oferecer ajuda.

– Ainda não sei pra onde vou! Respondia Amâncio, sem pretender receber ajuda.

– Quer uma carona? Perguntava o motorizado.

– Não! Não quero. Muito obrigado! Respondia Amâncio e continuava a caminhada.

Quando se aproximava de Quixadá, apesar de ser ali a “Terra dos monólitos” (pedras, muitas pedras), o clima era mais ameno. Não. Não era mais ameno. É que Amâncio sabia que já estava chegando e aquilo mudava o seu astral.

Como todo bom cearense, Amâncio também tinha o seu veio cômico e gostava de umas respostas engraçadas e cheias de ironia.

Ele próprio contou (na volta das férias) que, certa vez, quando já se sentia em Quixadá, um passante motorizado parou o carro e perguntou:
– Tá indo pra onde, jovem?

– Tô indo botar meus ovos para a galinha chocar!

No fim das férias, claro, os familiares não permitiam que Amâncio retornasse a pé. Afinal, voltava sempre na véspera do início das aulas.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quarta, 30 de agosto de 2023

*JURINHA* – A VÉIA DESBOCADA (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

“JURINHA” – A VÉIA DESBOCADA

José de Oliveira Ramos

Juraci de Souza Mendonça – “Jurinha”

 

Naquelas paragens, as coisas diferentes, fora dos hábitos tradicionais acabam chamando a atenção de todos. Pois, era assim com Juraci de Souza Mendonça, pouco conhecida pelo extenso e pomposo nome. Mas, facilmente conhecida pelo apelido “Jurinha”.

Aquele povoado se dava ao luxo de ter arredores produtivos e muito frequentados. E, um desses “arredores” era conhecido por Calango. Poucos sabiam o motivo do nome, mas era assim que ficou conhecido.

O povoado principal era Cipoal, assim conhecido porque era de lá que vinham todos os cestos fabricados em grandes quantidades, e que serviam para os agricultores transportarem seus produtos colhidos na roça.

Jurinha nasceu no Calango. Mas, largada dos pais ainda menina, encontrou guarida no Cipoal. Era ali que ganhava a vida e aporrinhava a vida dos outros.

E por que foi largada pelos pais, quando saía da infância para a adolescência?

Porque “deu” muito cedo. E “deu” para muita gente. E quem não mostrava interesse, ela ia lá e “traçava”.

Pois, a forma de entender a vida, foi o motivo principal de ter sido largada pelos pais. Pais trabalhadores, corretos, sérios e muito religiosos, que não admitiam ter uma ainda menina em casa, mas já tão puta. E “dava” sem receber nada em troca. Dava pelo prazer de dar. Era de putada! (Ops!)

Pois “Jurinha” passou as várias fases da vida na putaria. Se vestia muito mal, apenas com o objetivo de chamar atenção. Num povoado onde a temperatura normal beirava os 40 graus, “Jurinha” calçava umas botas pretas e longas que ficavam acima dos joelhos. Uma minissaia tão “mini” que, qualquer movimento a calcinha aparecia. Mas, era exatamente aquilo que ela queria. Era debochada.

Claro que, escolhendo aquela forma de vida, “Jurinha” jamais encontraria alguém (homem) que se interessasse por uma convivência séria. E ainda assim, ela cagava e andava para isso.

O tempo passou. “Jurinha” precisou de sustento. E aí entrou na gandaia e começou a “faturar” alguns incautos que não a conheciam e que, esporadicamente, precisavam ir até Cipoal.

E o tempo foi passando e “Jurinha” envelhecendo. A freguesia, ainda que de incautos, diminuiu. O pouco que ganhava na cama, consumia na mesa de bebida. Envelheceu e ficou mais feia fisicamente do que quando ainda dava para qualquer um.

Debochada, virou desbocada. Quem se dirigisse à ela de alguma forma, em resposta ouvia um palavrão. Dos mais cabeludos. Desacatava as pessoas, ofendia os guarda municipais com a intenção de ser presa – na delegacia teria comida de graça!

Quer dizer: era feia e debochada, mas não era burra. Era égua, mesmo!

Mesmo envelhecida e castigada pelo tempo, e por nunca ter-se preocupado consigo mesma na juventude, “Jurinha” não era conhecida apenas porque tinha dado muito quando menina. Ou por que fosse desbocada soltando palavrões os mais inadequados contra qualquer pessoa, independente do sexo ou da idade.

Certo dia, ao cruzar na calçada do passeio com uma menina de uns 8 anos, essa teve a infelicidade de dizer:

– Mãe, olha que velha feia!

Pra que?! “Jurinha” parou e disparou:

– Véia feia é a boceta da tua mãe, filha de uma piranha!

Era daí para pior o repertório de palavrões de “Jurinha”. Mas, todos sabiam, “Jurinha” depois que envelheceu, não se transformou numa má pessoa. Apenas respondia às provocações. E respondia tudo como muitos queriam ouvir – daí as provocações.

 

Os “filhos” de Jurinha

 

As dificuldades acabaram fazendo com que “Jurinha”, aos poucos, se transformasse numa pessoa mais calma. Sem ódio no coração, por ter sido largada pela família, apenas por que gostava e sentia prazer em dar. Dar o que lhe pertencia, claro! Sentia prazer em dar e entendia que ninguém tinha o direito de proibi-la daquilo.

A vida continuava, enquanto a morte não chegava. “Jurinha” conseguiu atenção de pessoas boas e passou a morar num cômodo abandonado de uma velha fábrica de cestos. Ali passou a viver e dar os restos de comidas para cães e gatos que também se abrigavam no local.

A meninada acrescentou mais um apelido: “Jurinha”, a mãe do cachorros e gatos”! E ela nem se incomodava mais com aquilo, pois não lhe fazia mal algum. Chegava a rir, quando os cães se engatavam, ou quando os gatos faziam aquele barulho característico do gozo no sexo. Aquilo mexia com as passadas vezes que ela também “dava”. Eram momentos de felicidade para ela.

Eis que, certa tarde, quando uma mulher da vizinhança foi levar o resto de comida para os cães e gatos, percebeu algo diferente acontecendo naquele cômodo abandonado. Em vez de avançarem para ela, os cães continuaram deitados, com as cabeças encostadas no chão. Não estavam satisfeitos nem alegres pela chegada do que comeriam.

A mulher se aproximou e conseguiu perceber que “Jurinha” havia comprado passagem para a eternidade. Abandonada pela família, amada pelos animais.

MORAL DA HISTÓRIA: “Nem o Diabo é ruim para todos” – embora a convivência não seja bem aceita.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sexta, 25 de agosto de 2023

A FALTA QUE A *NEGONA* ME FAZ NO *DIA DAS MÃES* (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNSTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A “Negona” continua presente em mim

 

Hoje peço permissão aos leitores-seguidores para falar um pouco de mim, falando da parte que já se foi, mas continua presente no DNA. Incluindo as atitudes diárias e a falta de “frescuras”. Aquela parte que ia direto ao assunto, sem “arrodeios” e sem mimimis.

Vou falar da minha “Negona”!

* * *

I

Hoje, entre beijos, bênçãos, almoços e presentes, muitos comemoram o Dia das Mães – uma festa pagã que a maioria discorda quando já não tem mais o que comemorar. Aprendi na escola, antes de Paulo Freire, que isso tem o nome de “hipocrisia”.

Pois, na parte que me toca a lembrança, ainda está viva na memória, aquela figura de 1,79m tocando com força nos punhos da minha rede, ainda sem a claridade do dia. Depois, aprendi que o nome daquele momento era “madrugada”. Carinhosamente, chamado de “madrugadinha”, ou antes mesmo que o galo cantasse.

– José, acorde. Tá na hora de tomar o purgante!

E era um purgante mesmo, na pior acepção da palavra. Eram duas colheres de sopa do intragável óleo de rícino!

Zulive! Me causa arrepios ainda hoje, só em lembrar.

Tomava o purgante e a bacia colocada debaixo da rede para aparar o mijo durante a noite, já havia sido substituída pelo penico. Era só descer da rede e fazer o serviço. Poucas horas depois, o penico estava cheio de “macarrão vivo”!

Affffmaria! Zulive, de novo!

Mas, aquele solavanco no punho da rede, dado por aquelas mãos fortes, era mais um aviso divino entre tantos que filhos e filhas podem usufruir das mães. É a necessária limpeza do corpo dos vermes absorvidos pela liberdade de andar descalço no quintal.

Melhor ainda que o intragável óleo de rícino, é a lamparina acesa colocada no caminho de cada um – filho ou filha – para iluminar a melhor direção nas coisas da vida.

O nome da criatura que faz isso, que te deu óleo de rícino, que te iluminou o caminho e que te mandou “esfregar bem as orelhas” durante o banho, é “Mãe”!

No meu caso específico, tive a liberdade de chama-la de “Negona”, para ter sempre em resposta aquele sorriso largo, como se estivesse recebendo um buquê das mais lindas rosas e margaridas.

Que falta me faz, hoje, a minha “Negona”!

* * *

II

Elza pariu um casal de filhos. Uma fatalidade surgida no caminho ceifou a vida de ambos, quando cada um já havia posto no mundo três filhos. Ao todo, seis.

Elza viveu anos de saúde e Paz. Viveu como Deus lhe permitiu.

Hoje, domingo, 9 de maio, Elza não usufrui do prazer de ouvir a acariciante palavra “mãe”.

“Vó” – é a palavra que Elza escuta!

 

O mundo atual dos “politicamente corretos”

 

Quando compreendermos que o caminho nem sempre é o mesmo para todos, seremos dignos de viver e estaremos prontos para compreender que nenhum momento ou nada será diferente daquilo que o universo divino escreve e reserva.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 20 de agosto de 2023

A ESPERA! (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A ESPERA!

José de Oliveira Ramos

Mãos envelhecidas aprenderam a esperar

 

Carmem, Dona Carmem, Carminha. Era esse o nome de uma mulher que nasceu, cresceu, casou, teve filhos, e viveu longos anos na comunidade conhecida como Europinha, parte do município de Beberibe no Estado do Ceará.

Naquele tempo, quando perdurava a seca contínua, que não atendia à esperança das orações pela vinda das chuvas, a vida não era fácil para ninguém. Dona Carminha, claro, não podia ter para si e para a família, algo diferente.

A “reca” de filhos que teve com o marido Augusto – foram oito, ao todo – conseguiu sobrevida por conta do sacrifício que os pais faziam para garantir que, na hora do “dicumê”, os pratos não estivessem vazios – ou cheios de nada.

Oito filhos. Cinco rapazes e três moças sobreviveram pelo esforço desmedido dos pais, com maior atuação de Dona Carminha na responsabilidade de quase tudo. Augusto se encarregava “apenas” do abastecimento das necessidades domésticas. O mais era com Dona Carminha.

O que se soube tempos depois, foi que, daqueles oito filhos, apenas três (rapazes) conseguiram atravessar a adolescência e atingir os degraus dos adultos. Problemas de saúde e de convivência levaram os outros cinco.

Os três que ficaram, casaram e foram cuidar das famílias. Augusto teve problemas de saúde e também teve o CPF cancelado, e foi morar ao lado direito do “Pai”, na Vila da Eternidade.

A Europinha inteira tinha noção dos esforços de Dona Carminha para atravessar o Mar Vermelho e conduzir com boa performance os três filhos. Enfrentou necessidades, e viu a fome de muito perto, sem necessitar do uso de lupa.

Fez o que todas as mães fazem. Sacrificou-se, por entender que “cuidar de filhos” é papel e responsabilidade dos pais. E assim, por conta do destino, ela continuava viva, mas só.

Dona Carminha envelheceu e cansou. Cansou fisicamente, mas continuou jogando o jogo da vida contra as dificuldades, da mesma forma como fazem tantas outras mães.

Só, em casa – sem receber de volta a atenção, o carinho ou o sacrifício que ofereceu aos oito filhos, fortalecidos quando a prole ficou reduzida a apenas três. Tudo aumentou. A atenção dobrou, o carinho aumentou e o sacrifício triplicou.

Nada em troca. Nem a necessária atenção.

Esperando a visita dos filhos

 

Eis que, a festa pagã que comemora o dia dedicado às Mães quase sempre no segundo domingo de maio chegou. Para Dona Carminha era um dia igual a tantos outros que ela, aos 75 anos convivera.

Mas, aquele “Dia as Mães” para Dona Carminha foi diferente. Não por ter recebido atenção ou carinho dos filhos. Foi diferente porque foi encontra-la sentada numa cadeira de rodas num abrigo para idosos e, na prática, desamparados.

Após o almoço servido no abrigo, a sesta vespertina para descansar de tanto descanso, e descaso. Banho, melhor roupa, cabelos penteados e a espera na área de visitas do abrigo.

Espera. Espera, e espera. A claridade do dia foi embora, e foi substituída pela lugubridade noturna.

Nada mudou. Apenas a espera continuou. Os filhos, provavelmente, se deliciavam na frente da televisão sendo cúmplices de um bom filme da Netfix.

E assim vai ser sempre. Alguns continuarão esperando apenas o desfecho da vida e a certeza de que, antes, toda a missão foi cumprida.

 

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 15 de agosto de 2023

PASSEANDO PELAS ARTES (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNSTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

PASSEANDO PELAS ARTES

José de Oliveira Ramos

Garrincha passa e o marcador fica no chão

 

Hoje peço licença aos amigos leitores, para falar um pouco do futebol, meio no qual dormi e acordei por alguns anos.

Sou torcer alvinegro, com ênfase para Ceará Sporting Club, Botafogo de Futebol e Regatas e Santos Futebol Clube. Na primeira preferência, por ser o clube da minha terra natal; na segunda, por conta desse ser humano genial, cuja alegria inocente era levar alegria para todos; e, finalmente, no terceiro, por conta da genialidade do negão que vestiu e honrou a camisa 10, fazendo dela, mundo à fora, um ícone da excelência.

1 – MAMÉ GARRINCHA

“Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha ou simplesmente Garrincha foi um futebolista brasileiro que se notabilizou por seus dribles desconcertantes, sendo considerado por muitos o mais célebre ponta-direita e o melhor driblador da história do futebol.” (Wikipédia)

Longe de mim a pretensão de querer contar a história de Garrincha, uma figura demasiadamente conhecida, não apenas nos meios futebolísticos, ou, por conta de algumas peripécias na vida particular – e isso não me diz respeito.

Dito isso, muitos, mas nem todos sabem, que Garrincha nasceu Manoel Francisco dos Santos, no povoado Pau Grande, em Magé, no Estado do Rio de Janeiro, a 28 de outubro de 1933. Foi ali que Ele ensaiou e desenvolveu os primeiros dribles, construiu as primeiras gaiolas e criou os adorados passarinhos.

Há pouco para se dizer ainda sobre Garrincha. Muitos já disseram tudo, graças à adoração que o também botafoguense Sandro Moreyra tinha pelo genial jogador. Mané era assunto preferido de Sandro, mesmo quando o Botafogo não jogava.

O que já se sabe era que, quando jogava o Botafogo de Garrincha contra o Flamengo de Jordan ou o Vasco de Coronel, os torcedores dos clubes, adversários em campo, se deliciavam pelos momentos chaplinianos que “Mané” proporcionava. Era uma delícia, e há quem afirme que, até o marcador se sentia feliz em viver o seu dia de “João”, como passou a ser rotulado o pretenso marcador que tomava baile.

Até onde se sabe, pelo que muitos disseram, uma vida desregrada após a aposentadoria no futebol, foi a causa principal que levou Mané Garrincha à morada eterna, no dia 20 de janeiro de 1983 – dia consagrado à São Sebastião, no Rio de Janeiro.

Pau Grande – bucólico povoado onde nasceu Garrincha

 

Sobre Garrincha, além de ter presenciado em inúmeras oportunidades nas arquibancadas do Maracanã aquele drible seco sempre para o lado direito depois de um “faz-que-vai-mas-não-vai” para a esquerda, um momento triste que presenciei sobre uma figura tão importante no Brasil e mundo à fora.

Toda manhã de domingo, eu ainda morador do Rio de Janeiro, cultivava o hábito de comprar vários jornais (O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, Folha de São Paulo, Jornal dos Sports, Gazeta Esportiva, Correio Braziliense, Diário do Nordeste e O Povo), numa banca de jornaleiro que existe ainda hoje, na frente do antigo Hotel Serrador, na Cinelândia. Comprava e lia todos. Levava uma ou até duas sacolas de jornais para ler em casa.

Eis que, ao pagar e receber os jornais, caminhei na direção da antiga Mesbla. Foi quando encontrei, sentado no meio-fio da Rua Senador Dantas, todo vestido de preto (como se estivesse usando luto), a figura inconfundível de um dos maiores jogadores de futebol do mundo: Mané Garrincha.

Percebi que ele estava insone e, aparentemente, alcoolizado. Não tentei ajuda-lo, pois tive receio de ser confundido. Segui meu caminho, enquanto ele ficara sentado no mesmo lugar. Provavelmente escutando os aplausos recebidos tantas vezes das arquibancadas do Maracanã. Aplausos vindos até dos torcedores de times adversários.

2 – CHARLES CHAPLIN

Outros tempos, outros pais e outras mentalidades. Quem estudava tinha apenas um dia para o descanso ou lazer: o domingo. Domingo era dia de cinema ou futebol para a estudantada, ou, ainda, para a juventude transviada o dia para descansar da ressaca do sábado. Diferente de hoje, que a farra começa na sexta-feira. Vida que segue.

E a estudantada sempre (ou quase sempre) ia ao cinema. Trocar revistas em quadrinhos ou figurinhas de álbuns, e depois o filme em cartaz.

Final dos anos 40 e quase todos os anos 50, a produção cinematográfica era limitada. Perdurava ainda o filme mudo (sem som audível) e muitos desenhos, rotulados de “animados”. Filmes de faroeste ainda eram raros – e havia até quem imaginasse que, a poeira feita pelas carruagens perseguidas pelos índios, pudesse provocar gripes. Arre égua!

Chaplin – o mito da então arte cinematográfica “muda”

 

Difícil mesmo era esquecer que, o grande nome dos filmes daqueles poéticos tempos era Charles Chaplin. Na verdade, Charles Spencer Chaplin, percussor do cinema mudo, nascido no Reino Unido, mais precisamente no povoado Walworth, dependente de Londres, a 16 de abril de 1889.

Charles Chaplin, que viria a falecer em Manoir de Ban, na Suíça, no dia 25 de dezembro de 1977, em vez de receber presentes de Natal, fez foi presentear a criançada e o cinéfilo com fitas inesquecíveis como O Grande Ditador, O Garoto, O Vagabundo e o impagável Tempos Modernos.

Lembro que vi todos esses filmes, como lembro também, da magistral interpretação de Geraldine Chaplin como “Tônia” no filme “Dr. Jivago” ao lado de Omar Shariff e Julie Christie. Geraldine sempre recebeu cobranças por melhores interpretações, apenas pelo fato de ser filha de Chaplin.

Cemitério onde estão os restos mortais de Chaplin e da família

 

Tudo momentos proporcionados pela arte. Quando Garrincha driblava, a ponto de destruir o marcador, provocando risos e/ou aplausos das superlotadas arquibancadas do Maracanã, era a arte se impondo de forma magnífica no futebol.

Não seria diferente, quando as plateias uníssonas gargalhavam como os trejeitos de Chaplin em quase todos os seus filmes. Mas, entre tantos, havia também aqueles que iam às lágrimas. Tudo, arte pura.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 10 de agosto de 2023

OS SORRISOS INGÊNUOS DA INFÂNCIA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Nos anos da década de 70, composta para tentar incentivar a seleção brasileira de futebol na jornada épica no México, mais propriamente em Jalisco e Guadalajara, independentemente da situação sócio-política que vivíamos, a letra da música garantia que éramos 70 milhões de habitantes. Os veículos de comunicação eram confiáveis e os interesses de manipulação não existiam.

O mundo parecia ser maior. Parecia haver mais espaços para todos e isso garantia a quase total ausência das maldades, dos males e dos maldosos. Éramos ingênuos, sim. Éramos “educados” por nossos pais. Jamais pelos Conselheiros Tutelares – esses que ninguém sabe de onde saíram e qual os passados pregressos. Mas, foram oficialmente autorizados pelo Estado para entrarem nos nossos lares e chafurdarem nossas intimidades com os filhos.

E era aquela ingenuidade que nos levava a rir de muitas coisas, principalmente as que eram mostradas nos cinemas, nos circos com palhaços diferentes dos que hoje tentam fazer graças em algumas instituições brasileiras.

Não. Não citei aquela instituição pretensamente suprema, tampouco algum poder legislativo. Você que, pela lógica das coisas, pensou isso.

Como não rir dos trejeitos de Cantinflas, com aquele andar atrapalhado pelas próprias calças?

Como não rir do andar embaraçado e fala amatutada de Mazzaropi, sempre com aquela galinha colada sob o sovaco?

Como não rir do Oscarito, que conseguia roubar as cenas, mesmo atuando ao lado de Grande Otelo e Eliana?

Como não rir dos espalhafatos de Zé Trindade e a sua “tara” por mulheres?

Vejamos e relembremos um pouco de cada um deles.

* * *

CANTINFLAS

Cantinflas arrancava gargalhadas com as “marmotas”

 

Cantinflas, nome artístico de Fortino Mario Alfonso Moreno Reyes, nascido na Cidade do México, a 12 de agosto de 1911, e falecido na mesma Cidade do México, a 20 de abril de 1993. Nasceu em uma família muito humilde e tinha 12 irmãos. Teve uma adolescência marcada pela pobreza, o que o levou a começar a trabalhar muito cedo, primeiro como engraxate e depois como aprendiz de toureiro, motorista de táxi e pugilista. A sua vida mudou quando, aos vinte anos, trabalhando como empregado em um teatro popular, teve a oportunidade de substituir o apresentador do espetáculo que adoeceu. Ao inverter frases, trocar palavras e abusar do improviso, Cantinflas conquistou o público hispânico. As suas origens inspiraram várias personagens, entre eles o famoso El Peladito. A sua maneira de falar acabou por prejudicar a sua carreira internacional. Dos mais de 40 filmes que fez, a maior parte foi produzida pela sua própria companhia. Em Hollywood, teve apenas dois filmes: A Volta ao Mundo em 80 Dias, um sucesso de bilheteria e vencedor do Oscar de melhor filme em 1956, e Pepe, um fracasso de público e crítica. A sua carreira durou até a década de 1980. A crítica, porém, destaca que os melhores filmes do comediante foram feitos entre as décadas de 1940 e 1950. Entre os seus trabalhos mais elogiados deste período, estão Os Três Mosqueteiros (1942), O Circo (1943), El Supersabio, O Mágico (1948), O Bombeiro Atômico (1950) e Se Eu Fosse Deputado, todos escritos para ele pelo seu amigo Jaime Salvador. (Informações do portal Wikipédia).

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MAZZAROPI

Mazzaropi e o famoso cachimbo

 

Amácio Mazzaropi nasceu em São Paulo, 9 de abril de 1912, e faleceu também em São Paulo, a 13 de junho de 1981. Considerado o maior cômico do cinema brasileiro, é o único artista que ficou milionário fazendo filmes no país. Suas produções foram fenômeno de público por mais de três décadas. Filho de Bernardo Mazzaropi, imigrante italiano e Clara Ferreira, brasileira nascida em Taubaté (São Paulo), filha de imigrantes portugueses da ilha da Madeira. Com apenas dois anos de idade sua família muda-se para Taubaté no interior de São Paulo, onde estavam seus avós maternos. O pequeno Amácio passava longas temporadas no município vizinho de Tremembé, na casa do avô materno, o português João José Ferreira, exímio tocador de viola e dançarino de cana-verde. Seu avô também era animador das festas do bairro onde morava, às quais levava seus netos que, desde cedo, entram em contato com a vida cultural do caipira, que tanto inspirou Mazzaropi.

Em 1919, sua família volta à capital e Mazzaropi ingressa no curso primário do Colégio Amadeu Amaral, no bairro do Belém. Bom aluno, era reconhecido por sua facilidade em decorar poesias e declamá-las, tornando-se o centro das atenções nas festas escolares. Em 1922, morre o avô paterno e a família muda-se novamente para Taubaté, onde abrem um pequeno bar. Mazzaropi continua a interpretar tipos nas atividades escolares e começa a frequentar o mundo circense. Preocupados com o envolvimento do filho com o circo, os pais mandam Amácio aos cuidados do tio Domenico Mazzaroppi, em Curitiba, onde trabalhou na loja de tecidos da família. Já com quatorze anos, em 1926, regressa à capital paulista ainda com o sonho de participar em espetáculos circenses. Finalmente entra para a caravana do Circo La Paz. Nos intervalos do número do faquir, Mazzaropi conta anedotas e causos, ganhando uma pequena gratificação. (Informações pesquisadas no Wikipédia).

* * *

OSCARITO

Oscarito e seu sorriso inesquecível

 

Oscarito, nome artístico de Oscar Lorenzo Jacinto de la Inmaculada Concepción Teresa Díaz nasceu em Málaga, a 16 de agosto de 1906, e faleceu no Rio de Janeiro, em 4 de agosto de 1970. Foi um ator hispano-brasileiro, considerado um dos mais populares cômicos do Brasil. Ficou famoso pela dupla que fez com Grande Otelo, em comédias dirigidas por Carlos Manga e Watson Macedo. Nasceu em uma família circense, vindo para o Brasil com um ano de idade, mas somente naturalizou-se em 1949. Estreou no circo aos cinco anos de idade, e ali aprendeu a tocar violino, sendo ainda palhaço, trapezista, acrobata e ator. Estreou no teatro de revista em 1932, na peça Calma, Gegê, que satirizava o ditador Getúlio Vargas, de quem se tornaria amigo. No cinema, estreou em Noites Cariocas, de 1935, embora tenha figurado num filme anterior, e foi nessa arte que ganhou enorme popularidade no país. Fez parceria com Grande Otelo em diversos filmes de chanchada. Seu nome, no Brasil, era paralelo para os maiores humoristas do cinema, como Charles Chaplin ou Cantinflas. Foi casado com Margot Louro, com quem teve dois filhos. Na manhã de 15 de julho de 1970, sentiu-se mal, devido a um AVC, e foi internado, já em coma, vindo a morrer em 4 de agosto. Seu corpo foi velado no salão nobre da Assembleia Legislativa da Guanabara, com a presença de mais de duas mil pessoas. (Informações do Wikipédia).

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ZÉ TRINDADE

Zé Trindade gostava mesmo de mulher

 

Zé Trindade, pseudônimo de Milton da Silva Bittencourt é baiano de Salvador, onde nasceu a 18 de abril de 1915; faleceu no Rio de Janeiro, a 1 de maio de 1990. Foi ator, músico, poeta e comediante brasileiro de rádio, teatro, cinema e TV, famoso por jargões como “Mulheres, Cheguei!” e “Meu Negócio é Mulher”. Nasceu em tradicional família baiana, porém, o seu pai, herdeiro de uma grande fortuna, é deserdado porque se casa com uma mulher pobre (a mãe de Milton). A sua infância, até os onze anos, foi muito sofrida. Nessa idade, se emprega como contínuo em um hotel da capital baiana e faz amizade com Jorge Amado e Dorival Caymmi, que, como os outros hóspedes do hotel, apreciam suas piadas, versos, poemas ou letras de músicas. Em 1935, entrou para a Rádio Sociedade da Bahia, vivendo um bêbado no programa Teatro Pelos Ares e em 1937, chegou ao Rio de Janeiro, integrando o elenco de humoristas da Rádio Mayrink Veiga. Fez sua estreia no cinema em 1947, no filme O Malandro e a Granfina e só parou em 1987, numa ponta em Um Trem para as Estrelas, perfazendo uma carreira de 38 filmes. Participou pouco de televisão, mas chegou a atuar com Chico Anysio e na novela Feijão Maravilha (1979), do programa humorístico Balança Mas Não Cai (1982) e da minissérie Memórias de um Gigolô (1986). Morreu de câncer no pulmão, em 1 de maio de 1990, no Rio de Janeiro, aos 75 anos. (Informações do portal Wikipédia)

Para essas figuras dedicávamos nossos sorrisos das tardes de domingo. Não tínhamos a tecnologia do telefone para mudar nossos caminhos, como faz a maioria nos dias de hoje.

Aprendemos a rir e gargalhar alto. Não nos incomodávamos com “bullying” (coisa de baitola), não ficávamos caçando Pokémon e nada sabíamos de Instagram e afins. Desconhecíamos a depressão.

Mas, éramos felizes, sim. E ríamos!

 

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 05 de agosto de 2023

OLÊ MULÉ RENDÊRA, OLÊ MULÉ RENDÁ (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OLÊ MULÉ RENDÊRA, OLÊ MULÉ RENDÁ

José de Oliveira Ramos

Bilros manipulados pelas mãos hábeis das rendeiras

 

Como se fora uma ladainha das festas profanas, das muitas que ainda hoje são realizadas em muitos lugares do Nordeste, a letra da música imortalizou a lembrança cultural de alguém que, inicialmente não passava de um sofrimento obrigatório, para “passar o tempo” – enquanto Lampião não chegava.

Lembro, era assim:

“Olê, mulé rendêra
Olê, mulé rendá
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá
(Tu me ensina a fazê renda)
(Que eu te ensino a namorá)

Lampião desceu a serra
Foi dançá em Cajazeira
Encontrou Maria Bonita
Que virou mulé rendêra
Encontrou Maria Bonita
Que virou mulé rendêra”

Crescemos escutando coisas assim ou parecidas. O tempo passou e algumas pessoas da família até se envolveram diretamente com a atividade da manipulação dos bilros, dos espinhos de cardeiro (nome que damos aos espinhos de cactos no Ceará), às almofadas arredondadas, linhas quase sempre branca e uns desenhos (modelos) em papel seguidos à risca para a formação das peças de renda.

A “rendêra” virou “Rendeira” depois de uma pertinente e admirada musicalidade até então considerada matuta – mas que sempre teve muito do contar o sofrimento de alguns que viviam apenas esperando a morte, ou a felicidade com os namorados que conviviam com o cangaço.

Mãos hábeis seguram os bilros que seguem o “modelo” de alguma peça de renda

 

Minha hoje falecida tia-avó Teté foi uma ainda “rendêra” de mancheia. Se, viva estivesse, seria hoje uma “Rendeira” dessas de grifes famosas cujas lojas funcionam apenas nos “xópis”, com peças de valor individual inalcançável para alguns. São peças feitas sob encomendas.

Pois Teté me mandava para as capoeiras “caçar, tirar e trazer” espinhos de cardeiro para que ela pudesse afixar os trabalhos já feitos nas almofadas. Fazia peças que, à primeira vista, nem os melhores teares da indústria eram capazes.

Teté foi apenas mais uma que viveu o sonho de esperar a chegada de alguém do cangaço de Virgulino. Teté morreu virgem (cabaço) e se contentava apenas com a almofada entre as pernas. Calma. A almofada! Nada de bilros!

Peça de renda feita por rendeira de Beberibe

 

Nos dias atuais, fazer renda em artesanato é uma profissão. Reconhecida. Pelo menos em meio aos artesãos.

Não exige estudo, não exige graduação acadêmica, mestrado ou doutorado – e ninguém exige para que o “deploma” seja amostrado. É um trabalho feito com as mãos. Há quem afirme que a tradição da renda teria vindo da Europa e da África.

Já lemos em algum escrito que, ansiosa para agradar à “dona”, uma escrava, com a habilidade desenvolvida com o que aprendera com os antepassados, fazia peças para a patroa. Agradou e, ansiosa para proporcionar às semelhantes o mesmo direito de ter a amizade das patroas, ensinou.

No Brasil, renda de artesanato é considerado “coisa de branco”, daí a aproximação pelo menos teórica, que teria com os antigos escravos. No Ceará é uma fonte de renda (dinheiro). Cascavel, Beberibe, Aracati têm polos de produção e propagação desse tipo de artesanato.

Mas a maioria aproxima a “Rendêra” com o fato da espera por alguém. A mulher “esperava alguém” e aproveitava para preencher o tempo fazendo renda.

“Rendêras” fazendo poesia com linhas, bilros e espinhos


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 30 de julho de 2023

PONTE AÉREA DA BAITOLAGEM (CÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

PONTE AÉREA DA BAITOLAGEM

José de Oliveira Ramos

Quem conhece Fortaleza, capital cearense, por visita turística ou por ter nascido lá, ou, ainda, por ter morado na “Loira desposada do sol”, certamente conhece a parte mais antiga do Centro da cidade. Talvez conheça, também, a Rua Castro e Silva, a antiga Cadeia Pública, a Santa Casa de Misericórdia e a antiga Estação de trens da RVC (Rede Viação Cearense) – tudo isso, vizinhança do conhecidíssimo e muito visitado “Curral das éguas”.

Pois, tão logo “dei baixa do serviço no Exército” (CPOR – onde tomei três doses de vacina à base de Ivermectina, Hidroxcloroquina e Zinco – que fazia doer até miolo de pão), trabalhei alguns meses na Casas Silcar, representante da concessionária Chevrolet e da Frigidaire, que ficava na Rua Sena Madureira, ao lado do Mercado Central. Depois passei a trabalhar na Western Company Limited, empresa inglesa prestadora dos serviços de cabogramas. E tudo aquilo ficava como se fosse dentro de uma bacia de alumínio.

A Western usava dois tipos de tarifas: a tarifa comum, para os cabogramas comuns e de textos reduzidos; e o CTN (Correspondência Telegráfica Noturna), essa com tarifa abaixo de 50% do preço da tarifa comum.

Trabalhávamos em três turnos de seis horas cada. O turno da noite começava às 17 e 18 horas e encerrava às 23 e 24 horas. Quando era necessário, um Operador de Teletipo (minha função e de outros) permanecia na empresa, e fazia “O.T.” (Over time), recebendo, além das horas extras, a regalia de ser conduzido à casa por táxi. Essa hora extra consistia em esperar a chegada dos cabogramas CTNs procedentes de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, preparando-os para a entrega nas primeiras horas do dia seguinte.

Via de regra, eram ordens de transferências bancárias, ou pautas para os jornalistas correspondentes dos jornais Estado de São Paulo, Jornal do Brasil com maior frequência (lembro que eram Egídio Serpa e Rogaciano Leite).

Durante a espera da chegada desses CTNs, como ainda não havia jogo transmitido pelas televisões, a gente se “impirilutava” para o Curral das Éguas (ZBM) ou, para a putaria que reinava na Rua Franco Rabelo e, próximo dali, a famosa buate 80.

Era na Franco Rabelo que reinava o “senhor” José Benedito de Lima, pouco conhecido como tal, mas muito conhecido como “Zé Tatá”. Zé Tatá era um desses que hoje são rotulados popularmente de “Queimador de rosca” ou “Generoso do traseiro”; ou, numa linguagem mais atual que em nada atenua o objetivo, “gay”. Para o cearense, “Baitola”!

 

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Zé Tatá – o baitola macho

Zé Tatá – O gay-macho: bom de porradas contra três ou quatro (e botava pra correr!)

Nascido em Salvador/BA, JOSÉ BENEDITO DE LIMA, em 1929, ainda criança (pouco mais de dois anos de idade) foi morar em Fortaleza, por conta da transferência do pai, então militar do Exército. Poucos anos depois, o pai faleceu vítima de um acidente num treinamento militar.

Filho único, ainda JOSÉ BENEDITO virou estudante no Colégio Maristas, na capital cearense. Não ficou livre da “zoeira” (os bobalhões de hoje denominam de “bullying”) própria do cearense. Assim, quando era repreendido por algum professor(a) no Colégio, aceitava e respondia apenas, “tá” repetidas vezes. Virou então “Zé Tatá”. Dono das casas noturnas (pensão) Ubirajara, Hollywood e Tabariz. Desfilava no carnaval vestido de baiana e imitava Carmem Miranda.

Zé Tata era um negrão de mais de um metro e noventa. Chamava atenção, por onde passava, por ser um homem, negro, forte, alto e belissimamente vestido de mulher. Ninguém tinha coragem de dizer qualquer coisa que ofendesse a integridade moral de Zé Tata.

Mas vamos ao início da história deste personagem baiano que, nos anos 50 e mais, era a rainha do Carnaval de Rua de Fortaleza: Zé Tata. José Benedito de Lima nasceu em Salvador, em 1929. Aos 2 anos idade perdeu seu pai vítima de acidente em um treinamento militar. Filho único de mãe viúva, foi criado em Fortaleza num conjunto habitacional do exército do Brasil. Sua mãe ganhava uma modesta pensão e tinha que trabalhar como empregada doméstica pra criar seu filho amado. Zé, como era conhecido pelos colegas, estudou no colégio Marista, onde também ganhou o apelido de Tata. Dizem que, quando ele ficava nervoso ao ser repreendido pela professora, dizia: – Ta! Ta! Daí virou o Zé Tata.

Quando menino, passou por todas as fases, foi levado, brigão, namorador… Sempre foi um aluno mediano, mas esforçado e logo estava numa escola de Sargentos do Exército, onde estudou enfermagem. Na Escola Militar descobriu que era diferente dos outros meninos: enquanto os outros tinham desejos sexuais por meninas, ele adorava ver os meninos pelados no vestiário. No início, achou estranho, mas rapidamente gostou da ideia. Ele se destacava em todas as atividades que fazia: era ótimo lutador, jogava futebol e queria participar de tudo que envolvia contato físico com os garotos da academia.

Quando estava com 19 anos, foi convidado para se fantasiar de mulher e sair com um grupo de amigos pra desfilar no Carnaval do centro de Fortaleza. Pediu ajuda a sua mãe, que não estranhou, pois aquilo era costume de Carnaval. Ele, então, se montou e se transformou numa mulher de quase dois metros de altura. Salto altíssimo, vestido longo e maquiagem impecável. Decidiu não usar peruca, deixou seu cabelo natural, bem batido, como deve usar um militar. Foi o dia mais feliz na vida de Zé Tata. Lá foi ele realizado, se sentido uma dama. Porém, na vida, nem tudo são flores e, logo que chegou ao centro, uma turma de machões bêbados resolveram brigar com os rapazes – Vamos dar porrada nessas raparigas que não gosto de veado, alguém gritou.

Começou aquela pancadaria. Zé Tata vinha mais atrás e quando chegou perto viu os amigos dele sendo surrados por um bando de bêbados gritando ofensas. O sangue de Zé Tata nunca ficou tão quente, deu um grito e partiu pra briga. Eram mais de vinte homens cercando Zé Tata. O primeiro que chegou perto levou um chute na cara, o salto alto de Tata arrancou sangue do dito cujo que já caiu semimorto. Os outros, vendo aquele negrão enorme ficaram sem saber o que fazer. Zé Tata partiu feroz para cima deles, derrubando um por um com socos, pontapés, cabeçadas, pernadas… Quando a polícia chegou, o quadro era de trinta homens no chão e uma bicha enorme, gritando, chorando e batendo em que chegasse perto. Foi preciso mais de dez policiais para conter a ira de Zé Tata que foi preso e autuado como agressor e perturbador da ordem pública. Ninguém mais foi preso. Só não foi pior porque o Raimundo, um dos amigos que apanharam, defendeu Tata.

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Madame Satã

Anos 60, em Fortaleza; final dos anos 60 e começo dos anos 70, no Rio de Janeiro. Em Fortaleza, a “loira desposada do sol”, proximidades da Rua Franco Rabelo, do Curral das Éguas e do Quartel da Décima Região Militar. No Rio de Janeiro, a Lapa e o Bairro de Fátima. Tempos bons, de época braba.

Domingo pela manhã no Rio, a venda de selos pelos “Filotélicos” que viviam, e gastavam fortunas com as coleções. Algumas crianças se dirigiam para o Passeio Público, esperando o horário da primeira sessão infantil das manhãs dos domingos no Metro Boavista.

Em Fortaleza, a noite da sexta-feira e do sábado. A ZBM fervilhava e era ali que as coisas aconteciam. Fortaleza não era 5% do que é hoje e do que disponibiliza em opções de lazer noturno. No passado, na ZBM, era só para “molhar o biscoito”.

 

João Francisco dos Santos – Madame Satã

João Francisco dos Santos nasceu em Glória do Goitá/PE, a 25 de fevereiro de 1900, e faleceu no Rio de Janeiro, a 12 de abril de 1976, mais conhecido como Madame Satã, foi um transformista brasileiro, uma figura emblemática e um dos personagens mais representativos da vida noturna e marginal da Lapa carioca na primeira metade do século XX.

Nascido em Glória do Goitá, um município brasileiro localizado no interior do estado de Pernambuco, na Zona da Mata, João Francisco se mudou para a Lapa – que na época passava por um processo de transformação e gentrificação – aos 13 anos, onde viveu como moleque de rua até conseguir um emprego como vendedor ambulante de pratos e panelas de alumínio.

Navalha – a arma de Madame Satã

Madame Satã tinha fama. Para uns, uma má fama. Para outros tantos, a fama de brigão que, provocado “não batia fofo”. Enfrentava qualquer um. Tinha o hábito de vestir a cor branca. Nas ocasiões especiais preferia o paletó e calças de linho – e tamancos de madeira. Num dos bolsos internos do paletó, a inseparável amiga navalha.

Naquela região da Lapa, indo do final do gradeado do Passeio Público e cafés e bares nas imediações do Arcos até a Rua do Senado com Rua do Riachuelo e ladeiras de subida para Santa Teresa, Madame Satã era conhecido e temido. Só quem o dominava era a patrulha da Polícia Especial, antecessora da Polícia Federal no Rio de Janeiro.

Tamancos de madeira – o “escudo” de Madame Satã

Muito bom de briga, Madame Satã também tinha seus desafetos que, em duplas, o enfrentavam. Para esses, Satã (contam alguns que presenciavam os desafios) punha a amiga navalha numa das mãos e um dos tamancos de madeira na outra – trocando-as quando se defendia ou quando atacava. E os ataques eram quase sempre fatais.

Nos dias atuais tudo é diferente. A navalha, nem os barbeiros a usam mais. Os marginais criminosos preferem os fuzis de alto poderio, a grande maioria importados (na verdade, contrabandeados) de países especialistas em guerras. E até já se atrevem a trafegar na área que antigamente era dominada por Madame Satã.

DETALHE: Madame Satã também era baitola e não se escondia no armário. Mas essa era outra guerra, na qual ele sempre era derrotado. E, em vez de navalhas, espadas.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 24 de julho de 2023

O CAMAPU, O LOBO MAU E A VOVOZINHA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O CAMAPU, O LOBO MAU E A VOVOZINHA

José de Oliveira Ramos

Camapu em fase de crescimento e maturação

 

“Camapu é uma planta medicinal que serve para tratar doenças neuro-degenerativas, diminuir o colesterol e fortalecer a imunidade. Consumi-la pode ajudar ainda no fortalecimento da imunidade, prevenindo o desenvolvimento de gripes e resfriados. Camapu, fisalis ou juá-de-capote é muito comum aqui no nosso país, em diversas regiões. Na verdade, são duas as espécies: o Camapu (Physalis pubescens) e o Juá de capote (Physalis angulata), com diferentes características que podem ser facilmente cultivadas aqui.

Mas, o interessante é que a ciência está estudando esta planta pois, ela ajuda na recuperação dos neurônios e, portanto, das doenças neuro-degenerativas como o Alzheimer, o Parkinson e diversas outras.” (Transcrito do Wikipédia)

No meu Ceará, é popularmente denominada de “canapum”, e a sabedoria popular afirma que, o canapum também tem uma importante relevância social: serve para mantar a fome, quando consumido em quantidade significativa.

 

Camapu (ou canapum) maduro

 

Eis que, vou lhes contar uma história, com letras e tintas fortes de estória, que teria acontecido na Timbaúba, pequeno povoado situado no pé da serra que divide os povoados de Timbaúba, Queimadas e Pacatuba (onde hoje funciona a fábrica de envasamento da cervejaria Heineken, no Ceará).
Pois, lá pelos anos 50, quase todos os dias, e sempre antes que o sol esquentasse, Vovó saía à caça de melão São Caetano, cuja rama usava como sabão para lavar algumas redes, trapos velhos e outras peças de roupa. O fruto maduro daquele melão, ela usava para alimentar os passarinhos criados por Vovô, e ainda os dividia com patos e galinhas criados soltos no quintal. Nós, os netos, escondíamos alguns melões maduros, para usarmos na armação das arapucas para pegar sabiás e corrupiões.

Certo dia sentimos a ausência da Vovó. Tínhamos certeza que ela saíra para fazer a obrigação descrita acima. Mas, a demora começou a nos preocupar. Todos que viviam debaixo do teto da Vovó e do Vovô sabiam que Vovó começara esquecer das coisas. Achávamos que ela estivesse sofrendo de amnésia.

Vovó se danava a procurar o cachimbo por todos os cantos da casa, quando o dito cujo estava guardado num dos bolsos do vestido. Entretanto, ninguém se atrevesse a fazer alguma gozação. Era cabo de vassoura na cabeça e no espinhaço – era assim que ela punia os netos ou quem se atrevesse a “mangar” dela.

 

Vovó feliz por recuperar a memória

 

A demora continuava nos preocupando. Resolvemos sair à procura dela pelo mato. Antes de sairmos, resolvemos comunicar ao Vovô o que estava acontecendo.

– Ela deve de ter ido percurar aquela galinha pedrês botadeira de ovo que ela sentiu falta de menhanzinha bem cedim!

Pelo sim ou pelo não, resolvemos sair para procurar a véia. Foi quando Dudu, o irmão mais velho vaticinou:

– Será que ela esqueceu de voltar pra casa, ou tomém esqueceu o camim?

Depois de algum tempo de procura, o cachorro Pintado nos ajudou na caça. Vovó estava com um cesto cheio de canapuns, e continuava à procura de mais. E quanto mais procurava, mais encontrava, e aquilo a prendia no meio da mata.

Quando nos avistou, Vovó foi avisando:

– Meninos, a fome tavo bateno nim mim, quandi comecei a comer uns bixinhos desse. Foi quando me alembrei que a galinha que eu vim procurar está choca dentro daquele urinó de barro, e nim véspera de tirar os pintim. Tomém me alembrei que aqui neste mato tem um lobo solto. Um lobo mau!

– Vó, no Brasil não tem lobo, tentei ajudar.

– Tem sim, ora! Um tal de lobo guaraná!

– Vó, não é lobo guaraná, senhora. É lobo guará!

– Apois entãosse é esse mesmo!

 

O lobo mau que queria comer a vovozinha

 

Vovó precisou de ajuda para carregar a quantidade de canapuns que apanhara, que teve o peso aumentado pelo “despotismo” (fala lá dela, Vovó) de rama de melão São Caetano e muitos melões para os passarinhos de Vovô.

Quando chegamos de volta à casa, fomos discutir aquele assunto. Chegamos à conclusão que Vovó havia recobrado a memória, que as mãos não apresentavam aquele tremor em excesso, característico de quem, além de sofrer de amnésia, começa apresentar sintomas do mal de Parkinson.

E arriscamos:

– Vó, a senhora contou quantos canapuns a senhora comeu?

– Meninos, nem me alembro. Sei que comi foi muito, que inté enchi minha barriga!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 18 de julho de 2023

A LAIVA (“LIVE”) DA BOSTA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A LAIVA (“LIVE”) DA BOSTA

José de Oliveira Ramos

Bolotas caprinas

 

Inicio essa “laive” (arre égua!) lhes informando que não sei merda nenhuma sobre algumas bostas, entre as quais incluo onze tipos, provavelmente de urubus, corvos, cancão, besouro mangangá, potó, cafutes e lagartas.

Desaprovo totalmente a “live”, mas peço aos que estão nas janelinhas virtuais, que só perguntem alguma bosta sobre qualquer tipo de merda, se tiver Mestrado e Doutorado no assunto, auferido e avalizado por alguma das duas turmas do colegiado. Caso contrário, uma manifestação pelas primeiras instâncias pode virar suspeita e ser anulada monocraticamente. Como tem acontecido na maioria dos casos.

Vão à merda!

Agora, vamos às merdas!

Alguém da janelinha pode se manifestar, abrindo o microfone para dizer, por exemplo, por que o caprino come mato e caga aquelas bolotinhas que mais parecem grãos de café. Contém, segundo respostas de pesquisas dos fabricantes de adubo orgânico, um acentuado percentual de amônia, o que acaba garantindo a excelência como adubo.

Com formato idêntico às fezes caprinas, a bosta do jumento é maior

 

No mesmo formato, e aqueles que entendem de alguma bosta poderão contestar, a bosta do jumento, que também come mato e capim, além do alto teor de amônia, tem também um acentuado e repugnante odor, mas também é muito utilizada como adubo, principalmente para algumas árvores frutíferas.

Há uma diferença no sistema intestinal dos caprinos/ovinos e dos equinos. Os caprinos ruminam o alimento por longo tempo (mas isso, claro, não tem influência na formação da bosta – os entendidos em bosta podem me dar luz melhor, mas quem também não entender de bosta nenhuma é melhor ficar calado), com certeza num tempo maior que os equinos.

Bosta de bovino

 

Outra bosta sobre a qual a NASA desenvolve estudos, e para isso está sendo auxiliado por Sancho Panza que acabou de se unir a Maurino Júnior na tese que ambos desenvolvem sobre as estrelas, é a bovina. A vaca ou o boi, quando cagam, jogam ao solo aquele “prato de bosta” que, em Queimadas é utilizado como estrume (adubo) e de grande uso para espantar pernilongos durante a noite, quando é queimado.

Seria de muita valia a participação dos entendidos em bosta, incluindo aquelas onze raridades do Planalto Central. Também poderá contribuir para alguém que esteja desenvolvendo alguma tese de mestrado com patrocínio do MST.

Faz tempo que espero um sinal verde do MAPA (Ministério da Agricultura, Produção e Abastecimento), através da delimitação do zarc para que a exploradora de bosta que transformei numa ONG possa vender o produto preferencialmente para o Agro tão divulgado pela TV Globo.

As bostas, afinal, merecem um lugar de destaque na produção e no sustento das agriculturas – de alta produção e familiar.

Besouro Scarabaeidae mais conhecido como “rola bosta”

 

Ainda que, sem se preocupar em conhecer ou não, qualquer tipo de bosta, quem realmente vive tirando proveito dos tolôtes (no Ceará chamamos “toletes”) é o besouro Scarabaeidae, da família Coleoptera, mas, entre os entendidos de bosta, mas conhecido como “rola bosta”.

Os besouros rola-bosta são coprófagos, ou seja, alimentam-se de fezes de outros animais. Esses insetos desempenham função importante no ciclo da matéria orgânica, já que ao rolar e enterrar as fezes eles adubam a área e auxiliam na decomposição da matéria. Além disso, ao realizarem a “limpeza” nos pastos, eles atuam diretamente no combate a pragas. “Os besouros controlam a proliferação da mosca do chifre e da mosca do estábulo, muito comuns em áreas de pastagens. Essas moscas atacam o gado, deixando-o doente e estressado. Então, mantendo uma comunidade diversificada dos “rola-bosta” nessas áreas, o produtor acaba diminuindo seus custos”.

Aqui concluo a nossa “laive (live) conclamando aos que conhecem outros tipos de bostas (merdas também são válidas), que enviem sugestões para Chupicleide que, na segunda-feira, se não estiver de ressaca, fará a bondade de repassar.

EM TEMPO: Bosta, além de fazer justiça, também virou cultura.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quarta, 12 de julho de 2023

O SOL NASCE PARA TODOS – MAS QUEIMA APENAS UNS POUCOS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNSTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

E Deus ordenou – “faça-se o sol” – e tudo saiu das trevas

 

Havia algumas horas, a noite chegara com aquela escuridão pesada como se transportando chumbo. Eu, deitado na rede, na tentativa de minimizar o cansaço e o sofrimento físico do corpo, era embalado pela sinfonia das cigarras, dos grilos e, como se fosse um instrumento de percussão a marcar o ritmo, aquela sinfonia era completada pelo coaxar de um ou mais sapos – não havia como identificar a quantidade deles.

E eu tacava o pé na parede, para impulsionar e firmar o bom balanço da rede. Era bom ficar ali, escutando o som que o silêncio fazia. Dava para distinguir, lá longe, o barulho que as folhas faziam ao tocarem umas nas outras.

De repente, como se mandadas por alguém de espécie diferente, as cigarras pararam de cantar. Os grilos continuaram, e agora, cantando mais alto, como se para compensar a parada intempestiva das cigarras.

Voltei a tacar o pé na parede. Agora a rede estava mais embalada, permitindo escutar, também, ao mesmo tempo que a cantata dos grilos, a ranger das escápulas enferrujadas.

Intempestivamente, da mesma forma que pararam, as cigarras entraram no tempo e na hora certa na sinfonia. E o silêncio da noite, a cada momento, ficava mais audível, nos transportando para a realidade do enfrentamento de um novo dia na manhã seguinte.

O horizonte parecia mostrar um novo sol por estar repleto de esperanças

 

Na roça, quando o galo canta como se estivesse tocando o berrante de um vaqueiro, não adiante mais tentar ficar na rede. É nessa hora, que também começam a tocar os chocalhos dos bodes e cabras no chiqueiro – todos mancomunados como se estivessem caminhando para o embarque na Arca de Noé.

É, mal comparando, a cada dia que amanhece, uma verdadeira “Revolução dos bichos” (ainda bem que George Orwell já faleceu e nunca vai ter chance de ler essa citação). É, também, mais alguns minutinhos, que a gente se prepara para receber o rei. O rei sol!

E lá vem ele. As nuvens ficam vermelhas no horizonte do céu. Em fração de segundos vão amarelecendo, numa mágica poética cujos versos nem precisam de rima. Ele, o sol, nos penetra pelos poros e se abriga no coração.

Poeticamente, muitos já cantaram que, a cada dia um sol diferente nasce para todos. Uns o aproveitam. Outros, nem tanto. O sol, queima uns na medida exata – mas acaba queimando outros além da necessidade e da conta.

Aqui podemos ver que o sol “queimou” além da conta

 

O dia amanhece, parecendo ser igual ao de ontem. Não é. É tudo diferente – e existe a necessidade vital de continuar vivendo como se tudo fosse igual. Não é. É um novo dia, embora os propósitos e objetivos sejam os mesmos.

E, quando o dia amanhece, o sol é outro. É o sol de hoje. O outro sol, era o sol de ontem e, com certeza aquecerá e até poderá queimar pessoas que não são as mesmas. E a única coisa que parece ser igual hoje como ontem é o chão. O chão tórrido, com ranhuras provocadas pelo calor – a água evapora e, de longe parece estar em ebulição. Como larvas vulcânicas.

Queima. Enegrece a pele.

Na roça, resseca o milho se as espigas tiverem sido “viradas”. Há momentos que a os espantalhos parecem suar. Suar um mínimo que tenha acumulado nos dias anteriores – quando chovia e o sol permitia.

É o sol.

É o rei sol – que nunca conseguirá se encontrar com a rainha lua.

O homem procura entender a necessidade e o calor abrasador do sol

 

A gente anda. O sol parece nos acompanhar, mas aonde for, ele chegará primeiro, alegre por ter deixado em nós as suas marcas e impressões digitais – levou a nossa fotossíntese.

E ele pode. Pode, porque é o rei. Somos os súditos que por ele derramamos o suor.

Eis que finalmente o sol está indo embora para retornar amanhã

 

Eis que, não mais que de repente, o rei mostra que gastou boa parte das suas calorias. Precisa de recarga e, no sertão, começa a se esconder por detrás de uma montanha de nuvens que se misturam com a terra. Amarelas que começam se transformar e escuridão, como uma poesia que diz tudo e ao mesmo tempo não diz nada.

Por alguns estantes o rei sol muda de cor. Parece fugir do contato com a rainha lua.

Vai-se escondendo, escondendo e escondendo. Até que, finalmente desaparece.

E no dia seguinte, quando o galo cantar com o som e a força de um berrante, as nuvens voltarão a ficar avermelhadas, depois amarelecidas para louvar e ceder reverência ao rei. O rei sol.

E aí será um novo dia. Os chocalhos voltarão a tocar estridentemente, avisando que, mais tarde, haverá uma nova audição dos grilos e cigarras.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 06 de julho de 2023

CRIANÇAS PRECISAM DE LIMITES – PARA EVITAR QUE VIREM JOVENS IDIOTAS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Esse tipo de descontrole precisa ser coibido com rigidez

 

Hoje a crônica será diferente. Com objetivo puramente reflexivo – sem pretender ser a “palmatória do mundo”, tampouco assumir posição do Conselheiro Tutelar que o Estado impôs dentro da sua casa lhe retirando a necessária autoridade para imposição de limites e corretivos.

Não se iludam. Eu também fui criança e bastante “afuleimada”. Minha mãe soube me corrigir (sem ser doutora em nada!) quando se fez necessário. Os limites impostos à força fizeram de mim um jovem comedido, um adulto responsável (nunca tive nenhum vício do qual tenha me tornado dependente. Minto: fiquei viciado em mulher – e isso que fez não gostar de homem), e um pai cumpridor dos seus deveres e responsabilidades. Claro que jamais serei um primor de criatura. Mas meus filhos (5) me respeitam. Eu os ensinei a fazer isso – extensivo às demais pessoas.

Tudo começa dentro da própria casa. Muitos pais (e mães) são coniventes com a falta de educação dos filhos. Não dominam, não impõem limites e depois vão reclamar ao Papa Chiquinho, ou culpar a ministra Damares.

– Mãããããeeeee, o Dudé tá me dando cotôco!

Esse é o enredo que Kátia faz à mãe. Ela pouco dá atenção, pois está dedilhando o telefone celular no “zap-zap”, ou fofocando no Facebook.

Não podemos deixar fora dessa conivência, o pai que não “tem tempo” para dedicar aos filhos, num passeio, numa viagem ou até mesmo numa brincadeira em casa – mas tem “tempo de sobra” para enxugar uma gelada com os amigos, onde vê o jogo de futebol do seu time preferido.

Ou não é assim?!

É. E é mesmo!

Beatriz de castigo – debochou da irmã mostrando a língua

 

Não. Não me venham com chorumelas. As crianças não mudam nunca. Serão sempre as mesmas. Ranhetas, ciumentas, possessivas, achando que merecem todo tipo de atenção especial e favorecimento.

Os pais e mães que mudaram. Viraram uns panacas, achando que são obrigados a seguir um tal de “politicamente correto”, além de quererem transferir para a escola, o papel da educação dos filhos. A escola, repito: escolariza. Ensina português, matemática, geografia e história. A matéria “educação” é da grade curricular dos pais.

O que realmente faz a escola dos dias atuais?

 

A escola atual é diferente da escola antiga. O dia na escola antiga começava com os alunos em reunião de formandos, cantando o Hino Nacional Brasileiro do início ao fim. Os professores passavam “revista” para ver se realmente todos estavam cantando. Era uma aula de civismo e patriotismo. Diferente de hoje, quando a “professora” passou a ser chamada de “tia”, criando uma intimidade prejudicial ao convívio e ao respeito.

Seria por isso que pais e mães idiotas/imbecis, em vez de apoiar algo que certamente lhes beneficiariam no papel da necessária imposição de limites, se posicionam contra os colégios de orientação militar?

Ou seria por que o “gênio” Paulo Freire sequer é citado nesses tipos de escolas?

Ou seria por que essas escolas não aceitam crianças com tatuagens, brincos, piercings e outros penduricalhos que os próprios pais presenteiam os filhos?

Dudé ficou de castigo por mostrar “cotôco” para a irmã

 

Num fechamento consensual, o que se consegue ver é que a cada dia a sociedade e a família se afastam da escola e da parceria na escolarização e educação dos filhos. Se distanciam por contam da idiotice do “politicamente correto”.

Estamos falando do hoje chamado Ensino Fundamental, que deveria ser um preparatório para um futuro ensino universitário.

Com certeza não é isso que está acontecendo. O jovem chega à Universidade, sem saber com certeza à qual gênero pertence (masculino ou feminino). Não será fácil se decidir pelo homossexualismo.

É. É isso, sim.

Nenhum menino nasce para ser baitola, fresco, boiola, queimador de rosca ou, como preferem os realmente afrescalhados, gay. Nenhuma menina nasce para ser lésbica ou sapatão. As sementinhas, infelizmente, são plantadas, adubadas e regadas no recôndito dos lares, onde tudo é possível e permitido – os pais são coniventes e viram também “tios e tias”.

Quando todos sentam à mesa para as refeições, meninos e meninas, sentam na cadeira com o joelho dobrado e sequer viram o prato. O celular é o que está servido – e nenhum pai ou mãe fala porra nenhuma. Ou não é assim?

Se limites não forem impostos, jamais haverá chance para mudança. E cada pai/mãe colherá os frutos da semente plantada.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 29 de junho de 2023

AS M(M)ARGARIDAS E SUAS CORES (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS M(M)ARGARIDAS E SUAS CORES

José de Oliveira Ramos

Foto 1 – As margaridas de Abéché

 

Maurice Du Paul e Morgannyia Abrillé formavam um casal nascido em Abéché, pequena província do Chade, uma das mais importantes cidades dominadas pela França no século passado.

Depois de viver num verdadeiro inferno de contínuas guerras civis por conta da instabilidade político-administrativa, Maurice e Morgannyia conseguiram fugir pela fronteira de Abéché com o deserto Saara. Na diminuta bagagem, a roupa do corpo, uma pequena quantidade de dinheiro sem valor algum noutras cidades e países; uma sacola de pano com alguns víveres; sementes de várias flores e duas filhas.

“Abéché é a quarta maior cidade do Chade e é a capital da região de Quaddai. Abéché tornou-se capital do Sultanato de Wadai na década de 1890, depois que os poços de Ouara , a antiga capital, secaram.

Em 1909, as tropas francesas invadiram o Reino e estabeleceram uma guarnição em Abéché. A França assumiu o poder, forçando o sultão a renunciar ao trono. Naquela época, Abéché era a maior cidade do Chade com 28.000 habitantes, mas grandes epidemias reduziram a população para 6.000 em 1919. Em 1935, o sultanato foi restaurado por ordens do governo francês, e Muhammed Ouarada, herdeiro do trono após seu pai tornou-se rei. Uma vez que um dos redutos da rota do comércio de escravos árabe, a cidade é conhecida hoje por seus mercados , mesquitas , igrejas, praça (a Place de l’Indépendance) e para o palácio do seu sultão.

Abéché tem várias escolas, um hospital, uma universidade e é uma das principais guarnições da Armee Nationale du Tchad ANT. Há um pequeno aeroporto ( IATA : AEH , ICAO : FTTC ), ID do aeroporto: AE, operado do nascer ao pôr do sol (SR-SS) com voos para N’Djaména .

Em 25 de novembro de 2006, a cidade foi tomada pela União das Forças pela Democracia , um grupo rebelde que busca depor o presidente Idriss Déby . Vários saques ocorreram durante a noite. No mesmo dia, a vizinha Biltine foi capturada pelo Rally das Forças Democráticas, outro grupo rebelde. Um dia depois, ambas as cidades foram retomadas pelo exército chadiano.

Em 30 de outubro de 2007, a cidade chamou a atenção internacional quando 17 voluntários franceses que trabalhavam para a instituição de caridade Zoé’s Ark foram presos por suposto sequestro de crianças .

Abeche é o centro para a entrega de assistência humanitária para aprox. 240.000 refugiados de Darfur que vivem em 12 campos a leste da cidade, perto da fronteira com o Sudão. Várias organizações abriram escritórios em 2003 e 2004, por exemplo, o ACNUR, a Cruz Vermelha, a GTZ alemã e a UNICEF.” (Informações pesquisadas no Wikipédia)

A fuga e a chegada ao Brasil

Além do que está citado no primeiro parágrafo deste texto, com informações pesquisadas, o que se sabe de Maurice Du Paul e Morgannyia Abrillé, é que viveram quase uma dezena de anos “fugindo” à procura de um mundo novo, onde pudessem viver em paz – a preocupação maior, além do desejo de viver, era com as duas filhas, por conta do insistente e permitido tráfico de crianças.

Como e quando chegaram ao Brasil, quase ninguém sabia. Mas, todos sabiam que, o amor que tinham pelas filhas era imenso e os fazia enfrentar com risco de morte qualquer adversidade. As filhas, eram, enfim, a maior prova material da existência do amor entre eles, os fugitivos de Abéché.

A vida de fuga os trouxe ao Brasil. Aqui encontrariam várias dificuldades, haja vista que as poucas moedas que carregaram quando fugiram de Abéché sequer eram conhecidas neste país continental. Precisavam vestir, comer e morar.

Também nunca se soube como a família chegou ao Ceará, mais precisamente no povoado Timbaúba, hoje parte de Pacatuba, e já incluída na RMF (Região Metropolitana de Fortaleza).

As quatro pessoas negras, zanzando pelas ruas de um povoado pequeno, e de população também pequena, onde todos se conhecem, chamaram a atenção de alguns, especialmente das autoridades da gestão municipal. Eis que surgiu então o primeiro problema muito sério: a comunicação. Os quatro não entendiam nada do que ouviam e não conseguiam se fazer entender.

Mas, Deus existe, e está em tudo que é lugar. Alguém teve a ideia de tentar uma solução para o problema, usando a cor da pele dos quatro. Foram levados para o Quilombo dos Pretos. Ali ficaram um dia, ficaram dois dias e ficaram uma semana. Não lhes faltaram alimento e uma imensa necessidade de entendimento – o que certamente os levaria a conseguir algum trabalho para a sobrevivência.

 

Foto 2 – Margarida branca

 

Finalmente, o problema ganhou uma provável solução, e tudo parecia estar em casa, como era em Abéché.

Mas, a dificuldade de comunicação continuava. Maurice Du Paul passou a ser “Maurício”; Morgannyia, ficou mais acessível, sendo conhecida como “Morgana”. As filhas, com nomes originais impronunciáveis pelos quilombolas, passaram a ser tratadas como Margaridas.

A mudança e a adaptação de “Maurício” e família continuava. Agora, com celeridade, pois o tempo não volta, depois que passa.

A simpatia, o bom trato com os novos amigos e a disponibilidade para o trabalho, mereceram o respeito dos que ali já viviam há muitos anos.

Maurício ganhou um bom “pedaço de terra” para trabalhar, e, assim, alimentar a família com dignidade. Ganhou, também, alguns equipamentos para trabalhar a Terra. E foi à luta!

Eis que começou a esquecer Abéché e até as dificuldades que enfrentara para estar ali naquele momento. Vivo, e ao lado da família. Mas, vivendo momentos de alegria, lembrou que, em algum lugar guardara algumas sementes que trouxera de Abéché, na fuga com Morgana e, agora, as Margaridas.

 

Foto 3 – Margarida vermelha

 

Encontrou as sementes, e entendeu que chegara a hora do plantio. Preparou a terra e, para isso, até que teve ajuda de alguns novos amigos que, naquele quilombo, nunca ninguém vivia só.

Maurício plantou todas as sementes. Misturadas. Alguns dias depois de plantadas as sementes, nasciam os brotos. A mão de Deus funcionou e Maurício foi usado para separar brotos de brotos, como se os conhecesse desde muito tempo.

Chuva. Mais chuva. Os brotos cresciam e tomavam forma de roseiras. Cresciam e cresciam, até que alcançaram o tamanho ideal para a floração na primavera que se aproximava.

 

Foto 4 – Margaridas amarelas

 

A brisa noturna levou Maurício e a família – Morgana e as Margaridas – ao recolhimento para o descanso de mais um dia de intenso trabalho na plantação.

Distante dali, com os primeiros raios de luz, o cantar de um galo que não possuía, acabou por despertar a família – Só então Maurício percebeu que, ao redor de si, em vez de apenas duas, havia várias margaridas.

Margaridas amarelas, brancas, roxas e até vermelhas. A colheita foi farta e o resultado da fuga, do sofrimento enfrentado ao lado de Morgana e das Margaridas, estava sendo recompensando.

Reflexão: o que seria de Maurice Du Paul e Morgannyia Abrillé, se não fossem as margaridas. As que carregaram consigo na fuga, para evitar o rapto e o sequestro, e as que lhes mostraram na chegada da primeira primavera, uma luz para uma nova vida?


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quarta, 28 de junho de 2023

COMI LAGARTAS E CAGUEI BORBOLETAS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

COMI LAGARTAS E CAGUEI BORBOLETAS

José de Olveira Ramos

Lagarta “devorando” uma espiga de milho verde

 

Sentado numa ponta da velha calçada que dava acesso à latada da casa, enquanto eu limava o lume das enxadas e reforçava o encaixe do cabo na folha das ditas cujas, ao mesmo tempo que olhava meu avô João Buretama afiando o corte do machado numa pedra de amolar, eu conseguia, ao mesmo tempo, escutar naquele galho seco de catingueira, um bem-te-vi desfiando o seu canto triste que, naquela hora mais parecia um “agôuro” para algo de ruim acontecer.

Bem-te-vi! Bem-te-vi!

Estávamos – lembro bem! – na primeira semana do mês de março. Aquela primeira semana seria suficiente para brocar a roça e “coivarar” no aceiro da cerca o que capinávamos. Era para queimar, e depois de queimado misturar com folhas secas para fazermos o melhor adubo orgânico. O adubo seria misturado à terra, da qual faríamos as covas para o plantio das ramas de batata doce.

João Buretama, com o saber melhor que o ter, determinou:

– Zé, meu fio, aprepare essas ferramentas pra nóis começar roçar as premeiras linhas do roçado. O dia do milagroso São José tá se aproximano, e a chuva vai chegar cagraça de Deus!

Eram quatro enxadas. A responsabilidade da preparação era minha. Vovô ficava com o trabalho de amolar o machado e a foice, além de preparar uma rolha de sabugo de milho para a cabaça que serviria para levar água para o roçado.

O bem-te-vi parou de cantar. A noite chegou rápido. Vovó deixou as ocupações da cozinha, e veio acender o candeeiro e botar querosene nas lamparinas.

– Véia, onquetá o sabão prumode eu banhar? Perguntou vovô.

– Tá dento daquela cuia nim riba do girau da cozinha, meu véio! Respondeu vovó.

Arrumamos as ferramentas no local de sempre. Fomos nos preparar para o dicumê: cuscuz de milho feito no prato, acompanhando pedaços de carne de porco salgados e garapa de rapadura com limão espremido. Affffmaria!

A zoada dos chocalhos acompanhava desde cedo o despertar cantado pelo galo Fefé. Era mais um dia. Ou, era um dia que provavelmente seria diferente para nós.

Por volta das 7:00 hs qualquer um acreditaria que já era meio dia. O sol queimava a pele – mas o sertanejo parece nem ter pele, ou não estar muito preocupado com isso. Ferramentas no ombro, cabaça d´água à tiracolo e, caminho da roça. Foi assim no primeiro dia, no segundo e nos demais. Até o fim. Nada de chuva. Mas o tempo estava mudando, sim. Muito calor durante o dia e uma brisa suave durante a noite.

A lua. A lua apareceu no dia 17 de março. Trouxe um recado para o sertanejo – aquele que, com tempo bom ou ruim, vai continuar produzindo alimento para suprir a vontade e matar a fome de muitos.

Dia 18, véspera do dia de São José. A chuva caiu sem esperar pela noite. Vovó acendera os candeeiros e a besourada tentando se aquecer, aproveitava para produzir uma sinfonia que, Deus e a Natureza escutam perfeitamente.

Na manhã do dia seguinte, tão logo Fefé nos despertou e Vovó preparou o reforço matinal. O primeiro alimento – aquele que nos manteria acocorados plantando manivas de mandioca, amarrando e plantando ramas de batata doce e semeando milho.

Foi o dia inteiro daquele jeito. Na boquinha da noite, adispois do dicumê, a reza de agradecimento à São José que, mais uma vez atendendo nossas fervorosas orações, trouxe chuva para molhar a terra e nos permitir fazer a nossa parte na produção de alimentos.

Onze dias depois de semeado, o milho deu o ar da graça. Começava o milagre do nascimento. Um mês, e o milho crescendo. Dois meses e o milharal já apontava para os céus em agradecimento à Deus pela fartura.

A chuva ainda molhou a terra por alguns dias. Fez nascer as ramas de batatas e as manivas da mandioca começaram a brotar. O milho formava touceiras e fechava copas. Verdinho que doía na vista.

As bonecas com seus cabelos avermelhados começaram dar o ar da graça. Não demorou muito para as espigas completarem seus espaços e o milho amadurecer.

Eis que chegou o dia e a hora do “batismo” da fartura pelo homem da roça: ali naquelas paragens, a comemoração era feita comendo uma espiga de milho verde crua.

 

Parte de mim foi feita de casulo que transformou as lagartas em borboletas

 

Dois dias depois o castigo da Natureza para os incautos. Na ânsia de cumprir a missão e a tradição de comer a minha espiga de milho verde crua, comi também uma lagarta. Comi, não. Engoli uma lagarta.

Na hora de “cagar”, acredite, caguei borboletas!

Assim como se estivessem participando da “Revolução dos bichos” de George Orwell, o porco Parafuso e as galinhas que corriam atrás quando alguém “partia célere” para a moita no mato, ficaram se entreolhando desconfiadas e como se perguntassem umas às outras:

– Como isso pode acontecer – nosso manjá transformando em borboletas voadoras?

 

As borboletas se reproduziram num casulo fermentado


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 20 de junho de 2023

PEDINDO DESCULPAS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

PEDINDO DESCULPAS

José de Oliveira Ramos

Amigos, bom dia.

Quero pedir desculpas aos que cultivam o hábito de vir aqui para ler.

Estou “repetindo” essas duas crônicas (ambas fazem parte de um livro de minha autoria – que espero poder publicar tão logo a condição financeira permita) escritas anos atrás, e também já publicadas aqui neste JBF.

E, só estou repetindo por que estou me sentindo fisicamente cansado. Provavelmente por não estar fazendo nada. Comecei a trabalhar desde os 10 anos (na roça, com meus avós) e hoje tenho 78. Estou cansado. Apenas fisicamente cansado, repito.

Que eu saiba, não estou indisposto por alguma doença. Graças à Deus, estou lúcido.

Já tomei as duas doses da vacina (Coronavac) e, pelo menos psicologicamente estou imune.

É só “cansaço” mesmo!

Quando me sinto assim, tenho meu próprio antídoto: viajar!

E é o que vou fazer nesses próximos dias: vou ao interior e, quando retornar, pretendo ir à Fortaleza abraçar os parentes.

* * *

1 – PINTANDO BORBOLETAS

A borboleta que voou após ser “pintada” em tela

 

Manhã de um dia comum, de mais uma semana de trabalho, com ares de domingo. Mas, domingo foi ontem, ou será amanhã? – mas pode ser hoje, em obediência à nossa intenção. Ou será que, uma coisa ou outra terá alguma importância?

Que diferença pode fazer ou que importância tem um domingo – se esse é um dos sete dias da semana?

O forte vento causava a impressão de querer nos trazer ou tanger para o outono, num redemoinho que nos fará passar, também, pelo verão. Mas, não há explicação plausível para tantas folhas ressequidas formando o tapete no qual pretendíamos trabalhar, pintando borboletas.

A beleza e a tranquilidade do lugar, que nos permite contar os iguanas passeando nos galhos ressequidos, momentaneamente parece nos transformar num Van Gogh escrevendo a Natureza com suas tintas e seus pincéis.

Pincéis à mão!

Tela preparada – e o vento continua aumentando em rodopios espalhando as folhas ressequidas, ora tecendo, ora destruindo um tapete para deuses invisíveis, abrindo espaços com mãos de fada.

Um poema, com versos metricamente perfeitos e rimas que não deixam margens para críticas.

A Natureza põe e retira o vento da forma que bem lhe convém. Na direção que quer. Levando e trazendo de volta o que ajuda compor a paisagem. O atelier.

A Natureza faz da vida um poema. E nos ensina a viver as estações do ano com suas cores vivas, e mutantes. Um arco-íris!

Cada mudança é mais um passo a caminho da perfeição. A Natureza é um poeta.

Às mãos, tela e pincéis.

Os olhos escrevem o poema, selecionando as cores do arco-íris e a tela ainda branca começa sugar a tinta, como se uma força estranha pintasse por nós. Cada traço um novo tom que vai formando uma imagem que o cérebro ainda não define.

Seria a “Natureza”?

A borboleta está no pano da tela ainda inconclusa. Falta terminar de pintar uma das asas, e o vento avisa que está voltando. Agora mais forte. Últimos retoques. Pronto. A borboleta está pintada. Quase perfeita.

O vento chega rodopiando as folhas secas, quase quebrando os galhos ainda nas árvores. Empurra para longe o cavalete com tela e tudo. Nos apressamos em desvirar a tela para garantir a secagem da tinta, e a ação nos surpreende e nos faz sentir a presença d´Ele.

A borboleta não está na tela. Voou!

* * *

2 – TINHA ASAS – MAS NUM “AVUAVA”

Pintada – a galinha comida pela raposa por que não aprendeu voar

 

O quintal era grande – como grande também era a área onde estava fincada a moradia dos Buretamas, um pedaço de terra recebido como meeiros. O patrão, que não impunha nem dirigia as escolhas dos moradores, queria apenas a sua parte: metade de tudo que fosse criado e produzido a partir da “posse”. Era uma decisão razoavelmente justa para quem não tinha nada de si, nem aonde cair morto.

Valores morais dos anos 40 e/ou 50 não enxergavam maldades. Muitos confiavam em quase todos, e era verdade que, um simples cabelo dos bigodes significava uma fiança. Infelizmente, vieram os “Tempos modernos” (lembram Charles Chaplin?) e tudo pegou a bifurcação equivocada.

Consciente dos compromissos assumidos com os patrões, Vovó Raimunda costumava dizer que, “para quem tem vergonha na cara e respeita o assumido, até a cabaça deve ser partida em duas bandas”. E era assim que ela fazia.

Uma cabaça, duas bandas. Nessas duas bandas da cabaça, todos os ovos das posturas das galinhas eram meticulosamente divididos. Quando uma banda da cabaça ficava cheia, os ovos eram entregues ao patrão, e a parte do meeiro recebia seu destino.

Da mesma forma, havia uma terceira vasilha: e era nela que eram separados e guardados os ovos para “deitar” e postos para procriação. “Tirados” os ovos, os pintos eram “marcados com os olhos” – e sempre que o patrão queria comer uma galinha, mandava buscar na casa da Comadre Doca. E sempre eram enviadas aquelas “marcadas com os olhos”. Questão de respeito e honradez. Era assim que se vivia na roça naqueles tempos. Esperteza, no mau sentido, era algo desconhecido.

Vovó, vivida e esperta, também tinha seus parâmetros – suas leis concebidas, votadas e aprovadas por ela mesma, sem qualquer contestação do “plenário” (no caso, meu Avô, galos, patos, perus e galinhas), que tinham a obrigação de “permanecer como estavam” para a necessária aprovação.
E uma dessas leis era: aqui, ninguém come galinha – a não ser os galos, claro. Galinha era para “reprodução”, o que ensejava o cumprimento do acordo meeiro estabelecido com o patrão.

Milho bom, quintal limpo e sempre varrido com “vassourinhas”, boas sombras e quintal de areia para ciscar, água trocada duas vezes por dia nas terrinas apropriadas, isso tudo sem contar os “confortáveis” ninhos de palhas e garranchos para postura e chôco.

Vovó, como vocês já sabem, tinha o saudável hábito de “conversar” com as aves e alguns animais domésticos, como um jumento preto que ela chamava de “Biné” – se era preto, entendo que não preciso dar maiores explicações, certo?

Pois, certa manhã, quando jogava milho para as penosas, sentiu pela falta de uma galinha poedeira – a quem ela chamava de “Morena”, por conta de ter sabido, anos atrás, que uma certa “Morena” mantivera uma amizade íntima com meu Avô.

Minha Avó, acreditem, teria lugar cativo como “Ministra” do Itamaraty de qualquer governante brasileiro. Era uma verdadeira “madame” – e o fato de mijar em pé, jamais pesaria contra ela.

E foi só conversando com as outras bichinhas, que minha Avó descobriu o desaparecimento de “Morena”.

– Cadê “Morena”? Perguntava ela para as companheiras de quintal.

Como nenhuma respondeu, e todas continuavam bicando o chão para pegar o milho jogado, ela resolveu terminar o serviço, enchendo a terrina d´água. Pegou uma foice e caminhou para o mato e aproveitou para chamar seu companheiro desses momentos, o cachorro Corisco, que tinha as mesmas cores e pintas de um dálmata, mas era vira-lata mesmo.

Antes de passar pela porteira do quintal da casa, disse, falando de si para si:

– “Morena” tem duas asas, mais nenhuma seuve para avuar, ô diacho!

Não demorou muito, e perto dali, por detrás de uma crescida moita de mofumbo, Vovó encontrou penas de galinha. Penas pretas que, provavelmente seriam de “Morena”. Falou alto para que o mundo inteiro escutasse:

– Miserave, tu divia ter au meno aprendido a avuar! Assim essa peste de raposa num teria te comido!

No domingo seguinte, Biné, o jumento preto de estimação fazia aniversário. Vovó resolveu matar um frango (galinha, nem pensar em matar. Galinha é pra por ovos e aumentar a prole) e dele fazer cabidela.

O presente de Biné, foi um bom banho com a água guardada da chuva e colhida nas biqueiras feitas com o pau sabiá – de noite, ganhou um demorado e favorável encontro com a jumentinha Dalmira em pleno cio. Biné, relinchava e gemia sem sentir dor.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 15 de junho de 2023

ESQUECERAM DE MIM! (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

ESQUECERAM DE MIM!

José de Oliveira Ramos

Henrique – o mesmo “Riquinho”

 

Henrique, sem sobrenome, e apenas com o nome, era um menino – certamente jovem nos dias atuais, ou provavelmente adulto – que, enquanto outros iguais brincavam com a neve fazendo bonecos para festejar a chegada do período natalino, traquinavam em aeroportos e se preparavam para as viagens de férias à Disneylândia, soprava o braseiro dentro da lata para aquecer o amendoim que venderia nas estações ferroviárias e dentro do trem. Além de Henrique, era apenas “Riquinho”. Só isso.

Morador daqui, mas que poderia ser dali ou dacolá. Morava onde chegava, e dormia onde adormecia. Seu despertador era o sacolejar no trilho quando o trem passava sobre uma das muitas emendas. Seu “breakfest” tinha dois ovos de nada, bacon de sonho, iogurte de leite de cobra e pão de trigo amazonense. Café em xícara de porcelana feito na água do rio Ganges. Creme dental marca “Nenhum” e banho de chuva na banheira da vida. Assim vivia (?!) Riquinho.

Um dia, quando o trem permaneceu na gare central por tempo maior que o programado, Riquinho sequer se deu conta que estava perdendo tempo e provavelmente não encontraria mais amendoim para torrar e vender. Com grande atraso, o trem deu a partida em direção ao subúrbio, cujo final de linha ficava apenas na imaginação. Mas não seria novidade se a viagem terminasse na próxima estação. Ninguém, nem mesmo Riquinho, tinha certeza de nada. Ainda assim, o trem partiu.

Na porta entreaberta, a lata amassada e com pouco carvão recebia a ajuda do vento e as brasas se tornavam incandescentes aquecendo o amendoim já torrado. O ganha-pão de Riquinho. De repente, entre a oitava e a nona estação, o trem parou. Tudo ficou escuro dentro do trem.

A tempestade, que chegou também inesperadamente, levou consigo a corrente elétrica e o trem parou de circular. Como acontece quase sempre, ninguém sabe de nada. Apenas alguns tentaram adivinhar que, pela quantidade de chuva, a corrente elétrica tão cedo não voltaria. Muitos se arriscavam saltando do trem, na linha. A chuva torrencial molhava até a sombra do pensamento.

Riquinho, imitando os demais, também saltava do trem, na linha. Caminhou até a plataforma da próxima estação. Subiu na plataforma e percebeu que o braseiro fora apagado pela chuva e que o papel que enrolava o amendoim transformou-se em nada. O amendoim sumiu e, com ele, a única esperança dos primeiros caraminguás para comprar a satisfação para o estômago roncador.

“Criança é esse ser infeliz que os pais põem para dormir quando ainda está cheio de animação e arrancam da cama quando ainda está estremunhado de sono.” – Millôr Fernandes)

Fora da estação, o volume da água caída da chuva formava uma verdadeira tromba d´água. Difícil para a travessia de qualquer adulto, e visivelmente impossível para uma criança. A lata com carvão molhado ficara para trás. Era um atrapalho a menos. Riquinho foi obrigado a esperar a forte correnteza baixar. Quando a água lhe batia na canela, atravessou e, caminhando sempre muito rápido – mais por medo! – atingiu as proximidades do barraco onde morava com a mãe e com um homem que não sabia se era seu pai.

Só havia cena de destruição. As fortes chuvas e os deslizamentos de barreiras destruíram o barraco que muitos ainda chamavam de casa. Sirenes tocando, luzes vermelhas acesas, muita gente, muito barulho. Diziam ser as ações da Defesa Civil e dos Bombeiros. Um estrago só. Entre os corpos esmaecidos e sem vida, a mulher que Riquinho conhecia como mãe e o corpo magro e cadavérico do homem que ele tinha dúvidas se era seu pai.

“Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha. Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso. Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel.” – William Shakespeare)

A chuva torrencial e destruidora fez com que os pais esquecessem de Riquinho. Foram embora para o andar superior, levados pela correnteza até o inevitável soterramento. Não levaram Riquinho. Preferiram esquecê-lo. A passagem por entre arames farpados destruiu o que restara da roupa do corpo de Riquinho.

Agora, sem a lata de esquentar o amendoim, sem carvão, sem o amendoim, sem a mãe, sem o provável pai, sem a casa e agora sem roupa, Riquinho caminhava por qualquer lugar. Ele está aqui, mas pode estar aí ou ali. Mas pode estar em qualquer outro lugar.
Alguém lembra de Riquinho?

Por quê?

Quantos Riquinhos você conhece?

Já se dispôs a ajudar algum de alguma forma?

E se um desses Riquinhos fosse você?

VERBO SER – Carlos Drummond de Andrade

Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor.
Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três.
E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser?
Dói?
É bom?
É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a?
Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sexta, 09 de junho de 2023

A FOSSA, A BOSSA E A SOFRÊNCIA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A FOSSA, A BOSSA E A SOFRÊNCIA

José de Oliveira Ramos

Tito Madi lançou “Chove lá fora”

 

Hoje vou mais uma vez pedir permissão ao “dono da especialidade na casa”, Peninha, para relembrar um pouco da minha juventude em Fortaleza, dos bons tempos e idas e vindas entre um namoro e outro. Romântico por excelência, fiz várias coleções de LPs e Compacts que escutava na “radiola” nos fins das tardes de sábados.

Muitos passaram a chamar aqueles tempos de “tempos da fossa” que, com músicas, letras e cantores diferentes dos atuais, se propunham a falar de amor de uma forma tão poética quanto bela.

Tito Madi, Nora Ney e Agostinho dos Santos tinham minha preferência. Acurada ou não, mas a preferência era minha.

Depois, com a afirmação da novidade e a consagração de alguns no movimento que nascia, como João Gilberto, Edu Lobo, Pery Ribeiro e tantos outros nomes que agora me fogem da memória, o momento pós-consagração foi elevado ao auge e incluído entre os melhores da “música para ouvir”.

 

Vamos ouvir e relembrar?

 

 

Chove Lá Fora

A noite está tão fria
Chove lá fora
E essa saudade enjoada
Não vai embora
Quisera compreender
Por que partiste
Quisera que soubesses
Como estou triste
E a chuva continua
Mais forte ainda
Só Deus sabe dizer
Como é infinda
A dor de não saber
Saber lá fora
Onde estás, como estás
Com quem estás agora.

A novidade “pegou” e tomou conta das paradas de sucessos e dos ainda poucos programas de televisão, com o de Aerton Perlingeiro, Flávio Cavalcanti, César de Alencar, Moacir Franco e Raul Gil.

Foi quando surgiram mais nomes famosos engrossando as fileiras do sucesso. Também entraram na onda a magnífica Nora Ney e o excelente Agostinho dos Santos que, mais tarde receberiam o reforço de João Gilberto, Edu Lôbo, Nana Caymmi e Nara Leão. Todos em tempos diferentes e com novas letras, mas nunca com menos sucesso.

 

Nora Ney – a linda e magnífica

 

A morte prematura de Agostinho dos Santos (que fizera sucesso anterior com a gravação de músicas como “A noite do meu bem”) num acidente aéreo no aeroporto de Orly, na França, ainda que nenhuma relação tivesse com a novidade momentânea, atingiu e feriu de morte, aumentando ainda mais o momento vivido pela “fossa” musical.

Agostinho dos Santos era um cantor ascendente e o sucesso se abria para ele como o sol, que se abre para todos, todas as manhãs. O fato arrefeceu a musicalidade brasileira que, de forma paulatina caminhou para a demorada recuperação – mais algo pessoal que conjuntural.

Nos anos seguintes, de livre e espontânea vontade, a mídia especializada trocou a “fossa” pela “bossa”, acrescentando a palavra “nova” – “bossa nova”.

 

Agostinho dos Santos

 

Conclusão inteiramente pessoal, entendo que, aquelas duas décadas – mais propriamente fins da década de 50, quase toda a década de 60 e parte da década de 70 – a musicalidade brasileira recebia, como se fora a vitamina intravenosa Citoneurin, o reforço caribenho em termos de ritmos. Foi fácil (e mais prático) entrar no Brasil via Belém, com o “carimbó” cantado por Eliana Pitman e Pinduca.

Aqui, esse ritmo e cultura caribenha encontraram resistência para a dominação, pois já eram consagrados o samba, o samba canção e os esfuziantes sambas enredos das escolas de samba no carnaval carioca.

Como se isso não bastasse, encontraram barreiras no sucessos ascendente da jovem guarda de Roberto Carlos, Wanderléa, Erasmo Carlos, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e os consagrados Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Sílvio Caldas, Demônios da Garoa, Renato e seus blue caps, Zimbo Trio, Martinho da Vila, Trio Irakitan, sem contar o aparecimento consagrador de Elizete Cardoso, Elis Regina, e outros, reforçados pelas orquestras que nos arrastavam literalmente, para os bailes noturnos nos clubes sociais.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sexta, 02 de junho de 2023

NEM ROMEU TAMPOUCO JULIETA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

NEM ROMEU TAMPOUCO JULIETA

José de Oliveira Ramos

Serenata à namorada

 

Vou-me embora pra Pasárgada. Lá, não sou amigo do Rei, mas sou da Corte, sem ser vassalo e muito menos o “bobo”.

Vou pegar meu matulão, encher minha cabaça d´água e pegar a estrada para refazer o que fiz de bom na tenra mocidade. O ruim, nem pensar em refazer.

Volto ao tempo em que rapaz namorava moça e homem namorava mulher – e quem fazia o que faz hoje, desonrava a família. Tempos bons, quando até um inocente beijo na boca tinha que ser escondido.

Sexo com a namorada?

Zulive! Nem pensar!

Ou o jovem se masturbava no recôndito da camarinha, ou “demorava muito no banho”, ou pedia dinheiro aos pais para “trocar o óleo” com as prostitutas. E os pais sempre davam. Achavam melhor financiar a “troca de óleo” do filho, que escutá-lo, mais adiante, escolhendo como presente de aniversário um sutiã “Du Loren”!

Essa narrativa que ninguém me pediu, me levou de volta à “minha primeira vez”. Foi no Motel Calango.

Foi bom, e me custou alguns problemas. Deu bucho e teve resultado. Já se vão 62 anos!

Aquela falta de compromisso resultou na necessidade de jogar fora várias cuecas da marca Torre, branquinhas e lavadas com anil (quem lavava minhas cuecas era minha santa Mãe – hoje faço isso há mais de 50 anos). Uma gonorreia braba que me fez ter que recorrer à 1 milhão e 200 mil unidades de Benzetacyl. Fiquei curado, mas passei perrengue. Eita injeção filha da puta! Mas “seuve” e cura.

Quatro anos depois, a vida sorriu. O romantismo chegou, e trouxe com ele o meu entendimento do que era gostar de alguém. Homem gostando de mulher – no caso, rapaz, gostando de moça. Diferente de hoje, onde a escolha desnuda o convívio familiar.

 

Dinheiro e gastanças fáceis

Foi a partir de então, que conheci as mensagens contidas em algumas letras musicais:

“Contigo aprendi
Que a vida se renova a cada instante
Contigo aprendi
A conhecer o mundo, a ver adiante
Aprendi
Numa semana contar mais de sete dias
A ver maiores as pequenas alegrias
E a crer nos outros, eu contigo aprendi
Contigo aprendi
Que existe luz na noite mais escura
Contigo aprendi
Que em tudo existe um pouco de ternura
Aprendi
Que pode um beijo ser mais doce e mais profundo
Que posso ir-me amanhã mesmo deste mundo
As coisas boas eu contigo já vivi”

Mas, o jovem será sempre um eterno irresponsável que, somente levando tropeços vai conseguir amadurecer – isso, se enfrentar o mundo e os problemas. Se continuar “debaixo da saia” da mãe, o máximo que conseguirá ser é um baitola. Reclamará da vida, reclamará que sofre bullying – até que os pais lhe atendam e, para não vê-lo cair em depressão, lhe presenteiem com um sutiã.

Pois, por dois ou três anos consecutivos, ainda morando em Fortaleza, eu tinha cinco namoradas – e frequentava quase diariamente a casa de todas elas. Era um fdp.

Peguei um ônibus da Expresso de Luxo, viajei quase três dias e fui aprender a viver e amadurecer no Rio de Janeiro, onde morei por mais de duas dezenas de anos e casei pela primeira vez – enlace que me presenteou com duas filhas maravilhosas. Mas, também não tive vida fácil. Os tropeços serviram, como disse antes, para me ajudar a amadurecer e ser um homem de fato. Hoje, um idoso que faz qualquer coisa para não prejudicar ninguém.

Na Cidade Maravilhosa me tornei “macaco de auditório” do Feitiço da Vila, do Canecão, da Portela, do Botafogo de Futebol e Regatas e realmente aprendi que, “a vida se renova a cada instante” (tal qual a letra da música caribenha gravada por Moacir Franco).

Passei a gostar de gafieira, onde aprendi a dançar. Passei a amar o fado português e o tango argentino. Mas nunca esqueci, e jamais esquecerei as muitas serenatas feitas nas frentes das casas das namoradas.

Sem ser Romeu, e ela sem ser Julieta.

Esses tempos são o sal e o fermento da vida. E jamais voltarão.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 27 de maio de 2023

VOLTANDO PARA O FUTURO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

VOLTANDO PARA O FUTURO

José de Oliveira Ramos

Molhe de “mastruço” para a “meizinha”

 

Vamos fazer hoje mais uma volta ao passado, caminhando sempre na direção do futuro. Venha comigo. Se aprochegue. Se ajunte à nós.

Vá ao balcão da empresa aérea, faça seu “check-in”, despache sua bagagem e se prepare para o embarque. Se possível, escolha uma janela na fileira de três bancos. Ponha o cinto de segurança. Boa viagem.

Ir para a frente, nada mais é que caminhar para voltar ao barro, de onde saímos, no passado. E todos, meninos, meninas, homens e mulheres farão essa viagem – para onde não existem parques de diversões, jardins zoológicos ou áreas verdes para piqueniques. Não sei dizer mais nada. Afinal, nunca estive lá.

Às quatro horas da tarde, quando, para alguns, o sol está mais frio, nos reunimos na calçada daquela casa e escolhemos os times. Seis para cada lado – sem que o dono da bola aceite ser o goleiro, embora ele seja gordo, branquela e muito ruim de bola.

Mas, a bola é dele, ué! Fazer o que?

O jogo começa, e Ribinha, o mais habilidoso entre os peladeiros, logo marca dois gols. Num desses, driblou até o goleiro improvisado, que aceitou jogar ali apenas um tempo, e até quando o adversário marcasse cinco gols.

No campo havia um lado onde o piso era de barro. De um barro mais duro. Numa nova tentativa de driblar o marcador, Ribinha perdeu o controle da bola e chutou o chão. Arrancou metade da cabeça do dedão do pé.

Coisa horrível! Zulive!

Ninguém tinha coragem de olhar, mas o acidentado saiu de campo por alguns momentos, foi ao lado, pegou um pedaço de pano velho, do qual fez uma pequena tira e amarrou o ferimento. Voltou para o jogo.

Se fosse hoje, o acidentado teria que esperar o ambulância do SAMU – Eita que o Brasil de hoje só tem baitola!

Como o sangramento não estancava, Ribinha pegou uma mancheia de areia, jogou na cabeça do dedão e voltou a amarrar o pano velho. Mas a pelada continuou e ainda mais animada. Ribinha, jogando como se fora um saci, ainda marcou mais um gol.

Finalmente o placar atingiu 5 a 3. Favorável ao time onde Ribinha jogava. Intervalo. Hora de beber água. Não tinha substituição, pois ninguém queria sair do jogo. Nem o gordo dono da bola, que era apenas um reforço para o time adversário.

A poucos minutos do reinício do jogo, o goleiro caiu errado, tocou com a mão no chão e ficou com o dedo “dismintido” – hoje o menino vai direto para a Traumatologia do hospital.

Aquele, naquele dia, apenas saiu do jogo e foi para casa. Aproveitou para tomar banho.

Voltou para a rua com o dedo “dismintido” envolto num emprasto de mastruço que a avó dele fizera. Dois dias depois estava totalmente curado.

 

Mercúrio cromo para machucados

 

O dia seguinte era um domingo. Dia de almoço em família, quando as avós paparicam os netos e escondem algumas balas jujubas para presentear os preferidos.

Não conheço uma única avó que não tenha um(a) neto(a) preferido. Se for menina, essa será aquela que mais parece com ela. Em tudo. Até tem os peitos pequenos e a bunda grande e arrebitada.

Vovó acordou cedo e foi pegar e matar duas galinhas caipiras para o almoço. As tripas, o mucuim e a moela eram separados para o guisado do Ely Neto, o neto preferido do avô Ely. E ninguém tascava. Pois sim!

Uma galinha precisava ser sangrada para a cabidela. Uma bacia de porcelana com vinagre e um pouco de sal, fora separada para aparar o sangue da penosa.

Ao fazer a sangria, a galinha “estrebuchou” e a avó acabou fazendo um pequeno corte num dos dedos da mão. Mas terminou o serviço. Largou tudo sobre a pia e foi cuidar de estancar o sangramento. Pegou o mercúrio cromo e “embebedou” num pouco de algodão. Pôs sobre o corte e amarrou o dedo com um pano velho. Dois dias depois estava com o dedo curado e já ajudando a lavar um tanque de roupas sujas.

Se fosse hoje, teria recorrido ao Plano de Saúde à procura de um médico que, com certeza (em conluio com os laboratórios – de onde recebe uma boa comissão de propina) pediria até eletro-encefalograma, exames de fezes, de urina e ainda requisitaria aquele exame que mede a pressão e o “doente” passa 24 horas com aquela merda colada ao corpo. Coisa de médico fdp e da geração Paulo Freire de uma universidade “pagou-passou”.

 

Merthiolate o santo curativo

 

Não esqueça que a próxima parada técnica para reabastecer é também o seu destino. Desembarque, e vá até o guichê da empresa e aproveite para marcar a sua volta à realidade e ao mundo atual.

Não precisa esperar a bagagem. Afinal, você embarcou apenas para matar a saudade e corrigir a caminhada na direção da volta ao barro. É para a volta que a gente anda tanto para a frente.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 21 de maio de 2023

A GRAÚNA DE JOÃO BURETAMA (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A GRAÚNA DE JOÃO BURETAMA

José de Oliveira Ramos

A graúna Nêga Véia”

 

Foi por muito pouco, um tantinho de nada, que João Buretama não pegou a cobra caninana comendo a graúna velha no ninho feito no pé de pau (uma catingueira que disputava a sobrevivência com um pé de avelós – este, conhecido também como “cachorra-magra” de reconhecido valor curativo contra alguns tipos de câncer). A bicha conseguiu fugir mais rápido que pensamento, enquanto Buretama desembainhava o facão Collins de 30 polegadas – quase uma espada.

Foi quando descansava à sombra da catingueira, que João Buretama descobriu o ninho da graúna. Subiu cuidadosamente, e encontrou o ninho, com dois ovos. Acompanhou o choco e quase ajudou no “parto” do casal de filhotes. O macho, dizem os especialistas, nasce sempre primeiro.

João Buretama trabalhava diariamente, cuidando do roçado, onde tinha algumas linhas de mandioca e feijão, sem contar pouco mais de cem touceiras de macaxeira e muitos pés de maxixe, que ficavam mais próximos da vazante do pequeno açude. Dali, tirava o alimento para a filharada e aderentes.

João cuidava de algumas covas de batata doce quando escutou um piado diferente, próprio de ave que foi pega pelo predador. Parou com a enxada, pôs-se a escutar, até descobrir que o som estranho vinha da catingueira. Andou rápido. Andou mais rápido ainda. Quase correndo, encontrou uma cobra caninana se esgueirando entre as folhas secas, consumando a fuga.

João desembainhou o Collins – que mais parecia uma espada – deu alguns golpes no chão, mas a cobra, com a fome saciada, conseguiu fugir.

– Bicha desgraçada! Comeu o meu passarim!

Na verdade, o passarinho comido pela cobra caninana não era de João. Era do mundo, era da natureza, propiciando o equilíbrio entre as espécies e enriquecendo-as. Mas, no interior é sempre assim. Criou, é “dono”.

Quando alguém vê um canário e ele volta ao lugar onde foi visto, ele passa a “pertencer” a quem o viu. Vai continuar solto, voando, cantando. Mas será sempre de quem o viu por uma ou mais vezes. São essas as coisas boas do sertão, que pontificam e diferenciam entre as coisas das cidades asfaltadas e metrópoles.

Dando uma leve pancada na testa, João lembrou dos ovos que tinha visto no ninho. Sabia ele que, provavelmente, o primeiro ovo, que muitos entendem como sendo o macho, já tivera a casca rompida há alguns dias. A fêmea dessa espécie (graúna, chico preto, melro – gnorimopsar chopi) é mais preguiçosa. Demora mais para nascer e a se movimentar em busca do alimento. Há quem afirme que seja por isso que ela – a fêmea – cresce mais.

Pois o filhote havia saído à procura de alimento quando a caninana pegou a mãe no ninho. A aproximação de João Buretama apressou a fuga da cobra que, em parte, tivera um bom alimento.

Atônito, João lembrou que o filhote que acabara de romper a casca do ovo morreria de fome. Com todo cuidado possível, parou o trabalho, pegou a graúna fêmea ainda filhote, e levou para casa. Não tinha gaiola, e aninhou a ave entre alguns panos velhos. Antes de voltar para continuar a labuta, recomendou à mulher que fizesse uma papa de farinha seca com leite de cabra e, com um garrancho improvisado de colher, tentasse dar para a nova inquilina da casa.

De noite, na chegada à casa, a primeira pergunta de João foi pela nova “cria” da casa. Aquele amontoado de carne com alguns “canhões” nascendo, apenas dormia. Se fosse humana, estaria roncando, certamente.

O tempo passou. A graúna cresceu. Ficou coberta de penas e até ensaiou os primeiros voos. João entendeu que chegara a hora de prendê-la numa gaiola, pois ela poderia voar e nunca mais voltar. Aí veio a mágica da natureza. João achava que não ficava bem chamar a graúna de “graúna”, ou simplesmente “passarinha”. Assim, batizou-a de “Nêga véia”. Embora fosse nova, ou apenas uma “adolescente”.

“Nêga véia” pra cá, “Nêga véia” pra lá, e assim os dias se passaram. Num belo fim de dia e João chegou a casa, trazendo uma gaiola de talos de carnaubeira que encomendara ao Zé do Pifo, um desocupado que vivia fazendo aquelas coisas. Muitas sob encomendas.

“Nêga véia” dormia tranquilamente sobre uma tábua, onde também ficavam um vasilhame de barro com água e outro com a comida (milho verde, papa de farinha, arroz cozido). João colocou tudo, inclusive “Nêga véia”, na gaiola, e fechou a porta da dita cuja.

Com o surgimento dos primeiros raios da claridade daquele domingo, João pegou um caneco com água e foi “moiá os óios prumode tirá a remela.” Pegou o café e, com o cachimbo numa mão, e a faquinha de cortar o fumo na outra, sentou-se num tamborete próximo de onde havia pendurado a gaiola com “Nêga véia”. Sentou, e continuou cortando o fumo, enquanto oiava pra gaiola.

A natureza se manifestara, como que por um passe de mágica. “Nêga véia” começou a desfiar um cântico tão maravilhoso que levava qualquer um às lágrimas: fiu-tu-fiu, fiu-tu-fiu-fiu! Repete a mesma coisa várias vezes.

“Nêga véia” nunca havia cantado antes. João parou de cortar o fumo e ficou de olhos arregalados e marejados, espiando e procurando entender aquilo.

Quem conhece a letra da música gravada por Gonzagão: “… furaro os óios, do assum preto, prumode assim, ele cantá mió” com certeza vai entender o que aconteceu.

Ninguém furou os óios de “Nêga véia”. João escutou mais uma vez o cântico de “Nêga véia” e começou a achar que tinha algo de diferente naquilo. Algo fora de rotina. Não era toda graúna que cantava pausado daquele jeito, como se pretendesse dizer algo, como se pretendesse falar com alguém. Como se pedisse alguma coisa. Não era um cântico. Era um lamento.

João tirou “Nêga véia” da gaiola e esticou o dedo indicador da mão direita, como quem pede o pé a um papagaio. “Nêga véia” pousou no dedo de João, e, em vez de voar, pulou para a tábua onde costumava dormir e comer. Viver, enfim. E, imediatamente, parou de cantar.

Finalmente, João entendeu que o cantar de “Nêga véia” era um lamento. Um pedido para sair da gaiola, para continuar solta como manda a Natureza. Assim como quem pretendia dizer que tinha algo a cumprir e, presa, isso ficaria difícil.

Os dias se passaram e “Nêga véia” começou a alçar voos mais altos e mais demorados. No fim do dia, ao entardecer, depois do cântico do Vem-Vem, regressava para casa e, pousada e educadamente sacudindo todas as penas como se tirasse algo do corpo, ficava arrepiada e adormecia. Assim era, até os primeiros raios do novo dia.

Os voos demorados de “Nêga véia” já não incomodavam tanto a João. “Nêga véia” aprendera a sair para procurar alimento, da mesma forma que aprendera a voltar ao fim do dia, cansada, como se voltasse de um dia de trabalho. E era. “Nêga véia” estava trabalhando. “Maquinando” alguma coisa.

Todos os dias, sem que João percebesse, “Nêga véia” voava, voava e, de mansinho, pousava entre os galhos daquela antiga e velha catingueira. A velha catingueira onde nascera e, sabia, onde também perdera a mãe, comida pela caninana.

O calor tórrido e o vento parado faziam do ambiente um mormaço só. A sombra da catingueira era um oásis e, depois de secar o suor com a ponta da camisa, João foi refrescar o corpo na sombra da catingueira, sua velha conhecida. Usando o chapéu de palha como se fora um travesseiro, João olhou para cima e, como que por milagre, viu a ave e a identificou como sendo “Nêga véia”. E era “Nêga véia”, com certeza.

Mas o que “Nêga véia” estaria fazendo ali, naquela fatídica catingueira, depois de tanto tempo? Depois de reconhecer “Nêga véia”, tinha também certeza que ela voaria, e voltaria para casa ao fim do dia, depois do cantar do Vem-Vem.

Mas, olhando mais fixamente, João percebeu que um galho estava mais grosso do que de costume. Fixou o olhar e percebeu que o “galho” se mexia lentamente. Abriu ainda mais os olhos e viu: era aquela mesma caninana miserável que comera a mãe e conseguira fugir e, agora, ali nas suas ventas, começava a armar o bote para pegar também “Nêga véia”.

Com violência hercúlea e a raiva de todos os demônios, João desembainhou o Collins e usou toda a sua força para cortar o galho e, ao meio, a caninana. “Nêga véia” continuava inerte no galho, não tão alto. Antes de alçar voo, “Nêga véia” foi pulando de galho em galho, até que se aproximou da caninana e, percebendo que ali não havia mais vida, voou e voou até chegar próximo da casa de João (e dela).

Quando o Vem-Vem cantou, ao escurecer, “Nêga véia” voou e pousou na tábua onde fora criada. E, como a dar vivas à Natureza por aquilo que pode ser considerada a vingança da morte da mãe, começou a cantar:

– Fi-fiu-tifi, fiu-fi-fiu!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 15 de maio de 2023

OS ÁCAROS E OS CUPINS DA POLÍTICA BRASILEIRA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Ácaro em fotografia aumentada milhares de vezes

 

Não vou citar nomes. Não preciso, pois está muito fácil encontra-los. Basta dar uma olhada nos plenários das casas legislativas, para encontrar alguns dormindo, roncando ou peidando sem horário marcado, e até com baba escorrendo pelo canto da boca.

Partindo do princípio das exigências atuais da graduação de Mestrado/Doutorado para assegurar o direito de lecionar na maioria das universidades brasileiras, proponho esta pequena reflexão, indagando: “Quem graduou os que ensinam Ciência Política”?

Essa política brasileira praticada atualmente é fruto dessa “Ciência Política” tornada matéria em grade curricular?

Arre égua!

Votando desde 1960/61, tenho observado e deduzido que, um alto percentual de políticos brasileiros não conseguem ser superiores, tampouco diferentes dos insignificantes e invisíveis ácaros, ou dos cupins devoradores de madeira.

No exercício dos mandatos, sabe Deus conseguidos como e a que custo, se transformam em cupins. Fora dos mandatos, por incompetência de desempenho, se transformam em ácaros. Vegetam na poeira e se alimentam das bactérias produzidas nas frestas e casas de aranhas desenvolvidas nos armários, nos guarda-roupas e gavetas.

E é dali, daquele recôndito, que sabem e resolvem tudo aquilo que não fizeram no exercício dos mandatos. Opinam que é uma maravilha. Têm solução para tudo. Mas, repito: no exercício do mandato não fazem “porra nenhuma” ou “merda alguma”!

São siameses em qualquer lugar deste continente. Aqui mesmo neste Maranhão de rios abundantes e piscosos, onde por coincidência resido, encontramos alguns desses ácaros e cupins por excelência.

Esses, conseguem enxergar erros e defeitos em todas as ações propostas ou desenvolvidas pelo governo federal (não apenas no atual) – caso específico da malha ferroviária, que acena com a queda no custo do transporte de riquezas e alimentos produzidos no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goias e cidades do Norte. Exemplo? O boicote ao “Ferrogrão”.

Eis que, num estalar de dedos, os ácaros aparecem para enaltecer o provável crescimento e desenvolvimento econômico do Estado, apontando créditos exclusivos para o governo estadual?

É mole? Não cabe aí mais um sonoro “arre égua”?

Como é que alguém que conhece e vive no Maranhão, principalmente em São Luís, pode encontrar motivos para votar contra o marco do saneamento básico?

Pois acreditem, o atual Prefeito de São Luís, quando no exercício do mandato de deputado federal, votou contra a aprovação do marco do saneamento – e faz tempo a “Ilha” vive atolada na lama e na merda. As praias estão sempre impróprias para o banho.

Outros, relembrando a fala popular do jabuti na árvore, que durante as enchentes foram ali colocados por alguém, e tiveram a chance de fazer alguma coisa pela educação, principalmente estadual, entraram num casulo e, de jabutis se transformaram em cupins.

Cupins da política devorando a madeira

 

Sabem de tudo, sugerem soluções para tudo, criticam tudo que outros fazem mas, no cargo que podiam ter feito o mínimo, continuaram sem fazer “merda nenhuma”.

Pior, é constatar que, um mandato de quatro anos demora muito terminar, além de projetar sofrimento eterno num mandato de oito anos.
E, pasmem: a Política é uma Ciência!

Pelo menos é o que o progressistas afirmam.

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 08 de maio de 2023

O CORRIMBOQUE E O RAPÉ DA TIA MARIA (CRÔNICA DE JOSE DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O CORRIMBOQUE E O RAPÉ DA TIA MARIA

José de Oliveira Ramos

Rapé no corrimboque

 

Tia Maria era a primogênita da minha avó. Mais velha que minha mãe – nasceram apenas elas duas. Minha mãe era neta de índia e Tia Maria, também, claro. Apesar disso, existia muita diferença física entre as duas. Minha mãe tinha o cabelo tipo “Black Power” e Tia Maria tinha o cabelo tipo Iracema, a virgem dos lábios de mel, personagem de José de Alencar. Minha mãe era mais do lado negro, africano. Tia Maria era totalmente “índia”.

As duas foram criadas no ambiente das dificuldades inerentes à época – 1915 para frente e, muitas vezes, se deixaram flagrar juntas rindo das “coisas do mundo moderno” que chegaram a viver nos anos 60. As duas são falecidas.

Tia Maria não conheceu totalmente os aspectos orgânicos da mulher. Nunca menstruou. Sim, antigamente, provavelmente por conta da alimentação diferente dos dias atuais, as jovens só conheciam menstruação depois dos 18 anos. Hoje, as meninas já sabem disso aos 11 anos.

Tia Maria casou aos 16 anos com Antônio Luciano, cabra bom de trabalho. Verdadeiro mestre no manuseio da foice, da enxada e do machado. Nascido no interior do Mato Grosso, chegou ao Ceará com vinte e poucos anos. Arrumou trabalho e terra para morar. Nem “esquentou tamborete” namorando e já foi pedindo para casar com Tia Maria.

A partir daí, Tia Maria não conheceu menstruação. Engravidou, pariu aos nove meses. Antes de conhecer o ciclo menstrual, já estava grávida novamente. Era, como dizíamos – os sobrinhos – “saindo gente e entrando gente”. Foram 23 filhos, todos vivos até a maioridade. De noite, a casa, com tantas redes, parecia uma hospedaria em dia de lotação.

Tia Maria fumava cachimbo e mascava fumo – uma cusparada dela matava qualquer mangangá e paralisava qualquer rola-bosta.

Mas, a principal diversão de Tia Maria era “cheirar rapé”. Quando estava grávida – e sempre estava – não fumava nem mascava. Aliviava a tensão e bolinava o vício cheirando rapé. O rapé que ela mesma fazia.

Mandava comprar fumo de rolo, daquele bem curtido, desenrolava e punha a secar ao sol. Torrava o fumo num alguidar de barro próprio para aquele serviço. Fazia o mesmo com a semente da imburana e ainda acrescentava a casca seca e esfarelada do cumaru.

Em algumas cidades interioranas do Nordeste, o rapé é largamente consumido e utilizado para provocar espirros que livrem da “constipação”, aliviando a respiração. Alguns usuários se viciam – caso da Tia Maria.

Numa bela manhã Tia Maria resolveu merendar algumas mangas. Comeu por ela, pela criança que tinha na barriga e por ela de novo. No dia seguinte a caganeira não esperou pelo raiar do sol. Dia claro, e Tia Maria já estava correndo para o buraco da merda, local onde as pessoas faziam suas necessidades fisiológicas. Cagou que deu tremedeira. Continuou cagando aquela bosta rala o dia todo.

– Eita! Vai acabá cagano inté o minino! –  advertiu Antônio Luciano.

– Mermão, hômi de Deus, tu quer que eu faça o que?

Tia Maria havia escutado, mas não se lembrava quando nem onde, que além dos remédios caseiros, o bom para acabar com aquela caganeira era esquecer. Esquecer até que tinha fiofó. E, para esquecer ou lembrar de alguma coisa, Tia Maria sabia que o bom mesmo era cheirar rapé.

– Minino, traz daí o meu corrimboque! – pediu a um dos filhos que estava mais próximo.

Zé Luciano, de oiças bem abertas escutou o pedido-ordem da mãe e se apressou em obedecer.

Tia Maria deu duas cafungadas no rapé. Não demorou e a resposta veio. Começou a espirrar. E tome espirro e mais espirro.

– Mulé, tu tá suano frio, quidiabos tu tem? – arguiu Antônio Luciano.

E tome espirro e, a partir daí, quanto mais espirrava, mais Tia Maria se cagava. Era um espirro pelo nariz e uma chicotada de merda por baixo. E tome rapé e tome espirro e tome caganeira!

A queda de pressão e o suor frio de Tia Maria começaram a preocupar Antônio Luciano, que se apressou em chamar a Rezadeira do lugar, Gertrudes de Noca, ficando mais aflito depois que Tia Maria desmaiou. Mas os espirros não paravam. Nem a caganeira, agora de chicotadas!

Gertrudes de Noca chegou, começou a rezar “in cruz” com capim limão, arruda e pião roxo. Ao passar alho nos pulsos de Tia Maria e perceber que essa despertara, Gertrudes de Noca perguntou:

– Maria, acorda Maria! Tu tá sentino arguma coisa? Tu quer arguma coisa?

– Quero o meu corrimboque, com o meu rapé!!! – respondeu Tia Maria.

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 02 de maio de 2023

O SENADINHO DO ANGICO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O SENADINHO DO ANGICO

José de Oliveira Ramos

Angico transformado em Senadinho

 

O forte aroma da floração primaveril do angico tangido pelo vento era um convite para alguns sentarem à sua sombra e usufruírem do local, usando como assentos os cambitos e as cangalhas.

Era ali, também, que o jumento “Feliciano” e o burro “Dourado” descansavam e aproveitavam para ruminar suas rações de capim misturadas ao milho e colocadas à disposição.

Uma gamela com água, também aproveitada pelas galinhas transformava o desenho imaginário do local numa fazenda. E não era uma fazenda. Era a casa de Raimundim de Maria de Horácio – onde também morava uma reca de meninos, todos “descobertos” no calor dos galanteios das duradouras noites de lua cheia.

Era ali usufruindo da sombra do angico, que se reunia o “senadinho” do lugar. Era onde se sabia de tudo e, também, onde se resolvia tudo. Desde o início da colheita do feijão ou do milho de cada roça cooperativada, até o plantio da maniva, ou carpina interativa e coletiva da vazante – quiabo, melancia, batata doce e alguns pés de abóbora.

Debaixo daquele angico era também onde se abatia, limpava, cortava e vendia o porco, o bode, o carneiro ou o boi para o consumo da comunidade. Lavagem e limpeza de vísceras não eram permitidas para evitar a proliferação de moscas, ratos e outros insetos roedores. Enfim, aquele angico tinha o mesmo papel que hoje tem o shopping ou a Associação Comercial de cada cidade.

Nas tardes de sábado o local era preparado para receber um encerado de caminhão, enquanto a sanfona de Seu Tôquim animava e promovia gratuitamente o melhor forró pé-de-serra dos arredores.

Com o suor escorrendo pelo sovaco e pescoço ensebados, homens e mulheres se grudavam, e alguns casais envolvidos, continuavam dançando sem perceber que o frege terminara. Sanfona, fole, pandeiro, triângulo e um bumbo furado, que servia apenas como cenário, pois não emitia qualquer som.

Nas manhãs de domingo, a feirinha comunitária. Macaxeira, farinha seca, rapadura, galinha da terra, peru, carne de boi, de porco e de bode. Fumo, cachaça e até comprimidos para qualquer meizinha.

De tarde, o local se transformava com a chegada do rádio Transglobe à bateria, para a transmissão do jogo no Maracanã ou Pacaembu nas vozes inconfundíveis de Jorge Cury, Doalcei Bueno de Camargo ou Fiori Gigliotti e ainda Waldir Amaral. Na Rádio Assunção Cearense, as vozes de Ivan Lima, José Santana, Jurandir Mitoso e alguns anos depois, de Paulino Rocha e Gomes Farias.

Na segunda-feira começava tudo de novo:

Coçar frieira na beirada da rede. Subir na árvore para fazer uma necessidade fisiológica tentando fugir dos porcos e das galinhas. Tomar banho nu no açude, jogando “galinha d´água”. Beber água fresca da quartinha. Surrão. Caganeira de chicote. Bicho de pé. Balançar na rede, tocando o pé na parede para escutar o ranger do armador. Pirão de farinha seca. Beber caldo no prato sem colher. Cheirar rapé e ao espirrar, dizer: “Armaria”. Cachimbo de barro. Amarrar sabugo de milho no pescoço do cachorro. Assoviar pra provocar o glu-glu do peru. Esperar o cântico do vem-vem e botar o angu para a graúna.

Matar a cobra e mostrar o pau.

Pescar no açude com anzol de alfinete. Caçar e pegar “mané-mago” (libélula) nas árvores. Atiçar cachorro vira-latas pra pegar teiú no mato. Passar creolina para matar bicho no lombo do cavalo. Acender a lamparina e andar feito alma com a dita cuja no meio da noite.

Deitar na sombra da catingueira. Cortar unhas das mãos e dos pés com canivete. Peidar dentro d´água na hora do banho no açude. Cangalha. Cambito. Chicote. Chifre pra aboio. Caranguejo uçá. Rapadura melada. Alfenim. Batida de cana. Manteiga de garrafa.

Leite mugido. Chiqueirar cabras e bodes. Camaleão. Rola-bosta. Cobra de duas cabeças. Besouro mangangá. Cavalo-do-cão. Sibite. Graúna. Bem-te-vi. Potó. Muçum de açude e de lagoa.

Debulhar milho e feijão. Plantar maniva. Raposa. Capote. Cabaça d´água. Terrina para água dos animais. Sal em pedra. Torrar café no alguidá. Mão-de-pilão. Pano de coar água no pote. Panariço. Gurgumio. Cajuína. Assar castanha no caco. Espinho de bananeira. Moita de mofumbo. Caminho d´água. Sabão Pavão. Óleo Pajeú. Grude na colher. Ferro à carvão para passar roupa. Anil e goma para camisa de cambraia de linho.

Viver. Cantar. Passar o anel. Brincar de manjô. Pião. Caçar passarinhos. Comer jumentinha. Montar a cavalo e campear o boi. Galo de campina. Alpargatas. Trempes. Pão sovado. Voo rasante da coruja. Rasga mortalha. Calango a galope. Cantoria. Cordel de mimeógrafo. Papel de embrulho. Lápis na orelha. Manteiga à retalho. Caderno de fiados. Bicada pra tomar banho e cusparada no pé do balcão. A “do Santo” na bicada. Tira-gosto de cajá umbu. Sirigüela inchada. Arapuca pra pegar sabiá. Foice. Pedra de amolar machado. Cabaça d´água. Beber água na caneca no mesmo cantinho que a velha babona bebia.

Era a vida da roça e do Senadinho do Angico. Continua sendo inté hoje!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quarta, 26 de abril de 2023

JÁ TIVE UM TIO BEIJA-FLOR (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

 

JÁ TIVE UM TIO BEIJA-FLOR

José de Oliveira Ramos

O beija-flor da Vovó

Vovó, mãe da minha mãe, era uma negra de descendência indígena que nasceu em Pacajus, interior do Ceará, onde, por muitos anos viveram os índios paiacus. Pele negra, que ficou mais negra ainda pela constante e obrigatória convivência sob o sol e o calor abrasador – sem que uma coisa implique a outra.

Vovó era filha de Nanahme – quinta geração dos índios paiacus – e teve duas filhas por conta do convívio com os negros vindos da África. Assim, em nada nos diminui ou ofende o termo “afrodescendente”. Realmente o somos. Somos legítimos descendentes de negros africanos e de índios.

A necessidade de “sair de baixo da saia rodada da mãe” fez com que Vovó procurasse um rumo na vida. Aprendeu a fazer tudo que era necessário para viver onde vivia. Cozinhava, lavava roupa, matava galinhas, fazia fogueiras, torrava café, fazia farinhada, tangia animais, criava galinhas e tinha extrema habilidade com a foice, o machado ou com a vassoura. Aparou netos e bisnetos. Era uma parteira leiga – daquelas do lençol grosso e encardido mas sempre limpo.

O marido só vivia para ela e para o trabalho. Os dois fumavam no mesmo cachimbo. Era minha Avó quem cuidava das tarefas “domésticas” – enquanto a parte que exigia mais esforço físico ficava com o Avô.

Foi a Avó quem construiu no final da casa, e onde ficava a cozinha, um girau onde lavava as panelas de alumínio, as panelas de barro, os alguidás e os pratos, também de barro. Ali, debaixo do girau, quando caía algum resto de comida dos pratos que estavam sendo lavados, os pintos comiam. Caroços de feijão cozidos, sementes de melancia, de maxixe, de tomate, de quiabo – ao serem molhados pela água que caía da lavagem dos pratos e panelas, nasciam. Antes de frutificar, floresciam.

Do que florava, quando as galinhas não comiam, alguns pássaros se regozijavam. Faziam a festa, num ambiente totalmente doméstico. Entre esses pássaros, começou a aparecer um beija-flor.

Vovó, nesse tempo, não tinha idade tão avançada. Assim, pensar que ela estava caducando ao ouvi-la “conversar” com o beija-flor, nunca nos pareceu justo. Mas ela conversava, sim. E até insinuava que o beija-flor respondia:

– Quer mais um pôquim d´água bixim?! Quer meu fii?

E entendia que respondia e atendia ao pedido da minúscula ave. Aquele beija-flor, sem documento cartorial, sem qualquer papel, passou a ser “filho” da Vovó e, portanto, meu tio. Exigente, matriarcal e dominadora por excelência, minha Avó até fazia questão que os netos – sem exceção – pedissem a bênção diária ao “tio” voador. E não ganharia o naco diário de rapadura o neto que não pedisse a bênção ao bixim.

A noite chegava e algumas horas depois, o novo dia. Louça do café para lavar, feijão para limpar retirando os gorgulhos, lavar e botar no fogo. Uma rápida passada pelo girau e Vovó não viu o beija-flor. Pegou a vassourinha e foi tentar enganar a si própria, fingindo que limpava o quintal. Nova vassourada e nova olhadela para debaixo do girau. Agora uma olhada mais demorada. Não viu o beija-flor. Olhou, olhou e procurou mais demoradamente. Não viu nada.

– Meu Deus dos céus, por onde andará o meu bixim?!

Cuidando da montaria para seguir para a labuta na roça, meu Avô, sem saber muito do que se tratava, ralhou:

– Tá falando sozinha, véia?

– Que nada hômi, é meu bixim que num tô veno!

– Véia, derna de quando, um passarim que veve avuando, soltim nas capoeiras, é teu?

– É meu sim. Eu dô água, dô de cumê, dô meus óios espiando pra ele, admirano, banhano, entãosse é meu, sim! É mais um fii que crio!

O Avô amuntousse no animal e foi trabaiá. A Vovó continuou resmungando e, quando o sol começou a esquentar, de foice na mão foi pegar uma caminhada de lenha prumode fazê o dicumê. Tinha muita lenha na latada, que o Avô nunca deixava faltar. O que a Avó queria mesmo, era um motivo para sair para procurar o beija-flor.

Saiu, procurou e nada encontrou. Almoçou com o Avô, deitou rapidinho para uma madorna, mas o barulho dos chocalhos nas cabras e bodes no chiqueiro acabou acordando a Avó. Pegou a foice de novo e foi apanhar mais lenha – mas ela mesma assumira que era apenas um pretexto para procurar o beija-flor.

Entre entristecida e ansiosa, Vovó pisava em tocos, gravetos, touceiras de ortiga e em quem mais aparecesse pelo caminho. O barulho da corrida de um teiú sobre as folhas secas assustou Vovó, como se estivesse num pesadelo. Aquilo lhe chamou a atenção, e ela voltou a observar os galhos com mais interesse. Via besouros mangangás, calangos das costas verdes, chapéus de marimbondos e até cobras verdes. Mas não conseguia ver o que procurava: o “seu” beija-flor.

Por não ser primavera, não havia flores. Esperava encontrar o “seu” beija-flor pousado num galho qualquer, voando, rodopiando e fazendo aqueles voos tão rápidos que só os experientes conseguem vê-los.

O ninho e os ovos do beija-flor da Vovó

Assim, como que uma ação divina, o vento soprou mais forte. Galhos balançaram, folhas se afastaram e Vovó teve a atenção chamada por um ninho minúsculo. Num galho muito fino (que dificultava o acesso de cobras), lá estava um ninho que Vovó conhecia. Um ninho de beija-flor.

Usando a foice, Vovó procurou um galho ainda maior e o cortou, deixando nele um gancho. Teve a feliz ideia de abaixar o galho para conferir se era realmente o ninho do “seu” beija-flor.

Difícil saber, mas para ela, era o ninho do “seu” beija-flor e aquela era a única justificativa possível para o desaparecimento momentâneo dele da floração dos tomateiros nascidos debaixo do girau. Alegre, e mansamente foi soltando o galho puxado com o gancho, até ter certeza de que o “seu” beija-flor não perceberia que alguém se aproximara da sua futura cria.

Chegando à casa de volta, Vovó jogou caroços de milho no quintal e acabou pegando uma das maiores galinhas do terreiro. Colocou vinagre numa tigela, aparou sangue e mergulhou a galinha abatida na água quente para a devida limpeza. Preparou uma galinha à cabidela para comer com o véio, que não demorou chegar e foi logo se abancando na mesa posta também na cozinha.

– O que tem prumode cumê, véia?

Um sorriso largo, escondendo as lágrimas derramadas na tristeza com o repentino desaparecimento do “seu” beija-flor, chamou a atenção do Avô.

Galinha à cabidela da roça

– Galinha? Galinha à cabidela? Hoje é niversário de quem, muié?

– Véio, num é niversário de ninguém. É que tô avuando de alegria cuma um beija-flor, apois encontrei o meu bixim. O danisco vai sê papai e eu vô sê Avó de novo e tu, meu véio, vai ser Vovô de novo!

– Amém véia! Eu já tavo atarantadim catua tristeza, teu chôro dento de casa, se entristeceno pelos cantos, sem nem querê dá uma cachimbada cum teu véio!

– Véio, ante de cumê vamo rezá. A gente tá precisano de agradecê a Deus pela graça alcançada!

– A graça de tê comida na nossa mesa, né véia?!

– Não véio, por causa de que eu encontrei o meu bixim. Tomara que os meus netim nasça tudo direitim, cagraça de Deus!

 

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 20 de abril de 2023

ZÉ, O RUDE (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

ZÉ, O RUDE

José de Oliveira Ramos

Zé com sua negritude reforçada pela persistência

 

Nascido no dia 29 de fevereiro, Zé aprendeu e aceitou a conviver sem comemorar datas de aniversário. Isso porque, comemorar ano sim, ano não, não era coisa que lhe satisfizesse.

A primeira infância vivida entre enxadas, foices e carpina nos roçados do interior deram tons escurecidos e características de rudeza à sua forma de vida.

Não recebia gentilezas e isso fez com que as desconhecesse.

Frequentou pouco a escola, até que entendeu, que, o que aprendera era suficiente para caminhar vida afora. Para nortear seu destino e ajuda-lo a escolher o melhor para si.

Essas coisas petrificaram em Zé a dura rotina da vida. Não via necessidade em andar por aí “arreganhando os dentes”, como ele próprio falava, quando alguém se dispunha a ouvi-lo.

Entretanto, haverá sempre na face da Terra, aquele que, um dia, iluminado por Deus, conseguirá enxergar o seu real caminho e encontrará o começo do seu destino.

E por que seria diferente com Zé?

Rudeza é uma característica pessoal. Não é um castigo que a vida impõe.

E foi num final de dia, quando sentou na ponta da calçada de casa para limpar a enxada e a foice que usara na roça durante todo o dia debaixo daquele sol escaldante, que Zé foi tocado pela mão suave do destino.

Ocorreu que Zé viu uma nova luz e decidiu que aquele seria o seu último dia de trabalho na roça. Sairia pelo mundo, à procura de um objetivo, e do por que viera fazer o que na Terra.

À noite, após um bom banho com água da terrina, foi jantar. Foi a melhor hora que entendeu ser propícia para comunicar aos pais a sua decisão:

– Pai e mãe, não vou mais trabalhar na roça. Alguém está me dizendo que minha missão na Terra é outra.

Sem entender a decisão intempestiva do filho, ainda jovem, com apenas 16 anos, os pais indagaram:

– Vais fazer o que e aonde menino?

Respondendo com a intenção de colocar ponto final na conversa que, para ele já estava decidida, Zé atendeu a curiosidade dos pais:

– Não sei ainda. Sinto que tem lugar melhor para mim fora daqui.

Quase nenhuma roupa, pouca coisa de higiene (escova de dentes, pente, barbeador, creme dental) e algumas cuecas compuseram “a mala” de viagem de Zé.

O trem era o transporte mais fácil e barato. Os pais, chorosos e inconformados, foram leva-lo a estação.

Pouco demoraram na estação, pois o trem não demorou muito a encostar e muito menos demorou para embarque e desembarque de passageiros e carga. Mas, ainda coube uma despedida e desejos de boa sorte no novo caminho seguido.

A cidade era uma novidade e aquilo tudo atrapalhou Zé. Rodopiou em torno de si mesmo. Examinou seus pés, mãos e sentiu o coração bater mais forte. Chegara a hora de ir à luta. De cuidar de si, de tentar ser e viver como alguém.

Zé não sabia sequer se, na cidade que acabara de conhecer, morava algum parente. Também não pretendia procurar ninguém, haja vista que agora era (e queria continuar sendo) um novo Zé. Zé, o rude, mas vitorioso às suas custas, com o seu trabalho e sem favores de terceiros. Apenas o reconhecimento, quando esse chegasse, seria bem-vindo.

Depois de procurar uma hospedagem, Zé encontrou uma pensão, onde pagaria por semana, com direito ao café da manhã e almoço ou jantar. Precisaria pagar uma semana “adiantada” e assim o fez.

No dia seguinte, vestindo a melhor roupa, saiu à procura de trabalho, com disposição para começar no próprio dia. Trabalho simples, ainda que com salário pequeno, não era coisa difícil de encontrar. E não foi.

Zé conseguiu trabalho para fazer a limpeza geral de um Teatro – e, como precisava trabalhar após os ininterruptos espetáculos, conseguiu também um aposento para morar no próprio local de trabalho. Aceitou o trabalho, o salário e o aposento, o que o livraria do pagamento da hospedagem na pensão.

Não demorou muito para que Zé aprendesse todo o serviço que fazia todos os dias. Inclusive o que fazia após os espetáculos que lotavam o teatro e exigia a cada fim de apresentação uma faxina mais rigorosa para tudo estar bem feito no dia seguinte.

Encaminhado, Zé começou a se organizar. Havia estudado pouco, mas o suficiente para aprender a ler. Com algumas economias que conseguia fazer, comprou livros – didáticos e paradidáticos. Poderíamos até dizer que, se tornando autodidata, Zé voltou a estudar. Tomou gosto pelos livros a cada vez que conseguia descobrir novos caminhos.

Quando a primavera chegou, trazida pela segunda metade de setembro, chegou também o anúncio de uma apresentação especial: a apresentação anual da Orquestra Sinfônica – o que exigia ensaio por muitos dias. O trabalho de Zé, naqueles dias, se resumiu ao básico necessário, que alguns chamam de “manutenção”. Sobrava tempo e o barulho produzido pelos metais da orquestra e outros instrumentos acabaram atrapalhando os estudos e as leituras de Zé.

E aí vem aquele ditado popular: “Deus fecha uma janela, mas a sua bondade enorme acaba abrindo uma porta”. E aquilo foi bom, pois o “faxineiro” passou a ser obrigado a conviver com aquele barulho, ao qual acabou se acostumando. Passou a gostar do que ouvia.

Ninguém precisa correr à procura do destino. Destino é algo que está traçado e tudo acontece quando tem que acontecer. Numa manhã, após demorados ensaios da Orquestra, fazendo o seu trabalho diário, Zé, o rude, encontrou um calhamaço de papeis esquecido por alguém – provavelmente o Maestro!

Guardou para entregar no dia seguinte. Quando tentou fazê-lo, o próprio Maestro afirmou que, por ter perdido, já conseguira uma nova edição e entregou para que Zé jogasse fora aquele velho calhamaço. Mas ele não jogou. Curioso, resolveu guardar para examinar depois.

Sem entender muito o que via naquela papelada toda, Zé indagou a um músico que estava descansando:

– Que calhamaço de papel é esse, amigo?

Sem muita preocupação, o músico respondeu:

– O nome disso, Zé, é partitura. Aí está tudo que o músico precisa saber para tocar.

A partir daquela noite, sempre que a Orquestra encerrava o ensaio e todos os músicos iam embora, antes de iniciar a limpeza necessária, Zé observou com atenção diferente, um dos instrumentos que os músicos não precisavam guardar ou cobrir. O piano.

Fabricado em madeira de lei, muito limpo e conservado, o piano conseguiu atrair a atenção do faxineiro, que a cada dia se interessava mais pelo instrumento. Usando aquela partitura velha jogada no lixo pelo Maestro, na qual Zé aprendera ler e destrinchar todos os sinais que ali estavam escritos, por todas as noites que os ensaios foram mantidos, após o encerramento e com o teatro fechado, sempre que terminava seu trabalho, Zé passou a praticar piano e aprendeu a tocar a partir daquela partitura velha.

Por algum tempo, depois de pedir demissão do trabalho no teatro, Zé, o rude, sumiu. Ninguém mais soube do paradeiro de Zé por alguns anos seguidos.

Entretanto, certa noite passeando em Paris, um casal brasileiro teve a atenção chamada por um cartaz num famoso teatro da capital francesa. A atenção deveu-se pelo cartaz estar escrito em português, de forma clara e direta:

– “Zé, o rude”! Era o chamamento para o concerto daquela noite na capital parisiense. Teatro superlotado naquela noite, na noite seguinte e na terceira noite.

O programa era aberto com o solo de “Tico-tico no fubá”, e encerrado com o solo de “Aquarela do Brasil”!

Zé, nem com aquela magistral mudança de vida em etapas, conseguia deixar de ser rude.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sexta, 14 de abril de 2023

A VILA DO JOÃO-DE-BARRO (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A VILA DO JOÃO-DE-BARRO

José de Oliveira Ramos

A nova moradia do João-de-barro

 

São muitas as leis brasileiras que protegem as florestas.

O povo brasileiro é quem faz com que essas leis não signifiquem muita coisa – e, nisso, tem a conivência dos aplicadores dessas leis como forma de punir e coibir a repetição dos crimes ambientais.

Na Austrália, algumas leis não são diferentes das leis brasileiras. O que faz a diferença é a aplicação da legislação vigente com maior rigor – e isso garante o respeito às leis e a preservação do meio ambiente.

No Brasil, todo dia é dia de caçar.

No Brasil, todo dia é dia de prender e criar pássaros silvestres, em que pese a também corriqueira e repetitiva apreensão dos transgressores – mas a pena aplicada é que desmoraliza a legislação e incentiva a continuidade da prática do crime.

Conheci Timbaúba, um povoado localizado entre Queimadas, outro povoado, e Pacatuba, municípios atualmente integrados à Região Metropolitana de Fortaleza. Timbaúba é onde existia uma importante (ainda que pequena) mata no pé da serra do município de Pacatuba. Era ali, na Timbaúba, que muitos desenvolviam o hábito de caçar (e matar) passarinhos e outros animais silvestres (cotias, pacas, tatus, camaleões, teiús, mucuras e até alguns veados) para o complemento alimentar.

Mas, era lá, também, na Timbaúba, que as crianças e alguns adultos apreendiam pássaros e capturavam outros tantos, em arapucas e alçapões e, por vezes, ainda recolhiam nos ninhos os filhotes recém-nascidos.

Criavam os filhotes para o deleite de escutar o canto ou para uma futura venda. Sabiás, galos de campina, rolinhas, azulão, sanhaços, graúnas, corrupiões e xexéus. Frutas e papa de leite com farinha de mandioca serviam como alimento para os filhotes.

Naqueles anos, diferentemente de hoje, não eram tão numerosas as famílias que ali viviam por livre escolha. A capital não ficava tão distante e onde as principais dificuldades podiam ser resolvidas em pouco tempo.

Numerosa, a família de José Dourado, mais conhecido por “Seu Zeca” que, ao lado de Dona Amarilis, chegou naquela localidade no início dos anos 40. Mais precisamente, no ano de 1943. Cada ano, nascia uma criança. E assim foi em 43, 44 e 45.

Depois nasceriam outros. Duas meninas e mais um menino, num total de seis filhos.

Infelizmente, por total descuido da gestão pública municipal, as escolas de iniciação (primário, ginasial e científico) não eram tantas. Quem pretendesse ir à frente nos estudos, precisaria mudar de cidade para alcançar novas metas.

Não foi diferente com a família de “Seu Zeca” e Dona Mamá (Amarilis), que acabaram entendo que, por força da necessidade do estudos dos meninos, precisariam mudar para a capital, ainda que ali mantivessem aquele pequeno sítio. E assim fizeram.

Trouxeram parentes de Queimadas para morar na casa da Timbaúba e, só então, resolveram mudar para a capital.

Qualquer mudança de lugar de moradia por longo tempo será traumática para alguém. As antigas amizades, a vizinhança conhecida, as facilidades de locomoção e o conhecido estilo de vida. Quem parte sofre, ainda que sonhe com melhores perspectivas, e quem fica vai nutrir o sentimento da perda por algum tempo.

Os três meninos mais velhos precisavam dar continuidade aos estudos. Paulo, 13 anos; Moisés, 12 anos; e, Alfredo, 11 anos. Paulo, além dos estudos, tinha algumas tarefas domésticas em apoio aos pais e era o responsável por levar todo dia o almoço de “Seu Zeca” quando esse cuidava da roça – e lá havia sempre alguma coisa por fazer.

Moisés e Alfredo ajudavam a mãe nas tarefas domésticas e estudavam. Nas horas vagas, se dedicavam à caça de passarinhos, armando arapucas e catando filhotes. Os dois, diziam os outros meninos de Timbaúba, eram donos de ótima pontaria e tinham as melhores baladeiras. Sabiam quase tudo de pássaros e até conseguiam imitar o cântico de alguns deles, como o bem-te-vi e a graúna.

Alfredo, sempre mais tímido, mas também bom conhecedor de passarinhos, conseguiu tirar do ninho ainda em penugem, um casal de João-de-barro e dele cuidou por meses.

Chegara o dia da partida. Sem alcançar outra solução, Alfredo resolveu abrir a gaiola e soltar o casal de João-de-barro, antes, tendo o cuidado de acariciar demoradamente as cabeças das duas aves. As aves voaram, mas pousaram num florido ipê que havia ao lado da porteira de acesso para a casa da família.

O caminhão da mudança partiu, e algumas lágrimas impediram que alguém prestasse atenção no que acontecia em volta. Antes que o caminhão sumisse definitivamente na estrada, Alfredo e Moisés ainda viram o aceno do casal que ficara morando na casa da Timbaúba.

Na viagem poucas palavras. Paulo observava o casario diferente da vida urbana da capital, sem qualquer semelhança com as casas simples da Timbaúba. Moisés e Alfredo traçavam planos, antes mesmo de saber se ainda conseguiram matrícula numa nova escola da capital.

A primeira semana na nova moradia foi atribulada. Novas amizades e até dava para perceber algum tipo de rejeição entre as crianças que já moravam naquela rua e os que acabavam de chegar.

O tempo passou. A primeira semana, a segunda e a terceira. As aulas foram iniciadas numa escola não tão distante dali. Livros novos, amigos novos, professores novos e uma nova rotina.

Mas, jamais deixaram de ter espaço para o lazer. E tinham. Moisés e Alfredo se revezavam no pedalar da bicicleta que trouxeram de Timbaúba. Alfredo, quando chegou sua vez de pedalar, foi um pouco mais distante.

Enquanto esperava a passagem de um carro, teve a atenção desviada pelo destino.

É, só pode ter sido o destino ou a interferência da natureza das coisas. Ao levantar a vista para um poste, Alfredo nem acreditava no que estava vendo e falou mais alto para si mesmo:

– Meus bichinhos! São eles! Os meus passarinhos!

Alfredo acreditava mesmo que o casal de João-de-barro também resolvera acompanhar a família e, num poste de madeira, resolveu construir ali a sua nova moradia. E até foi mais longe: construiu quase que uma vila inteira, sinalizando que a família estava próximo de crescer. A fêmea pusera três ovos.

Coisas que só Deus pode fazer e nos permitir compreender.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 08 de abril de 2023

A ESPERA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

A ESPERA

José de Oliveira Ramos

 

Eu estive aqui.

Marcamos que nos encontraríamos.

Lembras?

Esperei. Esperei e esperaria mais – se era esperar que querias que eu fizesse.

Não viestes.

Não virias mais?

Não vens?

Mas, continuarei esperando.

Estarei aqui amanhã – a partir da hora que combinamos.

Posso esperar?

Tu vens? Vens mesmo?

Acredito, e, por isso, esperarei.

Ainda que não venhas, estarei esperando.

Esperarei esperando, até que a espera me diga que não virás,

Ou, que a espera é uma forma inútil de esperar.

Esperei.

Estive aqui. Consegues ver?

Escolhi um lugar que nos cabia

E agora, só cabe a espera.

* * *

Transformação

Quero o néctar do teu corpo
Para alimentar minhas borboletas.
Quero um campo, sem ventos fortes
E um corpo puro como tuas entranhas.

Quero o néctar do teu corpo
Para alimentar minhas borboletas.
Quero o cheiro do mel polinizado
Para acalmar minha ansiedade.

Quero o néctar do teu corpo
Para alimentar minhas borboletas.
Quero a beleza e o cheiro do teu corpo
Para o pouso demorado do meu.

Quero o néctar, quero teu corpo
Quero teu cheiro, quero, enfim,
Me transformar numa borboleta.
Para viver uma vida sem fim.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 02 de abril de 2023

O REI DA COCADA PRETA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O REI DA COCADA PRETA

José de Oliveira Ramos

A maravilhosa “coada preta” vendida por Hugo

Durante vários anos, naquela casa, lembro bem – pois era um dos viventes, por ser neto dos “donos” – o café, fosse matinal, vespertino ou da noite, era “temperado” com pedaços de rapadura. Até então, não conhecíamos o açúcar branco.

A rapadura era transformada num melaço que, por sua vez ajudava na torrefação dos grãos do café. Aquele melaço era colocado num “tacho” (uma bacia de barro), onde eram depositados os grãos do café torrado. E separado por instantes. Às vezes era levado ao sol – nunca entendi por que, nem para que.

Horas depois, aquele café, junto com o melaço, era levado ao pilão, onde era socado e, dali transformado no “pó de café”. Uma delícia, diga-se de passagem, e é assim que se faz na roça ainda hoje.

Na preparação do café, uma lata dependurada num arame suspenso e amarrado ao teto, continha a quantidade necessária de água colocada para a fervura. Acrescentava-se dois ou até três pedaços de rapadura. Rapadura em pedaços passou a ser a sobremesa preferida das crianças, porque era a única – e era guardada na camarinha da Avó.

A mudança forçada de Queimadas para a capital, teve muito mais de “fuga” que outra coisa. A ausência das chuvas era acentuada prejudicando a produção da agricultura familiar, obrigando o abate dos animais domésticos criados em parceria com o proprietário das terras. Feijão e arroz guardados sob sete chaves para o novo plantio, eram retirados da despensa para o consumo diário, o mesmo acontecendo com a farinha de mandioca.

Quem viveu ou vive na roça sabe que abater uma galinha, um pato, um porco ou um caprino para consumo próprio, é algo que só se recorre em última instância. Ou, às vezes, para evitar que o animal morra por algum mal. As galinhas são sempre especiais, por porem ovos – o que significa “produzir” e aumentar a ninhada. Mas, há sempre aquele momento em que o abate se torna inevitável.

Naquele ano de chuvas raras e lavoura inexistente, só havia socorro mais fácil no consumo dos animais domésticos. Frango, quase sempre. Galinha, quase nunca. Frango não põe ovos. Galinha, sim.

Eis que chegou o dia da mudança. Um caminhão fretado de um amigo saiu da capital com destino a Queimadas, numa sexta-feira, por volta das 14 horas ou “quando o sol começou a esfriar”.

Na BR, um percurso aproximado de 50 Km que levaria, no máximo, sessenta minutos no percurso. Saindo da BR e pegando um trecho de estrada vicinal de aproximadamente 6 Km e, depois, mais uns 2 Km de uma picada aberta pelo avô para facilitar o acesso do caminhão. Na BR, nos 50 Km aproximados, o caminhão levou quase três horas. Depois, na estrada vicinal com cerca de 6 Km, levou mais de uma hora. Atolou na areia espessa em umas três ou quatro oportunidades e, para sair dali precisou do auxílio de paus e tábuas.

Maior tempo foi gasto na travessia da picada. Os pneus, ainda usando câmaras de ar, precisaram ser trocados em pelo menos quatro oportunidades, até que foi resolvido que a continuidade dependeria de que todos aqueles tocos da picada fossem arrancados. Mãos à obra!

A noite chegou e não esqueceu de trazer consigo, todas as dificuldades conhecidas. Agora o caminhão não tinha mais os estepes necessários para possíveis trocas. Tivemos que esperar o amanhecer do novo dia, quando todos os demais tocos foram finalmente arrancados, permitindo a chegada do caminhão até a casa da avó.

Com o dia claro e todos os problemas resolvidos, finalmente a mudança aconteceu. Tivemos, como primeiro novo endereço, uma casa em construção. Grande, com vários cômodos, mas sem água canalizada, sem instalação elétrica e sem portas ou janelas.

Era um novo horizonte que aparecia e se desenhava pela frente. Aos poucos, fomos colocando portas e janelas, sem esquecer que as despesas precisavam atender, também, a alimentação diária e as demais necessidades básicas. Todos precisavam trabalhar para ajudar. Era uma real oportunidade de recomeçar uma vida nova.

As crianças precisavam ir à escola. E foram.

Horácio, o mais velho, continuou os estudos, passando a frequentar o Ginásio Municipal; Elias, o segundo, preferiu trabalhar, enquanto chegava a época de servir ao Exército. Preferiu a Aeronáutica.

Hugo, o terceiro, foi matriculado num Grupo Escolar.

Frequentava a escola no período matinal. Chegava de volta à casa, invariavelmente, após as primeiras horas da tarde. Dormia, acordava e estudava para resolver as tarefas escolares.

À medida que o tempo passava, as coisas se acomodavam e os problemas antigos iam sendo resolvidos. Mas nunca deixavam de aparecer os novos.

Eis que, certa tarde, Hugo conheceu um vizinho e acabou por se tornar amigo. O novo amigo tinha pai em boa situação financeira e algumas manias prontamente atendidas. Uma dessas era colecionar figurinhas, num álbum. Foi ali, no folhear do álbum, que nasceu o interesse de Hugo em também comprar um álbum e colecionar as figurinhas.

Mas, de onde sairia o dinheiro?

Não demorou muito, e a engenharia infantil funcionou.

Hugo precisava “fazer dinheiro” de alguma forma. Quebrou o cofrinho de cerâmica, contou todas as moedas amealhadas por meses. Mas ainda não era chegada a hora de comprar o álbum, muito menos as figurinhas.

Resolveu empreender. Comprou dois cocos e duas rapaduras. Fez cocadas e vendeu. Ganhou o apoio e o incentivo da mãe. Vendeu todas as cocadas.

Dois dias depois repetiu a operação. Separou o “lucro”.

E assim, foi fazendo, até que, com o “lucro” que tivera, finalmente conseguiu comprar o álbum. E ainda ganhou um pacote de figurinhas de bônus.

Hugo conseguia vender todas as cocadas, todos os dias.

Todos gostavam das “cocadas pretas”.

Hugo, de frente com uma necessidade, enfrentou o problema com muita disposição, contando com apoio dos pais.

Ali nascia mais um “Rei da Cocada Preta”.

 

 

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 27 de março de 2023

A BIFURCAÇÃO NO AMOR (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A BIFURCAÇÃO NO AMOR

José de Oliveira Ramos

Os “Anos dourados” foram uma época do romantismo puro e exacerbado com fortes contornos de respeito mútuo, que existiu nos anos 50 e se prolongou até o final dos anos 70. Pois, foi nesse período que a literatura conseguiu exercer forte domínio numa geração que gostava de ler e abria todas as comportas para a saída das emoções e a recepção de outras tantas.

Poemas de J. G. de Araújo Jorge (“Sempre que te encontro, é pra sempre. Sempre que me afasto, é pra nunca, e já que nunca mais te encontro… é pra sempre.”) e de Florbela Espanca (“Eu quero amar, amar perdidamente. Amar só por amar.” Era os motes que a juventude apaixonada sabia de cor e vivia intensamente. Como se conselhos fossem.

 

 

Entre tantos e apaixonados jovens, Gessé e Alcina não poderiam ser diferentes. Amavam. Amavam tanto que a auréola do respeito trabalhava também como se uma forte redoma fosse. Um amor puro, dentro de uma redoma de vidro blindado.

Mas nem tudo começou tão facilmente. Gessé trabalhava numa empresa multinacional do ramo das comunicações e ali conheceu Kátima, também funcionária da empresa. Os dois passaram a conversar mais assiduamente, dando a entender para alguns que um namoro estava nascendo. Nada além de amizade.

Os assuntos das muitas conversas eram quase sempre sobre livros, literatura e preferências pessoais de um e de outro. A amizade fortaleceu-se e até espraiou-se por outros lugares, como bares e lanchonetes.

Num desses encontros furtivos, aparentemente sem qualquer segunda intenção, Kátima citou o nome de uma irmã: Alcina, alguns poucos anos mais idosa que ela. O nome passou despercebido por Gessé que, naquele momento, com namoro fixo com outra jovem distante dali, não estava interessado em trocar fulana por beltrana. Era apenas um encontro e mais uma conversa entre amigos de trabalho numa das muitas horas vagas.

A literatura sempre tinha ponto importante nas conversas entre os dois amigos. Machado de Assis, Lima Barreto, Agripa Vasconcelos e os que dominavam as mesas literárias naqueles tempos, J. G. de Araújo Jorge e o escritor francês Antoine du Saint-Exupèry, cuja obra viraria obrigatória e alguns livros se tornaram “livros de cabeceira” de muitos.

Eis que, como se pretendesse insistir, Kátima voltou a citar Alcina, assegurando que a irmã era fervorosa apreciadora dos títulos “Terra dos homens” e d´o “Pequeno príncipe”, além de “Vôo noturno”, todos escritos pelo escritor-aviador.

Aquela insistente dica, pode-se dizer, aproximou Gessé de Alcina e os dois finalmente foram apresentados formalmente. Nascia ali algo diferente, parecendo que ambos já se conheciam há séculos. Empatia pura.

Encontros, encontros e mais encontros. Nascia um namoro, respeitoso como todos daquela época. Namoro em casa, com hora para chegar e para sair. Passeios, quase nenhum. Era assim que os dois se satisfaziam.

Por motivo alheio à vontade dos dois, Gessé precisou se ausentar da cidade onde morava. Um rompimento brusco mudaria quase tudo. Algo que tomava ares de um belo quadro não pôde continuar sendo pintado. Foi morar no sudeste, de forma definitiva. Fincou raízes.

O tempo, dizem, muda tudo. Ou não. Em alguns casos pode até enfatizar mais ainda. E isso realmente viria acontecer naquele relacionamento que tinha tudo para dar certo. Algo poético, bonito, puro – tudo levava para a formação de uma bela família.

Quando tudo parecia consumado, uma surpresa. O telefone toca à procura de Gessé. A suavidade e a beleza da voz feminina ajudaram a identificação, apesar do distanciamento de alguns meses. Era Alcina do outro lado da linha. Telefonema vindo da cidade onde os dois iniciaram um poético envolvimento.

– Bom dia!

Surpreendido por receber tão poucos telefonemas, Gessé atendeu:

– O quêêê?! É vocêêêê mesma?!

Demonstrando alegria incontida por ter alcançado seu objetivo, Alcina apenas confirmou:

– Sim! Sou eu mesma. Estou aqui e quero me encontrar contigo, de preferência hoje.

Lamentando ter que adiar um encontro que com certeza seria bom, Gessé respondeu:

– Hoje, infelizmente, não será possível, pois tenho uma prova na faculdade. Pode ser amanhã?

Com tudo planejado conforme imaginara, Alcina diz radiante:

– Pode, claro. Só vou embora após esse nosso encontro.

Pegando algo para anotar, Gessé responde:

– Me passe o endereço de onde você está. Pode ser à noite?

Alcina, mais feliz ainda, responde:

– Melhor que seja a noite, sim.

A distância para o deslocamento não era tão grande, e a noite era apenas uma criança. Sem pressa, Gessé se dirigiu ao encontro. Chegou no endereço anotado. Tocou a campainha da portaria, no que foi prontamente atendido.

– Vim falar com uma senhora que está me esperando no apartamento tal, disse Gessé ao porteiro.

– Um minuto só. Preciso confirmar.

Após falar pelo interfone, o porteiro veio e abriu a porta, autorizando o acesso.

Gessé entra no elevador e sai no andar previsto. Toca a campainha da porta e essa é aberta por uma verdadeira deusa. Linda, sorridente, com cabelos compridos compondo a moldura de um corpo pequeno e atraente. Um longo abraço e um beijo demorado selavam e reiniciava um namoro que o tempo interrompera.

Uma bebida foi servida. A porta de um quarto se abriu e dele saiu Germana, uma amiga. Aproveita para um rápido cumprimento e sai para se divertir, sabendo que havia algo programado para acontecer.

– Gente, boa noite, e fiquem à vontade!

Sós, Gessé e Alcina conversaram minutos e horas. Alcina pediu licença e foi ao banho. Ao sair do banho voltou ao quarto e pôs roupa de dormir – ou, de deitar! – e voltou para continuar a conversa.

Gessé era a visita. Sugeriu banhar também, mas não tinha roupa limpa para trocar. Alcina ofereceu-lhe uma toalha e o roupão que provavelmente seria de Germana. Nada de constrangimento. Afinal, os dois estavam a sós no apartamento.

Na volta do banho, Gessé percebeu que Alcina usava uma roupa de dormir muito fina, quase totalmente transparente. Observou, também, que a namorada usava por baixo dessa roupa, apenas uma calcinha preta, e sem o sutiã.

Conversas. Troca de carinhos. Beijos prolongados, enquanto o tempo passava rápido, caminhando para o dia seguinte.

Em vez de pegar Gessé pela mão e conduzi-lo para o quarto e para a cama, Alcina voltou ao banheiro, escovou os dentes e foi deitar. Tudo que poderia ter acontecido naquela noite acabou ali. Não aconteceu a noite de amor e sexo, que talvez os dois quisessem. As gerações daqueles anos não tinham pressa nem maldades.

Gessé imaginava casar com Alcina. Casamento cheio de pompa, católico e civil, com familiares e padrinhos e, só então, a realização da lua de mel paradisíaca.

As coisas acontecem quando estão destinadas a acontecer. Tudo tem seu dia e hora. Se os dois estiverem unidos pelo destino, ainda que noutro plano o encontro acontecerá e a felicidade será completa.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 21 de março de 2023

SAUDADE NÃO MATA – SÓ AJUDA A VIVER (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

SAUDADE NÃO MATA – SÓ AJUDA A VIVER

José de Oliveira Ramos

Selecionado “Cacareco” que derrotou a seleção alemã na Ilha do Retiro

 

“Nado está melhor do que Garrincha.”

(A declaração do técnico da seleção alemã Helmut Schoen)

O goleiro era Dudinha, que se transferira do Central para o Sport, contando o restante da equipe com: Gena (Náutico), Alemão (Sport), Baixa (Sport) e Jório (Santa Cruz); Gojoba (Sport) e Ivan (Náutico); Nado (Náutico), Bita (Náutico), Pelezinho (Sport) e Lala (Náutico). Eram sete pernambucanos, dois maranhenses, um paraibano e um paulista. No transcorrer da partida entraram mais dois pernambucanos: Toinho, do Náutico, substituiu Jório, e Nino, também do Náutico, entrou no lugar de Pelezinho.

O meio-campo acertou. Naquele tempo jogava-se no 4-2-4. Alimentando o ataque estava Ivan, que fazia o mesmo serviço no quase tricampeão Náutico, enquanto o volante rubro-negro Gojoba ficava na marcação, porém, um pouco mais adiantado.

O também rubro-negro Pelezinho, maranhense como Gojoba, descia um pouco para buscar o jogo. Na frente, Bita, um atacante de altíssimo nível, atento, criativo e oportunista, possuindo assim, todas as virtudes do goleador. Os alemães tinham informações sobre o potencial do chamado Homem do Rifle e procuraram marca-lo de perto.

Na extrema-direita, para abrir a defesa, Nado, irmão de Bita, e grande driblador. Só que nado não fez a partida que se esperava e mesmo assim levou Schoen a considera-lo em melhor fase do que Garrincha. Vale salientar que foi de uma falta cometida em Nado que o jogo se decidiu.

Aos 39 minutos do segundo tempo, Nado foi derrubado nas imediações da grande área, criando mais um momento de expectativa na Ilha do Retiro. Ele mesmo se encarregou da cobrança. Companheiro de Nino, emérito cabeceador que substituíra Pelezinho, Nado cruzou fechado. O goleiro alemão Mangletz afastou de soco, e Gojoba, que vinha de trás, completou para a rede.

A Ilha do Retiro foi ao delírio. Dali para a frente foi só segurar o placar, pois só faltavam seis minutos. Pernambuco dobrava o time alemão, para felicidade de Rubem Moreira, que dava assim a resposta aos cartolas da CBD.”  – Lenivaldo Aragão e Fernando Menezes. Jornal do Comércio, 22 de maio de 2000.

Hoje resolvi dar um passeio pelo futebol. Desde 1965 estou envolvido com o futebol. Nunca fui jogador. Fui Árbitro profissional, atuando na então FCD (Federação Cearense de Desportos) e, depois, na Federação Carioca de Futebol.

Tenho visto e discordado com a desmoralização que a FIFA está empurrando goela à baixo das confederações, com a obrigatoriedade da implantação do VAR que, no Brasil – país de hábitos diferentes do resto do mundo – não está “ajudando” em nada. Pelo contrário, está tirando a autoridade do Árbitro central que, ainda que esteja a dois metros de algum lance e tenha a sua própria interpretação e decisão, tem que ouvir e adotar o que o VAR determina. Uma merda.

Quanto ao futebol propriamente dito, na noite de quinta-feira vimos uma sofrível seleção brasileira confirmar a classificação para a próxima Copa do Mundo, atuando diante adversários que nunca ofereceram resistência alguma. E isso fez com que todos passassem a acreditar que a conquista de mais um mundial será uma barbada.

O Brasil está praticando o futebol onde o mais importante é a “posse de bola” e a juventude passou a elogiar mais o jogador que “faz a assistência (passe final)” que o próprio goleador. O que se vê, sempre e em todos os jogos, é um toque lateral ou um toque para trás. Sem verticalidade, sem objetividade e, claro, sem gols.

Tenho visto, também, com muita preocupação a situação técnica e administrativa-financeira de clubes que algum dia foram a razão de ser do futebol brasileiro: Santos, Cruzeiro, Botafogo, Vasco, Grêmio, São Paulo. Não tem sido diferente a penúria de Náutico, Santa Cruz e Sport Club Recife, além de Esporte Clube Bahia e Vitória.

O futebol brasileiro também passou a ser vítima do “politicamente correto” e, hoje, o que mais se vê, são protestos e mais protestos contra alguém que, indignado com a qualidade do futebol que seu time de preferência está praticando, rotula esse ou aquele jogador de “macaco” de “negro” ou algo semelhante. Uma verdadeira babaquice – e os babacas perdem tempo procurando uma solução. Mas, continuam afirmando e acreditando na teoria de Darwin.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 14 de março de 2023

A CRIANÇA – O ALÇAPÃO – E OS PÁSSAROS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

“Toda criança precisa ter contato com o chão, brincando descalça – para contrair as bactérias defensivas do corpo.” – Raimunda Buretama (minha Avó), uma analfabeta que nunca entrou numa escola.

Criança brincando na beirada do rio

Hoje vamos pegar o túnel do tempo, e “voltar para o futuro”. Relembrar as feridas dos “chaboques” feitos nos dedos dos pés jogando bola no piso duro do chão; tentando (e conseguindo) derrubar e roubar mangas e goiabas no pomar dos vizinhos; tocar a campainha na frente das casas e sair em disparada – práticas da infância que o tempo levou, e que nos fez “filhos que eram castigados pelos pais e mães” e os obedeciam e respeitavam.

Esses filhos que estão aí, hoje, não são nossos. São dos conselheiros tutelares – que nossos filhos abriram as portas de suas casas para eles entrarem e determinarem os hábitos, a educação e a alimentação.

Esses filhos que estão aí, hoje, só são nossos para pagarmos pensão alimentícia – e esperar a hora que, certamente, nos “depositarão” num asilo e continuarão a receber nossas aposentadorias.

Mas, jamais vamos dizer que nenhuma criança de antigamente fazia por merecer os castigos que recebia dos pais. Da mesa forma, também jamais diremos que criança fazia tudo certo ou, tudo de acordo com o atual “politicamente correto”.

Mas, era a nossa fórmula encontrada para sermos felizes. Para sermos crianças. Para sermos gente e parte de uma família difícil de ser destruída. Como acontece nos dias de hoje.

Também fazíamos coisas erradas. Hoje receberiam o rótulo de “politicamente incorretas”.

E uma dessas coisas erradas que fazíamos, era “criar passarinhos”. Pelo prazer inocente de ouvi-los cantar. Por ignorância, digamos.

Alçapão para pegar passarinhos

Durante as férias escolares, ou aos domingos e feriados, a rotina era a mesma: duas gaiolas-alçapão em cada mão, e lá íamos à caminho da Lagoa da Agronomia.

Ali, por conta da quantidade de água e pelo capim existente, era comum “pegarmos” passarinhos. As gaiolas eram armadas na cerca. Os passarinhos eram quase sempre o papa-capim, o bigodeiro, o gola (coleiro) e o caboclinho (caboclo lindo). Mas, de vez em quando aparecia um curió.

Papa-capim “virado”

Aquelas manhãs eram tomadas pela ansiedade de “pegar passarinhos”. Os passarinhos pegos, nem sempre eram aceitos. Quando pegávamos algum que não nos agradava, soltávamos para que ele fosse viver a vida em liberdade. Era assim, com o “tiziu”, um pequeno pássaro preto que se alimenta do mesmo capim preferido pelo papa-capim e pelo caboclinho.

O tiziu tem uma característica de vida e de canto. Ele canta, voa e “cai na vertical”. Esse não tem tanto a preferência dos “passarinheiros”. E isso se dá por conta da dificuldade para encontrar no comércio especializado algum tipo de ração para ele.

O tiziu é, digamos, um pássaro chato. Perturbador.

Tiziu “virado”

Hoje, muitos anos depois daquela maldade inocente, temos consciência que o melhor para as aves é a alegria de viverem soltas. Procurando e encontrando sua própria ração, praticando seus voos, reproduzindo no habitat que melhor lhe convier.

E, cantando para a nossa alegria.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quarta, 08 de março de 2023

A POMBA DA PAZ (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

A POMBA DA PAZ

José de Oliveira Ramos

A pomba branca da Paz

 

Segundo dados oficiais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), este país continental “tinha”, de acordo com o mais recente censo demográfico, pouco mais de 213 milhões, que poderia ser acrescentado com mais de um milhão de não-registrados oficialmente – e, isso, já descontando, também, as mais de 600 mil vítimas recentes creditadas à C-19.

Produzir alimentos para essa gente toda, convenhamos, é tarefa hercúlea.

Isso, por si só já seria difícil, não fosse também a diferença de clima e precipitação pluviométrica nas diferentes regiões. Lugares que o excesso de chuvas castiga, e lugares onde não cai um único pingo. E, nesses lugares onde não cai um único pingo, a vida com base na agricultura ou na pecuária é um castigo. A chuva e a água são dádivas divinas.

Quem nasceu, cresceu e ainda vive onde a chuva molha mais que o que deveria, não faz a mínima ideia do sofrimento de quem nasce, vive e não consegue sair de onde não cai um único pingo.

Os sortudos e abençoados das regiões ricas em tudo, ainda por cima aderem à idiotice do “politicamente correto” e tudo que lhes empurram pelo ouvido como se um cotonete fosse, acreditam e defendem. Nunca passaram um único dia sem três ou quatro banhos, imagine sem a disponibilidade de uma caneca d´água para beber.

“Acauã, acauã vive cantando
Durante o tempo do verão
No silêncio das tardes agourando
Chamando a seca pro sertão
Chamando a seca pro sertão
Acauã”

Carregado especialmente de uma emoção social e humana, o reconhecimento de quem um dia viveu ou foi obrigado a enfrentar os dissabores do dia a dia regional do trecho por onde hoje semeiam vida as águas da transposição do Rio São Francisco. Não há nenhuma conotação política nesta minha afirmação – reconheço e agradeço.

Dito isso, vamos ao factual.

Viriato Souza, era um cearense nascido em Orós, mais propriamente em Guassussê, distrito municipal, onde a população que ali sofria era de aproximadamente 2.880 habitantes. Situado a cerca de 18 km da sede municipal, o distrito oferecia naqueles tempos idos dos anos 50 e 60, entre outras opções de lazer, a oportunidade de um delicioso banho – nos dias atuais – no pequeno riacho que corta o distrito conhecido como “Balneário do Trapiá”. Antes, o que é hoje o Trapiá, não passava de uma lagoa de chão rachado.

Durante a seca braba, de matar de fome, a preocupação maior era com a alimentação. E, procurar o que comer, fosse o que fosse, era a labuta diária dos sofredores.

Viriato fazia isso. Caçava e matava “avuantes”, que outros conhecem como “ave de arribação” (arribaçã, para os matutos). A ave era comum naquelas paragens, por conta da escassez de alimento – também para elas. Voavam em magotes, daí ser conhecida por ali, também, como “pomba de bando”.

É uma pomba. Um pouco maior que uma rolinha e menor que um pombo comum.

– “Quem quiser matar mais de um cento de avuantes, basta atirar e acertar na primeira que vai avuando na frente, pois as outras vão acompanhar” – dizer do matuto cearense.

“Avuante” (pomba de bando ou arribaçã)

 

“Acauã,
Teu canto é penoso e faz medo
Te cala acauã,
Que é pra chuva voltar cedo
Que é pra chuva voltar cedo
Toda noite no sertão
Canta o João Corta-Pau
A coruja, mãe da lua
A peitica e o bacurau.”

Como dito acima, sem chuva que fizesse nascer e crescer o que fora semeado (na verdade, jogado fora) no roçado, Viriato não tinha outro trabalho, a não ser caçar.

Diferente do que teorizam alguns que nunca passaram fome, “caçar para comer e dar de comer aos dependentes, não é maldade”. É a mais digna forma de sobrevivência.

Viriato caçava camaleão (iguana), mucura, teiú e até cobra se aparecesse. Diferentemente dos sulistas que vão aos restaurantes e saboreiam salmão, truta, atum, lagosta e camarão ou até o “scargot”, Viriato andava em todos os córregos à procura de aruás.

“Na alegria do inverno
Canta sapo, gia e rã
Mas na tristeza da seca
Só se ouve acauã
Só se ouve acauã
Acauã, Acauã…”

Faça por onde, e Deus certamente te ajudará. Dizem os antigos mais antigos que eu. Viriato encontrou numa moita de mofumbo, um ninho de galinha d´angola com mais de duzentos ovos.

– Não são meus! Não vou mexer.

Mais à frente, Viriato encontrou algumas galinhas mariscando o chão na tentativa de descobrir alimento para os pintos. Viriato resolveu que também não deveria se apossar do que não lhe pertencia. Continuou andando. Foi quando levantou a vista e viu a casa onde moravam Ambrósio e Quitéria.

Antes mesmo de se anunciar, Viriato observou que, distante da casa havia um pombal. Os proprietários mantinham aquele pombal um pouco distante da casa, para evitar a proliferação de doenças que os pombos transmitem.

Pombo Correio

 

Quando pensava em desistir de fazer uma bobagem, Viriato lembrou o que deixara em casa para a mulher Cícera e os oito filhos comerem, o mais novo com apenas 10 meses de idade. Naquele momento a fome falou mais alto. Falou tão alto que deu para escutar o eco, ainda que naquelas imediações não existissem “cânions”. Só fome e seca.

Com o saco que carregava para servir de matulão e carregar alguma caça abatida, Viriato cobriu a passagem de várias casas de pombos. Dali foi pegando e torcendo o pescoço de cada um – eram todos pombos correios, que Ambrósio criava para vender por alto preço.

Entre os que foram pegos, havia até um beleza de pomba branca, que Ambrósio recebera encomenda de Orós para os festejos do Divino Espírito Santo.

No caminho de volta à casa, Viriato procurou uma boa sombra de catingueira, sentou e “depenou” os oito pombos, para dificultar que Cícera percebesse.

E todos foram devidamente assados e comidos, como se avuantes fossem.

Matar algo para matar a fome


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 02 de março de 2023

O GENERAL (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O GENERAL

José de Oliveira Ramos

General Dureza

Hoje nosso passeio será diferente de tantos outros. Vamos esquecer o VLT, passear de mãos dadas com a imaginação. De bonde, trem ou charrete. Façamos o check-in e uma boa viagem, entendendo as mudanças que passaram por nós nessa breve caminhada no planeta Terra. Vamos falar do “generalato”, posto alcançado por direito, empenho, e merecimento.

* * *

GENERAL DUREZA

Amos Dureza (General Amos Halftrack – em inglês, que é o nome original) é um general de mentirinha. De verdade, apenas na “tirinha”, a impagável criação de Mort Walker, início da década de 50, quando a criança se assumia como criança – embora também já soubesse à qual gênero sexual pertencia. Diferente dos dias atuais.

Na linguagem popular (“no popular”) utilizada no Brasil, general Dureza é um verdadeiro “pau mandado” – obedece cegamente a mulher, Martha. Alcóolatra, mais preguiçoso que baiano e maranhense juntos. Ama o golfe, e o “grode”. É um verdadeiro bundão – embora o nome de guerra, Dureza, seja uma ironia.

Um aforismo dedicado ao Recruta Zero, que cai como uma luva na vida do general Dureza: Never let to tomorrow what you can do the day after tomorrow (“Nunca deixe para amanhã o que você pode fazer depois de amanhã”).

* * *

GENERAL DA BANDA (BLECAUTE)

Blecaute (General da Banda)

Otávio Henrique de Oliveira nasceu em Espírito Santo do Pinhal/SP, a 5 de dezembro de 1919, e faleceu no Rio de Janeiro, a 9 de fevereiro de 1983. Fez sucesso como cantor e compositor brasileiro. Era conhecido pela alcunha de “General da Banda”, devido a seu maior sucesso, a marcha de carnaval homônima.

Quando tinha apenas 6 anos de idade, ficou órfão de pai e mãe, foi levado para São Paulo por conhecidos amigos da família. Na luta pela vida e pela alimentação diária, foi engraxate e jornaleiro.

Em 1933, então com 14 anos, participou do programa de calouros A Peneira de Ouro, na Rádio Tupi. Oito anos depois, isto é, em 1941, já cantava na Rádio Difusora, adotando o nome artístico de Black-Out, mais tarde aportuguesado para Blecaute. Apesar de ser um apelido francamente racista devido a cor de Otávio, ele aceitou como já tinha aceitado coisas piores anteriormente.

No ano de 1942, foi contratado pela Rádio Tamoio, e mudou para o Rio de Janeiro. Democraticamente, e sem contrato de exclusividade, apresentava-se também nas rádios Mauá e Rádio Nacional.

Finalmente chegou o carnaval de 1949, e esse trouxe os grandes sucessos “O Pedreiro Valdemar” (de Wilson Batista e Roberto Martins) e “General da Banda” (Tancredo Silva, Sátiro de Melo e José Alcides), que lhe valeria a alcunha que carregaria para o resto da vida. Blecaute faleceu no dia 9 de fevereiro de 1983, antes mesmo de atingir todas as estrelas do generalato.

“Chegou o general da banda, he he
Chegou o general da banda, he a, he a
Chegou o general da banda, he he
Chegou o general da banda, he a, he a
Mourão mourão
Vara madura que não cai
Mourão, mourão, mourão
Catuca por baixo que ele vai
Mourão mourão
Vara madura que não cai
mourão, mourão, mourão
Catuca pro baixo que ele vai
Chogou o general da banda, he he
chegou o general da banda, he a
General, general
Chegou o general da banda, he he
Chegou o general da banda, he a
General, general
Mourão mourão
Vara madura que não cai
Mourão muorão
Catuca por baixo que ele vai.”

* * *

GENERAL NEWTON CRUZ

General Newton Cruz

Esse, um general de verdade. Saído das fileiras do Exército Brasileiro. Nasceu a 30 de outubro de 1924, no Rio de Janeiro. Newton Cruz atingiu o generalato (Divisão), após ter sido Comandante de várias unidades do Exército, chegando ao Comando Militar do Planalto e ao SNI (Serviço Nacional de Informações).

Newton Cruz é um general de divisão reformado do Exército Brasileiro, notado por sua participação nos serviços de repressão da Ditadura Militar no Brasil entre 1964 e 1985.

Formado pela Escola Militar do Realengo na Arma de Artilharia, Newton Cruz era companheiro de turma do também General Otávio Aguiar de Medeiros, posteriormente seu companheiro na vida político-militar. Em 31 de março de 1964, ele frequentava a Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME) na Urca, Rio de Janeiro, quando se iniciou a Ditadura Militar. Newton Cruz foi chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações, entre 1977 a 1983, e do Comando Militar do Planalto.

Em um número de ocasiões foi acusado de crimes cometidos ao longo de sua carreira no Exército. Notadamente, foi acusado pela morte do jornalista Alexandre von Baumgarten, baseado no testemunho do bailarino Claudio Werner Polila. O general negou seu envolvimento e afirmou ter recebido informações sobre a identidade daquele que seria o responsável pelo assassinato, porém negou-se a revelá-las.

Por longo tempo, Newton Cruz foi relacionado ao atentado a bomba do Riocentro, ocorrido em 30 de abril de 1981. Sobre esse atentado, Newton Cruz afirmou que o grupo de militares envolvidos atuou de modo independente com o objetivo de soltar a bomba nas imediações do evento, e que o atentado não tivera a intenção de matar ninguém, teria sido apenas um “ato de presença”. Em entrevista para o canal de televisão por assinatura Globo News, o general disse que impediu um outro atentado, planejado na sequência do Atentado do Riocentro, extrapolando as funções de seu cargo.

Em maio de 2014, Newton Cruz foi denunciado, juntamente com quatro oficiais da reserva do Exército e outros dois réus, por crimes no atentado a bomba no Rioentro, em 1981. Contudo, em julho de 2014 recebeu habeas corpus emitido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por este ter considerado que o crime já estaria prescrito. (Alguns dados foram obtidos no Wikipédia)


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 26 de fevereiro de 2023

O BURRO E EU (CONDO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O BURRO E EU

José de Oliveira Ramos

 

Pavio pronto para irmos à Santa Missa

 

Desde quando meu Avô ficou agradecido pelo meu trabalho bom e rápido na carpina daquelas linhas de roça, e resolveu me presentear com um burro, que passei a conviver mais diretamente com os animais – principalmente com os que consideramos “domésticos”.

Sem muita criatividade e sem ter uma justificativa plausível, passei a chamar aquele burro pelo nome de “Pavio”. Crescemos praticamente juntos.
Era uma amizade que, garantia meu Avô, parecia inseparável.

Conversávamos, até.

Nos entendíamos através de sinais e tínhamos nosso “código de comunicação interpessoal” – na maioria das vezes, por conta da insistência na conversação, parecia que o burro era eu. Nunca me senti ofendido ou diminuído com essa comparação.

Pavio não gostava de cangalha. Provavelmente deve ter ouvido que, cambito e cangalha era para jumento. Ele respondia com um abano de rabo, quando eu preparava uma sela para preparar a montaria.

Certa vez, minha Avó cismou que eu tinha que buscar água no açude, antes de me dirigir à missa dominical. A celebração da missa começava cedo, e o Padre conhecia cada pessoa, pelo nome e por visitar as famílias que frequentavam a paróquia.

Traquinas e moleque como todo cearense, fui no quintal da casa e preparei o junto Roxo para ir pegar dos tonéis de água no açude. Deixei o jumento quase no ponto, faltando apenas a cangalha. Me dirigi até a sombra da mangueira onde Pavio estava ruminando milho misturado com borra de babaçu. Ele, Pavio, viu que eu me dirigia na direção dele, com a cangalha. Nossa Senhora do Pavio Curto.

Praaaa quuuêêê?!

Pense num animal que, de burro, virou uma fera!

Pensou?!

Pois assim foi Pavio.

Parei, pus a cangalha no chão, e disse:

– Caaaalma Pavio!

Nem lembro mais o que falei, e fui fazendo meia volta para levar a cangalha para o jumento Roxo, que ficara no quintal.

Pavio não sabia o que eu ia fazer, mas concluiu que a cangalha não seria colocada nele. Fez aquela conhecida “assopração” que os humanos também fazem com os lábios: fffrrruuuuu!

E era assim que nos comunicávamos. Pavio, o burro, e eu, o Zé.

Quando finalmente passei próximo dele (Pavio), levando o jumento Roxo para apanhar água, ele (Pavio), cavou o chão com a pata dianteira e soltou um pequeno relincho.

Entendi que, na linguagem dele, agradecia, ao mesmo tempo que esperaria minha volta, quando, com certeza, ele (Pavio) me levaria para a Santa Missa.

Na dúvida, pensei:

Ele (Pavio) me levaria, ou eu, o levaria?!

Fui e voltei rápido ao açude. Fiz o que minha Avó mandara. Agora era me preparar para ir à Sant Missa.

Calça branca. Camisa social. Alpargatas de couro com solado de pneu usado.

Quando Pavio me avistou trazendo comigo a sela, voltou a cavar o chão com a pata dianteira, querendo dizer que estava “pronto”. Coloquei a sela sem apertar muito no encilhamento.

Me abaixei e, de dentro do bornal retirei o par de esporas.

Prrraaaaaa quuuuêêêê?!

Pense num burro que virou animal. Pavio detestava ser “tangido” com espora ou chicote. Se alguém estivesse montado e esporasse, ele derrubava.

Fiz sinal pra Pavio com o polegar direito, aquiescendo e garantindo que não colocaria as esporas.

Acho até que eu sorriu levemente, quando viu que as esporas ficaram dependuradas numa das estacas.

Montei e lá vamos à Santa Missa.

Da casa da Vovó até a Igreja era uma boa distância. Coisa de cinco ou seis léguas. Sem que ninguém soubesse quem era o proprietário daquela terra, havia um espaço aberto que todos chamávamos de “capoeira”.

No exato momento que passávamos ao lado da capoeira, Pavio teve a atenção chamada por uma égua que, abrindo as pernas traseiras, soltou aquela mijada “cavalesca”.

Prrrrraaaaaa quuuuuêêêê, siô?!

Pavio saiu em disparada na direção da égua, sem esquecer de, antes, me derrubar. Quando estava tentando me levantar, Pavio já estava inteiro “dentro da égua”, com uma pajaraca que se aproximava dos 60 centímetros.

Tentei impedir, mas já era tarde. A pajaraca de Pavio já estava descendo. Mole! Provavelmente deixando alguma coisa dentro da égua.

Satisfeito, óleo trocado, Pavio fez apenas aquele conhecido:

– Frrrruuuuuu!

Pois, meu domingo terminou ali. Não fui mais à Santa Missa. Resolvi ir até ao açude tomar um bom banho e aproveitar para banhar Pavio também.

Tentando compreender a natureza das coisas e dos animais, acariciei a cabeça de Pavio e percebi que os olhos dele brilhavam feito duas pérolas. Me agradecia pela “pajaracada” que dera naquela égua.

Arre égua!

Pensativo, voltei para casa montando Pavio. E aproveitei para me questionar:

– O burro e eu; ou, eu e o burro?

Eu muitos anos depois do Pavio


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sexta, 17 de fevereiro de 2023

OS BOIZINHOS DE MAMONA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BOIZINHOS DE MAMONA

José de Oliveira Ramos

 

O mundo, em especial o Brasil, está enlameado. Assim, como gosto de escrever compulsivamente, vou me voltar a partir de agora, para outras coisas: para a infância, para aqueles que ainda não foram contaminados pelas idiotices dos doutores e dos adultos.

Botar a pipa no ar; relancear sem cerol na linha; jogar peteca para uns e bola de gude ou “cabiçulinha” para outros; jogar e aparar pião na mão, e depois na unha; fazer bola de meia ou, ainda, jogar chuço na areia molhada depois da chuva.

É melhor que perder tempo, lendo tanta bobagem dita nas redes sociais por quem frequentou a escola e fez juramento ético. Mas perdeu tempo na vida: nem aprendeu, nem se transformou em profissional. É doente! Não é útil. Nem para si mesmo.

Pois, decidi ligar a máquina do tempo – será melhor, pois nunca fiz nada que me envergonhasse – e voltar a passear na infância vivida no interior, quando ainda banhava nu no açude, e vestia calças de suspensórios. Quando comia (literalmente) com a mão, fazendo capitão de feijão.

A tarde, depois de fazer os deveres escolares – lembro: não havia merenda escolar, bolsa escola, ônibus escolar, uniforme ou livros doados pelo Governo; mas, lembro também, nem nós nem os professores fazíamos greves – as brincadeiras de jogar castelos de castanhas de caju, soltar pião ou cuidar da fazenda imaginária, onde a boiada era toda uma obra de arte feita com sementes de mamona.

E as vacas eram leiteiras, sim senhor. Se alimentavam também, sim senhor. E até cagavam “aqueles pratos de esterco” que, de noite, eram queimados para espantar pragas e muriçocas.

Não, nenhuma vaca holandesa. Nenhum touro de raça – e a manada era aumentada com uma simples volta debaixo do pé de mamona. Apanhadas ainda verdes, as sementes eram postas à secar.

Tempos bons. Tempos de vaca não conhecer bezerro. Mas… nenhuma ia para o brejo.

 

* * *

Simonal – o irreverente

Enquanto os escorpiões espalham veneno, e aranhas tecem redes nas redes sociais, numa evidente autodestruição, como se “kamikazes” fossem, eu, esperando a água correr por debaixo das pontes, volto ao tema exageradamente descrito, mas nunca solucionado em definitivo.

Falo da relação que sempre existiu entre a negritude e a competência.

Hoje, relembramos a figura diferenciada de um dos maiores show-man dos anos 60/70, com poderes de atrair a atenção, a preferência e em alguns momentos o bem-querer do povo brasileiro.

Cantor, detentor de esmerada técnica e qualidade vocal, Simonal viu sua carreira entrar em declínio, após o episódio no qual teve seu nome associado ao DOPS, envolvendo a tortura de seu contador Raphael Viviani. O cantor acabaria sendo processado e condenado por extorsão mediante sequestro, sendo que, no curso deste processo, redigiu um documento dizendo-se delator, o que acabou levando-o ao ostracismo e a condição de pária da música popular brasileira.

“Percebi que podia dominar o público. Como, nem sei explicar direito. Descobri o valor da entonação e aprendi que há um segredo na maneira de falar, na maneira de olhar, na maneira de se portar. Quando não gritava, me impunha com o olhar, naturalmente.” (Wilson Simonal)


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 11 de fevereiro de 2023

MINHA CANETA PARKER E MEU CADERNO AVANTE (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Todo dia era assim. Do início do ano de 1953, até o fim do ano 1957, chovesse ou fizesse sol, a rotina era a mesma: acordar e levantar, tomar café com nada (o pão era levado para a merenda na escola), vestir a roupa e caminhar 8 km na ida, e mais 8 km na volta.

Às vezes precisava andar muito rápido e, noutras vezes, uma corridinha se fazia necessária – tudo para não chegar atrasado, pois o portão de entrada era fechado quando a oração terminasse e todos entrassem para as salas de aulas.

Grupo Municipal São Gerardo. Curso Primário de quatro anos, hoje denominado Fundamental ou Básico. O quinto ano, às vezes desnecessário, era denominado Curso de Admissão. Admissão à quem pretendia cursar o ginasial e científico, hoje chamado de ensino médio. Era tudo quase que a mesma coisa.

“Quase”, eu escrevi. Havia uma diferença: as professoras sabiam o que ensinavam, e tinham ascendência moral e intelectual para cobrar a atenção dos alunos. Se não cobrassem, a direção da escola cobraria (inclusive, delas). Era diferente de hoje, ou não?

O acesso ao pátio da escola era uma vitória diária. Dava até para escutar os toques rítmicos das trombetas, anunciando que mais um dia de aulas estava sendo iniciado.

Reunidos no pátio, todos com os cadernos Avante às mãos, era cantado do início ao fim, o Hino Nacional Brasileiro. Ao fim, a oração de agradecimento e pedidos de desejos de saúde, ali e em meio à família.

Era, com certeza, uma escola onde se ensinava e se aprendia. Sem frescuras, sem viadagens ou despertar da curiosidade a caminho da homossexualidade masculina ou feminina. Era, repito, uma escola.

Leitura de livros em alto e bom som. De pé. Os erros nas pronúncias das palavras ou quaisquer outros, eram corrigidos na hora pelas professoras.

– José, levante! Abra o livro na página 38, e leia. Ordenava a professora Mundica.

– Durval, levante, e leia a partir de onde José parou!

Era assim. E todos liam e mostravam o que estavam estudando e aprendendo.

Dois períodos letivos durante o ano. Ao fim de cada um, provas. No final do ano, as provas finais. Provas escritas de todas as matérias lecionadas na grade curricular.

Havia reprovação, sim. Diferente de hoje, que os professores aprovam alunos que não aprenderam nada (na maioria das vezes por culpa dos próprios professores – que não dominam as matérias e, às vezes, sabem menos que alguns alunos, mas possuem “doutorado”). Mas, havia também a aprovação e o reconhecimento da escola e das professoras.

Ao final do ano de 1956, tirei o primeiro lugar da classe. Recebi um calhamaço com as provas, amarradas com fitas verde, amarela e azul. Primeiro lugar, com apenas uma nota 8,5 em Canto Orfeônico. Nas demais matérias, nota 10,0.

De presente, da direção da escola, ganhei uma caneta Parker, que conservo até os dias de hoje. Já se vão 65 anos!

Dona Mundica, a Professora – mais pobre que eu, mas que me preparou no Curso de Admissão ao ginásio, me presenteou com um tinteiro da tinta apropriada para usar na caneta. Parker Quink azul!

Eu amava Dona Mundica – e gostava de vê-la cuspindo o fumo de rolo que mascava. Mas, ela era a minha Professora! E sempre soube mais que eu. Por isso, ensinava.

* * *

AMIGOS: Estou cansado.

Que eu saiba, não estou doente. Apenas cansado. Tenho tarefas mais urgentes, que viraram problemas, e exigem de mim uma breve solução.

ASSIM, RESOLVI ENTRAR DE FÉRIAS, HOJE.

Não sei se volto, nem quando.

Agradeço a atenção e o respeito de todos que, acho, foram espontâneos e fiz por merecer.

Feliz Natal!

Próspero Ano Novo!

Saúde e Paz!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 05 de fevereiro de 2023

POR QUEM DANÇAM AS BAILARINAS? (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

POR QUEM DANÇAM AS BAILARINAS?

José de Oliveira Ramos

 

Um ensaio para si mesma

Juvenal Portela, era o nome da “fera”. Foi meu Professor de Técnica de Redação (Jornalismo) na Universidade. Trabalhou nos jornais O Globo, Jornal do Brasil e teria sido Chefe de Reportagem num desses jornais da Cidade Maravilhosa.

Foi com ele que aprendi que, “Jornalista que se preza” tem que escrever sobre qualquer assunto. Se não tiver o necessário conhecimento técnico sobre o assunto, tem que pesquisar.

E foi isso que fiz. No começo, não enfrentei muitos problemas, pois minha graduação reforçou ainda mais meus conhecimentos gráficos (trabalhei quase duas décadas como gráfico numa Editora que, além de impressos fiscais, imprimia apostilas e livros) que me serviram na profissão.

Quando mudei para São Luís, fui ser Cronista Esportivo. Repórter e Editor de Esportes – chefe de mim mesmo.

Foi quando aprendi que, na prática da modalidade Natação, uma grande parcela dos atletas nadam a partir de aconselhamento médico para corrigir problemas crônicos de asma e outros que tais.

Não é diferente para as meninas que aprendem a praticar Ballet. Algumas se iniciam para corrigir postura física – e um número muito menor tem como objetivo, a arte.

E essas borboletas humanas são as que se transformam na busca da realização pessoal, vivendo sonhos, ou, “representando as mães” que, por algum motivo desejariam, mas não conseguiram pisar num palco. Estão sempre nos camarotes ou na plateia. Sentem-se “representadas” nos palcos, digamos.

As borboletas que saem de casulos e metamorfoses diferentes

Longe de ser uma Agrippina Vaganova, Alicia Alonso, Ana Botafogo, Aurélie Dupont, Fanny Elssler, Márcia Haydée, Maria Alexandrova, Marie Taglioni, Martha Graham, Pina Bausch, conscientemente, a jovem busca seus sonhos.

Durante dias, meses e anos, os treinamentos entre barras fixas, pirueteiras, anel de pilates, calça para aquecimento e elástico thera-band. E, claro, calos, feridas nos pés, unhas encravadas e muitas broncas substituindo os aplausos que ainda estão por vir.

Os pés das bailarinas medem a procura do sucesso

Anos e anos se passam. A exigente professora que busca em cada aluna a perfeição de uma bailarina, finalmente anuncia que o dia da estreia pode estar mais próximo que o amanhã. Nada mais é que uma preparação psicológica, e a certeza do esmero na caça da perfeição, quando o corpo pisar no palco, ou, quando o solo for anunciado no programa.

Mais treinos. Mais esforços entre barras fixas e pirueteiras que se amoldam à trilha sonora: “O lago dos cisnes, Quebra Nozes ou A filha mal criada”?

Mais treinos. Mais sincronismo. Mais tudo, e, com certeza, mais ferimentos nos pés.

Será que o sofrimento do passado, as feridas, o “deixar tudo de lado e correr atrás da perfeição na arte” – será que tudo vai valer à pena?

Trocando feridas pelos aplausos

A semana da estreia. Em meio a tanto aprendizado e sofrimento, o flutuar do voo com a leveza das borboletas não mais em mutação, mas, agora, em exibição.

A concentração para a boa reciprocidade dos aplausos – nada de subir nas tamancas. O lugar do brilho é o palco e o caminho é a perfeição da dança procurada entre barras fixas, broncas e piruetas durante anos em treinamentos.

A preparação psicológica conta. As feridas nos pés e os calos foram quase insuportáveis. Mas, as borboletas não sofrem – apenas voam e escrevem poemas nas piruetas.

Assim, como os treinos na busca da perfeição ferem e machucam, nunca será exagero relembrar que as borboletas um dia foram lagartas, sofreram e se transformaram dentro de um minúsculo e desconfortável casulo.

Pois, que venha a estreia!

Que venha o teatro superlotado!

Que venham os aplausos!

Tudo, enfim, servirá como mais um aprendizado. Agora, sem barras fixas, pirueteiras ou pés feridos.

O ensaio final e a hora do palco

Últimos detalhes.

As cortinas se abrem.

Um foco de luz especial em forma de estrela, um som inicial de sinfonia que se soma com a expectativa da plateia.

A dança. A perfeição copiando o voo das borboletas. Emoção pura.

E a beleza se segue por minutos, horas e deveria seguir pela vida inteira no palco que estamos todos representados. Homens e mulheres. Pais e mães

E, finalmente uma resposta que jamais virá:

Por quem dançam as bailarinas?

As flores gratificam a perfeição


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 30 de janeiro de 2023

O LUAR MILAGROSO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O LUAR MILAGROSO

José de Oliveira Ramos

Lua vista da rede na latada

“Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Oh que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão”

O trabalho do dia foi cansativo. Sol forte, muita coisa para fazer e uma boa caminhada da roça até a casa. Depois, mais uma boa caminhada para o banho no açude. A volta para casa sob o manto da escuridão.

É chegada a hora do descanso. O jantar ainda não ficou pronto. Mas vai ficar – e quando estiver pronto, a “véia” avisa chamando. A “véia” não é tão “véia” assim. Em abril completou 38 anos de idade, amizade e companheirismo e a boa condução no correto encaminhamento da prole – cinco filhos.

A rede está armada no alpendre. Taco o pé na parede, para ganhar impulso, e me delicio com o barulho feito pelo armador (escápula) no balançar da rede pra lá, e pra cá. É bom, é gostoso. É reconfortante, pairando dúvida se o bom é o balanço, o barulho ou o direito ao descanso. Creio que tudo junto.

Distante dali milhares de anos luz, a poesia visual da lua com a moldura imaginária do som “saxofoneado” do armador, faz esquecer o sol quente, o trabalho em quantidade, e nos leva ao gozo do descanso.

“Lua, Lua cheia
Que nasce nos meio das águas
Que brilha na Ponta d’Areia
Que finge morrer e desmaia
Nos braços de uma sereia
Ó Lua”

Em meio a todo aquele momento romântico, a “véia” se aproxima e diz:

– O jantar tá pronto. Posso botar?

Naquele instante mudo o olhar da direção da lua, e vejo a “véia” com seus 38 anos, da mesma forma como a vi pela primeira vez, quando tinha apenas 22. Respondi:

– Antes, sente por um momento aqui na beiradinha da rede. Veja como a lua está bonita!

Ela sentou e eu aproveitei para puxá-la inteira para dentro da rede. Como se fora uma mágica, ela deitou e colocou a cabeça sobre o meu peito, enquanto eu acariciava seus cabelos, e disse:

– É verdade! A lua tá muito bonita!

O olhar mágico e milagroso para o luar

Carícias mil. Todas que conhecíamos. Amor. Prazer do gozo. Parceria e afirmação do envolvimento de anos de convivência saudável e respeitosa. E a lua como testemunha.

– Bem, esqueci de “apagar o fogo”!

Como se conhecesse todos os versos de todas as poesias de J. G. de Araújo Jorge, ousei dizer:

– Calma! Vamos primeiro “apagar este fogo” aqui!

E nos envolvemos mais uma vez. Mais amor. Mais prazer e mais olhares para o milagre da lua.

Agora, balançamos os dois na rede, embalados sob o luar e o som “saxofoneado” do armador.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 24 de janeiro de 2023

IRENE E A ABELHA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

IRENE E A ABELHA

José de Oliveira Ramos

 

Irene catando flores e conversando com a abelha

Com certeza, entre muitas pessoas, eu sou uma (pessoa!!!) que se embriaga e se delicia sentindo o aroma que evapora da terra seca quando começa chover. Trocando em miúdos: sai do sertão, mas o sertão não sai de mim. Não sairá, jamais.

As coisas, hábitos e manias do sertão me fazem um bem danado. Passear no sertão será sempre uma lavagem cerebral e uma bênção espiritual para mim.

Por diversas vezes tenho falado – e não consigo me desligar de quem me fez tanto bem, embora, materialmente, ela já esteja em outro plano – na minha Avó, nos textos que costumo escrever. Me ajuda a superar a ausência material dela.

Pois, não faz tanto tempo assim, escrevi um texto dizendo que minha Avó tinha o estranho hábito de “conversar com passarinhos” e que dera preferência à um beija-flor, com quem “conversava” e até chamava de “meu fiinho”! Estranho mesmo, era que ela passava a ideia de que o beija-flor “conversava” com ela e que se fazia entender.

Então, agora lhes trago a mania de Irene, nora de minha Tia Maria, que ganhava a vida e o sustento vendendo flores. Irene morava num pé-de-serra e resolveu se apropriar do espaço que era a serra, numa extensão de uns 200 metros.

Na fase da infância mudando para a adolescência e durante o casamento com meu primo Luciano, fez do pé-de-serra a sua roça de produção de flores. Girassóis, para ser mais preciso.

Nunca consegui entender o segredo de Irene para garantir que os girassóis estivessem sempre “abertos e bonitos” sem que estivéssemos na primavera, época mais apropriada para a floração de muitas espécies de árvores e da floricultura.

Irene, que era negra e estava sempre de bom humor, tal e qual a Irene do poema de Manuel Bandeira, só sabia fazer o bem à tudo e à todos. Com certeza, não precisou pedir licença para entrar no céu.

Pois, acredite. Diferente da minha Avó, que conversava com o beija-flor, Irene conversava e se entendia muito bem com as abelhas que colhiam pólen nos girassóis, ou era com apenas uma abelha.

Mas, conversavam sim!

Se entendiam, sim!

E, com certeza havia reciprocidade. Por segundos e minutos inteiros, a abelha – parecendo pedir licença para polinizar – pousava sobre uma das mãos de Irene, batia milhares de vezes seguidas com as asas. Fazia crer n um diálogo, sim.

Abelha “coletando” pólen no girassol

Diálogo estranho, por ser impossível?

Não!

De forma alguma. Estranho mesmo, era que, para ir coletar os girassóis e deles fazer os buquês, Irene se vestia como se fosse à um baile. E aquilo acabou-se tornando rotineiro.

O que se soube, anos depois, foi que Irene conheceu, namorou e casou com Luciano. Mas, continuou plantando, cultivando e vendendo girassóis – caminho mais próximo e prático para continuar conversando com a abelha. Ou, com as abelhas!

O campo de girassóis no pé-de-serra continuava crescendo. O que garantia, também, a continuidade de uma produção de mel. Mel de qualidade, tão doce quanto o provável diálogo entre Irene e a abelha.

Imagine Irene, negra, entrando no céu depois de ser conduzida por centenas de milhares de abelhas, e sem precisar pedir licença ao porteiro, ouvindo:

– Pode entrar Irene! Quem ajudou a adoçar a vida de tantos, não precisará, jamais, pedir licença para o repouso eterno!

Mel de pólen de girassol com sabor de Irene


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 17 de janeiro de 2023

PARA QUE SERVE O DESNECESSÁRIO? (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

PARA QUE SERVE O DESNECESSÁRIO?

José de Oliveira Ramos

Eu só queria entender

Amanhã, 14 de fevereiro do ano de 2022, finalmente voltaremos a ver as imagens diferentes em muitos lugares deste país continental. As crianças começaram a voltar a assistir aulas presenciais – e isso muda muita coisa.

Ainda existem lugares onde os pais continuam comprando o material escolar a partir daquela extensa lista que muitos de nós conhecemos. Conhecemos como pais e como alunos. Mas, não deixa de ser verdade que, em muitos lugares parte desse material é doado, graças aos projetos da educação.

O galo canta e Joshua acorda e levanta. Escova os dentes, toma café preto com nada, ao tempo que a mãe o ajuda a se vestir. Faltam poucos minutos para a lancha que transporta a meninada ribeirinha fazer a sua primeira das duas viagens. Duas de ida e duas de volta – para evitar naufrágio, como quase sempre acontece.

Na cidade chamada grande, a rotina não é completamente diferente. É verdade que há diferença em poucos itens. Mas há.

Diferente de Joshua (nome que os pais “pescaram” na Bíblia, por serem evangélicos), João Muniz, filho da professora maranhense Helena Cawpy e do paraibano Clébio, também se prepara para ir à escola. Não acorda tão cedo, pois estuda no turno vespertino, mas tem que “cuidar da vida e, principalmente, das tarefas escolares”.

Curioso para aprender tudo, João aproveitou uma rápida visita que fiz à casa dos pais dele e me bombardeou com algumas perguntas. Ele, João, acha que alguns sabem tudo e que outros não sabem nada. Não sei em qual lugar ele me situa.

– Zé, para que serve o desnecessário?! Perguntou João.

Fiquei atordoado com a pergunta que partiu dele. Pergunta inusitada por conta da idade dele e por estar cursando apenas o quarto ano (antigo quarto ano primário). Procurei ganhar tempo, fingindo que não havia entendido a pergunta:

– Como assim desnecessário, João?!

E ele voltou à carga:

– É. Essas coisas que não servem pra nada e a gente continua usando. Algumas letras, por exemplo.

Eu queria entender melhor para não deixar João sem resposta, mesmo sem saber em qual grupo ele me classifica (no grupo dos que sabem de tudo ou no grupo dos que não sabem de nada):

– João, me dê um exemplo disso!

Sem se fazer de rogado, João deu o show dele.

– Zé, na nossa língua ou na língua de outros, por que a necessidade de manter as “letras de som mudo”?

E continuou a pergunta, dando exemplos. Veja o nome da minha professora: Fani Knoploc. Mas a gente fala é “Fani Noploc”. E, na língua inglesa: “Know-how”, que a gente pronuncia “norrau”!

Difícil tentar convencer João do contrário. Ele tem razão, sim!

– Zé, quer ver outra coisa desnecessária, que continua sendo usada?

Querendo encontrar um motivo para encerrar aquele papo que não acabaria bem pra mim, autorizei:

– Diga lá, João!

E ele falou com tamanha convicção, que eu não tinha motivo para continuar:

– Zé, pra que serve Mestrado ou Doutorado para Professor, se alguns não sabem o que ensinam?

E eu, ó: – ???!!!

João vai voltar a frequentar a escola de forma presencial. Segundo ele, desejando rever alguns amigos e, claro, amigas – João é “chegado”!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 07 de janeiro de 2023

A DOR (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A DOR

José de Oliveira Ramos

 

Pessoas não sentem as dores por conta da anestesia do sofrimento

 

A parada, seguida de mais um olhar – sempre na mesma direção: o céu e o seu azul mais azulado, sem nuvens que continuem a acalentar o sonho. O sonho do vento, e mais tarde, o milagre da chuva.

A ausência da chuva doía mais que o sol causticante assando a pele enegrecida, ressequida, elevando-a a uma temperatura, que nem os mais fortes conseguem suportar. Doía. Doía muito mais que um corte sangrando em qualquer local do corpo.

Hoje, mais de sessenta anos depois, ainda que num ambiente climatizado, percebo que aquela dor doía muito. Doía na alma e transcendia para a vida que se pretende eterna. Doía muito. Doía mais que a sede ou o martírio de sonhar com a água.

Eu não sabia que doía tanto.

A seca dói.

Dói mais na alma – e perpetua essa dor – que no corpo. Até as lágrimas ficam escassas, porque são líquidas e o corpo faminto as absorve. Não há força nem sofrimento que as façam sair olhos à fora.

Não há poesia nesse sofrimento.

Só dor.

Dor que dói.

A fome acompanha a dor, mas a dor continua doendo mais. A fome, eventualmente, pode ser saciada, mas, a dor não. A dor dói. A fome desaparece com qualquer coisa que a mão leve à boca – “qualquer coisa” mesmo.

Não há direito de escolher cardápio, porque a fome é analfabeta e não escreve nada. Tampouco consegue ler.

Mas, a dor dói porque está na mente, na alma.

A seca dói.

Pena que os homens ou as mulheres que podem resolver o problema – nunca a tenham sentido.

Só sabe o gosto e o prazer de comer “qualquer coisa”, quem um dia já comeu barro ou folha seca. E quando tem isso para comer sem que esteja posto à mesa.

Hoje percebemos o quanto as pessoas trocam essa dor que dói por aleivosias, futilidades, mi-mi-mis ou os idiotas “je suis”.

Coisa de gente que nunca sentiu dor.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 31 de dezembro de 2022

O POÉTICO CIO DA CHUVA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

 

O POÉTICO CIO DA CHUVA

José de Oliveira Ramos

 

O cio dos pingos e a explosão do orgasmo da Natureza

A cadeira “espreguiçadeira” de madeira, com assento e forro de lona antiga, como ainda há em muitos lugares que preservam as coisas antigas e confortáveis, estava colocada próximo da janela, para aproveitar a claridade da luz do dia e facilitar a leitura do livro MALCOLM X.

A magia da Natureza chamou a atenção com a claridade intempestiva provocada pelos raios que, trazendo recados divinos, pareciam dizer:

– “Preste atenção na poesia que vou escrever para leitura e compreensão dos sensíveis”!

Fechei o livro, arrumando bem o marcador de leitura, e atendi à ordem recebida emanada dos raios e, agora, dos trovões. Não. Não era uma tempestade. Era tão somente a declamação de um poema da Natureza. Na linguagem de libras.

Olhei para a parte superior da janela protegida com vidro, onde os pingos e respingos dançavam um balé mágico ao som do “barulho silencioso” e acariciante que o cair da chuva produzia ao cair no chão.

Fixei o olhar num pingo diante da insistência dele em chamar atenção. Caindo, arrastava para si pingos e provavelmente “pingas”, até formar uma gota com ares de “gota rainha”, ou “pingo rei”.

Acompanhei com os olhos a descida, para ver o que aconteceria ao final daquela procura insaciável da existência e da transformação – ou, quem sabe, da criação de pontes e laços que gerassem uma reprodução.

E, lá vinha ele, o pingo, que fora pinguinho segundos antes, e agora já era um pingão. Continuava escrevendo os versos de uma poesia no percurso da formatação.

E lá vem ele!

Descendo.

Crescendo!

Naquela descida, um desvio para a esquerda, que mostrava que a mudança do percurso não seria em vão. E continuou descendo e desviando para a esquerda para se aproximar do que entendera ser a sua parceira.

Os dois pingos se absorveram, se entrelaçaram ao mesmo tempo que um trovão ainda mais sonoro parecia dar vivas e agradecer aos céus aquilo que, com certeza, era uma cena de amor.

Um relâmpago iluminou o encontro e deu vivas.

Aquele encontro aumentou o tamanho do pingo que, por segundos que pareciam minutos, numa velocidade de milhares de anos-luz, parecendo atingir o orgasmo agora em dois, caíram no chão e se dividiram em incontáveis partes, saciando o cio de ambos para garantir a ordem reprodutiva da Natureza.

Satisfeito, e ao mesmo tempo embevecido, voltei ao marcador de páginas e retomei a leitura, enquanto centenas de milhares de pingos escreviam nas janelas a poesia da reprodução.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 24 de dezembro de 2022

A BIFURCAÇÃO DA VIDA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A BIFURCAÇÃO DA VIDA

José de Oliveira Ramos

 

Por onde vou?

Diz, por onde vou?

Diz, onde estão as tormentas e as ondas que poderão me ceifar a vida.

Me diz os caminhos possíveis – sem que sejam os mais fáceis.

És a minha bússola e o meu caminho.

És o sol, e a luz da minha escuridão.

Orienta-me!

Ilumina-me, e aponta a direção mais possível – sem que seja a mais fácil.

És a minha bússola e o meu caminho.

És o oásis no deserto que me consome.

Dirige-me, como se eu estivesse num balão na Capadócia.

Sopra forte, e leva-me pelos caminhos mais possíveis – sem que sejam os mais fáceis.

Leva-me, sem precisar trazer-me.

Mas aponta os melhores caminhos – sem que sejam os mais fáceis.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 15 de dezembro de 2022

A ÚLTIMA CHANCE (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A ÚLTIMA CHANCE

José de Oliveira Ramos

1

Sempre gostei de “suspense”. Li não sei quantos livros de Agatha Christie, e fiz do detetive Hércule Poirot um dos meus ídolos em quase todos os romances da escritora. Por gostar da forma como ele investiga as ações e as suspeições, sem correr riscos e sem desconfiar de ninguém, mas, suspeitando de todos ao mesmo tempo. Claro que o mérito é da criação da Agatha.

Nos anos 60/70 eu trocava qualquer ocupação para ver um filme de Alfred Hitchcock – para mim, o mestre do suspense. Vi várias vezes o filme “Cortina Rasgada”, dirigido pelo Hitchcock, e pouco me importo se alguns especialistas tecem críticas à fita. À mim, me bastava o suspense que provocava.

A cena da fuga num ônibus eu acho genial, pelo suspense que causa a cada momento que o veículo se aproxima de “uma barreira policial”.

Protagonistas do filme Cortina Rasgada

 

2

Um jogo de futebol entre dois clubes considerados grandes (da elite), foi realizado numa tarde de domingo. Digamos, um Fluminense x Flamengo. Apelidado popularmente de Fla x Flu.

Durante uma semana inteira, os dois elencos treinaram em preparativos finais para a programada decisão da tarde dominical. Lances de real perigo para ambos os lados, mas a má pontaria dos jogadores na hora das conclusões em gol, nunca tiveram êxito. O jogo terminou sem gols. 0 a 0.

A decisão vai acontecer na tarde do próximo domingo, podendo acontecer até depois da cobranças de cinco penalidades máximas para cada equipe, caso o jogo termine sem vencedor no tempo normal.

Os elencos folgaram na segunda-feira. Se reapresentaram na manhã da terça-feira, para o reinício dos treinamentos com vistas à decisão. Treinos em dois expedientes. Repetem na quarta-feira, novamente em dois períodos. Na quinta-feira, apenas no período da tarde e, na sexta-feira, novamente em dois períodos, sendo que, na parte da tarde, o “treino apronto” para o jogo da tarde de domingo.

Concentração em hotéis de luxo a partir da noite de sexta-feira e descanso total durante o dia de sábado. Na manhã de domingo, após o café da manhã, a preleção do Técnico e a preparação psicológica. Revisão médica. Todos estão aptos para entrar em campo em busca do resultado que lhes garanta a vitória e o título. Mais uma chance para o título – que pode ser a “última chance” para alguns veteranos que já pensam em aposentadoria.

Lances de perigo para as duas defesas. Ninguém marca gol, graças aos bons desempenhos dos goleiros. Tempo normal esgotado. Mais 30 minutos de prorrogação. Mais 3 minutos de acréscimo. O placar não é movimentado e a decisão será através da cobrança de penalidades máximas. Cinco cobranças para cada time.

O time de uniforme branco converteu quatro cobranças e desperdiçou uma. O time de uniforme vermelho desperdiçou a primeira cobrança e o capitão vai cobrar a quinta e última penalidade. Se converter, garante o empate e a continuação das cobranças.

Jogador se prepara para cobrar a quinta penalidade

Tudo pronto. Estádio em silêncio e os torcedores do time de vermelho, contritos, rogam à Deus pelo acerto do batedor. É a última chance depois de dois jogos difíceis, muito disputados e duas semanas de treinamentos intensivos.

O árbitro autoriza a cobrança. O goleiro adversário “catimba” e se movimenta de um lado para outro. O capitão toma distância. Parte para a bola e desfere um verdadeiro petardo. A bola vai de encontro ao travessão vertical e se oferece para a defesa do goleiro. Era a última chance. Foi desperdiçada e o título fica para o time de uniforme branco.

Às vezes, aquela que parece ser apenas a primeira chance, poderá ter sido a última. A tensão vivida durante as duas semanas de preparativos não poderia ter sido desconsiderada.

Era aquela a última chance.

 

3

A tensão se torna cada vez maior. A deflagração da guerra pode acontecer a qualquer minuto, até com um sorriso. Desde que seja entendido como irônico.

Os homens nunca se entendem, por um único motivo. Eles decidem pela guerra, mas não vão ao “front” nem pegam em armas. São medrosos e muito inteligentes para isso – decidem a guerra mas não guerreiam.

As embaixadas representativas recebem orientação para que todos os cidadãos civis que vivem na cidade motivo da “briga” deixem tudo que lhe pertence por conquista e saiam dali sem demora. A tensão cresce mais ainda. A Embaixada não tem condições de atender a todos. Não há transporte aéreo. Foi tudo embargado pela possibilidade de bombardeio aéreo. Melhor não arriscar.

Naquele dia, só o transporte ferroviário será possível. O comboio único tem saída marcada para as 13 horas. Seis vagões e pelo menos 30 mil fugitivos que, em poucos minutos serão refugiados – vão para outra cidade, provavelmente onde será possível embarcar em voo aéreo.

Como transportar 30 mil fugitivos em seis vagões?

Trem descarrilhado no transporte de fugitivos

 

Para muitos entre os 30 mil, aquela será a “última chance”. Não há como correr o risco de desperdiçá-la. Todos se dirigem à gare e a algazarra entre mulheres e crianças é muito grande.

O trem está chegando. Empurrões. Pisoteamento. Choro de crianças e lamento de idosos. As portas dos vagões se abrem e, por onde entram apenas duas pessoas, duzentos lutam para entrar. Alguns esquecem que conduzem crianças e, quando lembram, voltam para apanhá-las. Em fração de segundos os vagões estão superlotados.

Ninguém quer perder aquela que pode ser a “última chance”.

O trem dá sinal de partida. Não há tempo a perder, pois a viagem até a fronteira será longa e perigosa por conta da possibilidade de bombas.

As portas se fecham e, com certeza, dos mais de 30 mil que se aglomeravam, pouco mais de 3 mil conseguiram embarcar, aproveitando aquela que, com certeza será a última chance de sair daquele inferno.

A noite chega. Tudo escuro e a via férrea iluminada apenas pelo farol do trem. A linha férrea fora atingida por uma bomba e o comboio com seis vagões sofre um pavoroso acidente. Incontáveis os óbitos.

Seria aquela fuga, a “última chance”?

 

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 11 de dezembro de 2022

O BALÉ NO NOSSO PEQUENO MUNDO IMAGINÁRIO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O BALÉ NO NOSSO PEQUENO MUNDO IMAGINÁRIO

José de Oliveira Ramos

 

O balé do Louva-Deus

As estradas da vida já nos mostraram tantas coisas, mas tantas coisas que, uma única culminância não serviria de somatório.

Vimos, outrora, o poético sopro do vento desenhando ondas imaginárias nas águas paradas do açude; vimos o nascimento da rosa que há segundos, minutos, horas e dias era um botão; e, parafraseando o sertanejo, vimos até o casamento da raposa quando chovia e fazia sol ao mesmo tempo.

Vimos, a vida humana desabrochando em ser, transformando uma vagina num buquê de rosas que sangrava e mostrava ao mesmo tempo, o quão bela e ao mesmo tempo perfeita a Natureza divina. Vimos, também, a morte num adeus solene de quem parte – e tendo consciência disso! – acenando com as mãos como a dizer: nos encontraremos brevemente!

Vimos o semear do milho e do feijão – e isso dá um sabor diferente na hora da mastigação. É, com certeza, o ciclo da vida e de tudo.

Pois, certa noite, mal chegada, tivemos a feliz premiação de ver, também, uma fina neblina tangida pelo fraco vento que, pela nossa posição, transformava um grosso galho de acácia num palco natural da vida.

Um desenho que não foi feito por nós: ao fundo, a lua de agosto, redonda e límpida, nos trazia a silhueta de um provável casal de Louva-Deus em cópula, garantindo a preservação da espécie.

Mas, aos olhos curiosos e profanos do amor em transe, e na retina da nossa experiência, o que vimos (ou o que queríamos ver mesmo) foi um verdadeiro balé transformado num autêntico, perfeito, PAS DE DEUX.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 04 de dezembro de 2022

O CIRCO – A VIDA NO PICADEIRO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O CIRCO – A VIDA NO PICADEIRO

José de Oliveira Ramos

 

Circo Garcia e o picadeiro vazio

“Vejam só
Que história boba eu tenho p’ra contar
Quem é que vai querer me acreditar
Eu sou palhaço sem querer

Vejam só
Que coisa incrível o meu coração
Todo pintado e nessa solidão
Espera a hora de sonhar

Ah, o mundo sempre foi
Um circo sem igual
Onde todos representam bem ou mal
Onde a farsa de um palhaço é natural

Ah, no palco da ilusão
Pintei meu coração
Entreguei, entreguei amor e sonhos sem saber
Que o palhaço pinta o rosto p’ra viver

Vejam só e há quem diga que o palhaço é
No grande circo apenas o ladrão
Do coração de uma mulher

Ah, o mundo sempre foi
Um circo sem igual
Onde todos, todos representam bem ou mal
Onde a farsa de um palhaço é natural”

(Letra de música cantada por Antônio Marcos)

No princípio, tudo não passava apenas de uma diversão imaginada para o entretenimento de pessoas, e o melhor caminho para mostrar aos outros, o que o cinema e o teatro não queriam ou não tinham espaço e condição para mostrar.

Alguém teve a sorte de “inventar” o circo.

Provavelmente, diferente de como tantos outros inventaram (ou descobriram) o avião, a lâmpada – e foi a partir da invenção dessa tal lâmpada, que começaram a criar a “Lâmpada de Aladim”. Por que “acendia” e chamava a atenção de outrem. Coisas de gênios atendendo desejos mil de quantos quisessem.

Inventaram o Circo. E um dos primeiros sinônimos do circo, não poderia deixar de ser: algo hilário, que diverte e onde todos, com exceção da plateia, se transformam em palhaços.

Verdade pura!

Mas, não é menos verdade que, no Brasil, algumas instituições estão tergiversando, deixando de ser apenas “instituições sociais com o mister da institucionalidade a serviço do objetivismo legal”, e estão totalmente empenhadas em “roubar” (também), a designação oficial de circo.

Um verdadeiro e assumido processo de transformação – uma apropriação indevida.

Nessas, tal qual o Tihany ou o Garcia, circos que, no Brasil, poderiam ser considerados células-troncos do trapézio, do malabarismo e da palhaçada, os componentes estão ocupando os espaços dos elefantes, dos leões e até mesmo dos trapezistas.

E, por que não dizer também, dos palhaços?

O espetáculo circense em evolução

Faz tempo que a meninada se divertia até mesmo com os nomes dos palhaços: Carequinha, Trepinha, Risadinha, Rei do Trapézio, Homem Voador, Mágico Canadense e até o melhor e maior domador de leões ou de elefantes. Todos esses nomes, verdadeiros ou não, eram escolhidos e tornados celebridades pela criançada que, ávida, fazia de tudo para merecer ganhar um par de ingressos ou “passe-livre” para os espetáculos.

Diferente de hoje, que apenas uma pessoa “indica” e um contingente de xis eleitos escolhe aquele que vai fazer palhaçadas e provocar a hilariedade a partir de absurdos cometidos ou determinados, dando-lhes o aval em troca sabe Deus do que – alguns, inconstitucionais.

Que falta nos fazem o Garcia e o Tihany!

O palhaço decepcionado

Ria-se, antes, com as palhaçadas nos picadeiros do Tihany ou do Garcia. Por muito tempo.

Ria-se!

Nos dobrávamos de tanto rir. Ríamos às escâncaras.

Depois, com o desaparecimento tanto do Garcia quanto do Tihany, passamos a nos deliciar com o aparecimento do Cirque du Soleil, mostrando seus espetáculos pela televisão.

O mundo se modernizou, os políticos se aparelharam e ficaram modernos, usufruindo de todos os direitos possíveis e se escudaram com uma ou duas ou até três instituições e se transformaram no Cirque du Freak.

Não há mais risos.

Ninguém mais ri às escâncaras!

Trapézios, elefantes sentando em cubos em obediência aos domadores, desapareceram. Ou, quem sabe, se transformaram em verdadeiros “deuses da prepotência”, olvidando até a onipotência divina.

O mundo mudou. A gente não ri mais.

Tampouco as crianças encontram motivos para rir. Vivem entretidas em descobrir à qual gênero sexual pertencem.

Até os palhaços mudaram de indumentária. Continuam com os narizes vermelhos, mas vestem uma soberba capa protetora, que os protegem apenas de nós. Mas, estarão algum dia frente a frente com Deus e serão julgados pelas suas ações, inclusive por nos roubarem o direito de rir.

Ninguém ri.

Mas, quem rir por último, terá o direito de rir melhor.

Que saudade e que falta nos fazem os circos Tihany e Garcia.

A decepção atingiu os palhaços mirins


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 27 de novembro de 2022

QUEM TEM MEDO DA VELHICE? (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

QUEM TEM MEDO DA VELHICE?

José de Oliveira Ramos

 

O que é mesmo, ser “velho”?

 

Por que as pessoas envelhecem, e acabam morrendo?

Por que uma pessoa “velha” não se eterniza?

Quantos “velhos” temos no Brasil?

Ora, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), temos hoje, no Brasil, alguns poucos mais de 213.267.000 habitantes. Desses, garante também o IBGE, 14,8% são de idosos acima dos 60 (sessenta) anos.

Desses, existem afirmativas, são aproximadamente 15 milhões de idosos, sendo que mais de 7,5 milhões ainda trabalham, produzindo algo que tem relevada importância na carga tributária.

Mas, o Brasil sempre foi “irresponsável” no registro de informações que, de uma forma ou de outra possam contribuir para o necessário conhecimento do quantos são e o que fazem. Brasil à fora, existe um considerável número de brasileiros que sequer possuem Registro Civil (Certidão de Nascimento), ficando, assim, fora da contabilidade demográfica.

Tabu – Ser velho ainda é tabu no Brasil. “Ser velho” ainda funciona com ares e tons de ofensas, e numa grande maioria de interpretações, como se “imprestáveis” fossem todos os que, enfrentando dificuldades imensas na vida, conseguiram passar dos 60 anos. São consideradas “raridades” os que ultrapassam as barreiras dos 70, 80 ou 90 anos de idade.

“Faça da passagem do tempo uma conquista, e não uma perda.”

“Velho” tem vários adjetivos no Brasil. Alguns, pejorativos e ofensivos: “velho”, idoso, “coroa”, demente, ancião e outros. Mas, também há os que chamam esse período da vida de “terceira idade” – da mesma forma que poderia ser, também, “última idade”.

O Brasil é um país diferenciado no tocante às conquistas desta parcela da população. Direitos Sociais tem uma dificuldade enorme de sair do papel para a prática – o que acaba por ridicularizar mais ainda quem ultrapassa essas barreiras da vida.

Passagem gratuita nos coletivos?

As vagas estão sempre preenchidas, esgotadas, já foram disponibilizadas. Tudo porque ninguém se dá ao trabalho de verificar se, realmente, a informação é verdadeira. E na maioria das vezes, quando constatado que a informação é mentirosa, fica por isso mesmo e o feito por não feito. Não existe nenhum respeito pela conquista social.

Atendimento preferencial nas filas?

Os atendentes atendem mais vagarosamente que o funcionamento da mente idosa. Nos caixas de bancos, são sempre as filas que “menos andam”.

“A velhice nos traz direitos maravilhosos! Enquanto a juventude é cheia de obrigações, a velhice é o tempo em que vivemos a doce inutilidade.”

Pelo sim ou pelo não, a velhice é o estágio da vida que todos que conseguem chegar, tem consciência de que o fim se aproxima. Já dobrou a esquina e se encaminha célere para o consumatum est.

Finalmente, o que você faz durante a vida, antes da velhice chegar, para estar preparado para o inevitável?

Como a frase grifada acima, você considera a “velhice” uma conquista, ou apenas uma tarefa a mais para os que chegaram depois de você?

Você se preparou para ser “velho”, ou apenas amealhou uma conta bancária e uma gorda poupança para deixar para aqueles que estão ansiosos para você partir imediatamente?

Você é um velho? Pretende sê-lo?

Infelizmente, a “velhice” ainda não te dá o direito dessa escolha.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 20 de novembro de 2022

O JACARÉ DA RUA DA PAZ (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

O JACARÉ DA RUA DA PAZ

José de Oliveira Ramos

 

 

Eram três jacarés – mas todos preferiam o da casa de dona Nenê

 

Num passado não tão distante, chamávamos o local de “vila”. Vila isso ou vila aquilo. Nos atuais e pretensos tempos modernos, chamamos de “condomínio” – apenas por ter um portão e um vigia dorminhoco, que vive sentado, e nunca sabe de nada. Aliás, ele é pago para não ver nada.

Entenda-se “pago para não ver nada”, apenas, nada da vida particular dos moradores. Ele estende essa “recomendação” aos visitantes, proporcionando roubos mil e assaltos inúmeros. Mas, esse é outro assunto, que não vem ao caso, agora.

Antes, aquela “vila” nada mais era que um trecho da Rua da Paz, no bairro Misericórdia, município de Beberibe, hoje RMF (Região Metropolitana de Fortaleza).

Rua limpa, calçada com paralelepípedos, esgotamento sanitário deficiente que sempre recebia promessas de melhoria por partes dos candidatos a Prefeito.

Nunca cumpriram as promessas, mas isso não era tão importante para os cerca de 40 moradores daquele trecho bucólico que valorizava toda a rua.

Durante o raro período chuvoso, aquele trecho da Rua da Paz virava quase que uma praia de Copacabana, tamanha era a quantidade de “banhistas” que até sorteavam alguns minutos de banho debaixo dos jacarés. Faziam fila, cada um esperando sua vez.

As casas, construídas no estilo porta e janela, possuíam na parte frontal do telhado, a queda da água das chuvas através de uma canaleta que a maioria chamava de “jacaré”. Quando chovia, era comum muitos fazerem uso do jacaré para o banho gostoso e reconfortante.

Algumas mães até levavam sabão para banhar e “esfregar” os filhos, e uma toalha para secar, além, claro, de uma roupa limpa para a troca. Essas coisas viraram atração, ao mesmo tempo que respeito na Rua da Paz. A rua dos jacarés.

Cenas comuns de uma comunidade simples, onde todos se conheciam pelo nome, e muitos conviviam desde a infância. Ali, todos se respeitavam. Mas, alguns olheiros aproveitavam para “limpar as vistas” embaçadas pelo dia a dia doméstico.

Poucos entendiam, ou se faziam de desentendidos, mas a casa de Dona Nenê tinha o jacaré mais visto e desejado – e não era por conta do maior volume d´água que descia dele.

Era pela frequência dos banhistas. Dos banhistas, vírgula. Das banhistas.

Luíza – uma das filhas de dona Nenê

Dona Nenê enviuvara há pouco mais de cinco anos. Seu Horácio, homem honesto e trabalhador, sofreu um infarto fulminante aos quarenta e poucos anos. Na flor da juventude, como costumamos dizer. Deixou viúva Dona Nenê, com quarenta e poucos anos também.

O casal teve duas filhas. Luíza e Clarice que, quando Seu Horácio mudou de plano, já tinham 18 e 16 anos respectivamente. Ambas estudantes, criadas sob a rigidez paterna da época. Viviam para os estudos e para a construção do futuro, quando os pais faltassem.

Desde crianças, Luíza e Clarice usavam também o jacaré para banhar na época das chuvas. Eram conhecidas e amigas dos meninos. Cresceram, viraram adolescentes e mantiveram as amizades e o respeito mútuo.

Clarice – a filha adolescente de dona Nenê

Clarice, a mais jovem – uma menina se formando moça, deixando antever que em breve se transformaria numa mulher linda – ainda tinha alguns trejeitos infantis. Sem maldades, amiga dos meninos, banhava no jacaré usando apenas a calcinha minúscula e um vestido que, ao ficar molhado, se transformava em “transparente” enlevando a bela nudez da jovem. Um verdadeiro pecado.

Clarice e Luíza viraram as atrações do jacaré da Rua da Paz, mas em tempos diferentes, os homens mais maduros preferiam “apreciar a chuva” postados nas janelas.

Ingênuos sem pares!

Dona Nenê, a mãe das meninas, ficava entre um pé e outro para ir também ao jacaré na frente da casa – mas, sem roupa, escolhia mesmo era o banho no quintal da casa. Com certeza, ainda em luto pela morte do marido, precisava manter o respeito em orientação às duas filhas.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 13 de novembro de 2022

O MUNDO VISTO DA MINHA JANELA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O MUNDO VISTO DA MINHA JANELA

José de Oliveira Ramos

 

 

Minha janela aberta para o meu mundo

 

Manhã de qualquer dia.

Em qualquer lugar, tão logo a vida se dana a tocar mais alto que todos os badalos de todos os sinos rebimbando ao mesmo tempo.

Num mesmo tom e com o mesmo som. Como se fora a abertura de uma ópera. No teatro da vida que existe em cada um de nós.

Blém, blém, blém!

Abro a minha janela. Uma e, depois, a outra.

As duas abertas para o meu mundo, tingido de um acastanhado claro. Mas, meu. São assim as minhas janelas.

O horizonte (meu!) se acastanha e, num mundo só meu, a poesia tem as cores que eu queira dar. Que eu queira pintar. Que eu queira ver. E, quero-o castanho neste momento.

Até um oásis, antes de um verde azulado pela profundidade, se tinge de tons castanhos – como meus olhos. Como meus olhos em janelas de mim mesmo querem ver.

É assim que eu quero ver, desde as minhas janelas recém abertas. Abertas às escâncaras, para um mundo castanho – como meus olhos de janelas abertas para o que antes, no horizonte, era totalmente azul.

O azul que outros olhos viam era azul

 

As minhas janelas!

Janelas de mim mesmo, que me transformei, tal qual as casas de antigamente, uma porta e duas janelas, numa moradia de coisas boas, pautáveis e paladares.

Coisas acastanhadas!

Como meus olhos, de um tom castanho claro, que consegue, nos momentos de felicidade, “ver a cor do som”. Dar cor castanha ao som.

Janelas de mim mesmo.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 06 de novembro de 2022

A CANJICA DA VOVÓ (CRÔNICA E JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A CANJICA DA VOVÓ

José de Oliveira Ramos

 

Milho nascendo em fileira

Hoje, próximo de uma data significativa, resolvi dar uma volta no tempo, e relembrar um pouco das boas coisas vividas no sertão – então adolescente, sempre passando as férias escolares na cada da minha Avó, figura que, se fosse minha mãe, não faria nenhuma diferença. As duas, Avó e Mãe, eram quase que a mesma pessoa.

Meu Avô, homem de poucas letras, conhecia apenas o mundo em volta de si mesmo. Tudo se resumia ao redor do que ele via e conhecia. Nunca ouvira falar de escola ou de estudar. Mas, a sensibilidade divina adquirida, compreendia e aceitava que o mundo, para outros, ia além das manhãs, tarde e noites nas Queimadas (povoado onde todos convivemos). Ele sabia que existia um mundo além daquele onde vivia. Admitia e aceitava.

Mas, nós, os netos por vezes nos cercávamos da crença que, pelo menos nos meses das férias, o mundo era aquele ali, onde vivíamos e do qual usufruíamos só coisas boas que hoje são apenas saudades.

E nunca deixamos de aceitar que ali tínhamos muito que aprender. E fazíamos isso com prazer e sem cerimônia.

Cedo entendemos que, para semear alguma coisa, precisávamos preparar a terra. Limpar a terra. Preparar a terra para o momento oportuno de semear. Tantas e tantas linhas, tantos e tantos roçados preparávamos com as nossas enxadas e com a nossa coragem. O fruto de tudo, com certeza, viria depois.

Semear o milho, para nós, era como sentir muito cedo o cheiro da canjica com coco e aquelas borbulhas de algo que nos ligaria cada vez mais à terra e aos nosso costumes – para alguns, efêmeros e passageiros prazeres. Para nós, parte da nossa própria vida e razão de existir.

Semear o milho na terra preparada, e, vê-lo crescer até “embonecar”.

Milho “embonecando

Avistada a “boneca”, o objetivo se imaginava mais próximo. E era verdade. Os resultados positivos de tantos dias trabalhados na terra, sol a sol, agora estavam por vir. Com certeza.

Enxadas à mão, a manutenção da limpeza das ervas daninhas era uma constante – que ali significava também com uma vigília ao crescimento e desenvolvimento daquelas espigas verdinhas do milho mole até atingir o amarelecimento da secagem.

Milho em espiga verdinha

Quem planta, colhe.

Quem plantar e cuidar, vai ter boa safra. No milho, e na vida.

É o milho verde que vai servir para alguma coisa. Para canjica e pamonha, por exemplo. É o filho bem orientado que vai seguir o bom caminho – esse, é o bom fruto que proporcionará a boa colheita.

Colhido, o milho verde vai à ralação.

Ralado, vai à preparação para a canjica ou para a pamonha – duas coisas que satisfazem aos que sabem o que isso significa. Desde o semear, passando por todos os demais caminhos, até o consumir – se possível com um “pozinho” de canela.

Ralação do milho verde

A ralação precede ao cozimento. Não é algo fácil. É preciso saber o que está fazendo, para não correr o risco de desperdiçar tudo que foi feito e ter que voltar à estaca zero.

Tantas espigas raladas produzirão uma quantidade xis de milho ralado que, passado por uma separação (uma “peneiragem”) produzirá um líquido que será levado ao fogo, com o acréscimo de adoçante e/ou coco ralado – sem que esse acréscimo seja algo obrigatório.

Canjica de milho verde

Podemos afirmar sem medo de errar, que tanto a canjica quanto a pamonha são duas especiarias entre as mais desejadas que a culinária sertaneja produz a partir do milho verde. O cuscuz, outra maravilha produzida com o milho, entra num estágio mais adiante – com o milho seco e moído.

Pamonha à moda sertaneja

Comer uma canjica de milho verde um dia após a sua feitura é algo divino, quase sempre à disposição daqueles que vivem na roça e trabalharam o milho a partir da sua colheita. Produzindo de forma positiva em todas as suas etapas.

Quem, como eu, viveu essa preparação da terra para o plantio do milho até o sentar à mesa para o usufruto do que foi produzido, com certeza não terá lido aqui nada que surpreenda. Mas, servirá para, entre outras coisas, matar a saudade.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 30 de outubro de 2022

ZÉ OU ZÉ ALFREDO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

ZÉ OU ZÉ ALFREDO

José de Oliveira Ramos

 

Eu “praça” em 1961

 

Amigos, hoje vou honrar o nome da coluna: Enxugandogelo. Tenho certeza que em nada vou acrescentar de proveitoso neste primeiro domingo de maio do ano de 2022.

Pois, ontem, sábado e 30 de abril, recebi a graça divina, e cheguei aos 79 anos. Como se essa graça divina por si só não fosse suficiente, Deus, na sua imensa bondade, me deu um valioso bônus: a lucidez.

Nasci no dia 30 de abril de 1943, em Queimadas, então e ainda povoado de Pacajus. Vim ao mundo através de parto normal, feito e ajudado pela parteira Raimunda Buretama, por acaso, minha Avó materna.

Comecei a andar cedo e logo após o primeiro aniversário, já subia no parapeito onde ficava o pote com água. Eu mesmo me servia, quando o cururu que meu Avô criava permitia. Foi naquele parapeito onde também tomei meu primeiro catiripapo: subi no parapeito, enfiei a caneca no pote, peguei água e bebi. Despejei o resto que ficou na caneca, dentro do pote.

– Não faça mais isso! Gritou minha Avó, ao perceber o que fiz.

Cresci em liberdade total e sempre corrigido nos momentos oportunos, sem direito a choro, mimimi, ou as atuais frescuras que os pais permitem. Esses são coniventes com os descaminhos dos filhos.

Cedo ganhei uma enxada e um par de botinas para calçar quando fosse “ajudar o Avô a limpar a roça”, evitando algum acidente de percurso ou ferimento nos pés. Meu primeiro “trabalho” oficial em meio a família, foi “colocar os grãos de milho ou feijão” nas covas preparadas para o plantio.

A bifurcação no caminho

Os períodos de seca daqueles anos, que criavam na linha do horizonte apenas miragens, acabaram ensejando nossa mudança em êxodo, para a capital, Fortaleza. Os avós, meeiros das terras de propriedade da família Albano, preferiram permanecer morando em Queimadas. Fora mantido o ponto de referência e de “socorro” numa necessidade extrema.

Era a hora de trocar o poético cântico do vem-vem nos fins de tarde, quando eu sentava na porteira para apreciar o também poético sono do sol que se deitava num céu límpido que nos dava a certeza da impossibilidade de chuvas, pelo barulho dos motores dos carros no tráfego da capital. Era a hora de esquecer a inesquecível sinfonia das cigarras e dos grilos e perder os voos rasantes dos morcegos e andorinhas pegando mariposas.

E, lá fomos nós. Na capital, a vida desestruturada e a certeza da desesperança. Só pai e mãe trabalhavam. Moradia de desabrigado foi erigida na orla marítima, mais precisamente no Pirambu.

A mudança necessária trouxe junto a adolescência e o convívio dos poucos amigos (ainda não haviam sido feitos). A escola, o Curso Primário, o Exame de Admissão e o acesso ao Liceu do Ceará.

A primeira namorada, com frequência na casa dela e a aceitação da família veio aos 16 anos. Havia uma diferença de idade de 6 anos, de mim para ela, então com 22. As irmãs dela diziam que, “ela estava me criando” – daí ela mesma me chamar de “bebê”.

Aos 18 anos, a bifurcação. Tudo poderia ter sido diferente. Fiz concurso e logrei aprovação para a ESA (Escola de Sargentos das Armas), então funcionando em Três Corações/MG.

Em janeiro de 1961, Jânio Quadros assumiu a Presidência da República. Na estruturação da sua equipe de trabalho, incluiu também alguns conceitos e fez algumas mudanças estruturais. No concurso para a ESA, fui aprovado e classificado num grupo de 40 candidatos em Fortaleza. Me submeti e logrei aprovação nos exames médico, físico e psicotécnico. Ficamos aguardando a convocação e o chamado para o embarque para Três Corações. Nunca consegui descobrir minha classificação entre os 40 aprovados. Apenas 30 foram chamados e fiquei entre os 10 para uma convocação futura possível. Nunca aconteceu.

Em 15 de maio de 1962, ingressei no Exército Brasileiro como praça. Fui servir no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) de Fortaleza. Servi por um período acima do normal, em virtude da quantidade pequena dos novos praças. Ao final do período, fui convidado pelo então Comandante do CPOR, Tenente-Coronel Celestino Nunes de Oliveira, para ingressar no CPOR como aluno e me tornar Oficial R-2. Agradeci e fui cuidar da vida, continuando no caminho escolhido na bifurcação.

Trabalho na Western como Teletipista, depois de ser aprovado e rejeitar ingressar no Banco do Brasil. Fui eleito para compor a Diretoria do Sindicato dos trabalhadores na categoria, que ainda tinha a adesão dos funcionários dos Correios e, posteriormente, da recém-criada Embratel.

E o “namoro” continuava e a cada dia se tornava mais firme. Tinha mais liberdade e era quase que “o homem da casa” da namorada.

Eis que, no trabalho na Western, conheci alguém de preponderante influência no meu destino. Resolvi “terminar” o namoro antigo.

Eu hoje veím veím

 

Resolvi me envolver com o futebol. Fiz o Curso de Arbitragem e, ingressando na FCD (Federação Cearense de Desportos), hoje FCF (Federação Cearense de Futebol), me tornei um dos principais árbitros ascendentes, passando a fazer parte de uma elite que tinha ainda Gilberto Ferreira, Adelson Julião, José Felício Lopes, José Leandro de Castro Serpa, Lourálber Monteiro. Me tornei amigo pessoal de Manoel Amaro de Lima, de Clinamulte França, de Sebastião Rufino.

Por motivos que prefiro não mencionar, pedi demissão da Diretoria do Sindicato da categoria, fiz acordo com a Western, recebendo todos os meus direitos trabalhistas. Mudei para o Rio de Janeiro com a cara e a coragem. Sem profissão definida, além de ter conseguido transferência formal para o quadro de Árbitros da Federação Carioca, graças a uma indicação e o aval do General Aldenor Maia, então presidente da FCD.

No Rio, trabalhei dois anos na COSIGUA (Companhia Siderúrgica da Guanabara – naquela época em processo de privatização após a compra feita pela família Landau) e acabei me tornando “metalúrgico” tendo, inclusive, viajado para São Paulo em mais de uma oportunidade para ouvir falas em comício do líder sindical. Logo fui tocado pela mosca azul e me arrependi. Até saí da COSIGUA e fui trabalhar numa Editora Gráfica.

Casei em 1973. Separei em 1983. Me graduei em Comunicação Social – Jornalismo. Estagiei no Jornal do Brasil (curricular) e na Rádio Imprensa (curricular). Mudei para o Maranhão em 1987, onde me dediquei integralmente ao Jornalismo. Sou aposentado pelo INSS.

Sou hipertenso, o que me levou à uma “Revascularização” (Ponte de Safena). Desde então faço uso de medicação contínua.

Constituí uma nova família em São Luís, da qual nasceram três filhos – dois moças e um rapaz, todos adultos e escolarizados com ingressos em universidades.

Oficialmente sou divorciado do primeiro casamento, que me deu duas filhas nascidas no Rio de Janeiro. Hoje residem em Fortaleza – e há cerca de dois meses ficaram órfãs de mãe.

Pois, ontem, 30 de abril de 2022, Deus me conduziu pelo caminho da humildade e me permite, quando posso, servir à outrem, cheguei aos 79 anos.

Olho pelo retrovisor, vejo um caminho longamente percorrido, mas, tão digno que, se fosse necessário faria tudo mais uma vez.

Levemente escuto a sinfonia da cigarra e dos grilos; e, a cada fim de tarde me imagino sentado na porteira para olhar o pôr do sol e escutar o cântico do vem-vem.

ANALISANDO:

1 – Com certeza, se em 1961 em tivesse sido chamado para a ESA (Escola de Sargento das Armas) em Três Corações, após o curso e promovido a Terceiro Sargento, na volta para Fortaleza teria casado com a então namorada. O caminho seguido teria sido outro – e nem posso afirmar que hoje estaria aqui, vivo e lúcido;

2 – O surgimento de outra jovem na minha vida (na verdade, apenas namoricamos, viemos ter algo mais sério anos depois, mas nunca nos assumimos), mudou a rota e me colocou aqui hoje;

3 – Com certeza, Deus Onipotente foi a luz e a mão com o dedo apontado indicando o caminho a seguir. Minha vida sempre pertenceu a Ele.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 23 de outubro de 2022

LIBERDADE, OU, LIBERDADE! (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

LIBERDADE, OU, LIBERDADE!

José de Oliveira Ramos

 

Dudu “empinando” a pipa para a liberdade

 

Luiz Eduardo. Mas podem chamar de Dudu. Ele até gostava. Se sentia bem. Íntimo, amigo!

Dudu era filho único de Messias e Dalva. Era único por entenderem que era aquele mesmo que eles poderiam criar, com carinho, atenção e sem deixar faltar nada na viabilização dos estudos – para que ele, Dudu, só se preocupasse mesmo e muito com os livros.

Messias e Dalva eram casados. Messias era filho de Marina, que ficara viúva há pelo menos duas décadas. Marina, como toda Avó, amava mais Luiz Eduardo que o próprio filho, Messias. Dudu era quase tudo para Marina. Além de único neto.

Marina morava numa casa “ainda em construção”, numa reforma iniciada pelo falecido marido. Quando tivesse o dinheiro suficiente, ela concluiria a reforma. Por enquanto, a casa grande, fora concluída apenas no primeiro pavimento, com a laje servindo também de futuro piso para o segundo pavimento.

Eis que, certo dia o destino disse “presente” e se fez cumprir. Messias e Dalva foram vítimas fatais de um acidente automobilístico. Dudu estava na escola, quando a avó Marina foi buscá-lo, aproveitando para acalmá-lo de alguma forma na hora de transmitir a notícia fatídica.

A princípio foi muito difícil para Dudu. Seria parta qualquer um. Mas, o tempo passou e ele, Dudu, acabou aceitando o destino. Menor de idade, sem renda e sem muita coisa, passou morar com a Avó – essa, viúva e também só.

Um, dois, três anos – período difícil para Dudu.

Ele precisava se apegar a alguma coisa, e acabou fazendo isso.

A avó fazia tudo por ele. Pretendia, única e exclusivamente, que ele fosse feliz. Que encontrasse o melhor destino e tivesse uma vida diferente dos demais.

Estudioso. Concentrado no que fazia e pretendia, Dudu dava o máximo de atenção aos estudos, mas não se descuidava do lazer, da brincadeira e da diversão.

Eis que Dudu se encantou com a brincadeira da pipa. Pipa, arraia, papagaio – fosse o que fosse. Era uma nova conquista de Dudu.

Mas, naquela novidade havia um particularidade. Dudu se acostumou a “soltar a pipa” num lugar cativo – a laje da casa inconclusa da avó. Era ali que, claro, Dudu se sentia do “dono do pedaço”.

Mandava a pipa para o ar, sozinho. Sem eira nem beira.

Pipa é algo para voar em liberdade

 

Dudu não conhecera algo que não fosse a liberdade. Sempre foi assim. Na convivência com os pais e, agora, na convivência com a Avó. Liberdade era o tema. Era o mote. Liberdade era tudo.

Por que Dudu escolhera para mandar a pipa para o ar, desde a laje da casa inconclusa da Avó?

A liberdade era o foco.

Dudu não queria a companhia de outros meninos. Os outros, com certeza, viveriam em torno do “corte” das pipas. Tudo em função do cerol, um elemento que descaracterizava o “soltar a pipa”.

Apreciador da liberdade, o que Dudu gostava mesmo era de “botar a pipa” no ar e, quando tivesse certeza da boa altura, romper a linha e deixar que a pipa seguisse seu caminho da liberdade.

A pipa. A liberdade. A realização de Dudu. Nada de cerol, nada de corte, nada de voltar a ser “pega” por outros meninos.

A liberdade era o mote. Era o êxtase.

A liberdade da pipa e da vida.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 16 de outubro de 2022

DEUS PÔS AS MÃOS NA TRANSPOSIÇÃO DO VELHO CHICO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Transposição do Velho Chico mudou a paisagem

Jovem turista hospedado no hotel cinco estrelas, escolhe uma mesa vazia próxima da piscina, e senta. Chama o Garçom, e diz:

– Me veja uma água Perrier!

Atencioso, o Garçom se curva para o jovem, e responde:

– Um momento apenas, senhor!

Diferente em tudo, de como e quando minha avó Raimunda ordenava:

– Meu fio, bote os cambitos no jumento e vá buscar um “camim” d´água, prumode eu lavá essas coisas que tão no girau!

E lá ia eu sem direito a resmungar, pois com certeza um pedaço de rapadura eu ganharia na volta e, na “boquinha da noite”, deitado com a cabeça na perna dela, eu ainda ganhava de bônus uns “cafunés”. Daqueles que a gente escuta o dedo estalar.

Distante daquela cena doméstica, tudo era desolador. Milho e feijão semeados que não nasceram. Manivas de mandioca ressecadas e nem mesmo a maliça (erva daninha espinhosa e sensível) crescera.

Na capital, os políticos diziam que faziam tudo para melhorar aquela situação. Como? Rezariam para São José ou enviariam carta para São Pedro, pedindo chuva?

Só chuva resolveria a situação. Melhor dizendo: só água melhoraria aquela situação que a seca transformara os roçados em cenas tristes e cheias de carcaças de animais mortos de sede.

A seca dizimou muitas gerações nordestinas

Toda noite, o rádio anunciava na Voz do Brasil, que era calamitosa a situação do sertão da Paraíba, Pernambuco e Piauí. Os municípios cearenses de Icó e Barro perdera parte da sua população. A fuga para escapar da seca era diária e constante.

Cena comum, era olhar as estradas repletas de pessoas carregando pertences em fuga. Dormindo ao relento, pedindo socorro nas igrejas e até acampando sob as árvores que encontravam pelas estradas em busca de nada.

Na realidade, procuravam a esperança. E quem espera, um dia alcança. Mas, ninguém conseguia ficar parado. Era o flagelo total.

Crianças caminhavam léguas transportando água

Havia a desconfiança de que alguém ganhava com aquilo. Chamavam de “a indústria da seca”. Começaram a aparecer os caminhões-pipas. A indústria e a comercialização de cisternas e o transporte d´água em maior quantidade. Era a confirmação de que alguém estava ganhando com a seca.

Era chegada a hora de acreditar nos videntes. Um dia alguém dissera que, não demoraria muito, o sertão viraria mar.

Só um Messias para tanger o bezerro de ouro, acalmar o povo faminto e levar esperança de que, “a mão de Deus seria colocada para aplacar aquela penosa e secular situação.

Eis, finalmente, que Deus usou suas mãos e conduziu o Messias.

A água da transposição está garantindo a boa agricultura

O milagre seria chamado de “transposição”. A “transposição” do Rio São Francisco, outrora imaginada por Dom Pedro, relembrada pelo então ministro Andreazza e, sejamos honestos, iniciada durante os governos petistas. Com inúmeras falhas que não puderam ser corrigidas por conta do superfaturamento, a obra foi aos poucos sendo abandonada. O povo perdera sua importância – e suas vidas também.

Eis que, no dia 1 de janeiro de 2019, Jair MESSIAS Bolsonaro assume a Presidência da República e começa montar sua equipe técnica de trabalho. Tarcísio Freitas, o nome do anjo que, demonstrando competência e seguindo sempre a orientação divina, inicia a obra da transposição salvadora.

Horas, dias, meses e os primeiros trechos começaram a ser inaugurados. A água salvadora estava chegando e se misturavam com as lágrimas de alegria, que por anos foram de lamentos e tristeza pelas vidas perdidas.

Os campos e serras, antes vermelhos pelo barro ou cinzento pela seca, como uma pintura de Vincent van Gogh, em milagre, ficaram verdes. Verdes e produtivos como nunca haviam sido.

Acabaram as fugas. As famílias se fixaram nas suas glebas e recomeçaram na construção das suas vidas e se vangloriando da produção de alimentos para si e para o mundo.

Graças à transposição.

Petrolina desenvolve cultura da uva e do vinho gerando empregos

O solo, antes ressequido, agora é verdejante. O interior nordestino que já recebe a água da transposição, já não é mais o “polo da seca”. Ali, agora, há trabalho. Há vida. Há produção e há uma dose enorme de felicidade.

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 09 de outubro de 2022

EU CREIO, PAI! (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

EU CREIO, PAI!

José de Oliveira Ramos

 

Quem suportaria essa “coroa” além de ti?

Jesus, aprendi que nenhum de nós vai ao Pai, que não seja através de ti. E eu creio nisso. Creio, firmemente!

Creio, também, que só estou aqui porque Tu queres. Sei que permitistes que eu cumpra a minha missão – para, só então, voltar para o lugar de onde vim. O barro.

Mas, nesses 79 anos completados há poucos dias, aprendi muito. Aprendi com as pessoas certas, creio. Vivi vendo e procurando (além de valorizar) compreender o sacrifício que fizestes e o sangue que derramastes por mim, por nós. Por todos nós.

E, ao que parece, em troca temos dado tão pouco – provavelmente, menos do que o pouco que Tu pedes, em troca de tudo que fizestes.

Derramastes o teu sangue. Entregastes o teu corpo em sacrifício por nós – e até esquecestes de Ti próprio.

Vês!….

Viemos do pó e ao pó voltaremos, depois da nossa missão. Mas, nesse intervalo entre a chegada e a volta, nos permites o usufruto do que só Tu és capaz de criar – e de colocar à nossa disposição.

Tudo parece pintura e até as que realmente o são, como Capela Sistina e tantas outras que destes mãos, olhos e sensibilidade para Michelangelo, Vincent van Gogh, Monet, Manet, Toulouse-Lautrec, Leonardo da Vinci, Gauguin e tantos outros nos deliciarem com cores mágicas. Cores divinas. Cores tuas.

Jesus, quem na Terra conseguiria pintar o arco-íris?

E quem faria isso usando apenas a “tela” que usas?

E as tintas – alguém conseguiria mais belas que as tuas?

Senhor, e o vento, que fizestes forte para tanger os maus; fraco para acariciar os bons, e raivoso para castigar aqueles que teimam em desobedecer – e que só lembram de Ti nas necessidades?!

E o mar?

Quem mais poderia criar o mar, senão Tu?

Quem mais é capaz de manter a vida de todos e de tudo, se não Tu?

E a chuva, o sol, a noite, o dia e o cântico mavioso dos pássaros – alguém seria capaz de criar tudo isso e manter, além de Ti?

Por tudo isso Jesus, caminho único que nos leva à Deus, eu vivo.

Eu creio!

Conscientemente, o somatório de tudo, ainda será muito pouco ou quase nada para explicar o mistério da Fé.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 02 de outubro de 2022

OS MOINHOS, O VENTO E O TEMPO QUE PASSOU (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS MOINHOS, O VENTO E O TEMPO QUE PASSOU

José de Oliveira Ramos

 

 

O Moinho dos Ventos de Don Quixote

Bom dia,

Vou lhes contar uma estória que poderia ser uma história. A história de como procurar o vento, encontrando os moinhos. Encontra-lo, usá-lo e transforma-lo num viés da vida.

Sendo mais atual: baixar e usar o vento como um “aplicativo”.

Não sou Miguel de Cervantes Saavedra, tampouco sou filho de Rodrigo Cervantes e de Leonor Baptizóle, e, muito menos, nasci em Alcalá de Henares.

Na verdade, sou filho de Alfredo e Jordina, e nasci em Queimadas, ainda hoje pertencente ao município cearense de Pacajus. Sou negro, filho de uma quinta geração de africanos e uma mistura indígena.

Cedo ainda, com espírito de viajante e “percurador de alguma coisa”, fiz amizade com um primo, meu escudeiro que nunca foi Sancho Pança. Cedo, por comer muito, mereceu a alcunha de Barrigudo. Luciano Barrigudo.

Juntos, sem montaria, mas sempre caminhando na direção favorável ao vento, eu e Barrigudo, com bornal à tiracolo e baladeira em punho, saíamos caçando o vento. Difícil encontra-lo, haja vista que ele (o vento) estava sempre à nossa frente. Provavelmente movimentando algum moinho.

Não procurávamos moinhos – na verdade, minha Avó tinha um em casa, afixado na ponta da mesa grande que servia para tudo – mas, passarinhos e às vezes, considerávamos sorte se encontrássemos uma casa de marimbondos com mel.

Nisso, o vento que soprava favorável, era nosso parceiro e nos levava na direção certa do mel. Mel de marimbondos. Às vezes, até mesmo mel de abelha jandaíra ou araçá.

Para que desejar ser Don Quixote, se sabíamos aonde estava o moinho?

E, para que encontrar o moinho, se já tínhamos o vento a nosso favor, nos levando ao mel dos marimbondos e das abelhas?

Uma coisa era certa: afixado na ponta da mesa, lá estava o moinho. Claro que não era o moinho que Don Quixote e Sancho Pança tanto cavalgaram para encontrar – mas era o moinho da Vovó afixado na ponta da mesa e com meia saca de milho para moer e fazer xerém para os pintos.

E no moinho da Vovó, diferentemente do moinho de Don Quixote e Sancho Pança, eu não tinha nunca a ajuda do escudeiro Luciano Barrigudo. Tinha que moer o milho todo. Sozinho. Embora os pintos fossem tantos.

O Moinho de moer milho da Vovó

Enquanto Cervantes se casaria com Catalina de Salazar em 1584, eu, moendo milho para Raimunda Buretama, precisei mudar para Fortaleza, onde namorei uma atriz de teatro, de quem me dou o direito de não citar o nome. Casar, casei mesmo foi com Marlene, em 1973, ou 389 anos depois. Cervantes voltou para Castela, mas eu não voltei para Queimadas.

Em outras oportunidades já falei quase tudo sobre minha Avó materna. Raimunda Ferreira Gurgel, conhecida onde morava por toda vida, como “Raimunda Buretama”, por ser casa com meu Avô, esse nascido no município de Uruburetama. O povo amigo preferiu “Buretama”, e assim ficou.

Diferente de Don Quixote, João, meu avô, nunca cavalgou procurando moinhos. Quando queria o vento, sentava no portal da porteira e ali recebia “a chegada do vento percebida pela frescura”.

Desnecessário procurar moinhos, pois ele tinha o dele. Pesado. Antigo. Era nele que moía o milho que precisávamos – o dos pintos, quem moía era eu, no moinho afixado na ponta da mesa grande – fazer além do xerém.

Moinho antigo de pedra a relíquia do Vovô

Contava meu Avô, que aquele moinho antigo, grande e pesado fora presente que ele ganhou do tetravô, quando ainda moravam em Uruburetama, mais precisamente no quilombo onde fora criado. Tinha, para ele, valor inestimável e por diversas vezes deixou de vender ou até trocar por uma vaca leiteira.

Ele (meu Avô) sempre dizia para nós, os netos, para que nunca esquecêssemos: “esse moinho nunca vai precisar do vento, mas da força humana.”

Lembro que era naquele moinho, que meu avô também triturava breu para garantir a durabilidade e a rodagem da roldana do carro-de-boi para moer a mandioca nas farinhadas. Lembro também, que, quando meu Avô faleceu, minha Avó teve a ideia de vestir o moinho com panos de sacos e enterrá-lo junto com meu Avô.

Minha Avó tinha essas atitudes incomuns. Minha mãe dizia que minha Avó carregava aquelas atitudes consigo, afirmando que tudo ela aprendera com os antepassados indígenas. Fez isso mesmo, quando um bode velho “Pai do Chiqueiro” morreu. Como não fora morto pela mão humana, ela entendia que não érea aconselhável comer o bode – sequer usar o couro, pois enterrava com tudo. Quando o bode velho morreu, junto, ela enterrou um chocalho grande, amarelo. Só aquele bode carregava aquele chocalho. Era como se fosse uma coroa de rei.

O vento sem ser do moinho mostrando que existe

Eis, finalmente, que eu vi o vento. Vi. Juro que vi e ele demonstrava estar zangado – por quais motivos um certo Don Quixote poderia imaginar que ele, o vento, dependia de algum moinho?

Ele, o vento, estava ali. Poeticamente visível e até podendo ser pego.

Quando estivermos em meio a uma ventania, caminhando contra o vento à procura de algum moinho, se colocarmos as mãos no nosso rosto, poderemos “sentir” o vento. Poderemos até pegá-lo.

O vento existe, sim. Nasceu muito antes dos moinhos encontrados por Don Quixote. O vento é. É, e pronto. Há até quem algum dia pretendesse “ensacar o vento” – e o vento é “ensacável”, sim!

Ora, o que fica minutos, horas ou dias guardado dentro de um “balão” daqueles que servem para decorar festas?

Não é o vento? Então!

O vento é bom. É o vento que mantém a lavareda e queima o carvão da churrasqueira. É o vento que leva os balões multicoloridos em passeios da Capadócia – não fosse o favor do vento, não adiantaria a queima do gás que impulsiona o balão. É o vento que o mantém no alto.

É o vento que “tange” a nossa vida, que leva para distante as aleivosias ou as vicissitudes de cada um de nós.

O moinho e seu “catavento” não seriam o que são, se não fosse o vento. Vento é vida. Vento impulsiona as correntes marinhas e cria as ondas. Vento acende e apaga fogo.

E, finalmente, é o vento quem carrega desde muito longe o som que emoldura nossas vidas.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 25 de setembro de 2022

A ENGENHARIA DA VIDA E DA SOBREVIVÊNCIA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A ENGENHARIA DA VIDA E DA SOBREVIVÊNCIA

José de Oliveira Ramos

 

 

O arquiteto João de Barro na construção da sua moradia

Quando começamos os estudos, aprendemos, alguns anos depois que, as espécies vivas no planeta Terra “evoluem” – de acordo com a teoria de Charles Darwin, estudioso que, contestado ou não, conseguiu deixar como válidas suas teorias.

Depois, aprendemos também, que, as espécies se renovam tanto quanto se multiplicam – embora a espécie chamada humana não esteja atentando bem para isso nos dias atuais, entendo que alguém do sexo masculino “pode e tem direito” de pretender formar uma família com alguém do mesmo sexo. Pode até formar essa família, mas vai chegar um tempo que “multiplicar”, só se for com filhos infláveis comprados nas lojas de brinquedos.

Quer dizer, a sociedade “permite” e aceita, mas a Natureza diz “não”. Mas esse é outro assunto, e não está em pauta.

Voltemos à outras espécies.

Conseguindo se multiplicar de várias formas, convivendo entre si e se alimentando de milhares de formas diferentes, as formigas, por exemplo, têm um trabalho diferente. São várias as espécies. Afirmam os estudiosos que, de uma forma ou de outra, todas são úteis entre si, para a manutenção da biodiversidade.

As formigas devem ter uma relação muito próxima na Natureza. Sim, por que, como pode um ser vivo que não usa chips, não come pizza, não anda de avião, não paga impostos, não vê futebol nem torce pelo Flamengo ou Corínthians, ser avisado de quando vai chover, e, para se prevenir, carregar para si e para toda a sua “comunidade” a ração que vai consumir durante as intempéries?

Diz o ditado popular que, “formiga que quer se perder, cria asas”. Mas existem aquelas que voam naturalmente entre uma chuva e outra. Existem, também, aquelas que adoram açúcar, e ainda, aquelas que, quando ferroam alguém, a ferroada transmite algo que dói para caramba.

Já fizeram até filmes (A guerra das formigas) com esses seres inteligentes além da conta, que nunca incomodam os humanos; além de não perderem tempo votando em qualquer 3 de outubro.

É a Lei da vida.

Mas, o nosso mundo não é habitado apenas por nós e pelas formigas. Existem outros seres. Esses, inclusive, mais livres que nós. Têm asas e lhes foi dado o direito de voar. Voar livremente. Voar para onde desejarem.

São mais felizes que alguns de nós, pois constroem suas casas ou vilas sem a necessidade de comprar barro, tijolos, cimento, ferro, e sem precisar a liberação dos CREAs. São eles os próprios arquitetos das suas moradias e sequer precisam do “habite-se”.

Não é maravilhoso, ser um João-de-Barro?

É deles o mister da certeza de que podem ou não construir suas moradias sem serem importunados pela chuva – e acabam trabalhando em casal para agilizar mais ainda a construção da moradia, pois, provavelmente, as crias estão a caminho.

Nossas estórias que viraram histórias de tanto serem contadas, nos informaram que, ao lado de um “João”, quase sempre existe uma “Maria”. João e Maria, contam as estórias que na infância nos acalentavam e faziam dormir – e precisávamos ser transportados nos braços de adultos para as nossas camas ou redes.

Assim, existe também a “Maria-de-Barro”?

Enfim, entre todos os “Joões” que sobrevivem comendo formigas, lagartas, em que consiste mesmo a manutenção da biodiversidade?

Num futuro nem tão distante, como um João-de-Barro poderá construir suas casas e nos ajudar no combate das pragas, se a cada dia cresce o desmatamento que está obrigando as aves fazerem seus ninhos de reprodução nos postes de iluminação e nas janelas dos apartamentos dos prédios?

Quem, enfim, comerá as formigas e as lagartas?

Quem será aliado da sabedoria matuta, voando, para avisar “se vai chover ou não”?


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 17 de setembro de 2022

AVÓ – MÃE DUAS VEZES E AMOR EM DOBRO (CRÎONICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AVÓ – MÃE DUAS VEZES E AMOR EM DOBRO

José de Oliveira Ramos

 

 

Avó dando cafunés no neto

Tardezinha, com o sol já frio, ela sentava no chão da latada, enquanto puxava o fumo no cachimbo de barro.

Me chamava para deitar a cabeça na perna dela. Eu, apenas aproveitava aquela vontade enorme de fazer aquilo, e fingindo ser aquela cena um castigo. Mentira minha, pois eu adorava fazer aquilo.

O cafuné. Mais cafunés. Muitos cafunés. Daqueles que a gente escutava o estalar do dedo.

Ela, fumando o cachimbo e me dando cafunés, olhava firme para a porteira da casa que ficava distante dali por uns 40 ou 50 metros.

Ninguém chegava, mas ela continuava olhando.

E tome cafunés!

Neto xingando a Avó ao ver a injeção

A febre estava alta. Garganta inflamada.

A gripe tendia ficar mais forte. Chá disso e daquilo. Chá de mastruço, colheradas de mel de abelha. Compressas de panos na testa e no peito. Unguento de Vick Vaporub para garantir uma boa respiração e o sono. Nada resolvia. Só restava uma providência.

Manhã cedo, o cachorro latia na porteira. Chegara alguém. Era a Comadre Das Dores, aquela miserável do cão dos infernos!

Um prato fundo. Uma vasilha com álcool, e o aparelho para aplicar injeção começava a ferver.

Uma ampola tivera parte quebrada e fora misturada com outra. Algodão embebido no álcool, e a rotina:

– “Vem meu fio, vem logo prumode ficar bonzim dessa gripe”!

O choro e o berreiro antes da agulha furar, com certeza acordava e assustava as pessoas que moravam por perto.

Era a “milagrosa” Benzetacil!

– O praguejar do neto era garantido: “Sai daqui mizéra. Tu num gosta de mim.”!

No dia seguinte, era difícil entender que, com a febre tendo ido embora e a gripe acabando, aquilo nada mais significava que uma dura e constrangedora prova de amor.

As avós amam em dobro e também sofrem por nós. Até nas injeções.

Só hoje eu entendo que a segunda cena nada tinha de diferente da primeira. Apenas o palco da vida era diferente. Mas tudo era amor.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 11 de setembro de 2022

NOSSAS ESTAÇÕES (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

NOSSAS ESTAÇÕES

José de Oliveira Ramos

Primavera no deserto de Atacama

 

A escola de antigamente ensinava. A de hoje, apenas faz de conta. Quer números, quer ranking, quer justificativas para as dotações orçamentárias – e estaciona na mentira. Muitos dos que ensinam (ou dizem fazer isso) não sabem sequer para si próprios.

Pois, ainda na escola antiga, aprendi que são quatro as “estações” climáticas no ano, assim:

Estação do ano é uma das quatro subdivisões do ano baseadas em padrões climáticos. São elas: Primavera, Verão, Outono e Inverno.

Inicialmente o ano era dividido em duas partes: 1 – O período quente (em latim: “ver”): era dividido em três fases: o Prima Vera (literalmente “primeiro verão”), de temperatura e humidade moderadas, o Tempus Veranus (literalmente “tempo da frutificação”), de temperatura e umidade elevadas, e o Æstivum (em português traduzido como “estio”), de temperatura elevada e baixa umidade; 2 – O período frio (em latim: “hiems”) era dividido em apenas duas fases: o Tempus Autumnus (literalmente “tempo do ocaso”), em que as temperaturas entram em declínio gradual, e o Tempus Hibernus, a época mais fria do ano, marcada pela neve e ausência de fertilidade.

Posteriormente, para ajustar as estações à posição exata dos equinócios e solstícios, correlacionados com a influência da translação associada à mudança no eixo de inclinação da Terra, convencionou-se, no Ocidente, dividir o ano em somente quatro estações. Vale a pena lembrar que certas culturas ainda dividem o ano em cinco estações, como a China. Países como a Índia dividem o ano em apenas três estações: uma estação quente, uma estação fria e uma estação chuvosa.

Já no continente africano, países como Angola só têm duas estações, a das chuvas, quente e úmida, e o cacimbo, seca e ligeiramente mais fresca, principalmente à noite.

Foi na escola, também, que aprendi a iniciação filosófica, de que “o homem é um produto do meio em que vive”. Assim sendo, provavelmente, somos partes das estações climáticas do ano.

Que estação seríamos, quando ficamos irritados?

E quando ficamos tristes?

Ou, ainda, quando ficamos alegres?

Por que não “renovamos” a plasticidade externa do corpo, ou o que há de interno, quando passamos pelo “outono” – o nosso outono?

As árvores o fazem pela fotossíntese – além das condições naturais que a Terra lhes oferece. Novas folhas, novos galhos e um crescimento contínuo, sempre em preparativos para novos frutos.

Nossas células são diferentes, sei. Em que pese vivermos na mesma Terra que vivem as árvores, nossa fisiologia é diferente.

Mas, infelizmente, a Terra é habitada por pessoas que são continuadamente ervas daninhas. Não crescem, não mudam, não passam por nenhum outono.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo domingo, 04 de setembro de 2022

O SOM DO VENTO E A CLARIDADE NOTURNA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O SOM DO VENTO E A CLARIDADE NOTURNA

José de Oliveira Ramos

 

Lugar preferido para escutar o vento e olhar a claridade da noite

 

Gosto de ouvir o vento – ele tem o inconfundível som da quietude, e nos conforta, quando nos encontra em Paz.

Gosto tanto de ouvir o vento – ainda que ele faça o barulho catastrófico da destruição, mostrando o seu poder de fogo (ops! – de força) – que me ponho a respeita-lo, para melhor perceber suas graves notas musicais.

O fá, o ré, o mi e até o sol, na construção da partitura do vento – que nos embevece e chega e sai, tão suavemente, que nos transporta em voos sem asas de um êxtase para outro.

O som do vento é belo. Tem cores tão fortes quanto o arco-íris que a Natureza Divina nos mostra no seu mural celeste.

Ouço o vento, tanto quanto vejo o mar composto por águas invisíveis, que evaporam até com o mais tênue açoite – do vento!

Dia desses fui ao campo, e chegando lá, sentei no chão. Sentei, fechei os olhos e comecei a ouvir a Orquestra Sinfônica da Ventania Celestial, nota por nota, acorde por acorde, passagem por passagem que transformaram o momento numa verdadeira ópera – Divina, no Teatro Espetacular da Vida.

E veja, escutei a bela ópera, gra-tu-i-ta-men-te!

Pagando apenas com as moedas do meu tempo e da minha Paz.

Eu escuto o vento, em todos os seus mais de 50 tons!

Tem posição “top” – para usar o americanismo da linguagem brasileira – no meu “ranking” de preferências, a noite. A noite é o único momento das 24 horas que me permite ver a nitidez das estrelas. É na noite que vejo a beleza que não consegui ver durante o dia – porque a beleza noturna é invisível durante a claridade do dia.

É só durante a noite, que a claridade do dia vai embora, se preparando para voltar no amanhecer seguinte.

Sem descanso. Continuadamente!

Certa noite contemplei o céu. O céu da noite – e achei que, de noite, podia olhar melhor para Deus – tem um “que” de nobreza poética; permite o aconchego ao vento ou debaixo de lençóis.

A noite é abusivamente permissível, ainda que redundante.

Boa noite!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo quinta, 25 de agosto de 2022

MORANDO EM PASÁRGADA – OU, COMO GANHAR O PÃO COM O SUOR DO ROSTO (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIAO)

MORANDO EM PASÁRGADA – OU, COMO GANHAR O PÃO COM O SUOR DO ROSTO

José de Oliveira Ramos

 

 

“Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira

Ferro de engomar – o “aplicativo” de serviço de Dona Socorro

 

Socorro. Socorro era o nome dela. Socorro não sei-do-que. Isso, neste momento não é tão importante.

Lembro bem, que era Socorro.

Lembro também, que Socorro ficara viúva fazia algum tempo. Do casamento, tivera quatro filhos. Dois rapazes e duas moças – que, agora, cabia à ela fazer alguma coisa para garantir o sustento de todos. Era, como dizem os modernos, pai e mãe ao mesmo tempo.

Negra, cabelo liso e escorrido, com as ancas curvadas que a natureza lhe premiara – sem a modelagem das atuais academias de ginástica – garantia o desenho humano “de uma mulher e tanto”.
Aliás, “tanto quanto”!

Cera de carnaúba, usada para fazer o ferro “deslizar”

 

Dona Socorro não era amiga do rei de Pasárgada. Com certeza o Rei sequer a conhecia ou receberia alguma vez – a não ser que, por motivo especial Ela fosse ao Castelo para entregar alguma roupa especial de Sua Majestade.

Mas, se nunca foi à Pasárgada, hoje provavelmente Dona Socorro está no melhor dos céus. O céu que ela, em vida, fez por merecer.

Senão, vejamos. Viúva, mãe de quatro filhos menores para criar. Sem emprego formal (desses que os patrões assinam as carteiras profissionais e entram para amontoar os números do IBGE).

Como alimentar os quatro filhos?

Pela manhã, antes mesmo que o galo do vizinho cantasse, Dona Socorro já estava de pé. Tinha que levantar para preparar o café com nada para as crianças e fazer refresco de limão e embrulhar um pedaço de pão para cada um levar para “merendar” na escola.

Depois disso, não parava mais. Tinha que puxar água na cacimba para encher um tanque e lavar roupa. A roupa de casa (dela e dos filhos) e a roupa “da patroa”, de onde tirava a garantia do sustento.

Especializada em lavar (e passar, ou, como fala o cearense, “engomar”) roupa branca. O marido da patroa era médico e raramente usava outro tom de roupa que não fosse o branco. Lavar bem lavada – ainda não existia a água sanitária, nem o Omo lavava tão branco – e colocar no anil.

Era essa a rotina de Dona Socorro, de segunda à sexta-feira. Aos sábados, as tarefas domésticas ficavam a cargo das meninas, enquanto os meninos tinham a obrigação de encerar o assoalho de tacos de madeira.

Se os sábados eram diferentes para os filhos, desde a hora de acordar até o hábito de ver na televisão preto-e-branco instalada no chafariz público, onde a grade repetia por vezes as séries “O gordo e o magro”, para Dona Socorro tudo parecia rotina.

Cedo do dia claro, o ferro de engomar era colocado na janela, onde o vento soprava mais forte e não havia tanta necessidade de usar o abano de palha para “atiçar” o fogo do ferro. Mão limpas. Muito limpas, para não “manchar” a roupa branca da patroa.

Terminada a tarefa de engomar aquela pilha de peças brancas, a preparação para a entrega. O banho ao lado do tanque. A troca da própria roupa e, às vezes, até duas trouxas de roupas brancas eram preparadas para a entrega.

O ônibus. Muitas vezes lotado na ida, e mais lotado na volta.

A volta, entretanto, era triunfal.

Em vez de ir para Pasárgada, onde não existia Rei e ninguém era amigo de ninguém, o dinheiro do pagamento daquele trabalho da semana inteira, era “depositado com toda segurança” dentro do sutiã.

Dona Socorro “pronta” para entregar a roupa branca da patroa

 

Na chegada em casa, tudo limpo. Chão encerado com Parquetina, o que garantia aos meninos o direito de, depois de fazer todos os deveres de casa, e da escola, jogar bola domingo pela manhã no campinho de várzea.

E assim era a vida. Moradia em Pasárgada, ainda que ninguém fosse amigo do Rei. Na noite de domingo, a preparação para recomeçar tudo na madrugada da segunda-feira.

Assim, Dona Socorro “formou” os quatro filhos, vivendo em Pasárgada, mas, sem ser amiga do Rei.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sexta, 19 de agosto de 2022

*VENEZUELAMOS* FAZ ALGUM TEMPO! (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

“VENEZUELAMOS” FAZ ALGUM TEMPO!

José de Oliveira Ramos

 

Rede de dormir armada no ponto mais “top” de Fortaleza

Muitos já sabem mas, outros tantos, não. Sou cearense, nascido em Pacajus. Quando nasci, no povoado Queimadas, o destino era em 98% Fortaleza, onde resolvíamos as necessidades de todos os níveis.

Pegávamos um ônibus da empresa Expresso de Luxo, às 07:00h e chegávamos em Fortaleza, na “Cidade da Criança”, por volta das 11:00h. Eram quatro horas de viagem – e quem conhece o trajeto sabe a distância.

Hoje, esse percurso é feito em 20 minutos e Pacajus integra a RMF.

Adolescente, estudei por 7 anos (4 anos no Ginasial, e 3 anos no Científico) no Liceu do Ceará, um dos três colégios mais antigos do Brasil.

Naqueles tempos, estudantes não eram tão baitolas quanto os de hoje. Nossas discussões e horizontes eram pelo país. Jamais pela dubiedade do gênero humano. Nossos pais condenavam qualquer tendência à viadagem – os de hoje são coniventes, e alguns até do mesmo naipe.

Bagunçávamos a partir do último degrau de descida da escadaria frontal do colégio, passando pela Rua Liberato Barroso até a Praça do Ferreira, costumeiramente nosso ponto de encontro. Já naquele tempo, muitos nos rotulavam de bagunceiros.

Dito isso, aproveito para dizer que conheço a Praça do Ferreira, tanto quanto conheço minhas duas mãos envelhecidas e enrugadas pela vida.

Na última semana estive em Fortaleza visitando duas filhas do primeiro relacionamento (ambas são “cariocas”, mas residem em Fortaleza). Decepção total. Com a cidade, claro!

O ambiente que, antes, parecia ser uma praça de Paris onde está erguida a secular Torre Eiffel, ou até mesmo a antiga Plaza La Concordia, em Caracas – agora nada mais é que uma Cracolândia com uma ampla cozinha à céu aberto.

Venezuelamos, faz algum tempo.

Os que ali ainda moram e vivem, aceitam tudo passivamente. A geração de “liceístas” não é mais a mesma. Baitolou total!

A foto anexada mostra uma rede armada numa das bancas de revistas e jornais da praça. A “Banca do Bodinho”, costumeiro ponto de encontro e discussões de torcedores dos times de futebol da cidade.

Fiz outras fotos, mas tenho vergonha de mostrar. Fotografei uma mulher “abanando” o carvão em brasa para aquecer uma panela velha de alumínio que estava num fogareiro – ali, nem me atrevi a verificar o que estava sendo preparado. Ainda que provavelmente sem tempero, o cheiro não era bom.

Tudo isso, sabemos, é o somatório dos anos que o PT e aliados usaram para destruir tudo e implantar suas filosofias de vida. Transformaram uma metrópole nordestina num reduto de fumadores de maconha, baitolas, lésbicas que se beijam ao ar livre e, dizem, alguns até fazem sexo tão logo a luz do dia vai embora.

E, sabem de quem é a culpa de tudo isso?

Não vou dizer. Vocês já sabem, e “eles” vivem dizendo a toda hora.

Triste, percebi a conivência e a passividade da população fortalezense, que prefere se esconder nos muitos shoppings da cidade, enquanto a “cupinzada vermelha” destrói o que ainda resta da cidade.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 13 de agosto de 2022

DUDU – O “LÍDER” (CRÔNICA DE JOSÉ OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

DUDU – O “LÍDER”

José de Oliveira Ramos

 

Dudu convocando a “tropa”

 

Criado no verão de 1907 pelo tenente-general do Exército Britânico, Robert Stephenson Smyth Baden-Powell, que teve a ideia de reunir vinte jovens, dividindo-os em quatro grupos de cinco (Maçarico, Corvo, Lobo e Touro), na Ilha de Brownsea, então no Canal da Mancha dando-lhes o nome de “patrulhas”.

Foi esse o primeiro acampamento escoteiro que se tem conhecimento no mundo.

Baden-Powell nasceu a 22 de fevereiro de 1857, em Paddington, Londres, e faleceu a 8 de fevereiro de 1941 em Nyeri, no Quênia…..mas, essa é outra história!

Hoje, o nosso herói é outro.

Nascido no Brasil, mais propriamente no Nordeste, nos tempos que, as arengas das salas de aulas da escolas eram “resolvidas lá fora”. Recebeu o nome de Luís Eduardo na pia batismal, confirmado no Cartório de Registros. Cedo, em casa e na escola, ficou conhecido como Dudu. Mas, os “arengueiros” da escola preferiam mesmo era o “Dudu Rolha de Poço”. Alguns colegas mais próximos, por carinho e amizade, preferiam apenas o “Rolha”.

Estudioso ao extremo, Dudu seguia os conselhos paternos. Dava pouca importância aos insultos, levando-os como brincadeira. Mas, tal qual uma velha, Dudu tinha seus “dias de priquita queimada” e se prontificava, como os da geração, à resolver tudo, depois, lá fora.

Cedo, quando não passava de um menino, Dudu conheceu e ficou encantado com o Escotismo. Fez tudo para entrar para o movimento e, de tanto demonstrar vontade, acabou sendo aceito.

Nos primeiros dias, “novato”, recebia incentivo dos mais lúcidos; mas também recebia provocações dos gaiatos. À esses, do pódio do autoconhecimento, Dudu vaticinou: “um dia qualquer, eu vou ser líder de vocês”!

Pois, Dudu, o “Rolha de Poço”, o gorducho, ou apenas o “Rolha”, se destacava a cada dia. Fazia amizades, ganhava confiança sem permitir intimidades ou gracejos durante as atividades do Escotismo.

A mão de Deus!

Quem acha que as coisas acontecem “quando têm de acontecer”, faz parte do rol das pessoas sem Fé. Quando vimos ao mundo, alguma coisa foi planejada por Deus, o único que pode tudo.

Eis que o dia de Dudu chegara. Depois de sair de casa na direção do encontro semanal com o grupo, o “Chefe” teve um contratempo e precisou desviar a rota e o objetivo principal. Seu carro teve um sério problema mecânico, o que o impediria, naquele dia, de comparecer à reunião com os jovens.

Procurou um telefone e manteve contato com o local das reuniões. Mais ainda, sugeriu ao atendente, que Luís Eduardo, o Dudu, o substituísse naquele dia, no comando dos escoteiros.

Ninguém contestou. E, naquele dia, a emenda foi melhor que o soneto, pois estava nascendo o “Corvo”, cujo comando e liderança foi assumido formalmente por Dudu. É. O “Rolha de Poço”!

Sempre alerta!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo terça, 07 de setembro de 2021

POR QUE OS CACHORROS FICAM GRUDADOS NA HORA DO ACASALAMENTO?

POR QUE OS CACHORROS FICAM GRUDADOS NA HORA DO ACASALAMENTO? 

 

 

A cópula diferenciada entre caninos

 

Por que os cachorros ficam “grudados” na hora do acasalamento? – Durante a cópula canina, é comum vermos os cachorros “grudados”. Essa posição ‘estranha’ consiste na junção dos dois animais, virados em direções opostas, unidos pela região caudal.

Apesar de parecer um pouco desconfortável, essa é apenas uma das fases do acasalamento. No caso dos cães, a penetração ocorre ainda com o órgão sexual flácido. Esse ato só é possível porque eles possuem um osso que permite essa penetrabilidade através apenas da fricção. E é somente após isso que a ereção acontece, conforme relatou a bióloga Karlla Patrícia, no site Diário de Biologia.

Quando a ereção ocorre, um órgão chamado ‘bulbus glandis’, presente nos machos, se enche de sangue, e, consequentemente, aumenta seu volume. Dessa forma, as cadelas possuem uma cérvix plana, que possui uma abertura na qual o ‘bulbo’ irá se encaixar.

Contudo, esse preenchimento sanguíneo do bulbo só ocorre após a penetração. O sêmen dos cães é muito tênue, ralo, acontece por gotejamento e possui baixa contagem de espermatozoides. Sendo assim, a anatomia do órgão sexual da cadela permite melhores chances de fecundação.

E se você já tentou separar os cães enquanto eles estão nessa fase do acasalamento, pode ter notado que é uma tarefa inviável. Isso porque, uma vez que o bulbo aumentou o seu volume dentro do canal genital da cadela, é praticamente impossível que eles sejam “desgrudados”.

Assim, em suma, esse grude acontece como uma forma de minimizar a perda de esperma e aumentar as chances de fecundação. Além disso, como a ejaculação acontece por gotejamento, essa fase pode demorar cerca de 30 minutos e só acaba com a retração do bulbo. Após isso, os cães estão livres para se separar.” (Por Merelyn Cerqueira)


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 14 de junho de 2021

PONTE AÉREA DA BAITOLAGEM

 

PONTE AÉREA DA BAITOLAGEM

José de Oliveira Ramos

Pois, tão logo “dei baixa do serviço no Exército” (CPOR – onde tomei três doses de vacina à base de Ivermectina, Hidroxcloroquina e Zinco – que fazia doer até miolo de pão), trabalhei alguns meses na Casas Silcar, representante da concessionária Chevrolet e da Frigidaire, que ficava na Rua Sena Madureira, ao lado do Mercado Central. Depois passei a trabalhar na Western Company Limited, empresa inglesa prestadora dos serviços de cabogramas. E tudo aquilo ficava como se fosse dentro de uma bacia de alumínio.

A Western usava dois tipos de tarifas: a tarifa comum, para os cabogramas comuns e de textos reduzidos; e o CTN (Correspondência Telegráfica Noturna), essa com tarifa abaixo de 50% do preço da tarifa comum.

Trabalhávamos em três turnos de seis horas cada. O turno da noite começava às 17 e 18 horas e encerrava às 23 e 24 horas. Quando era necessário, um Operador de Teletipo (minha função e de outros) permanecia na empresa, e fazia “O.T.” (Over time), recebendo, além das horas extras, a regalia de ser conduzido à casa por táxi. Essa hora extra consistia em esperar a chegada dos cabogramas CTNs procedentes de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, preparando-os para a entrega nas primeiras horas do dia seguinte.

Via de regra, eram ordens de transferências bancárias, ou pautas para os jornalistas correspondentes dos jornais Estado de São Paulo, Jornal do Brasil com maior frequência (lembro que eram Egídio Serpa e Rogaciano Leite).

Durante a espera da chegada desses CTNs, como ainda não havia jogo transmitido pelas televisões, a gente se “impirilutava” para o Curral das Éguas (ZBM) ou, para a putaria que reinava na Rua Franco Rabelo e, próximo dali, a famosa buate 80.

Era na Franco Rabelo que reinava o “senhor” José Benedito de Lima, pouco conhecido como tal, mas muito conhecido como “Zé Tatá”. Zé Tatá era um desses que hoje são rotulados popularmente de “Queimador de rosca” ou “Generoso do traseiro”; ou, numa linguagem mais atual que em nada atenua o objetivo, “gay”. Para o cearense, “Baitola”!

* * *

Zé Tatá – o baitola macho

Zé Tatá – O gay-macho: bom de porradas contra três ou quatro (e botava pra correr!)

Nascido em Salvador/BA, JOSÉ BENEDITO DE LIMA, em 1929, ainda criança (pouco mais de dois anos de idade) foi morar em Fortaleza, por conta da transferência do pai, então militar do Exército. Poucos anos depois, o pai faleceu vítima de um acidente num treinamento militar.

Filho único, ainda JOSÉ BENEDITO virou estudante no Colégio Maristas, na capital cearense. Não ficou livre da “zoeira” (os bobalhões de hoje denominam de “bullying”) própria do cearense. Assim, quando era repreendido por algum professor(a) no Colégio, aceitava e respondia apenas, “tá” repetidas vezes. Virou então “Zé Tatá”. Dono das casas noturnas (pensão) Ubirajara, Hollywood e Tabariz. Desfilava no carnaval vestido de baiana e imitava Carmem Miranda.

Zé Tata era um negrão de mais de um metro e noventa. Chamava atenção, por onde passava, por ser um homem, negro, forte, alto e belissimamente vestido de mulher. Ninguém tinha coragem de dizer qualquer coisa que ofendesse a integridade moral de Zé Tata.

Mas vamos ao início da história deste personagem baiano que, nos anos 50 e mais, era a rainha do Carnaval de Rua de Fortaleza: Zé Tata. José Benedito de Lima nasceu em Salvador, em 1929. Aos 2 anos idade perdeu seu pai vítima de acidente em um treinamento militar. Filho único de mãe viúva, foi criado em Fortaleza num conjunto habitacional do exército do Brasil. Sua mãe ganhava uma modesta pensão e tinha que trabalhar como empregada doméstica pra criar seu filho amado. Zé, como era conhecido pelos colegas, estudou no colégio Marista, onde também ganhou o apelido de Tata. Dizem que, quando ele ficava nervoso ao ser repreendido pela professora, dizia: – Ta! Ta! Daí virou o Zé Tata.

Quando menino, passou por todas as fases, foi levado, brigão, namorador… Sempre foi um aluno mediano, mas esforçado e logo estava numa escola de Sargentos do Exército, onde estudou enfermagem. Na Escola Militar descobriu que era diferente dos outros meninos: enquanto os outros tinham desejos sexuais por meninas, ele adorava ver os meninos pelados no vestiário. No início, achou estranho, mas rapidamente gostou da ideia. Ele se destacava em todas as atividades que fazia: era ótimo lutador, jogava futebol e queria participar de tudo que envolvia contato físico com os garotos da academia.

Quando estava com 19 anos, foi convidado para se fantasiar de mulher e sair com um grupo de amigos pra desfilar no Carnaval do centro de Fortaleza. Pediu ajuda a sua mãe, que não estranhou, pois aquilo era costume de Carnaval. Ele, então, se montou e se transformou numa mulher de quase dois metros de altura. Salto altíssimo, vestido longo e maquiagem impecável. Decidiu não usar peruca, deixou seu cabelo natural, bem batido, como deve usar um militar. Foi o dia mais feliz na vida de Zé Tata. Lá foi ele realizado, se sentido uma dama. Porém, na vida, nem tudo são flores e, logo que chegou ao centro, uma turma de machões bêbados resolveram brigar com os rapazes – Vamos dar porrada nessas raparigas que não gosto de veado, alguém gritou.

Começou aquela pancadaria. Zé Tata vinha mais atrás e quando chegou perto viu os amigos dele sendo surrados por um bando de bêbados gritando ofensas. O sangue de Zé Tata nunca ficou tão quente, deu um grito e partiu pra briga. Eram mais de vinte homens cercando Zé Tata. O primeiro que chegou perto levou um chute na cara, o salto alto de Tata arrancou sangue do dito cujo que já caiu semimorto. Os outros, vendo aquele negrão enorme ficaram sem saber o que fazer. Zé Tata partiu feroz para cima deles, derrubando um por um com socos, pontapés, cabeçadas, pernadas… Quando a polícia chegou, o quadro era de trinta homens no chão e uma bicha enorme, gritando, chorando e batendo em que chegasse perto. Foi preciso mais de dez policiais para conter a ira de Zé Tata que foi preso e autuado como agressor e perturbador da ordem pública. Ninguém mais foi preso. Só não foi pior porque o Raimundo, um dos amigos que apanharam, defendeu Tata.

* * *

Madame Satã

Anos 60, em Fortaleza; final dos anos 60 e começo dos anos 70, no Rio de Janeiro. Em Fortaleza, a “loira desposada do sol”, proximidades da Rua Franco Rabelo, do Curral das Éguas e do Quartel da Décima Região Militar. No Rio de Janeiro, a Lapa e o Bairro de Fátima. Tempos bons, de época braba.

Domingo pela manhã no Rio, a venda de selos pelos “Filotélicos” que viviam, e gastavam fortunas com as coleções. Algumas crianças se dirigiam para o Passeio Público, esperando o horário da primeira sessão infantil das manhãs dos domingos no Metro Boavista.

Em Fortaleza, a noite da sexta-feira e do sábado. A ZBM fervilhava e era ali que as coisas aconteciam. Fortaleza não era 5% do que é hoje e do que disponibiliza em opções de lazer noturno. No passado, na ZBM, era só para “molhar o biscoito”.

João Francisco dos Santos – Madame Satã

João Francisco dos Santos nasceu em Glória do Goitá/PE, a 25 de fevereiro de 1900, e faleceu no Rio de Janeiro, a 12 de abril de 1976, mais conhecido como Madame Satã, foi um transformista brasileiro, uma figura emblemática e um dos personagens mais representativos da vida noturna e marginal da Lapa carioca na primeira metade do século XX.

Nascido em Glória do Goitá, um município brasileiro localizado no interior do estado de Pernambuco, na Zona da Mata, João Francisco se mudou para a Lapa – que na época passava por um processo de transformação e gentrificação – aos 13 anos, onde viveu como moleque de rua até conseguir um emprego como vendedor ambulante de pratos e panelas de alumínio.

Navalha – a arma de Madame Satã

Madame Satã tinha fama. Para uns, uma má fama. Para outros tantos, a fama de brigão que, provocado “não batia fofo”. Enfrentava qualquer um. Tinha o hábito de vestir a cor branca. Nas ocasiões especiais preferia o paletó e calças de linho – e tamancos de madeira. Num dos bolsos internos do paletó, a inseparável amiga navalha.

Naquela região da Lapa, indo do final do gradeado do Passeio Público e cafés e bares nas imediações do Arcos até a Rua do Senado com Rua do Riachuelo e ladeiras de subida para Santa Teresa, Madame Satã era conhecido e temido. Só quem o dominava era a patrulha da Polícia Especial, antecessora da Polícia Federal no Rio de Janeiro.

Tamancos de madeira – o “escudo” de Madame Satã

Muito bom de briga, Madame Satã também tinha seus desafetos que, em duplas, o enfrentavam. Para esses, Satã (contam alguns que presenciavam os desafios) punha a amiga navalha numa das mãos e um dos tamancos de madeira na outra – trocando-as quando se defendia ou quando atacava. E os ataques eram quase sempre fatais.

Nos dias atuais tudo é diferente. A navalha, nem os barbeiros a usam mais. Os marginais criminosos preferem os fuzis de alto poderio, a grande maioria importados (na verdade, contrabandeados) de países especialistas em guerras. E até já se atrevem a trafegar na área que antigamente era dominada por Madame Satã.

DETALHE: Madame Satã também era baitola e não se escondia no armário. Mas essa era outra guerra, na qual ele sempre era derrotado. E, em vez de navalhas, espadas.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 15 de março de 2021

AFINAL, QUE PAÍS É ESTE? (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AFINAL, QUE PAÍS É ESTE?

Vacinação contra o C-19 – atendimento Drive Thru

Não ainda insistir ou teimar. O Brasil não é um país para ser administrado ou vivido por amadores. Tem que ser mesmo “profissional”.

No próximo 30 de abril, se Deus me permitir, chegarei aos 78. Lúcido, revascularizado (safenado) há quase dez anos, vacinado contra o C-19 no último dia 4 (primeira dose), espero conseguir tomar a segunda dose, essa programada para o próximo deia 25. Coronavac. É a que tem, e não a que eu tenha escolhido.

Me entendo como gente que entende as coisas, desde que tinha 12 anos de idade. Já se passaram 66. Nasci no Ceará, de lá saí para o Rio de Janeiro, conheço um pouco do Paraná e já fui várias vezes a passeio em São Paulo. Estive em Recife, que não conheço; em João Pessoa e Campina Grande, que também não conheço; em Natal, em Belém, em Salvador, em Brasília.

Querem minha sinceridade?

Pois bem. Nunca vi, desde os 12 anos de idade, um país tão esculhambado, avacalhado, escrotizado com esse nosso Brasil. Ô país filho-da-puta, que tem um magote de filho-da-puta, gente!

Aqui tudo que é contrário ou do contra, é valorizado e funciona bem. No Brasil, é bonito dar o rabo e quem acha isso feio é rotulado de homofóbico e está praticando crime. O certo é queimar a rosca. Então queimem seus porras. Dêem até virar carvão!

A pessoa pode escolher abortar (está cometendo um crime contra uma criança); pode escolher ser lésbica ou gay, que estará exercendo o seu direito de vida. Mas, escolher ser “bolsonarista”, não pode. Quem faz essa escolha é fascista, é miliciano e outras merdinhas mais.

Roubar é “top” (desde que roube quantia que dê para dividir com quem deveria puni-lo). Ser honesto e correto, é apenas um apreciador da frase célere de Rui Barbosa.

É o país da esculhambação, ou não é?

Estão tentando implantar o auxílio do VAR na arbitragem do futebol. Observem como se com porta o Árbitro de futebol na Europa, e o tempo que ele leva para tirar uma dúvida e decidir o que fazer – e, depois, compare com o tempo que leva um mesmo Árbitro apitando um jogo de futebol no Brasil, quando precisa recorrer ao mesmo VAR. É uma viadagem sem tamanho. Estica o bracinho para um lado, estica o bracinho para o outro lado e acaba decidindo o que o VAR “determina”, e não o que realmente aconteceu.

É o país da esculhambação, ou não é?

No Brasil estão cobrando mais pressa na vacinação contra o C-19. Tem quem cobre que, alguns países até já terminaram de vacinar, mas esquecem que o Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes, que é um país continental de trocentos locais de difícil acesso e o escambau. Mas, cobram pressa na vacinação. E dizem até que não há vacina para atender a todos.

Atendem idosos dentro dos carros de passeio. Atendimento “Drive Thru”. Mas, quem não tem carro, é atendido em moto, bicicleta, velocípede, canoa, cavalo, e bem que poderia ser atendido em avestruz ou camelo.

É o país da esculhambação, ou não é?

Grande Otelo – o eterno “Macunaíma”

No Brasil, tudo que é sacanagem frutifica. E não é de hoje que isso acontece. Lembrem o “Febeapa” do Sérgio Porto. Lembrem os célebres romances escritos por Jorge Amado, “Dona Flor e seus dois maridos” – tudo é uma sacanagem só. E é uma das obras mais lidas desse autor. Policarpo Quaresma, você já ouviu falar? Pois é. É por aí que vai a coisa neste país.

É o país da esculhambação, ou não?

Mário de Andrade, no século passado escreveu “Macunaíma” e resolveram rotular de “o herói sem caráter”. Não!……. é o puro herói brasileiro, sem precisar acrescentar nada!

Raul Seixas – ícone da mistura da verdade com a esculhambação

E na música?!

Claro que temos muita cosia boa na música – na música antiga, diga-se. Por que a atual, se misturarem com bosta não fará diferença. Só vai aumentar o “monte” e o tolete. E aumentar a catinga.

De repente, assim não mais que de repente, a mídia (que tem parte que dá para juntar com a música e a bosta e também só vai aumentar o volume) descobre “gênios” e os leva aos píncaros da glória. Endeusam. Leva-os aos Olimpo.

Alguns – por falta de inteligência, mesmo! – confundem letras inteligentes, de qualidade que alguns compositores do passado reuniam. Exemplo? Entre todas as letras escritas por Djavan, quem encontrar uma única que não preste, vai ganhar uma noite de paz e felicidade ao lado do Maurino Júnior, o meu amigo mais querido que eu não tive o prazer de conhecer pessoalmente – mas, qualquer dia Luiz Berto vai nos reunir para saborearmos uma fava rajada com colchão de bode francês. E tendo o prazer de escutar os solos geniais de Goiano ao violão.

Além de Djavan, para mim, um “gênio”, tivemos Belchior, Evaldo Gouveia, Jair Amorim, Dolores Duran, Taiguara, Vinícius de Moraes, Ivan Lins, Tom Jobim, e isso sem esquecer Humberto Teixeira e João do Vale que, por décadas disseram o que de melhor aconteceu em musicalidade e poesia vindo do sofrido Nordeste.

Como esquecer Falcão e Raul Santos Seixas, baiano que veio ao mundo em 1945 e nos deixou aos 44 anos?

Esse, o verdadeiro “Maluco Beleza” que nos presenteou com “Gita”, “Ouro de tolo” e “Mosca na sopa”, coroando e confirmando que, “tudo que é esculhambação” prolifera entre nós.

É o país da esculhambação, ou não é?

 


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 08 de março de 2021

AS HEROÍNAS E AS CHORONAS (JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS É COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS HEROÍNAS E AS CHORONAS – HOMENAGEM AO DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Lágrimas espontâneas e sinceras – de alegria ou tristeza

Prevenir é melhor que remediar. Assim, ensinado que fui por uma mulher (minha Avó) e trazido ao mundo por outra mulher (minha Mãe), alucinado por mulher, na cama, fazendo sexo, ou em qualquer outra atividade – nunca comemorei nem entendo por que de termos um “Dia Internacional da Mulher”. Para mim, sem frescuras, todo dia é dia da mulher.

Mas, também sei – e é essa minha opinião! – há mulheres que sequer deveriam existir. São problemas, sim. E problemas de difíceis soluções que vieram ao mundo apenas para atazanar, inclusive a si próprias. Para essas, tem que ter um dia especial, sim: o Halloween!

Agora, também sem frescuras, há uma situação maravilhosa: essas mulheres difíceis, problemáticas (ainda que sem necessidade de serem atingidas ou provocadas), são em número significativamente menor. E é isso que é bom!

Neste instante, entretanto, o que queremos mesmo é falar sobre o “Dia Internacional da Mulher” – neste momento com comemorações e enfoques diferentes, por conta dessa pandemia que nos prende a tudo e a todos, e nos impossibilita do aconchego da convivência.

Acácia Imperial (Cassia fistula), popularmente conhecida como “Acácia chorona”

Como escrevemos parágrafos acima, “todo dia é dia da mulher”, para os que gostam da fruta, e para os que respeitam como parceira forte na construção familiar.

Não cerramos fileira ao lado dos que defendem essa coisa do “empoderamento” feminino, haja vista que nossos antepassados nos ensinaram valores que até hoje respeitamos, tipo: “uma casa sem mulher, não é uma casa e jamais será um lar”.

A mulher precisa trabalhar? Tem o direito de construir sua independência?

Claro que tem todos esses direitos. Mas, não haverá como separar as coisas e haverá sempre uma cobrança, ou uma jornada que vai além do trabalho profissional.

A sociedade chamada moderna, nos últimos anos vem conseguindo impor valores diferenciados (e quem não aceita-los, será rotulado de machista), mudando o dia-a-dia de muitas casas, com a mulher saindo para o trabalho e, em alguns casos, assumindo o protagonismo, com fatia maior na assunção das despesas financeiras. Nada de errado nisso.

Queiram ou não, isso tem causado diversos problemas para as famílias. Às vezes, exigindo jornada tripla para garantir o “comando” da família, ou a pecha da desestruturação familiar por conta do “abandono dos filhos” na condução comportamental e educativa. Uma babá, uma governanta, uma cuidadora jamais conseguirá substituir a mãe.

Mas, sentimentalmente falando, a mulher, por sua participação no mundo, faz jus a todas as homenagens – e ainda poderiam ser acrescentadas outras.

Mulher é um ser especial. Quando quer ser especial. E é um ser diferente, quando quer atrapalhar a vida de outrem – jogando fora todos os bons valores.

Eu, particularmente estou no “segundo casamento” (sou divorciado do primeiro – de onde nasceram duas filhas, ambas adultas e independentes. Residem em Fortaleza, com a mãe) – e isso pode significar o quanto gosto da parceria da mulher.

Sou radical. Acho que um casal é formado por um homem e uma mulher. As demais escolhas, para mim, nada mais são que um acinte à religiosidade – e todos que pensam diferente pagarão por isso, no dia da prestação de contas. Mesmo assim, por saber que cada um responderá por si, a escolha de cada um nada me diz respeito.

A mulher é especial. A mulher chora. A mulher não é apenas uma rosa. A mulher é uma cachoeira de acácias distribuindo beleza, vida, perfume e sensibilidade. A mulher é uma acácia chorona.

Lágrimas femininas na semeadura do amor

Bobagem grande, imaginar que a mulher é uma chorona. A mulher é o ser mais forte que Deus colocou na Terra – deu-lhe não apenas a capacidade de ser o principal meio de geração da vida, com um “ninho” que suporta adversidades, traumas e é de uma estrutura muito frágil, apesar da capacidade ímpar de reconstrução e recuperação. É da mulher, o dom divino da geração da vida.

Como diz o compositor Ivan Lins na letra do seu sucesso que rende homenagem às mulheres:

“Essa firmeza nos teus gestos delicados
Essa certeza desse olhar lacrimejado
Haja virtude, haja fé, haja saúde
Pra te manter tão decidida assim
Que segurança pra dobrar tanta arrogância
Que petulância de ainda crer numa esperança
Quem é o guia que ilumina os teus dias?
E que te faz tão meiga e forte assim
Coragem, coragem, coragem, mulher
Coragem, coragem, coragem, mulher
Como te atreves a mostrar tanta decência?
De onde vem tanta ternura e paciência?
Qual teu segredo, teu mistério, teu bruxedo
Pra te manter em pé até o fim?
Coragem, coragem, coragem, mulher
Coragem, coragem, coragem, mulher”

Acácia branca (Moringa oleífera) importante na Fitoterapia

A intenção foi essa, sim. Juntar a mulher e a sua disponibilidade a qualquer momento (se for mãe, então, o filho ou a filha – não apenas serão protegidos em qualquer circunstância, como poderão contar com ela, inclusive com a disponibilidade da própria vida) compará-la com as acácias, de quaisquer cor, perfume ou utilidade.

As acácias são, por rigor, qualquer mãe.

Amarela, branca, roxa, rosa ou vermelha – e as mães, nova, meia idade ou velha, estarão sempre disponíveis.

Se me fiz entender, por isso que, todo dia é dia da mulher!

Acácia vermelha (Sesbania punicea) de todas é a mais rara


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 01 de março de 2021

PANDEMIA DO C-19 - O QUE É MESMO ESSENCIAL? (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

PANDEMIA DO C-19 – O QUE É MESMO “ESSENCIAL”?

Hoje nosso texto vai fazer jus, literalmente, ao título escolhido anos atrás para a coluna. Vamos enxugar gelo e, para isso, vamos colocar nossas luvas plásticas – pouco diferentes das que estão sendo usadas aqui e alhures, como meio de prevenir o contágio pelo C-19.

Assim, para não ficarmos tão distantes do assunto Covid-19, que tem tomado até mais da metade do tempo que qualquer padre tem usado nos sermões das missas dominicais, vamos falar do “fique em casa”, que está levando alguns miseráveis à cometer suicídio, por não vislumbrarem qualquer perspectiva de solução.

Dito isso, vamos relembrar de algumas profissões que, ainda que não fossem consideradas essenciais, não haveria, jamais, como obedecer o “fique em casa”.

* * *

Arrumador de pinos de boliche:

Você já imaginou, em algum desses dias atuais, baixar o aplicativo no seu celular e fazer uso de uma assinatura para reservar um horário para jogar boliche com um amigo obedecendo todos os critérios recomendados pelas autoridades sanitárias, com o objetivo de reduzir ao mínimo a possibilidade de contágio pelo C-19?

Ou, digamos, você usa de todos os seus direitos para marcar um horário especial naquela Casa de Jogos do Morumbi, bairro luxuoso da capital paulista e, assim sem mais nem menos, o nazi-governador daquele Estado decreta o “lockdown”?

Arrumador de pinos de boliche em plena atividade

E agora, você vai se divertir jogando boliche aonde?

Tudo isso, porque o calça-apertada considera que o “Arrumador de pinos de boliche” não tem família para sustentar, e sua profissão não é essencial. Pode até não ser essencial. Mas, você precisa diminuir o estresse jogando boliche, ora! E quem vai usar o tempo para jogar é pagador de impostos.

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Despertador humano (batedor):

Essa profissão de “Despertador humano”, uma dia já foi muito importante. Importantíssima, diríamos!

Sempre foi profissão executada por mulher, quase que na sua totalidade. Foi oficialmente extinta no ano de 1876, época da Revolução Industrial na Europa.

No Brasil, entretanto, a “profissão” teve curta duração, haja vista que nenhum marido aprovava que sua mulher acordasse e levantasse com o dia clareando para ir tocar canudinho de som na janela de alguém. Deu uma confusão miserável e, querendo ou não, os familiares da casa de onde saíra a mulher também acabavam “despertados”. Despertados por tabela, digamos.

As antigas “profissionais Despertadoras”

Agora, a confusão era maior, quando uma mulher tocava o canudinho ao lado da janela onde um casal dormia, e a dona da casa acordada bradava: “acorda e levanta, pois a rapariga já está te chamando para as safadezas.” Como diria Adonias para Maurino – “deu uma confusão do caraio, para filho-da-puta nenhum ficar sorrindo.”

Nessa pandemia do C-19, com o “fique em casa” determinado pelas autoridades sanitárias, a profissão foi literalmente extinta.

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Leitor de fábrica:

Operários escutam Leitor enquanto trabalham na fábrica de cigarros

Evidente que não conhecia todos os acometidos de C-19 que foram a óbito. Mas, uma coisa eu asseguro: mais de 90% dos acometidos pelo coronavírus que moravam em São Luís e foram a óbito, eram fumantes ou ex-fumantes. Os pulmões, aprendi na universidade, não são um órgão que se “limpe” dando descarga, como um vaso sanitário. Nossas constantes mudanças climáticas exigem mais trabalho dos pulmões – que ainda estão sendo sacrificados com o uso intermitente da máscara.

Assim, é evidente, que o “Leitor de fábrica” cuja profissão era promover entretenimento aos operários da fábrica de cigarros e outros tabacos é alguém dispensável. Descartável e nem precisa vir mais ao trabalho, pois foi uma profissão que desapareceu.

Agora, o operário da fábrica de cigarros, nesse ninguém toca. Afinal, quem produz mais linfomas pulmonares ao mesmo tempo que gera mais arrecadação para os estados?

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Coletor de sanguessugas:

Sanguessuga coletado por profissional especializado

Até o fim do século XIX, a modalidade de tratamento médico conhecida como sangria ainda era utilizada em boa parte do mundo. E isso podia ser feito com o auxílio de sanguessugas, que eram vendidos aos médicos pelos coletores. Hoje a sangria terapêutica ainda é utilizada em casos específicos, como em pacientes com hemocromatose, policitemia vera e poliglobulia (provocada pelo excesso de glóbulos vermelhos no sangue). Mas sanguessugas não são mais necessários.

Tanto quanto a utilização pela medicina, o “Coletor de sanguessuga” foi abolido e tangido das profissões brasileiras através das leis. Senado federal, Câmara federal, assembleias estaduais, secretarias estaduais e municipais, vereadores e auxiliares fizeram lobby e tangeram com sal grosso e cabo de vassouras não apenas os sapos cururus. Tangeram, também, o “Coletor de sanguessuga”. Daí, a exagerada quantidade que temos desses “insetos”.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 22 de fevereiro de 2021

FAÇA-SE LUZ (DISSE DEUS) E, LOGO, AS TREVAS FIRAM ILUMINADAS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

FAÇA-SE A LUZ! (DISSE DEUS) E, LOGO, AS TREVAS FORAM ILUMINADAS

Luzes iluminando a Terra

Palavras têm significados mil. Mas, o que vale mais é o significado que queremos dar. Para sair das trevas, qualquer pessoa ou objeto precisa de luz. Ainda que tênue, mas, luz.

Condenar à escuridão é impedir o direito de sair das trevas. O arado ou o trator, qualquer um, impede que o grão saia das trevas, aterrando-o na germinação. A semelhança é voraz, e pertinente ao aborto. Em gestação, ao bebê é negado o direito de sair das trevas para sorrir ou chorar com a luminosidade da vida, também chamada de luz. A mãe, ao dar à luz, tira o bebê das trevas. É legal ou humano negar a luz para quem está nas trevas?

Assim, também, ensinar à quem não sabe e quer aprender, é mostrar a luz. A luz a que todos e qualquer um têm direito. A luz do saber. O direito de sair das trevas do desconhecimento, da ignorância.

Uma nova vida ainda nas trevas

Não lembro mais onde li: “…. na construção do mundo, quando tudo ainda era trevas, Deus, na sua onipotência, criou a luz, dizendo: faça-se a luz!

E assim a luz foi feita, e tudo ficou claro”. Também não sei “quem soube disso” primeiro, já que não existia nada além das trevas e do mundo que estava sendo criado. Mas, em Deus eu acredito e acreditarei sempre. Deus é a própria esperança e Fé.

Da mesma forma, também não sei de onde viemos, a não ser que somos gerados no ventre de uma mulher (essa, também segundo os ensinamentos religiosos, criado por Deus, o Onipotente, a partir de uma das costelas do homem – também não sei quem viu isso para registrar. É o ensinamento da Fé.)

Há quem diga (e eu mesmo já repeti isso várias vezes) que viemos do barro, e para lá voltaremos. É um raciocínio lógico, principalmente após a morte.

Entretanto, por mais que se aproxime do mais provável início da vida de todas as espécies, incluindo a espécie humana, a ciência jamais terá o crédito do que seja realmente verdadeiro. Afinal, somos a evolução do espermatozoide, somos um transformação do macaco ou somos bonecos feitos do barro.

Se assim for, palmas para o Mestre Vitalino (Vitalino Pereira dos Santos) que fez milhares de “gente e animais” sem precisar produzir espermatozoide – e nem lhe cobraram “espermograma”. Seria Vitalino apenas um Mestre, ou um novo Deus?

Assim, raciocinemos: claro que o caminho mais curto e próximo da verdade é o caminho da Fé. A Fé em Deus, e na sua extrema bondade, ao criar o homem e todos os seres vivos da Terra.

Pois, se Deus criou a luz, tirando das trevas o universo e tudo que existe, por que transgredimos e nos arvoramos do direito de optar pela manutenção de humanos nas trevas. É. Nas trevas da placenta, e os condenamos eternamente às trevas, quando discutimos e aprovamos o aborto?

Ainda que nos casos de violência (estupro) ou malformação genética e reprodutiva, por que “aprovar o aborto” e não entender a cessação do sofrimento e da dor, aprovando a eutanásia?

Haverá sempre alguém que se atreverá à responder: apenas à Deus cabe o destino da vida das pessoas. É mesmo? E o aborto, quem recebeu procuração de Deus, o Onipotente?

Será que, aprovando o aborto, estamos também aprovando o não nascimento e proliferação do grupo sem caráter, do grupo que se alimenta do ódio e procura multiplicá-lo?

Não sei. Se você sabe me explique. Mas, aproveite e desenhe, para meu melhor entendimento e aceitação.

Aproveite e me convença: “por que os velhos morrem”? Claro que eu sei que não apenas os velhos morrem.

Velhice a caminho de volta às trevas


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 15 de fevereiro de 2021

A ESTRADA E A VEREDA (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

A ESTRADA E A VEREDA

Na longa estrada da vida algumas pedras precisam ser vencidas

Ainda consigo lembrar. Eu tinha exatos dez anos de idade, quando precisamos sair de Queimadas, naquele tempo um simples povoado de Pacajus. Meu pai, que havia sido demitido de um colégio onde lecionava Aritmética, voltava a trabalhar. Agora, nomeado como Fiscal da Fazendário (Secretaria Estadual da Fazenda do Ceará), e tínhamos que mudar para a capital.

Antes da viagem, uma olhada rápida no quintal da Vovó. Pela última vez. Eu ia embora, e ali deixava as mangueiras, os cajueiros, as galinhas, os patos, os capotes, uma jumenta, o cachorro Pintado e aquele barulho melódico de todos os fins de tarde do Vem-vem e das cigarras. Também lembro, ainda, que eu fui o último a me despedir de Vovó, abraçando-a também pela última vez. Depois do abraço, corri e deslizei o último pau da porteira, fechando-a.

Nunca mais voltei ali. Nunca mais olhei minha Avó, nem nunca mais cacei passarinhos, nem escutei os voos rasantes das corujas. Os pirilampos ficaram para trás. As mutucas, também. E ali se encerrava um dos mais importantes e construtivos ciclos da minha vida. Ciclo da infância, da liberdade, e das brincadeiras respeitosas.

Fui o último a subir no caminhão. Não tive coragem de olhar para trás, porque ali ficava parte de mim. (“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”)

Naquele dia, primeiros anos da década de 50, a viagem que hoje não consome 30 minutos para percorrer o percurso, levou mais de três horas. E o caminhão não parava. Apenas a distância que não queria diminuir, como se nos convidasse à voltar para continuar a vida na roça, apanhando cajus, pescando piabas, caçando passarinhos – e, vivendo!

A estrada era a continuação da vereda

Caminhão da mudança acionado pela manivela. Tudo funcionando. Eu, viajando junto das panelas velhas, redes, cristaleira e tamboretes, tão logo o caminhão teve acesso à vereda, me agarrei ao cachorro pela possibilidade que ele, já sofrendo saudade, resolvesse pular do caminhão e voltar para o aconchego da Vovó. Os animais nunca perdem ou esquecem o “arquivo” do faro. Eu, sem perceber que Vovó entrara na casa, faço meu último aceno – provavelmente para o tudo onde vivi e aprendi a viver como gente.

Felizmente que os tocos que ainda ficaram na vereda aberta à base de foice e machado, não furaram os pneus. A estrada longa foi alcançada e prometia nos levar à uma nova vida, sem muitas coisas que ficaram para trás, mas com a esperança de vitórias.

O caminho que nos levou à estrada

A cada árvore da vereda que deixávamos para trás, era um desvio para não machucar. Como se eu conhecesse folha por folha, galho por galho, e tivesse o nome de cada uma. Atingimos a estrada sem problemas.

Agora, como o cachorro não se atreveria mais a pular para tentar voltar, se aquietou sobre um colchão velho de molas. Eu fui para a frente e fiquei à mercê do vento que tocava no meu rosto, lavando-o. Deformando-o pela força da ventania. Enfrentar aquele vento, era, sem dúvida, abrir as portas do futuro.

A “cidade grande” foi atingida. Nos dirigimos na direção do mar, como se algum navio estivesse à nossa espera. Não houvera nenhum milagre de Moisés, tampouco estávamos diante do Mar Vermelho. Era a praia do Pirambu, e ali nos aguardava a “Comissão de Recepção”: um gato mariscado, que provavelmente esperava a maré secar para permitir que os siris viessem à tona como presas incautas a lhe proporcionar o jantar de todos os fins de tarde; um cachorro vira latas, que caçava restos de comida trazidos pela maré enchente.

A casa: paredes e telhado de palhas. Um barracão onde estacas internas permitiam armar as nossas redes. Água, apena a do mar – felizmente havíamos trazido um pote, uma quartinha e algumas latas que poderiam servir de depósito.

Mas, finalmente, estávamos numa nova estrada e poderíamos iniciar a caminhada que nos permitiu chegar até aqui.

Vereda e ao fundo dá para ver a nossa casinha branca que ficou

Na manhã do novo dia, o barulho sufocado das ondas do mar, que não ficava distante. Algo em torno de sessenta metros, num espaço separado pela praia pouco frequentada. Não havia urbanização, e os frequentadores que por ali passavam, eram pescadores a caminho de seus barracos – iguais ao nosso.

Teresa, uma jovem criada por mamãe, era uma espécie de Governanta. Tudo mandava fazer ou fazia ela própria. Serviu o café: café preto e um banda de pão com nada. Hoje entendo que aquilo já era o nosso muito.

Mãe saíra à procura de trabalho, enquanto o pai para assumir um novo emprego. Aos sábados e domingos, todos nós saíamos para procurar um novo local de moradia.

Durante a noite, a poesia vinda do mar nos mostrava o caminho que precisaríamos seguir para, como Don Quixote, encontrar um moinho que pudesse nos proporcionar novos ventos, novos ares na continuidade da estrada que a vida nos oferecia.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 08 de fevereiro de 2021

MARINO JÚNIOR, GO HOME (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

MAURINO JÚNIOR, “GO HOME”

Maurino acompanhado do tutor à espera da nave

Sniff, sniff, sniff!

Neste mundo que vivemos nos dias atuais, estamos entregues às incertezas. Uma certa OMS (Organização Mundial da Saúde) não sabe sequer para que existe, muito menos quais são suas tarefas além da “cagação” de bolotinhas caprinas. Diz hoje, amanhã desdiz.

Pois, ontem, no exato momento em que o STF, em decisão monocrática do bebedor de whisky determinava um alongado prazo de 48 horas para que Jair Messias Bolsonaro resolvesse a escassez de chuvas no Brasil, capaz de provocar novas queimadas nas águas dos rios Negro e Amazonas, o JBF, aparentado mais próximo do STF perdia um dos mais importantes colaboradores.

É! Maurino Júnior, “go home”!

A partida, um pouco parecida com fuga, não foi das entranhas de Spielberg. Foi do cafofo do “Cabaré do Berto”, até quando não se sabe, gerenciado por professor Assuero, filho da quarta geração do Mestre Yoda.

Lágrimas! Muitas lágrimas!

Até deu pra gente escutar um aboio vindo das Ipueiras, gritado por Dalinha, quando pescava tilápias na beirada do açude com isca de minhoca:

– Eeeeuuu achooo ééééé pooouuuco!

Maurino conduzindo a bike a caminho da “naveporto”

Por mais incrível que possa parecer, os meios de comunicação “fora do planeta Terra” funcionam às mil maravilhas, e quem os administra sequer pensa em privatização. Tá tudo nos trinques.

Afirmo isso por experiência própria. Ontem, estava eu observando no circuito fechado a minha criação de camelos de três corcovas, quando a campainha tocou. Era um “mensageiro” vestido de Homem Aranha, que veio entregar uma correspondência com embalagem diferente. Recebi, pois veio endereçada à mim. Observei o remetente.

Com certeza nenhum de vocês vai acreditar. Era a primeira missiva de Maurino Júnior neste primeiro semestre de 2021. Está morando na estrela Sírius, onde abriu uma bodega (filial) em parceria com Jessier Quirino.

A nave que “sequestrou” Maurino pousando em Palmares/PE

Na bodega, afirma Maurino, é claro que estão à venda pendrives com todos os shows de Jessier e CDs de Xico Bizerra – DETALHE: lá, afirma Maurino, ninguém precisa usar máscara contra o C-19, pois os hospitais de campanha que foram instalados abusaram de usar a Cloroquina. Ninguém morre por lá. Quando morre, é de morte matada ou morrida, e o legista que informar errado no atestado de óbito, nunca merecerá o beneplácito de “Boca de Priquito”.

Maurino afirma que, por lá, a alimentação é farta. Diferente da Venezuela. O futebol não existe por lá. O único “jogo” que funciona em Sírius, é a filial da Roleta do Cu-Trancado, que paga 0% de impostos e está de vento em popa, pois ninguém ganha, mas também ninguém joga.

Hoje, quando as estrelas começarem a brilhar, vou tentar me comunicar com Maurino Júnior através dos sinais de “Libras”. Meu intérprete será aquele mesmo que trabalha com Bolsonaro. Ganhou o cargo, depois que “mandou todo mundo à puta que pariu”, numa recente live presidencial.

Maurino usa um super telescópio fabricado em Oeiras, que foi enviado para ele por Cícero Tavares.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 01 de fevereiro de 2021

O ENCANTAMENTO EM CADA UM DE NÓS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O ENCANTAMENTO EM CADA UM DE NÓS

“Um dia, todos seremos estrelas no firmamento divino”

A selva que se inicia em cada um de nós

Ontem no exato momento que caía uma forte e contínua chuva, sem perceber que os anos se passaram e que envelheci, parei de ler, fechei o livro, e me pus a observar o direito aparentemente sagrado do ir e vir das estrelas, durante a noite.

Um desenho animado e multicolorido nos céus. Parecendo uma chuva de meteoros.

Aflito, resolvi fazer à mim mesmo uma pergunta:

– Por que os nossos direitos de ir e vir, não são assim, como o das estrelas?

Ninguém me respondeu. Não obtive resposta alguma. Nem mesmo de mim mesmo, à quem perguntei. Fiquei calado, pois não tinha mesmo o que responder.
Aliás, não sabia o que responder.

– Por que as estrelas, tão brilhantes e cintilantes, podem passear, ir e vir, e nós humanos, não?

Eis que uma voz distante, que provavelmente somente eu ouvia, respondeu trombeteando:

– Pois, transforme-se numa estrela, ora!

Me bastou a resposta da minha imaginação. Me bastou o campo ocupado do meu tempo – e assim, tudo me bastou.

Reabri o livro. Voltei à leitura.

Mas, ainda com o pensamento viajando – sempre para o passado efervescente da juventude – voltei a fechar o livro. Agora, deixando-o cair no chão de forma proposital.

Voltei o pensamento para a primeira namorada. Corpo bonito. Limpo de muitas coisas ou quaisquer outros problemas. Corpo jovem, viçoso, enfim. Seios rijos, dentes alvos e limpos, boca bonita protegida por um buço que, de tão real, precisava olhar com a lupa para ser percebido.

A beleza da terra e da noite de lua

Por que envelhecemos?

Que razão há para isso?

Por que, não permanecemos eternamente jovens?

Eis que, distante dali, aquela mesma voz que interferira noutro momento, mas ainda longe, e agora em tom mais suave, voltou a sugerir:

– Pois, transforme-se numa estrela!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 25 de janeiro de 2021

BEM ALI! (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

BEM ALI!

O silêncio reinante no “bem ali”

– Ei, bora “bem ali”!

– “Bem ali” é aonde?

– “Bem ali” é muito antes do “acolá”, e distante do “lá na frente”!

– O que é que vamos fazer nesse “bem ali”?

– Vamos saborear a natureza. Vamos escutar o cântico da cigarra, quando começar a anoitecer.

– Nesse “bem ali” só tem cigarras cantando?

– Não!!! No “bem ali” tem a profundidade do silêncio, a natureza, o céu límpido e claro.

Mas, o que tem de bom mesmo “bem ali” é o silêncio. “Bem ali” é tão silencioso, que apenas alguns conseguem escutar a conversa entre o vento e a brisa – e, claro, o vento sempre tentando convencer a brisa para um colóquio amoroso.

Mas a brisa sempre reluta, achando que a conversa pode evoluir para “os finalmente”, e dali nascer uma tempestade.

A sonata da chuva que cai “bem ali”

– Indo “bem ali” a gente pode conhecer o desconhecido, descobrir o encoberto. “Bem ali”, tem uma lagoa e a gente pode até banhar juntos. Banhar nus, como a natureza nos criou.

– E…. se alguém nos olhar banhando nus na lagoa desse “bem ali”?

– Na lagoa, banhando nus, estaremos só nós dois. Ninguém sabe onde fica o “bem ali”. Só nos, os despidos da maldade.

– E, depois do banho nessa lagoa do “bem ali”, o que faremos?

– Voltaremos para casa, pois a noite estará se apressando para chegar. Aproveitaremos para escutar o vem-vem e até para espantar as corujas que ficam na estrada. Vamos?

– Tá certo. Vamos. Mas, só vou porque você está dizendo que é “bem ali”!

A caminho do “bem ali” a estrada estará cheia de folhas que o outono derrubou

– Vamos andar um pouco mais rápido! Só assim, o “bem ali” fica mais perto. Bem distante do acolá.

Chegaremos em casa, comeremos alguma coisa e, escutando os vôos rasantes das corujas, sentaremos na ponta da calçada e contaremos estrelas. Separaremos aquelas com brilho muito intenso, das que não brilham tanto. Formaremos, ainda que apenas na imaginação, a nossa constelação estelar.

– E depois que contarmos as estrelas, o que faremos?

– Entraremos. Deitaremos, e faremos o que você quiser. Mas, não faremos tantas vezes pois, com certeza, o amanhecer de um novo dia estará “bem ali”!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 18 de janeiro de 2021

OS PÉS DE FULÔ (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS PÉS DE FULÔ!

José de Oliveira Ramos

 

O pé de fulô que Das Dores prantou

Faz tempo que usamos a fala popular de lugares, repleta de regionalismo. Ainda que passemos a morar em meio aos conglomerados urbanos, carregamos “a forma de falar” daqueles lugares onde nascemos e vivemos por décadas. Muitos chamam isso de cultura regional. Pode ser. Ninguém duvida.

Mas, isso não fica restrito apenas ao modo de falar. Estende-se, também, aos diferentes e ricos modos de vida. É comum o apego com a poesia do verde e do ter o que fazer todos os dias, ao acordar e levantar. Uma tarefa que ocupa a alma, lubrifica e norteia o ego.

– Diacho, eu prantei um pé de fulô meis passado, e inda num nasceu nadica de nada?

Maria das Dores viera do interior do Ceará, tangida pelas agruras da seca. Ali deixou algumas galinhas que sobraram e resistiram diante da morte de outras tantas, por conta da falta de alimentos. Dona Das Dores não suportava conviver com aquele sofrimento enfrentado pelas aves, e achava estranho ter que abater todas para o consumo. Até porque eram muitas. Também não dava para levar nenhuma daquelas aves para a nova moradia, uma casa num bairro diferente e cheio de pessoas da classe média alta. Ali, ninguém aceitaria dividir o sono do início das manhãs com o cantar de despertar de um galo. Teria que se adaptar a novos hábitos. Mas, outros, nem tanto.

Eis que, na noite daquele mesmo dia o tempo mudou. Nuvens negras apareceram no céu azul, pintando o firmamento de um cinza previsível que, no sertão, o relógio da vida garantia uns bons e generosos dias de chuva. E choveu bastante durante a noite. No dia seguinte, mais chuva, que continuou acontecendo no terceiro dia.

Felizmente, no quarto dia o sol voltou a brilhar, e aquela luz convidou Das Dores à abrir a janela do quarto onde passara a dormir e traquinar sexo com Assis, o marido.

– Deus dos céus, que maravia! O meu pé de fulô nasceu!

Naquela manhã o café foi diferente. A mesa farta com coisas sempre presentes no café da manhã da roça (tapioca, pamonha, batata doce cozida, ovos fritos na manteiga, cuscuz, coalhada e um café que, de tão cheiroso incomodava a vizinhança) era uma forma de dar graças à Deus, e agradecer à Natureza pelo nascimento do pé de fulô.

– Quem pranta, coie!

Das Dores não cabia em si de tanta felicidade. Todos os dias, por três vezes molhava o vaso onde plantara o pé de fulô que trouxera de onde morava. Presente de Deus pelas mãos de Raimundinha.

E todos os dias ela mesma observava que o pé de fulô crescia. Se espraiava tanto quanto as boas coisas.

A danisca da fulô nasceu, cresceu e se espaiou

– Aubrigado Deus, foi aquele pezim de fulô que prantei que tá ficano mais que bonito!

Era, realmente, uma poesia que a Natureza escrevia a partir da mão de Das Dores. Tudo tem uma semente. Até a bondade ou a maldade.

Mas como quase todos sabem, não existe bem que dure para sempre, muito menos mal que nunca acabe. Eis que, Dona Das Dores e Assis foram avisados que invasores do alheio estavam se abancando da roça deles.

O casal nem esperou pelo tempo bom. Arrumou aquela velha mala de madeira e pegou o caminho de volta para a antiga vida, agora renovada pela certeza das coisas boas. Um simples pé de fulô serviu para ensinar Das Dores.

A casa da roça tinha um aspecto de abandono. O trabalho árduo seria cansativo, mas valeria à pena para colocar tudo em ordem. E a primeira providência de Das Dores foi aproveitar um pote velho em desuso e um alguidá. O pote serviu de apoio e o alguidá serviu como vaso para plantar outro pé de fulô. Na verdade, rosas vermelhas, que para Das Dores nunca deixaria de ser mais um pé de fulô.

Ai eu plantei outra fulô dendicasa in riba do pote

Retomando a roça e expulsando aquele aspecto de abandono, Assis e Das Dores, de tão cansados com a labuta da limpeza da moradia, sequer banharam e foram para o catre como se vivessem uma nova lua de mel.

Nas primeiras chuvas, agora com total assistência e trabalho da mão de Das Dores, a frente da casa tomou novo desenho, recebendo um aspecto europeu da Holanda. Flores por todos os cantos da propriedade, a ponto de chamar a atenção de quem por ali passava.

Nim todo lugá nasciam fulôres

Das Dores só tinha motivos para regozijo e se deliciava com tudo que a retina dos olhos alcançava. Até mesmo distante da primavera, o roçado de Das Dores deixava de ser uma simples roça para se transformar um jardim florido – e a qualquer época do ano.

Tudo a partir de uns simples “pés de fulô”!

– Quem pranta tem, e coie”!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 11 de janeiro de 2021

A VIAGEM DE PAPEL (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

A VIAGEM DE PAPEL

Cada livro lido é uma viagem realizada

Nasci pobre. Continuei pobre e ainda sou pobre. As únicas riquezas que consegui amealhar, poupar e quintuplicar, foram os valores humanos e morais “depositados” nos porquinhos da minha vida pelos meus pais. Prosperei e, com certeza, vou deixar um bom saldo para meus filhos.

Por isso, muito provavelmente, nunca consegui viajar para fora do País. Nunca carimbei passaporte. Entretanto, com muita fé e coragem aceitei que, “ler, é viajar”! Cada livro uma viagem, com os conhecimentos, as paradas e rodopios feito um beija-flor.

Assim, sentado numa confortável poltrona sem numeração, viajei. Conheci até outro planeta e ali fiz amizade com uma raposa, com quem me habituei a cada fim de tarde olhar o pôr do sol e contar quantos lampiões o Acendedor acendia. Até aprendi a esperar o amadurecer das uvas, que a raposa teimava em vê-las sempre verdes.

Passei a juventude quase toda em Salvador. Conheci e convivi com quase todos os capitães daquela maravilhosa areia. Fui ao Pelourinho e os recantos mostrados por cada Jorge antes do encantamento.

O conhecimento pelo livro será sempre maior que os carimbos nos passaportes

Viajei no Expresso Oriente, bati longo papo com Hércule Poirot, e até o ajudei a descobrir alguns segredos. Ainda nessa viagem conheci vários quilombos e fiz amizades duradouras com mais de dez negrinhos. Na parte da tarde, dei milho aos pombos.

Nos rotulados anos de chumbo e exceção da década de 60, visitei Itaguaí e juntei todas as memórias do cárcere. Tudo parecia sonho. Mas era uma viagem real a cada página virada e uma nova escala a cada capítulo.

Ler é viajar, sim!

O livro é o único passaporte que a “esteira” não bloqueia

Neste exato momento estou no meu assento preferido. Sempre ao lado da janela, para melhor olhar as belezas que a Terra nos mostra, e que vão ficando para trás, renovando as esperanças que, mais na frente, nossos olhos premiarão nosso coração com o melhor roteiro.

Não suportei viver a arrogância, tampouco as atitudes descabidas dos Onze, cada um escondendo o pudor e o respeito aos semelhantes – como se eles, ao morrer, tivessem pelo menos direito a uma honrosa lápide.

Sentei na cadeira. O ônibus da vida vai partir e, neste exato momento, sigo para me encontrar com uma Pequena Abelha.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 04 de janeiro de 2021

ACÁCIO, O TOLO! (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

ACÁCIO, O TOLO!

Acácio – a simpatia e delicadeza em pessoa

Chico, ou o Francisco, viveu o quanto Deus permitiu. Nasceu raquítico, viveu raquítico, e faleceu com a gordura que o destino lhe devia. Na verdade, Francisco de Oliveira Ramos, o primogênito de papai e mamãe. Precisou de orações e promessas desde o dia que nasceu. Sufocado pelo líquido amniótico nasceu puxado, em vez do parto natural. E, no dia que nasceu também iniciou o périplo pela salvação.

A promessa inicial partiu da Avó (aquela que muitos de vocês já conhecem pelas minhas quase falas), que “prometeu” a partir dali ao Santo Protetor, São Francisco, que emprestaria seu nome a alguém nascido no dia 24 de junho, dedicado à São João.

Pois, nascido no dia 24 de junho de 1939, Francisco, o Chico, faleceu no dia 13 de setembro de 2004. Casou e teve uma “reca” de filhos. Dois rapazes e quatro moças. Um rapaz, quase Engenheiro Eletrônico formado pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), abandonou o que disse pretender, quando cursava o nono período. O outro rapaz é Engenheiro Militar formado pelo IME (Instituto Militar de Engenharia), sendo ele civil. Chico chegou à Superintendência Estadual do INSS no Maranhão.

Advogado, Radialista e Jornalista, Chico assinava uma coluna semanal no jornal O Estado do Maranhão. Escrevia crônicas sobre a vida e a cidade. Criou um jardim que nunca possuiu, e nele empregou um jardineiro que sequer conheceu, e jamais assinou a carteira profissional ou pagou salários. Chamava-o de “Acácio”.

Por anos, Acácio cultivou margaridas, samambaias choronas, lírios, girassóis e todas as cores de ipês. Por conta da dedicação ao patrão e ao trabalho, Acácio foi premiado no dia do aniversário, 30 de fevereiro, com uma bolsa de estudos para aprender a plantar e cuidar de orquídeas e bonsais.

O primeiro bonsai produzido por Acácio, era um “flamboyant”

Eis que, nesta semana recebi uma mensagem de Acácio, pelo “zap”. Garantiu que, no próximo dia 30 de fevereiro, data em que comemora seu natalício, vai comparecer na minha residência, pois entende que, com o falecimento do Chico, faz tempo eu sou o novo patrão dele.

Prometeu me presentear com um vaso em que cultiva um bonsai: ipê róseo que produz abacaxis mais doces que mel. Prometeu, também, mostrar ao mundo a sua obra-prima em orquídeas: uma orquídea fálica cultivada do cactos.

Obra-prima fálica produzida por Acácio

Sinceramente, eu acho que, além de expert jardineiro, Acácio nunca deixou de ser um verdadeiro tolo. Se vier e tiver a petulância de cobrar alguma coisa, vai ser demitido por justa causa e mandado de volta para Caracas, onde esteve ganhando a vida como jardineiro durante todos os anos que desapareceu.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 28 de dezembro de 2020

MOMENTOS DE LEMBRANÇAS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

MOMENTOS DE LEMBRANÇAS

Nesta última coluna do ano de 2020 que, graças à Deus está terminando, deixando para nós um saldo negativo no que se trata de amigos e familiares, quero aproveitar para renovar a amizade e o respeito que sinto por todos que aqui comparecem, curtindo, comentando, ou postando suas matérias.

Que tenhamos um 2021 diferente. Para melhor. Que sejamos mais sensatos, e que tentemos com o que está ao nosso alcance ajudar na reconstrução desse País – dilapidado e jogado na lama por quase duas décadas.

A Fé reconstrói!

Coloque o seu tijolo nessa obra. Sinta-se participante na correção do que nos usurparam, e sigamos em frente.

Para fechar este ano, volto à infância que foi minha e, com certeza, de outros tantos que foram e continuam peraltas.

* * *

1 – Quando chegar em casa a gente conversa!

A varinha mágica

Que chegar em casa qual nada, mermão. A situação era resolvida era ali mesmo. Fosse onde fosse, e na presença de quem estivesse ali. Afinal, o “filho” era dela, e não do Conselheiro Tutelar uma exceção que o Estado nos impingiu, roubando nossos direitos de partícipes na educação familiar dos nossos filhos!

Era assim que minha Mãe era. Pau é pau, e pedra é pedra, doa à quem doer. Homem é homem, e mulher é mulher. Segundo ela, “baitola” é invenção de quem comeu merda ou barro tirado da parede, e se delicia com melecas tiradas das narinas.

Hoje é que acontecem essas marmotas e um monturo de idiotas fica querendo saber por que as crianças são rebeldes! Çei!

E çei, de novo!

Quer mais um “çei”? Então toma: çei!

Se não ficarem satisfeitos com todos esses “çeis”, mando um arre égua!

* * *

2 – Não quero essa comida!

Item da farofa que matava fome

Pense no prato preparado com o maior dos sacrifícios, às vezes até com a “intera” comprada fiado na bodega da esquina, e nos era servido: um baião de dois, farofa de carne em conserva fiambrada Kitut, uma banana prata madurinha.

Quem se atrevesse a dizer que não queria, a solução era a seguinte: “Tá bom, filhinho. Mamãe vai deixar aqui em cima da mesa, e coberto. Quando você estiver com fome, você vem e come, visse?!

E ó, depois lave os dois pratos, seque e guarde. Tá pensando o que?”

Hoje, a mamãe fica assoberbada, nervosa, caçando moedas e trocados em tudo que é lugar da casa e em todas as bolsas, procura nos dois sutiãs e fica atarentada para satisfazer o gosto do fdp, enquanto ele continua dedilhando o celular!

É, ou não é?

* * *

3 – Vá banhar e sem dar um pio!

A tarde era toda de jogar bola na rua na frente daquela vila, onde os moradores escutavam até o ronco dos outros durante a noite. Nunca a escolha dos times era feita sem confusão. Os “traves”, lembro bem, eram montados com camisas emboladas. Os donos das camisas tinham vagas nos times, caso contrário retiravam as camisas e iam embora – nessa situação a pelada acaba antes do tempo. E o tempo, quem determinava era a escuridão da noite que chegava.

Quando começava escurecer, com a claridade do dia dizendo até amanhã, ainda que o placar do jogo estivesse 5 a 5, tinha chegado a hora de entrar. Resmungar era algo natural. Responder ou discordar, ninguém se atrevia, quando escutava: “Chega de bola. Entra e vai direto pro banheiro, sem dar um pio. Lave bem as orelhas e as costas.”!

Hoje, provavelmente por que não existem mais aquelas peladas, o que alguns talvez escutem é o seguinte: “Stefesson (hoje não existem mais os José, Raimundo, Pedro, Francisco), será que não está na hora de largar esse computador, meu filho?”

E, se por alguma audácia materna, ele escutar aquele antigo “sem dar um pio”, ele, desaforadamente responde que não é pinto e até ameaça denunciá-la ao Conselho Tutelar. Pois sim!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo sábado, 26 de dezembro de 2020

SANTA CEIA (CONTO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

 

O dia é diferente da véspera!

A mesa está posta. Aquela mesma mesa usada todos os dias por Dona Mariazinha para quase todas as coisas. Ali é servido o café da manhã, sem toalha, com xícaras diferentes e algumas até sem alça. Um bule de ágata com a tampa quebrada, e até copos de vidro que antes foram embalagem de massa de tomate. Mas, é a mesa que o trabalho digno e Deus põem.

Aquela mesma mesa que Dona Mariazinha, às vezes, usou para colocar aquela bacia de alumínio com água morna para banhar Pedrinho, quando esse tinha seis meses de nascido. Mas, era a mesa, ué!

Hoje é o dia. Ontem foi a véspera. Naquela casa com portas velhas, janelas fechadas com a ajuda de cabos de vassoura, e com goteiras no telhado – e Dona Mariazinha coloca uma panela de alumínio para aparar os pingos e não enlamear o piso – ninguém é peru. Ninguém comemora véspera.

Hoje é o dia. Ontem foi a véspera. Por isso, Seu Pedro saiu com a espingarda bate-bucha, um bornal com espoletas, pólvora e algumas bolotas de chumbo. Foi à caçada para tentar matar alguma ave para a ceia. Não era dia do caçador. O dia era da caça.

Seu Pedro voltou para casa, sem nada caçado. Triste e pensativo guardou a espingarda num lugar onde Pedrinho não pegasse. Foi para a latada, sentou num cambito que colocava no jumento para transportar tonéis d´água. A tarde estava terminando, e não tinha nada para oferecer para Dona Mariazinha preparar a ceia. Lembrou que, no quintal, duas galinhas ainda ciscavam antes de subirem para o poleiro.

– Não! Uma das galinhas, não! As duas estão pondo ovos, e Mariazinha não vai aceitar matar. Pensava, e concluía Seu Pedro.

Também não tinha pão; panetone, sequer sabia o que era. Seu Pedro lembrou que ainda tinha milho. Podia socar no pilão, fazer o xerém e depois o fubá. Poderia fazer cuscuz, mingau, bolo misturado com meia dúzia de ovos – afinal as duas galinhas eram poedeiras.

Chamou Mariazinha e perguntou:

– Mulé, não cacei nada. Tá difícil a caça nesse tempo. O que vamos fazer para a noite do dia que Jesus Cristo nasceu?

– Num se desespere hômi. Deus é bom e vai nos ajudar! Disse Mariazinha, voltando para a cozinha.

– Mulé, vamos usar o milho. Mas não podemos usar todo. Precisamos deixar pelo menos cinco litros para plantar, e a chuva tá parecendo que vai chegar.

– Hômi, nóis tem aquele frango que pensa que já é galo, veve brigano com o galo, porque quer as galinhas só pra ele. Vamos já arresolver isso.

Foi que Seu Pedro iniciou a socagem do milho no pilão. No mesmo momento viu Mariazinha colocar a panela grande no fogo com água.

– O que qui tu vai fazer quessa panela d´água mulé?!

– Espera só que tu já vai vê. Pois sim!

Incontinenti, Dona Mariazinha foi ao quintal e, quando voltou, já trazia o frango saliente, metido a galo, com o pescoço quebrado.

A partir dali, tudo mudou. A mesa recebeu uma toalha velha de retalhos. Os mesmos pratos diferentes uns dos outros, poucas colheres. Até a panela veio para a mesa, pois não havia travessa bonita, dessas utilizadas nas casas diferentes daquela.

Finalmente a noite disse presente. As lamparinas estavam acesas. Na sala, o farol movido a gás clareava tudo, embora os pirilampos também tivessem chegado, provavelmente atraídos pelo calor da luz.

Mãos dadas e unidas ao redor da mesa, cabisbaixos, Seu Pedro e Dona Mariazinha faziam oração de agradecimento:

– Deus, sei que estás presente, e te convidamos para a ceia que nos destes. Sei, meu único Senhor, que tudo tem seu dia para acontecer. Nada acontece na véspera!


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 21 de dezembro de 2020

GÊNERO – MASCULINO OU FEMININO? (ARTIGO DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

GÊNERO – MASCULINO OU FEMININO?

A menina no balanço

Presidente, ou Presidenta?

Afinal, o que seria da raça denominada humana, se não fosse a resolutiva interferência da Natureza na designação das coisas que nos cercam, e que estão à nossa disposição?

Por que é prazeroso para a raça humana a “transgressão, o discordar, o contrariar ou até mesmo o querer fazer diferente”?

Depois de alguns anos convivendo com a República, até poucos dias atrás viemos experimentar a “diferença” de estar sentada na cadeira de maior autoridade eleita do país, uma mulher. Nunca isso acontecera antes. Pelo menos de forma direta ou legal (sic).

Pois, entre nós brasileiros, essas aberrações (conceito meu e assumo) linguísticas começaram a acontecer e ganharam terreno entre os seguidores dos métodos paulofreirianos. Criaram, no falar e na gramática, o exuberante “Presidenta”!

Aí eu digo o meu primeiro “arre égua”!

Hoje moro em São Luís. Não há como discutir isso em meio a tanta gente que aprova a mudança. Até por que, quando alguém vai se manifestar em público para uma plateia, inicia da seguinte forma:

– Bom dia para todos e para todas!

E sou obrigado a dizer o meu segundo “arre égua”!

Quer dizer que, quando alguém fala “todos”, está falando apenas com as pessoas do gênero humano masculino?

Não me perguntem por que, pois ainda não aprendi o suficiente, nem tenho lastro para responder, mas aqui em São Luís, quase ninguém fala o “ao invés de”. Fala: “em vez de”. Eu, nesse caso, já me acostumei, e também falo “em vez de”.

E aqui não cabe nenhum “arre égua”!

Aqui faço um registro, e digo que sou leitor e fã do paraibano Ariano Suassuna, usuário contundente das boas e bem faladas palavras, principalmente dos adjetivos. Nada contra quem desdenha e minimiza a importância disso.

Prefiro usar “baitola ou lésbica”, em vez de “gay”. Uma coisa ou outra, dará sempre no mesmo. Não vai mudar a prática apreciada por alguns, que hoje formam um grande contingente nesse país.

E é aqui que coloco que estão querendo nos empurrar goela à baixo, o termo “orientação sexual” para quem faz uma “opção sexual”. Está dito lá no nosso “Aurélio”, o que significa “orientar”, da mesma forma que também está escrito o significado de “optar”. Ambos são completamente diferentes no sentido.

Quem “orienta”, ensina. Quem “opta”, escolhe. Nessa vida pregressa que me permitiu chegar onde estou, nunca tive notícia de que alguém tenha orientado outrem a ceder generosa e prazerosamente o traseiro. Não há escola, tampouco professor(a) para isso. É uma questão de “opção”.

Balança e seus penduricalhos

E por que num bloco acima citei a palavra “Natureza”?

Porque, essa mesma “Natureza” se encarregou de nos mostrar a diferença entre os gêneros, quando nos apresentou o cavalo marinho, um dos poucos ou talvez o único capacitado “para parir filhos”.

Sem pretender entrar no mérito especial do ato sexual entre um homem e uma mulher, há um passeio teórico pela configuração da imagem da Santa Ceia, com Jesus Cristo no “centro”. Esse passeio teórico mostrou no filme (claro, uma obra de ficção!) “Código da Vinci”, que realmente existe um “espaço” mais aberto ao lado direito de Jesus Cristo, simbolicamente em forma de “cálice”. E o cálice, a gente sempre soube, é algo “receptivo”. É algo que recebe, embora também “ofereça” o acesso do visitante.

Na prática do sexo, a mulher “recebe” muito mais do que oferece. E não estamos falando no sentido de oferecer carinho, receptividade, disponibilidade. Estamos falando no sentido de oferecer penetração para o visitante. Trocando em miúdos: dá mais do que recebe. É o sentido simbólico do cálice.

Eis, no meu modo de entender, o sentido do gênero masculino ou feminino. Claro que não sou o dono exclusivo de nenhuma verdade.

Entretanto existem palavras que, “aparentemente” iguais, usadas na configuração masculina tem um sentido e significa realmente outra coisa, enquanto que, usada na configuração feminina identifica algo completamente diferente.

Veja que, impulsionado pelos ventos da saudade, do amor, da inocência infantil ou qualquer outro sentido que o ambiente queira dar, “o balanço” – objeto criado para o lazer prazeroso e poético – tem adjetivação diferente da “a balança” – objeto criado para medição de algo ligado ao comércio, ou, em poucos casos, à cobrança tarifária de impostos.

Ariano Suassuna, o genial, esteve sempre completamente certo. Não há sentido algum em querer mudar a obviedade.


José de Oliveira Ramos - Enxugando Gelo segunda, 14 de dezembro de 2020

CANTANDO COM AS BUNDAS (CRÔNICA DE JOSÉ DE OLIVEIRA RAMOS, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

CANTANDO COM AS BUNDAS

Sábado, com a claridade do dia dizendo até amanhã, era comum muitas das casas daquelas ruas onde moravam o amor e o bom gosto, as radiolas ligadas e sendo a principal mobília da sala. A sala iluminada e exalando aquele perfume inconfundível de limpeza e enceramento com Parquetina, havia até quem preferisse iluminação diferente conferindo a presença do romantismo. Coisa de épocas passadas. Coisa dos anos 50, embora houvesse até quem aumentasse o volume da radiola quando tocava: “Vinha por este mundo sem um teto, dormia as noites num banco tosco de jardim, sem ter a proteção de um afeto, todas as portas estavam fechadas para mim…mas Deus, que tudo vê e nos consola, em seu sagrado templo me acolheu….”

Vicente Celestino se transfigurava numa letra à qual se entrega como se um eterno Ébrio fora e não tivesse jamais encontrado uma Porta Aberta.

Era música, sim. As músicas diziam algo com as letras, sim. Tínhamos cantores, sim. Tínhamos cantoras também, sim.

Para onde foram? O que aconteceu com esses mágicos que nos diziam do amor e da beleza da vida?

E hoje?

Por que as cantoras, em vez de estudar canto, vão para as academias de ginástica para moldar as bundas?

As bundas cantam? As bundas são o que?

Por que se apresentam (principalmente nos programas televisivos) com mais da metade dos seios de fora?

Seios cantam?

Não. Não tenho nada contra bunda e muito menos contra seios. Adora bundas e adoro seios. Gosto de acariciá-los, se femininos.

Dolores Duran

E eis que chegou o tempo da doçura mágica e acalentadora dos fins de tardes ouvindo Dolores Duran. Músicas suaves, letras doces que acalentavam em confirmação do amor que habitava nas pessoas. Que existia em nós.

Assim:

“No ar parado passou um lamento
Riscou a noite e desapareceu
Depois a lua ficou mais sozinha
Foi ficando triste e também se escondeu
Na minha vida uma saudade meiga
Soluçou baixinho
No meu olhar
Um mundo de tristeza veio se aninhar
Minha canção ficou assim sem jeito
Cheia de desejos
E eu fui andando pela rua escura
Pra poder chorar.”

 

 

E aí a fila andou. Os tempos mudaram os grandes cantores e cantoras deram o ar da graça. Elizete Cardoso, Marlene, Ângela Maria, Dóris Monteiro, até que o Rio Grande do Sul nos apresentou e o mundo conheceu essa até hoje insubstituível Elis Regina, desafiando o sistema, correndo sobre o fio da navalha e dizendo e cantando o que queria e o que queríamos ouvir: música!

“Quando olhaste bem
Nos olhos meus
E o teu olhar
Era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei me debrucei
Sobre o teu corpo
E duvidei
E me arrastei
E te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito
Teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta…”

 

 

Elis a maior entre as maiores em todos os tempos

Essa época de ouro da música brasileira nos trouxe e nos privilegiou com cantores e cantoras da melhor qualidade. Gente que jamais será desbancada por outros. Não há como. Não vamos ficar citando nomes, pois são muitos. Foram muitos.

Louve-se, também, a qualidade dos compositores que vão desde Lupiscínio, Donga, Cartola, Evaldo Gouveia, Jair Amorim que compuseram músicas que consagraram os cantores e cantoras daqueles anos.

E aí chegaria o tempo de conhecermos Maysa, que cantava por que gostava de cantar. Não dependia financeiramente da músicas para viver. Cantava por prazer.

Maysa Matarazzo

“Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim

Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí…”

 

 

Quem ouviu e conheceu Elis Regina e Maysa Matarazzo, sabe bem como e por que faleceram precocemente. Faleceram em pleno e total reinado da qualidade técnica.

Nada temos com a vida pessoal desses gênios musicais, muito menos com a vida e o comportamento pessoal dos atuais cantores e cantoras. Nosso tema se prende exclusivamente à qualidade vocal e na maioria das vezes à qualidade interpretativa.

Os cantores e cantoras de hoje nada mais fazem que mostram a bunda

O momento atual da música brasileira, principalmente no que tange às apresentações com imagens pelo sistema de televisão é ridículo. Péssimo. Sem qualidade nas letras, sem qualidade interpretativa e com enorme apelo para o sexo.

Nada contra o sexo. Muito pelo contrário. Apenas não concordamos com o que é mostrado na televisão em qualquer horário da programação.

 


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