Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Leonardo Dantas - Esquina quinta, 03 de janeiro de 2019

PRESÉPIO DOS VALENÇA, UM PATRIMÔNIO DO RECIFE

 

 
PRESÉPIO DOS VALENÇA, UM PATRIMÔNIO DO RECIFE

No Natal do Recife, até recentemente, uma manifestação da segunda metade do século XIX permanecia viva graças aos esforços da Família Valença, que na semana que passou viu partir um dos seus baluartes: Raul Valença Filho.

Trata-se do Presépio dos Valença, iniciado no Sítio dos Valença, no bairro da Madalena, no início da segunda metade do século XIX e mantido pelos descendentes dos Irmãos Raul e João do Rego Valença, com mais de 154 anos de atividades!!!

O Presépio dos Valença, que chegou a ser preservado em vinil pela Gravadora Rozenblit, em produção de Aldemar Paiva, permaneceu até 2016 com todo o brilho do seu figurino, belas pastoras e muita dedicação dos filhos e netos dos irmãos Raul e João do Rego Valença.

Vejamos o nos diz a bibliotecária Virginia Barbosa (pesquisaescolar@fundaj.gov.br) da Fundação Joaquim Nabuco, sobre a tradicional manifestação recifense: “Os instrumentistas e compositores João Vitor do Rego Valença e Raul do Rego Valença, filhos de João Bernardo do Rego Valença Filho e Maria Martins do Rego Valença, nasceram no bairro da Madalena, cidade do Recife em 2 de abril de 1890 e 7 de agosto de 1894, respectivamente. Formaram uma dupla expressiva da música do Carnaval de Pernambuco e ficaram conhecidos em todo Brasil como Irmãos Valença.

A família Valença ficou famosa por conta da tradicional opereta natalina O Presépio dos Irmãos Valença, encenada pela primeira vez no Recife, em 1865, pelo casal João Bernardo do Rego Valença e Dona Ana Alexandrina do Rego Valença, avós de João e Raul, no Sítio dos Valença, que fica no bairro da Madalena. A origem do Presépio é de Aracati, Ceará, e veio para o Recife por intermédio de Dona Alexandrina. Interrompidas as encenações em 1880 e 1900, João e Raul reativaram a opereta em 1910. O Presépio passou por muitas dificuldades para manter suas apresentações. Atualmente, está na sua sexta geração e é encenado restritamente para a família e amigos.

João Vitor, com apenas oito anos, aprendeu piano e, mais tarde, teve aulas de solfejo. Raul, aos 20 anos, estudou violão. Ambos continuaram seu aprendizado como autodidatas. Sem dúvida, o Presépio que era encenado em sua casa influenciou os irmãos na composição de músicas para teatro, comédias, marchas juninas, carnavalescas e maracatus.

Em 1924, junto com primos e amigos, fundaram uma sociedade teatral, o Grêmio Familiar Madalenense. Foi nessa época que compuseram as suas primeiras músicas. Iniciaram com a opereta Espinho de rosa (1924), logo depois, as comédias musicadas Gato escaldado, Cartazes de amor, Coração de violeiro (opereta regional).”


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 27 de dezembro de 2018

A CALUNGA DE ANGOLA NOS MARACATUS DO RECIFE

 



O embaixador Alberto da Costa e Silva, que por muitos anos serviu na Embaixada do Brasil em Lisboa, ao escrever o seu livro A Enxada e a Lança – A África¹ antes dos portugueses , veio revelar aspectos vários ligados a manifestações brasileiras de origem africana. No seu livro, todas as suas etnias antes dos Descobrimentos, aparecem aos olhos do leitor interessado em tão fascinantes temas, hoje presentes em nosso mundo contemporâneo. Nas suas 768 páginas, o livro estuda cada uma das regiões com os seus respectivos costumes, lendas e tradições, bem como os vários povos que ali habitavam.

De especial interesse para nós, que há tantos anos estudamos a Instituição dos Reis do Congo e sua presença nos maracatus do Recife, é a forte influência do culto da Calunga entre os ambundos de Angola, guardada como objeto sagrado e poderoso pelos cabeças de certas linhagens.²

No seu Dicionário Kimbundo-Português³, A. de Assis Júnior define o adjetivo kalúnga por “Eminente.; Insigne; tratamento equivalente a Excelência; Eminência; Senhor; Fidalgo que tem honras de grandeza; pessoa de alta gerarquia. Grande. Incomensurável. Infinito”. Como substantivo, kalúnga: “massa líquida que circunda os continentes, o Oceano”. Na Mitologia, kalúnga seria “Deus”; na sua acepção “– ‘a-ngombe”, seria o “Deus da Morte; a própria Morte; o Além; a Eternidade; uma das três deusas que fiavam e cortavam o fio da vida”; na acepção de “– Samba”, seria o “Deus da família, da vida; o maior dos Deuses”.

Calunga de Angola

Explica o embaixador Alberto da Costa e Silva:

“Segundo a lenda, o herói civilizador ambundo, Angola Inene, teria trazido de terras do Nordeste ou, conforme outras versões, do mar, as lungas (ou malunga, que é plural em quimbundo da palavra). Esta última origem seria o resultado de interpolação europeia, do traduzir equivocado de Calunga, ‘as grandes águas’, por oceano Atlântico, e contrasta com o papel agrário da escultura de madeira, ligada aos ritos de chamar a chuva e da fertilidade. As ‘grandes águas’ podem ter sido um dos afluentes do Zaire ou qualquer outro lago ou rio. Os europeus além disso, interpretaram Calunga como uma alta divindade e talvez tenham contagiado com este novo conceito as crenças ambundas. (…) A Calunga tornou-se assim, e desde há bastante tempo – a contar do fim do século XIII? -, fonte de poder político e de uma organização social fundada na terra, num sítio preciso, e não apenas na estrutura de parentesco. Muito embora tenha sido depois suplantada, em quase toda parte, por novos símbolos da centralização estatal, persistiu como emblema dominante no baixo Lui e ligada ao nome de numerosos ancestrais e fundadores de reinos, bem como aos títulos de vários sobas. Entre os cubas houve um Calunga; Calala Ilunga foi o herói civilizador dos lubas; os quiocos possuem um Calunga entre os seus maiores; os povos do sul do lago Maláuu dizem que Calunga lhes trouxe as novas instituições; a palavra aplica-se entre os lundas, ao senhor, ao chefe, ao rei, e, entre os congos, era, a um só tempo, o título mais comum dos quitomes, uma grande extensão de água e a vasta corrente mítica a separar as duas montanhas que formavam o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A boneca, com o seu nome, atravessou o Atlântico e sobrevive nos maracatus brasileiros”.

“Cada lunga vivia num determinado curso d’água. E era guardada por uma linhagem, cujo chefe conhecia o segredo da comunicação com as forças espirituais que a boneca continha. Essa linhagem sobrepunha-se às demais e seu cabeça possuía autoridade territorial sobre toda a área banhada pelo riacho ou pedaço de rio onde morava a lunga. Era ele quem alocava as terras a novas famílias que para ali quisessem mudar-se e, paulatinamente, senhor das chuvas e da fertilidade da terra, passou a receber tributos e a concentrar riqueza e poder. Estabeleceu-se também uma hierarquia entre os vários guardiães de calungas: o custódio da estatueta do rio principal era mais importante do que o dos riachos tributários, a graduação da autoridade fazendo-se conforme a hidrografia”.

A Calunga do Recife

 

No Recife a Calunga, também chamada de boneca, se liga ao cortejo das nações africanas, do qual se originou o nosso maracatu, segundo esclarece a mesma fonte: “Mantendo-se em segredo, os vínculos entre grupos ambundos, num segredo auxiliado pela ignorância dos senhores de escravos, tinham os chefes vendidos [escravos] de mostrar a fonte do seu poder – e já agora também penhor de unidade do grupo ao Brasil –, a calunga”.

Até os nossos dias a calunga faz parte do ritual do maracatu, encarnando nos seus axés a força dos antepassados do grupo. Em sua honra é cantada a primeira toada do maracatu – ainda dentro da sede quando a calunga passa das mãos da rainha para outras mãos, cada qual dançando um pouco com a calunga, antes de passá-la adiante –, sendo levada às ruas pela dama-do-paço (uma espécie de conselheira segunda pessoa da rainha) e em sua honra é também cantada a última toada, quando o préstito se recolhe à sede.

As calungas, quase sempre confeccionadas em madeira escura, podem ser de um ou outro sexo, muito embora sejam sempre tratadas no feminino, representando, por vezes, ascendentes africanos ou pessoas ligadas à história do próprio grupo. No caso excepcional, uma calunga tem o seu nome ligado a um membro da Família Real Brasileira: Dona Isabel, do Maracatu Leão Coroado, homenageia a Princesa Isabel que, em 13 de maio de 1888, assinou a Lei Áurea extinguindo a escravidão negra no Brasil.

São designadas pelos nomes de iniciação em cada grupo: Dona Emília, Dona Leopoldina e Dom Luiz, no Maracatu Elefante; Dona Clara e Dona Isabel, no Maracatu Leão Coroado; Dona Joventina, no Maracatu Estrela Brilhante; Dona Inês e Dona Júlia, no Maracatu Porto Rico, esta última uma homenagem a D. Santa que fora rainha do Maracatu Elefante.

Sobre o assunto, informa Guerra-Peixe, no seu Maracatus do Recife:

Das bonecas (calungas)do Elefante, Dona Emília parece ser a que recebe maiores atenções. Dedicada a ela há ocasião para a dança especial, quando passa pelas mãos de todas as baianas do cortejo; a ela são consagrados os cânticos mais “fortes”; é essa a principal boneca levada à porta da igreja de N.S. do Rosário [dos Homens Pretos de Santo Antônio]; com ela o Maracatu Elefante dança diante dos terreiros visitados. E é nas canções oferecidas a Dona Emília que os músicos executam o ritmo “de Luanda” – o toque “para salvar os mortos”, os “eguns”, como dizem. À mesma calunga, finalmente cabem as designações: “Princesa Dona Emília”, “Princesa Diamante” e “Princesa Pernambucana”, indiferentemente.

Dom Luís “representa um rei africano”, sendo por isso considerado como “rei do Congo”, circunstância por que é nomeado de uma ou outra forma.
O certo, porém, é que as calungas, quaisquer delas, como bonecas que “representam” os ancestrais africanos, é um registro repetido em diversos maracatus tradicionais.

Os ascendentes africanos ou não, invocados nas bonecas, constituem um ponto que carece ser estudado por pessoa credenciada como frisamos antes. Avançando, porém, um pouco nessas questões, seria oportuno perguntar se: “Princesa Pernambucana” não é uma reinterpretação originada dos problemas dos escravos? – diante das reprimendas às suas recordações oportunas, lembradas por Pereira da Costa. Tal como se verificou no panteão afro-brasileiro – originando as identificações dos orixás com os santos católicos, já em parte assinaladas pelos estudiosos – talvez o mesmo ocorresse com as calungas. As informações sobre Dom Luís – “um rei africano” e “rei do Congo” – parecem resultar de reminiscências da instituição do Rei do Congo estabelecida entre nós. Vejamos os dizeres de um cântico:

A bandêra é brasilêra
Nosso rei veio de Luanda
Ôi, viva Dona Emília
Princesa Pernambucana

Nas vestimentas das calungas predomina o branco, a cor simbólica ou aledá de Orixalá, no panteão afro-recifense. Esse elemento concorda com o que apontamos sobre o principal totem do Maracatu, o elefante “o primeiro animal que Orixalá montou”.4

Quando das chuvas que inundaram o Recife em julho de 1975, provocando deslizamentos de barreiras nos morros da zona norte, no Córrego do Cotó, em Água Fria, o velho Luiz de França, principal responsável pelo Maracatu Leão Coroado, nascido em 1901, mas que nunca quis ser o rei daquele grupo, saiu de casa apenas com as calungas – Dona Clara e Dona Isabel –, não se importando com os comentários dos curiosos que, não entendendo o significado do seu gesto, censuravam “o velho que dormia agarrado com duas calungas de maracatu”.

Com a morte de Dona Santa, em 1962, a original Nação do Elefante deixou de desfilar, e suas três calungas, juntamente com outros pertences, estão hoje recolhidos ao Museu do Homem do Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.

Naquele ambiente convencional de museu, restam as lembranças daquela boneca que, empunhada pela dama-do-paço, vinha às ruas do Recife mostrar a força da nação do Elefante ao som dessas loas:

Princesa Dona Emília
Pra onde vai? – Vou passeá
Eu vou para Luanda
Vou quebrar saramuná.
Eu vou, eu vou
Eu vou para machá
Eu vou para Luanda
Eu vou para Luanda
Vou quebrá saramuná.

A boneca é de sê!
É de seda e madeira
A boneca é de sê!
É de seda e madeira.
A boneca é de sê!

É de seda e madeira.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 20 de dezembro de 2018

O ALCÁCER DA BOA VISTA

 

 
O ALCÁCER DA BOA VISTA

O topônimo Boa Vista surge entre nós em 1643, quando da construção pelo conde João Maurício de Nassau de sua casa de recreio, chamada inicialmente de Casa da Bela Vista, erguida em terreno por ele adquirido à Companhia das Índias Ocidentais, com sua frente voltada para o poente, localizado na cabeceira da ponte de madeira sobre o Rio Capibaribe que ligava a cidade Maurícia ao continente.

Casa da Boa Vista (Barlaeus)

O alcácer da Boa Vista (fortaleza, castelo, palácio fortificado, de origem moura, residência de governador, alcaide ou mesmo de rei) como o denominava Gaspar Barlaeus, era um “local aprazível, alegrado também por jardins e piscinas”.

Naquele remanso, descansava Nassau, rodeado pela vista das suas construções e longe da pátria e das terras de tantos condes e príncipes seus parentes, gozando da felicidade que achara no ultramar. Contemplava astros nunca vistos pela sua Alemanha; admirava a constância de um clima dulcíssimo e mostrava aversão à intempérie da zona temperada onde vivera. (…) Enfim meditando, encerrava dentro do âmbito da Boa Vista o múltiplo benefício do céu, da terra e do ar, a República, o inimigo, os índios, os holandeses, as conveniências e proveitos das Províncias Unidas.

Como bem demonstra a gravura de Frans Post no livro daquele latinista (Amsterdã, 1647), o novo edifício, com seus quatro torreões e um elevado pavilhão central, com três janelas em cada uma das frentes, apresentando na face oeste uma visível legenda legenda “Anno 1643”, possuía magnífica visão do continente, funcionando como forte militar, graças a sua posição estratégica na cabeceira da ponte sobre o Capibaribe.

 Boa Vista, 1643 (Frans Post)

Com a expulsão dos holandeses, em 1654, foi a Casa da Boa Vista doada à ordem carmelita para que nela instalasse o hospício do Recife. Em carta dirigida ao príncipe regente, em 1674, comunicam os “religiosos moradores no convento do Arrecife de Pernambuco” que “passa de sete anos que estão moradores naquele lugar” e terem dado início à construção do seu convento e instalação de uma pequena comunidade “em terras do Arrecife”, tendo entre seus primeiros habitantes o frei Francisco Vidal de Negreiros, filho do mestre-de-campo André Vidal de Negreiros, então no governo da capitania de Pernambuco.

Para se fixarem em definitivo na povoação do Arrecife, tiveram esses carmelitas de enfrentar uma conturbada história de lutas com a Câmara de Olinda e com os seus próprios irmãos de ordem do Convento de Santo Antônio do Carmo; estes últimos, seguidores da Reforma Turônica, enquanto os do Recife permaneciam na vida religiosa contemplativa, sendo por isso chamados de “observantes”. Tais desavenças em muito contribuíram para o retardamento das obras de construção do Convento do Recife, continuamente suspensas tanto pelo governo da capitania quanto pela própria coroa portuguesa. O cerne das desavenças, porém, era bem outro e prendia-se aos conflitos entre a nobreza rural, que dominava a Câmara de Olinda, com a burguesia do Recife, os quais em 1710 vieram dar causa ao que depois se convencionou chamar de Guerra dos Mascates (1710).

Em 1679, como se queixavam da situação de insalubridade da Casa da Boa Vista, vieram receber os carmelitas do Recife, em 5 de maio daquele ano, uma área com 100 braças de terra de salgado, isto é, de terras alagadas pela maré alta, em torno do primitivo hospício, para nelas construir algumas oficinas e o seu quintal. Nas terras anteriormente doadas, já tinham os frades construído o seu primeiro convento, aproveitando grande parte da Casa da Boa Vista, com uma capela dedicada a Nossa Senhora do Desterro e uma senzala.

Padeciam os frades de grande desconforto na primitiva Casa da Boa Vista, quando o capitão Diogo Cavalcanti Vasconcelos, senhor do Engenho São Francisco da Várzea, casado com D. Catarina Vidal de Negreiros, filha do governador André Vidal de Negreiros, veio em auxílio das obras do seu cunhado, frei Francisco Vidal de Negreiros. Inicialmente propunha-se o benfeitor a assumir todo o ônus de construção da capela-mor de uma nova igreja, a ser erguida nas proximidades da primitiva. Para isso comprometeu-se em escritura pública, de 18 de agosto de 1685, a construir às suas custas a capela-mor da nova igreja tendo por orago Nossa Senhora do Monte Carmelo, em troca do direito de ter sua sepultura naquele local, juntamente com sua mulher e seus herdeiros, bem como alguns sufrágios por sua alma. Para os serviços, foi contratado o capitão Antônio Fernandes de Mattos, construtor das mais importantes edificações do Recife no final do século XVII.

O túmulo do doador e de sua mulher, localizado na capela-mor ao lado do Evangelho, era assinalado por uma lápide, datada de 28 de agosto de 1703, que em 1898 veio a ser removida para o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano.

Com o desaparecimento do primitivo convento, surgiram no seu local as ruas do Cano ou da Paz, Palma e Concórdia, passando esta área a ser denominada de Carmo Velho.

Informa José Antônio Gonsalves de Mello que, em 1696, onze ou doze anos do início das obras, a igreja estava com algum adiantamento, pois aos 24 de abril desse ano estavam concluídos os serviços da capela-mor e de parte da Capela do Santíssimo Sacramento, esta última, objeto de instrumento de doação em favor dos irmãos da recém-criada Ordem Terceira do Carmo:

A capela que está começada com todos os alicerces e parede da parte do Evangelho, vindo da capela-mor para o corpo da igreja com todas as mais terras em que está, sobre a horta do alferes Pascoal Coelho de Freitas para nela fazerem o consistório, sacristia, capela e altares e todas a mais terra que for necessária à dita irmandade e exercícios dela e sepulturas e no enquanto, por estar despovoado o lugar doado….

À frente dos trabalhos continuava Antônio Fernandes de Matos, que veio a falecer em 1701. As obras, porém, arrastaram-se até 1767, data inscrita em um medalhão, no seu frontispício, abaixo do nicho da padroeira. O templo possui três capelas e seis altares, cada um com arquitetura particular e distinta, com ornamentação de talha, e todos de branco e ouro.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 13 de dezembro de 2018

VEGETAIS EXÓTICOS DE PERNAMBUCO

 

 

Os jardins das ordens religiosas serviram para aclimatação de vegetais exóticos, transplantados do Oriente, da África e da própria Europa, que, depois de adaptados, passaram a dar um novo colorido à paisagem pernambucana, a exemplo do coqueiro, da bananeira, da cana-de-açúcar e de tantas outras espécies que aqui vieram misturar-se com a nossa flora nativa.

 

 

Mangueiras, coqueiros,
cajueiros em flor,
cajueiros com frutos
já bons de chupar…

Mangabas maduras,
mamões amarelos,
que amostram, molengos,
as mamas macias
pra gente mamar…

É o colorido da flora pernambucana, nos versos do poeta Ascenso Ferreira, in Trem de Alagoas, onde se misturam vegetais nativos (mangabas, cajus) com outros exóticos (mangas, mamões).

Na sua Relação das Praças Fortes do Brasil, em manuscrito datado de 1609, Diogo de Campos Moreno, assim descreve a paisagem em torno da Vila de Olinda:

Esta terra, junto a sua povoação, não tem boas águas. As melhores que bebem vêm de longe e por uma levada de uma légua se trouxe à vila com grande despesa. O rio [….] Beberibe com as invernadas de todo modo se desbarata, no inverno com cheias e no verão por mal limpo e sempre a água falta; contudo ao redor da vila não faltam umidades de fontes grossas e que criam muitas hortas de boa hortaliça e todas as sortes de frutos de espinho e das cousas do Reino, melões, pepinos, abóboras e outros legumes de toda a sorte e muito. Nela se criam e dão também toda a sorte de gados miúdos e grossos e de toda a criação de aves domésticas, de maneira que sendo Pernambuco uma escala tão grande de tantas gentes forasteiras que comem e não criam e que para o mar levam tantas cantidades, nunca falta nada do que se busca, mais ou menos caro conforme ao tempo.

A levada de uma légua a que se refere o cronista foi obra do governador-geral Diogo Botelho, ao tempo em que residia em Olinda (1602–03), estando consignada no mapa desenhado por Cornelis Sebastianszoon Golijath, cartógrafo do conde João Maurício de Nassau, em 1648.

 

Ainda no início do século XVII merece destaque a descrição de um companheiro de Daniel de la Touche, Monsieur de la Ravardière, que esteve em Pernambuco entre os meses de maio e julho de 1616, após a capitulação do Maranhão. Após sua curta temporada em Pernambuco, La Ravardière foi embarcado para Lisboa, onde esteve preso até meados de 1619. As observações desse cronista anônimo integram o “Discurso sobre o tema da tomada de Pernambuco, dedicado aos Senhores Diretores da Companhia Ocidental”. Esta “Memória”, sem assinatura ou data, foi publicada no tomo XVI do Mercure François, ou Suite de l’Histoire de nostre temps sous le Regne dus Très Catholique Roy de France et de Navarre Louys XIII, editada em Paris por Etienne Richer em 1632, p. 492–505.

Referindo-se a Pernambuco, o memorialista faz, dentre outras, a seguinte observação:

…Ali, produz-se sempre as cousas necessárias à vida e num clima tão igual que nem os habitantes nem os estrangeiros recebem qualquer injúria do tempo, deleitando-se com o gozo da doçura e bondade do ar e com a contemplação da variedade do que a natureza produz, fato tão digno de admiração quanto agradável de narrar. Mas o que faz as cousas mais agradáveis é que agora se encontra comumente no país o que lhe era exótico no passado. Pois que a curiosidade dos portugueses, querendo todas as cousas na medida do seu gosto, levou-os a transferir para ali muitas plantas estrangeiras, tanto da Europa quanto da África; assim o trigo e a cevada desenvolvem-se muito bem e em grande abundância do Rio de Janeiro até São Vicente. As laranjas e os limões de diversas espécies são tão vulgares por todo o país, que são encontrados comumente nas matas, ultrapassando em bondade os de Portugal; os figos, as uvas e as romãs dão duas novidades por ano. As uvas são encontradas tão-somente nos pomares, pois há proibição expressa de fabricação de vinho, para não estorvar o que vem das Canárias, que é ordinariamente vendido em todo aquele país. Há, ainda, tâmaras tão boas quanto as de África, também em pomares particulares, como o dos Jesuítas de Pernambuco. Os melões frutificam todos os meses e os marmelos aí crescem naturalmente. Quanto aos frutos do país, há grande abundância deles, muito diversos dos nossos. Cultivam ordinariamente a mangaba, que é um fruto quase semelhante ao pêssego, mas sem o caroço, tendo somente algumas pequenas sementes achatadas; há, também, morguoyapero, maracujás, ananás, araticuns, todos frutos excelentes, mas a mangaba excede a todos em bondade .

Quanto aos legumes e hortaliças há couves e a beldoroega, que são comuns, as ervilhas, os feijões, as batatas [peittetes] e as abóboras de diversas espécies nos seus pomares. Como pão ordinário dispõem do milho graúdo e de uma raiz, da qual fazem a farinha, chamada de Mandioca, base e principal alimento dos índios, sem dúvida muito boa e bem sadia para comer. Tem, ainda, a árvore chamada do Caju, com o qual fazem uma espécie de vinho, muito bom, e, em certos lugares, a árvore que produz os cocos, que eu creio foi trazida de África.

Toda a costa do mar é muito piscosa, como o são também todos os rios, que produzem excelentes peixes. O peixe-boi é muito comum, principalmente para os lados do Maranhão, no rio que ali existe. Muita caça há por toda a parte, veados e javalis andam aos bandos; o javali é semelhante ao nosso, exceto que o daquele país tem um umbigo no dorso. Enfim, esta é uma terra onde não se pode morrer de fome.

O pomar sobre o qual se referia o memorialista anônimo era o do Colégio da Companhia de Jesus em Olinda, sobre o qual fizera observações o padre Fernão Cardim, em 1584, quando aqui esteve: “…é o melhor e mais alegre que vi no Brasil, se estivera em Portugal também se chamara jardim”.
O memorialista, ao que parece, também conheceu a Quinta da Madalena (1615), nas proximidades de Olinda, onde os padres cultivavam mangabeiras.

Também os franciscanos de Olinda tinham aqui o seu jardim que, a exemplo do que dispusera o Rei D. João II em Évora (1494), emendava com a horta e o pomar, já cultivados nos fins do século XVI pelo Frei Pedrinho (Frei Pedro de Mealhada). No final do século XVII, outro franciscano, Frei Antônio do Rosário (1647–1704), com base nas observações feitas em Pernambuco, escreveu no Convento Franciscano de Nossa Senhora das Neves de Olinda o livro Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia, publicado em Lisboa em 1702, no qual relaciona 36 árvores de frutos aqui cultivadas, algumas delas exóticas, mas perfeitamente aclimatadas.

No período holandês, o conde João Maurício de Nassau fez plantar no Recife, em 1642, um grande jardim recreio, que era também um pomar e dispunha de alguns animais vindos das mais diferentes partes. O jardim veio a servir de “laboratório” a membros de sua comitiva, notadamente o médico Willem Piso (1611–1678), o botânico, também cartógrafo e astrônomo, George Marcgrave (1610–1644) e o artista Albert Eckhout (c1610- c 1664). Os dois primeiros são autores da Historia naturalis Brasiliae etc., impressa em Amsterdam em 1648, na qual são publicados 429 desenhos, em grande parte retratando a flora e a fauna, bem como nativos, do Nordeste do Brasil.

De Albert Eckhout são a maioria dos desenhos reunidos nos quatro volumes que compõem o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Coleção de desenhos policromados, em sua maioria, de autoria dos artistas da comitiva do conde João Maurício de Nassau, enfocando elementos de história natural, atualmente encontrados na Biblioteca Jagelônica de Cracóvia (Polônia), ainda não publicados em sua totalidade. O conjunto é formado por 417 desenhos, em sua maioria aquarelados, retratando animais aquáticos, aves, mamíferos, répteis, insetos, aranhas, plantas, flores, frutos e catorze figuras humanas.

Aos quatro volumes do Theatrum, sob os títulos, Icones Aquatilium, Icones Volatilium, Icones Animalium e Icones Vegetabilium, somam-se dois outros, conhecidos como “Manuais”, com desenhos (peixes, aves, animais) atribuídos a George Marcgrave, e um terceiro, Miscellanea Cleyeri, com seus desenhos (pessoas, animais, aves e plantas) atribuídos a Albert Eckhout. Sobre o tema Petronella Albertin publicou sua tese de mestrado em História da Arte, apresentada junto à Vrije Universiteit Amsterdam (1981), sob o título: “Arte e Ciência no Brasil Holandês. Theatri Rerum Naturalium Brasiliae: Um estudo dos desenhos”.

Na descrição de um contemporâneo, Frei Manuel Calado, in O Valeroso Lucideno, publicado em Lisboa em 1648,

No o meio daquele areal estéril, e infrutuoso plantou um jardim, e todas as castas de árvores de fruto que se dão no Brasil, e ainda muitas que lhe vinham de diferentes partes, e a força de muita outra terra frutífera, trazida de fora e barcas rasteiras, e muita soma de esterco, fez o sítio tão bem acondicionado como a melhor terra frutífera; pôs neste jardim dois mil coqueiros, trazendo-os ali de outros lugares, porque os pedia aos moradores, e eles lh’os mandavam trazer em carros, e deles fez umas carreiras compridas, e vistosas, a modo da alameda de Aranjués e por outras partes muitos parreirais e tabuleiros de hortaliças e de flores, com algumas casas de jogos, e entretenimentos, aonde iriam as damas, e seus afeiçoados a passar as festas no verão, e a ter seus regalos, e fazer suas merendas, e beberetes, como se usa em Holanda, com seus acordes instrumentos ( … ). Também ali trazia todas as castas de aves, e animais que pôde achar, e como os moradores da terra que lhe conheceram a condição e o apetite, cada um lhe trazia a ave ou o animal esquisito que podia achar no sertão, ali trazia os papagaios, as araras, os jacis, os canindés, os jabutis, os mutuns, as galinhas de Guiné, os patos, os cisnes, os pavões, os perus e galinhas grande número, tantas pombas, que não se podia contar, ali tinha os tigres, a onça, a suçuarana, o tamanduá, o búgio, o quati, o sagüim, o apeteá, as cabras do Cabo Verde, os carneiros de Angola, a cutia, a paca, a anta, o porco javali, grande multidão de coelhos, e finalmente não havia coisa curiosa no Brasil que ali não tivesse, porque os moradores lh’as mandavam de boa vontade.

A partir da segunda metade do século XVII, foram introduzidos no Brasil alguns vegetais exóticos transplantados do Oriente.

É conhecida a Ordem Régia de 1677 determinando ao Vice-Rei da Índia a remessa para o Brasil de plantas, estacas e sementes, de canela, cravo, pimenta, noz-moscada e gengibre, dada ao conhecimento ao governador de Pernambuco, Aires de Souza Castro, em 1678. Com esses vegetais vieram as mangueiras e as jaqueiras, em 1682, seguindo-se de outras plantas hoje integradas à nossa paisagem. Em 1797 e 1798, o Conde de Linhares, D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro português, empenhava-se na introdução de novos vegetais, que contribuíssem para o desenvolvimento da agricultura, recomendando estabelecer, com a menor despesa possível, um Jardim Botânico em que se cultivassem plantas “assim indígenas como exóticas”, segundo assinala José Antônio Gonsalves de Mello.

Entretanto, somente em 1811 viria esse Jardim Botânico a ser estabelecido, quando para aqui veio encaminhada grande quantidade de vegetais recolhidos da Guiana Francesa, que o governo português conquistara como represália à invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão.

Do jardim daquela possessão, chamada de “La Gabrielle”, vieram para Pernambuco e foram plantadas em Olinda variedades de plantas, algumas já aqui existentes, como a caneleira, a pimenteira, o girofleiro, e outras desconhecidas, como a fruta-pão, a caramboleira, o sapotizeiro, a pinheira, a groselheira da Índia, a nogueira de Bancur, a cássia amarga, a jalapa.

O Jardim Botânico de Olinda teve importante papel na divulgação desses vegetais e de outros que nele foram sendo introduzidos desde 1811, quando ele teve início. Em 1817 Tollenare viu aí mudas de cacau e cana-de-açúcar de Caiena (ou caiana, como é vulgarmente conhecida). Sem referência específica de quando foram plantados no Jardim, consta contudo em 1839 e 1840 que já ali eram distribuídas mudas de palmeira-real, cipreste, chá-da-Índia, fruta-pão, de massa e de caroço (este último difícil hoje de se encontrar), e outras. Dessa distribuição beneficiaram-se muitos sítios recifenses e propriedades rurais diversas de Pernambuco (…) – além das mudas remetidas para outras províncias brasileiras e para fora do Brasil.

Nesse Jardim funcionou um curso de Botânica e de Agricultura (1829), do qual era professor o cirurgião pernambucano Joaquim Jerônimo Serpa, no qual se inscreveriam muitos estudantes do Curso Jurídico de Olinda.

Em 1845 foi ele mandado extinguir, sendo o seu terreno a princípio alugado e mais tarde vendido.

A importância do Jardim Botânico de Olinda foi depois ressaltada por Filipe Mena Calado da Fonseca que, em carta ao Diario de Pernambuco, publicada na edição de 7 de novembro de 1854, chama a atenção para a divulgação entre nós da “grama de Angola”, popularmente conhecida como “capim de planta”, que fora transportada das margens do Rio Bango (Angola) para o Brasil em 1811. Além desta, outras espécies foram vulgarizadas entre nós, como a pimenta da Índia, o fruta-pão, a tamareira, o bilimbi, a carambola, o sagu, o sapoti, dentre outras.

Ainda sobre a importância dos jardins de aclimatação, vale lembrar a publicação do naturalista Manuel Arruda da Câmara (c 1752–1811), Discurso sobre a utilidade de jardins nas principais Províncias do Brasil (Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1810).

Em sua publicação Arruda da Câmara apresenta uma “lista das plantas que merecem ser transplantadas e cultivadas”. Da Ásia: árvore do pão, salepo, sagu, chá, sene, ruibarbo, escamônea, batatas do Japão, gota gama, loureiro, cássia, verniz da China, verniz do Japão, Khola buu, peônia, évano, bambu, árvore das camisas, sangue de dragão, santalino, árvore do sebo, laca. Da África: baobá, tamareira, matiboeira, pau escarlate, tacula, canume-nume, imbondeiro, agraiá, grama de Guiné [destinada à alimentação do gado na zona do semi-árido]. Da Europa: oliveira, castanheiro, nogueira, pinheiro, pinheiro manso, morangos, ameixeiras, damasqueiro ou abricó, cerejeira, ruiva dos tintureiros, rapa língua, didadeira, malva, verbasco. Da América Sententrional: falva cássia, magnólia maior, árvore da cera, palmeira real. Do México: jalapa. Da Nova Holanda (Guiana Holandesa): mahogani [eucalipto]. De Caiena: árvore do pão, cravo da Índia, pimenta Zeilônica, noz moscada. Do Pará e Maranhão: cravo do Maranhão, castanhas do Maranhão, pixurim, abacate, bacuri, bacaba, abacaxi [bromélia cultivada pelo autor em Goiana-PE e difundida por todo Brasil], maracujá-mamão. Do Ceará: piqui, buriti, maracujá-suspiro, mandapuçá, coco naia, mamangaba. De Pernambuco: carapitaia, bilros, canela do mato, catinga branca, carnaúba ou carnaíba, anil de Pernambuco, anil trepador, erva lombrigueira ou arapabaca, urucu, pitombeira, macaíba ou macaúba, imbuzeiro, piranga, caroá, caroatá, umari, ipepacuanha preta, ipepacuanha branca, contra-erva, contra-erva de folha longana, angelim, batata de Purga, papo de peru, parreira brava ou abutua, mangabeira, oiti coroia [coró], oiti da praia, oiticica ou catingueira, gengiroba ou andiroba, caroba, caroba miúda ou casco de cavalo, barbatimão, almécega.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 29 de novembro de 2018

CONSTRUTORES DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO

 

CONSTRUTORES DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO

No século XVIII, uma verdadeira febre de construções tomou conta de Pernambuco, beneficiando particularmente a recém criada Vila de Santo Antônio do Recife, a capital Olinda e outras vilas do interior.

Além das ordens religiosas, desejosas e dotar os seus templos do que havia de melhor de criatividade dos artistas pernambucanos, nos centros urbanos as irmandades, ambiente de convívio social da sociedade de então, reuniam nos seus quadros as mais diferentes classes sociais.

Homens e mulheres, ricos e pobres, brancos e negros, escravos e libertos, procuravam cada um em suas irmandades o caminho da salvação e da vida eterna. Assim surgiram as mais diferentes irmandades, a começar da vetusta Santa Casa de Misericórdia de Olinda (1541), seguindo-se das Ordens Terceiras de São Francisco e do Carmo, da irmandade das Almas, das confrarias de pardos (Livramento e São José da Agonia), de pretos (Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Bom Jesus dos Martírios, Santa Efigênia), de militares (São João Batista e Nossa Senhora da Conceição), de clérigos (São Pedro), portuários (São Frei Pedro Gonçalves e Nossa Senhora Mãe dos Homens), comerciantes e comerciários (Senhor Bom Jesus dos Passos, Santíssimo Sacramento, Santa Cruz, Nossa Senhora do Terço, Bom Jesus das Portas), artistas (São José do Ribamar), músicos (Santa Cecília e Nossa Senhora do Livramento), além de outras cujas devoções se espalharam pelos mais recônditos recantos da capitania do açúcar.

A maioria dessas igrejas era construída, decoradas e reformadas a custa de donativos dos irmãos, impostos compulsórios e do trabalho de escravos, cedidos por seus senhores para serem utilizados como mão-de-obra não especializada, mas, por vezes, em atividades artísticas das quais eram dotados.
A presença de pretos escravos, entre os que se dedicavam à produção de obras de arte, é uma constante desde o século XVI.

No Processo n.º 2556 do Cartório da Inquisição de Lisboa, por nós consultado na Torre do Tombo, aparece a figura de José Mulato, escravo do engenho de Fernão Soares, que tinha a função de caldeireiro. Condenado a cumprir pena nas galés do reino, em 11 de outubro de 1595, com o nome de José Tomé. O processo revela ser ele natural de Beja (Portugal), filho do alcaide Gracio Santilhana com a negra Catarina, escrava de Álvaro Fernandes. Dos depoimentos se constata o seu bem engendrado plano de se emancipar do estado de escravidão, através de condenação às galés de Lisboa, por crime de blasfêmia e tempo determinado. pelo Tribunal da Inquisição instalado de forma provisória em Olinda (1593-1595).

Na verdade não foi pacífica a presença de pretos escravos trabalhando em obras artísticas das igrejas de Pernambuco, pois, servindo eles a determinado senhor, sua produção era obtida por preços irrisórios, comparados com a dos artistas liberais em sua grande maioria pertencentes à irmandade de São José do Ribamar da Vila de Santo Antônio do Recife.

Revela a professora Vera Acioli que, durante anos, em Pernambuco, os juizes e escrivães de ofícios negaram-se não só a examinar os escravos, como a deixar que eles trabalhassem nas suas oficinas, “sem embargo de que ordinariamente, eram eles bons oficiais de ofícios”.

Reclamações sobre esse procedimento dos juizes fizeram a Câmara determinar em 13 de novembro de 1756 “que os oficiais escravos, pardos, índios ou pretos, que se quisessem examinar, dirigissem os seus requerimentos por si ou por seus senhores, solicitando a competente carta, dando logo as providências necessárias se porventura os respectivos juizes se negassem a tais exames”.

Entendia a Câmara os prejuízos que aquela oposição acarretava para “os senhores dos escravos artistas, bem como ao público, porque as obras por eles produzidas eram as mais baratas, notando-se que, se eles trabalhassem nas oficinas dos forros, – tiravam para si uma terça ou quarta parte de seus jornais (soldos, ordenados), com grande prejuízo não só dos senhores como dos consumidores”.

A concessão de cartas de examinação, destinadas ao exercício da profissional do artista escravo, recebeu forte oposição de irmandade de ofícios, como a de São José do Ribamar do Recife, que no seu projeto de Compromisso (1770), anotado por José Antônio Gonsalves de Mello, assinala:

Determinava que mestre algum ensine cativos de qualquer qualidade, preto e pardo, e nem ainda sendo escravos dos próprios mestres de ofícios, pelo prejuízo que causam verem a numeridade de cativos que há de oficiais se não sujeitam a aprender os ofícios estes cativos à república e aos meninos brancos pobres desta terra, que por se não embaraçarem com eles, porque os ricos que têm muitos escravos a todos querem mandar aprender os ofícios para tirar o lucro à pobreza e desta sorte anda tudo mal governado’. Essa determinação não mereceu aprovação régia (1774).

Descrevendo Pernambuco no início do século XIX, o viajante inglês Henry Koster observa ser “a maioria dos melhores artesãos é de sangue mestiço” e que “os negros-crioulos são de um modo geral operários de todas as profissões, mas não chegam as altas classes sociais, agricultores e negociantes”.

Alguns têm acumulado consideráveis somas de dinheiro, possuem escravos aos quais ensinaram seu ofício ou fizeram aprender outras habilidades para que maior seja o rendimento. Os trabalhos desses escravos pertencem aos seus senhores, rendendo largos proveitos, porque a mão-de-obra é cara e aqueles que exigem certa perfeição são mais bem recompensados que os demais, cujos conhecimentos são de mais fácil aquisição. O melhor pintor de igrejas de Pernambuco é um negro, de boas maneiras e tendo perfeitamente o ar de pessoa importante, sem maiores assomos de vaidade.

Tratava-se do habilíssimo pintor, dourador e escultor sacro José Rebelo de Vasconcelos, que na época exercia o posto coronel do Regimento de Milícias dos Homens Pardos, sendo uma das figuras mais estimadas do Recife. Já em 1753, o Frei Manoel da Madre de Deos, pseudônimo de Soterio da Silva Ribeiro, lhe dedicara a Summa Triumfal, das festas em honra do “beato Gonçalo Garcia, pelos homens pardos de Pernambuco”.

Observa José Antônio Gonsalves de Mello , que a descrição ajusta-se a José Rebelo porque, que, em certa ocasião, quando num episódio com o governador de Pernambuco, este estranhou ser Rebelo um coronel, mas viver “do ofício de pintor”, e trabalhar e servir a quem melhor lhe pagava, tendo o artista respondido:

É verdade que uso da liberal arte de pintor, não de loja aberta como temerariamente informaram a Vossa Excelência, sim, no meu sobrado, e quando me apresento na rua é com o gravejo que me faço digno de todos me respeitarem. Vossa Excelência sabe bem que, quanto ao público, esta arte é uma das mais liberais, e eu devo certificar a Vossa Excelência, o que não ignora, que Francisco Vieira, pintor na cidade de Lisboa, depois de já se achar condecorado por Sua Majestade Fidelíssima com o Hábito de Santiago, ele sempre usou da arte de pintar.

Chama atenção para a atitude do artista, como sendo digna de registro, no que demonstra a altivez com que se refere ao exercício de sua arte “que deixava de ser mesteiral [indivíduo de profissão manual; artífice] para se apresentar como liberal, embora ainda se envaideça como os mercadores de Lisboa do século XVI ou os mascates do Recife do século XVII, de que sua atividade era realizada, não em loja aberta, mas em seu sobrado”.

Capela Dourada do Recife

Dentre outras obras, José Rebelo de Vasconcelos executou o painel central do Convento de Santo Antônio de Igarassu (1749), “os painéis dos santos que foram Irmãos da Ordem Terceira e estão colocados na Capela Dourada” (1758) e o forro da igreja da Conceição dos Militares do Recife (1779), esta última no dizer de Clarival do Prado Valadares uma “eloqüente decoração em talha, toda ela vertida no forro que circunda os painéis centrais”.

Observa Vera Acioli, que até o século XVIII “as atividades profissionais de pintor apareceram intimamente ligadas a outras e com elas, às vezes, se confundiram. Os pintores eram litógrafos, douradores ou prateadores, ourives, gravadores e aquarelistas. Com duplas ou triplas faces artísticas, alguns se tornaram pintores-escultores, pintores-douradores e pintores-músicos, privilégio da sua intuição e inspiração”.

Na verdade tratava-se de autodidatas, cuja inspiração do criar era buscada, na maioria das vezes, em impressos enviados de Portugal ou da Itália, produzidos no século XVII ou XVIII, que aqui eram utilizados em painéis como os representativos da Fé, Esperança, Constância e Caridade, existentes na Capela Dourada do Recife, e que o arquiteto Joaquim Cardozo viu a influência do pintor espanhol Murillo. Observa Vera Acioli que “as estampas de Demarne (1728), inspiraram as obras de Manoel da Costa Ataíde e os azulejos portugueses da Capela de Nossa Senhora da Conceição da Jaqueira, no Recife”.

Os trabalhos e a criatividade desses construtores da Memória das Artes em Pernambuco continuam a despertar a atenção até de observadores de outras nacionalidades, que, em nossos dias, se quedam extasiadas diante de exemplares do nosso barroco como aconteceu na cidade de Nova Iorque em 2002.

O altar-mor do Mosteiro de São Bento de Olinda, datado de 1783-1786 e cujo risco é atribuído ao beneditino português frei José de Santo Antônio Vilaça, que o projetou segundo a forma de um barroco tardio, numa transição do rococó para o neoclássico, foi a principal atração da exposição Brazil: Body and Soul [ Brasil: Corpo e Alma], realizada no Museu Guggenheim daquela cidade.

Para tamanha empreitada, fez-se necessário, além do desmonte do conjunto, a restauração de toda à talha dourada infestada por cupins, trabalho confiado aos conservadores do Laboratório de Pesquisa, Conservação e Restauração de Documentos e Obras de Arte (Laborarte) da Fundação Joaquim Nabuco (Recife). Para isso, fez-se necessário o desmembramento das 12 toneladas do conjunto, que mede 13,80 metros de altura, 7,80 metros de largura e 8,50 metros de profundidade, bem como sua divisão em 54 blocos, unidos por garras de aço inoxidável e possuidores de argolas em cada um deles, de modo a facilitar o seu transporte para qualquer exposição.

Além do restauro, foram introduzidos alguns reforços na estrutura do conjunto, como na alma de suas colunas, antes confeccionadas em cedro, que passaram a ser em maçaranduba, madeira infinitamente mais resistente a cupins e outros térmitas. Por ocasião das obras de restauração, foram usadas, no conjunto de sua talha dourada, lâminas de ouro de 22 quilates e efeitos visuais em laca.

Os trabalhos foram iniciados em 23 de janeiro de 2001 e se estenderam até 23 de agosto do mesmo ano, quando foi o conjunto transportado para o Museu Guggenheim de Nova Iorque. Entre 26 de janeiro e 1º de junho de 2002, o altar-mor do Mosteiro de São Bento de Olinda foi a peça mais visitada daquela exposição, tendo sido apreciada por um público estimado em 500 mil pessoas.

Retornando ao mosteiro olindense, foi novamente remontado pelos restauradores e solenemente instalado, com toda pompa e circunstância litúrgica, em 24 de outubro de 2002, em cerimônia presidida pelo novo abade, Dom Bernardo Alves da Silva, empossado na mesma data.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 22 de novembro de 2018

BRASIL HOLANDÊS: O PRIMOSOSO LIVRO DE GASPAR BARLAEUS, ILUSTRADO POR FRANS POST

 



Em maio de 1644, Frans Post já se encontrava de volta à Holanda, ocasião em que recebeu do Príncipe Frederico Henrique a importância de 800 florins, pela pintura de uma grande paisagem das Índias Ocidentais.

Em julho do mesmo ano, já estabelecido em Haarlem, fixa residência na Smeeststraat e dá início à gravação das ilustrações a serem utilizadas no livro de Caspar van Baerle, contando pormenores do governo de João Maurício de Nassau no Brasil (1637-1644). Essas gravuras em cobre, segundo Erik Larsen, podem ter sido gravadas pelo próprio Frans Post em conjunto com outros artistas, particularmente as 14 pranchas que aparecem assinadas e datadas: F. Post 1645.

Quando de sua estada em terras do Brasil (1637-1644), o Conde João Maurício de Nassau-Siegen fez reunir o material necessário para um amplo programa editorial a fim de divulgar esta parte do Novo Mundo para a Europa de então. Ao retornar aos Países Baixos, após sete anos em terras brasileiras, contratou os serviços do conhecido humanista Caspar van Baerle ou, como veio a ser conhecido, Gaspar Barlaeus (1584-1648), professor do “Athaeneum Illustre” de Amsterdã, o qual, apesar de nunca ter estado no Brasil, veio a ser autor do mais belo livro sobre o período holandês.

Gravura de abertura do livro de Gaspar Barlaeus (1647), trazendo o retrato em cobre do Conde João Maurício de Nassau, segundo traço de Theodoro Matham. Exemplar do Instituto Ricardo Brennand (Recife)

Para a realização do seu intento, João Maurício franqueou seus arquivos, e o restante da documentação foi coletado através de pessoas que estiveram no Brasil, dentre as quais o português Gaspar Dias Ferreira (Lisboa c.1595-c.1656), amigo pessoal do conde que o acompanhara em sua viagem de retorno.

Nada foi poupado em favor da bela edição, que aparece impressa em Amsterdã em 1647 com o título Casparis Barlaei – Rerum Per Octenium in Brasilia Et alibi nuper gestarum, Sub Praefectura Illustrissimi Comitis I. Mavritii, Nassoviae etc. Produzido na tipografia de Joannis Blaeu, no formato 46 cm x 29 cm, trazendo como folha de rosto uma bem elaborada gravura e um retrato do conde assinado por Theodoro Matham (1605-1660), o livro é composto de 340 p., com 56 gravuras impressas em papel especial, das quais 24 são mapas e plantas de sítios e fortificações; as 31 restantes são cenas da frota holandesa, combates navais, paisagens e vistas marinhas; 27 levam a assinatura de F. Post (1612-1680) e 15 datam de 1645. Essas gravuras teriam sido executadas em lâminas de cobre por Jan Broosterhuisen (c.1596-1650) e, segundo alguns autores, por Salomon Savery, a quem foram confiadas as gravações das batalhas navais.

O conjunto de mapas é de autoria de Georg Marcgrave e o de n.º 40, no qual aparece o Recife e seus arredores em 1644, parece ser obra do conhecido cartógrafo Cornelis B. Golijath. Os mapas do Brasil Holandês, formados pelo conjunto de Georg Marcgrave, reaparecem em 1659 e 1667, constituindo um grande painel mural com ilustrações de Frans Post.

Trata-se de um dos mais belos livros já produzidos sobre o Brasil, com descrições de regiões da África e um mapa do Chile (não numerado), cujas cópias foram presenteadas por João Maurício a diversas personalidades e cabeças coroadas da época. As encadernações originais foram elaboradas em pergaminho, com ilustrações feitas por gravuras em cobre, existindo, ainda, cópias com gravações em ouro e outras aquareladas em datas posteriores.

 

Um desses exemplares foi oferecido a D. João IV pelo embaixador de Portugal na Holanda, Francisco de Souza Coutinho, na época do seu lançamento em 1647. O exemplar em questão, pertencente à Biblioteca Real, veio para o Brasil em 1808, com a transferência da Família Real portuguesa, e hoje integra o acervo da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro).

A primeira edição do Barlaeus, como ficou sendo conhecido, foi publicada em latim (1647), sendo depois traduzida para o alemão (1659) e, na sua íntegra, para o holandês (1923); nesta última por Samuel Pierre L’Honoré Naber, numa tiragem reduzida de 160 exemplares. No Brasil, a obra foi traduzida para o português pelo Professor Cláudio Brandão, em 1940, tendo-a publicado o Ministério da Educação em duas apresentações, a primeira com 45,5 cm x 31,5 cm, com as reproduções da edição original em zincogravura, e outra em menor tamanho sem ilustrações.

Em 1979, quando do transcurso do tricentenário do falecimento do Príncipe João Maurício de Nassau, ocorrido em 20 de dezembro de 1679, na sua propriedade de Berg und Tal, nos arredores de Kleve, na Alemanha, foram editados no Recife: o álbum de gravuras O Brasil que Nassau conheceu e a notável obra de Gaspar Barlaeus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil etc., com tradução de Cláudio Brandão, anotações de José Antônio Gonsalves de Mello e organização editorial de Leonardo Dantas Silva. Em ambos foram reproduzidas as 60 lâminas desdobráveis, assinadas por Frans Post, e os mapas de autoria de Georg Marcgrave e de Cornelis Bastianszoon Golijath, copiadas diretamente da edição de Amsterdã (1647).

As ilustrações do Barlaeus

Os desenhos originais de Frans Post para esta primorosa edição encontram-se, atualmente, no Departamento de Estampas e Desenhos do Museu Britânico (British Museum). Lá, num volume encadernado em couro, com 47,2 cm x 58,4 cm, estão reunidas 32 lâminas produzidas por Frans Post. Trata-se de desenhos de paisagens brasileiras e algumas da África, executados a aguada e tinta, sobre traços leves a lápis, sem maior apuro, para serem acabados pelo gravador; catalogados juntamente com sete aquarelas de índios nossos, duas das quais idênticas às de Wagener e Eckhout – Omem tapuya e Mulher tapuya.

Sob o título Archetipae delinieationes Brasiliae Regionum, o álbum reúne desenhos – 21 assinados e datados (1645), nove apenas assinados e dois sem assinatura – que serviram de base para o livro do latinista Caspar van Baerle (1584-1648), publicado pela primeira vez em Amsterdã no ano de 1647. A coleção de desenhos pertencera, até pouco antes de 1753, ao famoso botânico inglês Hans Sloane que a catalogou sob o n.º 5.221. Os desenhos têm mais ou menos 33 cm x 51 cm, exceto dois: Mauritsstad (f. 13) e São Paulo de Luanda (f. 27), que aparecem em folha dupla. Os desenhos em questão retratam cenas brasileiras, cinco da África, quatro de batalhas navais e duas outras da esquadra holandesa, que fizera o transporte do Conde de Nassau, e uma única de cidade europeia: Dilemburgo, com o Castelo dos Condes de Nassau, onde, a 17 de junho de 1604, nasceu Johan Maurits.

Este último desenho não se encontra assinado, nem datado, e nele contém um pedido, [escrito] a lápis, para que se acrescente um coche de seis cavalos. Quando da elaboração da gravura, publicada sob o n.º 55 no livro de Caspar van Baerle (Amsterdã, 1647), foram acrescidos, ao centro do conjunto, um cavaleiro com o seu cão e um pedinte, sentado à beira do caminho. No lado direito, aparecem as figuras de camponeses nos afazeres do campo, uma carruagem de seis cavalos, acompanhada da respectiva comitiva, cabras e ovelhas pastando nos arredores.

Assinala Whitehead que tais desenhos foram, provavelmente, redesenhados a partir de esboços feitos no local e, em quatro casos, a cena assemelha-se bastante à de uma pintura do período brasileiro, justificando o uso do mesmo esboço original (Itamaracá, Rio São Francisco, Porto Calvo e Forte Ceulen). Há razões para pensar que havia uma pintura para alguns, para a maioria ou mesmo para todas as vistas restantes.

Para José Roberto Teixeira Leite:

Post deve ter documentado escrupulosamente toda fisionomia do Brasil, quando aqui residiu. É provável que, convidado por Nassau a contribuir com ilustrações para o livro de Barleus, só tivesse de selecionar, sob as vistas do conde, entre tantos esboços executados ao natural, os mais aptos a esclarecer o texto e a serem transpostos para o buril.

Com base no álbum do Museu Britânico, ou mesmo nas edições do livro de Gaspar Barlaeus, o aquarelista Luc-Vicent de Thiery de Sainte Colombe pintou, em cerca de 1765, oito guaches (33,0 x 40,8; 55,8 x 57,7 cm), com motivos de paisagens brasileiras, copiadas diretamente de desenhos de Frans Post. As lâminas hoje integram o acervo do Gabinete de Estampas da Biblioteca Nacional de Paris, sendo publicadas por Beatriz e Pedro Corrêa do Lago (1998).

Historia Naturalis Brasiliae

A produção científica da Missão do Conde de Nassau ficou por conta de Willem Piso (1611-1678) e de Georg Marcgrave (1610-1644) e aparece em 1648, quando da publicação da obra Historia naturalis Brasiliae etc., impressa em Amsterdã, no formato 38 cm x 35 cm por Elzevier. A edição contou com a colaboração de Joannes de Laet, autor de L’Histoire du Nouveau Monde ou Description des Indes Occidentales, impressa em Leiden em 1640, que, a pedido do Conde João Maurício de Nassau, se encarregou da compilação e tradução das notas de Georg Marcgrave, prematuramente falecido na África em 1644. Em sua primeira edição, o livro reúne 429 ilustrações de autoria dos pintores da comitiva de Nassau e algumas xilogravuras do próprio Marcgrave, sendo aberto por uma folha de rosto magnificamente ilustrada por Theodoro Matham.

Assinados por dois autores, os quatro primeiros livros são de autoria de Willem Piso, De Medicina Brasiliensi, e os oito restantes de autoria de Georg Marcgrave, História rerum naturalium Brasiliae, os quais foram compilados e anotados por Joannes de Laet. Os oito livros finais tratam, os três primeiros de botânica, o quarto sobre peixes, o quinto sobre pássaros, o sexto sobre quadrúpedes e serpentes, o sétimo sobre insetos e o oitavo (escrito por Joannes de Laet) descreve a região do Nordeste do Brasil e seus habitantes. Esta última parte é de raro valor etnográfico e linguístico, sendo utilizada na sua elaboração notas de Jacob Rabbi, notável intérprete a serviço dos holandeses, e o extenso vocabulário tupi compilado pelo padre José de Anchieta.

Alegando imperfeições na primeira edição, Willem Piso promoveu uma segunda em 1658, De Indiae Utriusque rerum naturali et medica, impressa em Amsterdã, nas oficinas de Ludovicus et Daniel Elzevier, no formato 36 cm x 22 cm. A obra compreende seis livros do próprio Piso, reunidos sob o subtítulo Historiae naturalis et medicae Indiae Occidentalis, 332 p.; Tractatus topographicus et metereologicus Brasilae, cum Observatione Eclipsis Solaris, 39 p., de autoria de Georg Marcgrave; Historiae naturalis et medicae Indiae Orientalis, 160 p., de autoria de Jacobi Bonti, e um estudo sobre a Mantissima aromatica, do próprio Piso. Esta edição é aberta por uma notável folha de rosto, gravada em lâmina de cobre provavelmente por Theodoro Matham, a qual se sucedem cinco páginas sem numeração. Os originais da obra encontram-se na Biblioteca Albertina, em Viena, sendo as duas edições ainda hoje muito consultadas pelos estudiosos da matéria contida em seus capítulos.

Em 1942, a Historia naturalis Brasiliae etc. veio a ser traduzida para o português pelo monsenhor José Procópio de Magalhães, sob o título História natural do Brasil, numa publicação do Museu Paulista e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, in folio, 25,5 cm x 39 cm, com a reprodução da folha de rosto, iluminuras e desenhos da edição de 1648. Prefácio de Affonso de E. Taunay. 298 p + CIV (104 páginas em algarismos romanos).

Outro livro de rara beleza iconográfica é o poema de Franciscus Plante, Mauritiados, dedicado ao Conde João Maurício de Nassau, de quem era capelão. A obra, datada de 1647, impressa em Amsterdã por Joannis Maire, tem o formato de 42 cm x 30 cm, 205 p., sendo ilustrada por 20 gravuras (anteriormente publicadas no livro de Gaspar Barlaeus), quatro mapas desdobráveis (Ceará, Pernambuco, Paraíba e ‘Pernambuco Boreal’), um retrato de João Maurício de Nassau (o mesmo do livro de Gaspar Barlaeus, gravado por Theodoro Matham) e outro do próprio Franciscus Plante, gravado por Jonas Suyderhoof. Já em 1872, esta obra era considerada por Fr. Mueller como um trabalho raro e magnífico.

De extrema raridade é outro folheto (16 p. il.), que também leva a assinatura do reverendo Franciscus Plante, totalmente desconhecido pelos bibliógrafos e estudiosos que se dedicaram ao período holandês. Trata-se de um texto poético, com 16 páginas, sobre a tentativa da tomada da Bahia de Todos os Santos por frota comandada pelo Conde João Maurício de Nassau, publicado sob o título Legatio Pernambucencis, impresso em Leiden, na oficina de Wilhelmi Christiani, em 1642. – O único exemplar conhecido deste precioso opúsculo encontra-se hoje na biblioteca do Prof. José Antônio Gonsalves de Mello, adquirido à Livraria Kosmos (Rio de Janeiro), em 8 de março de 1973. Atualmente esse precioso exemplar integra o acervo do Instituto Ricardo Brennand (Recife), onde também se encontram todos os livros que pertenceram à biblioteca do notável homem de letras: José Antônio Gonsalves de Mello.

Frans Post em outras obras

Os desenhos de Frans Post, representando o palácio de Firbvrgvm e a paisagem do Recife e Mauritsstad, tornam a ser reproduzidos no mapa de Cornelis Bastianszoon Golijath (1610-1662), que esteve no Brasil a serviço do Conde de Nassau em 1637, publicado avulso em Amsterdã, impresso por Claes Jaens Visscher, em 1648: Olinda de Pharnambuco, Maurits-Stadt ende t’ Reciffo. Este mesmo mapa aparece decorando o interior de certa casa holandesa, em tela assinada por Cornelis Man (1621-1706). O mapa foi elaborado inicialmente em 1644 para o livro de Gaspar Barlaeus (n.º 40) e, pela sua invejável riqueza de detalhes, serve, ainda em nossos dias, de consulta obrigatória aos estudiosos do período.

Foram os desenhos de Frans Post, durante mais de um século, a única fonte iconográfica conhecida da paisagem brasileira, notadamente a de Pernambuco, à qual recorreram todos os editores até fins do século XVIII. Deles fez uso o editor de frei João José de Santa Tereza, no seu livro Istoria delle guerre del Regno del Brasile, accadute tra la corona di Portogallo, e la Republica di Olanda etc., publicado em Roma em 1698, dois volumes (31 cm x 21 cm), e impresso na oficina dos herdeiros de Corbelleti. Das 25 gravuras da obra, nove foram copiadas do Barlaeus (1647), sendo quatro originárias dos desenhos de Frans Post, e o restante reproduzidos do Atlas do Brasil Holandês, elaborado pelo cartógrafo Johannes Vingboons, por encomenda do Conde de Nassau, do qual existem duas cópias, uma na Biblioteca Vaticana e outra no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

Quinze desenhos de Frans Post, anteriormente publicados na edição original do livro de Gaspar Barlaeus (1647), tornaram a aparecer na obra Arnoldus Montanus, America, impressa em Amsterdã, em 1671, por Jacob van Meurs, com 585 p., 31 pranchas, 16 mapas desdobráveis, sete retratos, 70 ilustrações. As gravuras foram reproduzidas na parte referente ao Brasil (p. 358-535), algumas delas com alterações, além de um mapa do Brasil em folha dupla. As ilustrações reaparecem nas reedições daquela obra, tanto nas edições em alemão, de Dapper, como na inglesa, de Ogilby.

Pieter van der Aa, em sua Galerie agréable du Monde, publicada em 1729, utiliza-se largamente das gravuras, originárias de desenhos de Frans Post, divulgadas por Arnoldus Montanus (1671) em sua obra. As pranchas de Vrijburg e da Boa Vista apareceram como vinhetas no mapa de Justus Dankerts, Novissima America tabula (c.1680), o mesmo acontecendo com o livro de Ambrosius Richshoffer, Brazilianisch und Wet Indianische Reise Beschreibung, impresso em Estrasburgo em 1677, que, também, traz alguns desenhos de Frans Post.

Para Sousa Leão, o desenhista, porém, não vale o pintor. Falta-lhe concisão nos traços, sai-lhe confusa e sem destaque a vegetação, falhas que supre, no óleo, com a mestria de sua pincelada, com o domínio da cor e da luz que distinguem sua pintura, de modo que os quadros são mais bem delineados do que os próprios desenhos. Destes, o maior merecimento consiste na correção topográfica que lhes dá valor documental. Ao contrário do que se verifica com a maior parte dos artistas, cujo temperamento se expressa com mais espontaneidade no esboço rápido, é na obra pintada que Post nos dá a medida do seu talento. Maiores são suas possibilidades manejando o pincel do que o lápis.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 15 de novembro de 2018

FRNS POST, O PRIMEIRO PINTOR...

 



Foi Frans Post o primeiro grande paisagista erudito europeu que trabalhou em terras da América, o primeiro pintor flamengo a documentar em cores a paisagem brasileira, registrando também algumas paisagens da África, deixando uma vasta obra da qual chegaram aos nossos dias pouco mais de 160 quadros pintados a óleo sobre tela ou sobre madeira.

 

Nasceu Frans Janszoon Post na cidade de Haarlem, Holanda, em 1612, sendo filho do pintor de vitrais Jan Janszoon Post e de sua mulher Francyntie Peters, cujo casamento aconteceu em 1604, sendo ambos naturais de Leiden.

Era Frans o terceiro filho do casal, que tinha por primogênito Pieter Post, nascido em Haarlem em 1608, seguindo-se de Anthoni, nascido em 1610, e Johana, a caçula nascida em 1614, pouco antes do falecimento do chefe da família: Jan Janzoon Post.

Órfão de pai aos dois anos, tendo sua mãe se casado com Harman van Warden em 1620, de quem logo depois se separa, o menino Frans tem no irmão Pieter o seu primeiro mestre.

Pouco se sabe de sua formação acadêmica, tão somente que cresceu na cidade de Haarlem, uma das mais prósperas da província de Flandres, célebre por suas corporações de artistas.

Pieter Post (1608-1669), o mais velho dos irmãos, vem a ser discípulo do grande Jacob Van Campen, um dos mais renomados arquitetos do seu tempo, responsável pela construção da Mauritshuis (Casa de Maurício), na Haia, e frequentador da corte do Príncipe Frederico Henrique. Através dele é o jovem Frans apresentado ao Conde de Nassau, recém-nomeado Governador do Brasil Holandês, que o convida para acompanhá-lo em sua nova missão.

No Brasil, o jovem Frans Post tornou-se a memória visual do governador, transformando-se numa espécie de cronista da paisagem. Para isso acompanhou o Conde de Nassau em todas as suas viagens e campanhas militares, chegando até a registrar incursões de esquadras enviadas do Recife para a tomada das cidades de São Jorge da Mina, Forte Nassau, São Paulo de Luanda e ilha de São Tomé, na África.

Ao contrário de Pieter Post, o seu irmão Frans Post é constante na documentação da época, chegando a privar da lista de comensais do Conde de Nassau, no Palácio de Friburgo, a exemplo de uma datada de 1º de abril de 1643. Segundo revela José Antônio Gonsalves de Mello: “da lista constava ao todo 46 pessoas das quais 19 com empregados. Entre elas: Frans Plante, o doutor Piso, três fidalgos não identificados, Albert Eckhout e Frans Post, ‘pintores, ambos com criados’, o cartógrafo Georg Marcgrave, também com criado, etc.”.

O objetivo principal de Frans Post seria a documentação de cidades, vilas, povoações, costumes, construções civis e militares, cenas de batalhas navais e terrestres, que viriam a ilustrar um grande relatório das atividades do Governo do Conde de Nassau em terras da América, escrito por Caspar van Baerle e publicado em 1647.

 

Enquanto Albert Eckhout tinha por tarefa a documentação de tipos humanos, da fauna e da flora, a Frans Post cabia o “registro da paisagem das áreas sob o controle holandês, assim como as batalhas e as principais edificações construídas ou conquistadas pelos holandeses”. Concluem Beatriz e Pedro Corrêa do Lago que “para Nassau, o trabalho de Post deveria ser sistemático: documentar em quadros a óleo as principais sedes holandesas no Nordeste, com o intuito não apenas do registro topográfico como provavelmente também com o objetivo mais imediato de decorar a residência do conde, que desejava ter sob seus olhos as vistas principais de seus domínios”.

José Roberto Teixeira Leite, em longo estudo dedicado ao jovem artista, faz as seguintes observações acerca desse período:

Pode-se aquilatar o impacto emocional por que terá passado Post, acostumado à disciplina dos campos holandeses, banhados em suave luminosidade, ao se defrontar de inopino com a áspera vegetação tropical, povoada de seres insólitos, tudo sob uma luz escandalosamente intensa. A força e o ineditismo de tal impacto têm como conseqüência estancar, no artista setentrional, toda a capacidade criadora, e por isso, nos Trópicos, os amadores sentem-se mais à vontade que os verdadeiros pintores. É que os Trópicos são mais pitorescos que pictóricos, demasiados ricos, demasiados exuberantes [….] Nos quadros executados no Brasil conseguiu Frans Post traduzir todo o pitoresco, sem deixar de ser pictórico; daí o seu valor. E embora se subordinasse fielmente à realidade soube evitar o excesso de detalhes meramente esdrúxulo, aquele acúmulo de elementos curiosos que sobrecarregariam o quadro, comprometendo-o irremediavelmente.

A produção de Frans Post, durante sete anos no Brasil (1637-1644), particularmente em Pernambuco onde permaneceu a maior parte do tempo, prendia-se ao objetivo do Conde de Nassau de documentar a sua administração à frente do Governo do Brasil Holandês. Ele acompanhava todos os passos do governador, fazendo-se presente desde a tomada de Porto Calvo e andanças através da Ilha de Itamaracá (1637), seguindo-se da fundação do Forte Maurício, em Penedo (1638), da conquista do Rio Grande do Norte (1639), até o retorno ao Recife (1640). Cogita-se a sua presença nas expedições militares que saíram do Recife que foram conquistar povoações na costa da África Ocidental (Luanda, São Tomé e Gana ), em 1637, lembrando Sousa Leão que Frans Post poderia, também, ter visitado essas praças quando do seu retorno à Holanda, onde já se encontrava em maio de 1644.

A propósito dessa fase, conclui Erick Larsen, já ter se chamado Frans Post de “o Canaletto do Brasil” e também se escreveu que ele foi o primeiro paisagista ao ar livre deste país. É verdade, levando-se em consideração a qualidade artística de sua produção e excluindo-se a comparação com os cartógrafos ou outros artistas de menor competência”.

Paisagem da ilha de Antonio Vaz, segundo Frans Post (1641)

Concluídos os trabalhos de ilustração do livro de Gaspar Barlaeus, em 1645, Frans Post continuou produzindo em Haarlem, não mais voltando a trabalhar para o seu antigo patrono. Em 30 de novembro de 1644, ele já se intitulava “ex-pintor” (“gewesene Schilder”) de Johan Maurits, muito embora só venha ingressar como membro da Corporação de St. Lukasgilde de Haarlem, em 1646. Pondera, no entanto, Whitehead a necessidade de filiação de qualquer artista a uma dessas corporações; “era obrigatório para todos, exceto aos pintores da corte, de modo que ele talvez tenha permanecido por mais dois anos sob a proteção de Johan Maurits”.

Observa Sousa Leão, a transformação de Frans Post, após o seu ingresso na Lukasgilde, salientando:

A composição permanece a mesma, mas o do primeiro plano avoluma-se em tufos espessos, povoados de animais e salpicados de notas exóticas – pássaros ou gravatás – um arranjo de cenário, em que sobressai de um lado, a palmeira ou o mamoeiro, para acentuar a cor local e a autenticidade. Emprega uma gama variada de tons. Concentra a luz sobre o fundo da paisagem. As figuras, em escala menor, perdem a rigidez contrafeita, espalhando-se pelo quadro, indicadas com pinceladas rápidas e nervosas, como os perfis das palmeiras que se esfumam contra horizontes mais luminosos. O que sua obra perde em originalidade e força, ao amaneirar-se deste modo, ganha em mestria e virtuosismo.

Na Lukasgilde, corporação onde já atuava o seu irmão Pieter Post desde 1623, Frans Post vem a ser um dos membros atuantes, tendo ocupado a função de Procurador (vinder), 1656-57, e Tesoureiro, entre 1658-59. Em 1645 foi seu irmão, Pieter, nomeado arquiteto da corte, passando a trabalhar para o Príncipe Guilherme II de Orange. Também para esse príncipe trabalhou Frans, que, em 7 de setembro de 1650, “recebeu 300 florins por um quadro representando várias cidades de Sua Alteza, na Borgonha”. No catálogo de 1764 do Castelo de Honsholredijk, estão relacionados sete trabalhos por ele assinados, três dos quais vistas do Brasil.

Casando-se em 27 de março de 1650, na igreja de Sandvoort, com Janneteye Bogaert, veio a ser pai de três filhos: Anthoni, nascido a 10 de janeiro de 1655; Jan, a 12 de março de 1656, e Rachel, a 4 de janeiro de 1660. Sua mulher, também natural de Haarlem, onde residia na Koninckstraat, era filha do Prof. Salomon Bogaert. O casamento durou apenas 14 anos, pois em 7 de agosto de 1664 já se encontrava viúvo.

As cores do Brasil

Fiel ao que aprendera com seus mestres holandeses, “o sentimento do espaço e a preponderância do céu”, Post vem a ser dominado pela paisagem dos trópicos, particularmente pela luz que incidia diretamente na orquestração cromática, do tipo verde – azul/verde – azul, do formulário flamengo. Ao voltar para a Holanda, em 1644, jamais se desapegou da paisagem brasileira e, graças aos esboços que pôde elaborar nos seus sete anos de Brasil (1637–1644), ele compõe os seus quadros cheios de cores e elementos tropicais. Os esboços da paisagem e de detalhes outros, produzidos anteriormente para o Conde de Nassau, foram decisivos na criação dos seus novos quadros, com temas brasileiros, pintados entre 1647 e 1669. Sem o antigo compromisso do documentarista, a produção desse período reúne um documentário iconográfico da maior importância, registrando a arquitetura civil e religiosa, como também a militar, a fauna e a flora, tipos humanos e elementos outros da maior importância para o conhecimento da paisagem seiscentista do Nordeste brasileiro, merecendo de Joaquim de Souza Leão a observação:

Post pintava com pinceladas ligeiras. Só as folhas das árvores destacam-se recortadas com um pouco mais de empasto. Irradiam em todas as direções, subtraídas à ação do vento. É certo que ele preferia representar no primeiro plano as ramagens duras da flora da caatinga. As folhas do mamoeiro são as que melhor lhe saem: empastadas, reluzentes, em relevo sobre o resto da vegetação.

A preparação da madeira era feita com pincel fino e a camada preliminar nem sempre branca, o que concorreu para escurecer com o tempo muito quadro. Alguns parecem pintados diretamente sobre a madeira, tão ligeira era essa camada, que lhe deixa ver os veios. Tal foi, aliás, a maneira de pintar do tempo – o apogeu da arte holandesa – que assegurava a regularidade da superfície, uma das exigências acadêmicas.

Criou, assim, seu próprio estilo. Os seus anos no Brasil, em contato direto com a natureza primitiva, longe dos estúdios e da paisagem européia, lhe transformaram num artista singular, à margem dos grandes holandeses do seu tempo – Segher, Ruidael, van Goyen – que, vivendo ao redor de Rembrandt, copiavam sua técnica e eram influenciados pela mesma temática. As pinturas de Frans Post mais se assemelhavam com as de Koninck, particularmente pelas planícies verdes flutuando no horizonte, e com as de van der Hagen, “de quem terá imitado a concatenação das ondulações do terreno e das matas, de modo a formar a alternância regular de manchas claras e escuras, características de sua obra final”.

Conclui José Roberto Teixeira Leite:

Resumindo a evolução artística de Frans Post, podemos afirmar que, superada a fase documental dos quadros realizados no Brasil, vencida a preocupação pelo exótico e pelo pitoresco dos produzidos imediatamente após o retorno à Holanda, conseguiu o pintor afinal harmonia entre forma e cor e a equivalência entre o conteúdo e seu equivalente clássico, para evocar a paisagem brasileira, da qual seria o intérprete primeiro, num clima de intenso lirismo. O artista leva de vencida o artesão, a sensibilidade impõe-se ao virtuosismo, o repórter cede lugar ao poeta.

No final da vida, porém, Frans Post tornou-se alcoólatra. A solidão, com a morte da mulher e o afastamento dos amigos, em muito contribuiu para o abreviamento dos seus dias. Os excessos do vício minaram sua capacidade criadora, contribuindo para a decadência e mediocridade de seus trabalhos. Foi o álcool que o impediu de assistir à entrega dos seus próprios quadros, em 1679, a Luís XIV, Rei de França, negociados que foram pelo Príncipe João Maurício de Nassau.

Em carta datada de 9 de janeiro de 1679, o agente financeiro de Johan Maurits, Jacob Cohen, é taxativo: “o velho Post, que ainda vive, seria a pessoa mais indicada, mas está de tal modo desmoralizado e degradado pela bebida, e tão trêmulo, que seus amigos o consideram inapresentável ao Rei”.

Morreu Frans Post em Haarlem, a 18 de fevereiro de 1680 e foi enterrado na Groote-Kerk daquela cidade. Cinco dias após o seu passamento, o Curador de Órfãos dá poderes a Bastiaen Wendels, tio, e Johannes Post, primo, para na qualidade de testamenteiros venderem os bens do falecido a fim de pagar as suas dívidas e “fazer tudo o que mais coubesse em benefício da filha menor, Greetie [Rachel?] Post.”.

Frans Post mereceu a honra de ser um dos pintores de sua época retratados por Frans Hals (c.1581-85 – 1666), um dos importantes retratistas do seu tempo, ao lado de Rembrandt e Vermeer. O retrato seria reproduzido em gravura por J. Suyderhoef, pintado entre 1650 e 1660, veio a ser considerado uma obra-prima, “um chiaro-oscuro à maneira sutil de Rembrandt.”

Em gravura originada do retrato de Frans Hals, gravada por J. Suyderhoef, existente no Albertinum de Viena, na margem inferior, encontra-se escrito em tinta dourada, em grafia da época: “François Post peinctre de prince Mauriti Gouverneur des Indes Occidentales.”

Na sua biografia de Frans Post, o embaixador Joaquim de Souza Leão encontra no quadro de Hals a descrição da própria personalidade do retratado:

Um quarentão de espessa face bonachona e cabeleira hirsuta, o olhar penetrante e bem humorado, sob o negro feltro de copa afunilada. Pelo esmero no trajar – a mão enluvada denotando trato social e boas maneiras – diríamos um bom burguês endinheirado. Mas as sobrancelhas arqueadas, os olhos bem separados, de quem sabe ver, explicam o artista delicado e minucioso que na obra revelou-se. Se é pouco o que se sabe do seu curriculum vitae, resta-nos, por sorte, a imagem física e psicológica do homem, captada pelo mágico retratista da Holanda social.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 08 de novembro de 2018

O RECIFE, NO TEMPO DO ZEPPELIN

 

 
O RECIFE, NOS TEMPOS DO ZEPPELIN

No seu imaginário, o Recife ainda convive com as imagens da presença do Graf Zeppelin em nossos céus, que se tornou o maior acontecimento do século vinte entre nós

Dentre as novidades dos anos de 1930, famosa pelo aparecimento de novos hábitos e costumes, antecedendo a segunda Grande Guerra, foi o surgimento do Graf Zeppelin, inaugurando linha direta, bimestral, com a Europa, em 22 de maio de 1930, fazendo a rota Friedrischafen-Sevilha-Rio de Janeiro.

Pelo noticiário, registrado no Diario de Pernambuco, do dia 23 de maio, e depoimentos dos que viveram esse tempo, a exemplo do industrial Ricardo Brennand, 91 anos, se tornaram um verdadeiro acontecimento na cidade, as chegadas e partidas do dirigível, que cruzada o Atlântico após 59 horas de viagem.

No dia seguinte do seu voo inaugural, assim noticiava o Diario de Pernambuco:

Um vivo interesse se desenhava em todos os semblantes entorno desse acontecimento destinado a marcar uma data inesquecível na vida da cidade. […]

 

 

Às 18 horas e 35 minutos o dirigível foi avistado no Recife e logo entrou a tocar, para divulgar a boa nova, o carrilhão do Diario de Pernambuco, cujos terraços estavam ocupados por famílias do nosso escol social. […] O Diario de Pernambuco, em sua edição do dia seguinte, às 16 horas, era já compacta a multidão de curiosos que se empilhavam nas torres das igrejas e até nos tetos das casas. – inclusive nos terraços dos edifícios mais altos: Moinho Recife, Palácio da Justiça, Diario de Pernambuco, Hotel Central, etc. No mais alto da cúpula do Palácio da Justiça, em verdadeiro esporte de equilíbrio, agrupavam-se algumas dezenas de pessoas. O terraço desta folha, já às 17 horas, estava repleto de numerosa e compacta assistência. […] – Chegarei pouco depois do pôr do sol, foi a mensagem do comandante Eckener. […] É ele! É ele! É uma estrela! gritava o povo. Mas a dúvida em breve dissipou-se. Alguns instantes mais e a sombra branca do imenso pássaro aéreo começou a surgir e a crescer. Já eram então visíveis os dois focos de proa e popa marcando o vulto imenso que desfilava dentre as nuvens. Precisamente às dezoito e meia passava o Graf Zeppelin, mais baixo acerca de trezentos metros de altura, sobre a torre da Catedral de Olinda…. E logo começou-se a ouvir o surdo rugido das suas hélices possantes …. Mas pode mencionar-se o emocionante espetáculo da nave imensa a deslizar dentro da noite, sobre a cidade, rumando do norte ao poente, numa grande curva, direto ao Campo do Jiquiá, como se conhecesse o caminho; como uma ave retardatária que torna-se ao pouso, mil vezes demandado.

O Zeppelin estava sob o comando do Comandante Hugo Eckener, que, juntamente com o infante Dom Affonso de Espanha, foi saudado pelo então secretário particular do governador Estácio Coimbra, Gilberto de Mello Freyre, após a sua amarração no Campo do Jiquiá.

Para o menino Ricardo Brennand, que se acostumara assistir a passagem do Zeppelin da varanda da Casa de Ferro da Usina São João da Várzea, fora esta a mais importante imagem de sua infância.

Um dos detalhes que mais o fascinou foi quando, numa recepção oferecida por sua família à tripulação do dirigível, na mesma Casa de Ferro da Usina São João da Várzea, constatara ele que as mulheres da tripulação do Comandante Hugo Eckener usavam, em vez de saias, “bermudas folgadas até os joelhos” (!)

Eram os Tempos do Zepellin, na sua linha regular ligando a Europa ao Brasil e a Argentina, relembrados pelos mais antigos e assim descritos pela verve poética de Ascenso Ferreira:

– Apontou!

– Parece uma baleia se movendo no mar!

– Parece um navio avoando nos ares!

– Credo, isso é invento do cão!

– Ó coisa bonita danada!

– Viva seu Zé Pelin!

– Vivôôô!

Deutschland über alles!

Chopp!

Chopp!

Chopp!

– Atracou!

O Graf Zeppelin realizou 63 viagens unindo o Recife à Europa.

Seis anos depois do seu primeiro voo, em 1936, o Zeppelin veio a ser substituído por outro dirigível, o Hindenburg, que possuía 804 pés de comprimento; 76 pés menos do que o transatlântico Titanic e 228 pés maior do que um Boeing 747.

Este último realizou sete viagens ao Brasil, antes do acidente que o destruiu, em 1937, ao pousar em Lakehurst, no estado norte-americano de New Jersey.

Deixando uma imensa saudade, naqueles que viveram os Tempos do Zeppelin.


Leonardo Dantas - Esquina sábado, 03 de novembro de 2018

ARRUANDO PELO CEMITÉRIO DE SANTO AMARO

 

ARRUANDO PELO CEMITÉIRO DE SANTO AMARO

A cidade do Recife sofreu grandes transformações na sua paisagem quando da administração de Francisco do Rego Barros (1802-1870), que veio a ser barão, visconde e finalmente Conde da Boa Vista.

Formado em matemática pela Universidade de Paris, com apenas 35 anos de idade, foi designado presidente da província de Pernambuco, ficando no cargo de 1837 a 1844, época em que o trouxe para o Recife o engenheiro francês Louis Léger Vauthier (1815 – 1901), responsável pela construção do Teatro de Santa Isabel (1850) e de importantes obras públicas, dentre as quais o traçado inicial do Cemitério do Senhor Bom Jesus da Redenção, consagrado como Cemitério de Santo Amaro.

Sobre as experiências de Vauthier no Recife, o escritor Clarival do Prado Valadares (in Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Rio, 1972), lembra o episódio, registrado pelo engenheiro francês em seu Diario, no qual um cadáver insepulto de um negro permaneceu por muito tempo às margens do Capibaribe, sem que despertasse a menor atenção da população passante, assim escreve:

Não sei a quanto arrisco a aventura de uma ilação, mas a mim parece que o horror daquele quadro aos olhos do jovem politécnico de Paris fê-lo sugerir no estudo do [Cemitério] Santo Amaro do Recife… “que se plantassem árvores e arbustos pelas ruas do cemitério; árvores que purificassem a atmosfera” e quanto ao plano geral que tivesse a forma de… “um octógono regular cujo contorno seria de 3.640 pés ou menos uma décima parte do que o quadrado”.

Disto resultou a surpreendente planta do [Cemitério] Santo Amaro, de alamedas e aleias radiais, centradas pela praça da capela, formando “quadras” poligonais e triangulares cujas orlas são ocupadas pelo loteamento para jazigos nobres, ou pelos extensos mausoléus coletivos de irmandades, reservando-se as áreas centrais para as covas rasas.

Trata-se, pois, de um cemitério planejado de tal modo que a paisagem é equanimemente distribuída, dela participando em condições de igualdade o túmulo rico e a cova-rasa.

Dessa curiosa e talvez inédita configuração urbanística de cemitério, relacionando o senhor e o escravo, o amo e o servo, o rico e o pobre, assim como eles existiam na respectiva ordem social do modelo patriarcal do século passado, desnivelados e ao mesmo tempo coexistindo sob o mesmo teto, na mesma casa, e tantas vezes em coabitação.

É desta mesma época a presença na equipe de obras públicas do Governo da Província do engenheiro José Mamede Alves Ferreira (1820-1865), Bacharel em Matemática pela Universidade de Coimbra, que além dos prédios da Casa de Detenção e do Ginásio Pernambucano foi responsável pela execução do projeto do Cemitério Público do Senhor Bom Jesus da Redenção, criado em 1841, pela Lei Provincial nº 91, tendo sido inaugurado em 1º de março de 1851.

Trata-se de uma área plana, originalmente ocupando um terreno de 351,35 m. de fundos por 320 m. de largo, tendo ao centro uma elegante capela em estilo gótico, em forma de cruz grega, para onde convergem todas às alamedas de túmulos dando, assim, um formato estelar ao conjunto.

Bem conservado pela atual administração municipal, o Cemitério de Santo Amaro, chama a atenção do visitante para o seu portão de entrada, trazendo na sua base a data de MDCCCLI (1851), confeccionado em ferro fundido pela firma A.C. Staar & Cia. (Fundição Aurora), a mesma responsável pelos portões do Cemitério dos Ingleses e da Ordem Terceira do Carmo do Recife.

Aleias de palmeiras imperiais marca a avenida principal, que une o seu monumental portão de ferro com a porta da capela central, ladeada pelos primeiros túmulos do início da segunda metade do século XIX, que conduz o visitante até a capela em estilo gótico, octogonal, situada ao centro do campo santo.
Nas diversas alamedas do Cemitério de Santo Amaro, sob a proteção da sombra das árvores, vamos encontrar singulares obras de arte de escultores renomados que estão a exibir o seu talento nos diversos túmulos alguns deles centenários.

No ponto de confluência de suas ruas, encontramos uma singular capela gótica, a primeira do seu gênero em terras pernambucanas, projetada por José Mamede Alves Ferreira (1820-1865), mandada construir pela Câmara Municipal do Recife em 1853.

“Trata-se de um monumento de puro estilo gótico de cruz grega, fechada por uma só abóbada, de uma belíssima e arrojada construção, e de grandeza proporcional ao fim a que é destinada, sem campanário e sem dependências”.

O singular templo conserva no seu centro uma imagem do Cristo Crucificado, em ferro, produto de fundição francesa, tendo na sua abóbada placas de mármore alusivas às diversas fases de sua construção, como as restaurações sofridas nos anos de 1899 e 1930:

• A Câmara Municipal do Recife a mandou fazer em 1853…1855, segundo o plano do engenheiro civil José Mamede Alves Ferreira.

• Reaberta e melhorada na administração do Exmo. Dr. Esmeraldino Olympio de Torres Bandeira, prefeito do Município do Recife. Em 16 de junho de 1899.

• Restaurada na administração do Exmo. Sr. Dr. Francisco da Costa Maia, prefeito do Município, 1930.

Para o escritor Rubem Franca (in, Monumentos do Recife – Recife, 1977): O Cemitério encerra muito da cultura de um povo. Santo Amaro, aliás, ainda aguarda quem lhe faça um estudo completo, um levantamento dos sepulcros de pernambucanos famosos e populares. Um estudo dos seus monumentos funerários, que são, alguns verdadeiras obras de arte.

Joaquim Nabuco e outros túmulos

No cemitério de Santo Amaro, o mais suntuoso dos túmulos é dedicado ao Patrono da Raça Negra, o abolicionista Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo (1849-1910), obra do escultor italiano Giovanni Nicolini; montada em Pernambuco por outro escultor, também italiano, Renato Baretta, em novembro de 1914.

O conjunto escultórico retrata a Emancipação do Elemento Escravo, em 13 de maio de 1888, formado por um grupo de ex-cativos levando sobre suas cabeças o sarcófago simbólico do grande abolicionista. À frente do monumento, o busto de Joaquim Nabuco, em mármore de Carrara, tendo ao seu lado uma figura de mulher [a história], que ornamenta com rosas o pedestal do busto, onde se lê:

A Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo. Nasceu a 19

de agosto de 1849. Faleceu a 17 de janeiro de 1910.

Logo em frente ao mausoléu de Joaquim Nabuco, encontra-se o túmulo de José Mariano Carneiro da Cunha (1850-1912), também destacado líder do movimento abolicionista e de sua mulher Olegária (Olegarinha) Gama Carneiro da Cunha (1860 – 1898).

Um busto em bronze do abolicionista e estátua de uma mulher chorando, conserva as inscrições:

À José Mariano / o Povo / Pernambucano. / Olegária

Gama Carneiro da Cunha, 16-9-1860, 24-4-1898.

Outro belo túmulo do Cemitério de Santo Amaro, porém, pertence ao Barão e da Baronesa de Mecejana: Antônio Cândido Antunes de Oliveira e Colomba Ponce de Leão.

“O túmulo é todo feito em mármore de Carrara com grande influência dos romanos, por causa do sentimento católico. O formato de tocha invertida é símbolo da morte e da expectativa de que essa luz se reacenda”,explica o escultor e responsável pela última restauração do túmulo, Jobson Figueiredo, realizada em 1999.

Sobre seu mausoléu, escreve o próprio Barão de Mecejana, em seu testamento, conservado no Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, ter sido o túmulo destinado, inicialmente, a sua filha e seu genro que faleceram de uma das epidemias que assolaram o Recife na segunda metade do século XIX. A posição em genuflexo do barão e baronesa, demonstra a atitude dos pais durante a doença que vitimou o casal.

Como bem observou o escritor Clarival do Prado Valadares, in Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros(1972), vale reparar também o detalhe das esculturas em mármore do barão e da baronesa, que reproduzem até a textura de uma veste rendada.

Segundo estudo da pesquisadora Semira Adler Vainsencher, da Fundação Joaquim Nabuco:

“Vários mausoléus imponentes podem ser encontrados, também, no cemitério de Santo Amaro. O do governador Manuel Antônio Pereira Borba, mais conhecido como Manuel Borba, possui uma mulher com torre na cabeça, e em seus pés um grande leão de Pernambuco. No mausoléu, uma frase que ficou famosa: Pernambuco não se deixará humilhar. E a sua efígie, com a seguinte inscrição:

Cidadãos: quando quiserdes advertir aos vossos governantes, incitar os vossos compatriotas e educar os vossos filhos, apontai-lhes o exemplo que foi Manuel Borba – probidade e caráter – lealdade – bravura cívica. MCMCCCII. [Sic]

Um passeio pelas ruas e alamedas do Cemitério de Santo Amaro se transforma num verdadeiro desfilar de nomes que se destacaram na nossa história, particularmente nos movimentos revolucionários e movimentos literários, bem como nas artes, na poesia, na música popular e na própria história pernambucana.

Uma visita ao Cemitério de Santo Amaro se torna uma verdadeira aula de sapiência das mais diversas áreas do conhecimento humano, daí o nosso convite para tão agradável arruar.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 25 de outubro de 2018

O SOBRADO DE FERRO DE SÃO JOÃO DA VÁRZEA

 

 
O SOBRADO DE FERRO DE SÃO JOÃO DA VÁRZEA

No final do século XIX, em viagem ao estado da Luisiana, o proprietário da Usina São João da Várzea, Francisco do Rego Barros de Lacerda, despertou sua atenção para um estilo de casa de vivenda com estrutura em ferro e paredes de alvenaria em voga na cidade de New Orleans.

Encantado com o projeto, encomendou uma casa semelhante a fim de erguê-la nas terras do Engenho São João.

Com sua planta baixa lembrando a letra U, que se fecha com uma elegante escada em dois lances, na parte posterior, a casa tem sua estrutura pré-fabricada em ferro fundido.

Todas as fachadas, internas e externas, “possuem varandas suportadas por colunas do mesmo metal e peitoris igualmente fabricados em ferro.
Somente as paredes são de alvenaria de tijolos e o recobrimento da casa em telhas de barro, tipo Marselha.

O Sobrado de Ferro da Várzea possui em seu primeiro pavimento as dimensões de 34,2 m de comprimento por 26,4 m. de largura, compondo uma área de 902,88 m2.

No andar térreo, numa área adicional de 224.10 m2, foram distribuídos a cozinha, copa, lavanderia, sanitários e outras acomodações. Considerando toda a construção, incluindo os terraços cobertos, a área total da casa é de 1.420,20 m2, sustentada por 69 colunas de ferro fundido.

O velho patriarca acompanhou toda a construção da sua nova residência, porém nunca chegou a nela residir, vindo a falecer pouco depois da conclusão das obras, em 24 de janeiro de 1899.

Nos dias atuais, tudo parece surreal na velha mansão. Na parede central um retrato, em óleo sobre tela, datado de Paris – 1895, domina o ambiente despertando a atenção do visitante para Dona Maria da Conceição do Rego Barros de Lacerda (1863-1942), sua primeira proprietária e mãe adotiva do industrial Ricardo Lacerda Brennand. pai do seu atual proprietário, Cornélio Brennand, e do artista Francisco Brennand.

Sobre um assoalho de tábuas corridas, composto por duas madeiras de cores distintas (sucupira e pitiá marfim), ao longo das salas, corredores, quartos e demais dependências, encontravam-se sofás, cadeiras medalhão, credências, canapés, cômodas, guarda-louças, camas, aparadores, confeccionadas em jacarandá e outras madeiras nobres, por marceneiros famosos como o francês Julião Antônio Béranger e seu filho pernambucano Francisco Manuel (1820-1857), responsável pelo estilo Béranger entre nós; seguindo-se de Remígio Kneip (c.1810-1875) e Guilherme Spieler (1833-1904), grandes nomes da marcenaria pernambucana do século XIX.

Ricardo Lacerda de Almeida Brennand, veio a falecer dormindo, em 9 de março de 1982, deixando uma marca em todos que o conheceram, sobretudo em seu sobrinho, Ricardo Coimbra de Almeida Brennand.

Ao pensar em criar um local para expor suas coleções, reunidas ao longo de toda a sua vida, as lembranças do “Tio Ricardinho” (como ele próprio assinava a sua correspondência familiar) se fizeram presentes.

No final do século XX, Cadito, como é conhecido em família o industrial Ricardo Brennand, ao reunir as peças das suas coleções, que ocupavam os espaços de sua casa morada, então tomada por um imenso acervo de móveis, quadros, esculturas, armas brancas e peças artísticas das mais diversas procedências, lembrava o “Tio Ricardinho”; daí o conjunto ter sido por ele denominado de INSTITUTO RICARDO BRENNAND.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 11 de outubro de 2018

JOAQUIM NABUCO E O RECIFE

 

 
JOAQUIM NABUCO E O RECIFE

Joaquim Nabuco

O Recife, apesar de todos os atentados que vem sofrendo ao longo dos anos, quer na grafia do seu locativo (sem o artigo que obrigatoriamente o antecede), quer no seu patrimônio histórico e paisagístico, continua a ser, para os que nele nasceram, ou o adotaram como pátria-mãe, um imenso e multifacetado brilhante. São tantas as cores, tantos os sabores, diversos os sons, curiosas as ruas e recônditos pátios, escondendo os seus monumentos e acariciados pelos alísios vindos do alto-mar, que não dá para calar esta paixão latente e sempre presente na alma de todo recifense ou recifensisado: Sou do Recife, com orgulho e com saudade; (Antônio Maria)

O fascínio que exerce a paisagem desta nossa cidade, sobre os naturais e visitantes, foi sempre uma constante ao longo dos quatro séculos de sua história; como fizemos ver em O Recife quatro séculos de sua paisagem (Ed. Massangana, 1992).

Desde Gabriel Soares de Souza e Ambrósio Fernandes Brandão, no século XVI, até os cronistas de nossos dias, o Recife se transforma num verdadeiro caleidoscópio a despertar as atenções do olhar do observador; ele se revela num simples abrir de janelas, como aconteceu com Gilberto Amado:

Abrir as janelas do sobrado alto sobre a foz do rio [o escritor estava hospedado no antigo Grande Hotel] para que um novo alumbramento se produzisse e a singular de outrora revelasse, com a graça maliciosa de quem entreabre um manto, o que guardava de encantos secretos e renovados.

Uma das descrições mais felizes da paisagem da cidade do Recife nos chega através da pena do recifense Joaquim Nabuco, em artigo publicado no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), em sua edição de 30 de novembro de 1887.

Nabuco, ao servir de cicerone ao escritor português Ramalho Ortigão, pinta, com a mão de um mestre, as belezas do seu torrão natal, utilizando-se das mais contagiantes cores de sua palheta. Observando a planície do terraço da Sé de Olinda, enfatiza:

Não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão abaixo aos pés de espectador, que perde o movimento e a vida […] O que faz a grande beleza deste nosso torrão pernambucano é em primeiro lugar o seu céu, que muda a cada instante, leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas, e que não é o mesmo um minuto; é depois o nosso mar, verde, vibrátil e luminoso, as nossas areias tépidas e cobertas de relva, os nossos coqueiros, que se vergam desde o soco até ao espanador de um brilho metálico e dourado, com que parecem ao longe sacudir as nuvens brancas, as jaqueiras e mangueiras cuja sombra rendada é um oásis de frescura e abundância.

O que mais impressionava ao visitante e a seu cicerone era a limpeza da cidade:

“O que primeiro fere a vista no Recife é a limpeza da cidade, a brancura de toda ela. Vê-se bem a cidade de um povo de rio, que vive n’água, como o pernambucano. É um reflexo da Holanda, que brilha aqui!”.

O branco era a cor predominante da cidade de então, que logo despertava as atenções dos viajantes e fazia do Recife “a mais bela do Brasil”.

Ramalho Ortigão viu esse branco nas casas, nas pontes, nos edifícios, nos navios, nas velas e nas nuvens, sob luz forte de um sol tropical, “que lhe dá o poder calcinante dos espelhos de Arquimedes, quando ele só é irresistivelmente belo ao luar, que dá a essa cal crua e reverberante um tom de pérola que faz a cidade parecer toda de mármore, mas de um mármore tirado das jazidas dos sonhos e da alvura imaterial dos fantasmas. . .”

E continua Nabuco, “eu verdadeiramente sinto que o eminente artista não se tenha demorado aqui à noite, para ver esse Recife, onde a imaginação de Castro Alves se povoou de todos os seus sonhos de poesia, de liberdade e de grandeza, o Recife do seu [poema a] ‘Pedro Ivo’, …dormindo imensa ao luar!”

Possuído do orgulho de ser do Recife, enfatiza Joaquim Nabuco, com o seu poder de observador:

Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do contemplador e a do lugar, cheguem a entender-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam! Não é a todos que a natureza conta os seus segredos e inspira o seu amor, mas mesmo com os poucos de quem ela tem prazer em fazer pulsar o coração é preciso que eles se aproximem dela sem pressa de a deixar, com tempo para ouvi-la. Os viajantes nunca estão nessa disposição de espírito em que é possível estabelecer-se o magnetismo da paisagem sobre os sentidos, de fato sobre o coração. Felizmente Ramalho Ortigão é uma máquina fotográfica instantânea, que apanha num segundo o seu objetivo todo, e acontece que hoje as boas máquinas percebem e notam sombras na pele, que não se vêem a olho nu, e que servem para conhecer a enfermidade latente. Ele não terá sentido os eflúvios desta nossa terra, os quais talvez seja preciso ser pernambucano para sentir e que podem não ter realidade e magia senão para nós mesmos, mas a impressão que lhe causou a nossa Veneza há-de render-nos uma pintura que durará como as gravuras holandesas do Século XVII.


Leonardo Dantas - Esquina sexta, 05 de outubro de 2018

DO SAMBA DE RODA AO FREVO DE RUA
DO SAMBA DE RODA AO FREVO DE RUA

frevo como música tem sua origem no repertório das bandas militares em atividade na segunda metade do século XIX no Recife. O maxixe, o tango brasileiro, a quadrilha, o galope e, mais particularmente, o dobrado e a polca, combinaram-se, fundiram-se, dando como resultado o frevo, criação do Carnaval do Recife ainda hoje em franca evolução musical e coreográfica.

Da pronúncia popular do verbo ferver originou-se o vocábulo frevo, no que são concordes todos os estudiosos do assunto.

Lembro, porém, a observação de José Antônio Gonsalves de Mello, em depoimento pessoal, quando chama a atenção da presença daquele verbo, em sua forma de pronúncia usada pelas camadas menos letradas da população, frever, em autos populares.

 

Exemplo dessas manifestações, ainda no século XVIII, nos é dado por Francisco Pacífico do Amaral, em Escavações (Recife 1884), ao relatar as festas em homenagem ao governador José César de Menezes, ocorridas em 19 de março de 1775, quando dois “eremitas”, Antão e Bernabé, cantam dentre tantas essas quadrinhas:

Dizei bem, vá de função,
Ferva o meu Padre a folia
Bebamos, que a tudo chegam
As esmolas da caixinha.

O mesmo pesquisador chama a atenção para o conto de Luís de Guimarães Júnior (1845-1898), publicado no Diario de Pernambuco de 8 de fevereiro de 1871, sob o título “A alma do outro mundo. Conto do Norte”. O conto tem o subúrbio recifense do Ibura como cenário, tecendo o seu autor, então estudante da Faculdade de Direito do Recife, comentários sobre o que ele denomina de “samba do Norte”:

O samba de roda do Norte é uma coisa digna de ver. As toadas das cantigas em desafio prendem d’alma e provocam os sentidos. Há certa poesia selvagem naquelas danças características, entrecortadas de moda e trovas, que revela exuberantemente o mundo de sentimento da alma rude e ingênua do povo!

No seu texto, o autor transcreve várias estrofes dos cânticos, fazendo referências a Tertuliano, a quem chama pelo apelido, Teto, descrevendo-o como “um rapaz magro, amorenado, como por lá diziam, de olhos vivos e cintura delgada. Morava em Olinda; nas redondezas de 40 léguas não se começava um samba sem ele chegar. – ‘Ferva o samba minha gente! Entra na roda, Teto!’ – Dançava como um corisco e pulava como um macaco! Corta jaca, Teto! O passo da tesoura! O passo do tesouroO caranguejo!”.¹

– Corta jaca, Teto!

– O passo da tesoura! O passo da tesoura!

– O caranguejo!

Teto entrou e lançou ao chão com uma agilidade graciosa e chapelinho de palha. Estava em angas de camisa e trazia uma gravata de seda vermelha, que ondulava-lhe ao pescoço, como a bandeira inglesa no mastro grande de uma fragata! As guitarras gemeram; as facas atacaram as botijas, os violões e as violas uniram-se ao ruidoso concerto com as suas longas e plangentes notas:

Batam bem nessa viola,
Deixem as cordas quebrar
Que eu quero espalhar saudades
Quero penas espalhar!

Derivado de fervorescente, efervescente, ferver – palavras então conhecidas popularmente como frevorescente, efrevescente e frever -, o frevo lembra ainda, segundo Luís da Câmara Cascudo, in Locuções tradicionais no Brasil (1977), “confusão, movimentação desusada, rebuliço, agitação popular”, ou ainda, para Pereira da Costa, in Vocabulário Pernambucano, “apertões de grande massa popular no vaivém em direções opostas, como pelo Carnaval , e nos acompanhamentos de procissões, passeatas e desfilar de clubes Carnavalescos”.

No meio dos clubes Carnavalescos, porém, o vocábulo frevo já se encontrava presente em 1907, segundo demonstra Evandro Rabello em artigo sobre o cronista carnavalesco, Osvaldo de Almeida, publicado no Diario de Pernambuco de 11 de fevereiro de 1990. Naquele ano, 1907, o Clube Carnavalesco Empalhadores do Feitosapublica no Jornal Pequeno, edição do sábado de Carnaval, 9 de fevereiro, o repertório da agremiação onde aparece O Frevo como uma das marchas a ser executadas pela orquestra:

Empalhadores do Feitosa, em sua sede que se acha com uma ornamentação belíssima, fez ontem esse apreciado clube o seu ensaio geral, saindo após em bonita passeata, a fim de buscar o seu estandarte que se acha em casa do sr. Alfredo Bezerra, sócio emérito do referido clube. O repertório é o seguinte:

Marchas – Priminha, Empalhadores, Delícias, Amorosa, O Frevo, O Sol, Dois Pensamentos e Luís Monte, José de Lyra, Imprensa e Honorários; Ária – José da Luz; Tango – Pimentão. Agradecemos o convite que nos foi enviado para o segundo dia de Carnaval .

Para o Carnaval de 1907 o Clube Empalhadores do Feitosa contratou como orquestra a primeira fração da Banda da Polícia Militar, realizando o seu ensaio geral na quinta-feira, dia 7 de fevereiro, no Hipódromo, onde se encontrava a sua sede, fazendo no primeiro dia de Carnaval uma visita à povoação da Torre, seguindo depois para o seu “passeio” pelos bairros do centro do Recife.

Em sua edição de 22 de fevereiro de 1909, o Jornal Pequeno traz ocupando a sua primeira página uma interessante xilogravura de autor desconhecido com a frase Olha o Frevo, anunciando desta maneira os festejos Carnavalescos daquele ano. Tal ilustração, encontrada pelo autor destas notas, passou a ser usada quando da criação do primeiro Baile da Saudade no Carnaval de 1973; festa que se repetiu por dezoito anos, sendo proclamada a mais animada prévia do Carnaval Pernambucano.

Olha o Frevo, veio a ser popularizada a partir de então, figurando em todos os convites e impressos do Baile da Saudade, bem como na série de cinco LPs, sob o mesmo título, editados pela Fábrica de Discos Rozenblit no Recife.

Pereira da Costa, em seu Vocabulário Pernambucano, assim comenta: “O termo frevo, vulgaríssimo entre nós, apareceu no Carnaval de 1909: Olha o Frevo! — era a frase de entusiasmo que se ouvia no delírio da confusão e apertões do povo unido, compacto, ou em marcha acompanhando os clubes”.²

Na segunda década do século vinte o vocábulo e seus derivados aparecem com frequência no noticiário Carnavalesco da imprensa do Recife:

– “O apertão do frevo, nesse descomunal amplexo de toda uma multidão que se desliza, se cola, se encontra, se roça, se entrechoca, se agarra” (Jornal do Recife, nº 65, 1916).

– Ou nesses versinhos: “O frevo que mais consola, / O que mais nos arrebata, / É o frevo que se rebola / Ao lado de uma mulata” (Diario de Pernambuco nº66, 1916).

– “Os rapazes souberam arranjar uma orquestra tão boazinha, que vem dar uma vida extrapiramidal ao rebuliço do frevo” (O Estado de Pernambuco nº 48, 1914).

– “O clube levará um dos seus carros com uma pipa do saboroso binho berde para distribuir com o pessoal da frevança” (Jornal Pequeno nº 39, 1917).

– “Do mundo a gente se esquece / Pinta a manta, pinta o bode, / E se o frevar recrudesce / Mais a gente se sacode” (Diario de Pernambuco nº 66, 1916).

Por sua vez, Rodolfo Garcia, no seu Dicionário de Brasileirismos (Peculiaridades Pernambucanas)³, transcrevendo o nº 32 de A Província, Recife: 2 de fevereiro de 1913, aponta o original registro:

O Frevo, palavra exótica
Tudo que é bom diz, exprime,
É inigualável, sublime,
Termo raro, bom que dói…
Vale por um dicionário,
Traduz delírio, festança,
Tudo salta, tudo dança,
Tudo come, tudo rói


¹ Conto publicado na íntegra — Guimarães Júnior, Contos sem Pretensão: A Alma do Outro Mundo. Universidade da Amazônia NEAD – Núcleo de Educação à Distância. Av. Alcindo Cacela, 287 – CEP: 66060-902 – Belém – Pará. Fones: (91) 4009-3196 /4009-3197. www.nead.unama.br E-mail: nead@unama.br

² COSTA. F.A. Pereira da. Vocabulário pernambucano. Prefácio de Mário Souto Maior. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1978. 816 p. Coleção Pernambucana, 1ª fase, v. 2.

³  GARCIA, Rodolfo. “Diccionário de Brasileirismo (Peculiaridades Pernambucanas) in Separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro v. 76 (1), p. 633-947. Rio: 1913.

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 27 de setembro de 2018

IGARASSU: UM MÁRTIR DA FÉ NA CONSTRUÇÃO DA IGREJA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

 

 
IGARASSU: UM MÁRTIR DA FÉ NA CONSTRUÇÃO DA IGREJA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

O missionário jesuíta Gabriel Malagrida, mártir da fé em Portugal, tem sua presença ligada à vida religiosa da primitiva Vila de Igarassu quando, na primeira metade do século XVIII, ajudou o padre Miguel Rodrigues Sepúlveda na construção do Convento do Sagrado Coração de Jesus, casa matriz da Ordem do Sagrado Coração no Brasil.

 

A Igreja do Sagrado Coração de Jesus de Igarassu e seu convento anexo são frutos da inspiração e esforço do padre Miguel Rodrigues Sepúlveda, sacerdote de origem abastada, nascido na nessa vila por volta de 1699.

Na execução do seu projeto de apostolado da fé, o padre Miguel Rodrigues Sepúlveda recebeu influência do padre Antônio Fialho, vindo em 1735 iniciar a construção de uma espécie de retiro dedicado à vida religiosa masculina.

Cinco anos depois, inspirado no seu exemplo, um grupo de mulheres da vila de Igarassu passa a sonhar com a construção de outro recolhimento, desta feita destinado ao sexo feminino. Neste último seriam reunidas viúvas, moças solteiras e mesmo prostitutas arrependidas que se obrigassem a viver sob os rigores da clausura.

Por essa época visitava Igarassu o jesuíta Gabriel Malagrida, cuja missão apostólica visava à construção de recolhimentos religiosos para homens e mulheres em diversas cidades brasileiras. Contando com a inestimável ajuda desse missionário, o padre Manuel Rodrigues Sepúlveda iniciou, com aquele jesuíta, uma grande peregrinação pelo interior das capitanias de Pernambuco e da Paraíba em busca de doações visando à construção do recolhimento feminino de Igarassu. Após um ano de suas andanças, volta o padre Sepúlveda e logo inicia a construção do convento cuja primeira parte estava concluída em 1º de março de 1742, quando as vinte primeiras noviças entram na posse do novo prédio.

Por sua vez, o padre Gabriel Malagrida veio a ter participação destacada na vida religiosa do Brasil, particularmente como responsável pela fundação de várias casas, como o Seminário de São Luís do Maranhão (1753), o Seminário de Nossa Senhora das Missões de Belém (1753), o Convento de Nossa Senhora da Piedade de Salvador (1741) e o Seminário de Salvador (1747).

Regressando à Lisboa, Gabriel Malagrida entrou em conflito com o Marquês do Pombal, por ocasião do grande terremoto de 1º de novembro de 1755, época em que publicou um opúsculo – “Juízo da verdadeira causa do terramoto de Lisboa” –, onde atribuía às culpas morais e ao Estado a responsabilidade daquele terrível sismo que veio a arrasar toda a cidade.

Preso em Setúbal (1756), por ordem do Marquês do Pombal, então secretário de Estado do Reino, foi denunciado à Inquisição, por crime de sedição, heresia e sacrilégio. Condenado à fogueira pelo Tribunal do Santo Ofício, foi executado no largo do Rossio, quando do último auto-de-fé promovido em Portugal, em data de 20 de setembro de 1761, transformando-se em mais um mártir da fé.¹

Em Igarassu, o pequeno recolhimento que ele ajudara a levantar, logo se tornou insuficiente para abrigar o grande número de noviças que para ele afluía.
Inconformado com o prédio do recolhimento, o padre Manuel Sepúlveda inicia a construção de um templo anexo destinado aos serviços religiosos das noviças que, para tal, não precisariam ausentar-se da clausura.

Reunindo recursos das mais diversas fontes, notadamente das esmolas que recolhia, deu início às obras da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, cuja pedra fundamental vem a ser assentada pelo bispo Luiz de Santa Tereza no ano de 1747, prolongando-se a construção até 30 de janeiro de 1758, quando da solene sagração pelo bispo diocesano Francisco Xavier Aranha.

Até o ano do seu falecimento, em 1768, o padre Miguel Rodrigues Sepúlveda dedica todos os seus esforços e patrimônio à orientação espiritual e provimento do recolhimento do Sagrado Coração de Jesus de Igarassu. Com o seu desaparecimento, o convento entra em decadência e, em 1850, como fruto desse abandono, toda a parte fronteira ao claustro e respectivo teto vêm a desabar. A restauração do prédio arruinado veio a ser efetivada pelo missionário capuchinho frei Caetano de Messina que, com a ajuda da população, reergueu a frente do claustro em vinte dias. E com o dinheiro arrecadado entre os fiéis e partes das loterias, autorizadas pela lei provincial de 16 de abril de 1854, providenciou grandes reparos em todo o edifício conventual que foram concluídos no ano seguinte.

Atualmente, o prédio do convento possui dois pavimentos, na parte da frente, com janelas com vergas ligeiramente curvas no pavimento superior e abaixo porta ladeada por duas janelinhas, óculos ao longo da parede e mais adiante, caminhando-se em sentido oposto à igreja, encontra-se o portão do antigo colégio com frontão arqueado, monograma e pináculos.

A Igreja do Sagrado Coração de Jesus apresenta frontispício, dividido em três seções. A seção central com as três portas almofadadas que dão acesso à nave, sendo a porta do meio mais alta e larga que as suas laterais e têm frontão trabalhado acima das vergas curvas na altura das três janelas rasgadas por inteiro com sacadas de ferro. Acima da cimalha o frontão central, com cornija formada por curvas e contracurvas, traz o monograma da ordem, pináculos e cruz. Em 1855 deu-se início à construção da torre sineira, que fica à direita do observador. A segunda nunca foi concluída e é coroada por um frontão simples e pináculos. Tanto as janelas como as portas da torre e meia torre apresentam as mesmas características das janelas e portas da seção central.²

O conjunto encontra-se inscrito como Monumento Nacional no livro das Belas Artes v. 1, sob o n.º 400, 25 de maio de 1951; Histórico v.1, n.º 287, em 25 de maio de 1951 (Processo 359-T/45).

_______________________________________________________________________________

¹ RUBERT, Arlindo. A igreja no Brasil. v. 3. Santa Maria (RS): Pallotti, 1988. p. 216.

² CARRAZONI, Maria Elisa. Op. cit.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 20 de setembro de 2018

ARRUANDO PELO RECIFE: NO TEMPO DA MAXAMBOMBA

 

 
ARRUANDO PELO RECIFE: NO TEMPO DA MAXAMBOMBA

Estação de Ponte D’Uchoa

Sentado em um dos bancos da Estação de Ponte D’Uchoa, construída em 1865 e situada em frente ao Colégio Damas, estamos a recordar o tempo distante das maxambombas.

Tudo aqui nos leva a recordação do primeiro trem urbano da América da América do Sul, ou como diríamos nos dias atuais, o nosso primeiro metrô de superfície, surgido naquela tarde de cinco de janeiro de 1867, que veio unir o centro do Recife aos subúrbios mais distantes.

Explorados pela Brazilian Street Railway Company, empresa dirigida por ingleses, os trens urbanos receberam o apelido de maxambomba, estabelecendo assim a “Linha Principal”; que ao chegar à Estação do Entroncamento(hoje praça do mesmo nome), se bifurcava em três ramais: Linha Principal (Dois Irmãos), Caxangá, Arraial (Casa Amarela e Monteiro).

Maxambomba no Cais Martins de Barros

Com o passar dos anos os ramais foram estendidos até a povoação de Beberibe, que tinha seu itinerário através da atual Avenida João de Barro, se bifurcando na Encruzilhada de Belém, com as composições seguindo pela Estrada de Belém (Olinda) e Estrada de Beberibe (hoje avenida).

A ligação com Olinda, porém, só veio a ser inaugurada em 24 de junho de 1870, através da Estrada de João de Barros passando pela Encruzilhada, seguindo pela Estrada de Belém até atingir, o vizinho município, nas localidades de Salgadinho, Duarte Coelho e Carmo.

A primeira linha da maxambomba possuía a bitola de 1.219 mm (quatro pés), atingindo a povoação de Dois Irmãos em 24 de junho de 1870.

Posteriormente, com a construção da Ponte Lasserre (Ponte da Capunga), a maxambomba passou a servir a toda Estrada Nova de Caxangá, chegando até a Várzea (1885).

Fundão – Beberibe

Linha do Arraial, porém, com destino à Casa Amarela e Monteiro, vem ser inaugurada em 24 de dezembro do ano de 1870.

O vocábulo maxambomba, segundo Pereira da Costa, “tem origem fluminense, em cujo estado há uma localidade [hoje Nova Iguaçu] assim chamada”; na antiga cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo), capital da República de Moçambique, na África Austral, o vocábulo servia para designar certo tido de transporte coletivo (espécie de micro-ônibus); opinando Antenor Nascentes ter ele origem na corruptela de machine pump (bomba mecânica).

No ano de 1870, segundo o relatório da concessionária, o sistema de transportes era composto por cinco locomotivas, onze carros de passageiros e mais cinco outros destinados aos serviços de carga.

Estacão do Chapéu de Sol de Aguá Fria

Vale recordar do escritor Mário Sette, “cada um de que viveu seu tempo (da maxambomba) guardará uma recordação amável, esquecendo a poeira dos vagões, o sacolejo das rodas, as janelas sem vidraças, os atrasos nos desvios, os argueiros de carvão e os pregos dos bancos que furavam as calças novas… Olhamos, de longe, somente o lado bom das maxambombas. Sem cometer o gesto ingrato daqueles que recitavam os versinhos em voga antigamente:

Trepei na bomba
Comi pitomba;
Atirei caroço
Na maxambomba…


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 13 de setembro de 2018

RECIFE: ATRAVÉS DOS POPULOSOS CAMINHOS...

 

 
RECIFE: ATRAVÉS DOS POPULOSOS CAMINHOS…

Até meados do século XIX, o transporte da população do Recife era feito através do curso dos rios Capibaribe e Beberibe ou em carros de bois, lombos de animais, e até mesmo em cadeirinhas de arruar, palanquins e liteiras, cujos anúncios ocupavam as páginas da imprensa daqueles dias.

Certa vez, causou espanto a uma memorialista recifense, quando afirmei que Dona Anna Paes, do Engenho da Casa Forte, na primeira metade do século XVII, não possuíra carruagens (!) e suas idas e vindas ao Recife eram feitas através de canoas do rio Capibaribe (!), como acontecia com todas as senhoras do seu tempo.

Somente após a segunda metade do século XIX, com a implantação das primeiras estradas suburbanas, passou-se a fazer uso dos carros puxados a cavalo, que logo foram objeto de reclamação por parte dos “incomodados” a exemplo do registro de O Carapuceiro, jornal de críticas do padre Miguel do Sacramento Lopes da Gama.

Traquitanas, carros, seges,
Cabriolés e carrinhos,
Obstruem dia e noite
Os populosos caminhos

Carros de tração animal importados da Europa, produzidos na França e em outros centros, eram oferecidos nos anúncios dos jornais até como veículos de aluguel, antecedendo assim o nosso serviço de táxis. Seus condutores, segundo as posturas municipais, deveriam estar matriculados na repartição de polícia, trazer os animais a trote curto através das ruas centrais, não podendo abandonar o veículo nem admitir carga ou passageiro além do anteriormente estabelecido. Eram punidos por maus-tratos aos animais e por trafegar na quinta-feira e sexta-feira da Paixão.

Rio Capibaribe (F.H. CARLS 1878)

O transporte coletivo, porém, só veio a aparecer em 1847, com a ligação por diligência entre o Recife e Olinda. O uso da diligência, como se depreende dos desenhos de Luís Schlappriz litografados por Francisco Henrique Carls (1863), foi uma rotina para a população do Recife até 1876. A diligência era chamada de ônibus, a propósito da expressão latina: para todos. Os seus serviços atingiram a povoação de Apipucos em 1852, sendo explorada por Cláudio Dubeux; comerciante de pólvora residente naquela povoação onde faleceu em 13 de janeiro de 1881. A passagem avulsa do “ônibus do Cláudio”, como veio a ser conhecido, foi fixada em 1 mil réis.

Ao contrário de outros centros urbanos, o Recife tem a sua formação rurbana. O primitivo núcleo populacional, antigo porto de Olinda, cresceu em razão do seu ancoradouro, “o mais nomeado” do Brasil, na citação de frei Vicente do Salvador, naqueles primeiros anos de nossa colonização. Foram os produtos da terra, notadamente o açúcar produzido pelos engenhos da Várzea do Capibaribe, que fizeram o desenvolvimento do Recife transformando antigos engenhos em povoações, depois subúrbios e hoje bairros da cidade: Madalena, Torre, Cordeiro, Casa Forte, Monteiro, Barbalho, Apipucos, Dois Irmãos, Caxangá, Várzea, Engenho do Meio, Curado, São Paulo, Peres, Jiquiá, Afogados, entre outros.

As comunicações do porto com esses centros produtores eram feitas, até bem recentemente, através dos rios, usando-se para isso a canoa, a alvarenga e outros tipos de embarcação. As vias de acesso, por terra, só vieram a aparecer no final do século XVIII, o que obrigava a população a recorrer à navegação nas suas ligações com Olinda, capital de Pernambuco até 1827, como se depreende da descrição de viajantes e documentos oficiais.

Estradas Suburbanas

O primeiro administrador a preocupar-se com a ligação do centro com as povoações do entorno, através de estradas, foi Dom Tomás José de Melo, que governou Pernambuco de 1787 a 1798, quando da construção da primitiva Estrada da Casa Forte (1774), unindo esta povoação a Cruz das Almas (Parnamirim), pela via hoje conhecida como avenida Parnamirim e avenida Dezessete de Agosto.

Mas o núcleo urbano da Boa Vista terminava no fim da atual rua Visconde de Goiana, precisamente no local hoje ocupado pelo Colégio Salesiano, então denominado de Sítio do Mondego, situação em que permaneceu até o início do século XIX.

Em 1802, deu-se início ao projeto das Estradas Suburbanas, partindo do Mondego, as obras da Estrada Real de São José do Manguinho que obedeceram ao traçado da atual rua Dom Bosco. Deste caminho surgiu, partindo da atual praça do Entroncamento, uma bifurcação para os Aflitos, atingindo-se por ela a Tamarineira, Espinheiro, Encruzilhada e Cruz das Almas (Parnamirim), terminando no Largo do Monteiro; traçado hoje obedecido pela avenida Rosa e Silva e seguido pela atual Estrada do Arraial. De Cruz das Almas, nome originário de uma cruz devocional colocada no final da atual rua Padre Roma com a praça Fleming, iniciava-se a Estrada Velha de Beberibe que, cruzando a Estrada do Arraial (1836) passava pela povoação da Água Fria e Encruzilhada de Belém, fazendo ligações posteriores com o Cumbe (1879), Porto da Madeira (1882), Maricota, Linha do Tiro, Dois Unidos, Águas Compridas, Brejo de Macacos e Olinda, passando por Peixinhos. A Estrada Nova do Beberibe, atualmente denominada de avenida Beberibe, só veio a ter começo, partindo da Encruzilhada de Belém, em 1866, ficando concluída no ano seguinte.

O prolongamento da Estrada Real de São José do Manguinho – “como eram lindos os nomes das ruas da minha infância” – interligando São José do Manguinho com a Estrada da Casa Forte, foi iniciado em 1842 com ramificações para o Poço da Panela, atual Estrada Real do Poço, e Casa Amarela, através do Monteiro, seguindo-se de ligações com Apipucos e Dois Irmãos, obedecendo ao mesmo traçado hoje conhecido. A Estrada do Encanamento, nome que intriga tantos recifenses, veio a ser construída em 1846 pela Companhia de Águas do Beberibe, com a finalidade que a própria denominação está a indicar.

A ligação do Recife com a vizinha cidade de Olinda, então capital de Pernambuco, era feita precariamente pelo istmo que separava do mar as águas do rio Beberibe ou pela via fluvial até o Varadouro. A ligação por terra, através da então povoação de Santo Amaro das Salinas, só veio a acontecer em 1821, quando da administração do capitão-general Luiz do Rego Barreto.

Antes, a ligação, por terra, com Olinda, era feita também através da antiga Carreira dos Mazombos, antigo caminho do século XVII, que unia Olinda à povoação da Encruzilhada depois conhecido como Estrada de Belém. Em 1820, a Encruzilhada veio a ser ligada a Boa Vista através da Estrada de João de Barros, que tinha início na atual rua da Soledade. A Estrada de Belém, por sua vez, foi alargada em 1866, recebendo uma bifurcação para as povoações de Sítio Novo e Peixinhos, passando a ser utilizada a partir de 1870 pelos trilhos da maxambomba – apelido colocado em nosso primeiro trem urbano – que fazia a ligação do Recife com Olinda. Itinerário da extinta linha do ônibus Olinda-Carmo.

Para o Sul o núcleo primitivo da cidade se comunicava com Afogados, Jiquiá, Estância, Tejipió e cidades do interior, como Vitória de Santo Antão, a partir da rua Imperial; obedecendo ao traçado do primitivo Aterro dos Afogados, construído à época do Domínio Holandês (1630-1654).

A ligação com a Madalena, partindo do Chora Menino, foi iniciada em 1834, passando pelo Paissandu, cruzando o rio Capibaribe, na altura da ilha do Retiro, até atingir o Sobrado Grande, na atual praça João Alfredo. A união de Afogados com a Estrada da Madalena foi possível através da Estrada dos Remédios (1850), com 2.423 m. e três pontes. A partir do Sobrado Grande da Madalena iniciou-se a ligação com a povoação da Torre, obedecendo ao traçado da atual rua Real da Torre.

O acesso à povoação da Várzea, veio a ser efetivado pela Estrada do Ambolê, em 1872, depois denominada de Estrada Velha do Bongi, que, além desta última, também atingia outras povoações dos Torrões e Engenho do Meio.

A ligação com a povoação de Caxangá, porém, veio a fazer-se de forma direta através da Estrada Nova de Caxangá (hoje, Avenida Caxangá), aberta para o assentamento dos trilhos da Brazilian Street Railway; empresa responsável pela implantação do primeiro trem urbano da América Latina, popularmente conhecido pela designação de maxambomba. A primeira composição da maxambomba veio correr em 5 de janeiro de 1867, ligando a estação da rua da Aurora, com a povoação de Apipucos.

Da povoação da Encruzilhada de Belém construiu-se, entre 1866-67, a Estrada de Beberibe, que custou aos cofres do erário a importância de 18.326$000. De Beberibe seguiam estradas para Maricota; Cumbe, construída em 1879, com 880 m.; da Estação do Porto da Madeira e da ladeira do Lava-tripas (1882). A povoação da Encruzilhada foi ligada, a partir de 1866, com as de Salgadinho e Peixinhos, em Olinda, que, por sua vez, se interligavam com a povoação de Beberibe através da antiga Carreira dos Mazombos, já assim conhecida no século XVII.

Ao iniciar-se o século XX, as estradas suburbanas do Recife somavam-se 32 quilômetros, que uniam as diversas povoações do entorno da cidade, conservando algumas, nos dias de hoje, as suas primitivas denominações.

Numa série de artigos publicados no Diario de Pernambuco, em janeiro de 1903, F. A. Pereira da Costa informa ser de 425,125 km. a malha rodoviária do Estado de Pernambuco.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 06 de setembro de 2018

O FREVO QUE METE MEDO...

 

 
 
O FREVO QUE METE MEDO…

Era apenas o frevo.

O frevo! Um imperativo de loucura, um contágio de desatinos, uma coceira de alegria. Ninguém mais se continha, ninguém mais se governava. Todas as imediações do bairro atravessado pelo buliçoso cordão Carnavalesco vibravam ao zumbido fortíssimo do contentamento. Nas ruas mais afastadas o povo parava, ouvia os acordes ásperos da orquestra, orientava-se, e disparava de novo, entreavisando-se:

– Vem pelo pátio do Terço, minha gente!

– Vamos esperar ele na esquina da igreja.

– Eu vou atalhar no Livramento. (Mário Sette)

Para o escritor Mário Sette, in Seu Candinho da Farmácia (1933) “era apenas o frevo” que tomava conta das ruas estreitas do bairro de São José, mas para a garota Maria Lia Faria, aquele multidão de homens, com os seus corpos suados, pulando ao som de uma música estridente, se tornara uma onda que ameaçava quem estivesse no seu trajeto.

Recém–chegada do Rio de Janeiro, fora residir no Parque Treze de Maio e, no seu primeiro carnaval, em 1939, se viu diante de um clube carnavalesco pedestre, trazendo sua fanfarra de metais a executar agudas notas, acompanhada de uma percussão que levava a multidão a loucura…

Aquela onda de homens a pular contritos, no ruge-ruge de corpos, sisudos e circunspectos, acompanhando os agudos acordes da fanfarra, causou espanto, seguido de medo e pavor, naquela adolescente que tentava se aclimatar aos costumes de sua nova cidade.

Tal não foi a surpresa quando, naquele mesmo Carnaval, ao adentrar-se nos salões do Clube Internacional constatou que no Recife a festa tinha outras características.

Poucos pares enlaçados, como era comum em outras cidades, mas muita gente pulando ao som do frevo da Orquestra de Nelson Ferreira, não com a violência que acontecia nas ruas, “coisa de doido de cabra assanhado”, mas moderadamente, comportadamente, a cantar a plenos pulmões as marchas românticas compostas por Capiba, Irmãos Valença e outros mais.

Neste mesmo Carnaval, a Maria Lia vem conhecer, também, o Maracatu Elefante a desfilar pelas ruas, ao som dos seus bombos e atabaques, que lhes trouxe de volta às melodias que aprendera a cantar na cozinha de sua casa do Rio de Janeiro, quando as empregadas entoavam loas cantadas nos terreiros de candomblé.

Naquele balanço, naquele gingado, a menina se sentiu em casa; “na sua praia”, como se diz em nossos dias…

 

 

 

Leonardo Dantas - Esquina quinta, 30 de agosto de 2018

1654: JUDEUS TROCAM O RECIFE POR NOVAS TERRAS

 

 
 
1654: JUDEUS TROCAM O RECIFE POR NOVAS TERRAS

 

 

Amsterdam (1655)

Após a rendição das tropas da Companhia das Índias Ocidentais, em 27 de janeiro de 1654, cerca de 400 judeus residentes no Recife e em Maurícia tiveram “o prazo de três meses para liquidar seus negócios e abandonar o país”. Os súditos holandeses, porém, que quisessem permanecer com os seus negócios e propriedades, no Brasil, teriam o mesmo tratamento dos estrangeiros residentes em Portugal.

Como o prazo dado era por demais diminuto, na população judia, particularmente entre os cristãos-novos convertidos ao judaísmo, cresceu o temor dos castigos do Tribunal da Inquisição. O governador português Francisco Barreto de Menezes, em sua proclamação de 7 de abril, somente admitia a prorrogação da permanência daqueles judeus que nunca haviam sido batizados, “os judeus que anteriormente haviam sido cristãos, estavam sujeitos a Santa Inquisição, um assunto que não podia interferir”. No dia seguinte à proclamação, “um grupo de judeus solicitou, com êxito, às autoridades holandesas uma provisão de alimentos suficiente para viajar a França no navio português São Francisco, tendo em conta que se tratava aproximadamente de 150 pessoas”.

Tomados de medo e de pavor cerca de 400 judeus ganharam novamente o oceano em busca dos Países Baixos. Por não encontraram meios de subsistência, outra vez retornaram ao Novo Mundo, estabelecendo novas comunidades no Caribe – Martinica, Barbados, Curaçau e Jamaica. No seu novo destino se dedicam à indústria do açúcar, fundando novos engenhos e cultivando as mudas de cana que haviam levado de Pernambuco, bem como a cultura do fumo, estabelecendo-se outros na América do Norte, que, na época, iniciava a colonização da Nova Amsterdã (Nova Iorque).

Judeus em Nova York

O forte da Nova Amsterdam na ilha de Manhathan (1651)

A saga de um desses grupos saídos do Recife é descrita pelo haham de Amsterdã Saul Levi Mortera, pouco antes do seu falecimento em 1660, no manuscrito a Providencia de Dios con Israel , que, passageiros do navio Valk tiveram o seu barco tomado por espanhóis que os ameaçavam de entregar à Inquisição. Na Jamaica, porém, foram os judeus libertados pelos franceses e, com eles, rumaram em direção à Nova Amsterdã a bordo do barco Sainte Catherine. Desse grupo, 23 judeus [quatro casais, duas viúvas e treze crianças], já se encontravam na Nova Amsterdã em setembro de 1654, fundando assim a primeira comunidade judaica daquela que veio a ser a cidade de Nova Iorque.

Em 1954, por ocasião do terceiro centenário da chegada dos primeiros judeus à Nova Iorque, o local do desembarque foi assinalado com marco afixado pelas autoridades estaduais.

• Erected by The State of New York to honor the memory of the twenty three men, women & children who landed in september 1654 FOUNDED THE FIRST JEWISH COMMUNITY IN NORTH AMERICA.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 23 de agosto de 2018

DO CAVALO AO AUTOMÓVEL, POR SECULARES CAMINHOS

 



 

Em 221 quilômetros quadrados e 471 mil metros quadrados de uma planície aluviônica, cortada por rios e outros cursos d’água menores, vive uma população estimada, em 1997, em mais de 1.357.967 pessoas que, no ir e vir do dia-a-dia, transpõem 108 pontes e utilizam-se de uma frota superior a 339.104 veículos automotores, que representam 44,95% de todo estado, transformando este quadro em um dos multifacetados problemas da vida diária da cidade do Recife.

É o Recife, como já vimos, um dos mais antigos núcleos urbanos das três Américas. Originário do Arrecife dos Navios, povoação já existente em 1537, ainda conserva, nos seus bairros centrais, o mesmo traçado do século XVII quando do seu primeiro plano urbanístico, realizado pelo arquiteto Pieter Post (1608-1668) a pedido do Conde João Maurício de Nassau.

Localizada numa grande planície formada pelos deltas dos rios Capibaribe, Beberibe, Jiquiá, Tejipió, Morno, Jordão, Pina, além de outros cursos d’água por vezes fora dos seus limites, a cidade do Recife, quando vista do alto, mais parece a parte superior de uma estrela que, tendo por centro o bairro portuário, expande os seus raios através dos antigos caminhos suburbanos e itinerários, das estradas de ferro do século XIX.

Em 1968, quando sua população era de 1.084.479 habitantes, o Recife possuía matriculados 30.237 veículos automotores; vinte anos depois, para uma população estimada em mais de 1.289.627 habitantes, foram licenciados 201.108 viaturas, o que representava uma média de 908 veículos por quilômetro quadrado ou um carro para cada 6,4 habitantes.

Em 1997 foram matriculados, em todo o estado de Pernambuco, 754.447 veículos, dos quais 464.667 estão a circular na área metropolitana do Grande Recife. Para 1998, a estimativa do total de veículos automotores, matriculados até dezembro, é da ordem de 830.000 em todo o estado.

Há mais de um século que o trânsito de veículos vem sendo um dos problemas dos administradores da cidade do Recife. Em nome desse trânsito foram alargadas ruas, destruídos becos e quarteirões de prédios coloniais, demolidos templos e até as seculares portas do primitivo núcleo. O melhor do passado histórico do Recife cedeu ao determinismo do “progresso” dos nossos dias, sem que o burburinho do trânsito tenha, em sua problemática, qualquer solução definitiva a médio prazo.

1. Cidade Rurbana

Ao contrário de outros centros urbanos, o Recife tem a sua formação rurbana. O primitivo núcleo populacional, antigo porto de Olinda, cresceu em razão do seu ancoradouro, “o mais nomeado” do Brasil, na citação de frei Vicente do Salvador, naqueles primeiros anos de nossa colonização. Foram os produtos da terra, notadamente o açúcar produzido pelos engenhos da Várzea do Capibaribe, que fizeram o desenvolvimento do Recife transformando antigos engenhos em povoações, depois subúrbios e hoje bairros da cidade: Madalena, Torre, Cordeiro, Casa Forte, Monteiro, Barbalho, Apipucos, Dois Irmãos, Caxangá, Várzea, Engenho do Meio, Curado, São Paulo, Peres, Jiquiá, Afogados, entre outros.

As comunicações do porto com esses centros produtores eram feitas, até bem recentemente, através dos rios, usando-se para isso a canoa, a alvarenga e outros tipos de embarcação. As vias de acesso, por terra, só vieram a aparecer no final do século XVIII, o que obrigava a população a recorrer à navegação nas suas ligações com Olinda, capital de Pernambuco até 1827, como se depreende da descrição de viajantes e documentos oficiais.

Quando governou o Brasil Holandês, entre 1637 e 1644, o conde João Maurício de Nassau já se preocupava com o sistema viário do Recife. Para isso contratou os serviços do arquiteto Pieter Post a fim de elaborar o traçado de parte das ruas da Cidade Maurícia – espaço hoje ocupado pelos bairros de Santo Antônio e São José –, segundo se depreende das plantas assinadas por Vingboons (1639) e Cornelius Goliath (1648). Foi também Maurício de Nassau que, preocupado com a integração do sistema urbano de Maurícia, determinou a construção das duas primitivas pontes, ligando o bairro do Recife à ilha de Santo Antônio e está às terras da Boa Vista. Também na sua administração foi construído o aterro dos Afogados, unindo o forte das Cinco Pontas com o forte Príncipe Guilherme, dando assim origem à atual rua Imperial.

 

Foi ainda por iniciativa do conde João Maurício de Nassau que o Recife conheceu a primeira carroça, que viera anteceder a carruagem trazida de Lisboa pelo bispo Dom Diogo de Jesus Jardim em 1785.

2. Estradas Suburbanas

 

Depois do Conde João Maurício de Nassau, primeiro administrador a preocupar-se com a ligação através de estradas foi Dom Tomás José de Melo, que governou Pernambuco de 1787 a 1798, quando da construção da primitiva Estrada da Casa Forte (1774), unindo esta povoação a Cruz das Almas (Parnamirim), pela via hoje conhecida como avenida Parnamirim e avenida Dezessete de Agosto.

Mas o núcleo urbano da Boa Vista terminava no fim da atual rua Visconde de Goiana, precisamente no local hoje ocupado pelo Colégio Salesiano, então denominado de Sítio do Mondego, situação em que se permaneceu até o início do século XIX. Em 1802, deu-se início ao projeto das Estradas Suburbanas, partindo do Mondego, as obras da Estrada Real de São José do Manguinho que obedeceram ao traçado da atual rua Dom Bosco. Deste caminho surgiu, partindo da atual praça do Entroncamento, uma bifurcação para os Aflitos, atingindo-se por ela a Tamarineira, Espinheiro, Encruzilhada e Cruz das Almas (Parnamirim), terminando no Largo do Monteiro; traçado hoje obedecido pela avenida Rosa e Silva e seguido pela atual Estrada do Arraial. De Cruz das Almas, nome originário de uma cruz devocional colocada no final da atual rua Padre Roma com a praça Fleming, iniciava-se a Estrada Velha de Beberibe que, cruzando a Estrada do Arraial (1836) passava pela povoação da Água Fria e Encruzilhada de Belém, fazendo ligações posteriores com o Cumbe (1879), Porto da Madeira (1882), Maricota, Linha do Tiro, Dois Unidos, Águas Compridas, Brejo de Macacos e Olinda, passando por Peixinhos. A Estrada Nova do Beberibe, atualmente denominada de avenida Beberibe, só veio a ter começo, partindo da Encruzilhada de Belém, em 1866, ficando concluída no ano seguinte.

O prolongamento da Estrada Real de São José do Manguinho – “como eram lindos os nomes das ruas da minha infância” – interligando São José do Manguinho com a Estrada da Casa Forte, foi iniciado em 1842 com ramificações para o Poço da Panela, atual Estrada Real do Poço, e Casa Amarela, através do Monteiro, seguindo-se de ligações com Apipucos e Dois Irmãos, obedecendo ao mesmo traçado hoje conhecido. A Estrada do Encanamento, nome que intriga tantos recifenses, veio a ser construída em 1846 pela Companhia de Águas do Beberibe, com a finalidade que a própria denominação está a indicar.

A ligação do Recife com a vizinha cidade de Olinda, então capital de Pernambuco, era feita precariamente pelo istmo que separava do mar as águas do rio Beberibe ou pela via fluvial até o Varadouro. A ligação por terra, através da então povoação de Santo Amaro das Salinas, só veio a acontecer em 1821, quando da administração do capitão-general Luiz do Rego Barreto. Antes, a ligação, por terra, com Olinda, era feita também através da antiga Carreira dos Mazombos, antigo caminho do século XVII, que unia Olinda à povoação da Encruzilhada depois conhecido como Estrada de Belém. Em 1820, a Encruzilhada veio a ser ligada a Boa Vista através da Estrada de João de Barros, que tinha início na atual rua da Soledade. A Estrada de Belém, por sua vez, foi alargada em 1866, recebendo uma bifurcação para as povoações de Sítio Novo e Peixinhos, passando a ser utilizada a partir de 1870 pelos trilhos da maxambomba – apelido colocado em nosso primeiro trem urbano – que fazia a ligação do Recife com Olinda. Itinerário da extinta linha do ônibus Olinda-Carmo.

Para o Sul o núcleo primitivo da cidade se comunicava com Afogados, Jiquiá, Estância, Tejipió e cidades do interior, como Vitória de Santo Antão, a partir da rua Imperial; obedecendo ao traçado do primitivo Aterro dos Afogados, construído à época do Domínio Holandês.

A ligação com a Madalena, partindo do Chora Menino, foi iniciada em 1834, passando pelo Paissandu, cruzando o rio Capibaribe, na altura da ilha do Retiro, até atingir o Sobrado Grande, na atual praça João Alfredo. A união de Afogados com a Estrada da Madalena foi possível através da Estrada dos Remédios (1850), com 2.423 m. e três pontes. A partir do Sobrado Grande da Madalena iniciou-se a ligação com a povoação da Torre, obedecendo ao traçado da atual rua Real da Torre.

O acesso à povoação da Várzea, veio a ser efetivado pela Estrada do Ambolê, em 1872, depois denominada de Estrada Velha do Bonji, que, além desta última, também atingia outras povoações dos Torrões e Engenho do Meio.

A ligação com a povoação de Caxangá, porém, veio a fazer-se de forma direta através da Estrada Nova de Caxangá [hoje, Avenida Caxangá], aberta para o assentamento dos trilhos da Brazilian Street Railway; empresa responsável pela implantação do primeiro trem urbano da América Latina, popularmente conhecido pela designação de maxambomba. A primeira composição da maxambomba veio correr em 5 de janeiro de 1867, ligando a estação da rua Formosa [hoje, Conde da Boa Vista], com a povoação de Apipucos.

Da povoação da Encruzilhada de Belém construiu-se, entre 1866-67, a Estrada de Beberibe, que custou aos cofres do erário a importância de 18.326$000. De Beberibe seguiam estradas para Maricota; Cumbe, construída em 1879, com 880 m.; da Estação do Porto da Madeira e da ladeira do Lava-tripas (1882). A povoação da Encruzilhada foi ligada, a partir de 1866, com as de Salgadinho e Peixinhos, em Olinda, que, por sua vez, se interligavam com a povoação de Beberibe através da antiga Carreira dos Mazombos, já assim conhecida no século XVII.

Ao iniciar-se o século XX, as estradas suburbanas do Recife somavam-se 32 quilômetros, que uniam as diversas povoações do entorno da cidade, conservando algumas, nos dias de hoje, as suas primitivas denominações.
Numa série de artigos publicados no Diario de Pernambuco, em janeiro de 1903, F. A. Pereira da Costa informa ser de 425,125 km. a malha rodoviária do Estado.

3. Populosos Caminhos

Até meados do século XIX, porém, o transporte da população do Recife era feito através do rio Capibaribe e do rio Beberibe ou em carros de bois, lombos de animais, e até mesmo em cadeirinhas de arruar, palanquins e liteiras, cujos anúncios ocupavam as páginas da imprensa daqueles dias.

Com o aparecimento das estradas suburbanas, passou-se a fazer uso dos carros puxados a cavalo, que logo foram objeto de reclamação por parte dos incomodados a exemplo do registro de O Carapuceiro, jornal de críticas do padre Miguel do Sacramento Lopes da Gama.

Traquitanas, carros, séges,
Cabriolés e carrinhos,
Obstruem dia e noite
Os populosos caminhos

Carros importados da Europa, produzidos na França e em outros centros, eram oferecidos nos anúncios dos jornais até como veículos de aluguel, antecedendo assim o nosso serviço de táxis. Seus condutores, segundo as posturas municipais, deveriam estar matriculados na repartição de polícia, trazer os animais a trote curto através das ruas centrais, não podendo abandonar o veículo nem admitir carga ou passageiro além do anteriormente estabelecido. Eram punidos por maltratos aos animais e por trafegar na quinta-feira e sexta-feira da Paixão.

O transporte coletivo, porém, só veio a aparecer em 1847, com a ligação por diligência entre o Recife e Olinda. O uso da diligência, como se depreende dos desenhos de Luís Schlappriz litografados por Francisco Henrique Carls (1863), foi uma rotina para a população do Recife até 1876. A diligência era chamada de ônibus, a propósito da expressão latina: para todos. Os seus serviços atingiram a povoação de Apipucos em 1852, sendo explorada por Cláudio Dubeux; comerciante de pólvora residente naquela povoação onde faleceu em 13 de janeiro de 1881. A passagem avulsa do “ônibus do Cláudio”, como veio a ser conhecido, foi fixada em 1 mil réis.

4. No tempo das Maxambombas

O tempo das diligências veio a ser sucedido pelo tempo das maxambombas que, como já vimos, iniciou-se em 5 de janeiro de 1867, quando correu no Recife o primeiro trem urbano da América do Sul. O feito veio anteceder ao nosso metrô de superfície e foi por muitos anos o transporte de uma grande maioria da população desta cidade.

Explorada pela Brazilian Street Railway, empresa dirigida por ingleses, a maxambomba uniu, inicialmente, o Recife à povoação de Apipucos, estabelecendo assim a “Linha Principal” com a passagem fixada ao preço de 200 réis por cada milha do trajeto. Posteriormente, foram inaugurados ramais Dois Irmãos e Caxangá (1870), Arraial (1871) e, com a construção da ponte Lasserre (ponte da Capunga), a maxambomba ganhou a Estrada Nova de Caxangá, chegando até a Várzea (1885).

A ligação com Olinda, porém, só veio a ser inaugurada em 24 de junho de 1870, fazendo através da Estrada de João de Barros passando pela Encruzilhada, seguindo pela Estrada de Belém até atingir Salgadinho, Duarte Coelho e o Carmo.

Naquele ano, segundo o relatório da concessionária, o sistema de transportes era composto por cinco locomotivas, dezesseis carros, dos quais cinco eram destinados aos serviços de carga. A maxambomba, tão integrada à paisagem e ao folclore do Recife, funcionou até 1917 quando a Pernambuco Tramways, adquirindo a “Linha Principal”, consolidou um novo tempo: o tempo do bonde elétrico.

Mas os bondes elétricos, que tanto orgulhavam o recifense, foram antecedidos pelos bondes de burro, logo crismados por “baús”, que vieram a tomar conta da paisagem nas linhas não servidas pela maxambomba, a partir de 22 de setembro de 1871. A primeira linha foi a da Madalena, que na sua inauguração transportou 2.695 passageiros, seguindo-se a de Afogados (20.11.1871), Fernandes Vieira, Santo Amaro, Torre, Derby, Jiquiá, e Hospital Pedro II, além das linhas circulares de Ponte Santa Isabel, Ponte da Boa Vista e Cinco Pontas. Para tal serviço a Companhia de Ferro-Carril, nome da empresa concessionária, possuía, em 1882, 48 carros e 400 burros.

O transporte ainda hoje chorado pelos mais antigos foram os bondes elétricos da Pernambuco Tramways. Por muitos anos marcaram a vida do Recife, sendo sinônimo de pontualidade e limpeza na sua fase áurea. O primeiro deles correu em 13 de maio de 1913, ligando a praça Rio Branco com a avenida Central. Foram estabelecidas comunicações com Olinda (12.10.1913), Jiquiá (6.10.1913), Torre (25.5.1915), Ponte D’Uchoa (21.4.1915), Zumbi (20.9.1915), Caxangá (12.10.1915), Várzea (20.10.1915), Casa Amarela (15.11.1916), Casa Forte (13.12.1916), Dois Irmãos (11.2.1917), pondo com esta última o fim no tempo das maxambombas, seguindo-se de linhas para Boa Viagem e Tejipió. No seu relatório de 1940, a Pernambuco Tramways dizia possuir 156.745 metros de trilhos – hoje em grande parte enterrados em nossas ruas –, tendo prestado serviços até o final dos anos cinquenta quando vieram desaparecer as linhas de Beberibe e Olinda.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, tornou-se difícil a manutenção dos bondes com repercussões na qualidade dos serviços: “De 139 bondes e 77 reboques em operação em 1941, a Pernambuco Tramways mantém em 1853 a inexpressiva oferta de 22 bondes e nenhum reboque, passando, desta forma, a atender a demanda de somente dez por cento da população usuária”.¹

Em 1947 é criada no Recife a Pernambuco Autoviária, a primeira grande empresa de ônibus, equipada com veículos Reo e SuperWhite, serviço de radiofonia e outras novidades da época, atendeu ao público até o final dos anos cinquenta. No início desta década circulava no Recife 501 veículos de transporte coletivo (ônibus, lotações, beliscadas), pertencentes a 128 empresas; para o engenheiro Antônio Baltar, “um sistema totalmente desorganizado, com centenas de empresas em sua maioria individuais, linhas deficitárias, incompleta definição de rede do sistema, além de inadequação da forma jurídica de concessão”.²

Nas administrações dos prefeitos José do Rego Maciel e Djair Brindeiro, à frente da Prefeitura do Recife, tem início os estudos para a implantação de uma moderna empresa municipal de transportes, a exemplo do que já acontecia em outras capitais como São Paulo. Surgia assim o que veio a ser a Companhia de Transportes Urbanos – CTU, instituída pela Lei Municipal n.º 4983, sancionada pelo prefeito Pelópidas da Silveira em 26 de dezembro de 1957, que em julho de 1959 vem a receber os primeiros cinco ônibus elétricos da firma Marmon Harrington, de Indianópolis, Estados Unidos

Os bondes do Recife foram sendo substituídos, em parte, pelos ônibus elétricos da Companhia de Transportes Urbanos, implantada na gestão do prefeito Pelópidas da Silveira (1955-1960), sendo a primeira linha, inaugurada em 13 de maio de 1960, na qual trafegavam cinco ônibus ligando a avenida Guararapes aos bairros da Torre e Madalena. Em vinte e oito de maio, já somavam doze o número de elétricos circulando nessa linha. Em 21 de julho do mesmo ano, passam a atender aos usuários da linha de Casa Amarela e, em 2 de outubro, é inaugurada a linha de Campo Grande. A CTU operava então com trinta e oito ônibus elétricos.

5. A era do automóvel

O século XX veio a ser conhecido como o “século do automóvel”. No Recife, essa grande invenção dos tempos modernos, veio através do médico Otávio de Freitas em 1904. Tratava-se de um Renault, com os faróis com lâmpadas de carbureto e alavanca de marchas na parte exterior, segundo descrição da Mário Sette. A invenção foi elitizada com o aparecimento de novos adeptos, inclusive o governador Dantas Barreto em 1911, mas logo popularizada com os primeiros veículos de aluguel, em 1920, de propriedade das garagens Ford e União. O usuário pagava o preço de dez mil réis na primeira hora, decrescendo proporcionalmente para sete mil réis para quarta meia hora. O taxímetro dos nossos dias é invenção dos anos cinquenta.

As ruas começaram a se adaptar para receber a nova invenção. A mão única, já conhecida no Recife desde 1864 quando foi assim considerado o tráfego na ponte da Boa Vista, passou a ser uso frequente em várias de nossas estreitas ruas, onde não mais era permitido o trânsito dos carros de bois (1905), sendo demolidos os pequeninos prédios da praça da Independência. Por ocasião das obras do porto do Recife, foram demolidos, em nome do novo “dono” de nossas ruas, a igreja do Corpo Santo, cujos primórdios datavam da primeira metade do século XVI, seguindo-se das primitivas portas da cidade, os arcos da Conceição e Santo Antônio, que existiam nas cabeceiras da atual ponte Maurício de Nassau.

Em 1974, circularam no Recife 82.486 veículos matriculados, sendo 5.870 táxis, 6.899 caminhões e 69.717 entre automóveis, ônibus e utilitários.

___________________________________________________________

¹ NIGRO, Mário João. “Trolleibus no Recife”; Boletim Técnico da Secretaria de Viação e Obras Públicas. v. 32.out-dez,1953. p. 22.

² MENDONÇA, Luís Carvalheira de; PEREIRA, Affonso Cezar Baptista. Transportes coletivos no Recife uma viagem no ônibus da CTU. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1987. p. 27.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 09 de agosto de 2018

ALGUNS PIONEIROS NAS ARTES E NAS LETRAS EM PERNAMBUCO

 

 

ALGUNS PIONEIROS NAS ARTES E NAS LETRAS EM PERNAMBUCO

Por sua formação política, herdando a altivez dos primeiros donatários, Duarte Coelho e seus sucessores; pela constituição de suas elites, originárias dos sucessores de Jerônimo de muitos gentis homens, fidalgos e bons colonos Albuquerque e dos muitos que aqui aportaram a partir de 1535; pela sua proximidade com portos da Europa e ligações com a África; pela sua contribuição na colonização e na conquista de todo o Norte do Brasil, ainda nos difíceis anos do século XVI; pelo espírito aguerrido do seu povo, responsável pela suserania da coroa portuguesa nas capitanias do Norte, antes integrantes do Brasil Holandês (1630-1654), a contribuição da gente de Pernambuco às letras e às artes nos dois primeiros séculos da colonização ainda está por ser estudada.

Formados para a guerra, desde os primeiros anos da colonização, habituados a serem chamados de “filhos de Mavorte”, na imagem do soneto do padre João Batista da Fonseca (Escavações p. 117) ou, como na imagem poética do seu hino, “nova Roma de bravos guerreiros”, os nascidos e/ou estabelecidos em Pernambuco sempre souberam se notabilizar nas letras, nas artes plásticas, na música, nas ciências e em outros ramos do saber.

Ao escrever Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, cujos originais foram concluídos em 26 de março de 1757, Dom Domingos do Loreto Couto, nas pp. 357-412 (Rio, 1904 e Recife, 1981), traz uma significativa relação de vultos que se notabilizaram numa produção artística e literária que bem revela a importância de uma elite intelectual nesses dois primeiros séculos da história pernambucana.

Com a fundação do Colégio dos Jesuítas em Olinda (1551), surge em Pernambuco um centro educacional que viria formar as gerações, não somente na iniciação a alfabetização e ao catecismo da doutrina cristã, bem como nos rudimentos da matemática, mas também no latim, na filosofia e na moral, matérias estas cujas aulas tiveram início em julho de 1568 pelo padre João Pereira. Em 1800 o prédio do antigo Colégio dos Jesuítas vem a ser ocupado pelo Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça, cujos estatutos foram elaborados pelo bispo D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (Lisboa: Tipografia da Acad. R. das Ciências, 1798), com a finalidade de instruir “a mocidade em todos os seus principais ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas também de um cidadão que se propõe a servir ao Estado”. O seminário, chamado pelo cônego Barata de “escola de heróis”, veio a ser o principal propagador do ideário ilusionista dos filósofos franceses nas capitanias do Norte do Brasil.

Também na segunda metade do século XVI atuaram em Pernambuco dois mestres-escolas leigos, ambos cristãos-novos: Branca Dias, que mantinha uma escola para moças, e Bento Teixeira, um erudito que atuou como mestre-escola em Olinda, Igaraçu e Cabo.

Em Pernambuco residiu por muitos anos o também cristão-novo Ambrósio Fernandes Brandão, proprietário de terras em São Lourenço da Mata (Denunciações e Confissões de Pernambuco p. 231 e 260), que em 1618 veio escrever o livro Diálogos das Grandezas do Brasil (Recife: Imprensa Universitária, 1962), um dos mais importantes relatos sobre a flora, fauna, paisagem e vida econômica do país naquele primeiro século de sua colonização, obra hoje de consulta obrigatória pelos estudiosos dos mais diversos misteres.

O AUTOR DA PROSOPOPÉIA

Bento Teixeira é o autor da primeira obra poética produzida no Brasil que veio alcançar as honras do prelo, Prosopopéia, escrita em Pernambuco, entre 1585-94, e publicada em Lisboa (1601) com a dedicatória a “Jorge de Albuquerque Coelho, Capitão e Governador de Pernambuco”, numa produção da oficina de Antônio Álvares.

Que eu canto um Albuquerque soberano
Da fé, da cara pátria firme muro,
Cujo valor é ser que o céu lhe inspira,
Pode estancar a lácia e grega lira.

Diogo Barbosa Machado (1682-1772), em sua Biblioteca Lusitana (Lisboa 1741), declara ser Bento Teixeira, a quem ele acresceu o sobrenome “Pinto” natural de Pernambuco dando causa a repetição de um erro que se arrasta ao longo de dois séculos. Somente em 1960, quando da publicação do seu livro Estudos Pernambucanos (Recife: Imprensa Universitária; 2ª ed. Recife: Fundarpe, 1986) é que o Prof. José Antônio Gonsalves de Mello vem esclarecer a real naturalidade do poeta Bento Teixeira. Ao compulsar o processo n.5206 da Inquisição de Lisboa (ANTT), em que aparece como réu um Bento Teixeira originário de Pernambuco.

Nos seus diversos depoimentos, ele afirma ser natural da cidade do Porto (Portugal), de onde saiu com a idade de cinco para seis anos para o Brasil em companhia dos seus pais. Fixando-se inicialmente no Espírito Santo (c 1567), matriculou-se na escola dos padres jesuítas com os quais veio a continuar os seus estudos na Bahia. Em 1579, já tendo concluído os seus estudos com os jesuítas, transferiu-se para a capitania dos Ilhéus onde casou-se com Filipa Raposa. Anos mais tarde (1584) fixou-se na vila de Olinda, onde abriu uma escola para meninos na rua Nova (a principal da vila). Por dificuldades financeiras transfere-se para a vila de Igaraçu (1588), onde além de mestre-escola exerceu as funções de advogado, cobrador de dízimos e contratador de pau-brasil. Pelos frequentes adultérios de sua mulher, Filipa, viu-se obrigado a transferir-se para o Cabo de Santo Agostinho onde, em dezembro de 1594, vem a cometer o uxoricídio. Fugindo da justiça, vem refugiar-se no Mosteiro de São Bento (Olinda). Por essa época chega a Pernambuco o visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendoça, sendo o cristão-novo Bento Teixeira denunciado por práticas judaizantes. Preso em 19 de agosto de 1595 é embarcado, juntamente com outros réus, para os cárceres do Santo Ofício em Lisboa, onde por mais de quatro anos passa por sofrimentos e privações. Solto em 30 de outubro de 1599, aos 40 anos de idade, padecendo de uma tuberculose, por motivos ignorados volta à cadeia de Lisboa, conforme atesta o médico João Álvares Pinheiro, a 9 de abril do ano seguinte. Do seu processo nada mais consta, a não ser esta anotação na capa: “É falecido Bento Teixeira e faleceu andando com a penitência em o fim de julho de 600”:

 

Bento Teixeira, erudito dos mais brilhantes do seu tempo, conhecedor dos clássicos, do latim e de outras línguas, dado a fazer trovas e sonetos, foi o autor do poema épico, Prosopopéia, editado nas oficinas do impressor Antônio Álvares, “o primeiro escrito no Brasil a merecer as honras do prelo”, infelizmente publicado no ano seguinte ao da sua morte: 1601.

A MISSÃO DE NASSAU

Quando da dominação holandesa, particularmente durante os sete anos do governo do Conde João Maurício de Nassau (1637-1644), Pernambuco recebeu a mais importante missão artística e científica que visitou o Novo Mundo no século XVII. Para aqui vieram o latinista e poeta Franciscus Plante, o médico e naturalista Willem Piso, o astrônomo, cartógrafo e naturalista George Marcgrave, os pintores Frans Post e Albert Eckhout, o médico Willem van Milaenen, o humanista Elias Herckmans, o cartógrafo Cornelis Sebastianzoon Golijath, o arquiteto e urbanista Pieter Post, além dos artistas amadores Zacarias Wagner e Gaspar Schmalkalden que já se encontravam no Brasil quando da chegada do conde.

Sob o mecenato de Nassau foram pintadas as primeiras paisagens brasileiras, bem como uma farta documentação iconográfica dos naturais da terra, dos portugueses e mazombos aqui residentes, da flora e da fauna, obras hoje admiradas nas mais diferentes coleções do mundo. Sob os seus auspícios publicados livros, verdadeiras obras de arte gráfica, de autoria de Willem Piso, De Medicina Brasiliensi; de George Marcgrave, Historia Rerum Naturalium Brasiliae; ambos integrantes da monumental obra Historia Naturalis Brasiliae, publicada em 1648 em Amsterdam. No mesmo período foi publicada a interessante obra do latinista Caspar van Barle, conhecido no Brasil por Gaspar Barlaeus, com ilustrações de Frans Post, mapas de George Marcgrave e Golijath, com o título latino Rerum per octenium in Brasilia etc., impressa em Amsterdam em 1647, da qual existe uma reedição em português publicada pelo autor destas notas em 1980 dentro da Coleção Recife v. IV. Vale lembrar o poema do reverendo Franciscus Plante, Mauritiados,dedicado ao Conde João Maurício de Nassau, com ilustrações de rara beleza, também publicado em Amsterdam em 1647.

É do período holandês o primeiro texto da literatura hebraica escrito nas Américas. Trata-se do poema escrito pelo erudito rabino Isaac Aboab da Fonseca (1605-1693), que dirigiu no Recife a primeira sinagoga do Novo Mundo e aqui produziu em 1646 o texto, em forma de prece, quando do cerco das tropas luso-brasileiras. O poema, em que relata os sofrimentos do seu povo sitiado no Recife, começa com a frase: “Erigi um memorial aos milagres de Deus…”.

A guerra holandesa despertou a atenção dos naturais da terra para a preservação da memória dos fatos do dia-a-dia dos combates e escaramuças, assim sendo são conhecidos os trabalhos produzidos no calor dos fatos pelos cronistas Duarte de Albuquerque Coelho (Memórias Diárias da Guerra do Brasil), Diogo Lopes Santiago (História da Guerra de Pernambuco), Frei Manoel Calado do Salvador (Valeroso Lucideno), além de outros inéditos cujos manuscritos encontram-se na secção de reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa.

A produção do período vem a se desenvolver em outros centros, com a publicação de memórias, mapas, livros científicos e uma infinidade de pinturas, desenhos e gravuras diretamente ligadas ao Brasil holandês.

Intelectuais judeus, nascidos em Pernambuco durante a ocupação holandesa, despontam com os seus trabalhos. É o caso de Isaac de Andrade Velosino, chamado por Barbosa Machado, in Biblioteca Lusitana, de Jacob de Andrade Velosino, que se declara judeu nascido no Recife em 1639, segundo Sacramento Blake. “Doutor em Talmud e Doutor em Filosofia”, foi ele o orador oficial quando da inauguração da sinagoga portuguesa de Amsterdam (1675). Autor de várias obras, dentre as quais Epítome de la verdad de la ley de Moyses, escrita em espanhol, O Theologo Religioso, O Messias Restaurado, além de outros trabalhos sobre medicina e história do Brasil, vindo a falecer em Haia no ano de 1712.

A PRIMEIRA ESCRITORA

Pernambuco deu ao Brasil a primeira escritora, Rita Joana de Souza, segundo consagra Barbosa Machado, na sua já citada Biblioteca Lusitana, no que é repetido por Pereira da Costa, in Dicionário Biográfico de Pernambucanos Célebres, e Sacramento Blake, in Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Nascida em Olinda, a 12 de março de 1696 e falecida em abril de 1718, aos 22 anos, pôde a jovem ter sua produção literária admirada pelos mais diferentes estudiosos do seu tempo, F. Diniz, Damião F. Perim, J. Noberto, D. Domingos do Loreto Couto, dentre outros para os quais a jovem pernambucana possuía uma vasta erudição, cultivando, além da pintura e o desenho, a história, a filosofia e a geografia. Os seus manuscritos não foram publicados, sabendo-se notícias através das mesmas fontes dos originais de Memórias históricas e Tratado de Filosofia Natural.

Como se depreende de uma consulta a obra de Loreto Couto, Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, é formidável a relação de pessoas naqueles dois primeiros séculos da história pernambucana dedicadas a uma produção intelectual e artística. Os estudos genealógicos, a poesia, a história, a filosofia, a moral, a teologia, o direito, a medicina, a música, dentre outras, são objeto de estudos dos mais diversos, em grande parte desaparecidos pela proibição da coroa portuguesa que impedia a instalação de tipografias no Brasil de então.

É desta época o surgimento dos estudos históricos, de forma sistemática, em Pernambuco, com a obra de três grandes pioneiros: Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779), D. Domingos do Loreto Couto (c 1696 – c 1762) e Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca (1718-1786). O primeiro, na opinião de José Antônio Gonsalves de Mello, quando da elaboração do seu Orbe Novo Seráfico Brasílico, editado parcialmente em 1761, utiliza-se dos arquivos da Província Franciscana a que pertencia, bem como da Província de São Bento, além de ampla bibliografia, revelando-se dos três o mais erudito. O segundo, menos indagador, é autor, como já fizemos ver anteriormente, de Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, manuscrito somente editado em 1904 e hoje integrante da Coleção Recife (v. XI, Recife: Fundação de Cultura, 1981), onde se revela informes da história oral, obtidos de pessoas mais idosas, elementos sobre a vida social da antiga capitania naquela primeira metade do século XVIII, além de manuscritos diversos e de uma bibliografia de livros portugueses da época. O terceiro, autor de Nobiliarquia Pernambucana, impressa parcialmente na Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (1883-1908) e, finalmente, pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1935), vem revelar-se um genealogista e não um historiador. Por mais de trinta anos foi um cuidadoso pesquisador de informações sobre o nosso passado, indo diretamente às fontes manuscritas, recolhidas na documentação notarial e paroquial então existente, tendo conseguido reunir os primeiros textos genealógicos redigidos após a Restauração Pernambucana.

Muito poderia se inscrever sobre os poetas, pregadores, músicos e artistas plásticos de Pernambuco, dos séculos XVI e XVII, mas isso seria assunto para outro artigo ou talvez, quem sabe, para um ensaio especial sobre tão palpitante tema.

Mas estas notas já bem demonstram a grandeza da gente de Pernambuco, presente na história não somente pela força da espada, mas também no ministério da palavra, nos textos produzidos por penas de inteligências devotadas, na beleza das cores ordenadas por pincéis, ou nos entalhes produzidos por goivas e cinzéis, como a mostrar no seu conjunto a força de uma civilização que soube cultivar os seus valores culturais.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 02 de agosto de 2018

FELINTO, DO APÔIS FUN

 

 

FELINTO, DO APÔIS FUM

O violonista Felinto de Moraes, com os trajes que se apresentava com os “Turunas da Mauricéia”,

quando de sua temporada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro (1927)

Naquele hoje distante Carnaval de 1957, uma marcha-de-bloco tomou conta das ruas e salões, cantada aos quatro ventos por crianças e velhos, mulheres e homens, a relembrar sem querer velhos carnavais dos anos vinte, onde reinavam as figuras de Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon, quando das saídas dos blocos carnavalescos mistos das Flores…, Andaluzas …., Pirilampos …, Apôis Fum….

Tratava-se de Evocação, um frevo-de-bloco composto por Nelson Ferreira, que se tornara o grande sucesso da Fábrica de Discos Rozenblit, fundada no Recife em 1952 e distribuidora do selo Mocambo para todo Brasil.

Gravado em 1956 para o carnaval de 1957, em disco em 78 RPM nº 15142 B, matriz R 791, foi o primeiro grande sucesso da gravadora, produzido no Recife e cantado em todo o país.

 

 

A marcha tornou-se execução obrigatória em qualquer festa carnavalesca e, mesmo nos dias atuais, é comum encontrar-se grupos de foliões entoando animadamente em uma só voz: Felinto…, Pedro Salgado, / Guilherme, Fenelon, / Cadê teus blocos famosos ?! / Blocos das Flores…, Andaluzas…, / Pirilampos…, Apôis Fum… / dos carnavais saudosos ?!..”

Declara o próprio Nelson Ferreira, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som de Pernambuco e em texto inserido no álbum duplo Rozenblit – LPP 015/16 (1968), que Evocação nº 1 fora inspirado em figuras de blocos carnavalescos do Recife dos anos 20, então desaparecidas: Felinto de Moraes e Fenelon Moreira (de Albuquerque) eram do Apôis Fum; Pedro Salgado era presidente do Bloco das Flores; Guilherme de Araújo era a figura de proa do Andaluzas em Folia e do Pirilampos de Tejipió; o velho Raul Moraes era compositor, pianista e ensaiador do Bloco das Flores, para o qual escreveu várias marchas, inclusive a Marcha Regresso. Dela usei os versos ‘Adeus, adeus minha gente / Que já cantamos bastante’. Fiz Evocação nº 1 numa noite, de uma vez só.

Dentre as figuras de destaque do Carnaval de então, notabilizava-se Felinto de Moraes (Recife, 1884 – Rio de Janeiro, 1927), fundador e principal dirigente do bloco Carnavalesco Apôis Fum, fundado na povoação da Torre em 1925.

 

Apôis Fum, tinha a sua denominação inspirada na variante do “pois sim!…”, no sentido de exprimir “certa dúvida ou reserva acerca do que outrem nos afirma” (Laudelino Freire). A expressão “apôis fum!” era largamente usada nessa época no Recife, no sentido de mofa: “pois fum!…”; de modo a revelar s descrença da possibilidade de ser verdadeiro determinado fato ou pessoa….

Em depoimento ao Diario de Pernambuco, de 29 de janeiro de 1980, uma antiga simpatizante, Ana Uzeda Luna, afirma que: O bloco congregava os melhores músicos, inclusive os componentes do conjunto Turunas da Mauricéia, conjunto vocal composto pelos maiores violonistas de sua época, entre eles Alfredinho de Medeiros e seu primo Felinto de Moraes; o bandolinista Luperce Miranda (1904-1977) e seu irmão, Romualdo Miranda, eram a nota alta dos bandolins, enquanto Augusto Calheiros (1891-1956), que viria receber o apelido de Patativa do Norte, chefiava o coro.

A sua orquestra de pau-e-cordas era formada por dezesseis violões, dentre eles Alfredo de Medeiros e o próprio Felinto de Moraes, bandolins dedilhados por Luperce Miranda e seus irmãos, violinos, clarinetos e outros instrumentos, estando sob a direção do maestro Zuzinha, apelido pelo qual ficou conhecido o mestre-de-banda José Lourenço da Silva (1889-1952), que por muito tempo foi o regente da Banda da Polícia Militar de Pernambuco.

Os ensaios do bloco eram realizados na residência do diretor Francisco Sá Leitão, localizada no cruzamento da Rua José Bonifácio com a José de Holanda, no bairro da Torre. No repertório composições de Ernesto Nazareth, Sustenta a Nota; Miguel Barkokebas, Esse bloco é meu; Luperce Miranda, Quininha e Seu Raimundo no frevo; notabilizando-se a marcha-regresso, composta por Raul Moraes, conhecida pelo título de Saudade Eternal: “Saudade, eternal! / Deixamos no Carnaval / E o Bloco Apôis Fum / Portou-se como nenhum….”.

Em sua primeira exibição, o Apôis Fum logo conquistou a simpatias da cidade, com os seus componentes fantasiados de pierrôs e pierretes, em cetim branco, botões negros, pompons prateados, chapéu em cone do mesmo tecido, trazendo um belo carro alegórico com uma linda jovem, portando o rico flabelo do bloco, e “uma mocidade de primeira linha”.

Ao chegar em frente ao Jornal do Commercio, na Rua do Imperador, encontrou-se com o Bloco das Flores, de Pedro Salgado e Raul Moraes, que passou a executar a sua famosa Marcha da Folia.

Bloco Apôis Fum, reagindo ao desafio, logo executou o tango brasileiro Sustenta a Nota¹, em arranjo especial de Zuzinha, que logo suplantou o rival e assim conquistou os prêmios de “Melhor Orquestra”“Melhor Fantasia”, “Maior Conjunto” e “Mais Bela Marcha”, fazendo jus ao seu regresso.

A manhã já vem surgindo
Já se vê, já se vê
A luz do dia
E o Apôis Fum já vai sentindo
Vai sentindo
Saudades da folia

Saudade, eternal
Deixamos no carnaval
E o Bloco, Apôis Fum
Portou-se como nenhum.

Foi um sonho que passou
Belo sonho, belo sonho sem igual
E o Apôis Fum só demonstrou
Só demonstrou
O fulgor do Carnaval

Saudade, eternal
Deixamos no Carnaval
E o Bloco, Apôs Fum
Portou-se como nenhum

Nascido em 2 de fevereiro de 1891, na Rua da Soledade nº 25, no bairro da Boa Vista, Raul Moraes veio falecer prematuramente aos 40 anos, em 6 de setembro de 1937, na Rua Cais Ligeiro, subúrbio da Torre, segundo noticia o Jornal Pequeno, em sua edição do dia 8 do mesmo mês.

Segundo depoimento de Apolônio Gonçalves de Melo, in Antologia do Carnaval do Recife² , o “Bloco Apôis Fum”, de Guilherme Araújo e Fenelon de Albuquerque, foi considerado um dos mais finos da cidade. Na sua primeira exibição vestiram-se de palhaços brancos com botões pretos e usavam nas cabeças bonitos funis. Com boa orquestra e uma mocidade de primeira linha. Puxava o bloco um carro alegórico representando a bola do mundo com uma linda garota sobre a bola que era admirada por todos”.

Em 1927, os Turunas da Maricéia viajaram para o Rio de Janeiro, tendo uma memorável estréia no Teatro Lírico, em festa patrocinada pelo Correio da Manhã. Vestindo à moda dos sertanejos, com chapéus de abas largas e alpargatas de rabicho, os violonistas Romualdo Miranda, Manuel de Lima, Periquito e Felinto de Moraes, juntamente com o bandolim de Riachão, acompanharam Augusto Calheiros na apresentação de cocos, emboladas, toadas e outros ritmos pouco conhecidos na Capital Federal. É desta época as gravações de Helena (Luperce Miranda) e Pinião (Luperce Miranda e Augusto Calheiros), este último grande sucesso no Carnaval de 1928.

Felinto, porém, já se encontrava bem doente…. Naquele mesmo ano de 1927, no Rio de Janeiro, ao pressentir a chegada da indesejada das gentes, o boêmio Felinto de Moraes, falou para os seus familiares que “não ia morrer não! Ia fazer a sua última serenata…”. A cena dos seus últimos momentos é descrita por Austro Costa, em um dos seus antológicos poemas, Felinto:

O Boêmio sentiu que ia morrer
Então,
vendo chegar a grande hora
de entregar a alma a Deus
(o bom Deus dos que amara e honraram a Boemia,
dos que souberam romantizar a paisagem impassível da Vida
humanizando a alma da Noite,
enchendo as ruas de canções errantes,
– fascinados do Luar, do Vinho e das Mulheres –)
não quis tristeza, não quis pranto.

Não ia morrer, ai, não! Ia fazer a última serenata…

Assim falou, no leito de moribundo,
Aos que foram ver, assistir-lhe à agonia:
seus amigos,
seus irmãos de inefáveis, românticas vagabundagens,
velhos e amados companheiros de vida alegre,
de vida boa cheia de luares e de violões…

E eles choravam. Todos choravam no quarto triste,
onde a intrusa com pés de lã já penetrava.
Só não chorava o que ia morrer.

(Niágara dos olhos – mortos de vigília – da esposa alanceada!
Fontes confusas e pasmadas de infantis olhos – coitadinhos! …)

E, no silêncio cheio de lágrimas,
O Boêmio falou de novo.

Não ia morrer, ai, não! Ia, apenas, fazer a última serenata…

– “Frazão! Romualdo! Manuel de Lima! Pernambuco!
toca a tocar! …
Eh! lá, Calheiros! vamos cantar! …
Nada de choro! O choro que eu quero
é de violão, pandeiro, flauta, banjo,
saxofone e reco reco (Apôis Fum !…)
Vamos, Frazão! Aquele solo maravilhoso
que você dedicou a minha filha…
Calheiros, você canta uma das suas ….
Eu acompanho ao violão…”.

Mas no quarto da Morte tudo era um soluço.
Ninguém queria tocar, cantar.

E o Boêmio, triste, pôs-se a chorar.

Pois, seus amigos, seus companheiros tão queridos,
seus irmãos de suaves, divinas loucuras
não lhe satisfaziam o último desejo?!

– “Rapazes,
vocês não parecem os Turunas da Mauricéia!
Vamos! Eu quero morrer alegre, morrer ouvindo
a alma boêmia da minha terra,
a voz, o canto do meu povo
na voz, na música de vocês!
Quero lembrar tudo o que fui na vida louca,
quero evocar tudo o que amei!
Não me façam sofrer! Quem morre é um boêmio …
Meu coração só quer cantar …
Meu violão …”

Então, no quarto triste,
onde a Intrusa, impassível, fiava, fiava,
violões acordaram na noite serena um luar de agonia,
e uma voz trêmula e bárbara, comovida,
estrangulando, num canto convulso, a alma de um soluço imenso,
redimiu, para sempre, a saudade boêmia da terra maurícia.

O silêncio que veio depois, com mão suave
cerrou do Boêmio, para sempre, os olhos doces.

(Não ia morrer, ai, não! Ia fazer, apenas,
sua última serenata…)

* * *

1)Sustenta a… nota…, tango brasileiro publicado em 1919 pela Casa Arthur Napoleão & Cia. (Sampaio Araújo & Cia.), dedicado “ao velho amigo Maestro Antonio Tavares”. Segundo o biógrafo Luiz Antonio de Almeida, o título faz referência a uma “expressão muito conhecida entre os habitués dos salões de bailes e aplicada a qualquer regente de orquestra contratada quando, já cansado, dava sinais de que a festa estava para terminar. Daí alguém logo gritava: ‘ – Sustenta a nota… maestro!…’ Em outras palavras: ‘ – Aguenta mais um pouco que ainda está cedo!…’. “. O biógrafo também relata que, no manuscrito, sustenta a… nota… aparece como tango característico. Até 2012 recebeu pelo menos nove gravações.

2)Antologia do carnaval do Recife. Organizado por Mário Souto Maior e Leonardo Dantas Silva. Estudo introdutório de Leonardo Dantas Silva, “Elementos para história social do carnaval do Recife” (p. XI – XCVII). Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1991. XCIX, 406 p. il. (Obras de consulta; n. 11). Inclui bibliografia e pentagramas musicais.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 26 de julho de 2018

EM GOIANA, IGREJA DE BRANCOS, PRETOS E PARDOS

 

EM GOIANA, IGREJAS DE BRANCOS, PRETOS E PARDOS

Na cidade de Goiana, município com 78 940 habitantes, situado a 62 km. do Recife, Zona da Mata Sul de Pernambuco, o visitante observador vai encontrar novidades em sua caminhada, dentre as quais igrejas destinadas ao culto de brancos, pretos e pardos, numa sucessão de oragos no mínimo curiosa para os nossos dias.

No nosso roteiro irá conhecer os templos dedicados à Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos (séc. XVII), Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (séc. XVII), Convento de Hospital de Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos (séc. XIX), e o conjunto da Ordem Terceira e Convento Carmelita de Santo Alberto (séc. XVII).

Ao descrever a Vila de Goiana, em observação datada de 20 de outubro de 1810, o viajante inglês Henry Koster observa ser esta “uma das mais florescentes de Pernambuco, estando situada sobre uma margem do rio do mesmo nome, em uma grande curva nesse local, quase a rodeando”.

As casas, com uma ou duas exceções, têm apenas um andar. As ruas são largas, mas não são calçadas. Uma das principais é tão ampla que admitiu a construção de uma grande igreja, numa das extremidades, e a extensão da rua é considerável em ambos os lados do edifício. A vila possui o convento dos carmelitas e várias outras casas destinadas ao culto. Os habitantes são de quatro a cinco mil e esse número cresce diariamente. Há também lojas e o comércio com o interior é intenso.

A igreja, assinalada pelo autor, é a Matriz de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos de Goiana, cuja denominação bem demonstra o sentimento de separação racial existente no Brasil colônia de então.
A paróquia de Nossa Senhora do Rosário fora fundada pelo Bispo do Brasil, dom Frei Antônio Barreiros, provavelmente quando de sua visita pastoral à capitania de Itamaracá no ano de 1584, a quem pertencia, então, a povoação de Goiana.

Com a transferência da sede da capitania de Itamaracá, da Vila de Nossa Senhora da Conceição de Itamaracá, para a Vila de Goiana, em 7 de janeiro de 1711, surgiu a necessidade de se criar a Irmandade da Misericórdia, em substituição à extinta Santa Casa de Misericórdia de Vila Velha. A instalação daquela irmandade, porém, só veio a se concretizar em 1º de julho de 1722, funcionando inicialmente na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos.

Anos mais tarde, terminadas as obras da igreja, os irmãos da Misericórdia resolvem construir, no mesmo local, um hospital destinado ao atendimento das pessoas pobres e sem recursos, tendo a bênção inaugural acontecido em 1759. O Hospital da Santa Casa de Misericórdia foi o primeiro erguido naquela Vila de Goiana e contava, na sua inauguração, com vinte leitos destinados a enfermos de ambos os sexos, tendo para isso solicitado ao rei de Portugal, “a extensão dos mesmos privilégios e favores de que gozavam as casas de Olinda e da Paraíba”, no que não tiveram a acolhida.

Um século depois, quando da sua visita a Goiana, o imperador D. Pedro II encontrou os mesmos 20 leitos, divididos entre o pavimento superior e o térreo. Na ocasião, observou o monarca que a Igreja da Misericórdia se encontrava reedificada, após o incêndio que destruíra a sua capela-mor no ano de 1820. Naquela época, hospital e igreja contavam com rendas de 50$000 e 600$000 respectivamente destinadas à manutenção do templo e tratamento dos enfermos. O Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Goiana funcionou de 1759 a 1931.

No século XVII, nos anos que se seguiram à Restauração de Pernambuco do domínio holandês (1654), os moradores de Goiana, sentindo a distância que os separava de Olinda, solicitaram ao Bispado da Bahia a criação de um convento carmelita.

A pretensão dos moradores foi atendida em 11 de janeiro de 1666, quando o Cabido metropolitano de Salvador deferiu o requerimento do frei Alberto do Espírito Santo, vigário provincial da ordem carmelita no Brasil, que retornou a Pernambuco com a boa nova.

As obras de construção tiveram início naquele mesmo ano, 1º de novembro de 1666, em terras doadas pelo capitão-mor Filipe Cavalcanti de Albuquerque. Inicialmente consistia o primitivo convento de uma capelinha, construída em taipa, unida a um conjunto com seis celas para abrigo dos frades, que veio receber a denominação de Santo Alberto da Sicília, em homenagem ao seu fundador, frei Alberto do Espírito Santo.

A construção inicial permaneceu até o ano de 1679, quando o frei Marcos de Santa Maria promoveu uma campanha para a construção de um novo convento e igreja de pedra e cal no local do primitivo convento.
A obra, iniciada em 28 de outubro daquele ano, contou com as generosas contribuições dos moradores de Goiana, dentre os quais o mestre-de-campo André Vidal de Negreiros, cujo filho Francisco Vidal de Negreiros vestia o hábito da Ordem do Carmo.

Comprometeu-se o ilustre cabo-de-guerra a destinar aos frades carmelitas 120 arrobas de açúcar branco produzidas por seus engenhos, a exemplo do que havia feito, em data anterior, quando da construção do primitivo convento. A generosidade do mestre-de-campo perpetua-se após a sua morte, quando por meio de testamento manteve a destinação das 120 arrobas de açúcar branco, retiradas da produção de seus engenhos, nos dez anos seguintes, destinadas às reformas e alterações de que viessem a necessitar.

A Igreja e o Convento do Carmo de Goiana foram objeto de visita de D. Pedro II, em 6 de dezembro de 1859, que assinala em seu Diário: “na igreja encontrei epitáfios cujas datas é que me interessaram; sepultura de 1688 de João Paes de Bulhões e sua mulher e filhos; sepultura de Francisco Afonso Veras e de sua mulher Tereza de Jesus… ores … agosto de 1719. Sepultura [que não se lê bem] de 1687. O religioso, um dos quatro que costumam residir neste convento, pertence à Província Carmelita de Pernambuco e supõe que a fundação do convento teve lugar há 200 anos. Os papéis foram todos estragados na Revolução de 1848” (Revolução Praieira).

As fachadas das duas igrejas têm características do século XVII, muito embora o monumental cruzeiro, erguido no centro da praça, esteja datado de 1719. O perfil barroco deste último, com os motivos orientais que o adornam, parece revelar a influência que sobre o artista exerceu o também monumental conjunto do Convento Franciscano da Paraíba.

Das igrejas de Goiana, algumas têm suas histórias pouco conhecidas, como é o caso do templo dedicado à Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos. Sabe-se, tão-somente, que teria sua origem no início do século XIX e que, por volta de 1861, pertencia a uma Irmandade de Homens Pardos, conforme compromisso firmado naquele ano.

Tal irmandade existiu até o ano de 1933, quando foi extinta e a guarda de sua igreja passou para a Companhia de Fiação e Tecelagem de Goiana e, com a falência desta, veio a ser mantida por “uma comissão benemérita de cidadãos da sociedade local”. Os festejos da padroeira ocorrem no dia 8 de dezembro, quando acontece a grande festa e a procissão triunfal pelas ruas da cidade.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 19 de julho de 2018

A CASA DE NOSSA SENHORA DO CARMO

 

A CASA DE NOSSA SENHORA DO CARMO

Basílica do Carmo

O topônimo Boa Vista surge entre nós em 1643, quando da construção pelo conde João Maurício de Nassau de sua casa de recreio, chamada inicialmente de Casa da Bela Vista, erguida em terreno por ele adquirido à Companhia das Índias Ocidentais, localizado na cabeceira da ponte sobre o Rio Capibaribe que ligava a cidade Maurícia ao continente.

O alcácer da Boa Vista, como o denominava Gaspar Barlaeus, era um “local aprazível, alegrado também por jardins e piscinas”.

Naquele remanso, descansava Nassau, rodeado pela vista das suas construções e longe da pátria e das terras de tantos condes e príncipes seus parentes, gozando da felicidade que achara no ultramar. Contemplava astros nunca vistos pela sua Alemanha; admirava a constância de um clima dulcíssimo e mostrava aversão à intempérie da zona temperada onde vivera. […] Enfim meditando, encerrava dentro do âmbito da Boa Vista o múltiplo benefício do céu, da terra e do ar, a República, o inimigo, os índios, os holandeses, as conveniências e proveitos das Províncias Unidas.

Como bem demonstra a gravura de Frans Post no livro daquele latinista (Amsterdã, 1647), o novo edifício, com seus quatro torreões e um elevado pavilhão central, com três janelas em cada uma das frentes, possuía magnífica visão do continente, funcionando como forte militar, em face da sua posição estratégica na cabeceira da ponte sobre o Capibaribe.

Com a expulsão dos holandeses, em 1654, foi a Casa da Boa Vista doada à ordem carmelita para que nela instalasse o hospício do Recife. Em carta dirigida ao príncipe regente, em 1674, comunicam os “religiosos moradores no convento do Arrecife de Pernambuco” que “passa de sete anos que estão moradores naquele lugar” e terem dado início à construção do seu convento e instalação de uma pequena comunidade “em terras do Arrecife”, tendo entre seus primeiros habitantes o frei Francisco Vidal de Negreiros, filho do mestre-de-campo André Vidal de Negreiros, então no governo da capitania de Pernambuco.

Para se fixarem em definitivo na povoação do Arrecife, tiveram esses carmelitas de enfrentar uma conturbada história de lutas com a Câmara de Olinda e com os seus próprios irmãos de ordem do Convento de Santo Antônio do Carmo; estes últimos, seguidores da Reforma Turônica, enquanto os do Recife permaneciam na vida religiosa contemplativa, sendo por isso chamados de “observantes”. Tais desavenças em muito contribuíram para o retardamento das obras de construção do Convento do Recife, continuamente suspensas tanto pelo governo da capitania quanto pela própria coroa portuguesa. O cerne das desavenças, porém, era bem outro e prendia-se aos conflitos entre a nobreza rural, que dominava a Câmara de Olinda, com a burguesia do Recife, os quais em 1710 vieram dar causa ao que depois se convencionou chamar de Guerra dos Mascates (1710).

Em 1679, como se queixavam da situação de insalubridade da Casa da Boa Vista, vieram receber os carmelitas do Recife, em 5 de maio daquele ano, uma área com 100 braças de terra de salgado, isto é, de terras alagadas pela maré alta, em torno do primitivo hospício, para nelas construir algumas oficinas e o seu quintal. Nas terras anteriormente doadas, já tinham os frades construído o seu primeiro convento, aproveitando grande parte da Casa da Boa Vista, com uma capela dedicada a Nossa Senhora do Desterro e uma senzala.

Padeciam os frades de grande desconforto na primitiva Casa da Boa Vista, quando o capitão Diogo Cavalcanti Vasconcelos, senhor do Engenho São Francisco da Várzea, casado com D. Catarina Vidal de Negreiros, filha do governador André Vidal de Negreiros, veio em auxílio das obras do seu cunhado, frei Francisco Vidal de Negreiros. Inicialmente propunha-se o benfeitor a assumir todo o ônus de construção da capela-mor de uma nova igreja, a ser erguida nas proximidades da primitiva. Para isso comprometeu-se em escritura pública, de 18 de agosto de 1685, a construir às suas custas a capela-mor da nova igreja tendo por orago Nossa Senhora do Monte Carmelo, em troca do direito de ter sua sepultura naquele local, juntamente com sua mulher e seus herdeiros, bem como alguns sufrágios por sua alma. Para os serviços, foi contratado o capitão Antônio Fernandes de Mattos, construtor das mais importantes edificações do Recife no final do século XVII.

O túmulo do doador e de sua mulher, localizado na capela-mor ao lado do Evangelho, era assinalado por uma lápide, datada de 28 de agosto de 1703, que em 1898 veio a ser removida para o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano.

Com o desaparecimento do primitivo convento, surgiram no seu local as ruas do Cano ou da Paz, Palma e Concórdia, passando esta área a ser denominada de Carmo Velho.

 

Informa José Antônio Gonsalves de Mello que, em 1696, onze ou doze anos do início das obras, a igreja estava com algum adiantamento, pois aos 24 de abril desse ano estavam concluídos os serviços da capela-mor e de parte da Capela do Santíssimo Sacramento, esta última, objeto de instrumento de doação em favor dos irmãos da recém-criada Ordem Terceira do Carmo:

A capela que está começada com todos os alicerces e parede da parte do Evangelho, vindo da capela-mor para o corpo da igreja com todas as mais terras em que está, sobre a horta do alferes Pascoal Coelho de Freitas para nela fazerem o consistório, sacristia, capela e altares e todas a mais terra que for necessária à dita irmandade e exercícios dela e sepulturas e no enquanto, por estar despovoado o lugar doado….¹

À frente dos trabalhos continuava Antônio Fernandes de Matos, que veio a falecer em 1701. As obras, porém, arrastaram-se até 1767, data inscrita em um medalhão, no seu frontispício, abaixo do nicho da padroeira. O templo possui três capelas e seis altares, cada um com arquitetura particular e distinta, com ornamentação de talha, e todos de branco e ouro.

O interior da basílica é de grande riqueza artística, com as colunas salomônicas da balaustrada torneadas em jacarandá, o mesmo acontecendo com as tribunas, as grades do coro, os altares laterais e o arco cruzeiro, que obedecem ao estilo D. João V.

A capela-mor profunda, em estilo rocaille, toda em talha e dourada com desenhos acânticos e nervuras, é obra de cerca de 1780, possuindo, desde o século XIX, uma abóbada ogival geminada, da altura da cornija da nave, com óculos abertos para o exterior, através dos quais penetram os raios do sol. O seu altar principal, totalmente revestido por talha dourada, é dominado pela imagem, em tamanho natural, da Virgem do Carmo, co-padroeira da cidade do Recife (1909), cercada por anjos e ladeada pelas imagens dos profetas Elias (com o jarro) e Eliseu (com uma espada e uma igreja). Imagem que, segundo a tradição, teria vindo de Portugal para Pernambuco anos antes da invasão holandesa (1630).

No coro superior, destaque para a estante e a imagem do Cristo Crucificado, em singular anatomia, bem como para o conjunto das imagens dos seis altares e das duas capelas laterais. Muito especialmente para as imagens de Nossa Senhora da Assunção (cercada por querubins esculpidos em sua base e pintados no painel de fundo) e São Domingos (ostentando notável movimento e panejamento barroco).

O teto possui um painel de autoria presumível a João de Deus e Sepúlveda, no qual aparece “Elias subindo aos céus no seu carro de fogo”, recuperado pelo restaurador José Ferrão Castelo Branco em 1973.

O seu frontispício, onde predominam singulares esculturas em arenito, é um dos mais belos do Recife, possuindo uma única e harmoniosa torre.

Vale também uma visita ao tesouro da igreja, onde se encontram o Relicário do Sagrado Coração, a Grande Custódia, em prata dourada, e as jóias da Virgem com sua coroa pesando seis quilos de ouro fino, incrustada com brilhantes, pérolas, rubis e outras pedrarias, obra da Ourivesaria Barreto, da Rua da Concórdia.

A entrada do convento destaca-se por sua rica moldura de cantaria, entalhada com brasões seiscentistas em alto-relevo, que antecede a sala da portaria, na qual se encontra a imagem do Cristo na Coluna, estando suas paredes revestidas por painéis de azulejos portugueses com cenas da paixão.

Na entrada da basílica, uma pia de água benta em mármore de Estremoz e duas enormes lápides no mesmo material, finamente trabalhadas, chamam a atenção. A lápide da direita é encimada por escudos e armas – do papa, da Ordem Carmelita, do Estado de Pernambuco e da cidade do Recife –, a da esquerda, traz na sua moldura elementos diversos. Ambas assinalam duas efemérides da maior importância para este templo recifense.

A primeira refere-se à data de 16 de julho de 1908, ocasião em que o papa Pio X (1903-1914), atendendo a pedido do povo do Recife, declara Nossa Senhora do Carmo “co-padroeira desta cidade”. Nesta ocasião, a sua igreja passou a gozar dos foros de agregada da basílica do Vaticano “e assim figuram suas próprias insígnias e armas sobre a porta principal do templo”. Em 1920, coube ao papa Benedito XV “honrar este templo dedicado à bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, com a dignidade e título de Basílica Menor, no dia 16 de julho de 1920”. A sagração solene, presidida pelo bispo Miguel de Lima Valverde, só veio a acontecer na festa da padroeira de 16 de julho de 1922.

A solenidade de coroação de Nossa Senhora do Carmo, ocorrida em 16 de julho de 1920, encontra-se documentada em magnífico painel pintado por Henrique Moser, no qual aparecem as figuras dos bispos celebrantes, D. Jerônimo Tomé da Silva e D. Sebastião Leme.

No Convento do Carmo viveu e está sepultado, em local não determinado, frei Joaquim do Amor Divino Caneca, militante da Revolução de 1817 e mártir da Confederação do Equador (1824). Nascido no Recife, em agosto de 1779, Joaquim do Amor Divino Rabelo entrou para o convento carmelita de sua cidade em 1796, substituindo o seu último nome pelo de Caneca. Ordenando-se em 1801, notabilizou-se pelos seus conhecimentos de Retórica e Geometria, Direito, Filosofia Racional e Moral, com incursões nos estudos da mecânica e cálculo matemático. Foi membro da Academia do Paraíso, com participação inflamada no movimento que instalou a República em Pernambuco, em 6 de março de 1817, tendo sido levado preso aos cárceres da Bahia, onde escrevia versos.

Não posso cantar meus males
Nem a mim mesmo em segredo;
É tão cruel o meu fado,
Que até de mim tenho medo.

Decretada a anistia pelas Cortes Portuguesas, em 1821, voltou frei Caneca ao Recife e, após a dissolução da Constituinte pelo imperador Pedro I, resolveu fundar o Typhis Pernambucano, principal divulgador das idéias liberais que viriam a ser propugnadas pela Confederação do Equador (1824). O jornal circulou entre 25 de dezembro de 1823 e 12 de agosto do ano seguinte, tendo sido impressas 29 edições.

A Confederação do Equador, movimento separatista de caráter republicano promulgado em 2 de julho de 1824, logo veio a sofrer a repressão das tropas imperiais. Como seu principal ideólogo, frei Caneca foi preso e depois condenado à morte na forca, com sua execução marcada para a manhã de 13 de janeiro de 1825. Na prisão escreveu versos, despediu-se dos amigos e das suas filhas, marchando sereno para o patíbulo. O Cabido Diocesano negou-se a desautorar suas ordens e os carrascos abstiveram-se na execução das ordens. Diante de tal impasse foi a pena transformada em execução por espingardeamento, o que aconteceu no Largo das Cinco Pontas, “por não haver réu que se prestasse a garroteá-lo”.

Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta
Quem está sempre a morrer.

O Convento do Carmo do Recife encontra-se também ligado à vida histórico-cultural da cidade, podendo ser chamado de a Casa das Muitas Histórias. Em seus salões foram instalados e funcionaram por algum tempo o primeiro Hospital Militar (1817), com a primeira aula de anatomia dirigida pelo oficial médico José Eustáquio Gomes; o Liceu Provincial, hoje Ginásio Pernambucano (1825); a Sociedade de Medicina de Pernambuco (1841); a Biblioteca Provincial (1852) e o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (1862).

No dia 16 de julho, feriado municipal no Recife, os devotos da Virgem do Carmelo comemoram com grande festa o dia da co-padroeira da cidade do Recife, geralmente antecedido de concorrido novenário. A devoção a Nossa Senhora do Carmo é uma constante na vida pernambucana, como bem se comprova em uma parte considerável da população recifense que ostenta no pescoço o seu escapulário, como nos faz recordar o poeta João Cabral de Melo Neto.

Que, se milagres não fazes
pelas terras desse céu,
este escritor recifense,
sem porquês, segue-te fiel.

O conjunto encontra-se inscrito como Monumento Nacional no livro das Belas Artes v. 1, sob o n.º 218, em 5 de outubro de 1938; Histórico v. 1, n.º 107, em 5 de outubro de 1938 (Processo n.º 148-T/38).

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¹ MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um mascate e o Recife: a vida de Antônio Fernandes de Matos no período de 1671-1701. Prefácio de Ayrton Carvalho. 2 ed. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. 142 p. (Coleção Recife; v. 9).


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 12 de julho de 2018

AS AMANTES DE MAURÍCIO DE NASSAU

 

AS AMANTES DE MAURÍCIO DE NASSAU

Anos antes de seu regresso do Brasil, diante do Conselho dos XIX da Companhia das Índias Ocidentais, o Conde João Maurício de Nassau vinha sofrendo contínuo desgaste originário de acusações das mais diversas de seus invejosos inimigos, dentre os quais o capitão Charles Tourlon Jr. que o acusava de haver se apropriado de sua mulher.

 

 

O Conde de Nassau por J de Baen (1633-1702)

Apesar de nunca haver casado, João Maurício sempre nutriu um saudável interesse pelo sexo oposto. Inicialmente por Margarida Soler, a filha do pregador calvinista Vicent Joachim Soler, apontada como sua amante pelo frei Manuel Calado, tendo desprezado esta pelos amores da filha do sargento-mor Cornélio Bayer.

O seu caso mais propagado foi com Dona Anna Paes d’ Altro (c.1617-1674), rica senhora de nobre linhagem, proprietária do Engenho Casa Forte, que era casada com o capitão Charles Tourlon, de sua guarda pessoal

Dela se conhece uma carta de seu próprio punho oferecendo ao Conde de Nassau “seis caixas de açúcar branco”. No documento, a signatária se nomeia: “De vossa excelência a muito obediente cativa Dona Anna Paes”. Para frei Manuel Calado, cuja pena não poupava ninguém do seu tempo, era Anna Paes “a mais desenvolta mulher de quantas houve no tempo deste cativeiro na capitania de Pernambuco”.

Divulgada pela primeira vez por José Higino Duarte Pereira, no nº. 30 da Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano (Recife, 1886), transcrita com correções por José Antônio Gonsalves de Mello, em 1947, a carta em questão, numa leitura livre do português em uso nos nossos dias, teria o seguinte teor:

Ilmo. Snr. – Como nós devemos toda a obediência a nossos superiores tanto mais a vossa excelência de quem temos recebido tantas honras e mercês, assim que este ânimo me faz tomar atrevimento de pedir a vossa excelência queira aceitar seis caixas de açúcar branco, perdoando-me vossa excelência o atrevimento (que meu ânimo é de servir a vossa excelência) e fico pedindo que Deus aumente a vida e estado de vossa excelência para amparo de suas cativas. De vossa excelência a muito obediente cativa Dona Anna Paes.

Porém, no que diz respeito aos pormenores do affaire de Tourlon com o Conde de Nassau, estes só aparecem com mais detalhes no livro do historiador holandês Harald S. van der Straaten:

Mais tarde teria um tempestuoso caso com a mui atraente viúva de um rico açucareiro, Pedro Correia da Silva, Dona Anna Paes. Quando o relacionamento com essa rica e poderosa mulher, a ex-noiva do líder rebelde português André Vidal de Negreiros parecia tornar-se um compromisso sério para João Maurício, ele deixou-a casar com o beberrão Karel (sic) Tourlon, que assim adquiriu distinção social bem como um atrativo e conveniente posto. Foi indicado comandante da guarda pessoal do governador geral e secretário de governo. Sob a cobertura dessa união legal o caso de João Maurício com Anna Paes podia prosseguir sem perturbação, um fato que agravou amargamente o novo marido. Quando Tourlon depois de certo tempo descobriu o que estava acontecendo entre sua esposa e seu empregador ele elaborou um selvagem relatório sobre a vida amorosa de João Maurício para o conde Frederick Henry [príncipe Frederico Henrique, chefe da Casa de Orange, parente e protetor do Conde de Nassau], o qual acrescentou que João Maurício tinha o hábito de cercar-se de portugueses de duvidosa estirpe que seriamente ameaçavam aos interesses da população holandesa e que se enriqueciam escandalosamente à custa dos membros mais pobres da sociedade. João Maurício foi chamado à razão pelos diretores. Ao ser interrogado Tourlon confessou. Foi prontamente dispensado de seus postos e colocado no primeiro navio de volta à Holanda.¹

Sem abordar os acontecimentos ligados à vida privada e sentimental do Conde de Nassau, José Antônio Gonsalves de Mello nos revela preciosos informes acerca de Charles de Tourlon, o moço. Tinha ele o mesmo nome de seu pai, que se passara para o lado dos espanhóis em Flandres. Tourlon, que servira “no Brasil desde os primeiros anos da conquista; em 3 de abril de 1643 foi preso por Nassau, como suspeito de cumplicidade com brasileiros em uma revolta contra os holandeses”. Remetido para Holanda, ao fim do inquérito a que veio responder, nada se comprovou de tais acusações, sendo-lhe permitido voltar ao Brasil, não mais como militar, segundo o Dag. Notule de 21 de novembro do mesmo ano. Do seu casamento com Dona Anna Paes nasceram dois filhos: Isabella e Kornelius Tourlon. Morto Tourlon em fevereiro de 1644, sua viúva, Anna Paes, torna a casar desta vez com Gijsbert de With, Conselheiro de Justiça, conforme comunicado deste ao Alto Conselho datado de 29 de abril de 1645. Naquela ocasião o então pretendente informara que “a sua futura esposa já no tempo do seu anterior casamento tinha demonstrado ser mais favorável à nossa nação que a dos portugueses”.²

A cerimônia do casamento aconteceu na igreja calvinista de Maurícia, em 14 de maio do mesmo ano, comunidade da qual Dona Anna Paes fazia parte. Na mesma igreja foram batizados os filhos das suas duas últimas uniões: Isabella Tourlon, em 27 de novembro de 1643; Kornelius Tourlon, em 3 de julho de 1647, e Elizabeth de With, em 28 de setembro de 1650.

Em 1653, quando do retorno do conselheiro Gijsbert de With à Holanda, Dona Anna Paes, juntamente com os filhos havidos nos seus dois casamentos, acompanhou o marido fixando residência em Dordrecht, aonde veio a falecer em 21 de dezembro de 1674.

Em se falando das aventuras amorosas de João Maurício, estas o acompanharam por toda existência. Após o seu retorno à Europa, lembram os escritores José Van den Besselaar e Evaldo Cabral de Mello às suas ligações com Agnes Geertruyde van Bylandt, esposa do mordomo-mor do Grande Eleitor de Brandemburgo em Kleve, Johan von Coenen von Zegenwerp und Lohe, cuja imagem chega aos nossos dias graças ao seu retrato (Retrato de uma patrícia diante do anfiteatro), pintada por Jan de Baen, atualmente conservado no museu daquela cidade da Alemanha.

Para ela João Maurício deixara a Prinzenhoff uma magnífica casa por ele construída em estilo clássico, concluída em 1671, na Goldstrasse, cujo interior era decorado com telas produzidas por Albert Eckhout. “Com dois pavilhões flanqueando um corpo principal”, encravada em uma singular propriedade, com vistas de Kleve e do vale do Reno, “graças ao jardim em meia-lua escalonado em terraços”, tendo ao lado ‘uma das mais bonitas cercas de pinheiros do mundo’, segundo um viajante inglês e sendo prolongado, do outro, pelo parque de carvalhos, faias e amieiros que se estendiam até Freudenberg. Após o falecimento de Agnes Geertruyde, em 1678, a propriedade passou para um dos seus herdeiros que se encarregou do loteamento e consequente venda do seu terreno.³

Segundo o seu biógrafo, José van den Besselar:

A vida amorosa de Maurício está por escrever ainda, e talvez seja impossível reconstruí-la, porque neste terreno é muito difícil separar os boatos mexeriqueiros de informações seguras e objetivas. Só podemos dizer que Maurício, ao contrário de muitos outros príncipes da sua época, não deixou bastardos conhecidos como tais.4

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¹ STRAATEN, Harald S. van der. Brasil : Um destino. Tradução de Lace Medeiros Breyer. Brasília: Instituto Cultural Maurício de Nassau; Linha Gráfica Editora, 1998. p. 108.

² MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. Op. Cit. p. 142, nota 51.

³ MELLO, Evaldo Cabral de. Nassau: governador do Brasil Holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.256.

4 BESSELAR, José Van den. Mauricio de Nassau, esse desconhecido. Op. cit., p. 79-80.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 04 de julho de 2018

O RECEITUÁRIO DE CAPIBA

 

O RECEITUÁRIO DE CAPIBA: ELE JÁ TOMOU???

No seu Livro das Ocorrências (1985), Capiba conta “causos” engraçados acontecidos durante a sua movimentada vida de jogador de futebol, musicista, bancário e compositor dos mais festejados.

Chegando ao Recife em 15 de setembro de 1930, Lourenço da Fonseca Barbosa originário da Paraíba, então capital do vizinho Estado, veio assumir as funções de funcionário no Banco do Brasil, Agência do Recife.

Trazia em sua bagagem poucos conhecimentos para a vida bancária, mas já era conhecido e consagrado como compositor de frevos e canções, bem como pianista de cinema mudo, o que lhe garantia um grande número de relações de amizade.

Com o seu temperamento jovial, o nosso Capiba tinha sempre um chiste, uma graça, uma piada, no seu modo peculiar de viver a vida.

Logo nos primeiros dias de trabalho, como “quarto escriturário a título precário do Banco do Brasil”, Capiba pressentiu ao chegar para o expediente da manhã um grande rebuliço no salão da recepção. Formava-se uma grande roda de antigos funcionários, que atentos e com os semblantes revelando certo pesar, ouviam um fato narrado por uma voz para ele desconhecida.

Forçando a passagem, afasta daqui aperta dacolá, sobe numa cadeira, pede licença a um e empurra o outro, finalmente o nosso herói chega ao centro dos acontecimentos, bem no momento exato em que o narrador terminava a sua história.

Imediatamente surgiram as perguntas dos circunstantes preocupados:

– “E ela já tomou aplicações de radium?” – Indagava o chefe da seção.

– “E já experimentou um exame de raios-X?” –.

Perguntava preocupado o contador.

– “Bom seria um chá de Bom-Nome?”.

Sugeria um modesto funcionário crente na cura pelas erva.

A todos o narrador acenava afirmativamente. Todos os meios conhecidos foram utilizados; todos os medicamentos existentes naquele início dos anos trinta haviam sido experimentados.

Fazendo-se engraçado, o nosso Capiba, entrando no meio da conversa, saiu-se com esta prescrição:

– “Pelo que eu estou vendo ela já tomou tudo?!… Só falta mesmo é tomar no c…!!!!!”

Fez-se um silêncio geral e, logo em seguida, uma debandada de circunstantes marcou o cenário. Cada um procurava a sua carteira, ou algo para fazer, ficando sozinho no centro do salão o nosso Capiba, sem nada entender perante tamanha correria.

Sem saber o porquê do não estar agradando, nem muito menos a razão daquela retirada apressada, foi para a sua carteira, pensativo com os seus próprios botões.

Ao colega mais perto ele indagou: “E o que foi que houve por eu ter dito aquela besteira?”.

A resposta veio em tom de conselho:

– Olha, o gerente regional do banco estava contando que a sua senhora está doente e que havia tomado tudo quanto é remédio e não tinha obtido nenhum resultado, aí entra você, no meio da conversa, e vem com aquela recomendação!

– Nós ficamos com a cara no chão, não adianta consertar agora que vai sair muito pior…

De repente, recorda Capiba, eu vi junto a mim um homem que, pelos meus cálculos, tinha mais de dois metros… Com a voz forte e soturna ele profetizou:

 Seu Lourenço!… Aquela que o senhor recomendou tal tratamento é minha mulher… Ela encontra-se no Hospital Osvaldo Cruz, portadora de uma doença desconhecida, entre a vida e a morte… Enquanto vida eu tiver, jamais vou esquecer o seu receituário…

– No mês seguinte ele me ameaçava com uma transferência para o Amapá…

 

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 28 de junho de 2018

O CANCIONEIRO DO CICLO JUNINO

 

 O ciclo junino é um dos mais festejados do calendário folclórico pernambucano sendo, também, o de origem mais remota. Os festejos dedicados aos santos de junho são antecedidos pelos chamados noiteiros do mês maio, em honra da Virgem Maria, de origem historicamente recente, vez que as primeiras indulgências datam de 21 de março de 1815, conferidas que foram pelo Papa Pio VII.

Em Pernambuco o mês mariano veio a ser introduzido em 1850, no convento do Carmo do Recife, sob a inspiração do frei João da Assunção Moura e popularizou-se através dos frades capuchinhos do convento da Penha: “no exercício do mês mariano tudo é música, poesia e flores” (Pereira da Costa).

Das igrejas os cânticos e ladainhas em honra da Virgem passaram a ser entoados nos noiteiros das residências, costume ainda hoje mantido na zona rural e em alguns bairros do Recife e Olinda.

TUDO COMEÇA COM SANTO ANTÔNIO

Terminado o mês de maio, tem início as Trezenas de Santo Antônio, logo no dia 1º de junho, mantendo assim esta secular devoção ao santo lisboeta introduzida em Pernambuco em 1550, quando foi erguida uma capela ao santo que deu origem, em Olinda, ao primeiro convento carmelita do Brasil: Convento de Santo Antônio do Carmo.

É Santo Antônio (Lisboa, 15.VIII.1195 – Pádua, 13.VI.1231) o orago mais popular do Brasil, onde possui 228 freguesias sob a sua invocação, vindo em segundo lugar São José com 71. Nas famílias, Antônio é o nome escolhido e rara é a cidade, vila ou povoado que não tenha uma, ou mais, ruas ou avenidas com o seu nome, igrejas sob sua devoção. Afirma Luís da Câmara Cascudo, no seu Dicionário do Folclore Brasileiro, que “apesar de tanta bajulação e mudanças corográficas o Brasil possui 70 localidades como nome de Santo Antônio”.

Em Pernambuco os franciscanos fundaram o seu primeiro convento em terras brasileiras, em 13 de março de 1584, na então Vila de Olinda fincando a custódia sob a proteção de Santo Antônio. No Recife, a tradição do culto do santo data de 1606, quando foi iniciada a construção do convento franciscano da então ilha de Antônio Vaz, hoje denominada de Santo Antônio, estando o templo localizado na atual Rua do Imperador Pedro II.

Em 19 de novembro de 1709, a antiga povoação do Arrecife dos Navios veio a ser denominada de Vila de Santo Antônio do Recife, apesar do empenho do então governador Sebastião de Castro Caldas em denominá-la de São Sebas-tião, o que lhe custou uma advertência do Rei de Portugal. Em 1918 foi o santo lisboeta confirmado como padroeiro principal da cidade do Recife pelo Papa Benedito XV, ao conceder o co-padroado a Nossa Senhora do Carmo que ficou sendo “a padroeira menos principal”. Como se não bastasse é Santo Antônio o padroeiro dos pernambucanos, tendo sua imagem figurado nos estandartes dos exércitos luso-brasileiros quando da Insurreição Pernambucana eclodida em 13 de junho de 1645, dia de sua festa.
Durante treze noites, em residências das mais diver-sas, os seus devotos estão a cantar em coro:

Milagroso Antônio,
Nosso padroeiro.
Enche de alegria,
Pernambuco inteiro

SÃO JOÃO E SÃO PEDRO

Dentre as festas do ciclo junino, porém, é a de São João a mais festejada em Pernambuco. É também a festa popular mais antiga do Brasil, já sendo registrada por frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil 1500-1627, assim referindo-se aos naturais da terra… “acudiam com muita boa vontade, porque são muito amigos de novidades, como no dia de São João Batista por causa das fogueiras e capelas”.

Trata-se de uma festa de grande misticismo, a partir do próprio nome Batista – o que batiza cheio de graça -, em cuja noite se praticava feitiçarias, como demonstra a denúncia de Madalena de Calvos contra Lianor Martins, a Salteadeira, acusada dentre outras coisas, de trazer consigo uma semente enfeitiçada colhida na noite de São João, segundo depoimento prestado perante o inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, em 22 de novembro de 1593, quando da primeira visitação do Santo Ofício a Pernambuco.

As festas juninas foram trazidas para o Brasil pelos colonizadores portugueses, eles próprios ainda hoje cultores desta milenar tradição marcada pelas festas de Santo Antônio, em Lisboa e em Lagos; São João, no Porto e em Braga, e São Pedro, em Évora e Cascais. Na Europa as festas juninas coincidem com o início do verão, daí a presença da tradição de costumes pagãos dentro dos festejos, como adivinhações e o culto ao fogo.

No que diz respeito às fogueiras, ensina a tradição cristã divulgada pelos jesuítas ter sido um compromisso de Santa Isabel, prima da Virgem Maria, de mandar erguer um enorme fogaréu no sentido de anunciar o nasci-mento de seu filho João Batista:

“Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. Veio ele como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por seu intermédio. Ele não era a luz, mas devia dar testemunho da luz”. (João 1,6-8).

No Brasil a festa acontece com o início do inverno, tempo de colheita do milho e do feijão no Nordeste, que sempre está a espera das boas invernadas de modo a afastar o espectro das estiagens de modo a garantir a sua subsistência; como na polca de Zé Dantas e Luís Gonzaga, Lascando o cano(RCA 80/307B-1954):

Vamo, vamo Joana
Findou-se o inferno
Houve um bom inverno
Há fartura no sertão…,
Ai! …Joana, traz pamonha, milho assado
Vou matá de bucho inchado
Quem num crê no meu Sertão.
Traz a riuna que eu vou lascar o cano
Pela safra desse ano
Em louvor a São João.

CANCIONEIRO JUNINO

Em se tratando de um povo de bailadores, acostumado a dançar no meio da rua, no Brasil os festejos juninos é marcado, não somente pelas fogueiras, balões, comidas da época (nas quais predominam o milho, a mandioca, a castanha de caju e dos doces), mas também pela música em seus mais diferentes gêneros a movimentar os arraiás, residências, comércio, clubes sociais, pro-gramação de rádio e televisão e, sobretudo, a alma festiva dessa gente; como naquela polca de Zé Dantas e Joaquim Lima, Chegou São João, gravada por Marinês (RCA- BBL1075-B-l/ 1960):

Eita pessoá!
Chegou São João!
Vou me espraiá,
Vou dá no pé prô meu Sertão.
Eu vou pra lá,
Brincá com Tonha,
Com Zefa e Chico,
Comer pamonha e canjica
Vou soltar ronqueira,
Bebê e dançar coco
Em volta da fogueira.
Vou soltá,
Foguete, balão, buscapé
Bebendo aluá, cachaça e capilé

 

 

A festa de São João tem início com o Acorda Povo, logo na madrugada do dia 23, acordando os moradores ao som de zabumba, caracaxá, ganzá, triângulo, sanfona, tudo mo-vido a muita cachaça: “Acorda povo que o galo cantou / Foi São João que anunciou…”.

No por do sol do dia 23, véspera da festa do santo, são acendidas às fogueiras e a festa tem continuidade com a Bandeira de São João.

Uma procissão antecipada por uma estrela, coberta de papel celofane com 150 cm. de diâmetro, iluminada por vê-las no seu interior, é carregada por dois meninos. Seguem-se duas filas, formadas por homens e mulheres, que cantam e dançam em honra do santo, fazendo marcação com os pés e, por vezes, trocando umbigadas. Segue-se de uma bandeira, pintada com a imagem do Batista menino com o carneirinho, segurada em suas pontas por quadro adolescentes, antecedendo ao andor com a imagem do santo, esculpida em gesso ou madeira, carregado por quatro moças vestindo branco, encarnado e verde, cores mantidas também nas lanternas dos acompanhantes. Finalmente uma banda de pífanos, ou um terno de sanfona (acordeom, zabumba e triângulo), acompanha os seguidores no seu canto:

“Que bandeira é esta / Que vai levantar/ É de São João para festejar/ Que bandeira é esta / Que já levantou/ É de São João, primo do Senhor”.

A música é uma constante nos festejos juninos desde os primeiros dias da colonização. Foi assim com as capelas, referidas pelo frei Vicente do Salvador e descritas pelo Padre Carapuceiro, continuando em nossos dias com a adaptação de ritmos oriundos de outras plagas, como o xote (schot-tisch), proveniente da Hungria; a polca e a mazurca, originárias da Polônia, e a quadrilha, que teve por berço os salões aristocráticos de França e, no Brasil, veio a ser dança-da da Corte às casebres da zona rural, como bem assinala o jornal de críticas O Carapuceiro, em sua edição de 6 de abril de 1842:

“Nas baiúcas mais nojentas/ Onde a gente mal se vê/ Já se escuta a rabequinha,/ Já se sabe o balancê./ Nisto mesmo está o mérito/ Deste dançar tão jacundo,/ Que sem odiosa exclusão,/ Acomoda todo o Mundo”.

Não faltam nessas animadas festas os ritmos originários da terra, como o coco-de-roda, originário dos batuques africanos, que marcado por um ganzá, nas mãos do solista (tirador), acompanhado por um tambor em compasso biná-rio, e respondido pelas vozes dos dançarinos a marcarem o ritmo com sapateado dos seus tamancos de madeira, trocas de umbigadas e assim mantém a alegria a noite inteira. Para Pereira da Costa, in Folk-Lore Pernambucano (1908), o coco é a “dança querida do populacho, com certa cadência acompanhada a palmas, e na qual os foliões acomodam trovas populares repetidamente”[…] “o coco, porém, está tão vulgarizado que chegou mesmo à zona sertaneja, com a sua particular toada, mas, com letra variada, convenientemente acomodada ao canto, e obedecendo sempre a um estribilho contínuo, cantado em coro pelos circunstantes”.

Já era descrito no conto de Luís Guimarães Júnior (1845-98), que, estudante da Faculdade de Direito do Recife, publicou no Diario de Pernambuco, 8 de fevereiro de 1871, um conto sob o título “A alma do outro mundo”, onde comenta o que chamou de “samba do Norte” , na verdade o nosso coco-de-roda. Rodrigues da Carvalho, in Cancioneiro do Norte (1928), diz ser o coco a “dança predileta do pessoal dos engenhos de açúcar, negros e caboclos, cambiteiros, o mestre de fornalha, o metedor de cana, o banqueiro [mestre que dá ponto ao açúcar], os tangedores da almanjarra, etc.”. Mas na hora da alegria, onde a cachaça passa a dirigir os gestos e as ações, nem mesmo a autoridade está livre de uma roda de coco; como bem descreve Zé Dantas em gravação de Luís Gonzaga (RCA-Leme 801656A/1957):

O seu delegado, fez mais um esforço
E madrugada mandou um reforço
Mas desconfiado por não ter notícia
Veio ver o que houve, com a sua polícia
E de manhã cedo, a graça do povo
Era o delegado contando bem rouco
Nesse coco poliça num tem vez
Se acaba no pau, se falá em xadrez } bis

Também ligados ao Ciclo Junino, particularmente aos seus intérpretes, estão hoje o baião, o xaxado, a toada, a embolada, a ciranda e a marcha sertaneja, ou marcha junina, esta última originária das marchas populares com as quais Lisboa festeja o seu Santo Antônio e que vieram a ser conhecidas, através das companhias de revista, como marcha portuguesa, a exemplo da marcha de Zé Dantas e Luís Gonzaga, São João na roça (RCA 800895A/1952):

A fogueira tá queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou… ô
Vamos gente!…
Rapa pé nesse salão.

Ou esta outra marchinha, marca do romantismo das noites juninas, composta por Luiz Gonzaga e José Fernandes, Olha pro céu (Vitale 603326832), recentemente relançada na coletânea 50 anos de chão, em homenagem ao Rei do Baião:

Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo…
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo…

Foi numa noite
Igual a esta
Que tu me deste
O coração
O céu estava
Assim em festa
Porque era noite
De São João
Havia balões no ar
Xote, baião, no salão
E no terreiro, o teu olhar
Que incendiou meu coração

Tudo acontece numa mistura de ritmos e de cores, num cadinho conhecido no passado por forrobodó,já neste século por forrobodança e a partir dos anos quarenta por forró, como lembra Zé Dantas in Forró do Mané Vito, grava-do por Luís Gonzaga em 1949 (RCA 800668B/49) ser o local onde todos esses sons se misturam num grande baile popular.

Nas composições musicais do ciclo junino está toda moral do sertanejo, “Sertão das muié séria / Dos homi trabaiadô”… (A volta da asa-branca, toada de Zé Dantas, gravada por Luís Gonzaga, em 1950, RCA 800739 A) e a vida simples do seu povo:

Ai São João chegou,
Iaiá!
Ai São João chegou,
Sinhá!
Teu vestido de chita,
Já mandei preparar.
Minha roupa de lista,
Já mandei engomar,
Eu tenho uma festinha
Para te levar
Eu tenho uma fogueira,
Para o nosso lar

E hoje, o jovem romântico de ontem, pode lembrar com saudades aquelas noites juninas que não voltam mais, cantando aquele sucesso sempre atual, composto por Zé Dantas e Luiz Gonzaga em 1954, que leva o singular título de Noites brasileiras (RCA 801307 A):

Ai que saudade que eu sinto
Das noites de São João
Das noites tão brasileiras das fogueiras
Sob o luar do sertão

Meninos brincando de roda
Velhos soltando balão
Moços em volta à fogueira
Brincando com o coração
Eita São João dos meus sonhos
Eita saudoso sertão, ai, ai…

 

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 21 de junho de 2018

OLINDA, O CRIME MAIOR

 

Foi o incêndio da Vila de Olinda pelos holandeses, na noite de 25 de novembro de 1631, o maior atentado já cometido à uma cidade brasileira em cinco séculos de nossa História. Ao incêndio seguiu-se a demolição dos preciosos templos, conventos e prédios públicos, seguindo-se da retirada do material para uso na construção de uma nova cidade no bairro portuário do Recife.

Pelas imagens preservadas nos quadros de Frans Post e outros artistas do Brasil Holandês, se constata que do fausto da antiga vila só restaram ruínas. A destruição dos templos, conventos, prédios públicos e residências transformaram a primitiva capital de Pernambuco em uma cidade-fantasma, com paredes demolidas e ruas abandonadas.

Após a expulsão dos holandeses em 1654, Olinda iniciou a difícil missão de ressurgir das próprias cinzas. Enquanto os de Olinda trabalhava em sua reconstrução, soerguendo todo o seu casario, bem como o Colégio dos Jesuítas, o Convento dos Franciscanos, a Matriz do Salvador do Mundo, o Hospital da Misericórdia, o Convento do Carmo, a Matriz de São Pedro, o Mosteiro dos Beneditinos e outras igrejas também importantes, no Recife tudo era novidades e progresso.

Enquanto no Recife tudo apontava para o novo e o moderno, Olinda permaneceria por séculos com as marcas da destruição causada pelo incêndio criminoso de que foi vítima em novembro de 1631, como bem demonstra o professor José Luiz Mota Menezes :

O Recife, ampliado e desenvolvido pelos holandeses, encontrava-se em melhores condições que Olinda. Assim a reabilitação urbana desta cidade, muito arruinada, demorou muitos anos. Apesar de elevação à condição de cidade em 1676, ainda nela se viam grande número de casas abandonadas no século XVIII.

Os edifícios religiosos, ao espalhar o poder do açúcar presente nos proprietários rurais, que viam em Olinda as suas origens aristocráticas, foram reconstruídos em maior grandeza. Eles refletiam antes o maneirismo e passaram a falar a linguagem do Barroco lusitano onde certas inovações estéticas se incluíram, resultantes do inexistir resistências estilísticas anteriores, o que propiciava maior criatividade dos artistas luso-brasileiros.

Os vazios na área urbana de Olinda e o abandono que se seguiu, são testemunhados pelos depoimentos de viajantes que estiveram em Pernambuco no início do século XIX, a exemplo de Maria Graham que, apesar de surpresa com a paisagem olindense, não deixa de lamentar o seu estado melancólico de ruínas.

Fiquei surpreendida com a extrema beleza de Olinda, ou antes, dos seus restos, porque agora está num melancólico estado de ruína. Todos os habitantes mais ricos há muito se estabeleceram na cidade baixa (no Recife). Como as rendas do bispado são agora reclamadas pela coroa, e os mosteiros foram suprimidos pela maior parte, cessou até mesmo o esplendor fictício das pompas eclesiásticas. O próprio colégio (Seminário) onde os jovens recebiam de algum modo educação, ainda que imperfeita, está quase arruinado e é raro encontrar de pé uma casa de qualquer tamanho. Olinda jaz em pequenos morros, cujos flancos em algumas direções caem a prumo, de modo a apresentarem as perspectivas rochosas mais abruptas e pitorescas. Estas são circundadas de bosques escuros que parecem coevos da própria terra: tufos de esbeltas palmeiras, aqui e ali a larga copa de uma antiga mangueira, ou os ramos gigantescos de copada barriguda, que se espalha amplamente, erguem se acima do restante terreno em torno, e quebram a linha da floresta; entre esses, os conventos, a catedral, o palácio episcopal, e as igrejas de arquitetura nobre, ainda que não elegante, colocam se em pontos que pode riam ser escolhidos por um Claude ou um Poussin; alguns ficam nos lados íngremes das rochas, alguns em campos que se inclinam suavemente para a praia; a cor deles é cinzenta ou amarelo pálido, com telhas avermelhadas exceto aqui e ali quando um campanário é adornado com telhas de porcelana azul e branco.

No final do século XVII e por todo século XVIII, viveu-se em Pernambuco, quer em Olinda ou no Recife, mesmo em outras vilas como Goiana e Igarassu, uma verdadeira febre de construções de caráter religioso, financiadas pela produção do açúcar ou pelo rico comércio. Tamanho número de obras, propiciou-se um mercado promissor aos artistas locais que, inspirados nos modelos portugueses do estilo D. João V (1707-1750), ou mesmo em desenhos obtidos na Itália, vieram a criar, por todo o século XVIII e parte do século XIX, elementos característicos de um barroco aclimatado aos trópicos.

Engenheiros militares, arquitetos, mestres-pedreiros, carpinteiros, entalhadores, marceneiros, douradores, pintores, escultores, músicos e uma infinidade de profissionais artistas estavam em constantes atividades produzindo e construindo obras novas, para a mitra diocesana, irmandades, ordens religiosas e particulares.

Ordens religiosas como os Jesuítas, Carmelitas, Franciscanos, Beneditinos e Capuchinhos que, nos séculos XVIII e XIX, transformaram seus templos em grandiosos monumentos da fé cristã.

Foram essas ordens religiosas, particularmente os jesuítas e franciscanos, que desenvolveram, desde o início da segunda metade do século XVI, as escolas de formação de artistas. Recorda-se a presença em Olinda do jesuíta Francisco Dias, responsável em Lisboa pela construção da igreja de São Roque (1566-1591), no Bairro Alto, que trabalhou nas obras da igreja de Nossa Senhora da Graça (1577), “dentro do espírito do modo nostro – economia, austeridade, funcionalidade e adaptação à realidade circundante – das construções jesuíticas desse período [que] adotavam indistintamente soluções do passado medieval lusitano”.

Os franciscanos, chegados a Pernambuco em 1585, possuíam em 1655 vinte conventos e inúmeras missões. No século XVIII, no território da Província de Santo Antônio, compreendido entre a Bahia e o Maranhão, encontram-se assinalados 13 conventos e um hospício. Para a construção e manutenção dos seus templos e conventos, criaram os franciscanos as oficinas de formação de artistas que vieram se multiplicar em toda região.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 14 de junho de 2018

COMO ANTIGAMENTE, NA MINHA TERRA TUDO É FORRÓ

 

Severino Januário, Santana (zabumba), Luiz Gonzaga, Helena, Chiquinha, Severino, Zé Gonzaga…

Nesses dias que antecedem às festas juninas, e porque não dizer no ano inteiro, só se fala em forró, como sendo um ritmo de estrutura própria e independente dos demais, lembrei-me do verbete por mim escrito para o Dicionário da Música Brasileira (São Paulo: Art-Editora, 1998) que passo para vocês.

FORRÓ – Abreviatura de forrobodó e forrobodança, de uso comum na imprensa pernambucana da segunda metade do século XIX, para designar o local onde acontecia determinado baile popular. O vernáculo é bem brasileiro, nada tendo a ver com for all, como querem alguns descobridores de anglicismos. O seu uso tornou-se comum na imprensa do Recife (América Ilustrada, nº 25/ 1882, e Mephistopheles, nº 15/1883), sendo classificado por Rodrigues de Carvalho, in Cancioneiro do Norte,Fortaleza 1903, como “bailes da canalha” e por Pereira da Costa, in Vocabulário Pernambucano (1908), como “divertimento, pagodeira, festança”. Com o uso continuado, o vocábulo forrobodó passou a ser utilizado na sua forma forrobodança, assim definido na A Lanceta, nº 121 / 1913: “… é um baile mais aristocrático do que o Chorão do Rio de Janeiro, obrigado a violão, sanfona, reco-reco e aguardente. Nele toma parte indivíduos de baixa esfera social, a ralé […] A sociedade que toma parte no nosso forrobodança é mesclada; há de tudo. Várias vezes verificam-se turras e banzés sem que haja morte ou ferimentos. Fica sempre tudo muito camarada; muito bem, muito obrigado”.

A imagem diferente nos é pintada, já nos anos cinqüenta, por Zé Dantas (José de Souza Dantas Filho), in Forró do Mané Vito, gravado por Luiz Gonzaga em 1949 (RCA 80.0668B); ainda Zé Dantas, Forró em Caruaru, gravado por Jackson do Pandeiro em 1955; Edgar Ferreira, in Forró em Limoeiro, gravado por Jackson do Pandeiro (Copacabana nº 5155) e, novamente, Zé Dantas, in Forró de Zé Antão, também gravado por Luiz Gonzaga em 1962 (RCA BBL 1175B).

No final dos anos 50, com a construção de Brasília, foram transferidos dezenas de milhares de nordestinos para o Planalto Central que, a exemplo do que já vinha acontecendo no Rio de Janeiro e São Paulo, vieram estabelecer os seus bailes populares com o título de forró, geralmente antecedendo ao nome do promotor da festança: “o forró de Zé do Baile toca o ano todo/ toca o ano todo…”.

As chamadas Casas de Forró surgiram, nos anos 70, do século vinte, com uma grande presença de artistas nordestinos, como local de divertimento dos migrantes nordestinos, sendo frequentadas por trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, segmentos outros da comunidade subalterna, bem como por gente da classe média saudosa dos ritmos regionais, ameaçados pela programação radiofônica, onde só havia espaço para músicas estrangeiras. Nos anos setenta, as Casas de Forró, não só do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Natal e outras cidades, passaram a receber a freqüência dos chamados defensores da música popular brasileira, despertando assim o interesse da juventude universitária que viram no ambiente uma forma diversão autêntica e barata.

Em dias mais recentes, artistas como os saudosos Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Marinês e Jackson do Pandeiro, juntamente com nomes como Trio Nordestino, Abdias, Zé Gonzaga, Genival Lacerda, passaram a serem frequentadores assíduos das apresentações abrindo assim um mercado que se encontrava em baixa na segunda metade do século passado.

Na atualidade, sob o título de forró, a exemplo do baião nos anos cinqüenta, passou a existir lugar para todos os ritmos rurais do Nordeste e até de outras regiões. Sob o seu rótulo, vamos encontrar o xote, o rojão, a marcha de roda e a marcha junina (ambas originárias da marcha popular portuguesa), o xenhennhém, a toada, o samba rural, o xaxado, o coco, a mazurca, a rancheira e o próprio baião, como também ritmos alienígenas como o merengue, que aparece travestido de lambada e quadrilha.

Aproveitando a onda de modismo da juventude, o forró tornou-se a palavra de ordem, integrando o repertório de dezenas de conjuntos do gênero existentes em Pernambuco e no Ceará: Mel com terra, Mastruço com leite, Pimenta nativa, Mestre Ambrósio, Raimundos, Cascabulho, Limão com mel, dentre outros.

forró em nossos dias é um grande guarda-chuva que ampara todos os ritmos regionais; uma espécie do baião, nos tempos áureos de 1952, quando Zé Dantas e Luiz Gonzaga compuseram Tudo é Baião(Vitale 9432/52), gravado pelo conjunto Quatro Ases e um Coringa (RCA 800897-A); composição que hoje poderia ser intitulada de tudo é forró….

Andam dizendo
Que o baião é invenção
Quem disse isso
Nunca foi no meu sertão
Pra ver os cegos
Nesse ritmo cantando
E os violeiros
No baião improvisando

E os sanfoneiros
Do Moxotó
Desde o Navio
Ao Piancó
Do Pajeú
A Cabrobó
Canta baião
Lá nos forró
Pois o baião
Lá no sertão
E o xém-iên-iên
Qu’é seu irmão
Até a cantigas
De Lampeão
Na minha terra
Tudo é baião.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 07 de junho de 2018

ORAÇÃO DE AVE MARIA DA PRA 8, RÁDIO CLUBE DE PERNAMBUCO

Irradiada pela primeira vez, na voz do locutor Sebastião Stanislau, em 8 de setembro de 1939, sendo o seu texto atribuído ao jornalista Carlos Rios, por alguns, e ao radialista Mário Libânio, por outros.

Ave Maria!

Rainha pura e ditosa dos homens pecadores.

Santa radiosa do céu!

Hora doce e emocionante, entre o dia que morre e a noite que surge.

As criaturas perdidas, na inquietação que enche a terra, olham o firmamento, ansiosas pela luz das estrelas que começam a inundar a imensidade.

Ave Maria!

Paz e recolhimento para os espíritos, conforto e esperança para as almas!

O homem dobra os joelhos e abranda a sua ira, esquece os seus sofrimentos e abre o seu coração, nesta hora terna de piedade e de recolhimento.

O seu pensamento voa para o céu, qual gigantesco pássaro audacioso que soltasse, na amplidão, as suas asas doiradas.

Ave Maria!

As catedrais e as capelas humildes entoam, ao mesmo tempo, a sua oração que o bronze secular cobre de sons divinos, enchendo o espaço de harmonias inefáveis.

Ave Maria!

Hora da prece e do perdão.

Hora dos fidalgos e dos plebeus.

Hora dos cristãos de todas as idades e dos filhos de Deus de ambos os hemisférios.

Ave Maria!

Hora grandiosa de Deus!

Traço de união divina entre a criatura e o Criador.

Hora mágica da humanidade que abre um doirado caminho de luz, entre a terra angustiada e o céu bendito.

Ave Maria!

 

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 31 de maio de 2018

PRA8 - RÁDIO CLUBE DE PERNAMBUCO (1919)

 

Rádio Clube de Pernambuco

Com a suspensão da censura telegráfica, em janeiro de 1918, os telegrafistas amadores do Recife tiveram suas atenções despertadas no sentido da criação de um Instituto de Telegrafia sem Fio. Um esboço dos estatutos dessa sociedade é conservado pela Fonoteca da Fundação Joaquim Nabuco, no qual estão relacionados os primeiros associados com seus respectivos prefixos: Abelardo Rego Barros, ARB; George E. Gatis, GEG; João P. Lyra, QCT; Augusto Pereira, MJV; Lino M. Cerqueira, LCB; Luiz de Carvalho, LCB; Alfredo Watts, AWG.

Em seis de abril de 1919, segundo noticia a edição vespertina do Jornal do Recife, é fundado uma associação, com o objetivo de congregar amadores em radiotelegrafia, sob a denominação de Radio Club:

Consoante convocação anterior, realizou-se ontem na Escola Superior de Eletricidade, a fundação do Rádio Club, sob auspícios de uma plêiade de moços que se dedicam ao estudo da eletricidade e da Telegrafia sem fio.

Ninguém desconhece a utilidade e proveito dessa agremiação, a primeira no gênero fundada no país.
Foram tomadas diversas medidas, como sejam, designações de comissões para se entenderem com as autoridades do Estado etc.

Ao Exmo. Sr. Ministro da Viação foi endereçado um telegrama comunicando a instalação do club e solicitando a sua Excia. o seu patriótico apoio a novel associação.

Procedida a eleição para a diretoria, esta deu o seguinte resultado:

Presidente, Augusto Pereira; secretário Alexandre Braga; orador, Carlos Rios; tesoureiro, Artur Coutinho; suplentes, 1º secretário Severino Mendonça; 2º Alfredo Watt e 3º Ismar Just.

Almejamos ao Rádio Club um êxito feliz no seu desiderato.

 

 

Leonardo Dantas - Esquina quinta, 24 de maio de 2018

A IMPRENSA EM PERNAMBUCO

 

Ao contrário das demais colônias estabelecidas a partir dos fins do século XV nas Américas, o Brasil foi a última a conhecer a tipografia. O invento de Johann Gensfleish Gutenberg (1400-1468), já com a introdução dos tipos metálicos móveis (caracteres móveis já existiam em argila), conquistou praticamente toda a Europa a partir de 1454, quando da impressão de uma indulgência em Mainz, chegando a Portugal em 1489, com o Tratado de Confissom, em Chaves, produzido por um impressor ambulante.

Por razões políticas impostas por Portugal, no sentido de manter a dependência através da ignorância cultural, o Brasil só veio conhecer oficialmente a tipografia a partir de 13 de maio de 1808, quando da criação pelo então príncipe regente D. João, da Impressão Régia no Rio de Janeiro.

Ao contrário do Brasil, o mesmo não aconteceu nas demais colônias das Américas, a exemplo do México, Peru e Estados Unidos, que conheceram a tipografia em 1539, 1585 e 1638 respectivamente. Mesmo dentro do mundo colonial português, a tipografia fora difundida no Oriente, através dos padres da Companhia de Jesus, no uso de preciosas traduções de vocabulários e gramáticas nativas, bem como na propagação da fé, nos seus colégios de Salsette (1542), Goa (6.9.1556), Anakura (1591), além de Rachol, Cochim, Vaipicota, Punicale e Ambalacate.

Na China, os jesuítas portugueses começaram a imprimir em Macau (1588), seguindo-se de Cantão e Hong-Kong. “No Japão, entre 1590 e o banimento do cristianismo, em 1614, os padres produziram mais de cem obras. Suas impressoras, primeiro em Kazusa com o padre Alexandre Valignano, em seguida a partir de 1591, em Anakura, e depois em 1599 na fortaleza cristã de Nagasaki, produziram catecismos, literatura e trabalhos devotos conhecidos, tanto em português como em japonês, pelo nome de Kirishitan-ban. Seus estudos linguísticos constituem a fonte principal do nosso conhecimento do primitivo japonês moderno. Pelo menos dois tipógrafos foram japoneses convertidos, enviados a Coimbra para aprender o ofício”.

No Brasil Holandês

 

 

A primeira tentativa da introdução da tipografia no Brasil partiu não dos portugueses, mas do governo holandês do conde João Maurício de Nassau-Siegen (1637-1644) quando, em 28 de fevereiro de 1642, o Supremo Conselho do Governo do Brasil, sediado no Recife, escreveu à Assembleia dos Diretores da Companhia das Índias Ocidentais, em Amsterdam, solicitando o envio de uma tipografia, “a fim de que as ordenações e os editais emanados por Vossas Senhorias e deste governo, e os bilhetes de vendas, sendo impressos, obtenham maior consideração, e de ficarmos dispensados do trabalho fatigante de tantas cópias”. 

A resposta não tardou e, em 14 de julho do mesmo ano o Conselho dos XIX informa ter seguido da Câmara de Horn “um certo Pieter Janszoon que aqui exerceu a profissão de tipógrafo e, por ocasião de sua partida, não se mostrou avesso a ideias de aí introduzir a sua arte, mediante certas condições”. 

Em face da demora nas comunicações, o Supremo Conselho reiterou o seu pedido, em carta datada de 24 de setembro de 1642, que veio a ser respondida pelo Conselho dos XIX em 21 de maio de 1643: “De há muito que consideramos a necessidade do estabelecimento de uma tipografia no Brasil, e agora recomendamos a pessoa idônea que se informasse de algum mestre habilitado para este fim, e igualmente comunicamos essa resolução à corporação dos impressores, de sorte que esperamos ver o vosso pedido satisfeito dentro em breve”. 

O Conselho do Brasil, porém, em carta datada do Recife, 2 de abril de 1643, informa laconicamente o falecimento, após sua chegada, do impressor Pieter Jenson reiterando o pedido do envio de uma oficina de tipos e de um novo mestre impressor: “esperamos que Vossas Excelências realizem a prometida remessa de uma tipografia, a fim de nos exonerar das consideráveis despesas com as numerosas cópias das ordenações e editais em português, o que importa em muito dinheiro, porquanto os escreventes da repartição consideram este serviço como extraordinário e fora de suas atribuições regulares”.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 17 de maio de 2018

A IMPRENSA E A ESCRAVIDÃO

 

 

No Brasil do século XIX, para a grande massa escrava, que integrava a sua população do Brasil e que acalentara na Independência o seu sonho de liberdade, a imprensa periódica que surgia no início da segunda década nada mais era que uma nova forma de negócio.

Diario de Pernambuco, surgido em 7 de novembro de 1825, a exemplo de todos os demais jornais de sua época, não fugia à regra, como se depreende do enunciado do seu primeiro número:

Faltando nesta cidade assaz populosa um Diario de Anúncios, por meio do qual se facilitassem as transações, e se comunicassem ao público notícias, que a cada um em particular podem interessar, o administrador da Tipografia Miranda & Comp. se propôs a publicar todos os dias da semana, exceto aos domingos somente, o presente Diario, no qual debaixo dos títulos de Compra e Vendas – Leilões – Aluguéis – Arrendamentos – Aforamentos – Roubos – Perdas – Achados – Fugidas e Apreensões de escravos – Viagens – Afretamentos – Amas de Leite etc., tudo quanto disser respeito a tais artigos; para o que tem convidado todas as pessoas, que houverem de fazer estes ou outros quaisquer anúncios…

Sobre o assunto, observa Joaquim Nabuco em 1883, quando da publicação de O Abolicionismo, cuja reedição, fac-similar da primeira, fizemos incluir na abertura desta Série Abolição:

Em qualquer número de um grande jornal brasileiro – exceto tanto quanto sei, na Bahia, onde a imprensa da capital deixou de inserir anúncios sobre escravos – encontram-se com efeito as seguintes classes de informações que definem completamente a condição presente dos escravos: anúncios de compra, venda e aluguel de escravos em que sempre figuram as palavras mucama, moleque, bonita peça, rapaz, pardinho, rapariga de casa de família, (as mulheres livres anunciam-se como senhoras, a fim de melhor se diferenciarem das escravas): editais para praças de escravos, espécie curiosa e da qual o último espécime de Valença é um dos muito completos [Valença, 23 de abril de 1883]; anúncios de negros fugidos acompanhados em muitos jornais da conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa no ombro, nos quais os escravos são descritos muitas vezes pelos sinais de castigos que sofreram, e se oferece uma gratificação, não raro de 1.000, a quem o apreender e o levar ao seu dono – o que é um estímulo à profissão de capitães-do-mato… (p. 120-122)

Esses anúncios de jornais, de que trata Joaquim Nabuco, despertaram o interesse de Gilberto Freyre que contou com as pesquisas de José Antônio Gonsalves de Mello para escrever a conferência pioneira, “O escravo nos anúncios de jornal do tempo do Império”, depois transformada em livro de grande sucesso(14). Os anúncios de jornais, particularmente os do Diario de Pernambuco, já vinham sendo utilizados por Gilberto Freyre desde 1933, quando da publicação da primeira edição de Casa-Grande & Senzala (p.330, notas), como identificação das “nações” africanas aqui existentes.

O material reunido – cerca de dez mil anúncios típicos – chega para uma tentativa de interpretação social e psicológica, quase exclusivamente através desses retalhos, de um dos períodos mais significativos de nossa história. É todo um largo espaço social, cheio de sombras, por onde os historiadores oficiais ainda tropeçam agarrados às crônicas ilustres, que se deixa às vezes iluminar ou esclarecer, de modo decisivo, por um simples anúncio de negro fugido. E em pesquisas sociológicas e de antropologia cultural ou de História Social, devemos seguir o conselho das Escrituras: aprender até com as formigas. Aprender até com os anúncios de jornal(15).

Dos anúncios transcritos por Gilberto Freyre, aparecem escravos claros, a denunciar a mestiçagem que tomava conta do Brasil, formadora da morenidade de que tanto nos orgulhamos nos dias atuais:

– Alvo também era Francisco, que tinha tatuagens representando uma cruz e o signo-de-salomão (DP, 28.3.1834).

– vende-se para fora da província uma mulata bem alva, de idade de 20 a 22 anos, muito prendada, fiel e sem vício algum (DP, 30.11.1836).

– O mulatinho que desapareceu da ponte da Boa Vista era “alvo e de cabelo estirado e louro (DP, 16.9.1837).

– De peitos grandes, pés e mãos pequenas, dentes grandes separados, era a mulata clara Virgínia (DP, 13.3.1838).

– Vende-se uma escrava de dezoito anos, de bonita figura e bons costumes, e que serve bem a uma casa, por ter sido educada por uma senhora inglesa, a qual também fala inglês, cose, cozinha, engoma e lava; na Rua do Livramento n.º 36 (DP 31.7.1848).

– … estatura alta, bem alvo e bonito, seco de corpo, braços compridos, dedos finos e grandes, sendo os dois mínimos dos pés bastante curtos e finos, tem dezoito anos de idade, cabelos corridos e pretos, levando eles rentes… mãos e pés bem feitos e cavados, olhos pardos e bonitos, sobrancelhas pretas e grossas, não buça, leva calça de brim branco já usada e camisa de chita com flores roxas (DP, 21.1.1865).

– … bem alvo e bonito, seco de corpo, braços e pernas compridas, dedos finos e grandes, cabelos corridos e pretos, olhos grandes e bonitos, sobrancelhas pretas e grossas, era Ubaldo cuja fuga é anunciada (DP. 5.4.1870).

Os anúncios de jornais eram retratos falados de uma época, servindo não somente para demonstrar as marcas de castigos corporais, impostos aos escravos fujões pelos capitães-do-mato e senhores, mas também outros aspectos da população de cor. Através desses retalhos podemos estudar as origens tribais (Moçambiques, Angolas, Caçanges, Benguelas, Nagôs, Bantos, etc.), as habilidades profissionais – como aquele que sabia tocar piano e marimba, que chamou a atenção do inglês Alexander Caldcleugh, in Travels in South America, during the years 1819-20-21, Londres, 1825, ao ler anúncio em jornal do Rio de Janeiro.

Por tais anúncios podemos saber sobre divertimentos dos escravos – Catarina frequentava aos domingos o maracatu dos coqueiros, no Aterro dos Afogados (DP.1.7.1845) –; erudição – Delfina falava muito bem espanhol (DRJ, 4.5.1830) –; trajes – Isabel vestia preto, “por o Sr. trazer de luto”(DP, 31.1.1842) –; temperamento (tristes, alegres, falantes, ladinos, brigões), vícios (fumo, álcool, comer terra); doenças (marcas de bexiga, boubas, bichos-de-pé etc.); ajuntamentos – a preta Ricarda era canhota, “mais ou menos alta, seca, cabeça chata, cara redonda”, que, “muito pachola”, gostava de “súcias e batuques” (DP, 16.7.1845) –; adornos; penteados; deformações profissionais; constituição física – Ana “tinha os peitos em pé, pés pequenos, bem feita de corpo” (DP, 4.5.1839) –; comportamento – … “mulata de linda figura, sabe labirinto, é engomadeira e costureira, de boa conduta”, como não poderia deixar de ser, “própria para uma noiva” (DP, 7.8.1857) –; marcas de ferro e/ou de nação; dado a feitiços – alguns com culto instalado na Estrada de João de Barros (DP, 7.2.1859) –; não faltando escravos fugitivos pertencentes a ordens religiosas, como bem retrata o anúncio publicado no Diario de Pernambuco de 11 de setembro de 1838:

Do engenho Maraú, ribeira do rio Parnaíba, propriedade do Mosteiro de São Bento da cidade da Paraíba, fugiu Bonifácio, crioulo, idade de 50 anos, seco, pernas finas, pouca barba, e já toda branca; João Batista, crioulo, carpina, de 30 anos de idade, estatura ordinária, cheio de corpo, e muito barbado, tem os calcanhares brancos, e pernas fouveiras por queimadura de fogo de pólvora, e o andar um tanto embaraçado; quem os prender e levá-los ao dito engenho ao abaixo assinado, ou ao Mosteiro de Olinda, será satisfeito de todas as despesas e bem recompensado; consta ao abaixo assinado que eles têm andado por Paudalho, Nazaré e Limoeiro, portanto ele roga a seus amigos residentes nesses lugares, toda a pesquisa a respeito, e deles espera tal favor Fr. Galdino de S. Inês Araújo.

O mais curioso do anúncio acima é que os padres do Mosteiro de São Bento, em capítulo realizado a 15 de janeiro de 1831, em Olinda, haviam libertado todos os escravos dos mosteiros de Pernambuco e Paraíba, “por ser a escravidão oposta a razão, a consciência e a religião”, segundo informa F. A. Pereira da Costa em artigo publicado na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, v. 42, Recife 1891, p. 261.

Por muitos anos a imprensa viu no negro escravo um objeto de negócio, classificando entre os semoventes – tratado por “cabra” a se confundir com o próprio animal –, e só muito depois é que veio despertar para a chaga da escravidão.

Em 1847, em sua edição de 1º de julho, o Diario de Pernambuco anuncia a criação da Sociedade Protetora dos Homens Pardos:

Acha-se pública e licenciada pelo Sr. Doutor Chefe de Polícia a Sociedade Protetora dos Homens Pardos e Pretos Livres da Província de Pernambuco, na Rua das Águas Verdes nº 22, segundo andar, com o fim de proteger não só seus irmãos sócios, como todos os mais homens de cores em geral: o que se faz ciente ao respeitável público para sua inteligência. – Luís Cyríaco da Silva, primeiro secretário.

Em 16 de janeiro de 1839 o padre Miguel do Sacramento Lopes da Gama, no jornal O Carapuceiro, ao analisar a sociedade de então e indagar sobre o futuro do Brasil, aponta crimes que, de serem cometidos com tanta habitualidade, já passaram a ser legais:

Uma filosofia toda sensualista inoculou-se na população do Brasil: o egoísmo é o ídolo das classes elevadas da sociedade, gozos materiais são os únicos incentivos da maior parte dos corações …

E denunciando as claras transgressões ao que preceituava a Lei de 7 de novembro de 1831, regulamentada pelo Decreto de 12 de abril de 1832, ao arrepio do Código Penal de então, denuncia o polêmico jornalista:

Temos um exemplo disto no infame tráfico de escravaria. A princípio havia susto, havia receios; mas pouco a pouco foram-se aventurando os especuladores de carne humana, e hoje é espantosa a importação de escravos da costa da África …

E, mais adiante, denuncia a formação de quadrilhas de ladrões de escravos:

A ambição cresceu a olho em todos os corações, e tem chegado a ponto de haverem aparecido homens de mão armada a roubarem escravos uns dos outros, e já tem havido reencontros, e mortes por causa disto! Querem argumento mais cabal da nossa corrupção, e imoralidade?

PRIMEIRO JORNAL ABOLICIONISTA

Em 13 de janeiro de 1876, surgiu o semanário O Homem, jornal impresso na Tipografia do Correio do Recife, sob a direção de Felipe Nery Colaço, com o “fim de promover a união, instrução e a moralização dos homens de cor pernambucanos. Advogará a causa dos interesses legítimos deles e defenderá seus direitos políticos, propugnando para que a Constituição seja uma realidade para todos os brasileiros, sem distinção de classes. As injustiças que lhes forem feitas serão levadas ao conhecimento do público, para que a maldição geral caia sobre aqueles que as tiverem praticado e o mesmo terá lugar relativamente à opressão e perseguição que sofrerem”… “Todos os outros cidadãos que, sentindo-se oprimidos ou perseguidos recorrem ao O Homem, encontrarão também benigno acolhimento, qualquer que seja a posição social do opressor ou perseguidor”.

No formato 38 x 27 cm, com sua matéria disposta em quatro páginas, este semanário das quintas-feiras, em seu segundo número denunciou o dúbio comportamento do jornal A Província e acusou o governador de Pernambuco, Henrique Pereira de Lucena, “que não admitia pardos ocupando lugar de destaque em seu governo”.

O Homem circulou com regularidade, defendendo sempre o elemento de cor e os princípios do abolicionismo, até 30 de março do mesmo ano (nº 12), quando veio a sair de circulação.

Estava assim lançada a semente da imprensa abolicionista em Pernambuco, continuada depois por outros órgãos. Os anúncios de escravos fugidos diminuíam no seu tamanho e o Jornal da Tarde, aparecido em 22 de maio de 1885, sob a direção do historiador José Higino Duarte Pereira, em polêmica com O Tempo, jornal conservador, afirmava ser este “a página negra da imprensa pernambucana”, acusando-a de viver da “desgraça alheia… com anúncios de escravos fugidos”.

No livro A IMPRENSA E A ABOLIÇÃO (Fundação Joaquim Nabuco – Editora Massangana, 1988), de nossa autoria, integrante da Série Abolição, comemorativa do Centenário da Abolição da Escravidão Negra no Brasil, reunimos vinte e quatro títulos de jornais pernambucanos com matérias pertinentes à causa abolicionista. A análise de cada periódico antecede a sua publicação fac-similar, de modo a facilitar o entendimento do leitor, chamando a atenção para a época da publicação. No mesmo sentido fizemos publicar na mesma série (v. XII) a coleção do jornal O Abolicionista, editado pela Sociedade Brasileira contra a Escravidão, no Rio de Janeiro (1880-1881), então sob a direção de Joaquim Nabuco.

Este trabalho só veio a ser possível graças à colaboração da Prof. Esther Caldas Bertoletti, do Plano Nacional de Preservação dos Periódicos Brasileiros (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), e dos colegas da Fundação Joaquim Nabuco, Maria Laura Menezes, Luiz Gomes de Freitas, Edilice de Santana Pessoa e Rosa Martins que, empenhando o melhor dos seus esforços na microfilmagem dos originais e conclusão deste volume, muito contribuíram para sua realização.

 

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 09 de maio de 2018

O BAIRRO QUE DEU NOME AO RECIFE

 

 

No ponto onde o mar
se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
Depois armaram
seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.

Carlos Pena Filho

Um porto tão quieto e tão seguro, que para as curvas das naus serve de muro”, na descrição da Prosopopea (1601) do poeta cristão-novo Bento Teixeira, escrita em Pernambuco na segunda metade do século XVI, seria a origem humilde da povoação do Recife.

Situada no cruzamento do paralelo, a oito graus e três minutos e 45,8 segundos de latitude sul, e do meridiano a 34 graus e 52 minutos e 14,8 segundos, de longitude oeste, a Barra do Arrecife, assim chamada no Diário de Pero Lopes de Souza (1532), veio a ser a Ribeira do Mar dos Arrecifes dos Navios, a que se refere o donatário Duarte Coelho Pereira em sua impropriamente chamada carta foral de 12 de março de 1537, uma minúscula povoação de mareantes e pescadores que viviam em torno da ermida de São Frei Pedro Gonçalves, por eles denominada de Corpo Santo.

Era o Recife um porto por excelência, o de maior movimento da América Portuguesa, escoadouro principal das riquezas da mais promissora de todas as capitanias: Pernambuco. Tal riqueza logo despertou a cobiça da Holanda que, em guerra com a Espanha, voltou suas atenções para o açúcar, produzido por 121 engenhos e exportado através desse porto.

Em 14 de fevereiro de 1630, utilizando a maior esquadra que até então cruzara a linha do Equador, formada por 65 embarcações e 7.280 homens, os holandeses vieram se instalar na antiga Capitania Duartina, iniciando uma dominação que se estendeu até janeiro de 1654.

Durante 24 anos, passou o Recife de povoação acanhada do século XVI e início do século XVII a capital do Brasil Holandês. Foi tanto o crescimento do primitivo Arrecife dos Navios, foram tantos os melhoramentos obtidos, particularmente durante o governo do conde João Maurício de Nassau (1637-1644), que, mesmo após a expulsão dos holandeses (1654), o Recife jamais voltou a depender de Olinda. O Povo dos Arrecifes era coisa do passado. O primitivo porto veio a ser disputado até pelos governadores que teimavam em ocupar o Palácio de Friburgo, construído pelo conde Nassau na primitiva ilha de Antônio Vaz, deixando de prestar assistência à sede da capitania, Olinda, motivando assim os reclamos junto ao rei de Portugal.

Para o recifense, no Bairro do Recife encontra-se a origem de toda a cidade. No subúrbio ou mesmo nos bairros centrais de Santo Antônio e de São José, é comum a expressão como referência certa ao nascedouro do antigo Arrecife dos Navios: Lá dentro do Recife …

Quem chega a Pernambuco, ao começar seu roteiro, vai logo ao encontro do velho bairro do Recife: Ali é que é o Recife/mais propriamente chamado.

Em torno dele, ao longo de seu porto, com os seus 3.000 metros de cais acostável, estão as origens do povoamento do Recife quatrocentão. Dele se avistam as ondas quebrando sobre a muralha dos arrecifes, ponto onde o visitante sentirá na alma os versos do cristão-novo Bento Teixeira, escritos ainda nos primeiros anos de nossa colonização:

Hé este porto tal, por estar posta,
Huma cinta de pedra, inculta e viva,
Ao longo da soberba e larga costa,
Onde quebra Neptuno a fúria esquiva;
Antre a praya, e pedra decomposta,
O estranhado elemento se diriva,
Com tanta mansidão, q. hua fateyxa
Basta ter à fatal Argos anneyxa.

Prosopopea (1601)

Ao contemplar esta muralha, o sábio inglês Charles Darwin (1809-1882), autor da Teoria da evolução das espécies, que esteve no Recife a bordo do navio H. M. S. Beagle, aportando em 12 de agosto de 1836, assim registrou no seu Diário¹:

O objeto mais curioso que observei nesta vizinhança foi o recife que forma o ancoradouro. Duvido de que em todo mundo haja outra estrutura natural que apresente aspecto tão artificial. Percorre uma extensão de vários quilômetros em absoluta linha reta, paralela à praia e pouco distante desta. A largura varia entre 30 e 60 metros e tem superfície nivelada e macia; compõe-se de arenito duro de estratificação obscura. Durante a preamar as ondas se quebram sobre ele, mas na vazante a parte superior fica seca, de sorte que se apresenta como um quebra-mar construído pela mão de ciclopes.

Depois de afirmar que a formação dos arrecifes da costa pernambucana se deve a um aglutinado de restos de animais marinhos, “pelo sucessivo crescimento e morte das pequenas conchas Serpulae, juntamente com algumas bernaclas e nulliporae”, conclui:

Esses insignificantes seres orgânicos, especialmente as Serpulae, prestam excelente serviço ao povo do Recife; pois, sem o auxílio da sua proteção, a barreira de arenito, de há muito, teria sido inevitavelmente destruída, e sem essa barreira nunca haveria de existir um ancoradouro.

Para a construção do atual Porto do Recife, observa Tadeu Rocha², “alteou-se a muralha dos arrecifes, construíram-se quebra-mares, fizeram-se extensos cais, ergueram-se armazéns e montaram-se guindastes. No dia 12 de setembro de 1918, o vapor São Paulo, do Lóide Brasileiro, acostou ao novo cais de cabotagem. E em 2 de outubro de 1924, o paquete Gelria, do Lóide Real Holandês, atracou no cais de dez metros, sob os aplausos do povo que acorrera ao porto para receber o belo transatlântico”.

As suas obras, porém, já eram consideradas conclusas em 15 de abril de 1922, quando o Arlanza,transatlântico inglês de 14 mil toneladas, atracou no seu ancoradouro interno.

O Recife, a exemplo de outras cidades portuárias, nasceu e se desenvolveu em torno do seu porto, segundo ensina com muita propriedade o também recifense Josué de Castro:

A cidade nasceu como porto e a serviço imediato do porto. É este um dos seus aspectos mais singulares: em regra, constrói-se um porto para servir a uma cidade; no caso, levantaram os holandeses uma cidade para servir a seu porto. O seu primeiro fator de progressão foi o crescimento desse porto a serviço de uma região fértil, onde a indústria açucareira prosperava a largos passos. Foi o açúcar produzido nos solos aluvionais e de decomposição do Nordeste, nas famosas terras de massapê, da chamada região da Mata, que constituiu, desde o começo e durante quase todos os períodos da história nordestina, o fator fundamental de propulsão e de evolução da cidade do Recife. Foi no Vale do Capibaribe, nas suas margens alongadas em várzeas fecundas, que se iniciou o plantio da cana no país – plantio que se mostrou de logo extremamente vantajoso. Quando os holandeses se preocuparam em invadir Pernambuco, fizeram-no antes de tudo atraídos pelo cheiro do açúcar, produto tão disputado na época pelos mercados mundiais, e aqui chegando assentaram na entrada do vale cultivado para receberem, o mais diretamente possível, o produto da região, transportado em barcaças através do próprio rio. […] A localização desses engenhos e de outros, plantados no Vale do Beberibe, tiveram uma extraordinária influência na direção que tomou a cidade em sua evolução. Como já tivemos ocasião de aludir, anteriormente, o Recife viveu, desde suas origens, sempre atraído por duas seduções opostas: pela atração do vasto mar salpicado de caravelas e pela atração do ondulado mar dos canaviais espalhados nas grandes várzeas³.

As obras do Porto, desenvolvidas entre 1908 e 1924, fizeram passar o Recife por uma grande reforma urbana. Seculares prédios do seu bairro portuário, testemunhas do crescimento do velho burgo desde os primeiros anos da colonização, alguns deles da primeira metade do século XVI, vieram ceder lugar às novas avenidas Alfredo Lisboa, Rio Branco, Marquês de Olinda e Barbosa Lima, e Rua Álvares Cabral, parte das ruas Vigário Tenório e Bom Jesus, com novo traçado.

Com tais demolições também sumiram da paisagem, em outubro de 1913, a Igreja do Corpo Santo, também conhecida por São Telmo (Santelmo), por conta do seu padroeiro São Frei Pedro Gonçalves, cujos primórdios datavam do início da Capitania Duartina. Quatro anos mais tarde, foram demolidos os arcos de Nossa Senhora da Conceição e Santo Antônio, que se encontravam desde o século XVIII nas cabeceiras da Ponte do Recife, Maurício de Nassau.

A paisagem vista do porto, com as ondas arrebentando-se contra os arrecifes e os grandes navios cruzando a entrada da barra, inspirou certa vez o pintor Cícero Dias ao dar nome a uma das suas obras: Eu vi o mundo! Ele começava no Recife…

Sob a inspiração daquele pintor, a antiga Praça do Comércio recebeu, em dezembro de 1999, uma nova roupagem, obedecendo ao traço do arquiteto Reginaldo Esteves, que a transformou numa grande esplanada, de cerca de 7.000 metros quadrados, cercada de bancos em granito e 32 bandeiras azuis, a relembrar o poema de Carlos Pena Filho, tendo no meio uma rosa-dos-ventos concebida pelo mesmo Cícero Dias. No seu centro, foi fixado o atual Marco Zero, um disco de bronze, de 105 cm de diâmetro com uma singular inscrição:

DESTE MARCO PARTEM AS DISTÂNCIAS PARA TODAS AS TERRAS DE PERNAMBUCO – ANO 2000.

No mesmo disco estão fixadas as coordenadas de localização do Recife, no cruzamento do paralelo de 803’45,8”, de latitude sul, e do meridiano de 34052’14,8”, de longitude oeste, e a altitude de 4.700 metros acima do nível do mar.

Para esta praça, oficialmente denominada de Praça Rio Branco, convergem as Avenidas Marquês do Recife, Rio Branco e Barbosa Lima, que têm por esquinas os prédios do Espaço Cultural Bandepe, Associação Comercial e a antiga Bolsa de Valores, exemplos da arquitetura eclética que tomou conta do Bairro do Recife no início do século XX. Estes exemplos de ecletismos se destacam pela homogeneidade de suas edificações, em sua maioria dotada de três e quatro pavimentos, representando um estilo que marcou o Brasil no início do século XX, no qual predominam exemplares desta escola inspirada na arquitetura europeia de então.

Do lado leste da praça, sobre a muralha dos arrecifes, o arquiteto Reginaldo Esteves projetou um parque de esculturas, entregando sua realização ao artista pernambucano Francisco Brennand, que o concluiu no ano de 2001.

No extremo sul da praça, ergue-se a estátua pedestre do barão do Rio Branco, inaugurada em 19 de agosto de 1917. A peça em bronze, confeccionada em Paris com 280 cm de altura, é obra do escultor francês Félix Charpentier, tendo sido, na época, colocada sob um pedestal, com 420 cm de altura, esculpida em pedra por Corbiniano Vilaça.

O conjunto de construções do Bairro do Recife vem a ter sua importância reconhecida em 1998. Nesse ano, por decisão unânime do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em reunião realizada em 14 de março, no Rio de Janeiro, que teve como relator o professor Joaquim de Arruda Falcão, o Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Antigo Bairro do Recife veio a ser considerado Monumento Nacional, nos termos do Decreto-lei n.º 256, de 30 de novembro de 1937. Em 28 de julho do mesmo ano, a decisão daquele colegiado foi homologada pela Portaria n.º 263, assinada pelo ministro da Cultura, Francisco Weffort.

O velho bairro, porém, tem outros encantos, que o olhar do cidadão comum por vezes não registra, havendo até quem o veja como uma República, uma espécie de Vaticano dentro da cidade do Recife. Com esse espírito o vislumbrou Gustavo Krause, que antes de ser prefeito, governador e ministro, é também boêmio e poeta do Recife e assim, legislando em causa própria, escreveu a Constituição da República Independente do Bairro do Recife.

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¹ DARWIN, Charles. “A muralha de Pedra”. In: O Recife: quatro séculos de sua paisagem. Leonardo Dantas SILVA e Mário SOUTO-MAIOR. (Organizadores). Recife: Editora Massangana, 1992. p. 166.

² ROCHA, Tadeu. Roteiros do Recife (Olinda e Guararapes). 4. ed. Recife: ed. do autor, 1972. Ilustrações de Hélio Feijó.

³ CASTRO, Josué. Fatores de localização da cidade do Recife. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. p. 65-66.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 26 de abril de 2018

Ó LINDA, O TEU NOME BEM DIZ
 

 

Aos olhos de quem a contempla pela primeira vez, Olinda se apresenta povoada de sonhos e tomada pela claridade a ofuscar as retinas de quem chega:

De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte. (Carlos Pena Filho)

Aquele conjunto de colinas, que pouco interessou aos indígenas habitantes de suas redondezas antes da chegada do colonizador, fascinou o português que nele viu o local ideal para a construção de uma vila.

Segundo a tradição recolhida pelo frei Vicente do Salvador, registrada na sua História do Brasil (1627), a denominação Olinda vem de um galego criado de Duarte Coelho, porque, andando com outros por entre o mato, buscando um sítio em que se edificasse (a vila), e achando este, que em um monte bem alto, disse com exclamação e alegria: O’ linda!.

A versão já fora antes relatada pelo cristão-novo Ambrósio Fernandes Brandão, autor dos Diálogos das grandezas do Brasil (1618), que residiu em Olinda na segunda metade do século XVI, sendo repetida pelo franciscano frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779) e pelo beneditino dom Domingos do Loreto Couto (c.1696-c.1762), chegando o historiador inglês Robert Southey (1810) a atribuir a exclamação ao próprio Duarte Coelho: Oh! linda situação para se fundar uma vila!.

Com a versão de frei Vicente do Salvador, que também residiu no convento franciscano de Olinda e começou a recolher anotações para sua História em 1587, não concorda o historiador Adolpho de Varnhagen que, meticuloso em suas conclusões, lembra que a denominação teria origem em Portugal:

Nada mais natural que aquele nome fosse de alguma quinta, ou casa, ou burgo, por qualquer título caro ao donatário na sua pátria, e que ele no Brasil quisesse perpetuar (…) Sabe-se também que Olinda era o nome de uma das belas damas na novela do “Amadis de Gaula”, cuja leitura estava então muito em voga, não faltando leitores que lhe davam fé, como em nossos dias se dá à história.

Alfredo de Carvalho, em Frases e palavras (1906), ao concordar com Varnhagen, chama a atenção para a existência, nas cercanias de Lisboa, das freguesias de Linda-a-Pastora e Linda-a-Velha.

A versão do frei Vicente do Salvador, corroborada por Ambrósio Fernandes Brandão, é a mais aceita para explicar o nascimento da primitiva capital de Pernambuco, cujo núcleo urbano parece delineado na carta de doação, assinada por Duarte Coelho, de 12 de março de 1537.

 

Naquele documento, impropriamente chamado de Foral de Olinda, a nascente vila recebe do primeiro donatário as terras de serventia, para uso comum dos seus habitantes. Nele se faz menção à existência da Câmara, da Rua Nova (Bispo Azeredo Coutinho), das fontes de água potável, do Varadouro Galeota (onde aquela embarcação sofreu reparos) e do Arrecife dos Navios, porto da vila que veio a dar origem à cidade do Recife.

Nome poético, surgido de uma leitura de novela; ou denominação saudosista, a relembrar um sítio perdido na toponímia portuguesa; ou ainda, exclamação de um criado de Duarte Coelho, oriundo da Galícia, perdido entre as matas de cajueiros que se espalhavam na planície arenosa, hoje ocupada pelos bairros do Rio Doce e Rio Tapado, tudo serve para explicar o que há no nome: Olinda.

Os olindenses, porém, a exemplo dos seus avós, têm uma explicação própria para todo esse feitiço que toma conta de quem a conhece:

Quem não viu Olinda, não amou ainda!

Os cronistas que descrevem a Vila de Olinda no final da segunda metade do século XVI e nos anos que antecederam ao incêndio provocado pelos holandeses, na noite de 25 de novembro de 1631, são unânimes em proclamar as suas belezas naturais e a imponência do seu casario, dominados por ricos conventos, belas igrejas, a grandiosidade do seu colégio e o ambiente acolhedor de suas residências.

Em sua narrativa, assinala o capelão holandês Johannes Baers, além das construções religiosas e do Colégio dos Jesuítas, alguns aspectos importantes da casa urbana olindense:

As casas não são baldas, mas, cômodas e bem feitas, arejadas por grandes janelas, que estão ao nível do sótão ou celeiro, mas sem vidros, com belas e cômodas subidas todas com largas escadarias de pedra, porque as pessoas de qualidade moram todas no alto. Os umbrais de todas as portas e janelas são de pedra dura e pesada.

Na visão romântica do oficial inglês Cuthbert Pudsey, que esteve a serviço da Companhia das Índias Ocidentais de 1629 a 1640, era Olinda uma cidade formosa, situada numa curiosa situação, de prazerosa perspectiva, com edifícios suntuosos, acompanhados por raros jardins com frutos e prazeres, fontes de uma água pura e maravilhosa.

Uma visão de Olinda, no início do século XVII, nos é dada por Ambrósio Fernandes Brandão, em Diálogos das grandezas do Brasil (1618):

Dentro na Vila de Olinda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda a sorte em tanta quantidade que semelha uma Lisboa pequena. A barra do seu porto é excelentíssima, guardada de duas fortalezas bem providas de artilharia e soldados, que as defendem; os navios estão surtos da banda de dentro, seguríssimos de qualquer tempo que se levante, posto que muito furioso, porque têm para sua defensão grandíssimos arrecifes, a onde o mar quebra. Sempre se acham nele ancorados, em qualquer tempo do ano, mais de trinta navios, porque lança de si, em cada um ano, passante de 120 carregados de açúcares, pau-brasil e algodão. A vila é assaz grande, povoada de muitos e bons edifícios e famosos templos, porque nela há o dos Padres da Companhia de Jesus [1551], o dos Padres de São Francisco da Ordem Capucha de Santo Antônio [1585], o Mosteiro dos Carmelitas [1588], e o Mosteiro de São Bento [1592], com religiosos da mesma ordem.

Na primeira metade do século XVII, a riqueza da capitania de Pernambuco, bem conhecida em todos os portos da Europa, veio a despertar a cobiça dos Países Baixos. A produção de 121 engenhos de açúcar, correntes e moentes, no dizer de van der Dussen, viria a despertar a sede de riqueza dos diretores da Companhia, que armou uma formidável esquadra sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck. Uma grande armada, com 65 embarcações e 7.280 homens, apresentou-se nas costas de Pernambuco em 14 de fevereiro de 1630, iniciando assim a história do Brasil Holandês.

Senhores da terra, os holandeses escolheram o Recife como sede dos seus domínios no Brasil, por ter nesta praça a segurança que não dispunham em Olinda.

Na noite de 25 de novembro de 1631, resolveram os chefes holandeses pôr fogo na sede da capitania de Pernambuco, a infeliz vila de Olinda tão afamada por suas riquezas e nobres edifícios, arderam seus templos tão famosos, e casas que custaram tantos mil cruzados em se fazerem.

Em Olinda, a paisagem e os costumes foram assim descritos pelo Frei Manuel Calado, tudo eram delícias e não parecia esta terra senão um retrato do terreal paraíso.

Com a sua paisagem, porém, tecida de sonho e claridade, impregnada pelas diversas tonalidades de verde, nas águas do seu mar, e de azul e outras cores no crepúsculo do seu céu, Olinda vem com o passar dos anos fascinando a todos que a conhecem.

A sua vista litorânea, povoada de jangadas e outros tipos de embarcações, foi uma sedução para esses viajantes ao longo dos séculos sendo hoje fonte de deleite e de paz para o visitante e mesmo para os próprios olindenses.

Em passeio por Olinda e seus arredores, como cicerone do escritor português Ramalho Ortigão, em l887, Joaquim Nabuco assim descreve a paisagem, em artigo publicado no jornal O Paiz (Rio), quando vista do terraço da Sé de Olinda:

(…) não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão abaixo aos pés do espectador, que perde o movimento e a vida, parecendo uma tela diáfana estendida sobre o fundo vazio do ar, vistas em profundidade, que dão vertigem e nas quais a perspectiva é tão longínqua como se víssemos por um óculo virado. A vista de Olinda é outra; é uma vista em comprimento, em que os planos sucedem-se uns aos outros como o desenvolvimento da mesma sensação visual, em que desde Olinda até ao Recife, e mais longe até o Cabo de Santo Agostinho.

Possuído do orgulho de ser pernambucano, enfatiza Joaquim Nabuco, com o seu poder de observador perspicaz:

Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do contemplador e a do lugar, cheguem a entender-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam! Não é a todos que a natureza conta os seus segredos e inspira o seu amor, mas mesmo com os poucos de quem ela tem prazer em fazer pulsar o coração é preciso que eles se aproximem dela sem pressa de a deixar, com tempo para ouvi-la. Os viajantes nunca estão nessa disposição de espírito em que é possível estabelecer-se o magnetismo da paisagem sobre os sentidos, de fato sobre o coração. Felizmente Ramalho Ortigão é uma máquina fotográfica instantânea, que apanha num segundo o seu objetivo todo, e acontece que hoje as boas máquinas percebem e notam sombras na pele, que não se veem a olho nu, e que servem para conhecer a enfermidade latente. Ele não terá sentido os eflúvios desta nossa terra, os quais talvez seja preciso ser pernambucano para sentir e que podem não ter realidade e magia senão para nós mesmos, mas a impressão que lhe causou a nossa Veneza há-de render-nos uma pintura que durará como as gravuras holandesas do Século XVII.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 18 de abril de 2018

BATALHA DOS GUARARAPES

 

 Primeira Batalha dos Guararapes. Pintado em Portugal por artista anônimo (1758)
Acervo Museu Histórico Nacional

Na primeira Batalha dos Montes Guararapes, em 19 de abril de 1648, o exércitos luso-brasileiro era formado por 2.200 homens, divididos em quatro terços, comandados pelos mestres de campo João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, o governador dos Índios, capitão-mor Filipe Camarão, e o governador dos pretos, Henrique Dias, não dispondo de qualquer peça de artilharia.

A técnica portuguesa de combate, posta em prova quando das guerras contra Espanha, no Alentejo, seguia o figurino das guerras de Flandres. Eram os exércitos formados por Terços de Infantaria, constituídos de 2.000 homens, subdivididos em companhias de 200 homens cada uma, formadas por igual número de piqueiros e arcabuzeiros. Os piqueiros eram armados com um longo pique (lanças com 18 pés de comprimento), espada, peitoral e celada; os arcabuzeiros, sem armadura defensiva, dispunham apenas do arcabuz ou espingarda de mecha com sua forquilha e uma adaga.

Nas guerras europeias, marchavam em formação de grandes quadrados de 50 piqueiros em cada face, rodeados e flanqueados nos vértices por outros quadrados de arcabuzeiros, alternando assim as descargas de armas de fogo com as cargas de armas brancas.

Nas Guerras Brasílicas, porém, tais conhecimentos cediam lugar à malícia e ao elemento surpresa, desenvolvido pelos índios, e pela improvisação, obedecendo a topografia e a vegetação do terreno; tudo aliado ao denodo dos combatentes e sua inigualável técnica em manobrar com a espada.

Documento holandês datado de 9 de julho de 1648, dirigido pelo Conselho do Recife aos Estados Gerais, diz bem dessas técnicas estranhas aos comandantes seguidores dos estrategistas europeus:

Todos os dias a experiência nos mostra que se habituaram a esta guerra de tal modo que podem medir-se com os mais exercitados soldados, como se tem visto nas refregas que com eles temos tido e como ainda se vê diariamente nos encontros que temos com eles a cada momento. Resistem muito bem agora de pé firme e logo que descarregam suas espingardas atiram-se sobre os nossos, para se baterem corpo a corpo. Sabem também armar emboscadas em lugares e passos apropriados e vantajosos, fazer sortidas dentro do mato e, em geral, produzir muito mal aos nossos. Quanto às armas estão bem munidos, sabem muito bem se servir delas, e no tocante às suas qualidades corporais excedem muito aos nossos soldados mais exercitados, quando à agilidade e disposição. Além disso, sabem melhor que os nossos se submeter às provações, tais como a falta de víveres, enquanto os nossos soldados têm de carregar sempre alforges ou então transportar os víveres logo atrás deles.

Em 17 de abril de 1648, governador das Armas Holandesas, general Sigmund von Schkoppe, temível pela crueldade com que tratava os seus adversários e pelo espírito de disciplina para com seus subordinados, sai do Recife à frente de um formidável exército de 4.500 homens, divididos em sete regimentos, acrescidos de cerca de 1.000 índios tapuias e negros carregadores.

 

No dizer de Diogo Lopes Santiago depois da meia-noite da sexta para o sábado, marchando em direção aos Afogados

Com grande estrondo de armas, tocando caixas, clarins e trombetas, por imaginar, como de feito segurou sua gente, que logo os nossos vendo seus bem ordenados e formados esquadrões que constavam de 7.400 soldados (afora setecentos gastadores e negros, que eram os que carregavam a bagagem) com seis [cinco, nos relatórios holandeses] peças de artilharia, e suas luzentes e brilhantes armas e 71 bandeiras tremulando.

Os regimentos holandeses eram comandados pelos coronéis Johan van den Brincken, Guilherme de Hauthyn, Adolph van Els, Hendrick van Haus e Cornelis van der Brande.

Nas reformas implantadas por Maurício de Nassau, os batalhões dos exércitos holandeses no Brasil eram formados por 500 homens, divididos por fileiras de 300 piqueiros e 200 mosqueteiros, que se alternavam por ocasião do desenvolvimento da batalhas.

Cruzando o rio Tejipió, nos Afogados, as tropas holandesas seguiram em direção à Barreta, onde existia uma pequena estância defendida por 86 homens sob o comando do capitão Bartolomeu Soares Canha. Travou-se então o combate da guarnição com os tapuias que acompanhavam as tropas holandesas e que lutavam à maneira dos luso-brasileiros. O seu comandante, junto com alguns, conseguiu escapar restando 47 soldados, que foram imediatamente degolados, e mais sete prisioneiros logo enforcados por ordem de Von Schkoppe.

Neste local os holandeses fizeram uma parada, pernoitando na leitaria de Antônio Cavalcanti [na altura da atual igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem], enquanto aguardavam a chegada de cinco peças de artilharia que haviam feito conduzir pelo rio Tejipió.

O comandante português, general Francisco Barreto de Menezes, que se encontrava no Arraial Novo do Bom Jesus [Torrões], resolveu reunir seu conselho de oficiais que, por sua vez, decidiu ir ao encontro das tropas invasoras nos Montes Guararapes.

Reunindo 2.200 homens, marcharam por três léguas em busca das três colinas que se erguiam na margem do caminho onde as tropas holandesas teriam de passar em busca da Muribeca, ou de Nazaré do Cabo, deixando 300 homens na guarnição do Arraial Novo.

As tropas luso-brasileiras chegaram a Guararapes:

No sábado, à tarde, e pelas 10 horas da noite se acabaram de situar em troços, em uma baixa e planície que está ao pé do último monte, que vulgarmente chamam Outeiro”, distante três léguas do Arraial Novo e uma légua da Muribeca. Restava ao inimigo uma passagem de pouco mais de cem passos de largo, cerca de cem metros, entre o monte e um terreno alagadiço que o contornava. Estacionavam assim os luso-brasileiros, escondidos entre a vegetação e o manguezal, em sítio acomodado, não só para reprimir o ímpeto do inimigo, mas ainda para destruí-lo.

No domingo, 19 de abril, saiu Von Schkoppe no comando de suas tropas da Barreta em direção à povoação da Muribeca, sendo molestado por escaramuças após uma hora de marcha, o que o obrigou a galgar os montes Guararapes deixando os nossos em desvantagem. No testemunho presencial de Diogo Lopes Santiago:

Ocupavam os holandeses o alto do monte, a campina e a planície bem junto do boqueirão, e por outra parte os tapuias e os índios fazendo ostentação de seus bem compostos e ordenados esquadrões e de suas luzentes e brilhantes armas tocando muitos clarins, trombetas e caixas, arvorando 61 bandeiras de cores diversas, principalmente azul e cor laranjada, trazendo o estandarte dos Estados, ao qual todas as bandeiras faziam salva; este era de tafetá carmesim azul, no qual vinham esculpidas e bordadas as armas de Holanda e dos da Companhia das Índias Ocidentais postas no mesmo carmesim com muita curiosidade e perfeição, e no campo um leão rompante coroado, estendendo as garras […] Constava a vanguarda do inimigo de dois esquadrões, um de oitocentos e outros de novecentos soldados, com a flor de toda a sua gente, e traziam os soldados velhos das fortalezas, deixando-as guarnecidas com os que de novo haviam vindo na armada de Holanda, por não serem ainda práticos nem experimentados na terra; e muita parte da gente que vinha no exército eram franceses, alemães, polacos, húngaros, ingleses e de outras nações das partes do norte, e o resto holandeses, todos versados e experimentados nas guerras de Flandres, Alemanha e outras províncias.

No seu relatório, Francisco Barreto de Menezes, citado pelo major Antônio de Souza Júnior¹ , diz:

Tanto que o inimigo se descobriu pelo alto dos Montes Guararapes, mandei tocar a investir, tendo posto na vanguarda os mestre de campo Fernandes Vieira e para dar nos lados do inimigo o capitão-mor Camarão, de uma parte e da outra o governador Henrique Dias. Dada a primeira carga, em ambas as partes, investimos à espada, rompendo ao inimigo todos os seus batalhões.

Os Terços de Fernandes Vieira e de Filipe Camarão atacaram na baixada os regimentos de von Schkoppe, Adolph van Els e Servaes Carpentier, que, falecendo em combate vem a ser substituído por Keerweer, que constituíam uma brigada, enquanto o Terço de Henrique Dias investira contra os regimentos de Brinck e Hauthyn postados no alto do monte.

Dada a primeira descarga, os soldados comandados por Henrique Dias passaram a usar de suas rapieiras [espadas] em combate corpo a corpo, conseguindo romper as fileiras do inimigo. Recuando para o outro lado do monte, deixaram para trás as peças de artilharias, munições e caixas do dinheiro, que seria usado no pagamento das tropas. Vislumbrando a vitória, com a fuga do inimigo imediato, entregaram-se, então, ao saque descuidando-se do combate.

No êxtase de que estavam tomados, não se aperceberam do contra-ataque holandês partido de um regimento de reserva, sob o comando do coronel Hendrick van Haus, que, por pouco, não viria a decidir a sorte da batalha. Nessa refrega, o coronel Haus é ferido mortalmente, o que obrigou o deslocamento das tropas de Cornelis van der Brande, que, retomando a artilharia anteriormente conquistada, viria a causar muito estrago entre as nossas forças se não fosse a imediata intervenção de Barreto de Menezes que enviou, em socorro aos homens de Henrique Dias, parte do terço comandada por André Vidal de Negreiros.

Na interpretação dos fatos, comenta o major Antônio de Souza Júnior:

Verdadeiramente apavorados diante do ímpeto ofensivo dos patriotas, que se serviam de preferência, de arma branca e buscavam o combate corpo a corpo, os holandeses foram lançados sobre os terrenos alagadiços no sopé dos montes e aí postos fora da luta, na maioria atolados no brejo ou derrubados por certeiros golpes de espada.

Interpretação bem de acordo com o relatório de von Schkoppe que, ferido no artelho, foi uma simples testemunha dos fatos desenrolados em Guararapes:

Os nossos quiseram passar o alagado, pensando que havia solo firme, mas foram obrigados a retroceder; o inimigo vendo que os nossos com grande desordem se retiravam em direção à direita, sem mosquete, lança, espada ou algo para enfrentá-lo caiu sobre os nossos por detrás com grande fúria e encerrou os que estavam no alagado e não puderam resistir e daí resultou terem ficado tantos oficiais e soldados. Dominada a desordem, coloquei a tropa novamente no alto do monte e verifiquei que o total de nossa força tinha sofrido baixa de mais de 1500 homens, dos quais alguns tinham fugido para a Barreta e outros tinham conduzido uma boa parte dos oficiais para a Barreta. Eu tinha sido, muito tempo antes deste encontro, ferido e como estava muito enfraquecido com grande perda de sangue do meu ferimento, dei ordem ao major Claesz (Tonis) para avisar ao coronel (Cornelis) van der Brande que se mantivesse nos montes que ocupávamos e se retirasse com a noite, em boa ordem, para a leitaria (de Antônio Cavalcanti).

No seu relatório, o coronel Cornelis van der Brande confirma a versão do general Sigmund von Schkoppe:

Depois de termos lutado desde antes do meio-dia de 19 de abril, durante cerca de três horas e depois da luta ficarem os dois exércitos um em frente ao outro, observando-se, partimos à noite com boa ordem e chegamos ao destino já tarde, com um forte aguaceiro.

Por sua vez, Francisco Barreto de Menezes conclui:

Amanhecendo segunda-feira, o dia de Nossa Senhora dos Prazeres, mandei descobrir o campo, achando, nas demonstrações dele, ter-se retirado o inimigo com grande pressa e destroço, pois deixou na campanha 900 homens mortos e entre eles alguns feridos, uma peça de artilharia de bronze, muitas munições e armas e as 30 bandeiras que tenho referido…

No amanhecer do dia 20 de abril, foram encontradas no campo da batalha, 33 bandeiras e estandartes, duas peças de artilharia em bronze, armas das mais diversas, muita pólvora, cunhetes de balas, alfaias, animais domésticos, algemas e grilhões diversos, uma grande quantidade de moedas em ouro, mantimentos e até uma sortida farmácia.

Nas baixas do exército holandês, segundo minucioso relatório incluído pelo major Antônio de Souza Júnior em Do Recôncavo aos Guararapes (1949), figuravam 523 feridos e 515 outros, entre mortos e prisioneiros, dos quais 46 oficiais. No confronto perderam a vida os coronéis Hendrick van Haus, Cornelis van Elst e Servaes Carpentier, ficando feridos o general van Schkoppe e o coronel Guilherme Houthain. O coronel Pedro Keerweer que sucedera o coronel Carpentier, fora dado por desaparecido nos relatórios holandeses, mas, na verdade, se encontrava como prisioneiro de João Fernandes Vieira.

Do lado dos luso-brasileiros foram computados 84 mortos, incluindo-se os que perderam a vida no combate da estância da Barreta, e mais de 400 feridos.

Em seus comentários, o major Antônio de Souza Júnior diz que a primeira Batalha dos Guararapes, estudada no quadro de sua época e guardadas as proporções, é um grande acontecimento militar, digno de figurar com realce entre os que deram renome de grandes capitães a Gustavo Adolpho, Turenne e outros chefes militares do século XVII.

E, mais adiante, enfatiza:

Destarte, sem nenhum exagero patriótico, mas, ao contrário, à luz da palavra oficial dos que tiveram a responsabilidade de dirigir a batalha que se travou nos Guararapes, aos 19 dias do mês de abril do ano de 1648, podemos asseverar que tanto o comando como as tropas luso-brasileiras demonstraram nítida superioridade moral e profissional em relação ao comando e às tropas holandesas.

A vitória dos Guararapes nesse dia não foi, portanto, obra fortuita dos acontecimentos, mas o resultado da ação vigilante e decidida dos chefes, da bravura e espírito combativo dos soldados que constituíam aquele indomável exército de patriotas.

* * *

(¹) SOUZA-JÚNIOR, Antônio de. Do Recôncavo aos Guararapes. Rio de Janeiro, 1949 p. 152.

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 12 de abril de 2018

OLINDA, DE ONDE SE VÊ

Com a sua paisagem tecida de sonho e claridade, impregnando pelas diversas tonalidades de verde, nas águas do seu mar, e de azul e outras cores no crepúsculo do seu céu, Olinda vem fascinando a todos que a conhecem desde os primórdios de sua colonização.

A sua paisagem litorânea, povoada de jangadas e outros tipos de embarcações, foi uma sedução para esses viajantes ao longo dos séculos sendo hoje fonte de deleite e de paz para o visitante e mesmo os próprios olindenses.

Para Joaquim Nabuco, esta paisagem tem seus fascínios quando vista do alto, de onde “o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humanas!”

Em passeio por Olinda e seus arredores, como cicerone do escritor português Ramalho Ortigão, em l887, Joaquim Nabuco assim descreve a paisagem, quando vista do terraço da Sé de Olinda:

O que faz a grande beleza deste nosso torrão pernambucano é em primeiro lugar o seu céu, que muda a cada instante, leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas, e que não é o mesmo em um minuto; é depois o nosso mar, verde, vibrátil e luminoso, as nossas areias tépidas e cobertas de relva, os nossos coqueiros, que vergam desde o soco até ao espanador de um brilho metálico e dourado, com que parecem ao longe sacudir as nuvens brancas, as jaqueiras e mangueiras cuja sombra rendada é um oásis de frescura e abundância…

Em sua descrição, publicada no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), em sua edição de 30 de novembro de 1887, Joaquim Nabuco, pinta, com a mão de um mestre, as belezas do seu torrão natal, utilizando-se das mais contagiantes cores de sua palheta.

… não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão abaixo aos pés do espectador, que perde o movimento e a vida, parecendo uma tela diáfana estendida sobre o fundo vazio do ar, vistas em profundidade, que dão vertigem e nas quais a perspectiva é tão longínqua como se víssemos por um óculo virado. A vista de Olinda é outra; é uma vista em comprimento, em que os planos sucedem-se uns aos outros como o desenvolvimento da mesma sensação visual, em que desde Olinda até ao Recife, e mais longe até o Cabo de Santo Agostinho, o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humanas!

O que mais impressionava o visitante e seu cicerone era a limpeza da cidade: “O que primeiro fere a vista (…) é a limpeza da cidade, a brancura de toda ela. Vê-se bem a cidade de um povo de rio, que vive n’água, como o pernambucano. É um reflexo da Holanda, que brilha aqui!”.

Possuído do orgulho de ser pernambucano, enfatiza Joaquim Nabuco, com o seu poder de observador:

Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do contemplador e a do lugar, cheguem a entender-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam! Não é a todos que a natureza conta os seus segredos e inspira o seu amor, mas mesmo com os poucos de quem ela tem prazer em fazer pulsar o coração é preciso que eles se aproximem dela sem pressa de a deixar, com tempo para ouvi-la. Os viajantes nunca estão nessa disposição de espírito em que é possível estabelecer-se o magnetismo da paisagem sobre os sentidos, de fato sobre o coração. Felizmente Ramalho Ortigão é uma máquina fotográfica instantânea, que apanha num segundo o seu objetivo todo, e acontece que hoje as boas máquinas percebem e notam sombras na pele, que não se veem a olho nu, e que servem para conhecer a enfermidade latente. Ele não terá sentido os eflúvios desta nossa terra, os quais talvez seja preciso ser pernambucano para sentir e que podem não ter realidade e magia senão para nós mesmos, mas a impressão que lhe causou a nossa Veneza há-de render-nos uma pintura que durará como as gravuras holandesas do Século XVII.


Leonardo Dantas - Esquina sexta, 30 de março de 2018

CARNAVAL NA SEMANA SANTA

Quem quer que venha a ler as narrativas dos jornais e cronistas da segunda metade do século XIX, retratando cenas do carnaval do Recife, por um momento terá em mente os versos de Gregório de Matos e Guerra (Salvador, 1623 – Recife, 1696), ao descrever a Procissão de Cinza que a Ordem Terceira de São Francisco de Olinda realizava após os três dias do entrudo: 

Um negro magro em sofilié justo, 
De jóias azorragues dois pendentes; 
Bárbaro Peres e outros penitentes; 
De vermelho um mulato mais robusto. […] 
Atrás um negro, um cego, um mameluco; 
Um lote de rapazes gritadores
Eis a procissão de cinza em Pernambuco.

As procissões quaresmais, como as de Cinza e Fogaréus, no passado, e do Senhor Bom Jesus dos Passos, que chegou aos nossos dias, vieram inspirar a formação dos préstitos carnavalescos dos nossos clubes pedestres. Além do Dezoito de Março, Caiadores de 80 anos, Caninha Verde, Carvoeiros, Vassourinhas, das Pás, Lenhadores havia outras agremiações carnavalesca que se faziam presentes em nossas ruas. O Jornal Pequeno, em sua edição de 7 de fevereiro de 1907, anuncia ainda a saídas dos clubes carnavalescos Vasculhadores, Espanadores, Sacadores, Parteiras de São José, Ferreiros, Viúvas Destroçadas, Costureiras de Saco, Carroceiros, Pescadores do Pontal, Empalhadores do Feitosa,  dentre outros que solicitaram licença à autoridade policial para desfilar naquele carnaval, todos eles com a mesma característica de formação das procissões quaresmais recifenses: Porta-estandartes, fazendo a vez dos pendões das irmandades, balizas, cordões, fantasias de destaque, carros alegóricos e banda musical, foram, dentre outros, elementos dos cortejos religiosos que se transmigraram para os préstitos carnavalescos.
 
No carnaval de 1913, segundo noticia o jornal A Província, em sua edição de 2 de fevereiro, Os Fantoches, assim anuncia o seu “bonito cortejo de onze carros”:

E no seu cortejo esplêndido, 
Momo vadio aparece,
Tudo brinca, o prazer cresce,
Há cousas descomunais…
Sim, senhor! Vai ser magnífico,
Vai ser estupendo e raro,
Nossa Senhora do Amparo
Valei aos pobres mortais.
…………………………………………..
Mas pela força da lógica,
Num tom alegre e garrido, 
Voltemos para o ruído,
Oh! Pisada!… Oh! Arrastão!
A vida é um grande espetáculo, 
Morra já quem deu cacho,
E é só por cima e por baixo…
Avança, Zé folião…

Mas havia outras figuras, também oriundas das procissões do passado, que fizeram época no carnaval do Recife. Dentre elas estão os morcegos que, às dezenas, abriam passagem na multidão compacta, ao mesmo tempo em que protegiam o porta-estandarte com as suas evoluções.

O morcego bateu asas 
Mas não pôde avoá.
Quem não tem prazer na vida
Não diverte o Carnavá…

É de Mário Sette o depoimento, in Anquinhas e Bernardas (1940)(¹ ) , sobre a importância desse tipo popular das ruas do Recife:

Os morcegos tiveram, sobretudo, muito relevo no carnaval de outrora. Requintavam-se no luxo e no brilho dos trajes característicos. Ao abrir as asas, ao rodopiarem, ao dançarem tinham de valorizar o gesto, o volteio, a elegância. Muitos deles ficaram famosos. Os grupos caíram em decadência, desapareceram mesmo de todo. Porém ainda há homens, na idade provecta que se orgulham de haver tomado parte naqueles alegres e vistosos bandos de meio século atrás. Outro dia, um deles, a mandado de um amigo, procurou o cronista. E foi logo lhe dizendo assim, a guisa de cartão de visita: — Eu sou o Morcego. Ele não era Francisco, João ou Tomaz, como toda gente. Era apenas um antigo Morcego.

Eustórgio Wanderley, em Tipos populares do Recife antigo (1954)(²)  , descreve esses tipos mascarados que tomavam conta das ruas do Recife durante o carnaval:

Naqueimitar o pelo do bicho, trazia nas mãos um pau ou um cabo de vassoura. Fazia-se acompanhar pelo domador, tipo de cigano, com grandes bigodes e chapelão de abas largas segurando, em uma das mãos, a extremidade da corrente que amarrava o urso pela cintura, e tocando um pandeiro. Além desses mascarados vinha às ruas a figura tétrica da morte com aterradora máscara de caveira, envolta em lençóis e trazendo nas mãos uma grande foice e uma sineta badalando sempre. Era o pavor das crianças que lhe fugiam gritando com medo. Aparecia também, ao lado desses tipos de fantasia, o príncipe ou o princês… Usava calções pelos joelhos, meias finas, sapatos de entrada baixa (scarpins) muitos laçarotes no gibão, capa de veludo ou de seda, gorro enfeitado de plumas e de arminho, assim como cabeleira loura ou castanha de cachos encaracolados, caindo-lhe sobre os ombros. Eram-lhe indispensáveis as luvas, o leque e o espadim. É preciso também não esquecer o diabinho, figura, por assim dizer, clássica, do carnaval de antanho. Todo de vermelho, geralmente em tecido de malha ou de meia, colado ao corpo, quando não era feita a fantasia de cetineta e até de cetim vermelho. Indispensável se lhe tornava uma longa cauda com que, às vezes, batia nos garotos que o seguiam. Empunhava um tridente e ostentava na fronte os dois característicos chavelhos de Satanás. Realmente endiabrado, pulava e gritava pelas ruas.le tempo grupos de massacrados, com as mais diversas fantasias, saiam cantando, acompanhados por violões, harmônicas [sanfona] e triângulos, quase todos estalando castanholas e enfeitadas as fantasias com inúmeros guizos. Salientavam-se, entre eles, os morcegos que vinham sempre à frente do grupo, abrindo as grandes asas de veludo negro, lantejoulas, fazendo piruetas como se pretendessem voar… Seguiam-se os dominós, alguns também de veludo ou seda, com fitas multicores na ponta do  capuz,  trazendo as mãos calçadas de luvas para não serem reconhecidos pelos dedos. Com os dominós vinham os papangus tendo como fantasia… duas saias e uma fronha. As saias brancas ou anáguas, como se usavam outrora muito rodadas e rendadas, eram amarradas uma na cintura e outra na volta do pescoço; enfiavam a cabeça numa fronha de tampo rendado, a guisa de máscara, e se divertiam assim. O doutor usava, invariavelmente, máscaras representando a cabeça de um burro, trazendo nas mãos vários livros e uma grande palmatória. Sua indumentária era um fraque de abas longas, ou casaca, algumas vezes feitas de estopa e aniagem. O urso com a máscara desse animal, usando roupa ou macacão marrom de estopa desfiada para

Diante de um panorama desses, para a Procissão de Cinza do século XVII, pouca diferença faltava… 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 22 de março de 2018

COM AS CORES DA BANDEIRA NA CABEÇA

Nesse carnaval, quem esteve nas ruas, ou mesmo nos clubes e outros recintos fechados, deve ter notado a forte presença da bandeira de Pernambuco, nas suas cores azul e branco e nos seus símbolos, como o arco-íris, a cruz e o sol dourado, nos chapéus, camisas, blusas, bermudas e até mesmo em estandartes de agremiações carnavalescas e nas golas dos caboclos-de-lança.

Não sabem esses alegres foliões, portadores das cores de nossa bandeira, que dão um brilho todo especial ao colorido de nosso carnaval e até mesmo nos outros dias do ano, que homenageando os nossos símbolos estamos a cultuar as figuras dos mártires que foram imolados por conta deste pavilhão da República de Pernambuco, proclamada a seis março de 1817.

O projeto daquela bandeira, segundo Alfredo de Carvalho, se deve ao padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, hábil professor de desenho do Seminário de Olinda, um dos que morreram pela causa da República de Pernambuco de 1817. A ele coube a criação daquele símbolo, cortado por faixas azul e branco, tendo na parte superior o arco-íris nas cores verde, azul e vermelho (simbolizando a união de povos), o sol em ouro, lembrando que todos os pernambucanos são filhos do sol e vivem sob ele, e a estrela, representando a fidelidade província de Pernambuco aos ideais propagados pela República de 1817, ficando na parte inferior de fundo branco a cruz em vermelho a lembrar a primeira denominação do Brasil (Terra de Santa Cruz).

A arte final, porém, ficou a cargo do pintor Antônio Álvares, pardo fluminense residindo então no Recife, que realizou o desenho e depois o remeteu ao alfaiate José do Ó Barbosa, capitão de milícias do Regimento dos Homens Pardos, para executar os estandartes da nova república. Para isso contou com a ajuda de sua mulher e suas filhas, além de seu irmão Francisco Dornelas Pessoa, capitão do mesmo Corpo, “trabalho este que fizeram gratuita e desveladamente”.

Foi o pintor condenado a ser surrado nas grades da cadeia, pelo almirante Rodrigo José Ferreira Lobo, mas livrou-se da pena apadrinhando-se com um retrato de Dom João VI, “que possuía, e com o qual abraçou quando foi preso”, sendo, porém recolhido à cadeia onde ficou até a vinda do general Luís do Rego Barreto que, conhecendo o pintor do Rio de Janeiro, mandou-o soltar. É de autoria do mesmo artista, denominado por Teixeira Melo de habilíssimo pintor, as estampas coloridas da Flora Fluminense, escrita pelo frade Francisco José Mariano da Conceição Veloso e concluída em 1790. Nasceu o artista no Rio de janeiro, na segunda metade do Século XVIII e fez seus estudos na Europa, pouco se sabe com respeito a sua vida após 1817.

Os irmãos Francisco Dornelas Pessoa e José do Ó Barbosa, homens pardos, alfaiates, capitães de corpos milicianos de gente de sua cor, por patente régia, foram também arrastados às enxovais da cadeia onde permaneceram por um ano. Só não foram açoitados, conforme havia determinado Rodrigo Lobo, pelo fato “de velar, e de dormir sempre em uniforme de capitão, feito pelo rei”.

Na Quinta-Feira Santa, 3 de abril de 1817, foi armado um altar no Campo da Honra, hoje Praça da República, de frente para o Leste tendo sido ali realizada a cerimônia da bênção das bandeiras às 8h presidida pelo Deão de Olinda, Dr. Bernardo Luís Ferreira Portugal, com três regimentos formados.

Debelada a revolução republicana e deixando o governo provisório o Recife, em 19 de maio de 1817, logo no dia seguinte os portugueses saíram às ruas com as bandeiras do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve alçadas, dando vivas a El-Rei e morras aos patriotas pernambucanos, ao mesmo tempo em que despedaçavam as bandeiras republicanas. Os heróis de então foram enforcados  e arcabuzados, com seus corpos mutilados depois de mortos, enquanto pais de famílias eram seviciados nos interiores das masmorras do Recife e de Salvador e os lares eram desonrados.

O pavilhão azul e branco desapareceu aos olhos dos pernambucanos, permanecendo, porém, no âmago de sua gente as idéias de liberdade, bem como os sonhos de uma nova República. Em 1917, quando das comemorações do Centenário da República de 1817, foi à bandeira concebida pelo padre João Ribeiro oficializada, por proposta do Instituto Arqueológico, símbolo do Estado de Pernambuco.

Em 1937, quando da decretação do Estado Novo, foram todas as bandeiras dos estados brasileiros queimadas em cerimônia solene no estádio do Vasco da Gama (Rio de Janeiro), menos a Bandeira de Pernambuco que, deixando de ser símbolo oficial do Estado, foi transformada em pavilhão do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, passando a tremular em frente de sua sede na Rua do Hospício.


Leonardo Dantas - Esquina sábado, 17 de março de 2018

OLINDA & RECIFE, DOIS DESTINOS NUMA SÓ HISTÓRIA

De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.

As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente

Carlos Pena Filho

Aos olhos de quem a contempla pela primeira vez, Olinda se apresenta povoada de sonhos e tomada pela claridade a ofuscar as retinas de quem chega: de limpeza e claridade/é a paisagem defronte…

Aquele conjunto de colinas, que pouco interessou aos indígenas habitantes de suas redondezas, antes da chegada do colonizador, fascinou Duarte Coelho, que chega a Pernambuco em 1535 e vê naquelas paragens o local ideal para a construção de uma vila.

Segundo a tradição recolhida pelo frei Vicente do Salvador, registrada na sua História do Brasil (1627), a denominação Olinda vem de “um galego criado de Duarte Coelho, porque, andando com outros por entre o mato, buscando um sítio em que se edificasse [a vila], e achando este, que em um monte bem alto, disse com exclamação e alegria: O’ linda!”.
 
A versão já fora antes relatada por Ambrósio Fernandes Brandão, autor dos Diálogos das grandezas do Brasil(1618), que residiu em Olinda na segunda metade do século XVI, sendo repetida pelo franciscano frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779) e pelo beneditino dom Domingos do Loreto Couto (c 1696- c 1762), chegando o historiador inglês Robert Southey (1810) a atribuir a exclamação ao próprio Duarte Coelho: “Oh! linda situação para se fundar uma vila!”.

Com a versão de frei Vicente do Salvador, que também residiu no convento franciscano de Olinda e começou recolher anotações para sua História em 1587, não concorda o historiador Adolpho de Varnhagen que, meticuloso em suas conclusões, lembra que a denominação teria origem em Portugal, “mais nada natural que aquele nome fosse de alguma quinta, ou casa, ou burgo, por qualquer título caro ao donatário na sua pátria, e que ele no Brasil quisesse perpetuar […] Sabe-se também que Olinda era o nome de uma das belas damas na novela do Amadis de Gaula, cuja leitura estava então muito em voga, não faltando leitores que lhe davam fé, como em nossos dias se dá à história”.

Alfredo de Carvalho, em Frases e palavras (1906), ao concordar com Varnhagen, chama a atenção para a existência, nas cercanias de Lisboa, das freguesias de Linda-a-Pastora e Linda-a-Velha.

A versão do frei Vicente do Salvador, corroborada por Ambrósio Fernandes Brandão, é a mais aceita para explicar o nascimento da primitiva capital de Pernambuco, cujo núcleo urbano parece delineado na carta de doação, assinada por Duarte Coelho Pereira, de 12 de março de 1537.

Naquele documento, impropriamente chamado de Foral de Olinda, a nascente vila recebe do primeiro donatário as terras de serventia, para uso comum dos seus habitantes. Nele se faz menção à existência da Câmara, da Rua Nova (Bispo Azeredo Coutinho), das fontes de águas potável, do Varadouro Galeota (onde aquela embarcação sofreu reparos) e do Arrecife dos Navios, porto da vila que veio dar origem à cidade do Recife. 
 
Nome poético, surgido de uma leitura de novela; ou denominação saudosista, a relembrar um sítio perdido na toponímia portuguesa; ou ainda, exclamação de um criado de Duarte Coelho, oriundo da Galícia, perdido entre as matas de cajueiros que se espalhavam na planície arenosa, hoje ocupada pelos bairros do Rio Doce e Rio Tapado, tudo serve para explicar o que há no nome: Olinda. Os olindenses, porém, a exemplo dos seus avós, têm uma explicação própria para todo esse feitiço que toma conta de quem a conhece: Quem não viu Olinda, não amou ainda!

O Arrecife dos Navios

Enquanto Olinda imperava do alto de suas colinas, ao longe em direção ao sul surgia, quase ao mesmo tempo, “um porto tão quieto e tão seguro, que para as curvas das naus serve de muro”, na observação da Prosopopea, poema épico escrito em Pernambuco pelo poeta Bento Teixeira, publicado em Lisboa (1601), que bem define a paisagem quinhentista do Recife.

Situada no cruzamento do paralelo, a oito graus e três minutos e 45,8 segundos de latitude sul, e do meridiano a 34 graus e 52 minutos e 14,8 segundos, de longitude oeste, a Barra do Arrecife, assim chamada no Diário de Pero Lopes de Souza (1532), veio a ser a ribeira do mar dos Arrecifes dos Navios, a que se refere o donatário Duarte Coelho Pereira em sua impropriamente chamada carta foral de 12 de março de 1537, uma minúscula povoação de mareantes e pescadores que viviam em torno da ermida de São Frei Pedro Gonçalves, por eles denominada de Corpo Santo.

Era o Recife um porto por excelência, o de maior movimento da América Portuguesa, escoadouro principal das riquezas da mais promissora de todas as capitanias: Pernambuco. Tal riqueza logo veio se tornar conhecida em todos os portos do Velho Mundo, de modo a despertar as atenções dos Países Baixos que, em guerra com a Espanha, sob cuja coroa estava Portugal e suas colônias, necessitavam de todo o açúcar produzido no Brasil para suas refinarias (26 só em Amsterdam). Com o insucesso da invasão da Bahia, onde permaneceram por um ano, mas com o valioso apoio de Isabel da Inglaterra e Henrique IV da França, rancorosos inimigos da Espanha, os Estados Gerais, reunidos na Haia sob a liderança da Holanda, voltaram o seu interesse para Pernambuco, utilizando-se para isso da Companhia das Índias Ocidentais, formada pela fusão de pequenas associações, em 1621, cujo capital elevara-se, na época, a 7 milhões de florins.
 
A produção de 121 engenhos de açúcar, “correntes e moentes” no dizer de van der Dussen, viria a despertar a sede de riqueza dos diretores da Companhia, que armou uma formidável esquadra sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck, que, com 65 embarcações e 7.280 homens, apresentou-se nas costas de Pernambuco em 14 de fevereiro de 1630, iniciando assim a história do Brasil Holandês.


 
Senhores da terra, os holandeses escolheram a povoação do Recife como sede dos seus domínios no Brasil, por ter nesta praça a segurança de que não dispunham em Olinda, “por ser aberta por muitas partes e incapaz de defesa”, na observação de Diogo Lopes Santiago. Na noite de 25 de novembro de 1631, resolveram os chefes holandeses pôr fogo na sede da capitania de Pernambuco, “a infeliz vila de Olinda tão afamada por suas riquezas e nobres edifícios, arderam seus templos tão famosos, e casas que custaram tantos mil cruzados em se fazerem” (Santiago). 
 
Em Olinda, cujos costumes e paisagem foram tão bem descritos pelo Frei Manuel Calado, “tudo eram delícias e não parecia esta terra senão um retrato do terreal paraíso”. Mas a segurança para Waerdenburch e demais chefes holandeses falava mais alto, daí fixarem-se no Recife e na ilha de Antônio Vaz que “são lugares próprios para, com oportunidade, fundar-se uma cidade” e “penso que ninguém que da Holanda vier para aqui quererá ir morar em Olinda” (Adolph van Els), sendo proibidas quaisquer construções no perímetro urbano da antiga capital.
 
A dominação holandesa prolongou-se por 24 anos, passando o Recife de simples porto de Olinda a capital da nova ordem.  
 
Em 1637, seis anos depois, o Conselho dos XIX da Companhia das Índias Ocidentais convidou para ocupar a função de Governador-Geral um jovem coronel do exército da União, Conde João Maurício de Nassau-Siegen. Alemão, nascido em Dillenburgo a 17 de agosto de 1604, João Maurício era o filho primogênito do Conde João VII e de sua segunda esposa Margarida von Helstein-Soderborg, uma parenta da família real da Dinamarca.

Na administração de João Maurício de Nassau um surto de progresso tomou conta do Brasil Holandês, cujas fronteiras foram estabelecidas do Maranhão à foz do Rio São Francisco. O Recife, “coração dos espíritos de Pernambuco” na observação de Francisco de Brito Freyre, veio a sofrer inúmeros melhoramentos e testemunhar vários pioneirismos, como a instalação do primeiro observatório astronômico das Américas. Uma nova cidade veio a ser construída na ilha de Antônio Vaz, onde os franciscanos haviam estabelecido em 1606 o convento de Santo Antônio. A nova urbe, projetada por Pieter Post, um dos principais representantes, ao lado de Jacob van Campen, do classicismo arquitetônico nos Países Baixos, veio a receber a denominação de Cidade Maurícia, em 17 de dezembro de 1639, a Maurits Stadt dos holandeses, cujos mapas, aspectos e panorama (94×63 cm), aparecem na obra de Gaspar Barlaeus, publicada em Amsterdam (1647), e em outras produções artísticas de sua época.

Coube ao Conde de Nassau realizar no Recife uma verdadeira revolução no âmbito de sua paisagem urbana. Ao seu tempo foi construído o palácio de Friburgo (Vrijburg), também conhecido como Palácio das Torres, e a casa da Boa Vista (1643). Foi ele responsável pela instalação do primeiro observatório astronômico das Américas, no qual Georg Marcgrave fez as suas anotações acerca do eclipse solar de 13 de novembro de 1640 (Barlaeus). No seu tempo foi erguido o templo dos calvinistas franceses, obedecendo ao traço de Pieter Post, sendo implantado o calçamento de algumas ruas e o saneamento urbano, além da construção de três pontes em grandes dimensões; a primeira ligando o Recife à Cidade Maurícia (a nova cidade erguida na ilha de Antônio Vaz), inaugurada em 28 de fevereiro de 1644, uma segunda, ligando esta ilha ao continente, e uma terceira sobre o rio dos Afogados.

Ainda no seu governo, o Conde João Maurício de Nassau fez plantar ao lado do seu palácio, em 1642, um grande jardim recreio, para o qual foram transportados árvores frutíferas e coqueiros já adultos, dispondo também de alguns animais provenientes das mais diferentes partes, inclusive da África. Esse primeiro zôo botânico das Américas veio servir de “laboratório” a membros de sua comitiva, notadamente o médico Willem Piso (1611–1678), o botânico, também cartógrafo e astrônomo, Georg Marcgrave (1610–1644) e o artista Albert Eckhout.

Durante 24 anos, passou o Recife de povoação acanhada do século XVI e início do século XVII a capital do Brasil Holandês. Foi tanto o crescimento do primitivo Arrecife dos Navios, foram tantos os melhoramentos obtidos, particularmente durante o governo do conde João Maurício de Nassau (1637-1644), que, mesmo após a expulsão dos holandeses (1654), o Recife jamais voltou a depender de Olinda.

Vila de Santo Antônio do Recife

O Povo dos Arrecifes era coisa do passado. O primitivo porto, após a retirada dos invasores flamengos, veio a ser disputado até pelos governadores que teimavam em ocupar o Palácio de Friburgo, construído em 1642 pelo conde Nassau na primitiva ilha de Antônio Vaz, deixando de prestar assistência à sede da capitania, Olinda, motivando assim os reclamos junto ao rei de Portugal.

A riqueza súbita dos habitantes do Recife, apelidados de mascates pelos naturais de Olinda, fez do antigo porto um núcleo de progresso, por vezes ofuscando a capital de Pernambuco e contrariando os senhores da terra. Fato notório para comprovação de tal progresso seriam as construções religiosas do final do século XVII, algumas delas hoje consideradas verdadeiras jóias de nossa arquitetura colonial. É deste período o início das edificações das igrejas dos Jesuítas (1655), Nossa Senhora da Penha (1655), Santo Amaro das Salinas (1681), Convento do Carmo (1667), Capela Dourada (1696) e Ordem Terceira do Carmo (1696), na ilha de Santo Antônio, que, juntamente com as igrejas de Nossa Senhora do Pilar (1680-86, restaurada entre 1898 e 1906) e Madre de Deus (1679), são testemunhos de uma época de fausto e riquezas.

No governo de Sebastião de Castro Caldas (1707-1710), o primeiro governador nomeado por D. João V, de Portugal, possuidor de nítido partidarismo em favor dos mascates, para desgosto dos olindenses e da chamada nobreza da terra, foi o Recife elevado à categoria de Vila. Com o nome de Santo Antônio do Recife, por carta régia de 19 de novembro de 1709, foi instalada a nova vila. No Largo do Corpo Santo (Bairro do Recife), foi erguido o pelourinho, símbolo do poder municipal, em 15 de fevereiro do ano seguinte (substituído por outro de maior porte, em 3 de março do mesmo ano). Logo foram escolhidos os primeiros vereadores de sua Câmara, aos quais caberia a administração municipal, não se devendo mais obediência aos vereadores de Olinda.

A então Vila estava circunscrita às freguesias de São Pedro Gonçalves e Santo Antônio, área compreendida pelos atuais bairros do Recife, Santo Antônio e São José; pois as terras da Boa Vista ficaram sob a dependência da Câmara de Olinda até a primeira metade do século XIX.

No século XVIII a influência econômica e política da capitania de Pernambuco se faziam presentes do Ceará até a foz do Rio São Francisco, transformando o Recife no principal porto exportador e importador de riquezas. Em torno do núcleo portuário, já então unido ao continente pelas imensas pontes construídas pelo Conde de Nassau (1643), cresceu o centro econômico da capitania reunindo no Recife um grande comércio, responsável pelo abastecimento de toda região. Através do Recife eram exportados o açúcar, o fumo, as peles, o algodão, o pau-brasil e outras riquezas produzidas pelas capitanias do Norte. Em contrapartida, ingressava pelo mesmo porto a maior parte dos bens consumidos, não somente no Recife e Olinda como nas mais remotas comunidades rurais, o que fazia movimentar o grande comércio e a pequena navegação de cabotagem, em atividade até a primeira metade do século XX.

Enquanto a nascente Vila de Santo Antônio do Recife prosperava, transformando-se no centro de maior comércio da região, a cidade de Olinda permanecia como que parada no tempo. Graças ao movimento constante de carga e descarga do seu porto, com a presença de navios que se destinavam não somente à Europa como também à África e até às Índias, a antiga povoação dos Arrecifes transformara-se na capital econômica da poderosa capitania de Pernambuco.

Olinda, por sua vez, jamais voltou a dispor do seu status de capital dos tempos que antecederam ao incêndio de 1631, transformando-se com o passar dos anos na sede administrativa de Pernambuco. Nela se encontravam o Palácio dos Governadores (séc. XVII) e o Senado da Câmara, a catedral do Salvador do Mundo (1540) e o Bispado (1677), o Hospital da Santa Casa de Misericórdia (1540) e a Cadeia Eclesiástica (Aljube), o Colégio dos Jesuítas (1568) e o Horto Botânico, o Seminário Diocesano (1800), assim como os conventos sedes das principais ordens religiosas – Franciscanos (1885), Carmelitas (1588) e Beneditinos (1592) –, e o Curso Jurídico, que veio a funcionar, entre 1828 e 1854, nas salas do Mosteiro de São Bento.

Com a abertura dos portos às nações amigas pelo Príncipe Regente Dom João, em 1808, o porto do Recife, que segundo Henry Koster possuía uma população de cerca de 25.000 habitantes, veio a se tornar de maior movimento comercial da colônia, chegando a exportar no ano seguinte 12.801 caixas de açúcar. Os altos preços obtidos por este produto, que em 1817 atingiu a quantia de 17 francos a arroba, e pelo algodão, “então com um aumento de 500 por cento”, fez surgir na província grandes fortunas e um maior intercâmbio com os Estados Unidos e a Europa.

Ao contrário do século XVIII, o século XIX é detentor de uma rica iconografia do Recife, Olinda e seus arredores. Talvez seja esta a parte do Brasil mais retratada pelos artistas, que aqui estiveram, a exemplo de Alberto Gabriel Frederico Secretan (1793-1852), um suíço de Lausanne que aportou no Brasil em 1827, demorando-se no Recife e em Salvador, chegando ao Rio de Janeiro em 5 de janeiro de 1836 onde faleceu em 1852. É dele a autoria da primeira litografia executada no Recife, datada de 1827 sob o título “Vista do Farol e do interior do Porto de Pernambuco tomada do Poço”.

Também viajantes eram surpreendidos com o panorama oferecido pelo Recife e Olinda. O mais importante deles seria Henry Koster, autor do clássico Travels in Brazil (Londres 1816), no qual publica várias paisagens do Recife, do interior e um Plano do Porto de Pernambuco (160/233 mm.), gravado por Sidney Hall. Outros viajantes preocuparam-se em retratar as belezas do Recife, Olinda e interior, a exemplo de Spix e Martius (1817), James Henderson (1816), L. F. de Tollenare (1817), Maria Graham (1821), que documentou a ilha dos Cocos e o Arco do Bom Jesus; do marinhista inglês Emeric Essex Vidal (1791-1861), que documentou em aquarelas a entrada do porto (1827), além de outros anônimos.

Com o passar dos anos, através de aterros dos terrenos de alagados e de cursos d’água, foi o Recife crescendo em área, muito embora, somente em 1817, por provisão de 6 de dezembro, foram desmembrados do termo de Olinda  o atual bairro da Boa Vista e a povoação dos Afogados.

Em 1823 foi o Recife promovido à categoria de Cidade, por Carta Imperial de 5 de dezembro, seguindo-se de sua elevação à Capital de Pernambuco, através de Resolução do Conselho Geral da Província datada de 15 de fevereiro de 1827.

Através de resoluções posteriores da presidência do Conselho da Província, foram unidas ao território do Recife as freguesias da Várzea e do Poço da Panela, bem como o restante da Boa Vista. Em 1862, o município do Recife era composto pelas freguesias de São Pedro Gonçalves, Santo Antônio, São José, Boa Vista, Afogados, Muribeca, Poço da Panela, Várzea, Santo Amaro do Jaboatão e São Lourenço da Mata; estas duas últimas transformadas em município autônomo em 1873 e 1884.

Durante a República o município do Recife permaneceu com o seu território inalterado até 1919, quando, no governo de Manoel Antônio Pereira Borba, o Congresso Legislativo do Estado de Pernambuco, pela Lei n.º 1430, sancionada em  10 de junho de 1919, estabeleceu os novos limites com o município de Olinda. Por aquele diploma legal estabeleceu-se uma linha divisória a partir da fortaleza do Buraco, “do marco subterrâneo colocado na raiz do molhe que nasce no istmo de Olinda e limita a bacia do porto, por uma linha imaginária à ponte da Tacaruna” [….] “até alcançar o marco divisório das propriedades Piaba e Jardim, próximo à margem do rio Paratibe; sobe, em seguida, o curso deste rio até a foz do riacho Cova da Onça, daí acompanhando os limites da propriedade desse nome até o marco do córrego Riacho Seco, ponto terminal da divisória dos dois municípios.”

Ainda nas confrontações e limites, a lei estadual n.º 1430, anteriormente citada, preceitua em seu artigo segundo: “Os terrenos que, atualmente, pertencem a um dos municípios [Recife ou Olinda] e que por este ato passam para o  outro, serão considerados ipso-facto entregues a cada um dos municípios para o qual foram transferidos, independentemente de mais formalidades, desde que for publicada a presente lei.”

A última modificação de limites do Recife ocorre em 1928, quando a Lei nº 1931, de 11 de setembro, que trata da nova divisão administrativa do Estado de Pernambuco, estabeleceu em seu artigo 3º o acréscimo do território do município do Recife “pela anexação que lhe é feita dos distritos de Beberibe e do Arruda e os territórios do povoado de Coqueiral e de toda vila de Tejipió, excetuada a parte denominada de  Sycupira, os dois primeiros desmembrados do município de Olinda e os dois últimos do de Jaboatão”.
 
Olinda, de onde se vê…

Ao longo dos séculos, porém, Olinda, com a sua paisagem tecida de sonho e claridade, impregnada pelas diversas tonalidades de verde, nas águas do seu mar, e de azul e outras cores no crepúsculo do seu céu, foi o eterno fascínio de todos que a conheceram. Enquanto o Recife reunia atenções pela sua importância econômica, Olinda reservava aos viajantes o deleite de sua paisagem litorânea, povoada de jangadas e outros tipos de embarcações, sendo hoje fonte de deleite e de paz para recifenses e olindenses.

O primeiro a escrever sobre a importância de tal paisagem foi Joaquim Nabuco, quando vista do terraço da igreja da Sé, “o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humanas!”.

O que faz a grande beleza deste nosso torrão pernambucano é em primeiro lugar o seu céu, que muda a cada instante, leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas, e que não é o mesmo em um minuto; é depois o nosso mar, verde, vibrátil e luminoso, as nossas areias tépidas e cobertas de relva, os nossos coqueiros, que vergam desde o soco até ao espanador de um brilho metálico e dourado, com que parecem ao longe sacudir as nuvens brancas, as jaqueiras e mangueiras cuja sombra rendada é um oásis de frescura e abundância…

Em sua descrição, publicada no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), em sua edição de 30 de novembro de 1887, Joaquim Nabuco, pinta, com a mão de um mestre, as belezas do seu torrão natal, utilizando-se das mais contagiantes cores de sua palheta.

… Não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão abaixo aos pés do espectador, que perde o movimento e a vida, parecendo uma tela diáfana estendida sobre o fundo vazio do ar, vistas em profundidade, que dão vertigem e nas quais a perspectiva é tão longínqua como se víssemos por um óculo virado. A vista de Olinda é outra; é uma vista em comprimento, em que os planos sucedem-se uns aos outros como o desenvolvimento da mesma sensação visual, em que desde Olinda até ao Recife, e mais longe até o Cabo de Santo Agostinho, o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humanas!

Com Joaquim Nabuco, concorda quem melhor pôde apreender as cores desta paisagem, o poeta Carlos Pena Filho, para quem Olinda é possuidora não somente de nuances mas de profundos mistérios.

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.

As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência

Mas lá longe, olhando-se em direção do Sul, espraia-se na nossa visão a Cidade do Recife, ocupando uma área de 221 quilômetros e 471 mil metros quadrados desta planície, formada pelas terras de aluvião trazidas pelo delta dos rios Capibaribe, Beberibe, Jiquiá e Jaboatão, bem como pelos constantes aterros promovidos pela mão do homem ao longo desses últimos quatro séculos.

O Recife tem seu centro urbano constituído por três ilhas: a do Recife, a de Santo Antônio e a da Boa Vista, as quais se interligam com o continente, através de pontes que são como braços a unir toda a cidade. A sua condição de planície tropical, refrescada pelos ventos alísios que nos chegam do Atlântico, sem registro de grandes temperaturas, estiada na maior parte do ano, com o eterno fascínio das praias de água morna, transforma a capital de Pernambuco num eterno convite para passeios a pé, nos quais o caminhante ganha às ruas sem maiores compromissos, gozando do cenário de suas pontes e da beleza dos seus monumentos, como a repetir os versos do poeta Ledo Ivo:

Amar mulheres, várias…
Cidades, só uma – Recife.
E assim mesmo com o vento amplo do Atlântico
E o sol do Nordeste entre as mãos.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 07 de março de 2018

1817: O IDEÁRIO LIBERAL PERNAMBUCANO

 

O século XVIII, também conhecido como o Século do Iluminismo, teve a sua segunda metade tomada por uma total revisão no âmbito social das ideias, a partir da Declaração de Independência das treze colônias inglesas, que vieram constituir-se nos Estados Unidos da América, em 4 de julho de 1776, com repercussões nos movimentos que antecederam a Revolução Francesa de 1789.

Autores de várias nacionalidades propagavam os seus princípios democráticos e nacionalistas, pondo em discussão o direito divino dos reis e despertando a burguesia para os conceitos da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, mais tarde consagrados na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

Filósofos, como o suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que em 1762 fez publicar Du Contrat Social (Do Contrato Social), formulando uma nova teoria do Estado, com suporte no princípio da soberania popular, e Charles Louis de Secondat Montesquieu (1689-1755), autor de L’ Esprit des Lois (O Espírito das Leis), eram lidos e discutidos não somente na França, mas, também, em outros países.

As obras poéticas e filosóficas de Voltaire (1694-1778), pseudônimo de François Marie Arouet, autor do Dicionário Filosófico, juntamente com as de Denis Diderot (1713-1784), editor da Enciclopédia Diderot e do italiano Cesare Beccaria (1738-1794), autor do clássico Dos delitos e das penas (1764), despertavam a juventude para um novo comportamento.

A esse movimento de ideias não ficaram alheios os estudantes da Universidade de Coimbra que, levados pela atuação das Lojas Maçônicas presentes em Portugal desde 1740, tornaram-se ávidos leitores daqueles filósofos, cujas obras eram proibidas em Portugal.

O ambiente em que viviam os estudantes daquela universidade portuguesa e as discussões motivadas pela influência das diversas correntes de ideias se depreendem das páginas do Processo n.º 8094 da Inquisição de Coimbra. Nele foram denunciados nove estudantes daquela cidade, dentre os quais Antônio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro, que vem a ser o primeiro dicionarista da língua portuguesa e que, em 1817, seria nomeado membro do Conselho de Estado da “República de Pernambuco”. O Processo é fruto da denúncia do estudante de Geometria Francisco Cândido Chaves, 23 anos, perante o Tribunal da Inquisição de Coimbra em 17 de maio de 1779, onde afirma que na casa do também estudante Antônio de Moraes Silva, “se discutiam pontos de religião e eram citados autores como Helvécio, Voltaire e Rousseau, a quem chamavam de profundíssimos filósofos” e dizia-se que alguns estudantes “eram aliciadores da seita dos Pedreiros Livres” (maçons). (1)

 

Ao depor em sua defesa, no processo movido contra si e mais oito colegas, Antônio Moraes Silva, na audiência de 28 de maio, declarou estar cursando o quinto ano do curso jurídico, sendo filho de Antônio de Moraes e Silva e de Rosa Maria de Carvalho, com idade de 23 anos, morador da Rua do Loureiro, Freguesia do Salvador, naquela cidade. Nas audiências de 12 e 18 de junho, 6 e 7 de julho, disse ainda ser aplicado no estudo das línguas francesa, inglesa e italiana, sendo leitor de obras do Conde de Mirabeau (Honoré Gabriel Riqueti, 1749-1791), de quem lera o Sistema da Natureza e Instituições Políticas, bem como das obras de Montesquieu, Cavaleiro de Milagan (sic) e Quadro da História Moderna (sic), Beccaria, Tratado dos delitos e das penas, Voltaire, Obras poéticas, e Rousseau.

Defendendo-se, em seu depoimento, diz “não entender, nem entende, que toque ao Santo Ofício o punir por essa razão, pois que o conhecimento [de tal matéria] está reservado à Real Mesa Censória”. Disse ainda ter emprestado a obra de Mirabeau a José Antônio de Mello, que tinha o apelido de “Misantropo”, o qual afirmara ser “a dita obra perigosíssima e capaz de enganar a todos que não soubessem Filosofia, mas que ele não deixara de achar alguma preciosidade”. Concluindo o curso de Medicina, em 1778, José Antônio se transfere para Pernambuco, no mês de novembro daquele ano, levando consigo a obra de Mirabeau. (Processo n.º 8094/ ANTT). (2)

Mas a Inquisição do final do século XVIII não era a mesma de tempos passados. Os seus segredos já vazavam para o mundo exterior…

Sabedor por um informante da sentença do inquisidor José Antônio Ribeiro de Moura, prolatada em 20 de julho de 1779, condenando a si e a todos os demais companheiros por crime de heresia e apostasia, Antônio de Moraes Silva fugiu com destino a Lisboa, escondido numa carroça de feno. Dias depois, contando novamente com o concurso de amigos, transfere-se para Londres onde permaneceu sob a proteção do embaixador de Portugal na Grã-Bretanha, tenente–general Luís Pinto de Souza Coutinho, futuro Conde de Balsemão, a quem ele dedica a primeira edição do seu Diccionário da Língua Portugueza (1789).

No mesmo processo, o também estudante Vicente Júlio Fernandes, filho de Júlio Fernandes, 25 anos de idade, natural da Ilha da Madeira, então condenado por heresia e apostasia, depondo em 30 de agosto de 1779, afirma que seu colega Francisco de Mello Franco “levara de sua casa dois ou mais tomos das Cartas do Marquês d’ Argent para ler, os quais lhe emprestara Antônio de Moraes Silva, que lhe disse ter lido o Sistema da Natureza”, obtido por empréstimo a José Antônio da Silva Mello a quem tratava por “Misantropo”.

Depois de exercer atividades diplomáticas em Londres, Roma, e Paris, Antônio de Moraes e Silva regressa a Portugal. Em Lisboa, novamente comparece ao Tribunal do Santo Ofício, em 21 de janeiro de 1785, Processo n.º 2015, apresentando atestado de ter procedido como bom católico, assinado pelo padre Ricardo a Sto. Silvano, vice provincial dos Carmelitas Descalços na Inglaterra, datado de 23 de novembro de 1784. Em sua confissão diz que, quando estudante em Coimbra, discutia com vários colegas acerca de matérias da religião, “reduzindo todos os dogmas aos ditames da razão, desprezando as verdades reveladas pelo lume da fé”; que lera livros anticatólicos, como Emile, de Rousseau. Absolvido, em 23 de dezembro de 1785, teve como pena de levi a de confessar-se nas quatro festas do ano – Natal, Páscoa da Ressurreição, Pentecostes e Assunção de Nossa Senhora – e o preceito de certas e determinadas orações.

Novamente indiciado pela Inquisição de Lisboa (Processo n.º 14.215), Antônio de Moraes Silva se vê compelido a retornar ao Brasil e assim tentar nova vida. Já casado com Narcisa Pereira da Silva, filha do tenente-coronel José Roberto Pereira da Silva, transfere-se para Pernambuco (Paranambuco), em 30 de abril de 1788, segundo denúncia de Escolástica Maurizia. (3)

Estabelecido no Recife, morador da Rua Nova, a partir de 1796, se transforma em proprietário do Engenho Novo da Muribeca, que recebera de seu sogro, onde veio a escrever a segunda e mais importante edição do seu Dicionário da Língua Portuguesa (1813) – “recompilada, emendada e muito acrescentada” –, a partir da qual passa o seu nome a figurar como autor.

O Poder das Ideias

Com a chegada do século XIX as ideias liberais, introduzidas em Pernambuco pelos estudantes e bacharéis da Universidade de Coimbra, alguns deles simpatizantes da maçonaria e outros pertencentes ao clero regular e secular, começaram a despertar na população antigos sentimentos nativistas.

A fundação do Seminário de Olinda, em 16 de fevereiro de 1800 pelo bispo Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, em muito contribuiu para que as ideias liberais republicanas, divulgadas pelos teóricos da Revolução Francesa (1789), fossem debatidas nos púlpitos e entre os alunos do novo centro de estudos.

O antigo Colégio dos Jesuítas foi logo transformado em um Seminário cuja finalidade era “dar instruções à mocidade em todos os principais ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas também de um grande cidadão que se propõe a servir ao Estado”.

Quando da abertura dos portos às nações amigas pelo Príncipe Regente Dom João em 1808, o Recife, que possuía uma população de cerca de 25 mil habitantes, veio se transformar no porto de maior movimento comercial da colônia, chegando a exportar no ano seguinte 12.801 caixas de açúcar. Os altos preços obtidos por este produto, que em 1817 atingiu a quantia de 17 francos a arroba, e também pelo algodão, “então com um aumento de 500 por cento”, fez surgir na província grandes fortunas e um maior intercâmbio com os Estados Unidos e a Europa.

As sociedades secretas continuavam sua marcha doutrinária, “a fim de tornar conhecido o estado geral da Europa, os estremecimentos e destroços dos governos absolutos, sob os influxos das ideias democráticas”, tornando-se verdadeiros celeiros de liberais.

Paralelamente os lentes e seminaristas do Seminário de Olinda se encarregavam de difundir os princípios dos filósofos franceses, particularmente Jean Jacques Rousseau e Montesquieu, juntamente com preceitos da Constituição dos Estados Unidos da América e da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, fermentando assim princípios liberais que viriam mudar o cenário político dos anos que se seguiram.

Em 1801, fora sustada a misteriosa conspiração dos Suassunas – que tinha por fim transformar Pernambuco em uma República sob a proteção de Napoleão Bonaparte – com a prisão dos irmãos Francisco de Paula, Luís e José Francisco Cavalcanti de Albuquerque.

Quando da deflagração da República de Pernambuco, em 6 de março de 1817, os sentimentos nativistas, forjados por ocasião da Restauração Pernambucana de 1654, continuavam bem presentes nos pronunciamentos dos “patriotas” de então. Assim é que O Preciso etc., o primeiro jornal a circular nesta província, redigido por José Luiz de Mendonça, (4) narrando os fatos acontecidos quando da eclosão do movimento, tem como impressor “a Off. da República de Pernambuco, 2ª vez restaurado”, numa alusão clara à Restauração Pernambucana de 27 de janeiro de 1654.

No meio da populaça ainda permanecia o espírito nativista difundido pelos Restauradores de Pernambuco, em 1654, e posto em prática na deposição do Xumbergas (Jerônimo de Mendonça Furtado) em 1666, e na chamada Guerra dos Mascates, movimento republicano de caráter separatista encabeçado por Bernardo Vieira de Melo em 1710. Escrevendo em 20 de janeiro de 1818 o desembargador Escrivão do Tribunal da Alçada no Recife, João Osório de Castro Souza Falcão, enfatiza:

Que todos os filhos do país, ricos, e com postos de ordenanças e milícias, que não estavam doentes até o bloqueio, com exceção, de bem poucos, que talvez não chegassem a dez nas duas comarcas do Recife e Olinda, foram rebeldes mais ou menos entusiasmados, dos quais muitos escaparam à formação da culpa, pelo que as testemunhas pela maior parte vêm prevenidas como vêm ainda ocupando os mesmos postos; testemunhas, porém apontadas além das que se pedira, aos ouvidores e estes aos juízes têm declarado fatos e feito referimentos que têm estendido a diligência.

… … … … … … … … … … … … … … … … … … … …

A idéia que os rebeldes fizeram ter aos seus chamados patrícios ignorantes da história de que esta terra, sendo conquistada pelos seus passados aos holandeses, ficou sendo propriedade sua e que a doaram a El-Rei nosso senhor, debaixo de condições que ele não tem cumprido, pela imposição de novos tributos e que os europeus que têm vindo aqui estabelecer-se têm enriquecido à custa deles patrícios e se têm feito senhores do país, e eles escravos; …(5)

Nos cenáculos das cinco Lojas Maçônicas, principalmente as localizadas nas residências de Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, e de Domingos José Martins, se conspirava com banquetes “estritamente nacionalistas” contra o governo de Dom João, “a tirania real”, e a influência dos portugueses, “marinheiros”, no comércio e nas forças armadas, ao mesmo tempo em que o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro era taxado de fraco e irresoluto. Segundo testemunho do Monsenhor Francisco Muniz Tavares, autor do clássico História da Revolução de Pernambuco em 1817, editada pela primeira vez em 1840:

Entre os amantes da república, figuravam alguns mações, ou pedreiros livres. Esta sociedade secreta respeitada por ser misteriosa, e condenada cegamente como tal, disse que em tempo assaz remoto fora instituída com o louvável fim de confraternizar os homens, e excitá-los à prática das virtudes morais: concedendo aos seus membros plena garantia de pensar, oferecendo mútua comunicação de ideias, e socorros, facilitando a correspondência por todos os lugares, e exigindo inviolável segredo do seu procedimento, a concessão do projeto, que ali é julgado vantajoso, prossegue com perseverança o seu curso. Nenhuma instituição apresentando melhores vantagens ao trabalho da regeneração nacional, aqueles mações principalmente em 1809 a organizar cada um na cidade de seu domicílio várias lojas, e erigiu o Grande oriente, ou Governo Supremo da Sociedade, na Bahia, residência do maior número dos sócios que tenham sido iniciados, e elevados aos altos graus na Europa. (6)

Nos púlpitos das igrejas, espalhadas por toda a província, as novas ideias eram debatidas e exaltadas pelos padres recém-saídos do Seminário de Olinda, alguns com estudos na Europa, criando um clima por demais favorável à revolta, que a tradição popular veio denominar de Revolução de Padres. (7)

“O capitão-general, escreve Muniz Tavares, pouca ou nenhuma atenção prestava aos intrigantes, e se algum procurava indispô-lo falando das Lojas Maçônicas, respondia: se divertem, nada poderão fazer”.

Em março de 1817, o Ouvidor da Comarca do Sertão, magistrado José da Cruz Ferreira, comparece perante o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, a fim de narrar a denúncia, recebida da parte do português Manuel de Carvalho Medeiros, sobre a nova conspiração encabeçada pelo padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, por Domingos José Martins e Antônio Gonçalves da Cruz, além de alguns oficiais dos regimentos de 1ª linha”.

Imediatamente foram convocados os Oficiais Generais Portugueses, que se encontravam no Recife, e determinada a prisão dos civis e militares envolvidos, entre eles os capitães de Artilharia Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, José de Barros Lima e Pedro da Silva Pedroso, tenente-secretário do mesmo Corpo, José Mariano de Albuquerque, e a do ajudante de Infantaria, Manuel de Souza Teixeira.

A prisão dos implicados dar-se-ia no dia seguinte, 6 de março, tendo sido destacado o marechal José Roberto Pereira da Silva para efetuar a dos civis e o comandante de cada um dos Corpos a dos militares.

Na mesma ocasião o brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro, chefe da Artilharia, “português, orgulhoso, altivo, violento e severo”, no dizer de Muniz Tavares, reuniu a tropa e resolveu desacatar os oficiais suspeitos acusando-os de agitadores. Domingos Teotônio Jorge o repeliu, tendo o brigadeiro, imediatamente, ordenado ao capitão Antônio José Vitoriano que efetuasse a sua prisão na Fortaleza das Cinco Pontas.

De maneira diferente procedeu o capitão José de Barros Lima, conhecido pela alcunha de Leão Coroado, que ao ser intimado com voz de prisão desembainhou a sua espada e desferiu-a contra o brigadeiro português, dando assim início à revolta.

A República de 1817

Dos quartéis às ruas, foi apenas questão de minutos…

Os sinos tocavam rebate [som de sino tocado com golpes apressados e redobrados, para soar o alarme]; o enviado do governador foi morto a tiros; um jovem tenente de Artilharia, Antônio Henriques, dirigiu-se à cadeia a fim de libertar Domingos José Martins e demais presos comuns que ali se encontravam, enquanto o capitão Manuel D’Azevedo entrava em negociações para soltura dos oficiais recolhidos à Fortaleza das Cinco Pontas. O governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro recolheu-se ao Forte do Brum, juntamente com seus familiares e demais oficiais, enquanto caíam os últimos redutos da resistência, com a rendição das tropas comandadas pelo marechal José Roberto Pereira da Silva que guarneciam o Campo do Erário (hoje Praça da República), às 16h do mesmo dia.

Destacamento comandado pelo tenente José Mariano foi enviado à Olinda e no dia seguinte os 800 milicianos de Domingos Teotônio Jorge fizeram o cerco da Fortaleza do Brum. Um ultimatum, assinado por Domingos Teotônio Jorge, padre João Ribeiro e Domingos José Martins, foi levado pelo advogado José Luiz de Mendonça ao governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro exigindo, de logo, a rendição.

As condições foram imediatamente aceitas pelos oficiais portugueses e pelo governador, ali recolhidos, e a rendição foi de pronto assinada, enquanto os revoltosos providenciavam o transporte dos presos e familiares para o Rio de Janeiro.

Com gritos de regozijo pela vitória, os oficiais revoltosos retiraram das barretinas e dos pavilhões as insígnias do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, sendo o gesto seguido pela soldadesca.

Uma bandeira toda branca veio a surgir, no meio da tropa, substituindo a real.

As tropas e o povo marcharam para o Campo do Erário, onde foram escolhidos os eleitores para a nomeação do novo governo, sendo posteriormente lavrado o seguinte termo:

Nós abaixo assinados, presentes para votarmos na nomeação de um governo provisório para cuidar na causa da pátria, declaramos à face de Deus que temos votado e nomeado os cinco patriotas seguintes: da parte do eclesiástico, o Patriota João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro; da parte militar, o patriota capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa; da parte da magistratura, o patriota José Luís de Mendonça; da parte da agricultura, o patriota coronel Manuel Correia de Araújo; e da parte do comércio, o patriota Domingos José Martins e ao mesmo tempo todos firmamos esta nomeação, e juramos de obedecer a este governo em todas as suas deliberações e ordens. Dado na Casa do Erário, às doze horas do dia 7 de março de 1817. E eu Maximiano Francisco Duarte escrevi. Assinados – Luis Francisco de Paula Cavalcanti – José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima – Joaquim Ramos de Almeida – Francisco de Brito Bezerra Cavalcanti de Albuquerque – Joaquim José Vaz Salgado – Antônio Joaquim Ferreira de S. Paio – Francisco de Paula Cavalcanti – Felipe Néri Ferreira – Joaquim da Anunciação e Siqueira – Tomás Ferreira Vila Nova – José Maria de Vasconcelos Bourbon – Francisco de Paula Cavalcanti Júnior – Tomás José Alves de Siqueira – João de Albuquerque Maranhão – João Marinho Falcão.

A essa junta agregou-se um Conselho, formado pelos notáveis da nova república, que incluía o desembargador Antônio Carlos de Andrade e Silva (8), o dicionarista Antônio Moraes Silva e o Deão da Sé, Dr. Bernardo Luís Ferreira Portugal.

Imediatamente concedeu-se aumento de soldo aos militares e aboliram-se alguns impostos. Proclamações e pastorais impressas, além de cerimônias públicas, procuraram evitar os choques dos nativos com os europeus e conquistar a confiança da população de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Comarca das Alagoas, capitanias que tinham espontaneamente aderido à República Pernambucana.

Estava, pois, consolidado o movimento que Manuel de Oliveira Lima veio denominar de “a única revolução brasileira digna deste nome, instrutiva pelas correntes de opinião, que no seu seio se desenharam, atraente pelas peripécias, simpática pelos caracteres e tocante pelo desenlace”.

________________

1) “Pedreiros livres; membros de uma sociedade secreta, espalhada por todo o globo, e que se supõe ter principiado por uma associação de arquitetos de diversas nações, na idade média, outros pretendem que teve origem na construção do templo de Salomão”; Diccionário da Língua Portugueza , composto por Antônio de Moraes Silva. Lisboa, 1858. 6ª ed.

2) Antônio de Moraes Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1º de agosto de 1755, transferindo-se para Portugal, em 1774, onde matriculou-se no Curso de Leis da Universidade de Coimbra, tendo concluído em 1779. Em 1789 publica o primeiro Dicionário da Língua Portuguesa, cujos direitos autorais vendera aos livreiros Borel & Cia. por 2 000 cruzados, recebendo ainda uma gratificação de 600.000 reis. Vem a falecer no Recife, em 11 de abril de 1824, sendo o seu corpo sepultado na igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, na Rua Nova.

3) Inquisição de Lisboa Processo n.º 14. 215/1788 – ANTT (Lisboa).

4) Ao depor no Processo n.º 7058, Inquisição de Lisboa, em que figura como denunciado o padre Bernardo Luiz Ferreira Portugal, diz ser “advogado dos Auditórios Eclesiástico e Secular, tenente do Regimento de Cavalaria de Olinda, casado, natural de Porto Calvo (Alagoas), morador na Vila de Santo Antônio do Recife, 31 anos de idade”. No “Livro [1º] dos Termos das Entradas de Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento do Bairro de Santo Antônio 1791-1833”, o seu nome aparece nas fls. 36: “13 de abril de 1799, José Luiz de Mendonça e sua mulher D. Vitoriana Pereira da Silva”. Condenado por sua participação na República de Pernambuco veio a ser arcabuzado, em 12 de junho de 1817, juntamente com os patriotas Domingos José Martins e o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro, no Campo da Pólvora da cidade do Salvador (Bahia).

5) Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: MEC, 1954, v. 103, p. 127.

6) TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco de 1817. Recife: Imprensa Industrial, 1917. 3ª ed., p. 37. Oliveira Lima, comentando na nota XXIII, desta mesma edição, afirma que “as ideias republicanas no Brasil são, pode dizer-se sem risco de incorrer em inexatidão, o resultado direto de suas sociedades secretas…” (p. 274). Vide também: F. A. Pereira da Costa, Anais Pernambucanos, vol. VII, p. 92.

7) Segundo se depreende dos Autos da Devassa de 1817, nada menos de 73 padres aparecem como simpatizantes da causa republicana.

8) Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (1773-1845). Irmão de José Bonifácio Andrada e Silva, na época ouvidor e corregedor em Olinda (PE), tendo sido preso após participar da República de Pernambuco de 1817. Levado a ferros para a Bahia, permanece encarcerado até ser eleito deputado das Cortes de Lisboa em 1821. Em Portugal revela-se notável orador parlamentar, defendendo a autonomia brasileira e recusando-se a assinar a Constituição que recolocava o país em situação colonial. Em seguida à Independência do Brasil torna-se líder da Assembleia Constituinte de 1823, que vem a ser dissolvida por dom Pedro I no ano seguinte.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 01 de março de 2018

OLINDA, OS TEMPOS DE DUARTE COELHO

 

Coube ao primeiro donatário Duarte Coelho Pereira (¹), a fundação da Vila de Olinda, capital da Nova Lusitânia. Era ele um homem feito pelo seu próprio esforço e bravura, um self made man como se diria nos nossos dias, ou um “soldado da fortuna” como era chamado pelos seus invejosos contemporâneos. Tão citado pelos cronistas portugueses do século XVI, Duarte Coelho é uma figura de passado nebuloso e ainda hoje cheia de interrogações com respeito a sua origem. Nascido no último quartel do século XV, provavelmente em Miragaia, então freguesia do Porto (Portugal), era filho ilegítimo de um certo Gonçalo Coelho, até hoje não bem identificado, segundo demonstra Francis A. Dutra, que em artigo sobre ele, baseado em documentos relativos ao período de 1475 a 1525, encontrou pelo menos seis “Gonçalos Coelhos”, como homens proeminentes no reino de Portugal. (²)

 

duarte-coelho

 

Nem mesmo os cronistas do seu tempo, tão preocupados com as informações genealógicas, fizeram qualquer menção aos seus genitores. Assevera, porém, Braamcamp Freire, não ser Duarte Coelho um fidalgo de nascimento, mas elevado à nobreza pelos seus feitos no Oriente, por D. João III, em 25 de janeiro de 1521, tendo recebido o seu escudo d’ armas em 6 de junho de 1545.(³)

Segundo as crônicas da época, Duarte Coelho ingressou para a marinha portuguesa em 1509, incorporando-se à esquadra de D. Fernando Coutinho que partia para missões na Índia, e por lá permaneceu durante 20 anos. No Oriente, conquistou ele fama, fortuna e merecidos elogios pelos seus sucessos bélicos, destacando-se os seus feitos na tomada da Malaca, quando derrotou as forças navais chinesas, e da sua ação como embaixador de Portugal junto ao reino da Tailândia, ocasião em que se estabeleceu o comércio pacífico dos portugueses na Malaca. Durante sua presença na Ásia, realizou três viagens à China, uma ao Vietnã, à Índia e à Indonésia, além de quatro outras à Tailândia. Em 1526 participou da conquista de Bitan, tendo comandado a armada encarregada da “descoberta” de Cochin e do Vietnã do Sul, de modo a estabelecer as rotas de exclusividade de comércio para os portugueses.

Retornando a Portugal em 1529, dono de uma imensa fortuna, é nomeado por D. João III como embaixador junto à corte francesa, em substituição ao Dr. Lourenço Garcês que houvera falecido. Em Paris demora-se apenas seis meses, voltando a Lisboa onde recebe o comando da esquadra real, em viagem de patrulha à fortaleza da Mina e à costa da Malagueta, seguindo depois aos Açores a fim de esperar a frota que vinha de regresso da Índia.

 

Entre 1529 e 1534, Duarte Coelho vem a casar-se com Dona Brites de Albuquerque, irmã de Jorge de Albuquerque que por duas vezes fora capitão da Malaca (1514-16 e 1521-25), pertencente à alta nobreza portuguesa. Em sua linha genealógica, eram os Albuquerques descendentes de D. Afonso Sanches, um filho bastardo de D. Diniz I, que esposara Dona Tereza Martins, filha de D. João Afonso, primeiro conde de Barcelos e quarto senhor de Albuquerque. A família vem ganhar fama na segunda metade do século XV, através dos descendentes dos irmãos Gonçalo e João Albuquerque que vieram se tornar as mais importantes figuras na conquista da Índia e do Oriente.

Assim, Duarte Coelho Pereira, “recebendo de dote tão-somente a linhagem nobre de sua mulher”, forma uma aliança das mais fortes com os Albuquerques, que desta forma se tornaram seus fiéis colaboradores em Portugal, onde permanece junto à corte o seu cunhado Manuel de Albuquerque, que ali cuidava dos seus interesses e o manteria informado no Brasil. Em 10 de março de 1534, por especial benesse do Rei D. João III, Duarte Coelho se vê contemplado com sessenta léguas de costa do Norte do Brasil, que se constituía a testada da capitania de Pernambuco, e da margem esquerda do Rio São Francisco com todas as suas ilhas até as suas nascentes.

Chegando a Pernambuco, a 9 de março de 1535, a fim de tomar posse da capitania que lhe fora doada pelo Rei D. João III, no ano anterior, Duarte Coelho Pereira vinha impregnado do espírito de um fundador de nação e não de um explorador de riquezas, como era comum naqueles que ousavam deixar o continente em busca de outros mundos.

O primeiro donatário de Pernambuco, ao contrário de outros colonizadores acostumados com a presa fácil e a rapinagem nos mares da Índia, da China, do Japão, da África e do Oriente Médio, notabilizou-se como fundador de nação. Ao tomar posse de sua capitania, vinha acompanhado de sua mulher, D. Brites de Albuquerque, e do seu cunhado, Jerônimo de Albuquerque, além de “muitos gentis-homens da sua parentela, alguns fidalgos e bons colonos”.

Contrário à exploração indiscriminada dos recursos naturais, como a derrubada das matas de pau-brasil, chegou a solicitar ao Rei, em 1546, a suspensão do corte daquela madeira numa faixa de quarenta léguas do litoral. Na carta de 1549, endereçada ao Rei de Portugal, declara ser o pau-brasil extraído de Pernambuco “o melhor de todo Brasil”.

Sobre o assunto, José Antônio Gonsalves de Mello chama a atenção para o teor de substância corante contida na madeira proveniente de Pernambuco, “a ponto de em todos os dicionários de línguas europeias de povos que tiveram negociação com madeira – franceses, ingleses e holandeses–, aparecer o ‘bois de Fernambouc‘, ‘Pernambucwood’ e o ‘Pernambucohout‘ como sinônimo de pau-brasil”.(4)

Analisa com muita propriedade Oliveira Lima que “instrumentos como as doações de D. João III, em que estavam exarados direitos absolutamente majestáticos, se perigosos nas mãos de um capitão propenso a aventuras, eram preciosos para um Duarte Coelho, espírito sério, refletido e enérgico“.

Avesso às aventuras, disposto a constituir os pilares de Pernambuco, com base na agroindústria, Duarte Coelho resistiu às tentações da conquista do Oeste de sua capitania; muito embora haja estabelecido a Vila de Igarassu (1535) e financiado algumas incursões, como a de Paulo Afonso que, subindo o Rio São Francisco, descobriu “a formosa e célebre cachoeira que traz o seu nome”.

Nas suas cinco cartas conhecidas, datadas de 1542, 1546, 1548, 1549 e 1550 “desta Nova Lusitânia”, ele se mostra não ser um explorador de riqueza mas, no dizer de José Antônio Gonsalves de Mello, “essencialmente um fundador de nação, um defensor da estabilidade social e da ordem jurídica. Um criador de riqueza baseada na agricultura e não um explorador de bens da natureza. Um fundador de colônia de plantação e não colônia de exploração”. (in Cartas de Duarte Coelho a El Rei; Recife, 1967).

Em carta ao Rei, datada “desta Vila de Olinda, a 27 de abril de 1542”, Duarte Coelho defende-se da pressão de Lisboa, sequiosa por ouro e prata que eram extraídos com abundância do Peru e do México:

Quanto, Senhor, às cousas do ouro, nunca deixo de inquirir e procurar sobre elas, e cada dia se esquentam mais as novas; mas, como sejam longe daqui pelo meu sertão adentro, e se há de passar por três nações de muito perversa e bestial gente e todas contrárias umas das outras, há-de realizar-se esta jornada com muito perigo e trabalho para a qual me parece, e assim a toda minha gente, que se não pode fazer senão indo eu; e ir como se deve ir e empreender tal empresa, para sair com ela avante, e não para ir fazer aventuras, como as do rio da Prata, onde se perderam mais de mil homens castelhanos, ou como as do Maranhão, que perderam setecentos, e o pior é ficar a cousa prejudicada. E por isso, Senhor, espero a hora do Senhor Deus, na qual praza a Ele que me confie esta empresa, para Seu santo serviço e de Vossa Alteza, que este será o maior contentamento e ganho que eu disso queria ter.

Em suas cartas de 14 de abril de 1549 e 24 de novembro de 1550, repetia o preceito bíblico, como que sintetizando o objetivo de sua missão de “pastor e não de mercenário”.

Para Francis Dutra, “o seu intento principal era implantar uma colônia estável e próspera a qual, ele tinha esperança, tornar-se-ia uma extensão de Portugal na linha do sonho de Afonso de Albuquerque para Goa, mas com ênfase na agricultura”.

Preferiu Duarte Coelho, em vez de aventuras e sobressaltos, fixar o homem a terra construindo mais engenhos de açúcar, como narra em uma de suas cartas (1546), onde insiste na agroindústria do açúcar. A cana-de-açúcar já tomava conta da paisagem pernambucana desde os primórdios da colonização, ainda ao tempo da feitoria de Cristóvão Jacques, no Canal de Itamaracá (1515). Em 1526, já figura na Alfândega de Lisboa o pagamento de direitos sobre o açúcar proveniente de Pernambuco. A fonte dessa informação é desconhecida e foi proclamada pela primeira vez por F. A. Varnhagen.•.

Além da cana-de-açúcar e do algodão, o donatário estimulou as culturas da mandioca bem como outras de subsistência, além da pesca, da criação de gado. Tempo precioso dedicou, muito especialmente, a fundação de novos engenhos, procurando criar um ambiente propício para a vinda de colonos, não somente do Norte de Portugal e da Espanha, mas também das ilhas da Madeira, dos Açores, das Canárias e até da península itálica, desde que aqui quisessem se estabelecer com suas famílias, como bem constata Francis Dutra antes citado.

Por volta de 1550, a indústria açucareira tinha atraído artífices qualificados do exterior. Encontram-se, por essa época, na capitania carpinteiros, ferreiros, caldeireiros, oleiros e metalúrgicos, a maioria dos quais necessários à construção dos engenhos e seus acessórios, assim como da casa-grande e capelas que mais tarde seriam construídas como reflexo da riqueza da nova Capitania.

Para encorajar os recém-chegados a se estabelecerem em sua colônia, o primeiro donatário foi generoso na distribuição de sesmarias, conservando cuidadosamente um livro de registros com o fim de evitar conflitos sobre limites dessas propriedades. E foi devido ao cuidado e vigilância de Duarte que Pernambuco talvez tenha tido o que foi provavelmente o melhor e mais ordenado método de distribuição de terra no Brasil no século XVI.

Com a criação de um Governo-Geral no Brasil, tentou a Coroa portuguesa centralizar a sua atuação, diminuindo assim o poder dos donatários, através de uma legislação especial criada a partir de dezembro de 1548. Duarte Coelho logo protestou, estribado nas prerrogativas que lhe foram concedidas na carta de doação de 1534, conforme se depreende de sua carta, datada de 24 de novembro de 1550. Diante da argumentação do primeiro donatário, D. João III manda suspender, temporariamente, a execução em Pernambuco do Regimento de Tomé de Souza. Este, por sua vez, expressa o seu descontentamento em carta de 18 de junho de 1551:

… torno a dizer a V. A . que os capitães destas partes merecem muita honra e mercê de V. A . e mais que todos os Duarte Coelho sobre que largamente tenho escrito a V. A . , mas não deixar ir Vossa justiça às suas terras parece-me grande desserviço de Deus e de Vossa Consciência e danificamento de Vossas rendas. (5)

Segundo narra Frei Vicente do Salvador, ao constatar o clima de paz e ordem vivido em Pernambuco, resolveu o donatário retornar a Portugal para defender, pessoalmente, perante o Rei, os seus interesses já expressos em suas cartas:

Vendo Duarte Coelho que a terra estava quieta e os moradores contentes, determinou ir-se a Portugal com seus filhos, deixando no governo da capitania o seu cunhado Jerônimo de Albuquerque em companhia da irmã. (Brites de Albuquerque). O intento que o levou devia ser para requerer seus serviços, que na verdade eram grandes e, ainda que eram para seu proveito e de seus descendentes, aos quais rende hoje a capitania perto de vinte mil cruzados, muito mais eram para El-Rei, a quem só os dízimos passam cada ano de sessenta mil cruzados, fora o pau-brasil e direitos do açúcar, que importam muito os desta capitania por haver nela cem engenhos. Porém, como ainda não havia tantos nem tanta renda, e devia estar mexericando com El-Rei, que lhe tomara a jurisdição, quando lhe foi beijar a mão lho remocou [censurou] e o recebeu com tão pouca graça que, indo-se para casa, enfermou de nojo, e morreu daí a poucos dias. Pelo que indo Afonso de Albuquerque com dó ao paço, e sabendo El-Rei dele por que o trazia, lhe disse: Pesa-me ser morto Duarte, porque era muito bom cavaleiro. Esta foi a paga dos seus serviços, mas mui diferente a que de Deus receberia, que é só o que paga dignamente, e ainda ultra condigno, aos que o servem. (6)

Segundo narrativa de Frei Vicente do Salvador, fora Duarte Coelho recebido friamente por D. João III; “… quando lhe foi beijar a mão lho remocou [censurou] e o recebeu com tão pouca graça que, indo-se para casa, enfermou de nojo, e morreu daí a poucos dias”. (7)

Duarte Coelho Pereira faleceu em Lisboa, em agosto de 1553, deixando viúva Brites de Albuquerque Coelho de cujo consórcio nasceram, em Olinda, os filhos Duarte Coelho de Albuquerque, morto na batalha de Alcácer-Quibir na África (1578), e Jorge de Albuquerque Coelho, este chegou a governar a capitania de Pernambuco entre 1573-1576 passando depois a residir em Portugal.

Foi o seu corpo sepultado no túmulo de Manuel Moura, marido de sua cunhada, na igreja de São Pedro da Praça, na Alfama. Do seu túmulo nada mais resta, provavelmente desapareceu com o terremoto ocorrido em Lisboa em 1º de novembro de 1775.

Na ausência de Duarte Coelho, ficou a capitania de Pernambuco entregue ao governo de sua mulher, Dona Brites de Albuquerque, “que a todos tratava como filhos”, na visão de Frei Vicente do Salvador, no que era auxiliada de perto pelo seu irmão Jerônimo de Albuquerque, que, segundo a mesma fonte, “por ter muitos filhos das filhas dos principais [chefes índios], os tratava a eles com respeito”.

Sobre a importância da Civilização Duartina, na formação do Norte do Brasil, vale relembrar a assertiva de Oliveira Lima:

A hegemonia de Pernambuco, no Norte, pode-se dizer em todo Norte, porque ainda a Amazônia se não desenhava, estabeleceu-se neste fim do século XVI. Pernambuco, que já dera o seu contingente de homens e mantimentos para a expedição de Estácio de Sá contra os índios do Rio de Janeiro, colonizou a Paraíba e o Rio Grande do Norte à custa de sangue seu, libertando do gentio estes territórios, e vê-lo-emos prosseguir a sua marcha civilizadora até ao Ceará e Pará, emancipar o Maranhão de uma brilhante ocupação francesa, e sacudir de todo o Norte o arraigado domínio holandês.

______________

1) Muito embora assinasse em suas cartas tão-somente Duarte Coelho, seu nome completo era Duarte Coelho Pereira, como se depreende das declarações do seu filho Jorge de Albuquerque Coelho: . . . “por alma do meu pai, Duarte Coelho Pereira, primeiro Governador que foi desta Capitania.. .’’ Livro de Tombo do Mosteiro de São Bento de Olinda; Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, vol. XLI (Recife 1948), p. 26. Ainda o mesmo Jorge de Albuquerque Coelho: . . . “Faço saber que Duarte Coelho Pereira, meu Senhor e Pai, que Deus tem, ao tempo que foi povoar e conquistar a dita Capitania. . .’’. Provisão datada de Lisboa, 2 de setembro de 1594, transcrita por José Antônio Gonsalves de Mello. In: Cartas de Duarte Coelho a El Rei. Prefácio de Leonardo Dantas Silva. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1995. p. 21.

2) DUTRA, Francis A.. in “Duarte Coelho Pereira, o primeiro donatário de Pernambuco: o início de uma dinastia”, The Americas, v. XXIX, n.º 4. Washington, abril de 1973; segundo tradução de João Alfredo dos Anjos.

3) Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT; Chancelaria de D. João III, Doações, liv. 35, fls. 75 v..

4) MELLO, José Antônio Gonsalves de. Cartas de Duarte Coelho a El Rei. Recife: Ed. Massangana, 1997

5) História da Colonização Portuguesa v. III p. 362.

6) SALVADOR, frei Vicente. op. cit. p. 133-134.

7) SALVADOR, frei Vicente do. in História do Brasil 1500-1627. São Paulo: Melhoramentos, 1965.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 21 de fevereiro de 2018

EDWARD, O PRIMEIRO BRENNAND

 

Família Brennand radicada no Brasil desde a primeira metade do século XIX, sempre teve a natural preocupação ao responder às três perguntas da humanidade: “Quem sou? De onde venho? Para onde vou?”

Ricardo de Lacerda Brennand – Patrono do Instituto

Em 18 de agosto de 1977, o patriarca Ricardo de Lacerda de Almeida Brennand (Tio Ricardinho), expressava ao seu sobrinho o desejo de pesquisar as origens de sua família na Europa:

Ricardo – Se realmente você deseja inquirir sobre a família do Eduardo Brennand, que no Registro de Estrangeiros (quando) entrou no Brasil declara ser natural de Manchester, quando um número considerável desse apelido [família], se encontra em Lancashire (condado ao sul da Inglaterra com sede administrativa em Preston). Para um definitivo esclarecimento, com elementos que temos, não será difícil encontrar um escritório especialista nessas buscas. Na Europa em diversas localidades os há inúmeros. Seria interessante saber a origem do nome Brennand: se Anglo-Saxão; se Normando ou Celta, ou mesmo Gaulês.

Tio Ricardinho

P.S. – É um interesse todo particular, dado aos traços fisionômicos contidos no certificado.

O chefe da Família Brennand, Ricardo Lacerda de Almeida Brennand, vem a falecer em 9 de março de 1982, deixando para seu sobrinho a tarefa de pesquisar as origens da família na Inglaterra.

Atendendo ao seu pedido, o sobrinho Ricardo Brennand, em data de 4 de julho do mesmo ano, empreende viagem à Inglaterra e lá, na cidade de Manchester, vem dar início a sua busca dos laços familiares do seu ancestral, Edward Brennand, que dali partira em 1820, e suas ligações com o Brasil.

Foi esta a primeira incursão no campo da pesquisa genealógica encetada por Ricardo Brennand na busca dos seus ancestrais na Europa, seguindo-se de outras e até de algumas páginas sobre as origens mais remotas de seus ancestrais em terras da Grã-Bretanha.

O que restou de concreto é que os primórdios da família Brennand no Brasil datam do início do século XIX, quando, em 13 de julho de 1820, o seu patriarca, o cidadão inglês Edward Brennand, teria desembarcado, no porto de Salvador, como passageiro do brigue Murtagh, procedente do porto de Liverpool, na costa Oeste da Inglaterra¹.

O primeiro da família no Brasil, Edward Brenand (sic) nasceu em c.1801, sendo batizado em 12 de julho daquele ano, na catedral da cidade de Manchester, na costa oeste da Inglaterra, tendo por pais Thomas e Elinor Brenand (sic)².

Apesar da ausência de informações na documentação britânica, em fins da década de 1820, uma notícia publicada no Manchester Courier and Lancashire General Advertiser, do sábado 6 de junho de 1829, registra um certo “Edward Brennand” em seu noticiário.

Em data de 5 de fevereiro de 1835, do Jornal do Comercio, do Rio de Janeiro, registra o embarque no porto daquela cidade, entre seus passageiros, do cidadão inglês Edward com destino ao porto de Maceió aos 4 de fevereiro do mesmo ano na Barca Moderado.

No Brasil, no Livro de Registro de Estrangeiros da Província das Alagoas, livro nº 108, E-20, Arquivo Público de Alagoas, fls.25 v., documento datado de 15 de agosto de 1842, antes citado, o próprio Edward Brennand confirma os seus dados e ainda deixa a sua assinatura legível em tal declaração.

Durante sua permanência na Província de Alagoas, o inglês vem se unir à viúva Maria Francisca Monteiro da cidade da Viçosa. Desta, nasceu o filho Ricardo Brennand Monteiro, batizado em 20 de novembro de 1843, igreja de Nossa Senhora dos Prazeres (Maceió),

Anos depois, em data de 22 de abril de 1857, o jornal O Liberal Pernambucano noticia a morte por afogamento, ocorrida no Recife neste mesmo mês, no Recife, do “súdito britânico Eduardo Brennand “ (sic).

Findou-se assim, nas águas do Atlântico, o patriarca da Família Brennand entre nós, quando o calendário marcava 16 de abril de 1857.

Sua mulher, porém, Maria Francisca de Paula Brennand, segundo noticiário da imprensa alagoana, vem a falecer em agosto de 1908. (Gutemberg, 25 de agosto de 1908; p. 3.).

Major Ricardo, o segundo Brennand.

O segundo Brennand, filho de Edward Brennand, Ricardo com Maria Francisca Monteiro, recebe em casamento Maria Venefrida Monteiro, nascida em 1849, tornando-se pai de Olívia Maria Monteiro Brennand, Maria Nazaré Monteiro Brennand e de um segundo Ricardo Brennand Monteiro; este último, nascido em 6 de janeiro de 1867, que vem a ser o fundador da Família Brennand em Pernambuco.

O Major Ricardo Brennand Monteiro, como veio a ser conhecido, tornou-se figura de destaque na política e no comércio, deixando o seu nome gravado na história da Província das Alagoas da segunda metade do século XIX.

Defensor ardente da emancipação do elemento escravo e do movimento republicano, foi um dos nomes mais populares da propaganda das novas ideias na Província das Alagoas.
Foi como abolicionista que Ricardo Brennand Monteiro mais se destacou na luta em favor da emancipação do elemento servil.

Com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, vem ele fazer parte do Governo Provisório, instalado em 18 de novembro, ao lado de Aureliano Augusto de Azevedo Pedra e Manoel Ribeiro Barreto de Menezes.

Em 30 de janeiro de 1890, seu nome aparece em um manifesto informando à população que o novo Conselho de Intendência Municipal prestou juramento. Naquela ocasião assume as funções da extinta Câmara Municipal, no cargo de Intendente (cargo equivalente ao do atual Prefeito) Ricardo Brennand Monteiro (O Orbe, 2 de fevereiro de 1890).

Mas, sua carreira como administrador público durou pouco, pois em junho do mesmo ano renuncia ao cargo de intendente, para dedicar-se aos seus negócios, sem, no entanto, abandonar a política. Ele aparece como orador em manifestação pública convocada pela bancada minoritária do Congresso Constituinte, contra a eleição de José Araujo Goes como vice-governador do Estado (Cruzeiro do Norte, 17.junho.1891).

Alguns meses antes da assinatura da Lei Áurea, Ricardo Brennand Monteiro recebeu em sua residência o abolicionista Silva Jardim durante sua passagem por Alagoas, promovendo a campanha abolicionista.

Como comerciante, era ele proprietário da Refinaria Brennand situada à rua do Comercio, nº 63. Informação constante do Almanak do Estado de Alagoas para o ano 1891.

Já no posto de Coronel, Ricardo Brennand Monteiro falece na cidade de Maceió, Alagoas, em 1º de março de 1916, como se depreende do traslado da Escritura Pública de Partilha dos seus bens deixados naquela cidade.

Ricardo, o terceiro Brennand.

O terceiro Brennand, filho do major Ricardo Brennand Monteiro, com a Sra. Maria Venefrida Monteiro, é nascido em 6 de janeiro de 1867, nas Alagoas e como tal, neto do cidadão inglês Edward Brennand.

O seu batismo ocorre na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, Maceió, em 9 de fevereiro de 1867, tendo por padrinhos José Antônio Magalhães Basto e Angélica de Mendonça Magalhães Basto.

A fim de cursar a Faculdade de Direito, transfere-se para o Recife em 1889, com o seu nome inscrito na lista dos alunos aprovados do primeiro ano da mesma Faculdade, segundo notícia publicada no Diario de Pernambuco de 16 de novembro daquele ano, no curso concluído em 1894.

Na mesma cidade conhece a jovem Francisca de Paula Cavalcanti Albuquerque Lacerda de Almeida, com quem acerta casamento, dando início à Família Brennand em Pernambuco.

Jornal do Recife de 14 de abril de 1895, registra os proclamas de seu casamento com Francisca de Paula Cavalcanti Albuquerque Lacerda de Almeida, filha de Francisco de Paula Rodrigues de Almeida e Francisca de Paula Cavalcanti Lacerda de Almeida, ambos residentes nas Graças. O casamento religioso acontece na matriz do Santíssimo Sacramento da Boa Vista em 14 de maio de 1895.

O pai da noiva, bacharel Francisco de Paula Rodrigues de Almeida, nascido em 24 de janeiro de 1815, era formado em Direito pela antiga Faculdade de Olinda. Fora ele Delegado de Polícia na cidade do Recife, ocupando posteriormente outros cargos na magistratura da Província, os quais abandonou para dedicar-se à agricultura. Casado com D. Francisca Cavalcanti de Albuquerque Lacerda de Almeida, gerou onze filhos.

Francisca de Paula Cavalcanti Lacerda de Almeida, por sua vez, pertencia a família do Conde da Boa Vista, Francisco do Rego Barros (1802-1870), personagem de força influência política e social na Província de Pernambuco durante o século XIX.

Desta união nasceram os filhos: Eduardo Lacerda de Almeida Brennand (1896 -1971), Ricardo Lacerda de Almeida Brennand (1897-1982), Francisca de Paula Lacerda de Almeida Brennand (1898-1968) e Antônio Luiz de Almeida Brennand (1901-1975); fundadores da FAMÍLIA BRENNAND em Pernambuco.

¹No Livro de Entrada de Embarcações, nº 626-1 1820-1822, p. 58, conservado no Arquivo Público do Estado da Bahia, registra a atracação de um brigue inglês Mortta (Murtagh), em data de 14 de julho de 1820, sob o comando do capitão Thomas Moordoff.

²England Births and Christenings, 1538-1975, database, FamilySeascha; Edward Brennand, 12 Jul 1801; citing Manchester, Lancashire, England. Número do projeto de indexação I0450-1.Número do filme 1545576 – Item 3.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 14 de fevereiro de 2018

CANCIONEIRO DE QUARTA-FEIRA

 

 

Depois de um Carnaval, vem a quarta-feira ingrata, onde  “tudo é cinzas!”. A partir de então tem início a Quaresma que, no passado, era tempo de reflexão, jejum e abstinência completa de carne.

Em cada Quarta-Feira de Cinzas, porém, resta no peito do verdadeiro folião a verdadeira saudade, uma lembrança do carnaval que passou, assim expressada por vezes com lágrimas e acalentadas pelos versos do próprio cancioneiro carnavalesco de Edu Lobo.

 

 

 Hoje não tem dança
Não tem mais menina de trança
Nem cheiro de lança no ar
Hoje não tem frevo
Tem gente que passa com medo
Na praça ninguém pra cantar.

Como no poema de Vinícius de Moraes, musicado por Carlos Lyra, chegou ao fim mais um carnaval (Marcha da quarta-feira de cinzas):

 

 

Acabou o nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais
Brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas
Foi o que restou
Pelas ruas, o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando
Cantigas de amor…

Na quarta-feira, o folião de ontem volta à realidade do dia-a-dia, depois de conviver naquele reino azul da fantasia, sob a égide do Rei Momo, onde por momentos parecia ter encontrado a morada da felicidade. Ao reencontrar-se consigo mesmo, mirando-se no espelho ao amanhecer da quarta-feira, o folião cansado, vem descobrir dentro de si que o carnaval, apesar dos guizos e de todo colorido que se faz presente aos olhos, é uma festa triste; como nos versos de Raul e João Victor do Rego Valença, os Irmãos Valença (Saudade):

De que nos serve a folia
Tanto prazer e alegria
O carnaval é a ilusão
Deixando uma triste recordação
E se voltamos chorando
É a saudade
Que nos vem
Alguém nos ficou amando
E ficamos querendo alguém

De há muito o cancioneiro carnavalesco vem sendo tomado de versos inspirados na nostalgia trazida pela quarta-feira, desde os anos vinte quando os blocos carnavalescos regressavam às suas sedes cantando marchas, como esta de Raul Moraes (Despedida):

 

 

Adeus, ó minha gente,
O bloco vai embora
Sentindo que a alma chora
E o coração fremente
Diz, findou-se o carnaval.
Até para o ano, adeus
Guarda nossas saudades
Que implorarão aos céus
Felicidades para, nossa alma liberal
Essa canção saudosa,
Há de fazer chorar
E sempre a relembrar
Nossa gente buliçosa
De regresso a cantar.

A espera de um outro carnaval é o acalanto que embala a alma de todo poeta e sonhador, como nos versos de Capiba, em De chapéu de sol aberto (1973):

 

 

 Espero o ano inteiro,
Até ver chegar fevereiro
Para ouvir o clarim clarinar
E a alegria chegar!
Esta alegria que em mim
Parece que não terá fim
Mas se um dia o frevo acabar!
Juro que vou chorar…

O carnaval é talvez a forma de suavizar a vida desses poetas, daí a tristeza que toma conta do espírito de todos no alvorecer da quarta-feira, como naquele frevo de Nelson Ferreira:

Um carnaval a mais
Que beleza, no entanto…
Um carnaval a menos, que tristeza.
Vida, não foge tão depressa.
Ainda quero viver muitos carnavais…

Alguns deles não se conformam com a chegada da quarta-feira e por vezes teimam prolongar o seu próprio carnaval interior, como se fosse um ópio a lhes transportar para o mundo da fantasia e do surrealismo, como no frevo de Rudy Barbosa e Adelmo Tenório (Por que saideira?):

Estou vendo, a manhã está dizendo:
Já é quarta-feira! Por que saideira,
Se eu não queria, pra casa voltar…
Voltar, pra quê!
Voltar, pra quê!
Se vai voltar esta saudade de você

Vou desfilar meu sorriso
E ser o palhaço, desta multidão.
Pra  repousar meu cansaço,
Igual ao seu braço,
Não encontro mais não

Solidão, eu me embriago agora!
Está chegando a hora
D’ a tristeza voltar
Solidão, eu me embriago agora!
Está chegando a hora
D’ a tristeza voltar.

Para o autêntico folião, particularmente para os românticos dos anos dourados, quando a permissividade dos costumes não era a tônica dos festejos carnavalescos, a contagem regressiva da madrugada de uma quarta-feira se transformava em suplício; como nos versos de Geraldo Costa e José Menezes (Terceiro dia):

A noite morre, o sol vem chegando…
E a tristeza vai aumentando
A gente sente uma saudade sem igual
Que só termina
Com um novo carnaval

Mas o que ensina a lição é que se vai um carnaval, mas fica-se sempre com uma saudade; como no frevo dos irmãos Reinaldo e Fernando Oliveira (É quarta-feira, é madrugada):

É quarta-feira, é madrugada…
O sol já chegou
O carnaval foi tudo um sonho bom que passou
Recordar não adianta nada, meu bem…
Melhor esperar, prô ano que vem!

Saudade vive escondida…
Esperando todo fim de carnaval
Não adianta esperar por toda vida
Nem por um ponto final.

Para aquele folião empedernido, porém, que viveu o carnaval até os últimos acordes; folião daqueles que em anos passados só saía dos salões acompanhando as orquestras, sob o comando de Nelson Ferreira, Guedes Peixoto ou José Menezes, em meio à turba frevolenta até os jardins da Praça do Entroncamento ou da Praça do Internacional, para só assim encerrar, às sete horas da manhã da quarta-feira, o seu carnaval.

Para esses, que viveram tantas paixões e que ainda hoje estão a lembrar daqueles rostos juvenis, que se perderam em meio aos confetes e serpentinas dos passados carnavais, pelo menos o frevo de Luiz Bandeira, gravado por Carmélia Alves em 1957 (Copacabana nº 5699, matriz 1725),  ficou na lembrança: 

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 É de fazer chorar
Quando o dia amanhece e obriga o frevo acabar
Ó quarta-feira ingrata
Chega tão depressa
Só pra contrariar
Quem é de fato, um bom   pernambucano…
Espera um ano,
e se mete na brincadeira
Esquece tudo, quando cai no frevo.
E no melhor da festa,
Chega a quarta-feira.

Sim meus amigos, o nosso carnaval acabou. Como o poeta Vinicius de Moraes só nos resta cantar: 

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Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando
Seu canto de paz
Seu canto de paz
Seu canto de paz.

Mas para aquele pernambucano, ausente da terra, distante dos amigos e obrigado a conviver com gente estranha que não sabe o que é Carnaval, o espírito da quarta-feira  dura o ano inteiro e o acompanha onde quer que se encontre.

Longe do Recife, exilado voluntário do seu próprio chão, privado da paisagem e dos sons que acalenta em sua alma de folião, ele estará sempre a cantar baixinho, como a embalar o seu próprio coração, balbuciando a letra daquele frevo-canção, composto por Antônio Maria Araújo de Morais (Recife, 1921 – Rio, 1964) num de seus momentos de banzo e de saudades do seu torrão: Frevo nº 1 do Recife, gravado inicialmente pelo “Trio de Ouro” em 9 de agosto de 1951. O sucesso veio a ser regravado depois com competência por muita gente, a exemplo de Claudionor Germano e Expedito Baracho.

 

 

Ô, ô, ô, ô, ô… saudade
Saudade, tão grande.
Saudade que eu sinto
Do Clube das Pás, do Vassouras,
Passistas traçando tesouras,
Nas ruas repletas de lá…
Batidas de bombo,
São maracatus retardados,
Chegando à cidade, cansados,
Com seus estandartes no ar.
 
Que adianta
Se o Recife está longe
E a saudade é tão grande
Que eu até me embaraço
Parece que eu vejo
Valfrido Cebola, no passo;
Haroldo Fatia, Colaço…
Recife está perto de mim


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 08 de fevereiro de 2018

RICARDO, UM CONSTRUTOR DE FÁBRICAS

 

Considero-me unicamente um construtor de fábricas, um obcecado industrial, durante toda a minha vida. Ricardo Brennand

Em 28 de maio de 1949, por ocasião do seu casamento com Graça Maria Dourado Monteiro, tinha Ricardo Coimbra de Almeida Brennand completado 22 anos, quando foi convocado por seu pai, Antônio Luiz de Almeida Brennand, para trabalhar na administração da Usina Santo Inácio, no município do Cabo de Santo Agostinho.

Nessa usina, a Santo Inácio, em um tempo em que não existia o jeep (veículo de tração nas quatro rodas disseminado pelos norte-americanos ao longo da segunda Guerra Mundial), ele cuidava do campo nas suas constantes visitas aos canaviais utilizando-se do cavalo como meio de transporte.

 

 

Na época pertenciam à usina os engenhos Santo Inácio, Algodoais, Massangana, Tabatinga, Serraria e Jasmim; a produção do açúcar era acrescida com canas colhidas de fornecedores: Engenhos Boa Vista (Laura Sousa Leão), Pitimbu (Luiz Caetano Gomes Bom), Caramuru e Camaçari.

No ano de 1950, os irmãos Ricardo Lacerda Brennand e Antônio Luiz Brennand venderam a Usina Santo Inácio ao grupo Aníbal Cardoso dos Santos, Murilo Guimarães, Luiz Gonçalves de Barros, João de Barros e José Carneiro dos Santos, e com os recursos da venda passaram a pensar em novos rumos na área da indústria.

Surgira, assim, uma série de novos empreendimentos que vieram mudar o rumo das empresas, com a produção de azulejos, vidros, aço, pisos e cimento.

De logo pensou-se na ideia da criação de uma fábrica de azulejos, já que o mercado para esse produto era suprido, tão somente, por duas fábricas estabelecidas no Sul do pais: Klabin e Matarazzo.

Acertado o novo objetivo, coube ao jovem engenheiro a incumbência de uma missão nos Estados Unidos, visando à compra da maquinaria necessária para implantação da nova indústria.

Por seis meses Ricardo, recém-casado com Graça Maria Monteiro Brennand, acompanhado de sua irmã, Maria Thereza Brennand, percorre vários centros industriais americanos visando adquirir conhecimentos na produção industrial de azulejos e equipamentos necessários para a nova fábrica.

Verifica, porém, depois de muitas andanças, que a economia norte-americana se encontrava em uma notável pujança, obtida graças ao sucesso dos seus exércitos na vitória na segunda Guerra Mundial, o que elevava, em muito, qualquer negociação de compra de equipamentos industriais.

Optou, então, por renunciar, temporariamente, ao plano de aquisição da nova fábrica e preparou-se para a viagem de retorno ao Recife.

Uma fábrica da Alemanha

Já no Recife, a família Brennand resolve direcionar seu interesse para a Europa do pós-guerra, como campo ideal para as suas aspirações, cabendo ao casal Graça e Ricardo Brennand uma nova missão internacional.

A viagem acontece em 1952, iniciando-se pela Suíça, seguindo-se pela Itália e se estendendo à Dresden, que, juntamente com outros centros industriais da Alemanha, encontrava-se completamente destruída pelos bombardeios aéreos das tropas aliadas na segunda Guerra Mundial.

 

No seu périplo pela Alemanha do pós-guerra, Ricardo Brennand, usando do seu conhecimento da língua, adquirido na infância com a governanta de sua família, vai à procura dos equipamentos necessários para a montagem de uma moderna fábrica de azulejos.

Assim, com recursos da venda da Usina Santo Inácio (1950) e um empréstimo da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, são criadas as bases da nova Indústria de Azulejos S.A. – IASA.

Conclui Ricardo, na sua visão antecipada do futuro, que, para a nova indústria, não bastavam tão somente máquinas e fornos da mais avançada tecnologia, mas também e principalmente, de um capital humano capaz de movimentar e garantir a produção de azulejos de superior qualidade, que viesse disputar o mercado brasileiro, na época abastecido pelas fábricas da Matarazzo e Klabin, bem como pela importação em cerca de 50% de outras fábricas do exterior.

Para a nova fábrica foram selecionadas por ele, durante a sua estada na Alemanha, seis famílias de técnicos, cujos chefes possuíam notório conhecimento no processo de produção de azulejos, que imediatamente se transferiram para Pernambuco com as suas famílias e aqui se estabeleceram nas terras de São João da Várzea.

Assim, uma colônia alemã vem surgir na Várzea do Capibaribe, a partir de 1954, com a entrada em funcionamento da Indústria de Azulejos – IASA.

A nova indústria tem sua planta projetada de forma pioneira pelo próprio Ricardo Brennand, então com 27 anos, e inicia sua produção instalada em moderníssimo prédio, ostentando uma chaminé de 83 m. de altura a dominar a paisagem da Várzea do Capibaribe, uma singularidade para aquela região.

No seu prédio de linhas avançadas, chamava a atenção um grande painel de azulejos, assinado pelo seu primo Francisco Brennand (da mesma idade de Ricardo), no qual aparecem representados o fundador do Grupo Brennand, Ricardo de Lacerda Brennand, o irmão deste, Antônio Luiz, bem como os primos Cornélio e Ricardo Brennand.

Durante 43 anos foi o azulejo a mola mestra do Grupo Brennand, conduzido pelos primos Ricardo Brennand e Cornélio de Brennand, chegando atingir a produção de 10 mil metros quadrados de azulejos/dia e 600 mil metros quadrados de pisos.

O mercado interno absorvia 75% da produção e o restante era exportado para a África do Sul, Austria, Canadá, Chile, Costa Rica, Estados Unidos, França e Reino Unido.

CIV – COMPANHIA INDUSTRIAL DE VIDROS

Do azulejos, Ricardo Brennand resolve ingressar na indústria produtora de embalagens de vidro, construíndo a CIV – Companhia Industrial de Vidros, cuja fábrica em São João da Várzea veio a ser “uma das mais belas do nosso grupo, me fez viajar pela Alemanha e Inglaterra, terminando por bater com os costados nos Estados Unidos, tudo em busca da mais avançada tecnologia no fabrico do produto”.

A paisagem da antiga usina vai aos poucos mudando de zona rural para um moderno distrito industrial, pontilhado pelas chaminés das novas fábricas.

Em todos os projetos encontra-se a força criadora de Ricardo Brennand, aliada à pertinácia do seu primo Cornélio Brennand; da chaminé “perna de moça” da Fábrica de Azulejos – IASA à planta da Companhia Industrial de Vidros – CIV, com suas quatro chaminés a dominar a nova paisagem, tudo externava um novo padrão.

Era ele, aos 31anos, o grande projetista na constante expansão do conglomerado de fábricas que surgia em Pernambuco e outros recantos do Brasil.

Para a criação da Companhia Industrial de Vidros – CIV, Ricardo Brennand, sempre acompanhado de Graça, sua mulher, teve de empreender uma nova viagem à França, observando “e anotando no final de cada dia tudo que via em minhas visitas”. Fazia-se necessário obter o conhecimento para implantação no Brasil de um empreendimento semelhante, em tudo igual ao que se fazia na Europa e nos Estados Unidos, para onde estendeu a sua procura.

Naquele país, ele vem, finalmente, adquirir todo o equipamento necessário à montagem da nova Companhia Industrial de Vidros – CIV, inaugurada em 29 de maio de 1958, em terras de São João da Várzea.

AÇONORTE

As coisas caminhavam tranquilas, quando, em 1963, empresários portugueses da Aço Sul, ofereceram aos Brennand uma nova proposta: a fábrica AçoNorte de Goiana (PE), surgindo assim um novo desafio para os dois primos.

Mais um desafio para Ricardo Brennand, então com 36 anos, que o obrigou a mais uma viagem, desta vez com destino a Stuttgart, na Alemanha, sede da firma Belgo Bekart Arames, com o objetivo de importar seis máquinas produtoras de arame farpado, a serem implantadas na AçoNorte Recife.

Sob o seu planejamento, foi a unidade de produção transferida de Goiana para o Distrito Industrial do Curado, no Recife, com aquisição de máquinas de trefilação, laminador contínuo, cubas industriais para galvanização e, sobretudo, tecnologia.

Quando já se encontrava com a AçoNorte instalada no Curado, surge o desejo do Grupo Gerdau, uma siderúrgica gaúcha datada de 1901, que através dos irmãos Germano e Jorge Gerdau mostrou-se interessado na sua compra, tendo as negociações concluídas em 1969.

BRENNAND CIMENTOS

Assim foi e é por toda a vida Ricardo Brennand, um empreendedor obstinado, cativo do trabalho diuturno que consome as vinte quatro horas do seu tempo.

Debruçado numa prancheta, ele, quando não estava viajando ou em visita às fábricas, encontrava-se planejando dia e noite, ainda levando projetos para seu gabinete doméstico, bem junto ao seu quarto de dormir.

Encontrava-se Ricardo Brennand com 42 anos, quando o grupo ingressa no ramo do cimento, inaugurando sua primeira fábrica em 12 de dezembro de 1969, a Companhia de Cimento Atol, localizada em São Miguel dos Campos (AL), em uma área de 400 hectares e possuidora de uma grande jazida de calcáreo e mais um poço de gás de petróleo.

Era a Atol programada para produzir 400 mil toneladas anuais, capacidade esta duplicada em 1988, após as necessárias modificações na sua planta industrial.

Com a Companhia Atol de Cimentos em funcionamento, a partir do final de 1969, a produção do cimento a vem se expandir através de outras empresas do ramo: Mineração Sergipe S.A. (jazidas de caulim, feldspato e quartzo), Companhia Paraíba de Cimento Portland – CIMEPAR (1981) e Companhia de Cimento de Goiás (1982), esta localizada no município de Cesarina (GO).

Para aquisição da Companhia Paraíba de Cimento Portland – CIMEPAR, localizada em João Pessoa, em 1981, Ricardo Brennand teve de disputar palmo a palmo com os grandes produtores do país.

A fábrica desde 1945 fabricava o Cimento Zebu, de grande aceitação no mercado, e pertencia ao Grupo Matarazzo, de São Paulo, então dirigido pela filha caçula do conde Francisco Matarazzo Júnior (1900-1977), Maria Pia Matarazzo (38 anos) que demonstrou estar interessada em se desfazer daquele patrimônio.

CIMEPAR detinha 21% do mercado nordestino, produzindo 870 mil toneladas de cimento/ano, mas logo após a sua aquisição pelos Brennand passou a ser objeto de uma reformulação na sua planta industrial.

Sob o planejamento de Ricardo, foram modernizados os seus fornos e racionalizado o uso dos demais equipamentos, reduzindo os custos e reequipando os seus laboratórios e ambulatórios médicos, acrescendo assim uma total mudança na sua apresentação, com novos pátios e novos jardins.

Na compra da CIMEPAR, teve ele de negociar diretamente com a sra. Maria Pia, presidente do Grupo Matarazzo, que inicialmente pediu pela fábrica 100 milhões de dólares, seguindo-se de uma nova proposta de 70 milhões, dias depois, provocando idas e vindas entre o Recife e São Paulo.

Finalmente, depois de muitas idas e vindas, o Grupo Brennand transformou-se em proprietário de três grandes fábricas de cimento que, juntas, produziam 2,5 milhões de toneladas/ano.

Dois anos depois, em 1984, graças à administração dos primos Ricardo e Cornélio Brennand, a CIMEPARempregava 800 pessoas se tornando a primeira arrecadadora de ICMS da Paraíba, com metade de sua produção comprometida com a construção da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, que viria a ser a maior produtora de energia elétrica da região Norte.

Por essa época surge o interesse dos primos em uma nova compra, a Companhia de Cimentos Goiás, pertencente ao industrial pernambucano Severino Pereira, de Taquaritinga. Na sua aquisição foram empenhadas, como garantia, cinco safras da Usina Trapiche (1992-1997), de modo a pagar o empréstimo tomado junto ao City Bank.

Companhia de Cimentos Goiás produzia na época 900 mil toneladas de cimento/ano, logo veio a se tornar na maior do Grupo Brennand, que já possuía a Companhia de Cimento Atol (Alagoas) e a Companhia de Cimento Portland – CIMEPAR (Paraíba).

Toda produção das três fábricas, Companhia Atol de Cimentos, da Companhia de Cimento de Goiás e da Companhia Paraíba de Cimento Portland – CIMEPAR, passou a utilizar a marca Zebu – o cimento forte.

USINA TRAPICHE

Em 1975, o Grupo Brennand voltou o seu interesse para o açúcar, quando da compra da Usina Trapiche, que fora do industrial Manuel Baptista da Silva.

Coube a Ricardo Brennand, juntamente com seu primo Cornélio Brennand, reorganizar toda a área agrícola e sua unidade industrial, instalando nela uma moderna refinaria, com capacidade de produção de 1.900.000 sacos de açúcar.

Possuidora de uma pequena usina de geração de energia elétrica (2.500kw), a Trapiche montou também uma destilaria com capacidade de produção de 200 a 300.000 litros/dia de álcool anidro, hidratado e neutro.

Por conta do falecimento de seu filho Antônio Luiz de Almeida Brennand Neto, a Usina Trapiche veio a ser vendida, em abril de 1997, ao industrial Luiz Antônio de Andrade Bezerra, também proprietário da Usina Serra Grande, esta localizada no município de São José da Laje (Alagoas).

CIMPOR-CIMENTOS DE PORTUGAL

A produção das fábricas de cimento do Grupo Brennand, ia em franco progresso quando, em 1997, chega ao Brasil o grupo da CIMPOR – Cimentos de Portugal, em busca de se estabelecer no mercado, com a compra da Companhia Cimento São Francisco (CISAFRA), e as três unidades de produção de cimento da Bunge Internacional Ltda.

No mesmo ano, o grupo português vem adquirir a Cimento Cauê, da Camargo Correa, anexando a seu parque cimenteiro duas unidades de produção: Pedro Leopoldo (MG) e Santana do Paraíso (MG).

Com aquisição dessas unidades fabris, as atenções dos portugueses logo se voltaram para as três fábricas do Grupo Brennand: Cimento Atol, nas Alagoas; Cimento Goiás, em Cesarina, e a CIMEPAR, na Paraíba, que juntas produziam 2,5 milhões de toneladas/ano. As negociações, iniciadas em setembro de 1999, tiveram a duração de mais de um ano, e terminaram por apresentar “uma proposta elevada, irrecusável” (!), que levou os dois principais sócios, Cornélio Brennand e Ricardo Brennand, a concordar com a venda das suas três unidades produtoras de cimento.

Restava aos dois primos, tão somente, na sociedade familiar, a CIV – Companhia Industrial de Vidros, inaugurada em 1958, que logo veio a ser vendida, em data de 19 de abril de 2002, quando Ricardo Brennand transferiu para Cornélio Brennand a parte que lhe cabia na indústria.

Em curto período a CIV veio deter 20% do mercado nacional de embalagens de vidro, logo despertando as atenções da Owens-Illinois que chega ao Brasil em 2009.

As negociações da compra da fábrica se prolongaram com o Grupo Cornélio Brennand que, em dez de setembro de 2010, consumou a venda para o grupo norte-americano.

BRENNAND ENERGIA & CIMENTO NACIONAL

Estávamos em novembro de 2000 quando o Grupo Ricardo Brennand ingressa no ramo da produção e energia elétrica, com a construção de duas unidades geradoras, no Mato Grosso, pela Brennand Energia, que nos dias de hoje reúne um total de 17 pequenas centrais hidrelétricas – PCHs.

Ao conglomerado das usinas geradoras de energia elétrica se veio somar a Companhia Nacional de Cimento – CNC,com a inauguração de sua fábrica em Sete Lagoas, Minas Gerais, em 24 de abril de 2011.

Naquela ocasião, dias antes de completar 84 anos, Ricardo Coimbra de Almeida Brennand assiste à entrega da penúltima fábrica por ele projetada, a Cimento Nacional com a capacidade instalada de produção de 3000 toneladas/dia.

Na direção do Grupo Brennand, Ricardo Brennand foi responsável por projetar e/ou modernizar 18 fábricas: Indústria de Azulejos S.A. – IASA (1954), Vidraria Norte do Brasil e a Companhia Industrial de Vidros S.A. – CIV (1958), Céramus Bahia (1961), IASA – Bahia (1962), Mineração Geral do Nordeste S.A. (1962), AçoNorte Recife (1963), Azulejos do Pará – AZPA (1967), Azulejos do Ceará (1968), Cimento Atol Alagoas (1972), Usina Trapiche (1975), CIV – Ceará (1977), CIV – Bahia (1977), INOVISA – Indústria de Vidros S.A. (Vitória de Santo Antão – 1978), Cimepar Paraíba (1982), Companhia de Cimentos Goiás (1991), Usina Petribú Paulista (2004) e, finalmente, a Companhia Nacional de Cimentos (2006), construída em Sete Lagoas, Minas Gerais, e sua congênere, Brennand Cimentos Pitimbu da Paraíba.

Durante a maior parte de sua vida, Ricardo Brennand incursionou com sucesso pelas atividades: açúcar (1949), azulejos (1954), vidro (1958), siderurgia (1963), novamente açúcar (1975), cimento (1978) e, mais recentemente, cimento, energia elétrica, energia eólica e empreendimentos imobiliários.

Hoje, com a minha missão de vida concluída, me restou dividir com os filhos praticamente tudo o que pude acumular ao longo de minha vida, assim vou me dedicar a dar continuidade ao Instituto Ricardo Brennand, que inaugurei em setembro de 2002 no Recife, nele reunindo tudo o que colecionei ao longo dos anos.

Em 2017, ao completar noventa anos, ele contempla o seu passado e vem recordar as fábricas que projetou, ou modernizou, ao longo de sua caminhada de industrial pioneiro e obstinado.

Assim me transformei de construtor de fábricas em um administrador dos meus próprios sonhos.

Aqui neste Instituto Ricardo Brennand, que no mês de setembro de 2017 completou quinze anos de atividades, eu continuo acompanhando o caminhar desses sonhos, como a repetir os versos do poeta Carlos Pena Filho: “é do sonho dos homens, que uma cidade se inventa”.

Em 2017, ele se denominava um construtor de sonhos; para alegria e deleite de mais de dois milhões e meio de visitantes que, durante os últimos quinze anos, buscaram o Instituto Ricardo Brennand em terras de São João da Várzea.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 01 de fevereiro de 2018

LEVINO, O MESTRE VIVO

 

Do livro Carnaval do Recife (2000)

Levino Ferreira da Silva (Bom Jardim, Dez/1890 – Recife, Jan/1970)

Numa manhã de verão, levado por João Santiago, eu conheci o Mestre Vivo. Morava na Rua Nossa Senhora da Saúde, no Cordeiro, e me pareceu uma figura simples, conversando com algo de ironia em suas observações. Era um tipo de mulato baixo, mais para gordo, tinha a camisa por fora das calças, trazia no rosto as marcas da varíola e usava um chapéu de massa, mesmo dentro de casa, complementando, assim, o tipo comum do nosso homem da zona da Mata.
 
Estava eu diante do Rei do Frevo! O lendário Mestre Vivo!
 
Ninguém foi maior do que Levino Ferreira da Silva, no gênero Frevo-de-Rua, ou, como preferia ele, a Marcha-Frevo.
 
Nisso estão concordes outros nomes de nossa música, como Capiba, Luiz Bandeira, José Menezes, Edson Rodrigues, Mário Mateus, Mário Guedes Peixoto, Clóvis Pereira, Ademir Araújo, Dimas Sedícias, Duda (José Ursicino da Silva) e uma infinidade de outros monstros sagrados do nosso frevo instrumental.
 
Nascido na cidade pernambucana de Bom Jardim, em dois de dezembro de 1890, Levino Ferreira da Silva teve o seu aprendizado musical na banda de música de sua terra natal. Foi o seu primeiro professor o mestre Pompeu Ferreira, então responsável pela banda musical Vinte e Dois de Setembro, e a trompa o seu instrumento de iniciação com o qual se apresentava a partir dos oito anos de idade.
 
Em 1910, Levino Ferreira já era conhecido como exímio instrumentista daquela região do Agreste pernambucano, sendo o seu concurso solicitado pela cidade de Queimadas, hoje Orobó, onde fora reger a banda musical local. Dois anos depois sua cidade natal, Bom Jardim, o convoca para reger a banda musical Vinte e Dois de Setembro, a mesma que serviria de conservatório quando dos seus primeiros estudos. São desta época as suas primeiras composições. Dobrados, músicas sacras para as festas dos santos padroeiros, marchas de procissões, choros, valsas, fazem parte do repertório dos seus primeiros anos. O frevo, ou marcha-carnavalesca pernambucana, como era conhecido, até então não fazia parte de sua bagagem musical, pois este gênero só veio a ser conhecido a partir de 1919 quando da sua primeira viagem ao Recife.

“Ultimo Dia” de Levino Ferreira

 

 

Entre 1920 e 1935, dirigiu a Banda Musical Independência da cidade de Limoeiro, para onde foi levado por José Gonçalves da Silva Júnior (Zumba), outro monstro sagrado, compositor de frevos-de-rua e de outros gêneros musicais. Em 1930, suas músicas já eram bastante conhecidas no Recife, sendo editadas pela Casa Azevedo Júnior e executadas por todos os pioneiros daquela época.
 
É então que Levino Ferreira vem a ser conhecido pelo apelido que o consagrou ao longo da vida: Mestre Vivo.
 
A versão é do próprio Levino Ferreira. Era ele mestre da banda de música de Limoeiro, quando sofreu um ataque de catalepsia. Tomado por morto, com uma respiração imperceptível, foi o seu corpo colocado num ataúde, ao mesmo tempo em que a comoção tomava conta da cidade e das redondezas. Tarde da noite, quando familiares e amigos pranteavam o seu desaparecimento, eis que o morto voltou a si e, sentando-se no caixão exclamou:

– Minha gente querem me enterrar vivo!

Ao susto do início, seguiu-se a alegria, o velório transformou-se em carnaval e um apelido marcou o episódio: Mestre Vivo.
 
Excelente musicista, conhecendo todos os instrumentos de uma banda de música, Levino Ferreira tornou-se um verdadeiro mestre. Já em Limoeiro, ensinava piano, violino, bandolim, saxofone, trombone, clarineta, violão, dentre outros. Foi a profissão de mestre que o ajudou quando de sua transferência para o Recife, para onde veio a convite de Zumba (José Gonçalves da Silva Júnior) no início dos anos trinta, a fim de integrar a grande orquestra da PRA 8 – Rádio Club de Pernambuco, então dirigida por Nelson Ferreira, onde iniciou-se como primeiro trombone. Conhecido por suas habilidades como instrumentista passou a integrar, anos depois, o quarteto de saxofones Ladário Teixeira; formado por Felinho (Félix Lins de Albuquerque), Antônio Medeiros, Zumba e o próprio Levino.

Discografia em 78 R.P.M.

Autor de outros gêneros musicais, inclusive da A Dança do Cavalo Marinho (fantasia para orquestra sinfônica executada internacionalmente), foi no frevo instrumental que Levino Ferreira veio a notabilizar-se e tornar-se conhecido em outros centros, por suas gravações no Rio de Janeiro em discos 78 rotações por minuto.

 

Da sua extensa discografia anotamos: Satanás na Onda, selo Odeon (nº 11.200-B), gravado em 30 de janeiro de 1935; Diabo solto, Victor, nº 34.142-B, Diabos do Céu, 10 de dezembro de 1936; Diabinho de saia, Victor, nº 34.294-B, 10 de janeiro de 1938, Diabos do Céu; Mexe com tudo, Victor, nº 34.706-A, 13 de dezembro de 1940;  Segura esse diabinho, Victor, nº 34.855-B, Passos e sua orquestra, 8 de novembro de 1941; Cadê você, Victor, nº 80.0141-A, 11 de outubro de 1943, Zacarias e sua orquestra; Olha a beliscada, Victor, nº 80.0234-B, Zacarias e sua orquestra, 2 de outubro de 1944; A cobra está fumando, Victor, nº 80.0355-B, Zacarias e sua orquestra, 26 de setembro de 1945; Entra na fila, Victor, nº 80.0474-B, Zacarias e sua orquestra, , 6 de setembro de 1946; Chegou sua vez, Victor, nº 80.0545-B, Zacarias e sua orquestra, 13 de agosto de 1947; Com essa eu vou, Victor, nº 80.0111-B, Zacarias e sua orquestra, 17 de agosto de 1949; Solta o brotinho, Odeon, nº 12.984-B, Raul de Barros e sua orquestra, 30 de dezembro de 1949;  Macobeba vem aí, Continental, nº 16.119-A, Severino Araújo e sua Orquestra Tabajaras, 30 de setembro de 1949;  Lágrimas de Folião, Victor, nº  80.0707-A, Zacarias e sua orquestra, 6 de setembro de 1950; Último Dia, Continental, nº 16.321-A, Severino Araújo e sua Orquestra Tabajaras, lançado em janeiro de 1951; O Tubarão, frevo-canção, Victor, nº 80.0833-B, Carlos Galhardo, 2 de agosto de 1951; Carlos Avelino no frevo, Victor, nº 80.1028-B, Zacarias e sua orquestra, 25 de agosto de 1952; Retalhos de Saudade, Continental, nº 16.492-A, Orquestra Paraguarí do Rádio Jornal do Comércio, janeiro de 1952; Barulho no salão, Odeon, nº 13.372-B, Osvaldo Borba e sua orquestra, 7 de outubro de 1952; Pororoca, Odeon, nº 13.884-B, Jonas Cordeiro e sua orquestra, 12 de agosto de 1955; Aperta o passo, Odeon, nº 14.105-A, Jonas Cordeiro e sua orquestra, 22 de agosto de 1956; É pra quem pode, Victor, nº 80.0832-A, Zacarias e sua orquestra, 1º de agosto de 1951; Vassourinhas do Levino, Victor, nº 80.1514-A ( o título original desta composição é Vassourinhas está no Rio), Zacarias e sua orquestra, 19 de agosto de 1956; Agüenta o cordão, Odeon, nº 14.557-A, 22 de  outubro de 1959, Osvaldo Borba e sua orquestra;  Não adianta chorar, Victor, nº 80.1701-A, Zacarias e sua orquestra, 5 de setembro de 1956; Papa fila, Victor, nº 80.1891-A, Zacarias e sua orquestra, 5 de setembro de 1957; O pau cantou, Continental, nº 17.738-B, Severino Araújo e Orquestra Tabajaras, lançado em outubro de 1959; são alguns exemplos de sua discografia em 78 R.P.M.
 
Em 18 de dezembro de 1975, através da Fábrica Rozenblit, fui responsável pela produção do LP-90008, com o título O Frevo Vivo de Levino Ferreira, fruto de uma pesquisa minha com João Santiago e gravado pela competência da Orquestra do Maestro José Menezes, no qual estão reunidos doze dos maiores sucessos do Mestre Vivo.
 
Falecido em 9 de janeiro de 1970, Levino Ferreira contou ainda com outro LP reunindo sua obra, produzido pelo radialista Hugo Martins para o Centro da Música Carnavalesca de Pernambuco, gravado pela Orquestra do Maestro Duda em 1990.
 
Seu frevo Último Dia, depois que foi escolhido pelo autor destas obras como abertura e vinheta do Frevança, concurso patrocinado pela Rede Globo Nordeste e Fundação de Cultura Cidade do Recife, a partir de 1979, passou a ser o mais executado em nossos dias.
 
Em 1985 foi a vez de Luiz Bandeira homenagear o Mestre Levino, em composição gravada por Claudionor Germano no disco O Bom do Carnaval, Som Livre LP nº 4096066-B:

Mestre Levino
Você está presente
Alegrando a gente
E todo o carnaval

Seu frevo é sempre esperado
Quando é tocado, vejo o mundo virar
“Mexe com tudo”, “Faz a cobra fumar”
E no “Último dia” ninguém quer parar} bis

Olha aqui minha gente!
Quem é bom não morre. 
Mestre Levino manda frevo do céu
A gente sabe quando o baile esfria
Toca um frevo dele e vira fogaréu } bis


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 25 de janeiro de 2018

NELSON FERREIRA, O DONO DA MÚSICA CARNAVALESCA

 

 

Na semana que passou alguns jornais da terrinha publicaram substanciosas notícias acerca do saudoso compositor Nelson Ferreira, a quem eu sempre intitulei O Dono da Música do seu tempo. Autor de clássicos inesquecíveis e ainda hoje presentes em nosso cotidiano, como Evocação n. º 1, Come e dorme, Gostosão, Gostosinho e Gostosura, Diga-me, Chora Palhaço, Juro, Nelson Ferreira completaria quarenta anos de falecido neste dezembro de 2016.

Nelson Heráclito Alves Ferreira, pernambucano do Bonito, nasceu a 9 de dezembro de 1902 e faleceu em 21 de dezembro de 1976, veio a ser um dos donos da música em Pernambuco; posição ocupada na segunda metade do século XIX por Francisco Libânio Colás e, nos primeiros anos do século XX, por Euclides Fonseca.

O seu reinado teve início, ainda na primeira década do século vinte, nos pianos dos cinemas onde conquistou a sua consagração como autor das mais belas valsas de sua época. Grande parte de sua obra para piano foi editada pela Secção de Música de Dantas Bastos & Cia., dentro de sua Coleção Mauricéia, então situada na Rua Nova nº 95, depois sucedida pela Casa Parlophon.

Como regente dessas orquestras (piano, dois violinos, sete clarinetos, violoncelo, contrabaixo, flauta, trompa, trompete, bateria), Nelson reinou no seu tempo. Como pianista notabilizou-se com a composição de valsas, algumas até recebendo letras e sendo gravadas por gente famosa, como Francisco Alves, que em 1939 gravou Diga-me e Minha adoração.

Mas foi para o nosso Carnaval que Nelson Ferreira veio a ser o mais fértil dos compositores pernambucanos, sendo constante a sua contribuição, desde os tempos da primeira gravação em nosso carnaval, Borboleta não é ave, frevo por ele composto em 1922, tendo como parceiro J. Borges Diniz, para o Bloco Concórdia. Foi esta a primeira marcha-pernambucana preservada em acetato, em disco lançado em 1923, numa gravação do Bahiano(Manuel Pedro dos Santos) para o selo Odeon nº 122384, acompanhado pelo Grupo do Pimentel (Ernesto Pimentel).

 

 

Este colunista fuubânico com Nelson Ferreira

Nelson Ferreira foi a mola mestra de animação do carnaval não só do Recife como de toda a região, graças a sua participação na direção artística da Rádio Clube de Pernambuco, onde era responsável pelas chamadas “Revistas Carnavalescas” e pela importância de sua grande orquestra de ritmos carnavalescos, que contava com o concurso dos mais importantes instrumentistas da região.

Pela etiqueta Mocambo, onde estreou em 1955 com o frevo de rua “Come e dorme” (nº 15.000), Nelson Ferreira fez sucesso com a série de LPs, gravados por Claudionor Germano em 1959, O que eu fiz e você gostou (LP 40039) seguindo-se do O que faltou e você pediu. Suas composições foram reunidas pela mesma gravadora nos LPs: Meio Século de Frevo Canção, Meio século de frevo de bloco, Meio século de frevos de rua e Meio séculos de valsas; gravados em 1973 dentro da série 50 anos em sete notas.

Mas o seu maior sucesso ficou por conta de Evocação, uma marcha-de-bloco composta para o carnaval de 1957, que reinou soberana em todo Brasil. Nas ruas e salões, mesmo em casa humildes, era cantada a plenos pulmões por crianças e velhos, mulheres e homens, como a relembrar velhos carnavais dos anos vinte, onde pontificavam as figuras lendárias de Filinto de Moraes, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon, quando das saídas dos blocos carnavalescos mistos das Flores…, Andaluzas…, Pirilampos…, Apôis-Fum….

Evocação conquistou todo o Recife, espraiou-se por outras cidades do Nordeste e veio tomar conta do Rio de Janeiro onde foi absoluta naquele carnaval, desbancando recém lançados sucessos, como a marchinha carioca de João de Barro, Vai com jeito vai, e o samba do Dorival Caymmi, Maracangalha, recebendo o seguinte comentário de Edigar de Alencar, em seu livro O Carnaval Carioca através da música (1965): “Um frevo, do experimentado compositor pernambucano Nelson Ferreira, desperta grande interesse, embora Evocação, fiel ao título, fosse poética reminiscência do velho Recife e de seu famoso e pitoresco carnaval”.

Evocação foi o primeiro de uma série de seis frevos-de-bloco de Nelson Ferreira, com o mesmo título, merecendo o seguinte comentário do pesquisador Félix de Athayde no fascículo nº 44 da série Música Popular Brasileira,publicado pela Editora Abril em 1972: “Evocação nº 1 – Foi sucesso em todo o Brasil durante o segundo semestre de 1956, estourou no carnaval de 57 e hoje é considerado um clássico de nossa música popular. Para compor este frevo-de-bloco, Nelson Ferreira inspirou-se nas famosas figuras dos blocos da década de 20, hoje desaparecidos.”.

Além de alegres e contagiantes frevos-canções, Nelson Ferreira nos deixou ao morrer, em 21 de dezembro de 1976, os mais belos frevos instrumentais do nosso Carnaval: Gostosão (1949), Gostosinho (1950), Vem frevendo(1951), Come e dorme (1952), Isquenta muié (1954), Carro-chefe (1958), Qual é o tom (1958), Porta-bandeira(1959), Casá! Casá! (1955), Frevo no Bairro de São José (1960), Frevo no Bairro do Recife (1961), Quarta-Feira ingrata (1964), dentre muitos outros sucessos do nosso cancioneiro carnavalesco.

* * *

Evocação Nº 1, de Nelson Ferreira, com o Coral do Bloco da Saudade

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 18 de janeiro de 2018

OS SANTOS DO RIO GRANDE DO NORTE E O MANIFESTO DOS PERNAMBUCANOS DE 1646

 

Quando das Guerras com a Holanda (1630-1654), se transportou para o Nordeste do Brasil os propósitos da Guerra Religiosa, que grassava em Flandres e nos Países Baixos, entre católicos, calvinistas e luteranos desde a segunda metade do século XVI.

Em 16 de julho de 1645, na localidade de Cunhaú, no hoje município de Canguaretama, no Rio Grande do Norte, uma tropa holandesa de 200 homens, comandados pelo alemão Jacob Rabi, juntamente com um grande número de índios tapuias e potiguares, dizimaram sessenta e nove habitantes locais que assistiam a missa dominical na igrejinha de Nossa Senhora das Candeias.

Matança semelhante veio se repetir, dias depois, no povoado próximo, Uruaçu. Ali também foram dizimados Mateus Moreira e dezenas de outros homens; repetindo os índios os mesmos atos de antropofagia de Cunhaú devorando, ainda vivos, os corpos de suas vítimas retirando deles os olhos, a língua, o pênis e outras partes.

Por conta de tais atrocidades os portugueses passaram a fio de espada cerca de 200 outros índios que lutaram ao lado dos holandeses, quando da Batalha de Casa Forte (Recife), em dezessete de agosto de 1645.

Esses fatos motivaram um longo processo de canonização por parte da Igreja Católica, concluído recentemente pelo Papa Francisco, em solenidade acontecida no domingo 15 de outubro do ano de 2017, quando declarou santos os 30 Mártires de Cunhaú e Uruaçu, massacrados no Rio Grande do Norte em 16 de julho de 1645.

A cerimônia de canonização foi presidida pelo Papa Francisco e contou com 450 concelebrantes, assistida por aproximadamente 50 mil pessoas, que lotavam a Praça de São Pedro.

Na ocasião, o Papa Francisco declarou santos os mártires potiguares. após o pedido oficial durante a cerimônia celebrada pelo cardeal Ângelo Amato, prefeito da congregação da Causa dos Santos. “Que estes que agora são santos indiquem a todos nós o verdadeiro caminho do amor e da intercessão junto ao Senhor para um mundo mais justo“, declarou o Papa Francisco, em sua homilia.

Por conta desses episódios, a História nos relata o sentimento de abandono que veio a tomar conta dos Habitantes de Pernambuco que, em outubro de 1645, resolveram redigir um longo manifesto narrando o clima de terror que estavam vivendo sob o domínio holandês.

Manifesto dos cidadãos de Pernambuco publicado para sua defesa sobre a tomada de armas contra a Companhia das Índias Ocidentais, dirigido a todos os príncipes cristãos e particularmente aos Senhores Estados dos Países Baixos Unidos.

Numa das versões do documento, escrito em espanhol, como se depreende da cópia original, pertencente ao Instituto Ricardo Brennand do Recife, são descritas algumas das atrocidades perpetradas pelos holandeses e índios antropófagos, seus aliados, que a eles eram entregues, para alimentação, os corpos das vítimas dos seus soldados.

Sendo bem servidos pelos selvagens tapuias a quem animavam (os holandeses) como a tigres e lobos sangrentos, que diante dos seus olhos comiam os corpos mortos daqueles que haviam matado, feito tão abominável que nem os antigos tiranos cometeram tal crueldade. Nas praças onde paravam para repousar e comer os que os recebiam amigavelmente em suas casas eram mortos e como recompensa da sua cortesia e pagamento pela comida que aqueles cristãos haviam dado a cristãos, davam-se seus corpos como comida para os selvagens.

No ano seguinte (1646), o embaixador Francisco de Souza Coutinho, de posse de cópia desse manifesto, bem como dos relatórios de funcionários da Companhia, descontentes com o clima de terror insuflado pelo governo do Recife, fez publicar uma série de panfletos, traduzidos para o holandês, denunciando a triste situação em que viviam os habitantes de Pernambuco.

Não há infâmia tão grande nem descortesia que não tenham usado contra as mulheres; depois de terem abusado delas desonestamente, e as filhas aos olhos dos pais e as mulheres casadas na presença de seus maridos as davam como regalo aos selvagens, que depois de satisfazerem seus intentos bestiais, as matavam e comiam. É verdade que não era a maior crueldade matá-las, por que depois da infâmia de desonrá-las e violá-las, elas mesmas prefeririam a própria morte por acharem-se privadas de sua honra. Os ouvidos humanos têm horror de escutar tais coisas, mas os da Companhia tiveram olhos para vê-las e permitir tais crueldades, não apenas a um, mas a muitas de nossas pequenas crianças arrancaram os selvagens dos seios de suas mães. Assados e guisados como prato muito delicado. Comum entre eles um provérbio que dizia que os holandeses vieram ao Brasil para castigar os pecados dos portugueses, no que também concordamos e confessamos diante de Deus que bem merecemos tal castigo por nossos pecados, mas que tenham conosco segundo sua grande misericórdia e como um pai benigno que após haver castigado seus filhos lança o açoite ao fogo. Nossa perdição não foi apenas termos caído nas mãos de senhores cruéis e que tinham ódio mortal contra a nação (portuguesa), mas também extremamente apegados ao dinheiro; e passada toda a fúria sangrenta dedicaram-se com afinco a tomar-nos nossos bens justa ou injustamente.

Esses panfletos eram impressos em oficinas fictícias e distribuídos nas ruas, de modo a levantar a opinião pública contra os dirigentes da Companhia das Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã. Esta, por sua vez, incomodada com tamanho noticiário, veio à forra [levar a efeito uma vingança; desforrar-se, vingar-se], denunciado, pela imprensa, a deslealdade de Portugal e a duplicidade de D. João IV ao apoiar, de forma escusa, o movimento separatista de Pernambuco.

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 11 de janeiro de 2018

FREI CANECA, O MÁRTIR ESQUECIDO

 

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A execução de Frei Caneca (detalhe), óleo do pintor palmarense Murilo La Greca

Certa vez em visita ao Recife, o então governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, desejou conhecer os Montes Guararapes, onde visitou a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, e o monumento em honra ao mártir pernambucano Frei Joaquim do Amor Divino Caneca.

O levaram ao Largo das Cinco Pontas, onde se encontra um pequenino busto e o resto de parede com uma lápide em mármore, assinalando o local do seu suplício em 13 de janeiro de 1825.

Extasiado, indagou o visitante se era tudo que existia no Recife em memória de tão ilustre liberal, e ao obter a confirmação exclamou irritado: É muito pouco para um Grande Brasileiro!

Os tempos passaram e nada foi feito para avivar a memória do mártir maior da Confederação do Equador (1824), restringindo-se tudo ao pequenino busto em cimento, junto a um resto de muro no qual se encontra afixada uma placa em mármore, com inscrição em letras pretas maiúsculas, ali colocada pelo Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (sic) na data de dois de julho de 1917:

Neste largo foi espingardeado junto à forca, a 13 de janeiro de 1825, por não haver réu que se prestasse a garroteá-lo, o Patriota Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Republicano de 1817, e a figura mais notável da Confederação do Equador em 1824.

Nascido de uma família pobre do Recife, em agosto de 1779, Joaquim do Amor Divino Rabelo entrou para o convento carmelita de sua cidade em 1796. Ordenando-se em 1801, substituiu o seu nome de família pelo apelido dado a seu pai, que tinha a profissão de tanoeiro. Logo se notabilizou pelos seus conhecimentos de Retórica e Geometria, Direito, Filosofia Racional e Moral, com incursões nos estudos da mecânica e cálculo matemático. Foi membro da Academia do Paraíso, e teve participação inflamada no movimento que instalou a República em Pernambuco, em seis de março de 1817, tendo sido levado preso aos cárceres da Bahia, onde penou por quatro anos, sendo dele esses versos:

Não posso cantar meus males
Nem a mim mesmo em segredo;
É tão cruel o meu fado,
Que até de mim tenho medo.

Decretada a anistia pelas Cortes Portuguesas, em 1821, voltou frei Caneca ao Recife e, após o episódio da dissolução da Constituinte pelo imperador Pedro I, resolveu fundar o Typhis Pernambucano, principal divulgador das idéias liberais que viriam a ser defendidas pela Confederação do Equador (1824).

O jornal circulou entre 25 de dezembro de 1823 e 12 de agosto do ano seguinte, tendo sido impressas 29 edições, transformando-se no ideário dos liberais de então, partidários de Manoel de Carvalho Paes de Andrade.

Com a província de Pernambuco invadida pelas tropas imperiais, é proclamada, em dois de julho de 1824, a Confederação do Equador, movimento separatista de caráter republicano que mais uma vez põe em armas os liberais pernambucanos. Derrotados no Recife, os revoltosos iniciam penosa marcha em direção ao Ceará, episódio narrado com cores fortes por Frei Caneca no seu Itinerário. Presos e agrilhoados retornaram ao Recife, aonde o frade vem a ser condenado à forca em sentença expedida em 10 de janeiro de 1825.

Debalde o Cabido Metropolitano comparece em procissão ao Palácio do Governo pedindo a suspensão da pena. Em represália os cônegos negaram-se a desautorar suas ordens tornando nulo, perante o Direito Canônico, todos os atos que se seguiram.

A execução foi marcada para a manhã de 13 de janeiro de 1825.

Na prisão mais uma vez escreve versos, despedindo-se dos amigos e das suas filhas, por ele chamadas de “afilhadas das minhas entranhas”, dormira sereno a sua última noite e, na manhã seguinte, marchou com altivez em direção ao patíbulo.

Diante de tal cena o inesperado aconteceu: carrascos convocados para execução da pena capital negaram-se executá-la, pouco se importando com as promessas e com os suplícios que lhes foram imposto pela tropa.
Diante do impasse foi à pena transformada em execução por espingardeamento, o que aconteceu no Largo das Cinco Pontas, “por não haver réu que se prestasse a garroteá-lo”.

Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta
Quem está sempre a morrer.

Os seus restos mortais vieram a ser sepultados no Convento do Carmo, em local não determinado, o seu nome, porém, é hoje reverenciado pela grande maioria das capitais do Brasil, onde sempre existe uma Rua Frei Caneca, muito embora continue esquecido na terra que lhe serviu de berço.

E observem que existe em pleno funcionamento uma Comissão de Notáveis destinada a elaboração das Comemorações dos 200 anos da Revolução Republicana de 1817, instituída com “pompa e circunstância” pelo governador Paulo Câmara!

Que fez esta Comissão de Notáveis no transcurso da morte de Frei Caneca, um dos mártires de 1817 e a principal cabeça pensante da Confederação do Equador?


Leonardo Dantas - Esquina sexta, 29 de dezembro de 2017

VINTE ANOS SEM CAPIBA

 

Capiba no Galo da Madrugada

Parece que foi ontem, mas faz vinte anos que o nosso ídolo maior, Capiba, nos deixou na orfandade no último dia do ano de 1997, quando partiu para a eternidade.

Para o Vocabulário Pernambuco, de Francisco Augusto Pereira da Costa¹ , o adjetivo capiba tem o significado de “grande, volumoso, alentado”, podendo ainda ser entendido, também, como “chefe, dunga, mandão”, tal como foi usado pelo dicionarista Antônio Moraes Silva em carta dirigida ao desembargador Castro Falcão (1818): “Referiu-me José Bento Fernandes que um tal ‘Capiba dos Afogados’ tivera ordens de vir prender-me”.

No Recife das nossas vidas, porém, Capiba é algo palpável, real, bem vivo, alegre, que irradiava paz e amor, sendo festejado em qualquer lugar por homem, mulher, moça e, sobretudo, pelas crianças, como parte integrante da paisagem de sua cidade.

Este nosso Capiba, personagem de muitas estórias e alegria da gente pernambucana, herdara o apelido familiar do avô materno, Major Lourenço Xavier da Fonseca, juntamente com todos os seus irmãos – Sebastião, José, Severino, Maria, João, Pedro, Josefa, Antônio, Tereza e Hermann -, sobressaindo-se nacionalmente através de sua produção poética e musical, algumas delas com lugar de destaque no repertório da música erudita e popular brasileira.

Pernambucano de Surubim, onde nascera em 28 de outubro de 1904 e falecido no Recife, em 31 de dezembro de 1997, Lourenço da Fonseca Barbosa iniciou-se na banda musical de Taperoá (PB), onde o seu pai, Severino Atanásio de Souza Barbosa, atuava como regente. Inicialmente tocava trompa e, juntamente com os demais irmãos, passou a fazer parte da Filarmônica Lira da Borborema. Em 1914 a família transferiu-se para Campina Grande, onde o Mestre Severino Atanásio foi dirigir a Charanga Afonso Campos, passando o menino Capiba a dividir o seu tempo entre a música e o futebol.

 

O seu encontro com o piano só veio em 1920.

O instrumento existia em sua casa desde 1918, quando fora comprado pelo irmão Sebastião pela quantia de 200 mil réis, sendo, porém, privilégio dos irmãos mais velhos.

Como nono filho da família, Lourenço pouca atenção dava àquele móvel “com uma enorme dentadura, cheia de dentes pretos e brancos” … O piano era mais usado pela irmã Josefa, que aumentava a renda da família tocando na exibição de antigas produções do tempo do cinema mudo, apresentadas na tela do Cine Fox (Campina Grande – PB), estreladas por Pola Negri, Clara Bow, Charles Chaplin e Eddie Polo.

O jovem Lourenço não tinha grandes responsabilidades, dentro daquela família de músicos, até quando Josefa arranjou um noivo e marcou o casamento para 20 de maio de 1920.

Sem Josefa no Cine Fox, a renda da família iria sofrer uma enorme perda. Para contornar o problema, só restava ao Maestro Severino Atanásio substituir a pianista por um dos seus filhos que, apesar de músicos, não estavam afeitos ao piano.

Reunida a família, foram aparecendo os nomes dos possíveis substitutos. Um a um eram nomeados e, em atitude contínua, o velho maestro ia descartando-os. Assim surgiram os nomes de José Mariano, Severino, João e Pedro que, por trabalharem no comércio durante o dia, foram logo eliminados… Houve quem lembrasse os nomes de Lia e Tereza, mas já participavam da pequena orquestra do cinema tocando flauta…

Antes que fossem ventilados outros nomes, o chefe do clã decidiu: “Vai o Lourenço substituir Zefa no piano do Cinema Fox!”.

Não adiantaram as lágrimas do jovem, nem os apelos da bondosa mãe, a primeira lição começou ali mesmo, no ato de “nomeação” do novo pianista, com o mestre vociferando:

– Você tem de começar pelas escalas! Senão não vai tocar nada em tempo nenhum!

E assim começara o seu dedilhar: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, si, lá, sol, fá, mi, ré, dó ….
E o mestre continuava a sua lição, com os ares de quem não estava para brincadeiras:

– Quando chegar no terceiro dedo, você passa o polegar por baixo e pega a nota seguinte; a nota fá na escala de dó…

Das escalas vieram às valsas mais fáceis, primeiramente as de José Ribas, seguindo-se as de Alfredo Gama e, por último, as de Nelson Ferreira, que sempre foram as mais difíceis.
Uma, em especial, que tinha o título de Milusinha, perturbou por muitos meses o pianista iniciante que guardou por toda vida os seus acordes.

Em onze dias foram decoradas sete valsas, o bastante para a sua estreia no Cine Fox. A série cinematográfica Herança Fatal, estrelada por Eddie Polo, o galã da época, foi a sua prova de fogo; para isso contou com a ajuda das irmãs flautistas, Lia e Tereza, o que não impediu alguns atropelos durante a exibição.

Assim nasceu o pianista do cinema mudo, Lourenço da Fonseca Barbosa que veio tornar-se um grande amigo do instrumento, seu companheiro até o final dos seus dias, através do qual pôde compor peças antológicas que receberam a assinatura de Capiba.

Pianista de cinema, em Campina Grande e Paraíba (hoje, João Pessoa), transferindo-se em 1930 para o Recife, a fim de assumir um lugar conquistado por concurso no Banco do Brasil, integrou-se à vida artística quando da fundação da Jazz-Band Acadêmica. Logo em seguida vieram os sucessos, executados nos salões da época: Valsa Verde (1931), com versos de Ferreira dos Santos; É de tororó (1932), com letra de Ascenso Ferreira; E, se morrer o nosso amor? (1932), também em parceria com Ferreira dos Santos, seguindo-se de outros.

Em 1933, Capiba que, dez anos antes houvera composto uma música carnavalesca sob o título Vela Branca no frevo (nunca gravada), resolveu concorrer com É de amargar, em concurso promovido pelo Diario de Pernambuco, conquistando assim o primeiro lugar e talvez o seu maior sucesso.

Quando o disco apareceu no comércio, numa gravação de Mário Reis e os “Diabos do Céu”, realizada em 15 de dezembro daquele ano (RCA Victor n.º 33752-A), sua letra e melodia logo caiu no gosto do povo e assim transformou-se em um dos mais cantados frevos do carnaval pernambucano.

Eu bem sabia
Que este amor um dia
Também tinha seu fim
Esta vida é mesmo assim.
Não pense que estou triste,
Nem que vou chorar.
Eu vou cair no frevo,
Que é de amargar.

Começa assim a sua carreira de campeão dos carnavais pernambucanos, consagrando-se o mais importante compositor de frevos-canção de todos os tempos.

Foram mais de uma centena de músicas compostas para a festa maior do povo pernambucano, impulsionadoras da alegria das massas que acompanham as orquestras nas ruas, nos salões ou mesmo através do rádio e onde quer que exista um folião.

Capiba, como afirmou Hermilo Borba Filho (Diário da Noite, 10 de março de 1972), “é uma esplêndida figura humana e um excelente compositor. Na minha vida sentimental – como na de milhões de pernambucanos de várias gerações – sua música marcou diversos instantes com frevos, maracatus, valsas, canções, sambas. Creio que nunca houve um ano, a partir de 1934, em que não localizasse um acontecimento sentimental por uma das suas composições. Capiba é mais do que um músico e um poeta: é o carnaval de Pernambuco de chapéu de sol aberto”.

Para Guerra Peixe era ele “o mais importante e compositor vivo do Norte”, lembrando de tê-lo conhecido no final dos anos quarenta, quando chegou ao Recife para trabalhar no Rádio Jornal do Commercio:

Ele estudou comigo. Aprofundou seus conhecimentos musicais, a ponto de compor obras eruditas para flauta, que foram executadas no Chile e na Argentina. Hoje é um músico completo, mas continua estudando, trabalhando e pesquisando. E Capiba, em minha opinião, não é apenas um músico sumamente importante dentro do panorama da música popular brasileira. Antes de qualquer coisa é um artista que se interessa a por tudo quanto acontece no campo da arte, no Brasil e no mundo. Não é apenas o autor de frevos memoráveis e outros tipos de música que marcaram época. Transcende tudo isso. É um homem culto, humilde, pesquisador incansável, eclético: tanto aprecia um samba-canção, como sabe ouvir música erudita. Beethoven é uma de suas manias. […] Há um fato interessante ligado à vida de Capiba, como mestre de orquestra: foi ele quem lançou, em pleno carnaval carioca, o sistema da orquestra tocar sem parar, sem intervalos que interrompiam o baile de carnaval [1933]. E, por falar em carnaval, Capiba é um compositor tão ligado ao gosto do povo, que é praticamente o campeão dos carnavais pernambucanos dos últimos trinta anos. (In Nova história da música popular brasileira – Capiba e Nelson Ferreira. Rio: Ed. Abril, 1978).

Dentro destas notas de saudade vale recordar alguns dos seus sucessos carnavalescos, editados em disco 78 rotações por minuto, segundo levantamento do pesquisador Renato Phaelante, da Fundação Joaquim Nabuco:

Aguenta o rojão, marcha, Colúmbia n.º 22201, matriz 381465, Breno Ferreira, março 1933; É de amargar, frevo-canção, Victor n.º 33752, matriz 65915, Mário Reis, janeiro 1934; Vou cair no frevo, frevo-canção, Victor n.º 33910, matriz 79830, Almirante e orquestra dos Diabos do Céu, março 1935; Mande embora essa tristeza, frevo-canção, Victor n.º 34019, matriz 80068, Araci de Almeida, janeiro 1936; Quem vai pra Farol é o bonde de Olinda, frevo-canção, Colúmbia, Coro Colúmbia, janeiro 1937; Sim ou não, frevo-canção em parceria com Fernando Lobo, Colúmbia n.º 8267, matriz 1141, Odete Amaral e Mara, fevereiro 1937; Júlia, frevo-canção, Odeon n.º 11581, matriz 5768, fevereiro 1938; Casinha pequenina, frevo-canção, Victor n.º 34410, matriz 80971, Carlos Galhardo, janeiro 1939; Quem tem amor não dorme, frevo-canção, Victor n.º 34412, Coro RCA Victor, fevereiro 1939; Gosto de te ver cantando, frevo-canção, Victor n.º 34557, matriz 33276, Ciro Monteiro, janeiro 1940; Quero essa, frevo-canção, Victor n.º 34557, matriz 33274, Ciro Monteiro, janeiro 1940; Linda flor da madrugada, frevo-canção, Victor n.º 34713, matriz 52091, Ciro Monteiro, fevereiro 1941; Não sei o que fazer, frevo-canção, Victor n.º 34713, matriz 52090, Odete Amaral, fevereiro 1941; Quem me dera, frevo-canção, Victor nº.800543, matriz 052412, Ciro Monteiro, janeiro 1942; Dance comigo, frevo, Victor n.º 34857, matriz 052413, Ciro Monteiro, janeiro 1942; Teus olhos, frevo-canção, Victor n.º D 244, Carlos Galhardo, março 1943; Não aguento mais, frevo-canção, Victor n.º 800234, matriz S078058, Nelson Gonçalves, dezembro 1944; Que bom vai ser, frevo-canção, Victor n.º 800233 , Nelson Gonçalves, dezembro 1944; Quando é noite de lua, frevo-canção, Victor n.º 800352, matriz S 078300, Nelson Gonçalves, dezembro 1945; Segure no meu braço, frevo-canção, Victor n.º 800351, matriz S 078298, Nelson Gonçalves, dezembro 1945; E… nada mais, frevo-canção, Victor n.º 800471, matriz 5078589, Gilberto Milton, dezembro 1946; O tocador de trombone, frevo-canção, Victor n.º 800474, matriz S 078595, Carlos Galhardo, dezembro 1946; Que será de nós, frevo-canção, Victor n.º 800543, matriz S 078767, Nelson Gonçalves, novembro 1947; Morena cor de canela, frevo-canção, Victor n.º 800543, matriz S 078766, Nelson Gonçalves, novembro 1947; Já vi tudo, frevo-canção, Star 76, matriz 76-A, Albertinho Fortuna, janeiro 1949; Quando se vai um amor, frevo-canção, Victor, Carlos Galhardo, janeiro 1950; Você faz que não sabe, frevo-canção, Victor n.º 800708, matriz S 092744, Francisco Carlos, novembro 1950; É frevo meu bem, frevo-canção, Continental n.º 16322, matriz 2426, Carmélia Alves, janeiro 1951; Nos cabelos de Rosinha, frevo-canção, Victor n.º 801029, matriz SBO 93427, Francisco Carlos, novembro 1952; Deixa o homem se virar, frevo-canção, Continental n.º 16493, matriz C- 2768, Carmélia Alves, janeiro 1952; A pisada é essa, frevo-canção, Mocambo, Carmélia Alves, dezembro 1953; Ai se eu tivesse, frevo-canção, Victor n.º 801373, matriz BE4UB-0552, Francisco Carlos, novembro 1954; Ninguém é de ferro, frevo-canção, Todamérica n.º TA 5502, matriz TA 750, Carmélia Alves, novembro 1954; Vamos pra casa de Noca, frevo-canção, Continental n.º 16878, matriz C 3217, Carmélia Alves, fevereiro 1954; O que é que eu vou dizer, frevo-canção, Victor n.º 801515, matriz BE 5VB- 0852, Nelson Gonçalves, novembro 1955; Amanhã eu chego lá, frevo, Copacabana n.º 5529, matriz 1378, Carmélia Alves, fevereiro 1956; Nem que chova canivete, frevo-canção, Copacabana n.º 5699, matriz 1725, Carmélia Alves, janeiro 1957; À procura de alguém, frevo-canção, Victor n.º 802018, matriz 1352 PB-0498, Expedito Baracho, dezembro 1958; Modelos de Verão, frevo-canção, Mocambo n.º 15189, matriz R 897, Expedito Baracho, janeiro 1958; Segure o seu homem, frevo-canção, Mocambo n.º 15252, Mêves Gama, janeiro 1959; A própria natureza, frevo-canção, Victor n.º 802161, matriz 1352-PB-0811, Expedito Baracho, janeiro 1960; Levanta a poeira, frevo, Todamérica n.º TA 5945, matriz TA 100319, Orquestra Leão do Norte, gravado em 8 de novembro de 1960; Frevo dos namorados, frevo-canção, Mocambo n.º 15292, Claudionor Germano, janeiro 1960; Encontro marcado, frevo-canção, Mocambo n.º 15332, matriz R 1183, janeiro 1961; Frevo da saudade, frevo-canção, Mocambo n.º 15394, Joaquim Gonçalves, janeiro 1962; Madeira que cupim não rói, frevo-de-bloco, Mocambo n.º 15474, matriz R 1466, Bloco Mocambinho da Folia, janeiro 1963; É de Maroca, frevo-canção, Mocambo n.º 15478, Carmélia Alves, janeiro 1963.

No reinado do LP, quando os 78 RPM caíram em desuso, Capiba veio brilhar dentro da série da Rozenblit, gravada por Claudionor Germano, orquestra e coro sob a regência de Nelson Ferreira – Capiba – 25 anos de frevo (n.º 60044-1959); Carnaval começa com C (n.º 60106-1961); Frevo alegria da Gente (n.º 6006-1961) -; reeditados em 1974 sob o título Carnaval de Capiba, três volumes reunindo sua produção carnavalesca de 1934 a 1974.

Mas os seus sucessos continuaram presentes no repertório dos foliões, como Cala boca menino (1966), Oh Bela! (1970), De chapéu de sol aberto (1972), Frevo e ciranda (1974), Juventude dourada (1976), Trombone de prata (1979), só para citar alguns dos seus frevos mais cantados.

Onde houver carnaval ele estará presente…

Parece que o vemos contagiando a massa com a simpatia do seu sorriso e as mãos sempre acenando para os foliões mais entusiasmados, como a repetir os seus próprios versos em “É hora de frevo” (1970):

Quem quiser me ver
Me procure aqui mesmo
Quando chega o carnaval} bis
Seja noite ou dia
Aqui tudo é alegria
E alegria não faz mal

É aqui que eu danço
Aqui é que eu canto
Aqui é que eu faço
Com desembaraço
Misérias no passo!
Na quarta-feira,
Quando tudo terminar!
Eu espero mais um ano,
Até o frevo voltar!

____________________________

COSTA, Francisco Augusto Pereira da Costa. Vocabulário Pernambucano. Recife: secretaria de Educação do Estado – Departamento de Cultura, 1976. (Coleção Pernambucana, v. 2)


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 20 de dezembro de 2017

O POVO BRASILEIRO

 

Nem preto, nem branco, nem índio, nem nipônico, europeu ou qualquer outra etnia conhecida…, mas tão somente brasileiro.

Trata-se de uma figura única, formada por diferentes povos, um tipo híbrido, formado pelo cruzamento de povos diferentes, que hoje ocupa esse país continente, “abençoado por Deus e bonito por natureza“.

Passados mais de quinhentos anos de sua descoberta pelos portugueses, o Brasil apresenta-se com um biótipo próprio de sua gente, que em nada se parece com o português colonizador; o índio que já habitava a terra e o negro trazido da África como escravo para aqui construir o país-continente dos nossos dias.

O brasileiro, como bem afirma Darci Ribeiro, tem a cara do povo brasileiro; ele não se parece nem com o português, nem com o índio, nem muito menos com o negro. Trata-se de um povo de identidade própria”.

Na verdade, um povo de mestiços, formado pelo cruzamento de várias raças, com influência de levas de colonizadores diversos, chegados em diferentes épocas, que transformaram o Brasil numa imensa democracia racial, com valores, usos e costumes diversos de quaisquer outros povos.

A mestiçagem de nossa gente, já registrada por Joaquim Nabuco, quando da publicação de “O Abolicionismo” (Londres: 1883):

“Nós não somos um povo exclusivamente branco, e não devemos, portanto, admitir essa maldição da cor; pelo contrário, devemos tudo fazer para esquece-la” (p. 22) – estabelece que, ao contrário de outros países, como nos Estados Unidos da América, a condição de liberto não impedia ao ex-escravo galgar os patamares da pirâmide social, e esclarece na mesma obra:

No Brasil, ao contrário: a escravidão ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, nunca desenvolveu a prevenção da cor, e nisso foi infinitamente mais hábil. Os contatos entre aquelas, desde a colonização primitiva dos donatários até hoje, produziram uma população mestiça, como já vimos, e os escravos ao receberem a sua carta de alforria, recebiam também a investidura de cidadão. Não há assim entre nós castas sociais perpétuas, não há mesmo divisão fixa de classes. O escravo, que como tal praticamente não existe para a sociedade, […] é no dia seguinte à sua alforria um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos, e o mesmo grau de elegibilidade. Pode mesmo, ainda na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez mesmo quem sabe? – algum filho do seu antigo senhor. Isso prova a confusão de classes e indivíduos, e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos brasileiros, se se pode assim dizer, mestiços políticos, nos quais se combatem as duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado. (p. 174-75).”

Isso porque, como bem observou recentemente Darci Ribeiro, “no Brasil a miscigenação nunca foi crime, nem pecado, daí o surgimento de um povo novo, o povo brasileiro, que em nada se parece com o português, o negro ou o índio”.

Já no passado tivemos o ancestral de quase todos nós pernambucanos, o nosso Jerônimo de Albuquerque (O Torto), cunhado do primeiro donatário, Duarte Coelho Pereira, que em seu testamento, firmado em Olinda, em 13 de novembro de 1884, reconhece como filhos onze concebidos de sua mulher legítima, Filipa de Melo; oito com a índia Maria do Espírito Santo; cinco com outras mulheres, uma das quais Apolônia pequena, mãe do seu filho Felipe de Albuquerque, deixando dúvidas ainda sobre uma filha tida com uma de suas escrava, de nome Maria, e de uma outra, Jerônima, “que se criara em sua casa e que foi tida por sua filha, mas que Deus sabia a verdade do ocorrido”.

Assim, Jerônimo de Albuquerque foi pai de 24 filhos, devidamente reconhecidos, entre legítimos e legitimados, o que lhe valeu o apelido entre os historiadores brasileiros de “Adão Pernambucano“.

Da descendência de Jerônimo de Albuquerque originaram-se algumas das mais tradicionais famílias pernambucanas, como Cavalcanti Albuquerque, Fragoso de Albuquerque, Albuquerque Maranhão, Siqueira Cavalcanti, Pessoa de Albuquerque, dentre outras, justificando assim o apelido de Adão Pernambucano, dado no decorrer dos séculos ao seu patriarca.

Como bem dizia na época Caspar van Baerle, “não existe pecado do lado de baixo do Equador” e, nos nossos dias, Chico Buarque de Holanda acrescentou: “vamos fazer um pecado, rasgado, suado, a todo vapor…”.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 13 de dezembro de 2017

O PRECIOSO, NOSSO PRIMEIRO JORNAL

 

Em Pernambuco, a primeira tentativa de criação de um jornal informativo de circulação popular veio surgir com a Revolução Republicana de 1817, quando o advogado José Luís de Mendonça, utilizando-se da experiência do tipógrafo inglês James Pinches e dos tipos importados no ano anterior por Ricardo Fernandes Catanho, auxiliado por “dois frades e um marinheiro francês”, veio a editar em 28 de março daquele ano:

O Preciso dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco etc.” Impresso na “Oficina da República de Pernambuco, 2ª vez Restaurado”, em clara alusão à Restauração Pernambucana de 27 de janeiro de 1654.

As questões sobre liberdade de pensamento, de religião e de expressão, bem como a inamovibilidade da magistratura, a plena capacidade dos estrangeiros aqui residentes e a liberdade progressiva do elemento escravo, eram preocupações dos “patriotas” de 1817, que os fizeram constar no projeto de constituição (Lei Orgânica) datado de 29 de março daquele ano.

Os sonhos de uma República democrática vieram a ser debelados pelas tropas leis ao Príncipe Dom João, em 19 de maio de 1817, quando a revolução veio a ser dizimada pelas tropas do general português Luís do Rego Barreto. A semente libertária, porém, veio brotar quando da Convenção do Beberibe (1821) e Confederação do Equador (1824), mantendo-se viva em episódios outros do passado desta “Nova Roma de bravos guerreiros”.

À publicação d’ O Preciso, de José Luís de Mendonça, se seguiram os jornais: Aurora Pernambucana (1821), Segarrega (1821), Relator Verdadeiro (1821), Gazeta Extraordinária (1822), Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco (1823), O Caheté (1823) e O Thyphis Pernambucano (1823), este último redigido pelo frei Joaquim do Amor Divino Caneca que, em janeiro de 1825, veio pagar com a vida pela divulgação de um ideário republicano defendido em seu jornal.

José Luiz de Mendonça foi uma espécie de jurista oficial do governo revolucionário. O viajante francês L.F.de Tollenare o descreve como um homem rico e inteligente, com uma reputação de ser alguém honesto e com prestígio nas classes abastadas. Era um crítico da administração portuguesa, mas também um moderado.

Acrescenta o mesmo Tollenare: “O sr. José Luís de Mendonça teve a ingenuidade de ficar na cidade e de se apresentar ao almirante, que o mandou prender”.

Ao depor no Processo n.º 7.058, Inquisição de Lisboa, em que figura como denunciado o padre Bernardo Luiz Ferreira Portugal (1755-post1832), diz José Luiz de Mendonça ser “advogado dos Auditórios Eclesiástico e Secular, tenente do Regimento de Cavalaria de Olinda, casado, natural de Porto Calvo (Alagoas), morador na Vila de Santo Antônio do Recife, 31 anos de idade”. No “Livro (1º) dos Termos das Entradas de Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento do Bairro de Santo Antônio 1791-1833”, o seu nome aparece nas fls. 36: “13 de abril de 1799, José Luiz de Mendonça e sua mulher D. Vitoriana Pereira da Silva”.

Condenado por sua participação na República de Pernambuco, veio a ser arcabuzado, em 12 de junho de 1817, junto com os patriotas Domingos José Martins e o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro, no Campo da Pólvora da cidade do Salvador (Bahia).

A esses movimentos não ficara alheio um recifense do bairro de Santo Antônio, nascido em 10 de maio de 1798, que, após sua formação de liberal no Seminário de Olinda, ingressou no mundo das artes gráficas fundando o que veio a ser o primeiro grande jornal diário da província: Antonino José de Miranda Falcão.

Simpatizante dos princípios democráticos contidos no ideário Confederação do Equador (1824), processado e acusado de traição pelo Tribunal de Alçada, por seu envolvimento com frei Caneca e com Cipriano José Barata (1762-1838), Antonino José de Miranda Falcão veio a fundar, em 7 de novembro de 1825, o Diario de Pernambuco, hoje o mais antigo noticioso em circulação não só da América Latina como nos países da comunidade de língua portuguesa.

Quando da deflagração da República de Pernambuco, em 6 de março de 1817, os sentimentos nativistas forjados por ocasião da Restauração Pernambucana de 1654 continuavam bem presentes nos pronunciamentos dos patriotas de então. Assim é que O Preciso etc., o primeiro jornal a circular nesta província, redigido por José Luiz de Mendonça, narrando os fatos acontecidos quando da eclosão do movimento, tem como impressor a Off. da República de Pernambuco, 2ª vez restaurado, numa alusão clara à Restauração Pernambucana de 27 de janeiro de 1654.

No meio da população ainda permanecia o espírito nativista formado pela Restauração Pernambucana, em 1654, e posto em prática na deposição do Xumbergas (Jerônimo de Mendonça Furtado) em 1666, na posteriormente chamada Guerra dos Mascates, movimento republicano de caráter separatista encabeçado por Bernardo Vieira de Melo, em 1710.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 06 de dezembro de 2017

O NOVO E VELHO SÃO LUIZ

 

Domingo último, dia 4 de dezembro, voltei ao Cine São Luiz (sic) da minha juventude para assistir o lançamento do filme documentário 1817 – A Revolução Esquecida, da cineasta Tisuka Yamasaki, patrocinado pelo Ministério da Educação, que tem a frente o pernambucano José Mendonça Filho.

Confesso que, apesar da importância de uma produção inusitada, que tem por objetivo a divulgação junto às escolas de todo país a importância de Pernambuco na proclamação da República de 1817, me veio momentos de recordação de um tempo em que o Cinema de Luiz Severiano Ribeiro era a sala de visitas da cidade do Recife.

Recordo de suas palavras no folheto inaugural daquela casa de espetáculos:

A inauguração de um novo cinema é sempre motivo de grande contentamento, a inauguração do São Luiz, de uma forma particular, enche-nos de e bem compreensível orgulho, é que ao entregar grande púbico pernambucano um dos mais luxuosos e bem aparelhados cinemas do Brasil, colocamos a cidade do Recife no âmbito cinematográfico, numa posição de igualdade, se não de superioridade, em relação aos grandes centros do território nacional.” – Luiz Severiano Ribeiro

Com essas palavras o empresário Luiz Severiano Ribeiro iniciava o texto do convite para a inauguração do Cine São Luiz do Recife, em acontecimento ocorrido em 6 de setembro de 1952, que, por mais de meio século, esteve entre os mais belos e luxuosos cinemas do Brasil.

Nos dias de hoje, o tradicional cinema da Rua da Aurora, bem no centro do Recife, voltara a sua finalidade primitiva graças ao interesse do Governo do Estado, que pretende desapropriou o imóvel e seus pertencentes, e nele instalou uma espécie de Cinemateca, sob a administração da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – FUNDARPE.

O Cine São Luiz (sic.) foi construído no início da segunda metade do século XX utilizando-se a criatividade de profissionais pernambucanos – Américo Rodrigues Campello, Maurício Coutinho, Oscar Dubeux Neto, Lula Cardozo Ayres e Pedro Correia de Araújo -, responsáveis que foram pela construção, acústica, instalações, ambientação e decoração da nossa mais importante sala de espetáculo.

Segundo depoimento do seu proprietário, na noite de sua inauguração, “tudo no São Luiz foi cuidadosamente estudado antes de se proceder a sua realização, de forma a obter a máxima perfeição aliada ao máximo conforto…”.

A partir de então, passa ele a dissertar sobre as modernas técnicas utilizadas no sistema de projetores – iguais aos que se encontram instalados no Rádio do City Music Hall de Nova York –; sonorização; climatização – uma temperatura ideal calculada cientificamente em relação à temperatura externa e equilibra o seu grau de umidade no ponto considerado ótimo para a saúde e bem-estar dos expectadores –; poltronas – optamos pela colocação de assentos de espuma de borracha, iguais aos que se encontram instalados em todos os aviões -; a localização dos assentos e a inclinação da plateia obedecia “a determinados cálculos modernos”, de modo a oferecer uma visibilidade perfeita da tela a qualquer um dos seus 1.290 expectadores.

Continuando a sua apresentação, Luiz Severiano Ribeiro chama atenção para o significado da monumental decoração: “Dentre todos os projetos apresentados, escolhemos aquele que tirava diretamente do cinema – São Luiz – o seu motivo decorativo. Mas, se São Luiz (sic) foi um grande Santo, foi também um grande Rei. Por isso, a decoração da plateia representa o interior de uma grande tenda real: vastas tapeçarias suspensas. Bordadas com os três lírios de França, sobre os quais repousam dezesseis escudos de guerra, em lembrança das Cruzadas, o teto é como um imenso véu de rede, que grossas cordas amarram”.

E continua, Severiano Ribeiro: “Na frente do palco, os variados ornatos simbolizam as grandes virtudes de um Rei, que desceu do trono para subir a um altar: a Palma (o prêmio da eterna bem-aventurança), a Concha (o brasão do peregrino), os dois besantes (os arautos do valor), a Flor de Lis (orgulho da Casa de França) e os dois ramos policromados (o perfume de todas as virtudes), em cujo colorido nossos olhos descansam”.

Durante toda segunda metade do século XX e início do século XXI, o Cine São Luiz se constituiu numa espécie de templo da sétima arte.

Gerações de cinéfilos, ou mesmo de expectadores sedentos de emoção, compareciam ao cinema da Rua da Aurora, sempre movimentada nas tardes românticas dos domingos da Sorveteria Gemba, do Quem-me-quer e das regatas do Capibaribe.

Aquele cinema com suas colunas de granito, dois grandes painéis de Lula Cardozo Ayres, detalhes em metal amarelo em todos os corrimões e minudências outras., recebeu nos seus primeiros anos uma sociedade na qual as mulheres faziam questão de exibir o que havia mais recente no mundo da moda e das joias; enquanto os homens só lá compareciam vestindo trajes formais, com destaque para as gravatas.

O mesmo cinema que, em 1998, recebia 30 mil pessoas por semana, quando do lançamento do filme Titanic,superando a frequência das melhores salas de projeção de todo o país.

Este mesmo cinema, antes o “Templo da Sétima Arte no Recife”, porém, permanecia fechado, sem qualquer utilidade, ameaçado no seu futuro em ser transformado numa filial de lojas de magazine (como já acontece com o Cine Moderno), ou em templo religioso, mesmo até a hipótese de ser riscado da paisagem recifense.

Hoje, porém, depois de ter tombado pelo Governo do Estado, o São Luiz parece ter renascido das cinzas, voltando a sobreviver como um centro de atividades cinematográficas, fazendo reviver as projeções de nossa adolescência.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 30 de novembro de 2017

NATAL: SAUDADE, O OLHAR DE MINHA MÃE REZANDO...

 

Nesses dias que antecedem às comemorações do Natal, me pego recitando um soneto do poeta maranhense, Da Costa e Silva:

“Saudade! Olhar de minha mãe rezando
E o pranto lento deslizando a fio…
Saudade! Amor da minha terra… o rio
Cantigas de águas claras soluçando.”

Saudade é um sentimento que se apossa de nós a todo o momento, particularmente nesses dias em que todos festejam em sua volta e só você, unicamente você, não tem o que festejar, pois sua mãezinha já não mais comparece no final da noite a balbuciar baixinho:

Boa noite, meu filho…

 

Esta é a dura lição a nos ensinar que por mais experiências que a vida notenha oferecido, nunca estaremos devidamente preparados para conviver com o sentimento da orfandade.

Ela nos deixou em um domingo no qual o calendário marcava 13 de maio de 2000, quando todos festejavam o Dia das Mães e o cemitério estava tomado por flores.

O vazio que, a partir de então, se apossou de nós é como se uma boa parte do nosso ser tenha sido sepultado naquela manhã, juntamente com o que restou da mãezinha querida.

Sem ela, a vida se transforma num eterno vácuo… A sua presença, mesmo silenciosa, era o bálsamo que suavizava o nosso dia-a-dia, particularmente quando da chegada da noite, com o seu beijo a solfejar aquela cantiga de ninar que nos fazia dormir sossegado:

Boa noite, meu filho…

Das trevas dos seus últimos anos, do silêncio de que foi tomada, ela era o nosso Norte: O nosso referencial de vida. Suas palavras, o nosso consolo; sua presença, o nosso incentivo…

Nascera na primitiva povoação da Torre, em 27 de março de 1912, filha de um comerciante, Manuel Pantaleão Barbosa Dantas, e de uma tecelã da Fábrica de Tecidos da Torre, Guilhermina Francisca dos Santos.

Foi moça bonita, de cabelos negros e longos, que despertava o vate dos poetas de então… Estudando à noite e trabalhando durante o dia, formou-se pela Escola Normal Pinto Júnior, em dezembro de 1930, e, por toda a vida, dedicou-se ao magistério, abrindo os caminhos do saber a uma infinidade de gerações.

Por ocasião de seu velório, eram dezenas de vozes a balbuciar, entre lágrimas:

Minha primeira professora!

Em 1932, casou-se com Antônio Machado Gomes da Silva, técnico em máquinas e motores do Porto do Recife, e dessa união deixou apenas um filho, Leonardo Antônio Dantas da Silva, e três netos: Antônio (Tonico) Machado Gomes da Silva Neto, Mariana e Isadora.

Toda sua vida foi povoada de exemplos de dedicação e, sobretudo, de doação para com os que dela se acercavam.

Ilídia Barbosa Dantas da Silva foi a mulher forte de que fala às Escrituras. A mulher total, idealizada pelos filósofos. A criatura de Deus que, com o seu passamento, tornou bem mais tristes todos os que com ela conviveram.

Mas também a mulher, simples e doce, como nas trovas portuguesas:

Vi minha mãe rezando
Aos pés da Virgem Maria
Era uma santa escutando
O que a outra santa dizia.

Com a sua ausência do nosso mundo, a humanidade se torna um tanto ou quando mais pobre.

O céu, no entanto, tornou-se mais rico com a ascensão desta estrela…

Se duvidas, é só voltar os olhos para o infinito…

Logo perceberás que todas as estrelas estarão sorrindo.

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 22 de novembro de 2017

ZUMBI DOS PALMARES E OUTRAS RELIGIÕES NEGRAS DE PERNAMBUCO

A data comemorativa do Dia da Consciência Negra, em vinte de novembro, nos leva, forçosamente, a meditar sobre os horrores da escravidão e suas origens.

Desde os tempos bíblicos, como nos informa o livro do Gênesis, os vencidos eram tornados à condição de escravos, em troca de suas vidas. A escravidão era dessa forma, vista como um gesto “humanitário”, chegando a fazer parte de todos os grandes códigos da antiguidade, como o de Hamurabi, com especial enfoque no Direito Romano e nas Ordenações do Reino, que serviram de norma escrita ao mundo português até o século XIX.

Depois que Antão Gonçalves e Nunes Tristão capturaram os azenegues do Rio do Ouro, em 1441, a serviço do Infante D. Henrique de Portugal, as expedições portuguesas e espanholas transformaram-se em verdadeiras empresas, com objetivo de incrementar o comércio escravo, fixando na Costa da África várias feitorias, especialmente na região do Cabo Branco, estabelecendo-se posteriormente na ilha de Arguim (1448) e no Senegal (1460), com a finalidade de adquirir prisioneiros de tribos africanas, para transformá-los em escravos.

Na estimativa de Vitorino Magalhães Godinho, in Os descobrimentos e a economia mundial v. IV (Lisboa, 1981-83), citado por José Ramos Tinhorão, in. Os negros em Portugal – Essa presença silenciosa (Lisboa, 1988), foram importados como escravos berberes, árabes e negros africanos, entre 1448 e 1505, de 136.000 a 151.000 indivíduos.¹
Em Portugal, foram os escravos, inicialmente, destinados aos serviços domésticos e logo em seguida passaram a ser usados na florescente lavoura da cana-de-açúcar nas ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde.

Na América, a escravidão foi introduzida pelos espanhóis com os descobrimentos, havendo indícios de que nas naus comandadas por Cristóvão Colombo, em 1492, já houvesse escravo;² com regularidade, porém, a importação de negros só foi introduzida pelos espanhóis, a partir de 1501, em São Domingos. No Brasil, se comprova a existência de escravos a partir de 1531, na Capitania de São Vicente. Em Pernambuco, em carta escrita em 1539, dirigida ao rei D. João III, o donatário Duarte Coelho Pereira solicita autorização para a importação direta da costa da Guiné de 24 negros, a cada ano, quantidade que seria aumentada por D. Catarina, em 1559, para 120, mediante o pagamento de uma taxa reduzida, nada impedindo que outros negros aqui chegassem por outros caminhos. No testemunho dos jesuítas Antônio Pires (4.6.1552) e José Anchieta (1548), era comum a existência de escravos negros e índios em Pernambuco; a escravidão dos índios durou até o século XVII, quando foi extinta pela Bula do Papa Urbano VIII, de 22 de abril de 1639.

1. A Escravidão em Pernambuco

Escrevendo de Olinda, em 1584, o padre Fernão Cardim diz possuir Pernambuco 66 engenhos, com produção de açúcar estimada em 200 arrobas, sendo o porto do Recife visitado anualmente por 45 navios, o que proporcionava às famílias aqui residentes um fausto por vezes superior ao de Lisboa. Todos os demais cronistas do século XVI e início do século XVII são unânimes em confirmar o crescente progresso da Capitania Duartina, chegando frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, escrita na primeira metade do século XVII, a afirmar que era Pernambuco o mais nomeado e frequentado porto do Brasil, (1618), devendo render “perto de vinte mil cruzados e os direitos do açúcar” – produção estimada por Ambrósio Fernandes Brandão, in Diálogo das grandezas do Brasil, em 500 mil arrobas e cujo transporte para Europa era feito por cem naus fretadas por particulares.

 

Quando da invasão holandesa, em 14 de fevereiro de 1630, existiam em Pernambuco 121 engenhos, sendo o porto do Recife o mais frequentado da América Portuguesa.

Toda essa economia era naturalmente sustentada por braços cativos, introduzidos pelo colonizador com o beneplácito dos Reis de Castela e da Igreja Católica. Os escravos eram todos vistos como mouros e, como tais “infiéis”, para os quais o Papa Eugênio IV autorizou o “direito” de cativar. Justificava a Igreja de então, através de seus teólogos, que sobre os africanos de todas as raças recaía o preceito bíblico que, descendendo de Cã, estariam condenados à escravidão; como acentua o padre Manuel da Nóbrega:

Nasceram com este destino “que lhes veio por maldição de seus avós, porque estes cremos serem descendentes de Cã, filho de Noé, que descobriu as vergonhas de seu pai bêbado, e em maldição e por isso ficaram nus e têm outras mais misérias”, in Diário sobre a conversão do gentio, ed. do padre Serafim Leite, Lisboa 1954

Joaquim Nabuco, aos vinte anos, quando estudante da Faculdade de Direito do Recife, ao escrever o seu primeiro livro em 1870, A Escravidão, editado dentro desta Série Abolição, dá o seu testemunho:

… “eis como a religião penetra na vida do escravo; eis o resumido papel que desempenha casualmente o padre que atravessa a propriedade agrícola, que se senta à mesa do senhor, que se serve gratuitamente do serviço dos escravos, a quem não fala, a quem despreza. Em sua cumplicidade, tudo isto é horrível. E dizer-se que nos habituámos de tal forma ao crime, que ele nos parece uma condição natural da existência das duas raças. Eis o que se tornou o catolicismo abraçando a escravidão; os mosteiros encheram-se de escravos, não perseguidos, mas comprados; os bens das comunidades religiosas contaram-se por cabeças de homens e de gado. E, no entanto, eles, os frades, acreditam ainda que servem a Deus; seu misticismo todo aparente, é nenhum, porque não é só a corrupção que reina nos claustros, é também a ignorância, e o misticismo ainda que uma dedicação é também um sistema, não lhes deixa ver que ao passo que pretendem absorver-se em Deus pelo espírito… martiriza o próximo. Quantas vítimas não fizeram os conventos? Pactuando com a pirataria, quantas famílias inteiras não tiveram sob seu poder e não têm ainda hoje? Nem se nos diga que os escravos são bem tratados; não, as fazendas são arrendadas a diversos, eles têm escravos para alugá-los a senhores despóticos. Nem se exalte a caridade de certos conventos que libertam escravos… eles libertam os velhos, talvez libertem as crianças: mas o crime tem se perpetuado: hoje a mancha é muito negra, e a igreja brasileira do seio da qual Vieira advogara a liberdade dos Gentios, não devia manchar-se no comércio de carne humana; não devia arrastar seu manto puro das cinzas dos grandes crimes do catolicismo, a Inquisição e a noite de 24 de agosto de 1572, por entre as misérias da escravidão; hoje ela está poluída, e por isso é que nos ajuntamos àqueles que querem a extinção das ordens religiosas, enquanto a igreja não estiver separada do Estado: sim, porque os claustros que se tinham contaminado com a corrupção, que se tinham desprestigiado com a ignorância, tornaram-se diante de Deus e da civilização réus de um crime que não tem perdão, por vir dos ministros de Jesus, do grande mártir da liberdade. O crime todos o sabem. É a escravidão” (p.37).

É de Pedro Calmon o comentário:

Tudo era começar. Engenhos e tráfico. Canaviais e fabrico. Casas-grandes e escravidão. A partir dessa época [séc. XVI], muitos amadores se especializaram no negócio, as águas da Guiné e Angola se encheram de barcos ‘tumbeiros’ e o Brasil teve os escravos que quis. Inundação deles. Grossa e ininterrupta imigração de pau e corda. Milhares ao ano, e em número crescente. Negros adultos e crianças; mulheres, para produzir, e homens invalidados cedo pelas atrozes moléstias do seu e do nosso clima. A nódoa que se alastrava. Horror da navegação negreira. Crime organizado, pela forma da pilhagem. Desumanidade inaudita, pela torpeza da viagem. Deslocamento metódico de populações. A passagem, para a América, das sobras da África apanhadas um tanto ao acaso, desde o Senegal até Moçambique, para o lucro do vendedor, príncipe da costa, empresa de portugueses, ou as próprias famílias dos escravos, para a fortuna do traficante, que espantosamente ganhava, para a lavra e a conquista do Brasil”… 4

Era tanta a importância do trabalho escravo que o padre Antônio Vieira, em carta dirigida ao Marquês de Niza, datada de 12 de agosto de 1648, chega a afirmar:

– Sem negros não há Pernambuco!

Por essa época não somente as Américas, mas toda a Europa se entregara ao comércio de escravos da Costa da África. Nenhuma grande nação européia estava isenta da mancha da escravidão, no dizer de Augustin Cochin5, estendendo-se esta situação até os fins do século XVIII, às vésperas da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793).

2. A Escravidão no Brasil holandês

Os holandeses, a exemplo dos franceses e ingleses, já em 1612, eram grandes comerciantes de escravos, com feitorias instaladas na Guiné e em Mouree, onde levantaram o forte Nassau, tomado pelos ingleses em 1872. Os pastores da Igreja Reformada, a exemplo da Igreja Católica Romana, nunca tomaram qualquer posição contrária à escravidão dos de raça negra e, em que pesem as sucessivas recomendações do conselho eclesiástico, nunca se importaram com a instrução dos escravos nos ensinamentos da religião cristã.6

Instalados no Brasil, a partir de 1630, os holandeses procuraram intensificar o comércio negreiro, conquistando as fortalezas de São Jorge da Mina (1637) e São Paulo de Luanda (1641), em Angola, onde adquiriam os seus escravos na maioria das vezes em troca de gêneros e utensílios diversos. Segundo Hermann Wätjen, in Der Negerhandel in Westindien und Suedamerika, citado por José Antônio Gonsalves de Mello, os negros eram comprados na Guiné por quantias que variavam entre 12 e 75 florins e em Angola entre 38 e 55 florins, sendo vendidos no Brasil por 200 a 300 florins por peça – alguns por vezes alcançavam o dobro desses preços -; acrescentando ainda, o autor de Tempo dos Flamengos, uma informação deveras curiosa:

Os negros eram adquiridos, também, por meio de ‘certo buziozinho’ que tinha valor de dinheiro em Angola, onde eram chamados de ‘sumba’ (talvez o que os negros de Pernambuco chamam de ‘ofás’): carta do Conselho dos XIX ao Conde e Supremo Conselho, datada de Amsterdam, 4 de abril de 1640”7

Segundo a mesma fonte, as precárias condições de higiene, espaço (navios com o triplo de sua capacidade de lotação), de alimentação (faltava a água e a comida necessárias às longas travessias), transformavam os barcos usados no tráfico “em verdadeiros túmulos de pobres negros”, citando carta datada de 12 de junho de 1643, escrita no Recife e endereçada ao conselho dos XIX da Companhia das Índias Ocidentais, em Amsterdam, em que dos 554 negros embarcados no de Regenboge, faleceram 172 e dos 350 embarcados no Bruynyis, 109 faleceram.

A mortalidade dos negros trazidos como escravos da África pelos holandeses chegou a preocupar o conde João Maurício de Nassau que, segundo a mesma fonte, presta esta informação:

Vejo pelos registros, que embarcaram para o Brasil 6.468 escravos, no período de 7 de fevereiro de 1642 a 23 de julho de 1643, dos quais 1.524 faleceram; aproximadamente uma quarta parte dos embarcados. Resultado das más acomodações e da falta que se deve considerar indispensável”; in Relatório aos Estados Gerais (1644).8

Segundo Wätjen, o número de negros importados entre 1636 e 1645, pela Companhia das Índias Ocidentais, que detinha o monopólio desse comércio e tinha nele uma de suas maiores rendas, foi da ordem de 23.163 indivíduos.

3. A Guerra dos Palmares

Porém, não se pense que o negro aceitou a condição de escravo, por vezes imposta pelos seus próprios pais ou familiares, sem qualquer revolta. Muito pelo contrário, já em 1602 ao assumir o governo da Capitania de Pernambuco, nomeado que fora por Felipe III de Espanha com um salário anual de três mil cruzados (1:200$000), Diogo Botelho se preocupa com os negros dos Palmares e contra este envia uma força comandada por Bartolomeu Bezerra.9 Com a invasão holandesa e o consequente abandono dos engenhos pelos portugueses, aumentou o número de fugas de escravos, tornando-se os quilombos uma presença constante na documentação da época.

Havia, também, pequenos aldeamentos ou bandos de negros que roubavam e matavam pelos caminhos: os ‘boschnegeers’, contra os quais eram empregados capitães de campo brasileiros, já que os holandeses eram considerados incapazes para tal função […] Vários capitães de campo foram empregados a soldo. O próprio João Fernandes Vieira, então em plena ação para fazer fortuna, contratou com o governo holandês a captura de negros fugidos, ‘trazendo todos os que apanhar à presença dos membros desse Conselho e lhes serão vendidos à razão de 130 reais a peça’”10

Para com os fugitivos, o governo holandês sempre agiu com muita severidade, chegando a utilizar, a exemplo dos portugueses do século XVI, índios bravios no seu encalço, “mateiros e cruéis, senão nas caçadas ao homem – às vezes antropófagas…”11, a exemplo da expedição do capitão Roelof Baro, que se utilizou de cerca de cem tapuias na destruição do “grande Palmares”, conforme carta datada de Porto Calvo, 25 de janeiro de 1644, enviada ao conde de Nassau.

Contava ele que, pretendendo atacar o ‘pequeno Palmares’, achou-se imprevistamente em frente ao ‘grande Palmares’, que investiu em seguida. A luta pela posse do quilombo foi dura, tendo Baro contado cem negros quilombolas mortos. Do seu lado houve um morto e quatro feridos. O sítio foi incendiado, tendo sido feitos ali 31 prisioneiros, entre os quais sete índios tupis (brasileiros) e alguns mulatinhos (‘mulaetjens’). O quilombo estava cercado por duas ordens de estacadas e ‘era tão grande que nele moravam quase 1.000 famílias, além dos negros solteiros’. Em volta da estacada, havia muitas plantações de mandioca e um número prodigioso (‘wonderbaer’) de galináceos, embora não possuíssem qualquer outro animal de maior vulto, sendo que ‘os negros viviam ali do mesmo modo que viviam em Angola’ ”12

Outra expedição foi empreendida contra o quilombo dos Palmares em 1645, pelo capitão Jan Blaer, cujo diário, traduzido por Alfredo de Carvalho (RIAP nº 56, Recife 1902), foi publicado pelo autor destas notas in. Alguns documentos para a história da escravidão, Recife: Editora Massangana, 1988 (Série Abolição 11), com as correções que lhe foram feitas por José Antônio Gonsalves de Mello. Os quilombolas presos eram condenados pelos holandeses a penas de enforcamento, ou queimados vivos, como exemplo aos demais escravos.

Expulsos os holandeses em 1654, o quilombo dos Palmares, dominando a serra da Barriga no atual estado de Alagoas, voltou a crescer e a pôr em pânico os senhores rurais. Ocupava uma área, segundo Pereira da Costa, de 360 quilômetros, tendo por capital Macaco, com uma população estimada em 20.000 habitantes, o que obrigou o governador de Pernambuco, João da Cunha Souto Maior, a contratar os serviços do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, que se encontrava estabelecido na região, fazendo-se este representar pelo religioso carmelita frei André da Anunciação e pelo sargento-mor Cristóvão de Mendonça Arrais, em 3 de março de l687. Como envolvia compromissos da coroa portuguesa para com o “governador dos paulistas”, que pela cláusula quarta este teria “os quintos que das presas tocarem à Sua Majestade” ficando ainda, pela cláusula nona, com o direito de receber do rei de Portugal “quatro hábitos das três ordens”, o contrato teve que ser submetido à sanção real, o que veio a acontecer em Lisboa, em 7 de abril de 1693, sendo transcrito nos livros da Secretaria de Pernambuco em 29 de julho do mesmo ano.

Dom Domingos do Loreto Couto, em sua obra Desagravos do Brasil Glórias de Pernambuco, concluída em 1757, é dos nossos clássicos o que melhor descreve a guerra contra a República dos Palmares, sob a ótica dos vencedores, dizendo ter esta começado em 1631 e relacionando uma série de nomes de portugueses, brasileiros, índios e negros que tiveram destaque nos combates, muitos dos quais contemplados com mercês pela coroa portuguesa. Em sua obra, reeditada pelo autor destas linhas em 1981 (Coleção Recife, v. XI), o beneditino descreve com as cores próprias da época a batalha final, ocorrida em 14 de maio de 1695 entre as forças legalistas e os negros que defendiam a sua república, muitos dos quais ali nascidos em liberdade, como se estivessem sob o céu da África, a ela dedicando todo o capítulo 4º do Livro Oitavo (p. 539-546), extraindo-se dele a seguinte descrição:

Foram trazidos para o Recife os negros onde entraram a representar a sua desgraça o nosso triunfo. Todos os que eram capazes de fugir ou se rebelar, os transportaram para outras províncias do Brasil, e alguns se remeteram a Portugal. As mulheres, e crianças em quem não cabia a suspeita, ficaram em Pernambuco, chegando a todos o merecido castigo da sua rebelião, passando de uma vida liberta, a arrastar nas misérias de cativos, as cadeias de escravo” (p.545)13

4. O fim dos Palmares

Em carta datada de 14 de março de 1696, o governador de Pernambuco, Caetano de Mello e Castro, comunica a D. Pedro II, Rei de Portugal, “a notícia de haver conseguido a morte do Zombi” (sic), segundo documento do Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) transcrito por Ernesto Ennes, in As Guerras dos Palmares (Rio: Ed. Nacional, 1938. p. 258), utilizando-se para isso de informes obtidos de pelo capitão André Furtado de Mendonça de um mulato a quem foi prometido o perdão em troca da denúncia do local onde se encontrava o líder negro.

Segundo o documento, Zumbi encontrava-se sem sua família, acompanhado tão somente de “vinte negros, dos quais mandou catorze para os postos das emboscadas que esta gente usa no seu modo de guerra, e indo com os seis que lhe restaram a se ocultar no sumidouro que artificiosamente havia fabricado, achou tomada a passagem; pelejou valerosa ou desesperadamente matando um homem, ferindo alguns e não querendo render-se nem os companheiros, foi preciso matá-los e só a um se apanhou vivo; enviou sê-me a cabeça do Zumbi que determinei se pusesse em um pau no lugar mais público desta Praça [Recife] a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam este imortal; pelo que se entende que nesta empresa se acabou de todo com os Palmares“…14

A escaramuça em que se deu a morte do líder negro aconteceu em 20 de novembro de 1695 (op. cit. p. 104-105), sendo as tropas repressoras comandadas pelo capitão André Furtado de Mendonça. A dificuldade nas comunicações fez com que a carta do governador de Pernambuco ao Rei de Portugal somente fosse enviada, em 14 de março do ano seguinte, por “um patacho que se destinava à Ilha da Madeira, e considerando que naquele porto pode estar navio que com maior brevidade chegue a essa Corte me pareceu não dilatar a Vossa Majestade a notícia de haver conseguido a morte do Zombi” (sic).

O “lugar mais público” da então povoação do Recife em 1695 era o Largo do Corpo Santo, onde se localizava a igreja-matriz da mesma invocação que, juntamente com aquele logradouro, veio desaparecer em 1913, quando das obras de remodelação do porto. Anos depois, naquele local, em 15 de fevereiro de 1710, veio a ser erguido o pelourinho da Vila de Santo Antônio do Recife, criada por carta régia em 19 de novembro do ano anterior. A hipótese de que a cabeça do Zumbi haveria sido exposta no atual Pátio do Carmo, como foi divulgado recentemente pela imprensa local, carece pois de fundamentação documental: Em 1695, o atual logradouro, ainda não urbanizado, era parte de “uma sesmaria de cem braças de salgado que cercavam em redondo”, local onde se construía o novo convento e igreja do Carmo, sob a direção do mestre Antônio Fernandes de Matos, obras que só vieram a ser concluídas em 1767 15.

Mas, a guerra contra os quilombos dos Palmares não havia terminado. O próprio Loreto Couto nos traz informações – op. cit. p. 458-461 -, sobre a destruição de um núcleo desses insurretos em 1697 e a ordem régia de 12 de janeiro de 1700, mandando fazer guerra a outros quilombos remanescentes.

No início do século XIX, o viajante inglês Henry Koster, então radicado em Pernambuco, anota a presença de escravos foragidos, cujos bandos punham a população em sobressalto, até nas proximidades do centro urbano do Recife.16

Glacyra Lazzari Leite estudando os antecedentes sociais da Revolução Republicana de 1817, ao tratar da problemática do elemento servil, conclui: “As histórias de assassinatos de proprietários por escravos faziam parte da vida quotidiana das pessoas e o medo pairava como algo ameaçador”; in Pernambuco 1817, Editora Massangana, Recife 1988, p. 106.

A presença dos quilombos em nossa região foi uma constante até os últimos dias da escravidão, como anteriormente demonstramos quando da publicação de Alguns documentos para a história da escravidão (op. cit.), nos relatórios sobre o quilombo de Goiana e a presença dos quilombos de Catucás.

Este último foi responsável, entre outros fatores, pela não fixação da primeira colônia de imigrantes alemães no Nordeste. Os colonos alemães, cujo desembarque fora desviado de Santa Catarina para o Rio Grande do Norte, vieram para o Recife, onde o então presidente da província, Tomás Xavier Garcia de Almeida, cumprindo o Aviso Ministerial de 28 de setembro de 1829, os localizou nas terras de Cova de Onça e Ferraz, situadas pouco depois da então povoação do Beberibe, bem próximas às matas do Catucá, onde estavam homiziados alguns escravos fugidos. A colônia, então com 200 pessoas, veio a ser dirigida pelo engenheiro alemão aqui radicado, João Bloem, que acomodou os colonos em seus respectivos lotes, em 1º de dezembro daquele ano. A colônia recebeu o nome de Santa Amélia, em homenagem à imperatriz Amélia de Leuthemberg, recentemente casada com o imperador D. Pedro I.

Sempre assediada pelos quilombolas das matas do Catucá, desprovida de homens em sua defesa, os colonos terminaram por ver assassinada a família Cristiani, em 1837, que residia em Cova de Onça. Em pânico, as famílias deixaram suas terras e retornaram ao Recife, retirando-se em sua maioria para o Rio Grande do Sul, onde voltaram a se estabelecer em São Leopoldo.17

Notas de Referência:

1 – TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal – Uma presença silenciosa. Lisboa: Ed. Caminho, 1988. p. 79-80.
2 – Cristóbal Colón: Los cuatro viajes. Testamento. Madri: Ed. de Consuelo Varela, Alianza Editorial, 1986. p. 12.
3 – Gênesis, IX, 27. Nabuco, Joaquim. A Escravidão. Recife: Editora Massangana, 1988. p. 71. Sobre o assunto consultar ainda: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica da Guiné. Ed. Porto, 1837 e Lisboa, 1973, que, escrevendo no século XV, ao tempo do Rei D. Afonso V, avança na justificativa de que se impregnam os teólogos da Igreja Católica Romana de então e assim aceitar, pacificamente, a escravidão até o século XIX, quando o ex-bispo de Olinda e então arcebispo de Elvas, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo COUTINHO, afirmava que “os negros são condenados por Deus a serem escravos dos brancos”, in Analyse sobre a justiça do commercio do resgate dos escravos da costa da África, novamente revista e acrescentada pelo seu autor. Lisboa: Nova Oficina de João Rodrigues Neves, 1808.
4 – CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio, 1979. v. II. p. 346.
5 – COCHIN, Augustin. L’Abolition de l’esclavage. Paris, 1851, v. II p. 281.
6 – MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos – Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. 3ª ed. Recife: Ed. Massangana, 1987. p. 183: “Em 1638 não se punha mais resistência à escravidão de negros; o Conselho Eclesiástico ao pretender educar os escravos na religião reformada, achou dispensável ‘cogitar-se atualmente se é lícito a um cristão comprar e vender negros para escravizá-los’. E no mesmo ano já se diz: ‘sem escravo não é possível fazer alguma coisa no Brasil… e por nenhum modo podem ser dispensados: se alguém sentir-se nisto agravado, será um escrúpulo inútil’”.
7 – op. cit. p. 183. nota 27.
8 – op. cit. p. 181. nota 23.
9 – COSTA, F.A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Aditamentos e correções de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: FUNDARPE, 1983-1985. v. VII. p. 195 (Coleção Pernambucana 2ª fase).
10 – MELLO, José Antônio Gonsalves de. op. cit. p. 184.
11 – CALMON, Pedro. op. cit. p. 347.
12 – MELLO, José Antônio Gonsalves de. op. cit. p. 185-186. Vide ainda a obra de Gaspar BARLAEUS, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil etc., impressa em Amsterdam em 1647, traduzida para o português por Cláudio Brandão, que às p. 253-254 nos dá pormenorizada descrição dos quilombos dos Palmares. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980. (Coleção Recife v IV).
13 – COUTO, Domingos de Loreto (c 1696 – c 1762). Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 545 (Coleção Recife v. XI).
14 – ENNES, Ernesto. As Guerras nos Palmares – Subsídios para sua história. Rio: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 257-258; as circunstâncias e data precisa da morte do Zumbi, são abordadas pelo mesmo autor às p. 103-105, desmistificando assim a lenda do suicídio do líder negro (Brasiliana v. 127).
15 – MENEZES, José Luiz da Mota. (Org.) Atlas histórico e cartográfico da cidade do Recife. Recife: Prefeitura do Recife, FUNDAJ-Ed. Massangana, 1988. Vide ainda, sobre a construção do Convento do Carmo do Recife: MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um mascate e o Recife – A vida de Antônio Fernandes de Matos no período de 1671-1701. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 25-33 (Coleção Recife v. IX).
16 – KOSTER, Henry. Travels in Brazil. Londres, 1816. Esta obra foi traduzida para o português por Luiz da Câmara Cascudo e sua reedição publicada sob o título Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: SEC-Departamento de Cultura, 1978. v. XVII. (Coleção Pernambucana, 1ª fase).
17 – COSTA, F.A. Pereira da. op. cit. v. IX. p. 313-317.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 15 de novembro de 2017

UM PAPAI NOEL NO RECIFE

 

Todos os anos, nesses dias que antecedem a festa do Natal, eu lembro sempre de um pedido de Mariana, minha filha hoje uma jovem senhora de trinta anos, quando, na inocência dos seus quatro aninhos, fazia um sucinto bilhete: “Papai Noel, Eu quero de presente uma mesinha com as cadeirinhas, que eu possa carregar”.  

Todos os anos, nesses dias que antecedem à grande festa, estou a reler o bilhete para assim lembrar um Papai Noel que sempre me acompanhara em todos os meus sonhos infantis. Ao contrário da menina, para quem o bom velhinho é uma simples lenda, o meu Papai Noel era de verdade…  

Não penseis que estou a sonhar e muito menos a contar bravatas, mas eu conheci um Papai Noel! … Um Papai Noel cheio de ternura, de meiguice e bondade. Um Papai Noel vivente como qualquer um de nós…  

Não imagineis que se trata de alucinações, mas, com toda emoção da minha alma, posso afirmar que eu convivi com este Papai Noel.  

O meu Papai Noel, enquanto me embalava no seu colo nos meses que antecediam ao Natal, conversava horas a fio sobre o brinquedo desejado por mim para aquele ano…  

Quando ainda ninguém falava das festas de dezembro, ele, depois de um duro dia de trabalho no Porto do Recife, metia-se em sua oficina do fundo do quintal de nossa casa da Marquês de Maricá, nº 73, na Torre,  e lá, com os seus cabelos brancos como um algodão, seus óculos na ponta do nariz, trabalhava todas as noites para construir o meu sonho; transformando a madeira bruta em coloridos brinquedos, bem diferentes dos expostos nas lojas e adquiridos pelos pais dos outros meninos.

Os brinquedos, confeccionados pelo meu Papai Noel, em nada se assemelhavam aos industrializados. Eram caminhões, carros-de-mão, espadas, cidades com pequeninas casinhas, barcos, aviões que surgiam de sua oficina, cheios de detalhes e de cores vivas, que mais pareciam impregnados da eternidade… – Em sua quase totalidade, duraram até a última enchente do Capibaribe em 1975.  

Há 47 anos, num dia de setembro de 1966, o meu Papai Noel fez uma viagem e nunca mais voltou…

 

Antônio (Tonico) Machado Gomes da Silva, o meu Papai Noel

Nas minhas orações através dos Natais que se sucederam a partir de então, eu pedi a ele, como nos tempos de criança, um presente que eu julgava simples e fácil de conseguir pelos mundos por onde vagava o seu espírito…  

Eu pedia, ao meu Papai Noel, a partir daquele Natal de 1966, a felicidade: um estado de espírito, que não se pode comprar com dinheiro ou trocar por qualquer outro bem material, mas do qual a minha vida ainda hoje padece de uma eterna e insaciável sede

Nas minhas orações, eu parecia repetir a canção de Assis Valente:

Papai Noel,
vê se você tem,
a felicidade,
pra você me dar.

Eu houvera crescido, já não mais era uma criança, mas os meus sonhos infantis pareciam buscar no pedido ao meu Papai Noel, a felicidade não encontrada neste meu mundo material, racionalista e povoado de invejas.  

A vida foi passando e, com as cicatrizes da alma, as rugas do rosto e os cabelos brancos espalhados pela cabeça, pude compreender que a felicidade não estava nas possibilidades do meu Papai Noel… A felicidade é um bem, impossível de ser alcançado pela grande maioria dos viventes. É artigo que existe no mercado, mas encontra-se inacessível a muitos como eu…  

Nesses dias em que vivemos o espírito do Natal, com a cartinha de Mariana nas entre páginas de um dos meus livros, volto a lembrar-me, com o rosto tomado pelas lágrimas, do meu bom Tonico; este meu Papai Noel que não vejo a tantos natais…  

Nas minhas divagações, cantei baixinho, com a voz embargada pelo pranto, aquela canção que parecia esquecida:

Já faz tempo que eu pedi,
Mas o meu Papai Noel não veio.
Com certeza se esqueceu,
Ou então felicidade,
É brinquedo que não tem.

Mas, quando já imaginava que o bom velhinho havia esquecido do meu pedido, senti, ao vislumbrar Mariana no meu colo, que ele voltara de forma bem original… Observando melhor, ele ali estava, bem vivo e bem junto a mim, como que reencarnado na figura de sua neta, que dele possui a mesma pele morena, o mesmo nariz afilado, as mesmas pernas longas, as mesmas orelhas, o mesmo sorriso, a mesma beleza jovial e tantos outros sinais que marcavam o seu biótipo e a sua personalidade …

Ele finalmente voltara!…

O meu Papai Noel reencarnara, em forma de esperança, lembrando que o meu pedido de mais de quatro décadas, talvez um dia, quem sabe, venha a ser finalmente atendido…

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 08 de novembro de 2017

CAPIBA, ALEGRIA DA GENTE

ra o Vocabulário Pernambuco, de Francisco Augusto Pereira da Costa¹, o adjetivo capiba tem o significado de “grande, volumoso, alentado”, podendo ainda ser entendido, também, como “chefe, dunga, mandão”, tal como foi usado pelo dicionarista Antônio Moraes Silva em carta dirigida ao desembargador Castro Falcão (1818): “Referiu-me José Bento Fernandes que um tal ‘Capiba dos Afogados’ tivera ordens de vir prender-me”.

                Capiba – anos 30

No Recife dos nossos dias, porém, Capiba é algo palpável, real, bem vivo, alegre, que irradia paz e amor, sendo festejado em qualquer lugar por homem, mulher, moça e, sobretudo, menino, como parte integrante da paisagem de sua cidade.

Este nosso Capiba, personagem de muitas estórias e alegria da gente pernambucana, herdou o apelido familiar do avô materno, Major Lourenço Xavier da Fonseca, juntamente com todos os seus irmãos – Sebastião, José, Severino, Maria, João, Pedro, Josefa, Antônio, Tereza e Hermann -, sobressaindo-se nacionalmente através de sua produção musical, algumas delas com lugar de destaque no repertório da música erudita e popular brasileira.

Pernambucano de Surubim, onde nasceu em 28 de outubro de 1904 e falecido no Recife, em 31 de dezembro de 1997, Lourenço da Fonseca Barbosa iniciou-se na banda musical de Taperoá (PB), onde o seu pai, Severino Atanásio de Souza Barbosa, atuava como regente. Inicialmente tocava trompa e, juntamente com os demais irmãos, passou a fazer parte da Filarmônica Lira da Borborema. Em 1914 a família transferiu-se para Campina Grande, onde o Mestre Severino Atanásio foi dirigir a Charanga Afonso Campos, passando o menino Capiba a dividir o seu tempo entre a música e o futebol.

O seu encontro com o piano só veio em 1920. O instrumento existia em sua casa desde 1918, quando fora comprado pelo irmão Sebastião pela quantia de 200 mil réis, sendo, porém, privilégio dos irmãos mais velhos. Como nono filho da família, Lourenço pouca atenção dava àquele móvel “com uma enorme dentadura, cheia de dentes pretos e brancos” … O piano era mais usado pela irmã Josefa, que aumentava a renda da família tocando na exibição de antigas produções do tempo do cinema mudo, apresentadas na tela do Cine Fox (Campina Grande – PB), estreladas por Pola Negri, Clara Bow, Charles Chaplin e Eddie Polo.

O jovem Lourenço não tinha grandes responsabilidades, dentro daquela família de músicos, até quando Josefa arranjou um noivo e marcou o casamento para 20 de maio de 1920. Sem Josefa no Cine Fox, a renda da família iria sofrer uma enorme perda. Para contornar o problema, só restava ao Maestro Severino Atanásio substituir a pianista por um dos seus filhos que, apesar de músicos, não estavam afeitos ao piano.

 

Reunida a família, foram aparecendo os nomes dos possíveis substitutos. Um a um eram nomeados e, em atitude contínua, o velho maestro ia descartando-os. Assim surgiram os nomes de José Mariano, Severino, João e Pedro que, por trabalharem no comércio durante o dia, foram logo eliminados… Houve quem lembrasse os nomes de Lia e Tereza, mas já participavam da pequena orquestra do cinema tocando flauta… Antes que fossem ventilados outros nomes, o chefe do clã decidiu: “Vai o Lourenço substituir Zefa no piano do Cinema Fox!”.

Não adiantaram as lágrimas do jovem, nem os apelos da bondosa mãe, a primeira lição começou ali mesmo, no ato de “nomeação” do novo pianista, com o mestre vociferando:

– Você tem de começar pelas escalas! Senão não vai tocar nada em tempo nenhum!

E assim começara o seu dedilhar: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, si, lá, sol, fá, mi, ré, dó ….

E o mestre continuava a sua lição, com os ares de quem não estava para brincadeiras:

– Quando chegar no terceiro dedo, você passa o polegar por baixo e pega a nota seguinte; a nota fá na escala de dó…

Das escalas vieram às valsas mais fáceis, primeiramente as de José Ribas, seguindo-se as de Alfredo Gama e, por último, as de Nelson Ferreira, que sempre foram as mais difíceis. Uma, em especial, que tinha o título de Milusinha, perturbou por muitos meses o pianista iniciante que ainda hoje guarda os seus acordes.

Em onze dias foram decoradas sete valsas, o bastante para a sua estreia no Cine Fox. A série cinematográfica Herança Fatal, estrelada por Eddie Polo, o galã da época, foi a sua prova de fogo; para isso contou com a ajuda das irmãs flautistas, Lia e Tereza, o que não impediu alguns atropelos durante a exibição.

Assim nasceu o pianista do cinema mudo, Lourenço da Fonseca Barbosa que veio tornar-se um grande amigo do instrumento, seu companheiro ainda em nossos dias, através do qual pôde compor peças antológicas que receberam a assinatura do nosso Capiba.

Pianista do cinema mudo, em Campina Grande e Paraíba (hoje, João Pessoa), transferindo-se em 1930 para o Recife, a fim de assumir um lugar conquistado por concurso no Banco do Brasil, integrou-se à vida artística quando da fundação da Jazz-Band Acadêmica. Logo em seguida vieram os sucessos, executados nos salões da época: Valsa Verde (1931), com versos de Ferreira dos Santos; É de tororó (1932), com letra de Ascenso Ferreira; E, se morrer o nosso amor? (1932), em parceria com Ferreira dos Santos, seguindo-se de outros.

Em 1933, Capiba que, dez anos antes houvera composto uma música carnavalesca sob o título Vela Branca no frevo (nunca gravada), resolveu concorrer com É de amargar, em concurso promovido pelo Diario de Pernambuco, conquistando assim o primeiro lugar e talvez o seu maior sucesso. Quando o disco apareceu no comércio, numa gravação de Mário Reis e os “Diabos do Céu”, realizada em 15 de dezembro daquele ano (RCA Victor n.º 33752-A), sua letra e melodia logo caiu no gosto do povo e assim transformou-se em um dos mais cantados frevos do carnaval pernambucano.

Eu bem sabia
Que este amor um dia
Também tinha seu fim
Esta vida é mesmo assim.
Não pense que estou triste,
Nem que vou chorar.
Eu vou cair no frevo,
Que é de amargar.

Começa assim a sua carreira de campeão dos carnavais pernambucanos, consagrando-se o mais importante compositor de frevos-canção de todos os tempos. Foram cerca de 102 músicas compostas para a festa maior do povo pernambucano, hoje impulsionadoras da alegria das massas que acompanham as orquestras nas ruas, nos salões ou mesmo através do rádio e onde quer que exista a sede de cantar de um folião.

Capiba, como afirmou Hermilo Borba Filho (Diário da Noite, 10 de março de 1972), “é uma esplêndida figura humana e um excelente compositor. Na minha vida sentimental – como na de milhões de pernambucanos de várias gerações – sua música marcou diversos instantes com frevos, maracatus, valsas, canções, sambas. Creio que nunca houve um ano, a partir de 1934, em que não localizasse um acontecimento sentimental por uma das suas composições. Capiba é mais do que um músico e um poeta: é o carnaval de Pernambuco de chapéu de sol aberto”.

Para Guerra Peixe é Capiba “o mais importante e compositor vivo do Norte”, lembrando tê-lo conhecido no final dos anos quarenta, quando chegou ao Recife para trabalhar no Rádio Jornal do Commercio:

Ele estudou comigo. Aprofundou seus conhecimentos musicais, a ponto de compor obras eruditas para flauta, que foram executadas no Chile e na Argentina. Hoje é um músico completo, mas continua estudando, trabalhando e pesquisando. E Capiba, em minha opinião, não é apenas um músico sumamente importante dentro do panorama da música popular brasileira. Antes de qualquer coisa é um artista que se interessa a por tudo quanto acontece no campo da arte, no Brasil e no mundo. Não é apenas o autor de frevos memoráveis e outros tipos de música que marcaram época. Transcende tudo isso. É um homem culto, humilde, pesquisador incansável, eclético: tanto aprecia um samba-canção, como sabe ouvir música erudita. Beethoven é uma de suas manias. […] Há um fato interessante ligado à vida de Capiba, como mestre de orquestra: foi ele quem lançou, em pleno carnaval carioca, o sistema da orquestra tocar sem parar, sem intervalos que interrompiam o baile de carnaval [1933]. E, por falar em carnaval, Capiba é um compositor tão ligado ao gosto do povo, que é praticamente o campeão dos carnavais pernambucanos dos últimos trinta anos. (In Nova história da música popular brasileira – Capiba e Nelson Ferreira. Rio: Ed. Abril, 1978).

Discografia em 78 R.P.M.

Dentro destas notas vale recordar alguns sucessos carnavalescos do nosso Capiba editados em disco 78 rotações por minuto, segundo levantamento do pesquisador Renato Phaelante, da Fundação Joaquim Nabuco: Aguenta o rojão, marcha, Colúmbia n.º 22201, matriz 381465, Breno Ferreira, março 1933; É de amargar, frevo-canção, Victor n.º 33752, matriz 65915, Mário Reis, janeiro 1934; Vou cair no frevo, frevo-canção, Victor n.º 33910, matriz 79830, Almirante e orquestra dos Diabos do Céu, março 1935; Mande embora essa tristeza, frevo-canção, Victor n.º 34019, matriz 80068, Araci de Almeida, janeiro 1936; Quem vai pra Farol é o bonde de Olinda, frevo-canção, Colúmbia, Coro Colúmbia, janeiro 1937; Sim ou não, frevo-canção em parceria com Fernando Lobo, Colúmbia n.º 8267, matriz 1141, Odete Amaral e Mara, fevereiro 1937; Júlia, frevo-canção, Odeon n.º 11581, matriz 5768, fevereiro 1938; Casinha pequenina, frevo-canção, Victor n.º 34410, matriz 80971, Carlos Galhardo, janeiro 1939; Quem tem amor não dorme, frevo-canção, Victor n.º 34412, Coro RCA Victor, fevereiro 1939; Gosto de te ver cantando, frevo-canção, Victor n.º 34557, matriz 33276, Ciro Monteiro, janeiro 1940; Quero essa, frevo-canção, Victor n.º 34557, matriz 33274, Ciro Monteiro, janeiro 1940; Linda flor da madrugada,frevo-canção, Victor n.º 34713, matriz 52091, Ciro Monteiro, fevereiro 1941; Não sei o que fazer, frevo-canção, Victor n.º 34713, matriz 52090, Odete Amaral, fevereiro 1941; Quem me dera, frevo-canção, Victor nº.800543, matriz  052412, Ciro Monteiro, janeiro 1942; Dance comigo, frevo, Victor n.º 34857, matriz 052413, Ciro Monteiro, janeiro 1942; Teus olhos, frevo-canção, Victor n.º D 244, Carlos Galhardo, março 1943; Não aguento mais, frevo-canção, Victor n.º 800234, matriz S078058, Nelson Gonçalves, dezembro 1944; Que bom vai ser,  frevo-canção, Victor n.º 800233 , Nelson Gonçalves, dezembro 1944;  Quando é noite de lua,  frevo-canção, Victor n.º 800352, matriz S 078300, Nelson Gonçalves, dezembro 1945; Segure no meu braço,  frevo-canção, Victor n.º 800351, matriz S 078298, Nelson Gonçalves, dezembro 1945; E… nada mais,  frevo-canção, Victor n.º 800471, matriz 5078589, Gilberto Milton, dezembro 1946; O tocador de trombone, frevo-canção, Victor n.º 800474, matriz S 078595, Carlos Galhardo, dezembro 1946; Que será de nós,  frevo-canção, Victor n.º 800543, matriz S 078767, Nelson Gonçalves, novembro 1947; Morena cor de canela, frevo-canção, Victor n.º 800543, matriz S 078766, Nelson Gonçalves, novembro 1947;  Já vi tudo, frevo-canção, Star 76, matriz 76-A, Albertinho Fortuna, janeiro 1949; Quando se vai um amor,  frevo-canção, Victor, Carlos Galhardo, janeiro 1950;  Você faz que não sabe,  frevo-canção, Victor n.º 800708, matriz S 092744, Francisco Carlos, novembro 1950; É frevo meu bem,  frevo-canção, Continental n.º 16322, matriz 2426, Carmélia Alves, janeiro 1951;  Nos cabelos de Rosinha,  frevo-canção, Victor n.º 801029, matriz SBO 93427, Francisco Carlos, novembro 1952; Deixa o homem se virar, frevo-canção, Continental n.º 16493, matriz C- 2768, Carmélia Alves, janeiro 1952;  A pisada é essa,  frevo-canção, Mocambo, Carmélia Alves, dezembro 1953; Ai se eu tivesse,  frevocanção, Victor n.º 801373, matriz BE4UB-0552, Francisco Carlos, novembro 1954; Ninguém é de ferro, frevo-canção, Todamérica n.º TA 5502, matriz TA 750, Carmélia Alves, novembro 1954; Vamos pra casa de Noca, frevo-canção, Continental n.º 16878, matriz C 3217, Carmélia Alves, fevereiro 1954; O que é que eu vou dizer,  frevo-canção, Victor n.º 801515, matriz BE 5VB- 0852, Nelson Gonçalves, novembro 1955; Amanhã eu chego lá, frevo, Copacabana n.º 5529, matriz 1378, Carmélia Alves, fevereiro 1956; Nem que chova canivete, frevo-canção, Copacabana n.º 5699, matriz 1725, Carmélia Alves, janeiro 1957; À procura de alguém, frevo-canção, Victor n.º 802018, matriz 1352 PB-0498, Expedito Baracho, dezembro 1958;  Modelos de Verão, frevo-canção, Mocambo n.º 15189, matriz R 897, Expedito Baracho, janeiro 1958; Segure o seu homem, frevo-canção, Mocambo n.º 15252, Mêves Gama, janeiro 1959;  A própria natureza, frevo-canção, Victor n.º 802161, matriz 1352-PB-0811, Expedito Baracho, janeiro 1960; Levanta a poeira,  frevo, Todamérica n.º TA 5945, matriz TA 100319, Orquestra Leão do Norte, gravado em 8 de novembro de 1960; Frevo dos namorados,  frevo-canção, Mocambo n.º 15292,  Claudionor Germano, janeiro 1960;  Encontro marcado, frevo-canção, Mocambo n.º 15332, matriz R 1183, janeiro 1961;  Frevo da saudade,  frevo-canção, Mocambo n.º 15394, Joaquim Gonçalves, janeiro 1962; Madeira que  cupim não rói, frevo-de-bloco, Mocambo n.º 15474, matriz R 1466, Bloco Mocambinho da Folia, janeiro 1963;  É de Maroca, frevo-canção, Mocambo n.º 15478, Carmélia Alves, janeiro 1963.

No reinado do LP, quando os 78 RPM caíram em desuso, Capiba veio brilhar dentro da série da Rozenblit, gravada por Claudionor Germano, orquestra e coro sob a regência de Nelson Ferreira – Capiba – 25 anos de frevo (n.º 60044-1959); Carnaval começa com C (n.º 60106-1961); Frevo alegria da Gente (n.º 6006-1961) –; reeditados em 1974 sob o título Carnaval de Capiba, três volumes reunindo sua produção carnavalesca de 1934 a 1974.

Mas os seus sucessos continuaram presentes no repertório dos foliões, como Cala boca menino (1966), Oh Bela! (1970), De chapéu de sol aberto (1972), Frevo e ciranda (1974), Juventude dourada (1976), Trombone de prata(1979), só para citar alguns dos seus frevos mais cantados.

Onde houver carnaval ele está presente, contagiando a massa com a simpatia do seu sorriso e as mãos sempre acenando para os foliões mais entusiasmados, como nos próprios versos do seu “É hora de frevo” (1970):

Quem quiser me ver
Me procure aqui mesmo
Quando chega o carnaval} bis
Seja noite ou dia
Aqui tudo é alegria
E alegria não faz mal

É aqui que eu danço
Aqui é que eu canto
Aqui é que eu faço
Com desembaraço
Misérias no passo!
Na quarta-feira,
Quando tudo terminar!
Eu espero mais um ano,
Até o frevo voltar!

Discografia em LPs:

 – Sedução do Norte – Músicas de Capiba. Titulares do Ritmo e Orquestra sob a direção de Guerra Peixe. RGE, XLRP 5025. 1958

– Carnaval de Capiba – Capiba 25 anos de frevo. Claudionor Germano e orquestra sob a direção de Nelson Ferreira, Mocambo, LP 60.044. 1960.

– Carnaval de Capiba – Carnaval começa com C. Claudionor Germano e orquestra sob a direção de Nelson Ferreira. Mocambo, LP 40.053A e 6-0.106. 1961.

– Sambas de Capiba. Claudionor Germano e orquestra sob a direção de Clóvis Pereira. Mocambo, LP 40.044. 1961.

– Meu bom amigo Capiba. Paulo Molin e orquestra de Carlos Piper. Phyllips LPP. 632.143L. 1963.

– Carnaval de Capiba – Frevo alegria da gente. Claudionor Germano e orquestra de Nelson Ferreira. Rozenblit, LP 60.060. 1975.

– Capiba – ontem, hoje e sempre. Expedito Baracho e orquestra sob a direção de Clóvis Pereira. Mocambo, LP 20.015. 1982.

– Capiba 80 anos. Vários intérpretes. INM/Funarte. LP EE 84003.

– Capiba & seus poetas / Capiba & seus poemas. Vários intérpretes. Orquestra dirigida por Guedes Peixoto. Produção de Leonardo Dantas Silva para o Bandepe. CBS LP 100.043. 1984.

Discografia em cds

– Carnaval de Capiba – 25 anos de frevo. Claudionor Germano e Orquestra de Nelson Ferreira. Polydisc (Recife) CD 470.020

– Capiba – Cidadão do frevo. Vários intérpretes e Orquestra Super Oara. LG (Independente). CD 0002

– Sem lei nem rei. Orquestra Armorial. Conservatório Pernambucano de Música. CD 107.492

– Capiba 90 anos – Grande Missa Armorial, Suíte sem lei nem rei. Orquestra Armorial. Conservatório Pernambucano de Música CD 107.414

– Simplesmente Capiba – Valsas, choros, noturno e maracatu, por Elyanna Caldas ao piano. LG (Independente) 000.003

– Vinte supersucessos – História do Carnaval – Capiba. Polydisc CD 470.273

– Vinte supersucessos – História do Carnaval – Claudionor Germano. Polydisc CD 470.281

– Vinte supersucessos – Expedito Baracho. Polydisc CD 470.292

– Vinte supersucessos – História do Carnaval – Frevo-canção. Polydisc CD 470.272

– Convite para ouvir Agostinho dos Santos. Serenata Suburbana, Capiba. CD RGE 344.6015 (1988).

– Compositores Pernambucanos. É de Tororó (maracatu). Fundação Joaquim Nabuco – Memória Fonográfica 2. CD 199.001.933.

– Clássicos da Música Popular Brasileira. Vários intérpretes. Maria Bethânia, c/ Jessé e Nelson Gonçalves. RGE Sonopress 342.9003

Obra completa:

 A obra musical do cidadão Lourenço da Fonseca Barbosa (1904-1997), não se deteve tão somente na música carnavalesca, daí fazermos incluir nestas notas, por ordem alfabética, as suas composições conhecidas, mesmo aquelas consideradas inéditas: A Chama, canção, (c/ Ascenso Ferreira), Continental, 1951; A Mesma Rosa Amarela, samba-canção em parceria ( c/ Carlos Pena Filho), Mocambo, 1960 ( c/ 32 regravações); A Mulher que eu Queria, frevo-canção, Passarela, 1974; A Nêga de Quem Gosto, frevo-canção, Passarela, 1978; A rosa que me deste, guarânia, 1964; A Palavra Saudade, samba, Rozenblit, 1962; A pega do boi, moda, (c/ Ascenso Ferreira), s. d.; A Pisada é Essa, frevo-canção, Rozenblit, 1953; À Procura de Alguém, frevo-canção, RCA Victor, 1958; A Própria Natureza, frevo-canção, RCA Victor, 1960; A saudade, bolero, 1959; A Turma da Boca Livre, frevo-canção, Rozenblit, 1982; A Turma da Pedra Lascada, frevo-canção, 1963; A uma Dama Transitória, canção, (c/ Ariano Suassuna), Emi-Odeon, 1955;  Acalanto n.º 1, 1941; Agüente o rojão,  marcha, 1941; Ai de mim, samba-canção em parceria com Carlos Pena Filho, Rozenblit, 1963; Ai se eu tivesse, frevo-canção, RCA Victor, 1954; Aguenta o Rojão, marcha, Columbia, 1933; Amanhã eu Chego lá, frevo, Copacabana, 1956; Amigo do rei, frevo, Rozenblit, 1977; Amor, Amor, canção, 1948; Amor de Dom Perlimpin com Belisa em seu jardim, (c/ Garcia Lorca), canção, 1948; Amores de rua, samba, Rozenblit, 1962; As flores também vivem de amor,  marcha rancho, 1966; Aspiração com Manuel Bandeira, moda. s. d.; Bolero, suite para orquestra sinfônica, 1993; Boneca de pano, com Jorge de Lima, moda, s. d. ; Cabra cabriola, canção, 1948; Cadê os guerreiros, com Ascenso Ferreira, maracatu, 1935; Cais do Porto, samba, Continental, 1953; Cala a Boca Menino, frevo-canção, RCA, 1966; Calabar, (c/ Jorge de Lima), moda, s. d.; Campina Cidade Rainha, valsa, Rozenblit, 1982; Canção do Amor que não Veio, samba-canção, secretaria de Turismo do Estado da Guanabara, 1966; Canção para o Recife (c/ Ariano Suassuna, canção, Rozenblit, 1968; Canção do negro amor (c/ Ariano Suassuna), canção, s. d. ; Canção dos navegantes,  canção, s. d.; Canção em forma de samba, s. d.; Cantando sem Saber Cantar, valsa, Rozenblit, 1982; Cantiga de Jesuíno, ( c/ Ariano Suassuna), RCA, 1967; Capiba, frevo, Tapecar-Duda, 1982; Carro de boi, samba, RCA Victor, 1953; Casa Grande & Senzala, frevo, Passarela, 1976; Casinha Pequenina, marcha-frevo, Victor, 1939; Catirina meu Amor, frevo-canção, RCA, 1971; Cem Anos de Choro, choro, Fundarpe, 1984; 5, 4, 3, 2, 1 Frevo, frevo-canção, Rozenblit, 1970; Choro para Guerra Peixe, Independente (Simplesmente Capiba – CD 107.675), Choro para Elyanna Caldas, Independente (Simplesmente Capiba – CD 107.675); Choro para Marco César,  Independente (Simplesmente Capiba – CD 107.675); Claro Amor, ( c/ Carlos Pena Filho) , samba, Rozenblit, 1965; Começo de Vida, toada, Copacabana, 1955; Coração que mais queres, (c/ Leovigildo), valsa, s. d.; Cotovia, baião em parceria com Manuel Bandeira, Bandepe, 1984; Dance Comigo, frevo, Victor, 1942; De Chapéu de sol Aberto, frevo-canção, (c/ Ferreira dos Santos), gravadora Marcus Pereira, 1972; De pernas para o ar,  frevo-canção, 1970; Deixa o Homem se Virar, frevo-canção, Continental, 1952; Depois, samba, (c/ Talma de Oliveira),  Rozenblit, 1961; Desesperada Solidão, canção em parceria com Mauro Mota, Bandepe, 1984; Dia Azul, frevo de bloco, CBS, 1965; Dia Cheio de Ogum, toada afro-xangô, Ritmos Codil-Itam, 1969; Dia de festa, canção, 1966; Duas janelas, (c/ Tito Madi), samba, 1973;  É de Amargar, frevo-canção, Victor, 1934; É de Maroca, frevo-canção, Rozenblit, 1963; É de Tororó, maracatu, (c/ Ascenso Ferreira), 1932; E eu drumo?, frevo-canção, Rozenblit, 1980; É Frevo meu bem, frevo-canção, Continental, 1951; É Hora de Frevo, frevo-canção, Rozenblit, 1970; E… nada mais, frevo-canção, Victor, 1947; É uma brasa mora, frevo-canção, Rozenblit, 1960; Êh! Luanda, maracatu, 1949; Êh! uá Calunga, maracatu, Columbia, 1937; Em 1885, moda, s. d.; Encontro Marcado, frevo-canção, Rozenblit, 1961 ; Esta mulher não me larga, frevo-canção, CBS, 1965; Eu fui à corte, maracatu, (c/ Luís Peixoto), s. d.; Eu já sei, samba, Rozenblit, 1962; Eu quero é ver, frevo, Funarte, 1984; Europa, França e Bahia, frevo, Rozenblit, 1969;  Faça de conta, samba em parceria com Paulo Fernando Craveiro, Rozenblit, 1962; Festa de cores, marcha rancho, secretaria de Turismo do Estado da Guanabara, 1967; Flor das ingratas, tango,  1929; Foi,  porque foi…, guarânia, 1973;  Frevo, alegria da gente, frevo-canção, Rozenblit, 1969; Frevo da felicidade, frevo-canção, Rozenblit, 1967; Frevo da Saudade, frevo-canção, Rozenblit, 1962; Frevo da Solidão, frevo-canção, Rozenblit, 1978; Frevo da Alegria, frevo-canção, Cactus, 1977; Frevo de todo mundo, frevo-canção, Cactus, 1978; Frevo do cordão azul, frevo-canção, Rozenblit, 1975; Frevo dos Namorados, frevo-canção, Rozenblit, 1960; Frevo e Ciranda, frevo-canção Rozenblit, 1974; Frevo Tradicional, frevo, CBS, 1964; Garça triste, (c/ Castro Alves), 1948; Gosto de te ver cantando, frevo-canção, Victor, 1940; Grande Missa Armorial, música de câmara, p/ orquestra e coro, Conservatório, (CD 107.414) 1994; Guerreiro de Cabinda,  maracatu, 1939; Haja pau, (c/ José de Moraes Pinho), canção, 1948; Igarassu, Cidade do Passado, samba-canção, Continental, 1951; Ismália, (c/ Alphonsus de Guimaraens), 1955; Já vi tudo, frevo-canção, Star, 1949; Júlia, frevo-canção, Odeon, 1938; Juventude Dourada, frevo-canção, Philips, 1976; Lá na Serra, valsa, Continental, 1949; Lá no terreiro de umbanda, batuque, s. d. ; Levanta a Poeira, frevo, Todamerica, 1960; Linda flor da madrugada, frevo-canção, Victor, 1941; Madeira que cupim não rói, frevo de bloco, Mocambo, 1963; Mãe da lua,(c/ Hermilo Borba Filho), canção, 1948; Manda embora essa tristeza, frevo-canção, Victor, 1936; Manhã de tecelã, samba. (c/ Carlos Pena Filho), Rozenblit/Mocambo, 1962; Maracatu Elefante, maracatu, 1950; Maracatu, maracatu, Continental, 1983; Maria Betânia, canção Victor, 1944; Mentira samba (c/Fernando Lobo), samba-canção, 1937; Meu destino, valsa, 1924; Meu Recife,  frevo-canção, 1967; Minha Ciranda, ciranda, Musicolor, 1972; Modelos de Verão, frevo-canção, Mocambo, 1958; Morena cor de Canela, frevo-canção, RCA Victor, 1948; Na minha rua, frevo-canção, Rozenblit, 1969; Nação Nagô, maracatu, Rozenblit, 1957; Não aguento mais, frevo-canção, Victor, 1945; Não quero amizade com você, samba-canção, ( c/ Carlos Pena Filho), Philips, 1973; Não quero mais, samba, (c/ João dos Santos Coelho), Rozenblit, 1962; Não sei o que fazer frevo-canção, Victor, 1944; Não sei por que, samba, 1930; Não vá embora, frevo-canção, Rozenblit, 1967;  Navio da Costa, maracatu, 1938; Nem que chova canivete, frevo-canção, Copacabana, 1957; Ninguém é de ferro, frevo-canção, Todamerica, 1955; No balanço do frevo, frevo-canção, Rozenblit, 1968; Nos cabelos de Rosinha, frevo-canção, RCA Victor, 1953; Noturno,  Independente (Simplesmente Capiba – CD 107.675); O anel que tu me deste, frevo-canção, CBS, 1965;  O engenho está moendo, batuque, s. d. ; O mais querido, marcha-exaltação, Mocambo; O que é que eu vou dizer, frevo-canção, RCA Victor, 1955; O tocador de trombone, frevo-canção, Victor, 1947; Oh! Bela, frevo-canção, RCA, 1970; Olinda, Cidade Eterna, samba-canção, Continental, 1950; Onde está o meu amor?, valsa, (c/ J. Coelho Filho), Parlophon, 1932; Onde o sol descamba, maracatu em parceria com Ascenso Ferreira, Columbia, 1937; Os melhores dias de minha vida, frevo-canção, 1949; Pergunte aos canaviais, maracatu, 1936; Pobre canção, samba, (c/ Carlos Pena Filho), RGE, 1963; Por causa de um amor, samba, Ritmos Codil, 1968; Por causa de uma mulher, frevo-canção, Rozenblit, 1978; Por que?, samba, Mocambo, 1963; Por que vivemos assim,samba-canção, 1958; Por que você me quer, toada, RGE, 1958; Pra mim chega, frevo-canção, 1958;  Pra que sonhar, samba, 1963; Praia da Boa Viagem, Philips, 1963; Primeira bateria, RCA, 1944; Quando é noite de lua, frevo-canção, Victor, 1946; Quando passo em sua porta, frevo-canção, 1936; Quando se vai um Amor, frevo-canção, RCA, 1950; Que bom vai ser, frevo-canção, Victor, 1945; Que é que eu vou dizer.., frevo-canção, 1956; Que foi que eu fiz?, samba-canção, Philips, 1963; Que será de nós?, frevo-canção, RCA, 1948; Quem me dera, frevo-canção, Victor, 1942; Quem tem amor não dorme, frevo-canção, Victor, 1939; Quem vai pra Farol é o bonde de Olinda, frevo-canção, Columbia, 1937; Quero essa, frevo-canção, Victor, 1940; Recife, Cidade Lendária, samba-canção, Continental, 1950; Recordando, frevo, Rozenblit, 1961; Rei de Aruanda, maracatu, Rozenblit, 1974; Relembrando Nazareth, Independente (Relembrando Capiba – CD 107.675); Resto de Saudade, samba-canção, Victor, 1963; Retrato,  samba, 1963; Rosa do mar, frevo-canção, Rozenblit, 1969; São os do Norte que vêm, baião, (c/ Ariano Suassuna), Codil, 1967; Saudade e você, samba, s. d. ; Se o homem chora, frevo-canção, RCA, 1964; Se tu és Tricolor, marcha, 1990; Se você me quisesse, frevo-canção, RCA, 1963; Segure no meu braço, frevo-canção, RCA, 1946; Segure o seu homem, frevo-canção, Mocambo, 1959; Sem amor, frevo-canção, 1954; Sempre no meu braço, frevo-canção, s. d.; Sem lei nem rei, suite, Continental, 1972; Serenata,canção, 1948; Serenata suburbana, valsa, 1955; Setenta e sete, moda, (c/ Ascenso Ferreira), s. d.; Sim ou não, frevo-canção, (c/ Fernando Lobo), Columbia, 1937; Simplesmente valsa, Independente (Simplesmente Capiba – CD 107.675); Sino, claro sino, canção em parceria com Carlos Pena Filho, Bandepe, 1984; Só a Rosa, maracatu, RGE, 1980; Soneto da Fidelidade, (c/ Vinícius de Morais), Rozenblit, 1963; Subúrbio triste, samba-canção, RCA Victor, 1953; Tenho uma coisa para lhe dizer, frevo-canção, 1935; Teus olhos, frevo-canção, Victor, 1943; Toada e desafio, Marcus Pereira, 1973; Trombone de prata, frevo-canção, Rozenblit, 1979; Tu que me deste o teu cuidado, canção em parceria com Manuel Bandeira, Rozenblit, 1982; Última carta, samba-canção, RCA Victor, 1953; Um pernambucano no Rio, frevo, RGE, 1958; Uma rosa é uma rosa, frevo-canção, Rozenblit, 1983; Umas e outras, frevo-canção, Musicolor, 1973; Valsa antiga n.º 2,  Independente ( Simplesmente Capiba – CD 107.675); Valsa antiga n.º 5, Independente (Simplesmente Capiba – CD 107.675);  Valsa verde, (c/ Ferreyra dos Santos), Parlophon, 1932; Valsinha do Tonico, valsa, 1987 (inédita); Vamos pra Casa de Noca, frevo-canção, Continental, 1954; Vamos pro frevo, frevo-canção, 1935; Vela Branca no frevo, frevo-de-rua, 1923; Velha história de amor, valsa, s. d.;  Verde mar de navegar, RCA Victor, 1967; Vira a moenda, frevo, 1936; Você está chorando, frevo-canção, RCA, 1971; Você faz que não sabe, frevo-canção, RCA Victor, 1951; Vou cair no frevo, frevo-canção, Victor, 1935.

¹ COSTA, Francisco Augusto Pereira da Costa. Vocabulário Pernambucano. Recife: secretaria de Educação do Estado – Departamento de Cultura, 1976. (Coleção Pernambucana, v. 2)

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 01 de novembro de 2017

ARRUANDO PELO CEMITÉRIO DE SANTO AMARO

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A cidade do Recife sofreu grandes transformações na sua paisagem quando da administração de Francisco do Rego Barros (1802-1870), que veio a ser barão, visconde e finalmente Conde da Boa Vista.

Formado em matemática pela Universidade de Paris, com apenas 35 anos de idade, foi designado presidente da província de Pernambuco, ficando no cargo de 1837 a 1844, época em que o trouxe para o Recife o engenheiro francês Louis Léger Vauthier (1815 – 1901), responsável pela construção do Teatro de Santa Isabel (1850) e de importantes obras públicas.

É desta época a presença na equipe de obras públicas do Governo da Província do engenheiro José Mamede Alves Ferreira (1820-1865), Bacharel em Matemática pela Universidade de Coimbra, que além dos prédios da Casa de Detenção e do Ginásio Pernambucano foi responsável pelo projeto do Cemitério Público do Senhor Bom Jesus da Redenção, criado em 1841, pela Lei Provincial nº 91, tendo sido inaugurado em 1º de março de 1851.

Trata-se de uma área plana, originalmente ocupando um terreno de 351,35 m. de fundos por 320 m. de largo, tendo ao centro uma elegante capela em estilo gótico, em forma de cruz grega, para onde convergem todas às alamedas de túmulos dando, assim, um formato estelar ao conjunto.

Seria um ponto turístico do Recife, como acontece nas diversas cidades da Europa e mesmo das Américas, mas, infelizmente, não é de visitação habitual nem indicado por nenhum dos guias por nós consultados.

Bem conservado pela atual administração municipal, o Cemitério de Santo Amaro, chama a atenção do visitante para o seu portão de entrada, trazendo na sua base a data de MDCCCLI (1851), confeccionado em ferro fundido pela firma A.C. Staar & Cia. (Fundição Aurora), a mesma responsável pelos portões do Cemitério dos Ingleses e da Ordem Terceira do Carmo do Recife.

Aleias de palmeiras imperiais marca a avenida principal, ladeada pelos primeiros túmulos do início da segunda metade do século XIX, que conduz o visitante até a capela em estilo gótico, octogonal, situada ao centro do campo santo.

Nas diversas alamedas do Cemitério de Santo Amaro, vamos encontrar singulares obras de arte de escultores diversos que estão a exibir o seu talento nos diversos túmulos alguns deles centenários.

No ponto de confluência de suas ruas, encontramos uma singular capela gótica, a primeira do seu gênero em terras pernambucanas, projetada por José Mamede Alves Ferreira (1820-1865), mandada construir pela Câmara Municipal do Recife em 1853.

“Trata-se de um monumento de puro estilo gótico de cruz grega, fechada por uma só abóbada, de uma belíssima e arrojada construção, e de grandeza proporcional ao fim a que é destinada, sem campanário e sem dependências”.

Tem no seu centro uma imagem do Cristo Crucificado, em ferro, produto de fundição francesa, tendo na sua abóbada placas de mármore alusivas às diversas fases de sua construção, como as restaurações sofridas nos anos de 1899 e 1930:

– A Câmara Municipal do Recife a mandou fazer em 1853,…1855, segundo o plano do engenheiro civil José Mamede Alves Ferreira.

– Reaberta e melhorada na administração do Exmo. Dr. Esmeraldino Olympio de Torres Bandeira, prefeito do Município do Recife. Em 16 de junho de 1899.

– Restaurada na administração do Exmo. Sr. Dr. Francisco da Costa Maia, prefeito do Município, 1930.

Relembrando a observação do escritor Rubem Franca (in, Monumentos do Recife – Recife, 1977): O Cemitério encerra muito da cultura de um povo. Santo Amaro, aliás, ainda aguarda quem lhe faça um estudo completo, um levantamento dos sepulcros de pernambucanos famosos e populares. Um estudo dos seus monumentos funerários, que são, alguns verdadeiras obras de arte.

Joaquim Nabuco e outros túmulos

O mais suntuoso dos túmulos é dedicado ao Patrono da Raça Negra, o abolicionista Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo (1849-1910), obra do escultor italiano Giovanni Nicolini; sendo encarregado de montar em Pernambuco outro escultor, também italiano, Renato Baretta, em novembro de 1914.

O conjunto escultórico retrata a Emancipação do Elemento Escravo, em 13 de maio de 1888, formado por um grupo de ex-cativos levando sobre suas cabeças o sarcófago simbólico do grande abolicionista. À frente do monumento, o busto de Joaquim Nabuco, em mármore, tendo ao seu lado uma figura de mulher (a história), que ornamenta de rosas o pedestal do busto, onde se lê: A Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo. Nasceu a 19 de agosto de 1849. Faleceu a 17 de janeiro de 1910.

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Logo em frente ao mausoléu de Joaquim Nabuco, encontra-se o túmulo de José Mariano Carneiro da Cunha (1850-1912), também destacado líder do movimento abolicionista e de sua mulher Olegária (Olegarinha) Gama Carneiro da Cunha (1860 – 1898).

Um busto em bronze do abolicionista e estátua de uma mulher chorando, conservando as inscrições: À José Mariano / o Povo / Pernambucano. / Olegária Gama Carneiro da Cunha, 16-9-1860, 24-4-1898.

Outro belo túmulo do Cemitério de Santo Amaro, porém, pertence ao Barão e da Baronesa de Mecejana: Antônio Cândido Antunes de Oliveira e Colomba Ponce de Leão.

“O túmulo é todo feito em mármore de Carrara com grande influência dos romanos, por causa do sentimento católico. O formato de tocha invertida é símbolo da morte e da expectativa de que essa luz se reacenda”, explica o escultor e responsável pela última restauração do túmulo, Jobson Figueiredo, realizada em 1999.

Sobre seu mausoléu, escreve o próprio Barão de Mecejana, em seu testamento, conservado no Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, ter sido o túmulo destinado, inicialmente, a sua filha e seu genro que faleceram de uma das epidemias que assolaram o Recife na segunda metade do século XIX. A posição do barão e baronesa, em genuflexo, demonstra a atitude do casal durante a doença que vitimou o casal.

Como bem observou o escritor Clarival do Prado Valadares, in Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros(1972), vale reparar também o detalhe das esculturas em mármore do barão e da baronesa, que reproduzem até a textura de uma veste rendada.

Segundo estudo da pesquisadora Semira Adler Vainsencher, da Fundação Joaquim Nabuco:

“Vários mausoléus imponentes podem ser encontrados, também, no cemitério de Santo Amaro. O do governador Manuel Antônio Pereira Borba, mais conhecido como Manuel Borba, possui uma mulher com torre na cabeça, e em seus pés um grande leão de Pernambuco. No mausoléu, uma frase que ficou famosa: Pernambuco não se deixará humilhar. E a sua efígie, com a seguinte inscrição:

Cidadãos: quando quiserdes advertir aos vossos governantes, incitar os vossos compatriotas e educar os vossos filhos, apontai-lhes o exemplo que foi Manuel Borba – probidade e caráter – lealdade – bravura cívica. MCMCCCII. [sic]”

Um passeio pelas ruas e alamedas do Cemitério de Santo Amaro se transforma num verdadeiro desfilar de nomes que se destacaram na nossa história, particularmente nos movimentos revolucionários e movimentos literários, bem como nas artes, na poesia, na música popular e na própria história pernambucana.

Uma visita ao Cemitério de Santo Amaro se torna uma verdadeira aula de sapiência das mais diversas áreas do conhecimento humano, daí o nosso convite para tão agradável arruar.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 25 de outubro de 2017

A SINAGOGA PORTUGUESA DE AMSTERDÃ

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Com a expulsão dos holandeses de Pernambuco, em janeiro de 1654, grande parte dos judeus aqui radicados retornaram para Amsterdã e outros centros.

Em Amsterdã coube ao então chefe da Zur Israel do Recife, o rabino português Isaac Aboab da Fonseca, reorganizar uma nova comunidade naquela cidade.

Em 1671, num dos seus famosos discursos, nos quais usava indistintamente o hebreu e o espanhol, fez ver aos sefardins de Amsterdã a necessidade da construção de uma sinagoga mais espaçosa. De imediato foi formada uma comissão para a construção da Grande Esnoga Portuguesa de Amsterdã, seguindo o traço do arquiteto holandês Elias Bouman, tendo a cerimônia de inauguração acontecido, perante o Príncipe de Orange, em 2 de agosto de 1675.

O monumental templo destinava-se ao serviço de comunidade de 3.000 fiéis, na sua maioria oriundos de Portugal.

No prédio, ainda hoje preservado, acima da porta principal, lê-se em letras douradas original hebraico de parte do Salmo 5.8: “Mas eu, pela vossa grande bondade, entrarei na Vossa casa [prostrar-me-ei no vosso santo templo, com a reverência a vós devida.]”.

Além do sentido próprio, as palavras trazem através das estrelas colocadas sobre os caracteres em hebraico, o ano da fundação do templo (5432=1672) e o nome do seu fundador: o Hakam Aboab.

 

Interior da sinagoga portuguesa de Amsterda segundo_foto de Leonardo Dantas Silva

Para orador oficial da solenidade de inauguração, o rabino Aboab da Fonseca escolheu um jovem judeu nascido em Pernambuco, Isaac de Andrade Velosino, conforme informa José Antônio Gonsalves de Mello. Nominado erradamente por Barbosa Machado, in Biblioteca Lusitana, por Jacob de Andrade Velosino, Isaac se declara judeu nascido no Recife em 1657, quando do seu casamento, em Amsterdã, em 15 de janeiro de 1698. Segundo Sacramento Blake, era ele Doutor em Talmud e Doutor em Filosofia, autor de várias obras, dentre as quaisEpítome de la verdad de la ley de Moyses, escrita em espanhol, O Theologo Religioso, O Messias Restaurado, além de outros trabalhos sobre medicina e história do Brasil, tendo falecido na Haia no ano de 1712.

Devido à natureza do solo pantanoso, o templo foi construído sobre três mil estacas de madeira. No seu interior, todo o mobiliário lembra a sua origem luso-brasileira. A começar pelo hekal (armário onde se guarda a Sefer Torá, ou seja, os rolos da Lei de Moisés) , seguindo-se da tebá (altar onde são rezadas as orações em voz alta, com suas talhas e guirlandas ornamentais), confeccionados em jacarandá procedente de Pernambuco. Consta que, na época, toda a madeira fora importada por Moisés Curiel, conhecido também pelo nome de Jerônimo Nunes da Costa, que era agente nos Países Baixos junto ao Reino de Portugal.

No interior da sinagoga, bem no alto, do lado leste, ainda se conserva a placa da inauguração, confeccionada em mármore, com as letras em ouro, assinalando o ano 5435, ou seja, 1675 do calendário gregoriano, e o termo de abertura do templo. Construído sob a presidência de Isaac Levy Ximenes, tendo como zelosos favorecedores da fabrica o Sr. Haham Yshac Aboab da Fonseca, o Sr. Yshac de Pinto, o Sr. Mosseh Curiel. As quatro primeiras pedras as puseram os Senhores Mosseh Curiel, Josseph Ysrael Nunes, Ymanuel de Pinto, David Manuel de Pinto, seguindo-se da comissão de construção composta pelos Senhores Ysahac de Pinto, Semuel Vaz, Jahacob Aboab Osorio, Jahacob Ysrael Pereira, Ysahac Henriquez Coytino.

 

Sinagoga portuguesa de Amstredam Foto Leonardo Dantas_Silva (2)

O edifício apresenta em seu frontispício quatro grandes colunas de basalto [rocha ígnea vulcânica, ger. porfirítica ou vítrea, composta essencialmente de plagioclásio básico e augita], que sustêm três abóbadas de madeira, estando as duas galerias do interior do templo sustentadas por doze colunas de granito. Os bancos, alinhados perpendicularmente à tebá (estrado onde ficam os oficiantes), foram confeccionados em carvalho e dispõem, sobre o assento, o que ainda hoje é designado pela palavra portuguesa, gaveta. Nesta são guardados o talit (manta de oração), os livros de reza, o livro de parasa e outros objetos individuais para uso no culto.

A monumental Esnoga Portuguesa de Amsterdã conserva, ainda em nossos dias, as orações em hebraico com a pronúncia sefardita típica de Amsterdã, assinalando-se, ainda, orações em português como esta em louvor das autoridades:

A Sua Majestade a Rainha dos Países Baixos e Seu Real Consorte aos sereníssimos Príncipes seus Filhos, à sereníssima Princesa Madama sua May e seu real Consorte, e aos descendentes da Casa Real de Orange-Nassau aos ilustres Membros que concorrem no Governo destas Terras, e aos nobres e veneráveis Senhores Burgomestre e Magistrados desta Cidade de Amsterdã“.

 

Sinagoga portuguesa de Amstredam Foto Leonardo Dantas_Silva (3)

Até os dias atuais a esnoga não possui energia elétrica, sendo iluminada por enormes lustres de cobre polido, que sustentam mais de mil velas; toda a iluminação do ambiente feita por meio delas e por outras colocadas ao longo do respaldar dos bancos.

No seu entorno foram construídas umas pequenas casas que separam o prédio principal da via pública. Nessas pequenas casas térreas, antes residências de famílias judias, hoje existem bibliotecas, salas de aulas e reuniões, livrarias, uma micvê (piscina destinada ao banho ritual). Também uma pequena esnoga, que conserva o mobiliário da primitiva esnoga de 1639 e que hoje é utilizada para as funções religiosas durante o inverno, pois a grande sinagoga não possui aquecimento. A pequena esnoga dá acesso à célebre Livraria Montezinos do seminário Ets Haim (Árvore de Vidas).

 

 

A comunidade portuguesa de Amsterdã tem o seu início em 1602, quando ali chega o rabino alemão Uri Halevi, trazendo um grande número de cristãos-novos originários de Emden (cidade do norte da Alemanha). Esta primeira sinagoga veio a funcionar na residência do mercador português Jacob Tirado, que antes fora senhor de engenho em Pernambuco, residindo em Olinda, onde atendia pelo nome de James Lopes da Costa, sobre o qual já nos referimos.

Curiosamente tanto a primeira sinagoga, Bet Yahacob (Casa de Jacob), criada em 1613 por Jacob Tirado, como a atual Grande Sinagoga Portuguesa de Amsterdã, inaugurada em 1675 pelo rabino Isaac Aboab da Fonseca, foram iniciativas de pessoas que viveram em Pernambuco.

O Haham Isaac Aboab da Fonseca, primeiro rabino do Novo Mundo, introdutor da literatura hebraica nas Américas e fundador da monumental Esnoga Portuguesa de Amsterdã, veio a falecer aos 88 anos, em 9 de abril de 1693, naquela cidade, estando sepultado no cemitério de Ouderkerk, em Amstel. Sua biblioteca foi vendida em leilão, logo após a sua morte. Dela constavam 18 manuscritos em hebraico, 373 livros em hebraico e 53 em outras línguas.

Fotos do colunista

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 18 de outubro de 2017

SÃO JOÃO DA VÁRZEA, UMA USINA DENTRO DO RECIFE

Casa de Ferro, Várzea, Recife

Em 1882, encontravam-se em atividade na Várzea do Capibaribe os engenhos: Borralho, Brum, Cova de Onça, Cumbe, Curado, do Meio, Poeta, São Francisco, Santo Inácio, Santo Amarinho, Santos Cosme e Damião e São João, os dois últimos de propriedade de Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

No início da década de 1890, os dois engenhos São João e o Santos Cosme e Damião foram comprados por Francisco do Rego Barros de Lacerda, então proprietário do engenho São Francisco da Várzea, que pretendia reunir as terras dos três engenhos para fundar uma usina de açúcar.

O novo proprietário nascera no engenho Trapiche, na freguesia do Cabo, em 2 de agosto de 1831, falecendo à meia noite do dia 24 de janeiro de 1899, em São João da Várzea. Foram seus pais o Barão e a Baronesa de Ipojuca João do Rego Barros e Inácia Militana Cavalcanti Lacerda.

Era ele sobrinho de Francisco do Rego Barros (1802-1870), Barão e depois Conde da Boa Vista, presidente da Província de Pernambuco entre 1837 a 1844.

Graças a esses laços de parentesco, Francisco do Rego Barros de Lacerda não escapou do destino político que sua família havia reservado para si: Em 1882, elege-se deputado geral do Império, para a legislação de 1882-1885. Em 1886, é eleito para a Câmara de Vereadores do Recife, continuando como vereador da capital de Pernambuco, após a proclamação da República, em 1889. Dois anos depois, em 1891, deixa a câmara municipal, para concorrer a uma vaga no Senado Estadual de Pernambuco, em 1892.

Sempre atento às novidades tecnológicas do seu tempo e inovações ligadas ao processo de plantio da cana e produção do açúcar, optou ele, em meados de 1893, por empreender viagem a fim de conhecer as novas unidades fabris utilizadas na produção açucareira nas zonas produtoras do sul dos Estados Unidos.

Para facilitar a comunicação entre seus engenhos, importou dos Estados Unidos uma ponte de ferro, com 160 m. de extensão, dividida em quatro vãos, que veio ser instalada sobre o leito rio Capibaribe, por seu filho Francisco do Rego Barros de Lacerda.

Com a chegada dos demais equipamentos, adquiridos no estado norte-americano da Luisiana, a nova usina veio ser inaugurada em 1894 em terras do antigo engenho São João, moendo canas dos três engenhos de sua propriedade, com a produção inicial de 4.200 sacos de açúcar.

O Sobrado de Ferro

Em sua viagem ao estado da Luisiana, o proprietário da Usina São João, despertou sua atenção para um estilo de casa de vivenda com estrutura em ferro e paredes de alvenaria em voga em Nova Orleans.

Encantado com o projeto, encomendou uma casa semelhante a fim de erguê-la nas terras do Engenho São João.

Com sua planta baixa lembrando a letra U, que se fecha com uma elegante escada de ferro em dois lances, na parte posterior, a casa tem sua estrutura pré-fabricada, tendo sido importada através do porto do Recife. Todas as fachadas, internas e externas, “possuem varandas suportadas por colunas de ferro fundido e peitoris igualmente fabricados em ferro. Toda a estrutura dos assoalhos e da coberta é em ferro. Somente as paredes são de alvenaria de tijolos e o recobrimento da casa em telhas de barro, tipo Marselha”. (¹)

O Sobrado de Ferro da Várzea possui em seu primeiro pavimento as dimensões de 34,2 m de comprimento por 26,4 m. de largura, compondo uma área de 902,88 m2. No andar térreo, numa área adicional de 224.10 m2, foram distribuídos a cozinha, copa, lavanderia, sanitários e outras acomodações. Considerando toda a construção, incluindo os terraços cobertos, a área total da casa é de 1.420,20 m2, sustentada por 69 colunas de ferro fundido.

O velho patriarca acompanhou toda a construção da sua nova residência, porém nunca chegou a nela residir, vindo a falecer pouco depois da conclusão das obras, em 24 de janeiro de 1899.

Maria da Conceição

Francisco do Rego Barros de Lacerda casara-se em 1853 com Mariana de Sá Barreto, desta união nasceram dois filhos e uma filha: João, Francisco e Maria da Conceição do Rego Barros de Lacerda.

O filho João (João Menino), casou com Filipa Barros Barreto, gerando tão somente uma filha falecida ainda criança.

O segundo filho do casal, Francisco do Rego Barros de Lacerda (Chico Velho), possuía o mesmo nome do patriarca e era formado em engenharia. Fora ele o responsável pela montagem da ponte de ferro sobre o rio Capibaribe, juntamente com a maquinaria da nova usina de açúcar e o Sobrado de Ferro, tendo falecido sem deixar descendência.

Restou da diminuta prole sua filha Maria da Conceição do Rego Barros de Lacerda (Cecé), que, nascida em 5 de agosto de 1863 e falecida em 9 de julho de 1942, continuou solteira, sucedendo aos irmãos como herdeira universal de todos os bens da família.

Em 1914 a Usina São João dispunha de 11 km de estrada de ferro e sete tanques para álcool. Em 1912, sua produção foi de 11.663 em sacas de 60 quilos de açúcar. No final da década, 1918, atingiu o patamar de 34.350 sacas. Em 1921, já acusava em seus relatórios uma capacidade de esmagamento diário de 200 toneladas de cana, ocupando o 9º lugar no parque industrial açucareiro do Estado; registrando, atingindo, em 1933, a produção de 37.853 sacas de açúcar.

Na década de 1930, dois novos engenhos foram adquiridos pela Usina São João: O Santo Amarinho, com 330 hectares, localizado no atual município de Jaboatão dos Guararapes, e o engenho Mamucaia, com 504 hectares, em São Lourenço da Mata.

Em fins daquela década, a Usina São João possuía um total de 2.644 hectares de terras produtoras de cana-de-açúcar para alimentar suas moendas, sendo 280 hectares do engenho São João; 550 hectares do Santos Cosme e Damião; 980 hectares do São Francisco, além dos dois acima citados.

No ano de 1934, encontrava-se a usina sob a administração de Ricardo Lacerda de Almeida Brennand, a quem D. Maria da Conceição do Rego Barros Lacerda, conhecida entre os familiares pelo apelido de Cecé, transformara, por perfilhamento, em seu herdeiro universal.

Assim, Maria da Conceição do Rego Barros de Lacerda, Cecé, com tal iniciativa, veio a se tornar a principal responsável pelo patrimônio econômico de toda Família Brennand, transformando-se numa espécie de “matriarca” de todos.

A Usina São João da Várzea continuou em atividade até o ano de 1943, quando veio encerrar sua produção de açúcar e álcool. Suas máquinas foram vendidas para a Usina Trapiche, então, propriedade da empresa Mendes Lima.

* * *

(¹) ANONYME / Cie. CENTRALE DE CONSTRUCTION / EAINE ST. PIERRE BELGIQUE / ADMINISTRATEUR DIRECTEUR LEON HIARD.” “Esse indício, da origem belga dos componentes da arquitetura metálica da casa, contradiz a primeira informação. A não ser que se considere a hipótese do edifício ter sido montado originalmente nos Estados Unidos da América do Norte e de lá ter sido reexportado para o Brasil”. – GOMES-DA-SILVA, Geraldo. Arquitetura de ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986. P. 218-222.

Informa o professor Geraldo Gomes da Silva, que a residência em questão “teria vindo de fato dos Estados Unidos, de onde chegara nos fins do século XIX. Essa informação não foi ainda comprovada mas, foi possível descobrir, numa das colunas de ferro fundido do pórtico de entrada, a inscrição: SOCIETÉ


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 04 de outubro de 2017

SAUDADES QUE VÊM DE CAPIBA

Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba (Surubim, Out/1904 – Recife, Dez/1997)

 

No próximo 28 de outubro de 2017 comemora-se a data de aniversário de Lourenço da Fonseca Barbosa, o nosso sempre pranteado Capiba….

Quando vivo, o seu aniversário era por ele comemorado com um grande jantar em um dos restaurantes da cidade.

Teria ele 113 anos…

Lourenço da Fonseca Barbosa, o nosso CAPIBA, vivera por 93 anos, nos deixando no último dia de 1997.

Mais um ano sem Capiba.

Em tudo, porém, a sua imagem encontra-se presente entre nós…

A cidade se apresenta vestida de luzes e com as mesmas cores de mais uma primavera, povoada por gente que passa apressada, na labuta da vida diária…

Os rostos pintados dos dias de carnaval, ressurgem com os seus semblantes tristonhos, desfilando apressados diante de mim, fazendo anunciar a volta do azul da primavera no Recife.

Ao meu lado, no entanto, está faltando alguém… Está faltando ele, que por mais de trinta carnavais foi meu companheiro neste mesmo reino azul da fantasia. Carnavais em que juntos cantávamos, acompanhando a multidão, os seus sucessos: Cala boca, menino (1966), Oh! Bela (1970), Catirina meu amor (1971), De chapéu de sol aberto (1972), Frevo e ciranda (1973), Juventude dourada (1975), O amigo do rei (1977), Frevo da solidão(1978), Trombone de prata (1979), E eu drumo (1980), A turma da boca livre (1982), Recife, que beleza (1985) e uma infinidade de outros a embalar a nossa alegria.

 

 

Foram tantos os carnavais, foram tantas as histórias que se perderam no tempo, que tudo hoje se transforma num amontoado de saudades. Recordações daqueles tempos felizes e tranquilos, quando só voltávamos para casa com o sol ofuscante a sorrir dos nossos semblantes de foliões assumidos.
 
Tempos dos Bailes da Saudade, iniciados por mim em 1972, juntamente com Aldo Paes Barreto, e por dezoito vezes repetidos; das gravações na Rozenblit; da primeira Frevioca, por nós inaugurada no Carnaval de 1980; das noitadas no Clube Português; das festas que marcaram os seus 80 anos (1984), com ele desfilando em carro aberto, acompanhado por uma guarda de cavalaria; das eliminatórias do Frevança; dos almoços de todas as semanas e, mais recentemente, dos ensaios do Bloco da Saudade.

Tempos por ele mesmo descritos, pintados que foram com cores fortes e alegres, quando compôs, em 1970,  É hora de frevo (RCA BBL 1489):

Quem quiser me ver
Me procure aqui mesmo
Quando chega o carnaval
Seja noite ou dia
Aqui tudo é alegria
E alegria não faz mal
É aqui que eu danço
Aqui é que eu canto
Aqui é que eu faço
Com desembaraço
Misérias no passo!
Na quarta-feira
Quando tudo terminar
Eu espero mais um ano,
Até o frevo voltar.

Assim era ele ao irradiar a sua alegria infantil que a todos contagiava. Ao seu lado a vida parecia nunca ter fim e sua presença seria uma constante até o final de nossa caminhada.

Ao contrário da regra geral, de que nos fala o poeta Carlos Pena Filho, o Recife não foi para ele a cidade ingrata. Muito pelo contrário, era ele festejado em qualquer parte onde estivesse, por velhos e moços e, sobretudo, pelas crianças que por ele tinha um carinho todo especial. Crianças de hoje, adultos e velhos do amanhã, que por muitas décadas estarão a cantar em seus  carnavais os mesmos frevos feitos por ele para embalar a alegria de sua gente, confirmando, assim,   a eternidade que ele parecia transmitir.

Nos últimos dias de 1997, Capiba, o meu companheiro de mais de trinta carnavais, começou a ensaiar o seu adeus. E eu que acreditava na sua eternidade senti, no último encontro, o sabor da despedida.

 

Túmulo de Capiba

De mansinho ele se foi do meu convívio e hoje, quando começa mais um Carnaval sem a sua presença, é que eu sinto a falta que ele me faz.
 
Hoje, com a cidade tomada por risos dourados e bocas pintadas a cantar as suas melodias, enchendo de sons os mais tristes recantos, vejo-me vagando pelas ruas, como um órfão perdido no meio dessa multidão, procurando enganar os meus próprios sentimentos.
 
Na minha solidão, a sua presença… Para o meu consolo, a sua saudade… E assim sozinho, com o rosto tomado pelas lágrimas, lá me vou sem destino, cantando baixinho os versos que ele me ensinou:

Vivo nas ruas cantando
Um canto que me convém
Para fugir da tristeza
E da saudade também
Se estou certo ou errado
Alguém me há de dizer
Fujo talvez da saudade
Saudade que vem de você…


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 28 de setembro de 2017

O MENINO E O VIOLINO

 

Quando o menino recebeu das minhas mãos uma requinta [clarinete em mi bemol, utilizado em bandas de música], pouca coisa se poderia prever de seu futuro.

Era triste, pálido, desajeitado, esquálido até …

Era uma, entre dezenas de crianças que iniciava seus estudos musicais na Banda Sinfônica Juvenil Pernambucana que o Departamento de Cultura, por mim dirigido, acabara de instalar, naqueles idos de 1976, na Escola Cônego Jonas Taurino, dos Peixinhos.

Com a implantação do Núcleo de Formação de Instrumentistas de Cordas, que mais tarde veio a ter o nome de 3º Núcleo do Projeto Espiral, o menino resolvera estudar violino.

Incentivado pelo maestro Ademir Araújo. Edson Rodrigues e por outros professores da escola, o menino foi apresentado ao professor Luís Soler para as provas iniciais, em julho de 1978.

Já sabia alguma coisa de solfejo, tinha alguma prática em leitura musical. Era um bom começo para quem queria estudar violino com um dos instrumentos recentemente doados pelo maestro Marlos Nobre, então diretor do Instituto Nacional de Música da Funarte.

Mas os empecilhos foram aumentando:

Filho de uma humilde mulher do povo, sem profissão definida e sem o apadrinhamento dos poderosos, o menino compareceu à minha sala de trabalho informando não poder continuar nas aulas do Projeto Espiral.

O motivo era simples: com as aulas de violino, no turno da tarde não poderia continuar seus estudos na escola dos Peixinhos.

– Apela para um, telefona para outra, finalmente, com a compreensão de alguns, se consegue uma vaga para o menino na Escola João Barbalho, no Parque Treze de Maio, conciliando o horário dos dois cursos.

Na segunda-feira, 19 de julho de 1982, quando já alguns anos haviam passado, finalmente o menino nos proporcionou uma grande alegria:

A criança de antes era o instrumentista de hoje e, com a desenvoltura dos que prometem alcançar o estrelato, Israel Ramos de França era solista da Orquestra de Câmara da Universidade Federal de Pernambuco executando, em concerto regido pelo seu professor Luís Soller, a “Sonata de Câmara, de F. Veradini”.

Ao ouvir as notas que saiam do seu violino procurei lembrar aquela boa mulher, cujo único sonho era ver o sucesso do filho.

Na plateia não havia lugar para ela, pois de há muito deixara este mundo dos vivos e hoje, lá de outros mundos na paz do dever cumprido, pede a Deus pelo filho Israel que deixou na terra.

– Israel estava soberbo, o Teatro Santa Isabel lotado, o público o aplaudia de pé, a alma daquela boa mãe merecia de mim toda a gratidão.

Diario de Pernambuco, 2 de agosto de 1982


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 20 de setembro de 2017

FRANS POST, O PRIMEIRO PINTOR DO BRASIL

Retrato de Frans Post por Frans Halls

Para registrar as realizações do seu governo, preservar em tela a paisagem e a topografia da conquista, bem como os feitos militares e a arquitetura militar e civil do Brasil Holandês, o Conde João Maurício de Nassau-Siegen contou com os serviços de um jovem pintor de Haarlem, Frans Post (1612-1680), que, juntamente com outro pintor, Albert Eckhout (c.1610 – c.1665), da Groninga, tomou para si a tarefa de registrar todos os pormenores do universo do Novo Mundo de então.

Foi Frans Post o primeiro artista europeu a trabalhar em terras da América, o primeiro pintor acadêmico a documentar em cores a paisagem brasileira, registrando também algumas paisagens da África, deixando uma vasta obra da qual chegaram aos nossos dias pouco mais de 160 trabalhos.

Nasceu Frans Janszoon Post na cidade de Haarlem, Holanda, em 1612, sendo filho do pintor de vitrais Jan Janszoon Post e de sua mulher Francyntie Peters, cujo casamento aconteceu em 1604, sendo ambos naturais de Leiden.

Era Frans o terceiro filho do casal, que tinha por primogênito Pieter Post, nascido em Haarlem em 1608, seguindo-se de Anthoni, nascido em 1610, e Johana, a caçula nascida em 1614, pouco antes do falecimento do chefe da família: Jan Janzoon Post.

Órfão de pai aos dois anos, tendo sua mãe se casado com Harman van Warden em 1620, de quem logo depois se separa, o menino Frans tem no irmão Pieter o seu primeiro mestre.

Pouco se sabe de sua formação acadêmica, tão somente que criou-se na cidade de Haarlem, uma das mais prósperas da província, Flandres, célebre por suas corporações de artistas.

Pieter Post (1608-1669), o mais velho dos irmãos, vem a ser discípulo do grande Van Campen, um dos mais renomados arquitetos do seu tempo, responsável pela construção da Mauritshuis (Casa de Maurício), na Haia, e freqüentador da corte do Príncipe Frederico Henrique. Através dele é o jovem Frans apresentado ao Conde de Nassau, recém-nomeado Governador do Brasil Holandês, que o convida para acompanhá-lo em sua nova missão.

No Brasil, o jovem Frans Post tornou-se a memória visual do governador, transformando-se numa espécie de cronista da paisagem. Para isso acompanhou o Conde de Nassau em todas as suas viagens e campanhas militares, chegando até a registrar incursões de esquadras enviadas do Recife para a tomada das cidades de São Jorge da Mina, Forte Nassau, São Paulo de Luanda e ilha de São Tomé, na África.

Por sua vez, ao irmão mais velho do pintor, o arquiteto Pieter Jansz Post, que trabalhava com Jacob van Campen na construção da Mauritshuis em Haia, é atribuído o traçado urbano da Cidade Maurícia, bem como o projeto de alguns empreendimentos desenvolvidos pelo Conde de Nassau no Brasil, a saber: o Palácio de Friburgo, denominado pelos portugueses de Palácio das Torres; a Casa da Boa Vista; a Igreja dos Calvinistas Franceses, “uma réplica em ponto pequeno da Catedral de Haarlem”.

O traçado urbano da Cidade Maurícia (Mauritsstadt), vem detalhado no mapa de Cornelis Bastianszoon Golijath, Mauritiopolis, Reciffa et circvm iacentia castra, publicado no livro de Gaspar Barleus (n.º 40). (¹)

Ao contrário de Pieter Post, o seu irmão Frans Post é constante na documentação da época, chegando a privar da lista de comensais do Conde de Nassau, no Palácio de Friburgo, em 1º de abril de 1643. Segundo revela José Antônio Gonsalves de Mello: “ao todo 46 pessoas das quais 19 com empregados. Entre elas: Frans Plante, o doutor Piso, três fidalgos não identificados, Albert Eckhout e Frans Post, ‘pintores, ambos com criados’, o cartógrafo Georg Marcgrave, também com criado, etc.”. (²)

O objetivo principal de Frans Post seria a documentação de cidades, vilas, povoações, costumes, construções civis e militares, cenas de batalhas navais e terrestres, que viriam ilustrar um grande relatório das atividades do Governo do Conde de Nassau em terras da América.

OS QUADROS BRASILEIROS

Em carta ao então Príncipe João Maurício de Nassau, datada de 10 de dezembro de 1678, relacionando as obras que seriam entregues ao Rei Luís XIV, o encarregado de seus negócios Jacob Cohen faz referência a “18 pequenas paisagens brasileiras em molduras pretas” (18 kleine bras. lantschapen in zwarte lijsten). (³)

Por esta fonte, chega-se à conclusão que Frans Post pintou pelo menos 18 quadros a óleo retratando a paisagem brasileira durante sua estada de sete anos no Nordeste, de 1637 a 1644. Eram quadros com cerca de 60 x 90 cm., emoldurados em ébano, que foram conservados pelo Conde de Nassau até 1679, pouco antes de sua morte, quando foram presenteados, juntamente com outros quadros e objetos do Brasil, ao rei de França, Luís XIV. (4)

 

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Desse total de 18 quadros, apenas sete podem ser identificados em nossos dias. Os demais simplesmente desapareceram com o passar do tempo e a desídia dos homens. Assim foram relacionados por Beatriz e Pedro Corrêa do Lago as seguintes telas, assinadas e datadas por F. Post:

1 –Vista de Itamaracá, 1637 (63,5 x 89,5), Mauritshuis, Haia;

2 – O Rio São Francisco e Forte Maurício, l638 (60 x 80 cm.), Museu do Louvre, Paris;

3 – O Carro de Bois, 15.8.1638 (61 x 88 cm.), Museu do Louvre, Paris;

4 – Forte Ceulen no Rio Grande (Forte dos Reis Magos, Rio Grande do Norte), 28.8.1639 (60 x 86 cm.), Museu do Louvre, Paris;

 

5 – Porto Calvo, Assinado: F. Coreo 1639 (62 x 88 cm.), Museu do Louvre, Paris;

6 – Forte Frederico Henrique em Mauritsstad, 1640 (60 x 88 cm.), originário do espólio de Joaquim de Souza Leão, leiloado pela Sotheby’s, em maio de 1995, e atualmente pertencente ao acervo do Instituto Ricardo Brennand (Recife);

7 – Cidade Frederica na Paraíba 29.10.1638, leiloado pela Sotheby’s, Nova York, em janeiro 1997, arrematado pela importância de 4,5 milhões de dólares por um colecionador não identificado.

Dois desses quadros (n.º 1 e 6) trazem no verso o n.º 443, o mesmo que assinala a lista elaborada por Gédeon du Metz, em 30 de janeiro de 1681 (n.º 443. Trente-quatre autre tableaux aussy donnés au Roi per le Prince Maurice de Nassau, représentant des villes, forteresses, port de mer et paisages du Brésil et quelque fruits et animaux de dit pay…), transcrita na íntegra por Erik Larsen. (5) A lista total seria de 42 quadros, oito grandes e 34 pequenos, “dos quais foi descrita somente a metade, no respectivo inventário. Os restantes, sabemos, eram dos pequenos e presumivelmente todos de Frans Post. Foram estas telas, representando la situation du Pay, villes et forteresses en perspective, que o Príncipe conservou até o fim de sua vida.” (6)

 

José Roberto Teixeira Leite, em longo estudo dedicado ao jovem artista (7), faz as seguintes observações acerca desse período:

Pode-se aquilatar o impacto emocional por que terá passado Post, acostumado à disciplina dos campos holandeses, banhados em suave luminosidade, ao se defrontar de inopino com a áspera vegetação tropical, povoada de seres insólitos, tudo sob uma luz escandalosamente intensa. A força e o ineditismo de tal impacto têm como conseqüência estancar, no artista setentrional, toda a capacidade criadora, e por isso, nos Trópicos, os amadores sentem-se mais à vontade que os verdadeiros pintores. É que os Trópicos são mais pitorescos que pictóricos demasiados ricos, demasiados exuberantes [….] Nos quadros executados no Brasil conseguiu Frans Post traduzir todo o pitoresco, sem deixar de ser pictórico; daí o seu valor. E embora se subordinasse fielmente à realidade soube evitar o excesso de detalhes meramente esdrúxulo, aquele acúmulo de elementos curiosos que sobrecarregariam o quadro, comprometendo-o irremediavelmente.

A produção de Frans Post, durante sete anos no Brasil (1637-1644), particularmente em Pernambuco onde permaneceu a maior parte do tempo, prendia-se ao objetivo do Conde de Nassau de documentar a sua administração à frente do Governo do Brasil Holandês. Ele acompanhava todos os passos do governador, fazendo-se presente desde a tomada de Porto Calvo e andanças através da Ilha de Itamaracá (1637), seguindo-se da fundação do Forte Maurício, em Penedo (1638), da conquista do Rio Grande do Norte (1639), até o retorno ao Recife (1640). Cogita-se a sua presença nas expedições militares que saíram do Recife que foram conquistar povoações na costa da África Ocidental (Luanda, São Tomé e Gana), em 1637, lembrando Sousa Leão que Frans Post poderia, também, ter visitado essas praças quando do seu retorno à Holanda, onde já se encontrava em maio de 1644. (8)

A propósito dessa fase, conclui Erick Larsen, já ter se chamado Frans Post de “o Canaletto do Brasil e também se escreveu que ele foi o primeiro paisagista ao ar livre deste país. É verdade, levando-se em consideração a qualidade artística de sua produção e excluindo-se a comparação com os cartógrafos ou outros artistas de menor competência.” (9)

Em maio de 1644, Frans Post já se encontrava de volta à Holanda, ocasião em que recebeu do Príncipe Frederico Henrique a importância de 800 florins, pela pintura de uma grande paisagem das Índias Ocidentais. (10)

Em julho do mesmo ano já se encontrava estabelecido em Haarlem, fixando residência da Smeeststraat, iniciando assim a gravação das ilustrações a serem usadas no livro de Gaspar Barleus. Essas gravuras em cobre, segundo Erik Larsen, podem ter sido gravadas pelo próprio Frans Post em conjunto com outros artistas, particularmente as 14 pranchas que aparecem assinadas e datadas: F. Post 1645.

Em 1650, casa-se com Janneteye Bogaert, em 27 de março de 1650, na igreja de Sandvoort, gerando com esta três filhos: Anthoni, nascido a 10 de janeiro de 1655; Jan, a 12 de março de 1656, e Rachel, a 4 de janeiro de 1660. Sua mulher, também natural de Haarlem, onde residia na Koninckstraat, era filha do Prof. Salomon Bogaert. O casamento durou apenas 14 anos, pois em 7 de agosto de 1664 já se encontrava viúvo. (11)

A sua produção de quadros com motivos brasileiros hoje soma-se a pouco mais de 160, datados do período entre 1647 e 1669, em sua maioria catalogados por Joaquim de Sousa Leão. (12)

Os sete anos de Brasil mudaram completamente a maneira do jovem pintor observar a paisagem. Seus olhos se tornaram fascinados pelo nosso céu e pelo verde de nossas matas e canaviais. A paisagem rural pernambucana tomara conta dos seus sentidos – “Sem a luz não se explicaria / um Pernambuco que existia” –; os “dois sóis”, descritos pelo poeta João Cabral de Melo Neto, incendiaram suas retinas. (13)

O sol ao aterrissar em Pernambuco,
acaba de voar dormindo o mar do deserto
………………………………………………………
(O sol em Pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o segundo dos dois, o fuzil de luz,
revela real a terra: tiro de inimigo).

 

fp2

 

Fiel ao que aprendera com seus mestres holandeses, “o sentimento do espaço e a preponderância do céu”, Post vem a ser dominado pela paisagem dos trópicos, particularmente pela luz que incidia diretamente na orquestração cromática, do tipo verde – azul/verde – azul, do formulário flamengo. Ao voltar para a Holanda jamais se desapegou da paisagem brasileira e, graças aos esboços que pôde elaborar nos seus sete anos de Brasil, ele compõe os seus quadros cheios de cores e elementos tropicais. Os esboços da paisagem e de detalhes outros, produzidos anteriormente para o Conde de Nassau, foram decisivos na criação dos seus novos quadros, com temas brasileiros, pintados entre 1647 e 1669. Sem o antigo compromisso do documentarista, a produção desse período reúne um documentário iconográfico da maior importância, registrando a arquitetura civil e religiosa, como também a militar, a fauna e a flora, tipos humanos e elementos outros da maior importância para o conhecimento da paisagem seiscentista do Nordeste brasileiro, merecendo de Joaquim de Souza Leão a observação:

Post pintava com pinceladas ligeiras. Só as folhas das árvores destacam-se recortadas com um pouco mais de empasto. Irradiam em todas as direções, subtraídas à ação do vento. É certo que ele preferia representar no primeiro plano as ramagens duras da flora da caatinga. As folhas do mamoeiro são as que melhor lhe saem: empastadas, reluzentes, em relevo sobre o resto da vegetação.

A preparação da madeira era feita com pincel fino e a camada preliminar nem sempre branca, o que concorreu para escurecer com o tempo muito quadro. Alguns parecem pintados diretamente sobre a madeira, tão ligeira era essa camada, que lhe deixa ver os veios. Tal foi, aliás, a maneira de pintar do tempo – o apogeu da arte holandesa – que assegurava a regularidade da superfície, uma das exigências acadêmicas.

Criou, assim, seu próprio estilo. Os seus anos no Brasil, em contato direto com a natureza primitiva, longe dos estúdios e da paisagem européia, lhe transformaram num artista singular, à margem dos grandes holandeses do seu tempo – Segher, Ruidael, van Goyen – que, vivendo ao redor de Rembrandt, copiavam sua técnica e eram influenciados pela mesma temática. As pinturas de Frans Post mais se assemelhavam com as de Koninck, particularmente pelas planícies verdes flutuando no horizonte, e com as de van der Hagen, “de quem terá imitado a concatenação das ondulações do terreno e das matas, de modo a formar a alternância regular de manchas claras e escuras, características de sua obra final.” (14)

Conclui José Roberto Teixeira Leite que “resumindo a evolução artística de Frans Post, podemos afirmar que, superada a fase documental dos quadros realizados no Brasil, vencida a preocupação pelo exótico e pelo pitoresco dos produzidos imediatamente após o retorno à Holanda, conseguiu o pintor afinal harmonia entre forma e cor e a equivalência entre o conteúdo e seu equivalente clássico, para evocar a paisagem brasileira, da qual seria o intérprete primeiro, num clima de intenso lirismo. O artista leva de vencida o artesão, a sensibilidade impõe-se ao virtuosismo, o repórter cede lugar ao poeta”. (15)

No final da vida, porém, Frans Post tornou-se alcoólatra. A solidão, com a morte da mulher e o afastamento dos amigos, em muito contribuiu para o abreviamento dos seus dias. Os excessos do vício minaram a sua capacidade criadora, contribuindo para a decadência e mediocridade de seus trabalhos. Foi o álcool que o impediu de assistir a entrega dos seus próprios quadros, em 1679, a Luís XIV, Rei de França, presenteados que foram pelo Príncipe João Maurício de Nassau. Em carta datada de 9 de janeiro de 1679, o agente financeiro de Johan Maurits, Jacob Cohen, é taxativo: “o velho Post, que ainda vive, seria a pessoa mais indicada, mas está de tal modo desmoralizado e degradado pela bebida, e tão trêmulo, que seus amigos o consideram inapresentável ao Rei”. (16)

Morreu Frans Post em Haarlem, a 18 de fevereiro de 1680 e foi enterrado na Groote-Kerk daquela cidade. Cinco dias após o seu passamento, o Curador de Órfãos dá poderes a Bastiaen Wendels, tio, e Johannes Post, primo, para na qualidade de testamenteiros venderem os bens do falecido a fim de pagar as suas dívidas e “fazer tudo o que mais coubesse em benefício da filha menor, Greetie [Rachel?] Post.”

 

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Frans Post mereceu a honra de ser um dos pintores de sua época retratados por Frans Hals (c. 1581-85 – 1666), um dos importantes retratistas do seu tempo, ao lado de Rembrandt e Vermeer. O retrato seria reproduzido em gravura por J. Suyderhoef, sendo pintado entre 1650 e 1660, sendo considerado uma obra-prima, “um chiaro-oscuro à maneira sutil de Rembrandt.”

Num exemplar deste retrato, gravado por J. Suyderhoef, existente no Albertinum de Viena, na margem inferior, encontra-se escrito em tinta dourada, em grafia da época: François Post peinctre de prince Mauriti Gouverneur des Indes Occidentales.

Na sua biografia de Frans Post, o embaixador Joaquim de Souza Leão encontra no quadro de Hals a descrição da própria personalidade do retratado: “um quarentão de espessa face bonachona e cabeleira hirsuta, o olhar penetrante e bem humorado, sob o negro feltro de copa afunilada. Pelo esmero no trajar – a mão enluvada denotando trato social e boas maneiras – diríamos um bom burguês endinheirado. Mas as sobrancelhas arqueadas, os olhos bem separados, de quem sabe ver, explicam o artista delicado e minucioso que na obra revelou-se. Se é pouco o que se sabe do seu curriculum vitae, resta-nos, por sorte, a imagem física e psicológica do homem, captada pelo mágico retratista da Holanda social.” (17)

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1) BARLAEI, Casparis. Rerum Per Octenium in Brasilia Et alibi nuper gestarum, sub Praefectura Illustrissimi Comitis I. Mavritii, Nassoviae, &c. Comitis, nunc vesaliae Gubernatoris & Equittatus Foederatorum Belgii Ordd, sub Auriaco Ductoris, Historia. Amsterdam: Joannis Blaev, 1647. 46 x 29 cm. 340 p., 56 gravuras desdobráveis. Retrato de João Maurício Conde de Nassau, gravado por Th. Matham.

2) MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. Prefácio de Gilberto Freyre. 2. ed. Recife:  SEC, Departamento de Cultura, 1978. (Coleção pernambucana; 1ª fase, v. 15). Inclui bibliografia e índice onomástico. p. 105, nota 242.

3) SOUSA-LEÃO. Joaquim. Frans Post 1612-1680. Amsterdam: A.L. Gendt & Co., 1973. p. 163. Doc. VI f., From a letter of Jacob Cohen to Johan Maurits, 10.12.1678.

4) SOUSA-LEÃO, Filho. Joaquim. Frans Post. São Paulo: Civilização Brasileira, 1948. “Description des tableaux que le Prince Maurice de Nassau a offerts au Roi Louis XIV”, p. 94-98.

5) LARSEN, Erik. Frans Post, interprète du Brésil. Amsterdam & Rio de Janeiro: Colibris Editora, 1962. p. 259. doc. 55.

6) SOUSA LEÃO, Joaquim de. Frans Post.  São Paulo, 1948. op. cit. p. 93.

7) LEITE, José Roberto Teixeira. A pintura no Brasil Holandês (1967), citado por Roberto Pontual, in Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p. 436

8) SOUSA-LEÃO, Joaquim.  Amsterdam, 1973. p. 17.

9) LARSEN, Erick. Frans Post, um intérprete do Brasil. Amsterdam & Rio de Janeiro:  Colibris Ed., 1962, citado por Roberto Pontual, in Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. Referência ao pintor veneziano Giovanni Antonio Canal (1697-1768), conhecido por “Canaletto”, responsável pela documentação das melhores vistas de Veneza no seu tempo. p. 436

10) LARSEN, Erik. op. cit. Amsterdam, 1962. p. 50, doc. 18.

11) SOUSA-LEÃO, Joaquim. São Paulo, 1948. op. cit. 34.  

12)SOUSA-LEÃO. Joaquim. Frans Post 1612-1680. Amsterdam: A. L. Gendt & Co., 1973. 141 quadros, 64 desenhos, 1 retrato de F. Post. 176 p.

13) MELO-NETO, João Cabral de. “De volta ao Cabo de Santo Agostinho”, in Escola das facas.  Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1980. p. 92. MELO-NETO, João Cabral de. “O sol em Pernambuco”, in Poesias completas.  Rio de Janeiro: Ed.  Sabiá, 1968.  p. 35.

14) SOUSA-LEÃO, Joaquim de. São Paulo: 1948. op. cit. p. 44.

15) LEITE, José Roberto Teixeira. A pintura no Brasil Holandês (1967), citado por Roberto Pontual, in Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p. 436

16) SOUSA-LEÃO, Joaquim.  Amsterdam, 1973. Doc. n.º VIh Koninklijk Huisarchief, (Arquivo da Casa Real) Haia, 4/1463, From a letter of Jacob Cohen to Johan Maurits,  p. 164. – A correspondência acerca dos presentes enviados ao Rei de França, integram o maço n.º 1486 do referido arquivo.

17) SOUSA-LEÃO, Joaquim. São Paulo, 1948. op. Cit . 36.


Leonardo Dantas - Esquina terça, 12 de setembro de 2017

OS QUINZE ANOS DO INSTITUTO RICARDO BRENNAND

naugurado em 12 de setembro de 2002, o Instituto Ricardo Brennand encontra-se localizado em uma área de pouco mais de 77 mil metros quadrados, na qual abriga o Castelo de São João, a Pinacoteca, a Galeria de Eventos, a Capela de Nossa Senhora das Graças e o Restaurante Castelus.

Ricardo Brennand

Juntando suas construções teremos uma área de 9,2 mil metros quadrados, de modo a oferecer aos seus visitantes o maior acervo de peças de arte já reunido por um só colecionador.

Costuma-se dizer, entre os colecionadores de obras de arte, que determinada peça, vez por outra, procura o seu próprio dono(!).

No Instituto Ricardo Brennand a história não acontece de forma diferente; aqui o objeto sempre procura o colecionador pelos mais estranhos e diferentes caminhos. Grande parte das obras em exposição, tem a sua própria história, algumas até transformando-se em romances e outras sendo objeto de conversas e exemplos de curiosidade.

Em sua portada de entrada o Instituto Ricardo Brennand ostenta dois dos oito grandes leões esculpidos em mármore que, no passado, ladeavam as escadarias do Palácio Monroe do Rio de Janeiro (1906). Demolido em 1976, foram dois desses leões oferecidos a Ricardo Brennand que os adquiriu para o seu futuro centro cultural, inaugurado em 2002.

A Mulher da Rede & outras esculturas

Uma das obras que mais causam impacto em nossos visitantes é a última escultura do artista italiano Antonio Frilli, A Mulher na Rede ou Doces Sonhos, adquirida em 2009.

O italiano Antonio Frilli, que em 1860 fundara o seu Atelier em Florença (Via del Fossi), foi um dedicado escultor de grandes estátuas em mármore de Carrara e alabastro, destinadas a famosos cemitérios, bem como para outras galerias conhecidas na Europa, nos Estados Unidos e na Austrália.

 

“Em 1904, dois anos após a morte de Frilli, seu filho Umberto participou da Louisiana Purchase Exposition em Saint Louis , Missouri , onde uma das obras de seu pai era uma escultura que descrevia uma mulher nua em uma rede (Nude Sleeping in a Hammock) No mármore branco de Carrara, ganhou o Grande Prêmio e seis medalhas de ouro”.

Já fazendo parte do acervo do Instituto Ricardo Brennand, eis que uma nova faceta vem de encontro à história da escultura da “Mulher na rede”, como é conhecida entre nós: um visitante do nosso acervo fez presente à Biblioteca do Instituto Brennand do catálogo original da Louisiana Purchase Exposition em St. Louis (1904), onde a escultura de Antonio Frilli foi pela primeira vez apresentada com o título de Sweet dreams (Doces sonhos); revelando assim um passado até então desconhecido.

Voltando ao histórico da obra de Antonio Frilli, consta ter ele a esculpido em 1892, sob o título de Doces Sonhos, representando uma bela mulher em tamanho real dormindo despida numa rede. Em 1915 foi a escultura enviada de Florença para São Francisco da Califórnia, onde ficaria exposta na Panama Pacific Exhibition. Nesta exposição, foi a escultura adquirida para decoração de um jardim residencial em Piedemonte (Itália).

Em 1998, após mudanças na posse da primitiva casa, o advogado e pianista John Hayden, juntamente com sua mulher Sarah tornaram-se seus novos proprietários, passando a denominá-la de Eva.

O acontecimento veio inspirar o romance publicado em 2016, escrito por Gary Rinehart, Nude-Sleeping-Hammock(Nu dormindo numa rede), que coloca a obra de Antonio Frilli como o centro da trama ficcional dos diversos proprietário, a partir do seu surgimento, em 1892, e como a escultura afetou suas vidas¹.

Além de outras esculturas de Antonio Frilli, o Instituto Ricardo Brennand possui peças de valor inestimável, como a Mulher com espelho ou Ninfa da Lua, produzida por Vittorio Caradossi em 1894, se seguindo de outras peças igualmente importantes desse artista distribuídas pelos vários três edifícios do núcleo central².

Segue-se o conjunto em mármore, Os Pompeianos, de Giovanni Maria Benzoni (1809-1873), pintor e escultor do século XIX, da escola Neoclássica, que foi aluno de Antonio Canova (1757 – 1822). A escultura, datada de 1868, mostra uma família em fuga tentando escapar da erupção do vulcão Vesúvio, que soterrou as cidades de Pompéia e Herculano no ano de 79.

No jardim central do instituto, os olhos do visitante irão se voltar para a réplica do David de Michelangelo (1504), com 7,17 metros de altura, elaborada pela Cervietti Franco & Cia., em Pietra Santa (Itália), no ano de 2000, assinalada com o nº 5/5, adquirida por Ricardo Brennand em 19 de dezembro de 2010.

No jardim ao lado encontra-se A Mulher a Cavalo, do colombiano Fernando Botero (1932), estátua em bronze de grandes proporções (230 x 160 x 90 cm.), datada de Pietra Santa (Itália) 2002.

No fosso do Castelo de São João outra réplica, em tamanho natural, d’ O Rapto das Sabinas, originalmente esculpida no século XVI por Giovanni Bologna, tendo esta cópia a assinatura do artista português Francesco Zerri (Silvério Serra) datada de Florença 1927, Societá Fiorentina de Sculture Artistiche³.

Outro autor que desperta atenções é o artista francês François-Auguste-René Rodin (1840-1917), mais conhecido como Auguste Rodin, autor de algumas das mais importantes esculturas da coleção Ricardo Brennand. No prédio da Pinacoteca vamos encontrar “O Despertar” (“A. Rodin 1886”), “A Idade do Bronze” (“1876 A. Rodin), “A Eterna Primavera” (s/d), seguindo-se de sua obra maior: “O Pensador”, em exposição no salão de entrada do prédio da Galeria.

A presença as obras de Auguste Rodin notabiliza-se com a réplica desta sua obra maior: O Pensador. A estátua em bronze, com 1,92 metro de altura, datada de 1904, foi adquirida por Ricardo Brennand em 2004, quando da exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras. Trata-se de uma das 25 cópias autorizadas pelo Museu de Paris, gravada com o nº 8/25, com a data de 1998, produzida a partir do molde original pela Sayegh Gallery da mesma cidade.

Ao longo dos prédios do Instituto Ricardo Brennand o visitante vai encontrar 174 outras esculturas, assinadas por grandes mestres das artes, todas dignas de atenção e, por vezes, de meditação demorada.

Coleção de Armas

A coleção de armaria do Instituto Ricardo Brennand, hoje estimada em cerca de 4.500 peças, começou com um canivete em 1939 e se estendeu através da aquisição de espadas, facas, alabardas, lanças, escudos, punhais, adagas, armaduras (para cavalos e cavaleiros), balestras, elmos, arcabuzes, espingardas, mosquetes, carabinas, pistolas de duelo; uma singular armadura para cachorro, além das espadas de cerimonial do Rei Faruk I do Egito, estas últimas folheadas a ouro e cravejadas com brilhantes.

Armas brancas não só da Europa, mas do Oriente, como as procedentes da China, Japão, Índia e Oceania, fazem das coleções em exposição no Castelo de São João.

No ano de 2000, quando da exposição do da coleção do mostruário da cutelaria de Joseph Rodgers & Sons, pertencente ao antiquário argentino Samuel Setian, em São Paulo, Ricardo Brennand terminou por adquirir toda as peças nela expostas.

Joseph Rodgers & Sons tratava-se de uma secular firma inglesa de Sheffield produtora de facas, espadas, navalhas, canivetes, tesouras, que tem seu início no século XVIII. O seu fundador Joseph Rodgers (1743-1821) foi seguido por sucessores que mantiveram em atividade a fábrica até o ano de 1983. De posse o mostruário-museu daquela cutelaria o antiquário argentino Samuel Setian montou uma exposição itinerante, através das cidades de Buenos Aires, Montevideo, Santiago do Chile e São Paulo, que, com a compra no ano de 2000, passou a integrar o acervo do novo Instituto Ricardo Brennand.

Na ocasião um luxuoso catálogo, escrito por Abel Domenech, vem a ser publicado sob o título: Facas de Exibição – Joseph Rodgers & Sons. Coleção Samuel Setian. Santiago do Chile, 1999. p. 150 fotografias e desenhos. ISBN 987-97660-0-8.

O acervo de armas brancas do Instituto Ricardo Brennand torna a ser objeto de pesquisa de outro especialista, o inglês Peter Fine, que escreve o livro “Coleção Brennand de Armas no Castelo São João”, publicado em 2008, com 226 páginas ilustradas, que bem descrevem a importância da coleção nele exposta.

As preferidas do público

Numa consulta ao público visitante, foram escolhidos os objetos de maior atenção pelos que visitam o Instituto Ricardo Brennand, além das peças já aqui citadas, destacaram-se:

– o Cachorro com armadura, Sala dos Cavaleiros; os Fuzis dos Imperadores Pedro I e Pedro II (um deles fabricado no Recife, pelo mestre José Bustoff);

– os quadros do pintor holandês Frans Post (1619-1680), com destaque para o Forte Frederick Hendrik (1641), um dos sete remanescentes daquele artista pintados no Brasil;

– as duas paisagens de Veneza, pintadas por Canaletto (Antônio Canal), no início do século XVIII;

– as Moedas obsidionais cunhadas no Brasil Holandês (1646 e 1654);

– as primeiras edições dos livros publicados pelo conde João Maurício de Nassau-Siegen, Rerum per Octennium in Brasiliae, de Gaspar Van Baerle, e Historia Naturalis Brasiliae, de Willem Piso e Georg Marcgrave, edições impressas por Elzevier, respectivamente nos anos de 1647 e 1648;

– a Capela de Nossa Senhora das Graças.

Foi tanto o sucesso entre os seus visitantes que, no ano de 2014, o Instituto Ricardo Brennand veio a ser agraciado com o prêmio Travelers ‘Choice, do site Trip Advisor, conquistando o primeiro lugar entre os mais importantes museus da América do Sul e o 17º se comparado com os demais museus do mundo, o que se torna motivo de orgulho para qualquer pernambucano.

__________________

¹ RINEHART, Gary. NUDE SLEEPING IN HAMMOCK. 2016. (ISBN-10: 0615645941 – ISBN-13: 978-0615645940).

² Vittorio Caradossi (Florença, 1861 – Florença, 1918), escultor italiano. Estudou na Academia de Belas Artes de Florença, onde foi aluno de Augusto Rivalta, um dos mais importantes nomes da escultura acadêmica italiana na segunda metade do século XIX. Trabalhando quase exclusivamente com o mármore, executou diversos monumentos públicos, destacando-se sobretudo por sua renomada estátua do escultor florentino do Renascimento Desiderio da Settignano, cujo modelo foi exibido na Exposição Universal de 1900, além do memorial a Giuseppe Dolfi, herói do Risorgimento toscano, localizado em Borgo San Lorenzo. Expôs ainda na edição de 1909 do Salon de Paris. – Wikipedia.

³ O Rapto das Sabinas é uma obra que remete aos primórdios de Roma, em que a primeira geração de homens romanos teria obtido suas mulheres através do rapto das filhas das famílias sabinas vizinhas. Esta escultura foi adquirida à família Smith Vasconcelos, possuidora de um palácio em Teresópolis, Rio de Janeiro. No translado, a peça sofreu um acidente, a qual foi submetido a uma restauração por uma equipe do Museu do Vaticano.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 06 de setembro de 2017

NAPOLEÃO BONAPARTE & PERNAMBUCO

Em 1817 Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, fora enviado pelos maçons de Pernambuco para os Estados Unidos, por ocasião da eclosão da Revolução Republicana, com o intuito de comprar armas para combater as tropas do rei Dom João VI; conseguir apoio e simpatias do governo americano para com a “nova república independente no Nordeste brasileiro” e, o que parecia mais sonhador, “recrutar alguns antigos revolucionários franceses exilados no território americano para, com ajuda deles, libertar Napoleão Bonaparte prisioneiro dos ingleses na ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul, desde a derrota na batalha de Waterloo (1815).”

Dos revolucionários da República de 1817, foi o que melhor se saiu, pois continuando nos Estados Unidos da América, só retorna a Pernambuco em 1826, após o perdão real de 1821, para reaver seus bens deixados no Recife.

Com a proclamação de Independência do Brasil, pelo príncipe Dom Pedro, em 7 de setembro de 1822, Antônio Gonçalves de Cruz, o Cabugá, veio a ser nomeado “Cônsul privativo deste Império”, junto ao Governo dos Estados Unidos, pelo chanceler José Bonifácio”.

Napoleão em Pernambuco

Por conta da presença de Cruz Cabugá, nos Estados Unidos da América, Napoleão Bonaparte (1769-1821), general e estadista, imperador dos franceses, por pouco não se tornou um dos destaques da História do Brasil, com repercussões na América Espanhola e nos Estados Unidos, caso tivesse sucesso o seu plano de fuga projetado em 1817 da ilha de Santa Helena, onde se encontrava prisioneiro dos ingleses.

Com a conciliação de propósitos, inicia-se assim a execução do plano de fuga de Napoleão Bonaparte, tendo como base de operações a nova República de Pernambuco.

Primeiramente, atendendo pedido de Cabugá, o governo dos Estados Unidos nomeia como cônsul daquela república no Recife o diplomata M. Joseph Ray, notório simpatizante da causa dos bonapartistas, que deveria dar acolhida a todos os envolvidos que viessem aportar nas costas de Pernambuco.

Sem qualquer notícia recente dos acontecimentos envolvendo os simpatizantes da República Pernambucana, bem como da reação tirânica da coroa portuguesa contra os insurretos, partiu da Filadélfia o navio americano Parangon em direção às costas do Rio Grande do Norte, que veio aportar em baía Formosa, a 50 quilômetros de Natal, em 29 de agosto de 1817, transportando um carregamento de breu. Depois de despachar sua carga e se abastecer de víveres, o barco seguiu viagem com destino à Paraíba, não sem antes deixar em terra quatro franceses.

O pequeno grupo era chefiado pelo coronel Paul-Albert-Marie de Latapie, militante da infantaria dos exércitos napoleônicos, que gravemente ferido na batalha de Waterloo (1815), ocorrida a 15 km. de Bruxelas, fora buscar refúgio nos Estados Unidos. O experiente militar se fazia acompanhar dos também oficiais bonapartistas Artong e Roulet, apresentando-se como quarto personagem, um jovem cientista, Louis Adolphe Le Doulcet (1794-1882), que vem alcançar destaque nos estudos da Botânica e na produção musical. Seu nome é registrado pela Enciclopédia Larousse (que trata de sua aventura no Brasil), sendo ele filho do Conde de Pontécoulant (1769-1840), senador do Império francês ao tempo de Napoleão I.

Le Doulcet, que também era dado ao exercício da medicina, logo fez amizade com José Ignácio Borges, secretário do governador do Rio Grande do Norte, que facilitou para todo grupo os passaportes necessários para viagens por todo território brasileiro.

De posse dos papéis os aventureiros rumaram para o Recife, onde os aguardava o cônsul dos Estados Unidos M. Joseph Hay, que lhe fora indicado por Cabugá. O cônsul tinha como secretário o dinamarquês Georges Fleming Holdt, que havia servido na marinha de Napoleão, e que mais tarde vem a ser preso pelo governo, ocasião em que confessa a existência do plano de fuga do imperador da Ilha de Santa Helena.

Só ao chegar ao Brasil é que os franceses se dão conta do fracasso da Revolução Republicana de Pernambuco, cujos principais líderes se encontravam presos no Recife e Salvador, já tendo alguns deles dado suas vidas à causa da liberdade.

No Recife foram os franceses Latapie, Artong, Roulet e Le Doulcet recolhidos ao forte do Brum, por ordem do capitão-general Luiz do Rego Barreto, responsável pela repressão ao movimento republicano de seis de março de 1817.

Por intervenção do cônsul foram eles libertados, não sem antes confessar que “estavam na Filadélfia quando tomaram conhecimento das notícias da revolução de Pernambuco”. Tal acontecimento fez com que José Bonaparte desse continuidade a um ardiloso plano visando resgatar o seu irmão, Napoleão, de sua prisão na ilha de Santa Helena.

Louis Adolphe regressa ao Rio Grande do Norte, enquanto os três outros ficaram no Recife, na casa do cônsul dos Estados Unidos. Logo depois, Latapie e Artong seguem viagem para o Rio de Janeiro na tentativa de avistar-se com outros bonapartistas, inclusive com o general Theodoro van Hogendorp (1761-1822), militar holandês que depois de galgar os mais altos cargos no exército de Napoleão vivia anonimamente numa chácara, na Estrada da Tijuca, aonde por vezes recebera a visita do príncipe D. Pedro.

Nesse ínterim, chega às costas da Paraíba, na baía da Traição, um barco com oito marinheiros do navio Pinguim, os quais, presos e levados ao Recife, vieram confessar estar a serviço de Cabugá que fretara aquele navio nos Estados Unidos e o mandara para Pernambuco, carregado de armas e munições para uso dos revoltosos. Diante dos fatos, o Pinguim seguiu viagem rumo à Bahia, deixando-os na praia; o fato vem a ser comunicado pelo governador da Paraíba, Bernardo Teixeira, ao ministro Villa Nova Portugal, em data de 1º de março de 1818.

No Recife foi de pronto requerida à prisão de Roulet e de três outros franceses que se encontravam na casa do cônsul. Feita a busca no local, foram presos o secretário do consulado Georges Fleming Holdt, Roulet e três outros suspeitos, além do livro de correspondência oficial. Na prisão o dinamarquês Holdt veio confessar mais detalhes do plano traçado para a fuga de Napoleão, que lhe fora descrito em minúcias pelo coronel Latapie, quando de jantar na casa do cônsul norte-americano.

Do plano ali narrado já tinha conhecimento o próprio Napoleão, que autenticara com a sua assinatura às cartas geográficas enviadas sob sigilo de Santa Helena para José Bonaparte, nos Estados Unidos, confirmando a existência da quantia de mais de 1 milhão de dólares para fazer face às despesas com a pequena frota.

Depois de alguns meses na prisão, onde eram visitados constantemente pelo cônsul americano, foram eles libertados, afirmando Alfredo de Carvalho que “a sua enérgica conduta pesou nas determinações do governo de Pernambuco e do Rio e precipitou o desfecho do processo”.

Para o diplomata M. Joseph Hay, as autoridades portuguesas estavam cientes que “nem Roulet, nem Latapie, nem Louis Adolphe, nem Artong, tinham vindo ao Brasil com intuito de fazer agitação e de pregação em favor da proclamação de uma república”, mas tão somente sondar o ambiente a fim de estudar a possibilidade de pôr em prática o plano de fuga de seu imperador, então prisioneiro dos ingleses na ilha de Santa Helena.

Acatando tal argumentação, o Tribunal de Alçada de Pernambuco, julgando-se incompetente em razão dos fatos, enviou os franceses para o Rio de Janeiro de onde foram, no mais curto espaço de tempo, embarcados para Portugal, que logo os expulsou do seu território através da fronteira com a Espanha.

O plano de fuga de Napoleão, orquestrado por José Bonaparte, porém, só muito depois vem a ser conhecido com detalhes, quando em 1853 vem a ser publicada, em Londres, a correspondência diplomática, trocada por Charles Bagot, de Washington, com Lord Castlereagh. Segundo Alfredo de Carvalho, que faz referência à documentação no seu livro Aventuras e Aventureiros no Brasil (1929), publicado no Rio de Janeiro pela Ed. Pongetti, em relatório datado de 29 de julho de 1817, ficara escolhido como ponto de encontro da expedição “a ilha de Fernando de Noronha, situada a 62 léguas da costa do Brasil”, para onde iriam os barcos de guerra especialmente fretados para aquela operação, destacando o documento: “Ali devem reunir-se oficiais franceses de Bonaparte, em número de aproximadamente oitenta, setecentos oficiais americanos, duas escunas e um navio armado pelo Lord Cochrane, tendo a bordo oitocentos marinheiros e duzentos oficiais”.

Terminava assim o malogrado plano daqueles aventureiros de resgatar Napoleão Bonaparte de sua prisão na pequenina ilha rochosa de Santa Helena e transformá-lo no grande comandante dos exércitos republicanos da América do Sul.

Findaram-se assim, sem maiores consequências, os sonhos daqueles bonapartistas que, como os nossos patriotas, também acreditaram no arrebol da República de Pernambuco de 1817.

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 30 de agosto de 2017

CRUZ CABUGÁ. O NOSSO PRIMEIRO EMBAIXADOR.

 

Ainda está por se escrever sobre as repercussões em outros continentes da Revolução Republicana em 1817 em Pernambuco, particularmente na Europa e nos Estados Unidos. Muito embora o diplomata Gonçalo Mello Mourão já tenha estudado às implicações do movimento em vários países, quando da publicação do seu livro, A Revolução de 1817 e a História do Brasil (Ed. Itatiaia, 1996)¹ , fatos menores, porém, estão a despertar a curiosidade dos que se interessam pela importância de nossa primeira república.

 

 

A chamada República de Pernambuco, pela segunda vez Restaurado, alusão ao episódio da primeira Restauração Pernambucana (1654), teve curta duração, pouco mais de 45 dias, mas os seus efeitos repercutiram em várias partes do mundo. Ao contrário da ótica da maioria dos estudiosos do período, o movimento republicano de 6 de março de 1817 “criou o Brasil a nível internacional como entidade independente e com ela começa a História Diplomática do Brasil. […] É com a Revolução de 1817 e sua repercussão, nacional e internacional, que o Brasil e sua história diplomática própria nascem, entendidos aí tanto os fatos que ele próprio criou com a configuração de sua imagem externa” (Mourão, p. 48/1996).

Apesar de acontecer numa época de difíceis meios de comunicação, a Revolução Republicana de 1817, em Pernambuco, alcançou repercussão invulgar na correspondência diplomática da época, hoje conservada em arquivos de Lisboa, Londres, Paris, Madri, Viena, São Petersburgo e Washington. Os acontecimentos do Recife ganharam às páginas dos jornais londrinos de língua portuguesa – Português, Investigador Português e Correio Brasiliense -, tendo o Time (Londres) lhe dedicado o editorial de sua edição de 27 de maio de 1817, cujo noticiário transcrevia a correspondência trazida pelo navio Tigris, abrindo a sua edição com a manchete de primeira página: General Insurretion in the Brasilis (Insurreição Geral no Brasil).

De 27 de maio a 16 de junho daquele ano, o Time mantém os seus leitores informados acerca da República de Pernambuco, estendendo-se o noticiário até 1º de agosto, quando narra os acontecimentos de sua derrocada. Nesse período nada menos de 21 editoriais foram dedicados à Revolução de 1817, sendo o seu noticiário transcrito em 58 edições daquele jornal londrino.

Nos Estados Unidos, a chegada do enviado dos revolucionários pernambucanos, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, aparece na imprensa de Boston, tendo sua fracassada missão se estendido por dois meses.

O homem dos 800 mil dólares

O escritor Laurentino Gomes, ao escrever sobre “A República de Pernambuco”, no seu livro 1808 etc. , inicia sua narrativa pela figura do comerciante Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, “agente secreto de uma conspiração em Pernambuco” que andava em maio de 1817 pelas ruas da Filadélfia, então capital dos Estados Unidos da América, “levando na bagagem 800.000 dólares”, quantia assombrosa para à época equivalente, em 2007, “a cerca de doze milhões de dólares” (!)

O nosso primeiro representante nos Estados Unidos, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, fora enviado pelos maçons de Pernambuco, por ocasião da eclosão da Revolução Republicana de março de 1817, com o intuito de comprar armas para combater as tropas do rei Dom João VI; conseguir apoio e simpatias do governo americano para com a “nova república independente no Nordeste brasileiro” e, o que parecia mais sonhador, “recrutar alguns antigos revolucionários franceses exilados no território americano para, com ajuda deles, libertar Napoleão Bonaparte prisioneiro dos ingleses na ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul, desde a derrota na batalha de Waterloo (1815).”

Dos revolucionários da República de 1817, foi o que melhor se saiu, pois continuando nos Estados Unidos da América, só retorna a Pernambuco em 1826, após o perdão real de 1821, para reaver seus bens deixados no Recife.

Com a proclamação de Independência do Brasil, pelo príncipe Dom Pedro, em 7 de setembro de 1822, Antônio Gonçalves de Cruz, o Cabugá, veio a ser nomeado “Cônsul privativo deste Império”, junto ao Governo dos Estados Unidos, pelo chanceler José Bonifácio”.

Segundo confirma o diplomata João Alfredo dos Anjos, em seu livro “José Bonifácio, o primeiro Chanceler do Brasil” (Brasília, 2008), “a sua Carta Patente de 5 de fevereiro de 1823, é encapada por carta de Bonifácio na qual se menciona, mais uma vez, o seu patriotismo, além da sua experiência, como razões da chancela do Imperador ao seu nome. A decisão já estava tomada em novembro de 1822, pois (Antônio) Gonçalves da Cruz aparece entre os agraciados da Ordem do Cruzeiro, como cônsul em Filadélfia” Segundo Hildebrando Accioly, in O Reconhecimento da Independência do Brasil pelos Estados Unidos da América :

Ao chegar (em 1824) aos Estados Unidos (José Silvestre) Rebello (o primeiro Encarregado de Negócios do Brasil em Washington) ali já encontrara, exercendo oficiosamente funções consulares, Antônio Gonçalves da Cruz, conhecido pela alcunha de Cabugá, que em 1817 servira como comissário do Governo republicano revolucionário de Pernambuco naquele país. Nomeado Cônsul-Geral pelo Governo imperial em 15 de janeiro de 1823, nunca chegou a assumir o cargo oficialmente. Naquela época era praxe, provavelmente herdada da administração portuguesa, que as pessoas designadas para ocupar cargos consulares solicitassem à Secretaria de Estado, pessoalmente ou por procurador, as respectivas cartas patentes, pagando os competentes emolumentos. Gonçalves da Cruz não o fez, talvez por ignorar esta norma, tendo-se limitado a esperar que a Repartição lhe remetesse o documento, o que nunca ocorreu. Consequentemente, não pôde tampouco obter do Governo americano o necessário exequatur. Isto não o impediu, porém, de trabalhar muito pelo reconhecimento da Independência do Brasil junto ao mesmo Governo.

¹ MELLO-MOURÃO, Gonçalo de B.C. e. A Revolução de 1817 e a História do Brasil – Um estudo de história diplomática, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1996

² GOMES, Laurentino – 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo, Ed. Planeta, 2007.

³ANJOS, João Alfredo. José Bonifácio o primeiro Chanceler do Brasil. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2008. 424 p.il.

4 ACCIOLY, Hildebrando. O Reconhecimento da Independência do Brasil pelos Estados Unidos da América, São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936, p. 77-91


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 23 de agosto de 2017

NA RUA DO BOM JESUS, TEM INÍCIO A HISTÓRIA DOS JUDEUS NOS EUA

 Rua da Cruz, dos Judeus e do Comércio, c. 1855. Recife, Pernambuco. Augusto Stahl.

 

Com a ocupação holandesa em Pernambuco (1630-1654), milhares de judeus se estabeleceram no Nordeste do Brasil no ramo do comércio, particularmente do açúcar e do tabaco, chegando alguns a possuir engenhos, dedicar-se à cobrança de tributos, empréstimo de capital e no comércio de escravos originários da costa africana.

O aumento da comunidade fez com que, alguns integrantes mais ricos da gente da nação (como se autodenominavam) fixarem-se na guarda do Bode, em terreno comprado pelo judeu Duarte Saraiva, em 1635, à Companhia das Índias Ocidentais. Depois de algumas construções, o terreno, que ficava próximo a “Porta de Terra” no lado norte da cidade, dando origem a chamada de Rua dos Judeus, hoje Rua do Bom Jesus.

Duarte Saraiva, conhecido entre os do Recife e da Holanda pelo nome de David Senior Coronel, era um dos principais líderes da comunidade de então. Na sua casa funcionou a primeira sinagoga do Recife, em 1636, antes de ser construído o prédio destinado à Kahal Kadosh Zur Israel, ou seja, a “Santa Comunidade o Rochedo de Israel”.

Curiosamente, nesta sinagoga da Rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife, vem ter origem a história da Comunidade Hebraica dos Estados Unidos, conforme proclamação assinada pelo presidente Barack Obama, datada de dois de maio de 2012:

Há trezentos e cinquenta e oito anos atrás, um grupo de 23 refugiados judeus fugiram do Recife, Brasil, afligidos pela intolerância e opressão. Para eles, a partida marcou mais um capítulo da perseguição sofrida por um povo que tem sido testado desde o momento em que juntos passaram a professar sua fé. No entanto, foi também o marco de um novo começo. Quando estes homens, mulheres e crianças aportaram na Nova Amsterdam – que veio posteriormente a ser a Cidade de Nova Iorque – eles encontraram não apenas um porto seguro, mas as sementes de uma tradição de liberdade e oportunidades que uniria a suas histórias à história da América para sempre.

Esta saga tem início quando da rendição das tropas holandesas no Recife, em 27 de janeiro de 1654, dando causa a diáspora de 150 famílias judaicas forçadas a retornar aos Países Baixos e de lá, novamente, ao Novo Mundo, espalhando novas comunidades em ilhas do Caribe e na América do Norte.

Um desses grupos saídos do Recife vem a ser embarcado no navio holandês Valk, com destino aos Países Baixos. Na viagem de retorno vieram a se tornar prisioneiros de corsários espanhóis, sendo, porém, resgatados na Jamaica por franceses e, com estes, rumaram em direção à Nova Amsterdam a bordo do barco Sainte Catherine.

Em setembro de 1654, esses 23 judeus [entre homens, mulheres e crianças] já se encontravam na Nova Amsterdam, fundando assim a primeira comunidade judaica daquela que veio ser a cidade de Nova Iorque.

Segundo consultas ao arquivo do cemitério da Congregação Shearith Israel, daquela cidade, membros da Congregação Zur Israel do Recife aparecem em documentos do início da segunda metade do século XVII. Um deles, Benjamin Bueno de Mesquita, falecido em 1683, tem a sua lousa tumular preservada naquele cemitério; acrescentando a mesma fonte:

Corsários, piratas e a intolerância religiosa ibérica tornariam ainda mais complicada a já difícil viagem de alguns desses judeus. Em Amsterdã, o rabino português Saul Levi Mortera – professor de Baruch Spinoza e mais tarde seu “excomungador” – deu conta dos percalços sofridos por uma dessas embarcações em um manuscrito não publicado do qual apenas restam seis cópias:

O navio foi capturado pelos espanhóis, que queriam entregar os pobres judeus à Inquisição. Ainda assim, antes de poderem cumprir os seus ímpios desígnios, o Senhor fez aparecer um navio francês que libertou os judeus dos espanhóis, levando-os depois para África, posto o que chegaram salvos e em paz à Holanda.

Um outro navio, atacado por piratas ao largo do cabo de Santo António, em Cuba, seria também resgatado por um barco francês – o Sainte Catherine, comandado pelo capitão Jacques de la Motthe. A 7 de Setembro de 1654, com 23 judeus portugueses a bordo, o Sainte Catherine aporta a Nieuw Amsterdam, na ilha holandesa de Manhattan, a cidade que mais tarde passaria a ser conhecida como Nova Iorque.

Dessas vinte e três pessoas – homens, mulheres e crianças – sabe-se hoje muito pouco. São seis famílias, encabeçadas por quatro homens e duas viúvas. Só os seus nomes são mencionados nos registos oficiais. Mesmo assim é fácil adivinhar-lhes a proveniência: Abraão Israel Dias, Moisés Lumbroso, David Israel Faro, Asher Levy, Enrica Nunes e Judite Mercado. Entre esses adultos, foram identificados três homens citados no relatório da cidade como pessoas que assinaram o livro de atas da Congregação Zur Israel do Recife, no ano de 1648: Abraham Israel, David Israel e Mose Lumbroso.

Permanece o cemitério dos primitivos judeus do Recife em Nova Iorque, nos dias atuais, conservado pela Congregação Shearith Israel, estando localizado em um movimentado cruzamento daquela cidade, assinalado por uma placa com dizeres em inglês: “O Primeiro Cemitério da sinagoga Hispano-Portuguesa, Shearith Israel, na Cidade de Nova York 1656 – 1833”.

O tamanho da área do cemitério é pouco maior do que o de duas quadras de tênis. Parte acabou sendo destruída quando uma rua foi construída décadas atrás. Ao redor, famílias chinesas observam muitas vezes sem entender o que existe de especial nesse cemitério unindo as histórias de Brasil, Estados Unidos, Portugal, Holanda e da diáspora judaica.

Esses descendentes dos judeus saídos do Recife em 1654 se transformaram em figuras proeminentes na sociedade americana. Um deles, Benjamin Cardozo, já falecido, alcançou o posto de juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos. Outro Bruce Bueno de Mesquita, professor da Universidade de Nova York, é o mais destacado especialista de teoria dos jogos aplicada à ciência política.

O episódio que marca a presença dos vinte e três judeus do Recife na história da cidade de Nova Iorque (1654) é hoje reconhecido amplamente pelos norte-americanos, a ponto do Presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, assinar, em dois de maio do ano de 2012, a seguinte proclamação:

Há trezentos e cinquenta e oito ano atrás, um grupo de 23 refugiados judeus fugiu do Recife, Brasil, afligidos pela intolerância e opressão. Para eles, a partida marcou mais um capítulo da perseguição sofrida por um povo que tem sido testado desde o memento em que juntos passaram a professar sua fé. No entanto, foi também o marco de um novo começo. Quando estes homens, mulheres e crianças aportaram na Nova Amsterdam – que veio posteriormente a ser a Cidade de Nova Iorque – eles encontraram não apenas um porto seguro, mas as sementes de uma tradição de liberdade e oportunidades que uniria a suas histórias à história da América para sempre.

Esses 23 crentes abriram o caminho para milhões. Durante os próximos três séculos, judeus de todas as partes do mundo seguiram para construir novas vidas na América – um país onde a prosperidade é possível, onde os pais podem prover a seus filhos mais do que ele próprios tiveram, onde famílias não mais sofreriam a ameaça de violência ou exílio, onde podiam professar sua fé abertamente e verdadeiramente. Mesmo aqui, os judeus americanos suportaram tormentos de opressão e hostilidade; mesmo assim, através de cada obstáculo, gerações carregaram em si a profunda convicção de que um futuro melhor estava ao seu alcance. Na adversidade e no sucesso eles se apoiaram mutuamente, renovando o a tradição de comunidade, propósitos morais, e esforço comum tão presente em sua identidade.

Suas histórias de continua perseverança e crença no futuro são uma lição não apenas para os judeus americanos, mas para todos os americanos. Gerações de judeus americanos têm contribuído para alguns das grandes realizações do nosso país e para sempre enriquecido nossa vida nacional. Como um produto da herança e da fé, eles têm aberto nossos olhos para a injustiça, para os mais necessitados, e para a simples idéia de que nos devemos nos reconhecer através da luta dos nossos companheiros homens e mulheres. Estes princípios têm levado os defensores judeus a lutar pela igualdade das mulheres e pelos direitos dos trabalhadores, e pregar contra o racismo a partir da bimah (púlpito); eles inspiraram muito a liderar marchas contra a segregação, ajudaram a forjar os laços inquebráveis com o estado de Israel, e deu suporte o ideal de tikkun olam – nossa obrigação em reparar o mundo. Judeus americanos têm servido heroicamente em batalhas e nos inspirado na busca da paz, e hoje, eles se postam como líderes em comunidades por toda a nossa Nação.

Mais de 300 anos depois que aqueles refugiados puseram os pés na Nova Amsterdam, nós celebramos o permanente legado dos judeus americanos – dos milhões que cruzaram o Atlântico em busca de uma vida melhor, dos seus filhos e netos, e de todos cuja crença e dedicação os inspiraram a atingir o que seus antepassados podiam apenas imaginar. Nosso país se fortalece através de sua contribuição, e este mês, nós comemoramos a miríade de formas com as quais eles enriqueceram a experiência americana.

AGORA, POR ISSO, EU, BARACK OBAMA, Presidente dos Estados Unidos da América, em virtude da autoridade em mim investida pela Constituição e leis dos Estados Unidos, por meio desta proclamo mês de maio de 2012 como o Mês da Herança Judaico Americana. E conclamo todos os americanos a visitar o site www.JewishHeritageMonth.gov para aprender mais sobre a herança e contribuição dos Judeus Americanos e respeitar este mês com programações apropriadas, atividades, e cerimônias.

EM FÉ DO QUE, eu assino o presente documento neste segundo dia de Maio, do ano de dois mil e doze, duzentos e trinta e seis da independência dos Estados Unidos da América.

BARACK OBAMA


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 16 de agosto de 2017

O POVO PERNAMBUCANO

 

 

Passados quinhentos anos de sua descoberta pelos portugueses, o Brasil apresenta-se com um biótipo próprio de sua gente, que em nada se parece com o português colonizador, o índio que já habitava a terra e o negro trazido da África como escravo para aqui construir o país-continente dos nossos dias. 
 
“O brasileiro, como bem afirma Darci Ribeiro, tem a cara do povo brasileiro; ele não se parece nem com o português, nem com o índio, nem muito menos com o negro. Trata-se de um povo de identidade própria”.
 
Na verdade, um povo de mestiços, formado pelo cruzamento de várias raças, com influência de levas de colonizadores diversos, chegados em diferentes épocas, que transformaram o Brasil numa imensa democracia racial, com valores, usos e costumes diversos de quaisquer outros povos.

1. JERÔNIMO, O ADÃO PERNAMBUCANO
 
A mestiçagem de nossa gente, já registrada por Joaquim Nabuco, quando da publicação de O Abolicionismo  (Londres: 1883) – “Nós não somos um povo exclusivamente branco, e não devemos portanto admitir essa maldição da cor; pelo contrário, devemos tudo fazer para esquece-la” (p. 22) –  estabelece que, ao contrário de outros países, como nos Estados Unidos da América,  a condição de liberto não impedia ao ex-escravo galgar os patamares da pirâmide social, e esclarece na mesma obra:

No Brasil, ao contrário: a escravidão ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, nunca desenvolveu a prevenção da cor, e nisso foi infinitamente mais hábil. Os  contatos entre aquelas, desde  a colonização primitiva dos donatários até hoje, produziram uma população mestiça, como já vimos, e os escravos ao receberem a sua carta de alforria, recebiam também a investidura de cidadão. Não há assim entre nós castas sociais perpétuas, não há mesmo divisão fixa de classes. O escravo, que como tal praticamente não existe para a sociedade, […] é no dia seguinte  à sua alforria um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos, e o mesmo grau de elegibilidade. Pode mesmo, ainda na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez mesmo quem sabe? – algum filho do seu antigo senhor. Isso prova a confusão de classes e indivíduos , e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos brasileiros, se se pode assim dizer, mestiços políticos, nos quais se combatem as duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado. (p. 174-75). 1

Isso porque, como bem observou recentemente Darci Ribeiro, “no Brasil a miscigenação nunca foi crime, nem pecado, daí o surgimento de um povo novo, o povo brasileiro, que em nada se parece com o português, o negro ou o índio”. 2

Em Pernambuco, um  aspecto que marcou a civilização duartina foi a mestiçagem que logo tomou conta da sociedade, encorajada pelo primeiro donatário como se depreende das cartas jesuíticas da época, denunciando a indiscriminada atividade sexual dos portugueses com os nativos; o que faz Francis Dutra concluir que “desde o filho mais novo do primeiro donatário aos mais insignificante degredado, os portugueses foram pais de gerações de mestiços”. Em depoimento prestado perante o inquisidor Heitor Furtado de Mendoça (sic.), datado de Olinda, 15 de novembro de 1593, Manuel Álvares, um criado de Dona Brites d’ Albuquerque, faz referência a “Manoel d’ Oliveira, mameluco que dizem ser filho bastardo de Jorge de Albuquerque e de uma índia mestiça deste Brasil”, in Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Denunciações  de Pernambuco, 1593-1595. Recife: Fundarpe, 1984.  p. 74; havendo ainda referências a uma escrava, de nome Antônia, que Jorge de Albuquerque no seu retorno à Portugal, in Naufrágio que passou Jorge Dalbuquerque, cap. XIII.
 
Somente Jerônimo de Albuquerque (O Torto), cunhado do primeiro donatário, em seu testamento, firmado em Olinda, em 13 de novembro de 1584, reconhece como filhos onze concebidos de sua mulher legítima, Filipa de Melo; oito com a índia Maria do Espírito Santo; cinco com outras mulheres, uma das quais Apolônia pequena, mãe do seu filho Felipe de Albuquerque, citado expressamente no testamento, deixando dúvidas ainda sobre uma filha tida com uma de suas escrava, de nome Maria, e de uma outra, Jerônima, “que se criara em sua casa e que foi tida por sua filha, mas que Deus sabia a verdade do ocorrido”. Dos oito filhos com a índia, posteriormente legitimados pela Coroa, os dois mais notáveis foram Catarina de Albuquerque, que se casou com o florentino Felipe Cavalcanti, fundador do clã Cavalcanti de Albuquerque, e Jerônimo de Albuquerque que, como veremos, veio ganhar fama com a expulsão dos franceses do Maranhão no início do século XVII.


 
Da descendência de Jerônimo de Albuquerque originaram-se algumas das mais  tradicionais famílias pernambucanas, como Cavalcanti Albuquerque, Fragoso de Albuquerque, Albuquerque Maranhão, Siqueira Cavalcanti, Pessoa de Albuquerque, dentre outras, justificando assim o apelido de Adão Pernambucano ,  dado no decorrer dos séculos ao seu patriarca. 3


 
Como bem dizia na época Caspar van Baerle, “não existe pecado do lado de baixo do Equador”  e, nos nossos dias, Chico Buarque de Holanda acrescentou: “vamos fazer um pecado, rasgado, suado, a todo vapor…”.

2. PRESENÇA HOLANDESA

A essa democracia racial acrescente-se a contribuição dos que para aqui se transferiram quando da Dominação Holandesa (1630-1654), estabelecendo-se com suas famílias e/ou casando-se com mulheres da terra ou portuguesas. Eram holandeses, franceses, flamengos, italianos, belgas, alemães e uma infinidade de judeus, oriundos da Península Ibérica e do Norte da Europa, que para aqui vieram e deixaram os seus descendentes, lembranças ainda hoje presentes em tipos alvos, de cabelos louros e olhos claros, encontrados em comunidades do nosso interior. Demonstra José Antônio Gonsalves de Mello, in Tempos dos Flamengos, que tais uniões eram tão freqüentes que no artigo 5º da versão holandesa do documento de capitulação, assinado em 26 de janeiro de 1654, “consentia aos vassalos dos ditos Senhores Estados Gerais casados com mulheres portuguesas ou nascidas na terra, que fossem tratados como se fossem casados com holandesas”. Uma testemunha da época, procurador da Coroa e Fazenda Real, Antônio da Silva e Souza, assegura que “concedeu-se aos flamengos que quisessem ficar logrando suas fazendas as terão assim como as tinham de antes e como se foram portugueses, gozando de todos os privilégios que eles gozam”4. – E não foram poucos os que ficaram, visto estarem unidos a mulheres da terra, com famílias  e propriedades estabelecidas.
 
Escrevendo sobre esse período do século XVII, Gilberto Freyre diz que :

Nesse Recife que se diferenciou tanto das outras cidades da colônia pelo seu gênero de vida e pela sua população desigual de neerlandeses, franceses, alemães, judeus, católicos, protestantes, negros e caboclos, não só se falaram por trinta anos, quase todas as línguas vivas da Europa e várias da África, como estudou-se e escreveu-se nas sinagogas um hebreu diverso do manchado e gasto pela boca dos askenazim: o velho e aristocrático hebreu guardado em toda sua pureza pelos rabinos de barba preta e olhos tristes que a Congregação de Amsterdam mandara para Pernambuco. 5

Mas se a atitude dos portugueses era tolerante para com a união entre brancos, índios e negros, o mesmo não se pode dizer das autoridades holandesas que, a todo custo, procuravam impedir o contato sexual de brancos, “considerada como tal a descendência holandesa e a norte-européia em geral”, com toda população de cor; segundo informa José Antônio Gonsalves de Mello:

Parece-nos que aí está um dos aspectos menos fraternos entre as classes dos dominadores e dominados. Os que ainda hoje lamentam, no Brasil, a expulsão dos holandeses do Nordeste talvez não tenham reparado convenientemente para esse aspecto. As antigas colônias portuguesas eram bem uma mostra do que teríamos que suportar dos flamengos: uma minoria de louros explorando e dominando um proletariado de gente de cor, ao contrário do que nos legaram os portugueses: uma terra de brancos confraternizando-se com negros e índios.6

Os portugueses, ao contrário, como bem observa Gilberto Freyre, in Casa-grande & Senzala, “enfrentaram inteligentemente o problema, transigindo na ordem civil e na própria ortodoxia católica”. Lembra o mesmo autor, citado por Gonsalves de Mello em artigo publicado no Diario de Pernambuco  de 12 de maio de 1988, que “o preconceito de raça entre os brasileiros foi sempre, e continua a ser, mínimo quando comparado com as formas que se apresentam entre povos europeus e da América do Norte”.
 
O acidente da cor,  como designavam  os portugueses as pessoas não brancas, não era motivo bastante para a discriminação de qualquer espécie. Opina José Antônio Gonsalves de Mello, no artigo com o mesmo título, citado anteriormente, que a Coroa Portuguesa, quando provocada, sempre se manifestou contrária a qualquer comportamento discriminatório para com os de raça negra ou mestiços, relacionando para isso uma série de fatos comprobatórios.
 
Assim aconteceu com “os moços pardos da Bahia” que, segundo o padre Serafim Leite, depois de lhes serem negada matrícula no colégio dos jesuítas de Salvador, em 1688, recorreram para o Rei e este, depois de advertir o provincial da Companhia de Jesus na Bahia, determinou a matrícula dos reclamantes, a exemplo do que já acontecia nas escolas de Coimbra e Évora.
 
No mesmo sentido o Rei de Portugal determinou, em carta datada de 7 de outubro de 1700 dirigida à Câmara Municipal de Olinda, que a  Ordem de São Bento e  mais tarde os padres Terésios, bem como outras ordens religiosas sediadas em Pernambuco, recebessem os mestiços, filhos dos moradores da terra, em seus conventos.
 
No âmbito dos franciscanos há o exemplo, comovente, daquele antigo soldado do Terço de Henrique Dias que, após a vitória sobre as tropas holandesas, resolveu recolher-se ao convento de Nossa Senhora das Neves de Olinda. Conta frei Jaboatão, em seu Novo Orbe Seráfico Brasílico  (Rio: IHGB, 1858), que “depois de muitos anos no convento, vendo que não o admitiam ao sacerdócio, a que tanto aspirava, viajou  a Lisboa a queixar-se ao rei de Portugal, D. Pedro II, conhecido como um amante inveterado de mulheres “da mais baixa condição e em grande número de diferentes cores”,  o qual atendendo às boas informações que teve do reclamante, ordenou que o admitissem à profissão, o que finalmente se fez no seu convento olindense a 2 de agosto de 1689, “quando já contava com 80 anos de idade”, vindo a falecer “com opinião universal de virtude e fama de santidade a 25 de agosto de 1695”.

Exemplo significativo de preconceito racial de um governador de Pernambuco é o de Duarte Sodré Pereira, que se recusou dar posse no cargo de procurador da Coroa ao bacharel formado em Coimbra Antônio Ferreira de Castro, pelo fato de ser mulato. O rei em carta de 9 de maio de 1731 repreendeu o governador “tendo entendido que se não tivestes  justa  razão, porquanto o defeito que dizeis haver no dito provido, por ser pardo, lhe não obsta para esse ministério.

No meio militar há dois casos dignos de serem referidos. O primeiro é o do soldado do regimento dos Henriques do Recife, Manuel Pereira de Melo, “homem preto e livre”. Em memorial ao rei em 1700, queixou-se de que servia na tropa há 27 anos, sempre como soldado, tendo participado das lutas contra indígenas rebelados, mas ao longo desse tempo nunca tinha tido uma promoção e pedia que lhe fosse dado um posto de capitão no seu regimento.  O rei ordenou que o governador de Pernambuco o provesse em uma das patentes vagas, que ele pudesse preencher a contento. O outro caso é o relativo ao Mestre de Campo do regimento dos Henriques, Domingos Rodrigues Carneiro. Escreveu ele ao rei, em 1702, que os soldados brancos de guarda nos quartéis, quando ele passava por tais lugares, não lhe faziam a cortesia de pegar em armas, como deviam por sua patente militar, isto é, deixavam de fazer a saudação que era devida. A determinação régia foi que “os soldados que servirem de sentinela no corpo de guarda tomem as armas do Mestre de Campo Domingos Rodrigues Carneiro, por esse estilo praticado, segundo as regras militares.8

Quando das guerras contra a Holanda, no século XVII, o acidente da cor  não veio impedir que o mulato João Fernandes Vieira, o índio Antônio Felipe Camarão e o negro Henrique Dias recebessem, em épocas distintas, a comenda do Hábito da Ordem de Cristo, a mais cobiçada honraria outorgada pela coroa portuguesa aos seus fidalgos.

3. CIDADÃO BRASILEIRO

E dentro da permissividade que marcou a nossa sociedade colonial surgiram vários tipos de raças cruzadas:  mestiços de branco com índio, o caboclo ou mameluco; e o nosso mestiço por excelência, o mulato, para quem Gilberto Freyre dedica os capítulos finais do seu Sobrados e mucambos. Surge ele do  cruzamento de branco com negro, ou, como ensina George Marcgravi, “natus ex patre europeo et matre ethiopissa dicitur mulato” 9
 
O século XIX, chamado por muitos de “o século das luzes”, veio transformar radicalmente o panorama humano das cidades brasileiras. Transformação não somente no âmbito das novidades aqui chegadas após “a abertura dos portos a todas as nações amigas”, a partir de 1808, mas sobretudo no âmbito das idéias, com a proliferação dos doutores e bacharéis formados, inicialmente,  por Coimbra, Montpellier, Paris, Inglaterra e Alemanha, e posteriormente pelos cursos de direito do Recife e São Paulo, medicina da Bahia e Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Foram eles os indutores das novas idéias liberais, postas em prática em 1817 e 1824 em Pernambuco, que vieram despertar a consciência nacional para o valor do mestiço nacional e emancipação do elemento escravo, bem como da sua importância na formação do produto nacional bruto.
 
Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, chama a atenção para os versos de Alvarenga Peixoto, inconfidente nascido em c  de 1744 e falecido em Angola em 1793, que, já no século XVIII, faz exaltação em forma poética ao trabalho manual e, conseqüentemente, ao mestiço operário:

[…] homens de vários acidentes
pardos, pretos, tintos e tostados.
[…] os fortes braços feitos ao trabalho.10

No âmbito da população, as figuras do mameluco  e do mulato  vieram conquistar posições de relevância, principalmente quando se tornavam detentores de um título de doutor ou bacharel, ou ainda de uma patente do nosso exército; segundo bem observa Gilberto Freyre:

Às vezes eram rapazes de burguesia mais nova das cidades que se bacharelavam na Europa. Filhos e netos de “mascates”. Valorizados pela educação européia, voltavam socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de terra. Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus superiores pela melhor assimilação de valores europeus e pelo encanto particular, aos olhos do outro sexo, que o híbrido, quando eugênico, parece possuir como nenhum indivíduo de raça pura, voltavam os mestiços ou os mulatos claros. Alguns deles filhos ilegítimos de grandes senhores brancos; e com a mão pequena, o pé bonito, às vezes os lábios  ou o nariz, dos pais fidalgos.

A ascensão do bacharel mestiço se fez rapidamente na sociedade brasileira, particularmente após 1827 com a criação dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo. Através do casamento com mulheres de famílias ricas e poderosas, vários deles ascenderam aos mais altos escalões do Império, como o nosso João Alfredo Correia de Oliveira, segundo Gilberto Freyre, um descendente  “de linda e agreste ameríndia que, na meninice, ganhara o apelido de Maria Salta Riacho. Apenas o neto da índia agreste tornou-se Ministro do Império aos vinte e tantos anos” 11
 
O mestiço de negros, por sua vez, foi mais prolífero , em que pese o “preconceito de branquidade, de sangue limpo”, retratados de forma humana pelo maranhense Aluísio de Azevedo (1857-1913) no seu romance O Mulato(1881), tornando-se mais presente na sociedade do século XIX. Nomes como José da Natividade Saldanha, Antônio Pedro de Figueiredo, Antônio Gonçalves Dias, Antônio de Castro Alves, André Rebouças, Tobias Barreto e centenas de outros servem de exemplo da influência do mulato na sociedade brasileira do século XIX.
 
O acidente da cor, do período colonial, foi cedendo lugar ao conceito de branquidade em razão do cargo,  lembrando Gilberto Freyre, a propósito de um fato narrado pelo inglês radicado em Pernambuco, Henry Koster, autor do livro Travels in Brazil,  publicado em Londres (1816), e traduzido para o português por Luiz da Câmara Cascudo, Viagens ao Nordeste do Brasil  (1941):

O título de Capitão-Mor arianizava os próprios mulatos escuros – poder mágico que não chegaram a ter tão grande as cartas de bacharel transformadas em cartas de branquidade; nem mesmo as coroas de visconde e de barão que Sua Majestade o Imperador colocaria sobre cabeças nem sempre revestidas  de macio cabelo louro ou mesmo castanho. Sobre cabeças cujas origens foram às vezes mais que plebéias. De um desses nobres chegou-se a dizer que nascera de mulher de cor, alcunhada – já o recordamos – Maria-você-me-mata, pela ardência em que, nos seus dias de moça, fizera os homens seus amantes se extremarem no gozo do sexo.12

Observava Henry Koster, a propósito da condição do mulato na sociedade de então, que se os papéis de um desses indivíduos o tiver como branco, “embora o seu todo demonstre plenamente o contrário”, ele pode ser nomeado para as ordens religiosas ou para a magistratura:

Conversando numa ocasião com um homem de cor que estava ao meu serviço, perguntei-lhe se certo Capitão-Mor era mulato. Respondeu-me: Era, porém já não é!   E como lhe pedisse explicação, concluiu: – Pois Senhor, um Capitão-Mor  pode ser Mulato?  13

Nos dias atuais, o acidente da cor,  como era denominado no período colonial, em nada interfere na pirâmide social. O mestiço é, como previra Joaquim Nabuco em 1883, não um afro-brasileiro, um colored como se diria nos Estados Unidos, mas um cidadão brasileiro.

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Notas:

1 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Londres: Typographia de Abraham Kingdom, 1883.

2 RIBEIRO, Darcy. Entrevista à Rede Globo de Televisão, Globo Repórter do dia 8 de novembro de 1996.

3 FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas. Rio: José Olympio Editora, 1953. p. 26-29.

4 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos – Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. Recife: FUNDAJ – Editora Massangana, 1987. p. 141-43.

5 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos – Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. Rio: José Olímpio Editora, 1981. p. 320.

6 MELLO, José Antônio Gonsalves de. op. cit. p. 190-91

7 MELLO, José Antônio Gonsalves de. “O acidente da cor”, Diario de Pernambuco. Recife: 12 de maio de 1988.

8 MARGRAVI, Georgi e PISO, Willem. Historiae rerum naturalium Brasilia etc. Amsterdam: Elzevirium, 1648.

9 ALVARENGA Peixoto. “Canto Genetlíaco” Obras poéticas de Inácio José de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro, 1865.

10 FREYRE, Gilberto. op. cit. p.  574.

11 FREYRE, Gilberto . op. cit. p. 584.

12 FREYRE, Gilberto. op. cit. p. 587.

13 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Prefácio e tradução de Luiz da Câmara Cascudo. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1978. p 377 (Coleção pernambucana; 1 ª fase, v. 19).


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 09 de agosto de 2017

DERBY, O QUE ESCONDE ESTE BAIRRO

O bairro do Derby tem uma história singular, mas pouco conhecida dos recifenses dos nossos dias… Quem por lá passa, ou mesmo ouve falar, mal desconfia que, por traz de tão diminuto nome se esconde tanta história do passado do Recife.

– Sim… Derby.

Quem há de lembrar que nos anos finais do século XIX, o que veio a ser o simpático e agradável bairro do Recife fora um centro comercial de padrões internacionais, tendo por atração o Derby Club e, nele, um dos melhores hotéis da América do Sul, além de um Mercado Modelo que, de tão moderno, seria o inspirador de todos os avançados centros de compra (Shopping Centers) dos nossos dias (!).

Tudo começa quando, em terras da antiga Sociedade Hípica Derby Club, fundada em 6 de dezembro de 1888, o industrial Delmiro Augusto da Cruz Gouveia (1863 -1917) resolve iniciar, em 1898, a construção do Mercado da Estância ou Mercado Modelo, mais conhecido pela população como Mercado do Derby. Para isso firmou contrato de isenção de impostos com o município do Recife pelo prazo de 25 anos, ficando as obras concluídas em 7 de setembro de 1899. O novo edifício em estilo neogótico dispunha de 129 metros de fachada dividida em dois corpos principais com pavilhões em suas extremidades.

 

Mercado do Derby

Mercado do Derby

Voltado para o nascente, o Mercado do Derby dispunha de 18 portões e 112 janelas, localizando-se no centro um pavilhão em dois pavimentos onde funcionava a administração, com uma vista de todo o movimento dos corredores centrais. As cobertas dos dois corpos principais eram suspensas por quatro linhas e 16 colunas em ferro, sendo o pavilhão central cercado por ventiladores que se encarregavam da renovação do ar e da luminosidade do ambiente. Possuía o mercado 264 compartimentos, dispostos em forma de três ruas paralelas, sendo servido por água encanada, esgotos e uma central de energia elétrica, a grande novidade da época.

Em frente à fachada principal, tinha início uma área ajardinada com 400 metros quadrados de extensão, onde eram disputadas corridas de bicicleta e, mais adiante, à direita, foi erguido um luxuoso hotel com vários salões para jogos, cafés, restaurantes e outros divertimentos, sendo todo o conjunto servido por uma linha da Companhia de Ferro Carril, que administrava o transporte coletivo por tração animal.

 

mercado do derby2

Assinala a Wikipédia ser o atual bairro do Derby, no final do século XIX, algo inusitado difícil em ser concebido pelos que o conhecem em nossos dias:

“O empreendimento incluía mercado, hotel, cassino, velódromo, parque de diversões e loteamento residencial e causou admiração junto a segmentos da população do Recife, que se orgulhavam deste empreendimento a colocar a cidade em sintonia com o que havia de mais moderno e sofisticado no mundo da época. Expressão de progresso e civilidade, o Derby era um centro de diversões modernas que levou ao Recife os prazeres desconhecidos, produzidos com o auxílio da técnica e da ciência”.

A escritora americana norteamericana Marie Robinson Wright em seu livro The New Brazil (1901) (¹) descreve:

“Muitos estrangeiros visitam o porto de Pernambuco todo ano, e não é raro ver meia dúzia de nacionalidades representadas nos hotéis de seus atraentes subúrbios, especialmente no Derby, que é um dos mais pitorescos lugares que se pode imaginar, com bonitas casas, sombras de arvoredos, leve movimento das águas do rio, pequenas pontes artísticas semienterradas na vegetação das margens, e canoas alegremente pintadas deslizando na superfície da água. Este subúrbio goza da distinção de possuir um dos melhores hotéis da América do Sul; o Hotel do Derby é perfeitamente moderno em todos os sentidos e orientado por um padrão metropolitano de serviço. O mercado do Derby é um dos maiores estabelecimentos do seu tipo, no Brasil, e está equipado para os amplos negócios que diariamente são nele realizados. O subúrbio deve seu aspecto atraente à empresa de um cidadão muito progressista, Senhor Delmiro Gouveia, o proprietário, que tem pessoalmente dirigido tudo em sintonia com o desenvolvimento do empreendimento”.

O empreendimento contava com um dos melhores hotéis da América do Sul; o Hotel do Derby, que era considerado moderno em todos os sentidos, e prestava um padrão metropolitano de serviços. O mercado do Derby foi um dos maiores do gênero, no Brasil, e estava bem equipado para os negócios que diariamente nele eram realizados. Nele, além dos artigos comercializados nos mercados na época como os alimentos, se vendia gelo, jornais diários, artigos para fumantes. Havia filial da Livraria Francesa, lojas de perfumarias, lojas de tecidos, de calçados, de louças, de miudezas, e outras.

 

Hotel Internacional (Cartão Postal datado de 1908) (2)

Hotel Internacional (1908)

“Estrategicamente localizado fora do centro da cidade, numa área cercada por rios e mangues, adotava já naquela época um dos princípios de marketing que norteiam os shopping centers do século XXI: a garantia um isolamento espacial, um ambiente autônomo e com lógica própria, ideal para favorecer as compras e longe de tudo aquilo que possa dificultá-la – o barulho e o movimento das ruas, a falta de segurança, as intempéries naturais. O Derby do final do século XIX era ligado a outras localidades por bondes de bagagem, que trafegavam de manhã, para atender seus clientes”.

No Derby a diversão era a finalidade do empreendimento, e o consumo era promovido como espetáculo, distração, aventura e prazer, procurando ligaá-lo à ideia de progresso, distinção, status e bom gosto. Já naquele tempo utilizava iluminação elétrica com uso cenográfico, e seus funcionários eram orientados para atender com cortesia os clientes, enquanto a música, a variedade de comidas, bebidas e jogos formavam o espetáculo neste “Centro Comercial e de Diversões”. A então magia proporcionada pela luz elétrica e pelo cinema encantavam seus frequentadores.

Era estimulada a prática de esportes, que passaram a ser símbolos de distinção social: corridas de bicicleta (com casa de apostas), regatas, ginástica, jogos de bilhar, dados e dominó, tiro ao alvo, boliche e corridas de pedestres. A exposição denominada “Paris no Derby” constitui-se “um pavilhão para exhibição de diversos apparelhos electricos de diversões” .

Os jornais do Recife noticiavam que grandes multidões – de até oito mil pessoas, segundo matéria no Jornal Pequeno – frequentavam o Derby, e se constituíam num espetáculo à parte. Como os shopping centers de hoje em dia, o Derby visava a estender o consumo às horas livres, às noites, e aos dias santificados.

Mas, não se esqueça caro leitor de hoje, que estávamos no Recife, capital mundial da inveja e da cobiça…

O pior estava por vir…

O que era um paraíso, assinalado pela imprensa da época com títulos como Paris no Derby (Jornal Pequeno, Recife, 11 set. 1899) e causava admiração a todos que nos visitavam, num passe de mágica veio a ser destruído pelos inimigos do industrial Delmiro Gouveia: Na madrugada de 2 de janeiro de 1900, militantes da polícia civil, gente da confiança do vice-presidente da República, Francisco de Assis Rosa e Silva (1857-1929), e do governador do Estado, Sigismundo Antônio Gonçalves (1845-1915), botaram fogo na ala sul do Mercado do Derby, provocando a sua destruição e a consequente falência do empreendimento.

O ato criminoso já era esperado, depois da agressão de Delmiro Gouveia ao conselheiro Rosa e Silva, em 17 de junho de 1899, em plena Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro; episódio largamento divulgado tanto por jornais situacionistas como oposicionistas, e que veio dar causa ao incêndio e consequente destruição do Mercado do Derby.

O jornal recifense A Província publicou, em 4 de janeiro de 1900, um telegrama atribuído ao governador Sigismundo Gonçalves para o Conselheiro Rosa e Silva: “Mercado incendiado. Delmiro preso. Saudações, Sigismundo Gonçalves“.

No que restou do suntuoso prédio funcionou, anos depois sediou a Escola de Aprendizes Artífices (1909) e, no governo de Sérgio Loreto (1922-1926), foi nele instalado o 1º Batalhão de Infantaria Estadual, passando a ser ocupado definitivamente pelo Comando da Polícia Militar de Pernambuco a partir de 19 de novembro de 1925; conjunto arquitetônico devidamente tombado pelo Conselho Estadual de Cultura.

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1) WRIGHT, Marie Robinson. The New Brazil. It’s Resourses and attractions. Historical, Descriptive and Industrial. Philadelphia, George Barrie & Son, 1901. 314 p.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 02 de agosto de 2017

JOSÉ MINDLIN - UMA SAUDADE

De repente, ele deu adeus de mansinho e lá se foi do nosso convívio. Era domingo, 28 de fevereiro de 2010,  quando de Gustavo Krause recebi a notícia ainda em pleno almoço.

Em dezembro de 2000, quando do ingresso no século XXI, nós comentávamos com graça em encontro no Rio de Janeiro, que, a partir de então passaríamos a ter a mesma idade, “éramos homens e mulheres do século passado”…

De repente, no videoteipe da memória, uma amizade constante de pouco mais de três décadas passou a ser recordada nos seus momentos mais alegres e tocantes.

A minha amizade com José Mindlin é fruto desses encontros proporcionados pelo destino, ao longo de toda uma vida dedicada aos livros; afinidades que se encarregam de nos unir e tudo em volta passa a ter aquele gostinho de eternidade.

Os livros, no seu silêncio, possuem alma e estão sempre a procurar por seus donos e  a unir amigos, transformando vidas e aglutinando bibliófilos.

Assim foi com José Mindlin. Em 1977, havia eu editado o livro Diario de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais 1630-1632 (¹) , escrito por Ambrosius Richshoffer no século XVII, dentro da primeira fase da Coleção Pernambucana, desenvolvida por mim no Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco, entre 1975 e 1979. Coincidiu que, neste mesmo ano, recebi a edição francesa deste mesmo livro, impressa numa reduzida tiragem de 250 exemplares, com ilustrações valiosas, sob a orientação e bom gosto de um descendente daquele autor.

A nova edição francesa logo despertou o interesse do bibliófilo José Mindlin que, sabedor de que eu possuía o nº 221, com uma simpática dedicatória assinada pelo editor Frédéric Richshoffer, apressou-se em pedir a um amigo comum a possibilidade de eu, desfazendo-me do meu exemplar, o repassasse para sua biblioteca.

Com bom humor, respondi ao nosso amigo que “a melhor coisa é dispor na nossa estante de um livro que José Mindlin deseja para sua biblioteca…”.

Com graça José Mindlin respondeu: “Pensei tratar-se de um editor, mas vejo que estou diante de um bibliófilo…”.

Assim consolidou-se a nossa amizade em torno dos livros; amizade esta que, em tudo, tinha o sabor da eternidade.

Tornou-se assim uma convivência constante, com longas conversas telefônicas nas manhãs dos sábados, trocas de livros, garimpagens em bibliotecas particulares, e encontros habituais no Recife e  em São Paulo.

Quando eu ia a São Paulo, hospedava-me em sua casa da Rua Princesa Isabel, e ele, por algumas vezes, esteve no Recife ficando comigo na “Pensão da Rua Marquês de Maricá”. De certa feita, em 26 de fevereiro de 1999, ele me trouxe um livro com a “Colleção completa de Máximas pensamentos e reflexões do Marquez de Maricá”, Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), edição de Eduardo e Henrique Laemmert (Rio de Janeiro, 1850), trazendo um cartão com a seguinte dedicatória: “Leonardo, meu caro, aí vai a sabedoria do Marquez de Maricá, juntando-se à rua, o Recife terá uma nova Academia. Um abraço amigo do José”.

Era uma amizade alegre, cercada de bom humor, com conversas de grande conteúdo, registrando até um seu telefonema de Praga, numa chuvosa manhã de domingo, só para trocar idéias sobre elementos de arquitetura barroca existentes na capital da República Tcheca.

Foi ele, por algumas vezes, Grande nos seus gestos para com Pernambuco:

Em 1996, depois de tomar conhecimento de que a primeira edição do livro de José Antônio Gonsalves de Mello, Gente da Nação – Cristãos-novos e Judeus em Pernambuco – 1542-1654, publicada por mim através de subscrição popular em 1989 encontrava-se esgotada, ele conseguiu do banqueiro Joseph Safra os recursos necessários para uma segunda edição, com a sua apresentação. (²)

Quando lhe foi oferecida à compra da Biblioteca de José Antônio Gonsalves de Mello em 1999, ele ponderou afirmando que tal acervo deveria permanecer em Pernambuco, graças à importância dos seus títulos e anotações para a história local.

Devido a sua ponderação e recomendação do conteúdo, a biblioteca na sua totalidade veio a ser adquirida um ano depois pelo industrial Ricardo Coimbra de Almeida Brennand que a conserva, aberta aos pesquisadores, no seu instituto em terras da Várzea do Capibaribe.

Em 2004, ao adquirir toda a coleção das gazetas pernambucanas e outros jornais ao Instituto Ricardo Brennand, José Mindlin concordou com a microfilmagem de todos os exemplares originais. As cópias do microfilme de toda coleção encontram-se hoje no Instituto Ricardo Brennand (Recife), na Hemeroteca da Fundação Joaquim Nabuco,  restando ainda uma terceira para a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Com essas cópias micro filmadas o acesso à informação fica facilitado a todos os pesquisadores interessados naqueles atribulados anos de nossa história política e social.

As coleções desses jornais, parte deles do período anterior à Independência do Brasil (1822), foram adquiridas pelo Instituto Ricardo Brennand (Recife), em novembro de 2003, juntamente com outros impressos dos séculos XVIII e XIX, que os repassou para a Biblioteca de Guita e José Mindlin no ano seguinte. O acervo é originário da hemeroteca do historiador pernambucano Alfredo de Carvalho (1870-1916), autor da obra Annaes da Imprensa Periódica Pernambucana de 1821-1908 (Recife 1908), e encontrava-se preservado com carinho pela família do contabilista Leopoldo Luís dos Santos por quase um século.

Na coleção se encontram quinze exemplares avulsos do primeiro jornal a circular em Pernambuco, o Aurora Pernambucana, iniciado em 27 de março de 1821, tendo por redator o escritor português Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858); este casado em Pernambuco com Inácia Cândida do Rego Barreto, filha do governador Luís do Rego Barreto (1817-1821).

Além dos primeiros números desse jornal, o acervo em questão possui ainda às coleções dos seguintes periódicos: Segarrega, iniciado em dezembro de 1821, 24 edições; Relator Verdadeiro, 1821, reunindo seis edições; Gazeta do Governo Provisório [instituído quando do rompimento de Pernambuco com Portugal], um único número, 1822; Gazeta Pernambucana, 1822, reunindo dezoito edições; O Escudo da Liberdade, 1823, duas edições; O Marimbondo, 1822, coleção completa com cinco edições; Gazeta Extraordinária do Governo, 1822, dois exemplares; Diario da Junta do Governo, 1823, oito edições; Diario de Pernambuco, a partir de 1829, reunindo seis edições; Bússola da Liberdade, 1832, seis edições; O Velho Pernambucano, 1833, reunindo sete edições; A Cotidiana Fidedigna, 1834, reunindo 6 edições; O Azorrague, 1845, reunindo 49 edições.

Trata-se da mais rara coleção de jornais pernambucanos já reunida por um particular, com direito a capitulo especial no primeiro volume da obra Destaques da Biblioteca InDisciplinada de Guita e José Mindlin, organizada pelo próprio José Mindlin em 2005. Vários daqueles jornais, aqui relacionados, são únicos. Não se sabendo da existência de alguns desses originais nem na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional e muito menos no Arquivo Público do Estado de Pernambuco, sendo vários deles desconhecidos até pelos que se dedicaram à  História da Imprensa no Brasil.

Além das gazetas pernambucanas, a coleção em questão possui também jornais de outras partes: A Gazeta do Rio de Janeiro (n. 104/1822); Jornal do Commercio  do Rio de Janeiro (n. 1 e n. 8/ 1827); Cidade do Rio, n. 221, 1889; Jornal de Princesa, Paraíba, número único 11 de junho de 1930; Gazeta de Lisboa, n. 221 de 18 de setembro de 1819; Cabichui, jornal paraguaio de 1867 narrando a vitória de Solano Lopes contra as forças imperiais brasileiras.

Pernambuco não lhe faltou em vida. Um gesto apenas, originário da Direção Regional do SESC, demonstrou a José Mindlin a nossa gratidão, por sua simpatia e dedicação aos nossos interesses culturais. Na Praia da Piedade, em município fronteiro ao Recife, Jaboatão dos Guararapes, uma biblioteca tem hoje o seu nome: Biblioteca José E. Mindlin. Inaugurada em 22 de março de 2002, com o seu retrato, pensamentos e algumas de suas obras, ela lá está a lembrar às novas gerações a importância deste que foi por toda vida “um amigo dos livros”.

Durante toda sua existência, ele cumpriu à risca o ensinamento de Michel de Montaigne (1533-1592) – Não faço nada sem alegria -, daí ter escolhido tal pensamento para o selo do seu Ex Libris e assim contagiar os seus amigos com o vírus da bibliofilia.

Ele se foi com a sua alegria, nos deixando órfãos de sua presença e de seu constante incentivo, frustados com a perda daquele sentimento de eternidade que nós pensávamos que nos iria acompanhar até o fim dos nossos dias.

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1) RICHSHOFFER,  Ambrósio.  Diário  de  um  soldado  da   Companhia  das Índias Ocidentais 1629-1632. Tradução de Alfredo de Carvalho. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Prefácio de Ricardo José Costa Pinto. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1977. 210 p. il. (Coleção  pernambucana;  1ª  fase,  v. 11 a). Fac-símile da. ed. Recife: Typographia a vapor de Laemmert  & Comp., 1897.

2) MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Apresentação de José E. Mindlin. 2.  ed. Recife: FJN, Ed. Massangana, 1996. 552 p. (Descobrimentos, n. 6). 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 20 de julho de 2017

FESTA DOS ÍNDIOS PELADOS

 

 

Em 11 de maio de 1644, João Maurício de Nassau deixou triunfantemente a sua Cidade Maurícia. Montado a cavalo, seguido de um grande séqüito de admiradores, cavalgou ele pelo litoral em busca da Paraíba. A sua despedida de forma apoteótica, como a exaltar o sucesso dos sete anos do seu governo, mereceu de Netscher, escrevendo com a parcialidade de cidadão holandês, uma descrição sentida, com cores fortes e povoada por palavras tomadas de emoção, que vale a pena transcrever:

Pelo litoral passou por Olinda, Itamaracá, atingindo o Paraíba onde deveria embarcar. Por toda parte recebeu expressivas homenagens que significavam estima, reconhecimento e saudades. Sua viagem tomava o aspecto de uma marcha triunfal. As populações dos lugares por onde ia passando formavam alas para dizer-lhe adeus. Essas aclamações eram acompanhadas pelas bandas de música que toca¬vam o hino nacional Wilhelmus van Nassauwen e de salvas de canhões a lhe prestarem as últimas honras militares. O nosso aliado Jandui, chefe dos Tapuias, enviou uma delegação (entre a qual se achavam três dos seus sessenta filhos) para pedir a Maurício, mais uma vez, adiasse a partida, si isso fosse possível.

O seu embarque se dá no porto de Cabedelo, na Paraíba, levando em sua comitiva o Escabino e homem de negócios Gaspar Dias Ferreira, uma espécie de seu testa-de-ferro em negociatas nunca bem explicadas, figura misteriosa de agente duplo, com sua participação ainda por ser estudada.

Em Cabedelo, um grupo de índios afasta os guardas de sua escolta e o transporta, nos ombros, até o escaler que flutuava sobre as ondas, esperando para conduzi-lo até o Zuphen. Somente no dia 22 de maio de 1644 é que a esquadra levanta âncoras, deixando desolados nas praias dezenas de índios que com o Conde Nassau desejavam embarcar para a Holanda. Todo o episódio do seu embarque é descrito com cores vivas pelo cronista Gaspar Barlaeus (1647).

Partiu o Conde de Nassau no mesmo barco que o trouxera ao Brasil em 1637, o Zuphen. Ao seu redor navegava uma frota de treze navios, tripulados por 1.400 marinheiros, armados com 327 canhões, e um carregamento avaliado em 2.600.000 florins, composto principalmente de açúcar, pau-brasil, madeiras de lei [notadamente jacarandá e pau-violeta], fumo, pau-campeche [o caule e as raízes apresentam propriedades medicinais e deles se extrai matéria corante que contém hematoxilina], além de toda a produção de seus artistas e objetos vários, bem como curiosidades pertencentes ao seu museu de antropologia.

Depois de uma travessia, um tanto ou quanto atribulada, que lhe obrigara há vários dias de repouso após o desembarque no porto de Texel, o Conde de Nassau compareceu perante assembleia dos Estados-Gerais, reunidos na Haia, em 12 de agosto de 1644. Na ocasião, apresentou-lhes “um curto e prévio relatório a respeito de sua gestão no Brasil desde 1637”.

Em 20 de setembro do mesmo ano, tornou o Conde de Nassau à mesma assembléia onde, em nova audiência, pôde relatar a verdadeira situação do Brasil Holandês e, a exemplo do que fizera quando do seu Testamento Político, demorou-se bem mais no enfoque dos diversos assuntos, parte deles relacionados por Gaspar Barlaeus em seu livro (Amsterdã, 1647).

Reclamou o Conde de Nassau dos altos juros cobrados pela Companhia aos seus devedores, contrariando o próprio edital vigente que estabelecia o juro de 12% ao ano sobre as dívidas contraídas com a Companhia das Índias Ocidentais, conforme mais uma vez relata Gaspar Barlaeus em obra citada.

Além disso, deve atender-se a que um edito do ano de 1640 determinou que pelas dívidas garantidas por penhor não se cobrar juros superiores a 12% e pelas não garantidas apenas de 8%. São fáceis os exemplos de quão enormemente os nossos burlaram esta lei, exigindo um juro ilegal. Cosme de Oliveira, morador no Tijucupapo, tendo comprado alguns escravos por 9.000 florins, depois de pagar 12.000 de mora, foi preso por uma dívida de mais 15.000 florins. João Soares, cidadão de Muribeca, tendo recebido a crédito bens no valor de 36.000 florins, tendo pago 60.000, ainda devia de mora (ah! invoco o testemunho dos homens!) igual quantia! Seria, certamente, legal e justo abater-se os débitos destes quanto lhes foi cobrado com suma injustiça. Isto fizeram os Romanos, elaborando a Lei das Doze Tábuas para conterem os furores da plebe e suas justíssimas reclamações.

É desta época a notícia de uma curiosa festa brasileira, promovida por Nassau nos jardins e salões de sua residência, a Mauritshuis, na presença de nobres e embaixadores acreditados junto aos Países Baixos. Da crônica da vida diária da Holanda são freqüentes os comentários sobre esta festa, segundo se depreende da correspondência de muita gente famosa que descreve a festa brasileira com riquezas de detalhes. A nota de curiosidade da festa ficou por conta da apresentação da dança guerreira dos tapuias, nos mesmos moldes da que foi eternizada em tela por Albert Eckhout.

Na ocasião o Conde de Nassau fez apresentar os onze índios, que o acompanharam na sua viagem de regresso do Brasil, completamente despidos que com as suas setas e bordunas realizaram a dança ritual.

Assinala Besselaar que, “entre os convidados se achavam vários predicantes com suas esposas. Para alguns, a representação foi um grande escândalo e, justamente por ser motivo de escândalos para alguns, foi motivo de grande hilaridade para outros”.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 13 de julho de 2017

A VIDA PRIVADA NO BRASIL HOLANDÊS

 

 

 

Durante o Brasil Holandês (1630-1654) transferiram-se para Pernambuco indivíduos originários das mais diferentes partes do mundo de então. Eram judeus, mercenários, predicantes, comerciantes e funcionários da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais, ou simplesmente aventureiros e até prostitutas, todos em busca de dias melhores na Terra do Açúcar.

O Recife de então se transformara numa verdadeira Torre de Babel. As suas ruas, praças, templos e tavernas encontravam-se tomadas por holandeses, noruegueses, belgas, flamengos, ingleses, alemães, escoceses, dinamarqueses, além de um imenso número de judeus; estes últimos divididos em sefardins, oriundos da Península Ibérica, e askenazins, procedentes do norte da Europa.

Por força da Guerra Brasílica esses recém-chegados tiveram de conviver com mazombos, como eram chamados os naturais do Brasil, portugueses, espanhóis, italianos, ameríndios (a quem chamavam de brasilianner) e negros escravos originários das mais diferentes regiões da África.

Ao contrário dos portugueses que encontraram uma cultura ameríndia e dela tiraram proveito, os holandeses, em sua maioria formada por gente acostumada a viver nas cidades, vieram a sofrer por uma total falta de meios de subsistência o que tornou impossível à preservação da vida na colônia.

No Brasil, os holandeses continuaram a viver com os mesmo hábitos, como se ainda estivessem na Holanda. De lá eram transportados para o Brasil os produtos mais diversos. Até o necessário e o indispensável à subsistência, como a carne de boi e de carneiro salgadas, provinham de portos holandeses. Além destas, também de lá vinham o toucinho, presunto, língua, salmão, bacalhau, peixe seco, biscoitos, arenque, farinha de trigo, vinhos da Espanha, aguardente de uva, vinhos franceses do Reno, cerveja (birra), queijos diversos, manteiga, azeite, passas de Corinto, azeitonas, alcaparras, amêndoas e, sobretudo, farinha de trigo.

Mesmo a alimentação do corpo de tropas era dependente dos produtos importados. Para os soldados era solicitado que viessem da Holanda produtos como aveia, feijão, ervilhas, carne salgada, bacalhau, peixe seco, cerveja, vinho da Espanha, “vinho forte francês”, arroz, favas turcas [milho], cevada, passas e farinha de trigo. – Tal dieta, na qual predomina o álcool, as conservas e o sal, veio contribuir para a derrota das tropas da Companhia nas duas batalhas dos Montes Guararapes nos anos de 1648 e 1649.

Nenhuma simpatia para com os produtos da terra. Nada de frutas, verduras, batatas, legumes, raízes, caules e produtos à base da mandioca, como a farinha-de-pau, e outras culturas da terra, utilizadas à larga na alimentação dos portugueses, ameríndios e negros escravos.

Também da Holanda para cá foram trazidos gatos (para combater a incontrolável população de ratos), gansos, patos, porcos, além de cães ingleses empregados na captura de índios, negros fugidos e insurretos pernambucanos.

De portos europeus provinham os tecidos do vestuário dos holandeses – linhos, brocados, veludos, damascos, sedas, etc. -, que aqui chegavam juntamente com sapatos ingleses, selas de montaria, o marfim e o ouro da Guiné, pau-de-rede de Angola, especiarias da Índia, madeiras do Báltico, couros da Rússia, chapéus, plumas e tudo o que se podia comprar com os florins resultantes da venda do açúcar dos engenhos pernambucanos.

Até para a satisfação do apetite sexual dos flamengos, não muito dado a exotismos, vieram da Holanda um considerável número de prostitutas, como as que habitavam os sobrados da Rua do Vinho, paralela a Rua dos Judeus, onde se localizavam “os mais vis bordeis do mundo”.

Muitas dessas “mulheres fáceis”, como a elas se referiam os documentos, aparecem com os seus nomes mais conhecidos: Cristinazinha Harmens, Anna Loenen, Janneken Jans, Maria Roothaer (Maria Cabelo de Fogo), Agniet, Elizabeth (apelidada de a Admirael), Maria Krack, Jannetgien Hendricx, Wyburch van den Cruze, Sara Douwaerts (apelidada de Senhorita Leiden), havendo outras duas conhecidas por Chalupa Negra e Sijtgen, segundo demonstra José Antônio Gonsalves de Mello em Tempo dos Flamengos (1987).

No que diz respeito à convivência com as diversas etnias, os holandeses encontraram em Pernambuco uma sociedade de mestiços e foram obrigados a com ela conviver tolerando seus usos, costumes e até uniões as quais não estavam habituados.

Em 1646, segundo recenseamento realizado em fins de 1645 estaria confinado no centro do Recife um total de 4.660 pessoas, “entre particulares, empregados da Companhia e escravos”; população esta acrescida em 1.169 soldados que compunham o efetivo das guarnições dos fortes ali situados.

Segundo estimativa do cronista do Journael, publicado em Arnhem (capital da província de Géldria, no Baixo Reno), em sua edição de junho de 1646, por essa época, viviam no Recife cerca de 8.000 habitantes.

A fim de abrigar tanta gente, em tão diminuto espaço de terra, foram utilizadas todas as habitações disponíveis, acrescidas dos armazéns do porto e até dos sótãos [parte da casa entre o forro e o telhado] dos sobrados, alguns deles com quatro pavimentos. Neles eram acomodados “caixeiros, auxiliares de escrita e serventes”, em número de três a oito deles em cada cômodo, sob um calor asfixiante, com suas camas coladas às outras, na maior das promiscuidades.

Em cartas do Conselho do Recife, datadas de 31 de março e 20 de dezembro de 1641, nos deparamos com esses comentários: Se nós não abrigarmos essa gente em habitações coletivas, ela vai procurar alojamentos nas bodegas do porto, que são os bordeis mais vis do mundo. Ai! Do mancebo que ali cair – fica votada a irremissível perdição.

Diante de tamanha promiscuidade, não é de admirar que a vida na colônia tornou-se um verdadeiro inferno. A falta de água potável e alimentação adequada, sobretudo a ausência de vitaminas no cardápio diário, trouxeram consigo o crescimento dos casos de escorbuto e outras doenças, como a hemeralopia (deficiência de visão à luz do sol; cegueira diurna), disenterias sangüíneas (ventris fluxus, Piso), moléstias do fígado, surtos de gripes,dentre outras que dizimaram um grande número de pessoas.

Com a chegada sempre crescente das levas de aventureiros, dentre eles um elevado número de prostitutas, a sífilis transformou-se numa verdadeira epidemia no Brasil Holandês. Os médicos de então, como o cientista Willem Piso, foram procurar cura para tais doenças junto à flora medicinal indígena e experientes médicos portugueses, que recomendavam para a infecção por gonorréia o sumo da cana, através do qual, “fica-se curado dentro de oito dias”.

Sobre o estado de promiscuidade atingido pela capital do Brasil Holandês, comenta Hermann Wätjen (2004) “que pelas ruas do Recife andava muita gente pouco ajuizada e que aí todas as portas se achavam abertas ao vício. Os soldados arrebanhados de todos os campos de batalha da Europa, para arriscarem diariamente a vida e a saúde numa campanha de guerrilhas, contra um inimigo ardiloso e prático, queriam gozar à rédea solta os dias de folga”.

Todos eles, soldados, marinheiros, capitães, agricultores, lotavam os botequins e albergues, ingerindo grandes quantidades de vinho e outras bebidas destiladas. Eram portugueses, holandeses, negros, indígenas, turcos, judeus, mazombos, mulatos, mamelucos, crioulos, ingleses, franceses, alemães, italianos, cujo “panorama de excessos não pode ser descritos por simples palavras”.

Dentro dos lares, ao contrário dos portugueses que escondiam suas mulheres e filhas da vista dos estranhos, os holandeses eram por demais liberais em suas relações com a sociedade.

Suas mulheres, em maior número do que as originárias de Portugal revelavam uma jovialidade pouco comum às nativas. Testemunha frei Manuel Calado, quando das festas em regozijo à Aclamação do Duque de Bragança, D. João IV, ao trono de Portugal, realizadas no Recife em abril de 1641.

E se o banquete era jantar durava a beberronia (ato de beber sem comedimento) até a noite, e se era ceia até a madrugada; e nestes convites se achavam as mais lindas damas e as mais graves mulheres, holandesas, francesas e inglesas, que em Pernambuco havia, e bebiam alegremente melhor que os homens, e arrimavam-se ao bordão de que aquele era o costume de suas terras.

No ambiente familiar, onde reinava tal liberdade, passou a ser comum a prática do adultério como se depreende das inúmeras denúncias chegadas ao Conselho Eclesiástico; assim assevera Hermann Wätjen (2004): Muita mulher infiel de soldado, metida em varas, teve de passar horas inteiras no pelourinho, exposta ao calor ardente do sol, na praça pública; muita dama elegante foi vergastada coram publico pelo carcereiro mor.

Militares e civis, em quantidade considerável, foram expulsos da colônia por crimes de bigamia; o que fez com que as autoridades exigissem de todo homem casado, logo que chegasse ao Recife, a apresentação da respectiva certidão de casamento.

A ata do Conselho da Zelândia, de 7 de agosto de 1649, narra o fato de certo capitão holandês, dado à prática da pederastia, ter sido transferido para a ilha de Fernando de Noronha e de lá para uma prisão em Amsterdã “em cujos cárceres pudesse acabar a sua arruinada existência”.

Neste ambiente restaram poucas casas de portugueses que viessem a merecer descrições mais apuradas de cronistas holandeses. Segundo documentos da época, os portugueses viviam em “distritos agrícolas, em miseráveis casas de taipa”, denunciando, inclusive, “falta de asseio do corpo e da casa”.

A casa rural dos portugueses é descrita como desprovida de conforto e ostentação de riqueza. Dispunha de poucos móveis, sendo grande parte dela construídas em taipa e cobertas de telha, observando-se a existência de pelo menos dois pavimentos, dominados por grande varanda.

No interior da casa, a mulher, sempre cercada por um razoável número de escravas, recebia os visitantes, sentada sobre um estrado, “conservando os pés escondidos, pois é considerado indecente mostrá-los aos visitantes, seja amigo ou pessoa estranha”.

A mesa era farta de alimentos proporcionados pelas culturas da terra, notadamente a mandioca da qual retiravam a farinha e a massa, usada largamente em sua culinária. Dela também fazia parte os tubérculos, verduras, legumes, frutas, que davam acompanhamento aos peixes e às carnes. As refeições eram seguidas de uma enorme variedade de doces e frutas cristalizadas, “que gozam da melhor aceitação entre velhos e jovens”.

Com respeito à dieta da família portuguesa, observa o reverendo Vicente Soler, em uma de suas cartas ao teólogo André Rivet, de Leiden, que “em lugar de pão o povo em geral come certa farinha, branca como neve, feita da raiz de certo vegetal. Alguns fazem bolos com ela, os quais alguns dos nossos consideram muito mais saboroso do que o melhor pão de cereais de que em geral não temos falta”. Nas suas observações, assegura o calvinista espanhol ser o português abstêmio ao vinho e outras bebidas alcoólicas, dando preferência à água natural, embora seja um apreciador dos sumos das frutas, adocicado com açúcar.

Segundo carta-geral do Governador e Conselho, datada de 14 de janeiro de 1638 e citada por Hermann Wätjen (2004), “as mulheres dos portugueses andavam por demais ataviadas de jóias (algumas falsas), vestindo-se pomposamente, enquanto alguns homens apresentavam-se mal vestidos. Nas casas portuguesas mais distintas, quando as mulheres saem às ruas são sempre carregadas por dois escravos, deitadas em redes ou sentadas em cadeirinhas, devidamente cobertas por um véu”.

Por conta de sua vida sedentária, recolhida ao interior da casa senhorial, sem quase receber os raios do sol, com a sua dieta plena de doces e outros produtos manufaturados com o açúcar, a fisionomia da mulher portuguesa é pouco atraente, pois logo perde os dentes, tornando-se gordas e pesadas.

O homem português era um eterno ciumento de sua mulher e filhas, tomando as precauções inimagináveis para tornar impossível que elas recebam galanteios de outros homens ou em absoluto figure em negócios do amor. Daí a razão de terem as portuguesas tão pouca liberdade de movimento e serem obrigadas pelos seus maridos à vida caseira.

Não obstante registrava-se um razoável número de uniões de mulheres da terra com holandeses. Frei Manuel Calado, em seu relato (1648), observa que “vinte mulheres portuguesas se casaram com os holandeses, ou para melhor dizer, amancebaram, pois se casaram com hereges e por predicantes hereges (…) porque, como eles eram senhores da terra, fazia as coisas como lhes parecia, e era mais honroso e proveitoso”.

Na verdade um grande número de holandeses, senhores-de-engenho em particular, veio a casar com mulheres da terra ou portuguesas. Além de Gaspar van der Ley, aqui também casaram Abraham Tapper, Joris Garstman, Johan Heck, Jan Wijnants; o mesmo acontecendo no Rio Grande do Norte e no Maranhão, como conta o padre Antônio Vieira.

Com outras etnias, a exemplo dos negros e dos índios, a união com holandeses era vista sobre um prisma diverso. Enquanto os portugueses foram por todo o tempo tolerante para com as uniões mestiças, entre brancos, índios e até negros, o mesmo não se pode dizer das autoridades holandesas. Estas, a todo custo, procuravam impedir o contato sexual de brancos, “considerada como tal a descendência holandesa e a norte-européia em geral”, com toda população de cor.


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 06 de julho de 2017

A PROSTITUIÇÃO NO BRASIL HOLANDÊS

 

 

 

Da promiscuidade do dia-a-dia, agravada a cada dia com a chegada de um número cada vez maior de aventureiros, dentre os quais um grande número de prostitutas. A sífilis veio a tornar-se uma verdadeira epidemia no Brasil Holandês de então, obrigando cientistas, como os médicos Willem Piso e Georg Marcgrave, autores do livro clássico Historia Naturalis Brasiliae (1648), buscar a cura para tal doença junto à flora medicinal indígena e aos médicos portugueses, que recomendavam para a infecção por gonorréia o sumo da cana fermentado, através do qual “fica-se curado dentro de oito dias”.

A propagação da lues, como também é denominada a sífilis, era propiciada pelo grande e imenso bordel a que fora transformado o Recife de então. Tal importação vem acontecer logo nos primeiros anos do Brasil Holandês, que recebeu verdadeiros “carregamentos de mulheres perdidas”, como se depreende das cartas do Conselho do Recife.
 
Muitas dessas “mulheres fáceis”, como a elas se referiam os documentos, aparecem com os seus nomes mais conhecidos: Cristinazinha Harmens, Anna Loenen, Janneken Jans, Maria Roothaer (Maria Cabelo de Fogo), Agniet, Elizabeth (apelidada de a Admirael), Maria Krack, Jannetgien Hendricx, Wyburch van den Cruze, Sara Douwaerts (apelidada de Senhorita Leiden), havendo outras duas conhecidas por Chalupa Negra e Sijtgen, segundo demonstra José Antônio Gonsalves de Mello em Tempo dos Flamengos
 
Sobre o estado de promiscuidade atingido pela capital do Brasil Holandês, comenta Hermann Wätjen que “pelas ruas do Recife andava muita gente pouco ajuizada e que aí todas as portas se achavam abertas ao vício. Os soldados arrebanhados de todos os campos de batalhas da Europa, para arriscarem diariamente a vida e a saúde numa campanha de guerrilhas, contra um inimigo ardiloso e prático, queriam gozar à rédea solta os dias de folga”.
  
O mesmo proceder acontecia com os marinheiros, após travessias de muitas semanas no mar, quase sempre envolvidos em batalhas e refregas. Também acontecia com os homens procedentes dos engenhos de açúcar, que se encontravam no Recife de passagem, longe da vista de suas famílias.

Todos eles, soldados, marinheiros, capitães, agricultores, lotavam os botequins e albergues, ingerindo grandes quantidades de vinho, bem como outras bebidas destiladas. Eram portugueses, holandeses, negros, indígenas, turcos, judeus, mazombos, mulatos, mamelucos, crioulos, ingleses, franceses, alemães, italianos, cujo panorama de excessos, segundo Pierre Moreau não pode ser descritos por simples palavras.

A terrível problemática habitacional levou a promiscuidade e a consequente dissolução moral da capital do Brasil Holandês contribuindo para a elevação do número de doenças epidêmicas, com o aumento do número de óbitos e a derrocada de sua estrutura política e militar.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 21 de junho de 2017

JUNHO DAS NOITES BRASILEIRAS

BDSJ

 

No nosso calendário de festejos populares, a festa do Senhor São João se torna a mais festejada em Pernambuco, nesse mês dedicado aos santos de junho.

É também a festa mais antiga do Brasil, já registrada por frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil 1500-1627, que assim as descrevia: “acudiam com muita boa vontade, porque são muito amigos de novidades, como no dia de São João Batista por causa das fogueiras e capelas”.

Trata-se de uma festa de grande misticismo, a partir do próprio nome Batista – o que batiza cheio de graça -, em cuja noite se praticava feitiçarias, como demonstra a denúncia de Madalena de Calvos contra Lianor Martins, a Salteadeira, acusada dentre outras coisas, de trazer consigo uma semente enfeitiçada colhida na noite de São João, segundo depoimento prestado perante o inquisidor Heitor Furtado de Mendoça, em 22 de novembro de 1593, quando da primeira visitação do Santo Ofício a Pernambuco.

As festas juninas foram trazidas para o Brasil pelos colonizadores portugueses, eles próprios ainda hoje cultores desta milenar tradição marcada pelas festas de Santo Antônio, em Lisboa e em Lagos; São João, no Porto e em Braga, e São Pedro, em Évora e Cascais. Na Europa as festas juninas coincidem com o início do verão, daí a presença da tradição de costumes pagãos dentro dos festejos, como adivinhações e o culto ao fogo.

No que diz respeito às fogueiras, ensina a tradição cristã divulgada pelos jesuítas ter sido um compromisso de Santa Isabel, prima da Virgem Maria, de mandar erguer uma enorme fogueira no sentido de anunciar o nascimento de seu filho João Batista: “Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. Veio ele como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por seu intermédio. Ele não era a luz, mas devia dar testemunho da luz”. (João 1,6-8).

No Brasil as festas juninas acontecem com o início do inverno, tempo de colheita do milho e do feijão no Nordeste, que sempre está à espera das boas invernadas de modo a afastar o espectro das estiagens de modo a garantir a sua subsistência; como na polca de Zé Dantas e Luís Gonzaga, Lascando o cano (RCA 80/307B-1954):

 

Vamo, vamo Joana
Findou-se o inferno
Houve um bom inverno
Há fartura no sertão…,
Ai! …Joana, traz pamonha, milho assado
Vou matá de bucho inchado
Quem num crê no meu Sertão.
Traz a riuna que eu vou lascar o cano
Pela safra desse ano
Em louvor a São João.

Em se tratando de um povo de bailadores, acostumado a dançar no meio da rua, na região Nordeste os festejos juninos são marcados, não somente pelas fogueiras, balões, comidas da época (nas quais predominam o milho, a mandioca, a castanha de caju e os doces variados), mas também pela música em seus mais diferentes gêneros a movimentar os arraiás, residências, comércio, clubes sociais, programação de rádio e televisão e, sobretudo, a alma festiva dessa gente; como naquela polca de Zé Dantas e Joaquim Lima, Chegou São João, gravada por Marinês (RCA- BBL1075-B-l/ 1960):

Eita pessoá!
Chegou São João!
Vou me espraiá,
Vou dá no pé prô meu Sertão.
Eu vou pra lá,
Brincá com Tonha,
Com Zefa e Chico,
Comer pamonha e canjica
Vou soltar ronqueira,
Bebê e dançar coco
Em volta da fogueira.
Vou soltá,
Foguete, balão, buscapé
Bebendo aluá, cachaça e capilé

………………………………….

A festa de São João tem início com o Acorda Povo, logo na madrugada do dia 23, acordando os moradores ao som de zabumba, caracaxá, ganzá, triângulo, sanfona, tudo movido a muita cachaça: “Acorda povo que o galo cantou / Foi São João que anunciou ….”.

No por do sol do dia 23, véspera da festa do santo, são acendidas às fogueiras e a festa tem continuidade com a Bandeira de São João. Uma procissão antecipada por uma estrela, coberta de papel celofane com cerca de 150 cm. de diâmetro, iluminada por velas no seu interior, carregada por dois meninos. Seguem-se duas filas, formadas por homens e mulheres, que cantam e dançam em honra do santo, fazendo marcação com os pés e, por vezes, trocando umbigadas. Segue-se de uma bandeira, pintada com a imagem do Batista menino com o carneirinho, segurada em suas pontas por quadro adolescentes, antecedendo ao andor com a imagem do santo, esculpida em gesso ou madeira, carregado por quatro moças vestindo branco, encarnado e verde, cores mantidas também nas lanternas dos acompanhantes. Finalmente uma banda de pífanos, ou um terno de sanfona (acordem, zabumba e triângulo), acompanha os seguidores no seu canto: “Que bandeira é esta / Que vai levantar/ É de São João para festejar/ Que bandeira é esta / Que já levantou/ É de São João, primo do Senhor”.

A música é uma constante nos festejos juninos desde os primeiros dias da colonização. Foi assim com as capelas, referidas pelo frei Vicente do Salvador e descritas pelo Padre Carapuceiro, continuando em nossos dias com a adaptação de ritmos oriundos de outras plagas, como o xote (schottisch), proveniente da Hungria; a polca e a mazurca, originárias da Polônia, e a quadrilha, que teve por berço os salões aristocráticos de França e, no Brasil, veio a ser dançada da Corte às casebres da zona rural, como bem assinala O Carapuceiro, em sua edição de 6 de abril de 1842: “Nas baiúcas mais nojentas/ Onde a gente mal se vê/ Já se escuta a rabequinha,/ Já se sabe o balancê./ Nisto mesmo está o mérito/ Deste dançar tão jacundo,/ Que sem odiosa exclusão,/ Acomoda todo o Mundo”.

Não faltam nessas animadas festas os ritmos originários da terra, como o coco-de-roda, originário dos batuques africanos, que marcado por um ganzá, nas mãos do solista (tirador), acompanhado por um tambor em compasso binário, e respondido pelas vozes dos dançarinos a marcarem o ritmo com sapateado dos seus tamancos de madeira, trocas de umbigadas e assim mantém a alegria a noite inteira. Para Pereira da Costa, in Folk-Lore Pernambucano (1908), o coco é a “dança querida do populacho, com certa cadência acompanhada a palmas, e na qual os foliões acomodam trovas populares repetidamente”[…] “o coco, porém, está tão vulgarizado que chegou mesmo à zona sertaneja, com a sua particular toada, mas, com letra variada, convenientemente acomodada ao canto, e obedecendo sempre a um estribilho contínuo, cantado em coro pelos circunstantes”.

O nosso coco, também veio a ser era descrito no conto de Luís Guimarães Júnior (1845-98), quando, estudante da Faculdade de Direito do Recife, publicou no Diario de Pernambuco, 8 de fevereiro de 1871, um conto sob o título “A alma do outro mundo”, no qual comenta o que chamou de “samba do Norte” , na verdade o nosso coco-de-roda.

Rodrigues da Carvalho, in Cancioneiro do Norte (1928), afirma ser o coco a “dança predileta do pessoal dos engenhos de açúcar, negros e caboclos, cambiteiros, o mestre de fornalha, o metedor de cana, o banqueiro [mestre que dá ponto ao açúcar], os tanjedores da almanjarra, etc.”. Mas na hora da alegria, onde a cachaça passa a dirigir os gestos e as ações, nem mesmo a autoridade está livre de uma roda de coco; como bem descreve Zé Dantas em gravação de Luís Gonzaga, em O Delegado no Coco  (RCA-Leme 801656A/1957):

 

O seu delegado fez mais um esforço
E madrugada mandou um reforço
Mas desconfiado por não ter notícia
Veio ver o que houve, com a sua polícia
E de manhã cedo, a graça do povo
Era o delegado contando bem rouco
Nesse coco poliça num tem vez
Se acaba no pau, quem falá em xadrez } bis

Também ligados ao Ciclo Junino, particularmente aos seus intérpretes, estão hoje o baião, o xaxado, a toada, a embolada, a ciranda e a marcha sertaneja, ou marcha junina, esta última originária das marchas populares com as quais Lisboa festeja o seu Santo Antônio e que vieram a ser conhecidas, através das companhias de revista, como marcha portuguesa, a exemplo da marcha de Zé Dantas e Luís Gonzaga, São João na roça (RCA 800895A/1952):

 

 

A fogueira tá queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou… ô
Vamos gente!…
Rapa pé nesse salão.
………………………….

Ou esta outra marchinha, marca do romantismo das noites juninas, composta por Luiz Gonzaga e José Fernandes, Olha pro céu (Vitale 603326832), recentemente relançada na coletânea 50 anos de chão, em homenagem ao Rei do Baião:

 

Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo…
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo…

Foi numa noite
Igual a esta
Que tu me deste
O coração
O céu estava
Assim em festa
Porque era noite
De São João
Havia balões no ar
Xote, baião, no salão
E no terreiro, o teu olhar
Que incendiou meu coração

Tudo acontece numa mistura de ritmos e de cores, num cadinho conhecido no passado por forrobodó, já neste século por forrobodança e a partir dos anos quarenta por forró, como lembra Zé Dantas in Forró do Mané Vito, gravado por Luís Gonzaga em 1949 (RCA 800668B/49) ser o local onde todos esses sons se misturam num grande baile popular.

Nas composições musicais do ciclo junino está toda moral do sertanejo, “Sertão das muié séria / Dos homi trabaiadô”… (A volta da asa-branca, toada de Zé Dantas, gravada por Luís Gonzaga, em 1950, RCA 800739 A) e a vida simples do seu povo:

Ai São João chegou,
Iaiá!
Ai São João chegou,
Sinhá!
Teu vestido de chita,
Já mandei preparar.
Minha roupa de lista,
Já mandei engomar,
Eu tenho uma festinha
Para te levar
Eu tenho uma fogueira,
Para o nosso lar

E hoje, o jovem romântico de ontem, pode lembrar com saudades aquelas noites juninas que não voltam mais, cantando aquele sucesso sempre atual, composto por Zé Dantas e Luiz Gonzaga em 1954, que leva o singular título de Noites brasileiras (RCA 801307 A):

 

Ai que saudade que eu sinto
Das noites de São João
Das noites tão brasileiras das fogueiras
Sob o luar do sertão

Meninos brincando de roda
Velhos soltando balão
Moços em volta à fogueira
Brincando com o coração
Eita São João dos meus sonhos
Eita saudoso sertão, ai, a


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 14 de junho de 2017

SANTO ANTÔNIO, O NOSSO MILAGREIRO

SANTO ANTONIO

 

O nosso Glorioso Santo Antônio, Padroeiro de Pernambuco, cuja data, por todos nós festejada no dia 13 do mês de junho, é segundo o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, o maior dos nossos milagreiros.

Segundo ele ainda hoje um historiador eclesiástico constata que “de todos os taumaturgos da igreja latina, nenhuma dispõe de clientela tão numerosa”; primado explicável pela sua função de santo do quotidiano, a quem se apelava nas dificuldades da vida diária, vezo que, aliás, o padre Antônio Vieira já criticava no Maranhão dos meados do século XVII.

“Muitos cuidam que se aproveitam das maravilhas de Santo Antônio, empregando a valia deste santo para o remédio das coisas temporais, e isto é desperdiçá-las.” E exemplificava: “Se vos adoece o filho, Santo Antônio; se vos foge o escravo, Santo Antônio; se mandais a encomenda, Santo Antônio; se esperais o retorno, Santo Antônio; se requereis o despacho, Santo Antônio; se aguardais a sentença, Santo Antônio; se perdeis a menor miudeza de vossa casa, Santo Antônio; e talvez se quereis os bens da alheia, Santo Antônio.” Além desta função de “paráclito universal”, que o fazia pau para toda obra.

Santo Antônio era sobretudo, como dizia o padre Vieira, um santo “deparador”, isto é, recuperador das coisas perdidas. “Deparar coisas perdidas é o gênio e a graça particular de Santo Antônio.” “Deus, como autor de todos os bens, é o que os dá; é o que os recupera.” Deus dera o Brasil aos portugueses; o flamengo herege usurpara-o; Santo Antônio lho restituiria. Em vista de devoção geral por Santo Antônio, era mister alistá-lo, mobilizando o ânimo tíbia da população luso-brasileira; e para tanto cumpria decifrar os signos da sua proteção sobrenatural à empresa.

Ao contrário da devoção a Nossa Senhora dos Prazeres, mas analogamente ao que se verifica em Nossa Senhora da Luz, a escolha de Santo Antônio pressupôs o seu culto no Pernambuco ante bellum; o êxito da ‘guerra da liberdade divina’ consolidará sua preeminência no imaginário religioso da capitania, ao conferir-lhe o cariz se santo militar.

TAMBÉM VEREADOR

Recentemente muita celeuma veio a ser causada por conta do soldo de vereador atribuído a Santo Antônio de Lisboa pela Câmara de Igarassu, fazendo honrar ao título que lhe foi concedido pelo Rei de Portugal ainda nos meados do século XVIII.

Tanta confusão por nada, vez que a tradição fez de Santo Antônio o santo mais popular de nosso país. Em Pernambuco foi o seu culto divulgado pelos frades franciscanos, já nos primeiros anos da colonização, ao fundarem em Olinda o primeiro convento em terras do Brasil (1585) e assim espalhar a devoção pelo santo lisboeta por todo Brasil.

Nascido em Lisboa, em 15 de agosto de 1195, e falecido na cidade italiana de Pádua, em 13 de junho de 1231, Santo Antônio tornou-se o orago mais popular do Brasil, onde possui 228 freguesias com a sua invocação. Em segundo lugar em popularidade viria São José, com 71 freguesias sob a sua proteção. Daí a afirmativa de Luís da Câmara Cascudo, in Dicionário do Folclore Brasileiro: “apesar de tanta bajulação e mudanças corográficas, o Brasil possui 70 localidades com o nome de Santo Antônio”.

No Recife a tradição do culto deste santo data de 1606, quando os mesmos franciscanos instalaram na então ilha de Antônio Vaz um convento sob a proteção de Santo Antônio, ainda hoje existente na Rua do Imperador e para onde aflui centenas de devotos em todas as terças-feiras do ano. Quando da elevação da então povoação à vila, em 19 de novembro de 1709, apesar de tentativa de eleger São Sebastião como padroeiro, numa bajulação flagrante ao governador Sebastião de Castro Caldas, o antigo “Povo dos Arrecifes” recebeu a denominação de Vila de Santo Antônio do Recife. A proteção do santo lisboeta foi mais tarde reconhecida pelo Papa Benedito XV, quando, em 12 de novembro de 1918, ao conceder o co-padroado da cidade a Nossa Senhora do Carmo, salientou ser “Santo Antônio o padroeiro principal”.

Por sua vez, a primitiva capitania de Pernambuco também tinha como padroeiro Santo Antônio de Lisboa, como bem demonstra Francisco Augusto Pereira da Costa, citando os estatutos da Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba, aprovados em alvará de 13 de agosto de 1759, onde, no seu artigo 2º, declara que esta “usará de armas para os selos em que se veja na parte superior a imagem de Santo Antônio, padroeiro daquela capitania”.

Também no Recife tem Santo Antônio a sua carreira como militar, chegando a ser promovido ao posto de tenente de artilharia do forte do Buraco, em ato confirmado pelo rei D. João V, em 30 de abril de 1717, que lhe atribuía o soldo de 2$700 [dois mil e setecentos réis], a ser recebido pelos frades do seu convento. Um século mais tarde, os mesmos frades solicitaram do governador Luiz do Rego a promoção de Santo Antônio ao posto de sargento-mor. Em seu despacho, de 30 de agosto de 1819, aquele governador indeferia o pedido com base no fato de que, “sendo o santo oficial que nunca morre, hão de necessariamente chegar um dia a gozar debaixo deste título o soldo de marechal do Exército, do que mais poderem inventar e então serão sustentados [os frades] às custas da real fazenda, o que me não parece preciso”.

Na primeira quinzena de junho, nas primeiras treze noites, é o santo festejado. Nas cidades, ou na zona rural, os seus fiéis estão a cantar a trezena que nós, desde pequenino, nos acostumamos a ouvir.

Milagroso Antônio
Nosso Padroeiro
Enche de alegria
Pernambuco inteiro


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 07 de junho de 2017

IOLANDA & ZÉ DANTAS, A PARCEIRA DO BEM-QUERER

Iolanda Dantas – 86 anos

Nestas festas do juninas de 2017, a musa maior do compositor José de Souza Dantas Filho (1921-1962) não se encontra entre nós; partiu para a eternidade em dois de janeiro passado aos 86 anos no Rio de Janeiro.

Dona Iolanda Dantas é hoje mais uma estrela que brilha em nosso céu. Foi ela a musa e inspiração maior do Zedantas, como gostava de ser chamado o mais importante parceiro da trajetória musical de Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989).

Para Dona Iolanda o Zedantas apaixonado escreveu Letra I (1953); Vem morena; Sabiá e uma tantos outros sucessos que marcaram as nossas festas juninas.

 

 

Dona Iolanda morreu aos 86 anos, numa segunda-feira, 2 de janeiro de 2017, no Rio de Janeiro, onde encontrava-se internada numa clínica médica da Tijuca, tendo o seu corpo sido cremada e suas cinzas transportadas para o Recife onde se encontram junto aos restos mortais de seu grande amor: José de Souza Dantas Filho, o nosso Zedantas poeta maior do nosso cancioneiro regional.

Segundo a bibliotecária Lúcia Gaspar, da Fundação Joaquim Nabuco José de Souza Dantas Filho, conhecido como Zé Dantas ou Zedantas, como costumava assinar, nasceu no município de Carnaíba de Flores, Sertão do Alto Pajeú de Pernambuco, no dia 27 de fevereiro de 1921.

Ainda criança, mudou-se para o Recife para estudar e tornar-se médico, como queriam seus pais, pertencentes à burguesia rural nordestina. Foi aluno dos colégios Nóbrega, Americano Batista e Marista.

Em 1938, aos 17 anos, já compunha xotes, baiões e toadas, chegando a publicar alguns na Revista Formação, editada pelo Colégio Americano Batista.

Segundo depoimento do folclorista Mário Souto Maior, seu colega no Marista, Zedantas vivia batucando numa caixa de fósforos e criando músicas de improviso, pelos corredores do Colégio.

Durante a época em que era estudante de Medicina, para desespero do seu pai, tornou-se um boêmio. Passava noites em bares dos subúrbios da cidade, fazendo versos, cantando e desenvolvendo sua criatividade musical.

Em 1947, quando ainda estudava Medicina, já com certa fama de artista “improvisador” e compositor no meio universitário recifense, descobriu que o cantor e compositor Luiz Gonzaga, de quem era grande admirador, estava no Recife, hospedado no Grande Hotel.

Conseguiu entregar-lhe algumas composições suas, entre as quais era provável que estivessem Vem morena e Forró do Mané Vito, que foram gravadas por ele em 1949; A volta da asa branca e Acauã, gravadas respectivamente em 1950 e 1952.

Em dezembro de 1949, formou-se em Medicina, pela então Universidade do Recife. No ano seguinte, mudou-se para o Rio de Janeiro, então a capital da República, para fazer residência médica em obstetrícia. Trabalhou no Hospital do IPASE, onde chegou a ser Vice-Diretor da Maternidade; atendia em seu consultório, como ginecologista, mas continuou investindo na sua carreira de compositor. Foi, ainda, diretor do programa O Rei do Baião, da Rádio Nacional e do Departamento Folclórico da Rádio Mayrink Veiga.

Casado com Iolanda Simões, em 26 de junho de 1954, a quem dedicou o baião “Letra I”, Zé Dantas foi pai de Sandra, Mônica e Zé Dantas Neto, merecendo essas recordações.

Zé Dantas era um homem maravilhoso, pai carinhoso e amigo dos seus amigos. (…) Todos sentimos muito orgulho dele e hoje, sua neta Marina Elali revive sua obra, cantando baiões do vovô Zé Dantas – com destaque para Sabiá; O Xote das Meninas.

Falecendo aos 41 anos, em onze de março de 1962, coube a sua mulher, Iolanda Dantas, educar os três filhos e se transformar na sentinela e guardiã de sua obra.

Assim eu a conheci, na luta em favor da preservação da memória de Zé Dantas, ainda dos anos de 1986, quando da edição do livro de Sinval Sá, O Sanfoneiro do Riacho da Brígida, que surgira em 6ª edição, “numa edição gorda”, segundo ironizava o próprio Luiz Gonzaga, trazendo o Cancioneiro de Zé Dantas, dentro da Coleção Pernambucana – 2ª Fase, com estudo introdutório de minha autoria.

Por essa época Dona Iolanda estava formando o seu filho, José de Souza Dantas Neto, em Medicina, pela Universidade do Rio de Janeiro, e a mim coube mandar apertar o anel de formatura, que pertencera ao próprio Zé Dantas, tarefa por mim confiada ao ourives Olegário Barreto, que tinha sua oficina na Rua da Concórdia.

O tempo passou, a amizade foi crescendo, era Iolanda irmã de meu amigo Manuel Simões, quando chega às minha mãos os originais de Mundicarmo Ferretti, com o título: “Na batida do zabumba, no balanço do forró”.

Com o consentimento de sua autora, optamos por um novo título “Baião dos dois – A música de Zedantas e Luiz Gonzaga no seu contexto de produção e sua atualização na década de 70”, que veio ser lançado com prefácio de minha autoria em 1988, pela Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco.

Nas nossas longas conversas tudo girava em torno do “Zé”, como se referia ela ao seu grande amor.

Passei a ser um dos vigilantes da sua memória, sempre chamando a atenção daqueles que teimavam em omitir o nome de Zé Dantas de suas interpretações, para isso sempre contando com o apoio dos amigos Toinho Alves e Marcelo Melo, do Quinteto Violado, e do próprio Luiz Gonzaga, que veio relançar o LP gravado em 1959 e relançado em 1970, Luiz Gonzaga canta seus sucessos com Zedantas, seguindo-se em 1962 da composição de Antônio Barros, Homenagem a Zé.

 

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 31 de maio de 2017

CAPELA DE BRENNAND COMPLETA TRÊS ANOS...


Em terras da Várzea do Capibaribe, no primitivo Engenho e depois Usina São João da Várzea (séc. XVII), o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido OSB, presidiu em maio de 2014 a bênção da Capela de Nossa Senhora das Graças em área do Instituto Ricardo Brennand.

 

 

Mandada construir pelo industrial Ricardo Coimbra de Almeida Brennand e sua mulher Graça Maria Monteiro Brennand, a nova capela passou a ser a preferida das noivas do Recife e centro devocional da paróquia da Várzea.

Em estilo gótico o templo tem o projeto de Augusto Reinaldo Alves Filho, design técnico de Edgar Ulysses de Farias Filho, talhas e carpintaria do Mestre Nido (Eronildes José Carlos Honorato), imagem central de Elias Sultanum, rosáceas de Sérgio Mantur, catorze anjos de autoria do artista Ricardo Cavani Rosas, vitrais de Suely Cisneiros Muniz, iluminação de Regina Coeli de Barros e Mohana Barros, além de outros artistas que contribuíram para a beleza do singular conjunto.

Com o seu altar originário do barroco espanhol (séc. XVII?), trazendo cenas e entalhes policromados retratando cenas da vida de Santo Isidoro Lavrador (1070-1130), padroeiro da cidade de Madri, tendo ao centro a imagem de Nossa Senhora das Graças, padroeira da nova capela.

O novo templo dispõe de 15 x 40 m. de área e 21 m. de altura, espaço para 500 pessoas (300 sentadas), estando inserida em uma área ajardinada de 10 mil metros quadrados, com 200 vagas no estacionamento, cercada de lagos e conjunto escultórico em mármore.

A capela hoje integrante da Paróquia da Várzea, vem se prestando para solenidades religiosas, bem como atividades outras, coordenadas por aquela instituição.

O principal centro de congraçamento cultural da cidade do Recife em nossos dias é o Instituto Ricardo Brennand. Neste mês de setembro de 2014, o novo centro cultural de nossa cidade estará comemorando doze anos de atividades, com uma frequência de público acumulada em 2.001,534 visitantes, segundo a contagem registrada neste domingo.

Originário do sonho do industrial pernambucano Ricardo Coimbra de Almeida Brennand, o Instituto foi inaugurado em 13 de setembro de 2002, quando da exposição Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002, para a qual foram trazidas do Museu da Dinamarca 28 grandes telas daquele pintor holandês, que esteve em Pernambuco entre 1637 e 1644, quando do governo do conde João Maurício de Nassau-Siegen.

Ocupando uma área de 30.000 metros quadrados, em terras do primitivo Engenho de São João da Várzea, o Instituto Ricardo Brennand reúne um complexo cultural formado pelo Castelo de São João, Pinacoteca, Biblioteca, Galeria, Parque de Esculturas e jardins.

A instituição é detentora de uma das maiores coleções particulares de armas brancas do mundo e de um notável acervo de pinturas e objetos do Brasil Holandês (1630-1654). O rico acervo é acrescido de uma coleção de quadros, retratando a paisagem brasileira do século XIX; móveis, esculturas e antiguidades, o que torna o local mais procurado pelos recifenses e visitantes que chegam ao Recife.

Sua média de frequentadores, nos últimos dois anos, atingiu a cifra de 150.000 visitantes a cada ano. Para um centro cultural distante catorze quilômetros do centro do Recife, a sua frequência surpreende até aos mais otimistas. Particularmente quando comparada com a visitação anual de alguns dos mais importantes museus brasileiros, como MASP – São Paulo (230.000), Museu de Arte Moderna de São Paulo (210.000) e Museu da Inconfidência de Ouro Preto (100.000).

Erguido sobre uma colina terciária, cercado por árvores frutíferas e exemplares da Mata Atlântica, o conjunto é contornado por lagos e criadouros de aves, ostentando na sua entrada uma imponente portada em cantaria, originária da França, ladeada por dois monumentais leões esculpidos em mármore; oriundos do Palácio Monroe (Rio de Janeiro).

Dominando os seus jardins o visitante encontrará uma réplica em dimensões originais do Davi de Michelangelo (1508), escultura em mármore de Carrara pesando sete toneladas, com 7,15 metros de altura total, confeccionada no ano de 2000 pelo estúdio de Franco Cervietti de Pietra Santa (Itália). Mais adiante se destaca a escultura original do artista colombiano Fernando Botero (1932), A Mulher no Cavalo, confeccionada em bronze que aparece junto de outras peças esculpidas em mármore e/ou fundidas em ferro e bronze procedentes das mais diversas coleções europeias.

Uma réplica de um castelo gótico-tudor foi especialmente construída pelo seu fundador, para abrigar uma das mais importantes coleções particulares de armas brancas medievais do mundo. Nele encontra-se guardado um conjunto de cerca de 5.000 peças de diversas procedências: facas, espadas, adagas, canivetes, estiletes e 50 armaduras completas (duas delas para criança e uma para cachorro). Deste acervo destacam-se os conjuntos, em tamanho original, de cavalo-cavaleiro-com-armadura, no estilo italiano, do século XVI, que estão a despertar a atenção de leigos e estudiosos, juntamente com a grande quantidade de curiosidades outras dos séculos XV ao XIX.

No mesmo recinto chama a atenção o mostruário da Cutelaria de Joseph Rodgers de Sheffield (Inglaterra), originária do século XVIII. Um notável conjunto de armas e armaduras orientais ocupa outra área com exemplares procedentes de países islâmicos do oriente e outra parte da Índia, compreendendo espadas e adagas, escudos e cotas de malhas da Dinastia Mongol.

Também no Castelo de São João encontra-se em exposição preciosos exemplares das espadas de cerimonial, folheadas a ouro e cravejadas com diamantes; vitrais e mobiliário gótico de várias procedências, que se misturam com esculturas clássicas, em mármore e bronze, candelabros, tapetes, dentro de um cenário medieval hoje integrante da paisagem urbana do Recife.

Por vinte e quatro anos, entre 1630 e 1654, o Nordeste do Brasil foi ocupado pelos holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, que fixaram no Recife a sua capital. Dentro deste período, entre 1637 e 1644, foi o Brasil Holandês governado pelo nobre alemão João Maurício de Nassau-Siegen que se fez acompanhar da primeira comitiva de cientistas, artistas e homens de letras a cruzar a linha do equador.

Dentre os artistas da corte deste príncipe renascentista destacava-se a figura o pintor Frans Post (1612-1680), que veio a ser o primeiro da escola flamenga a registrar nas telas e em gravuras a paisagem do Brasil no século XVII. Através de seus quadros, os europeus puderam pela primeira vez visualizar as imagens de um Brasil real, antes somente descrito através de cartas e relatos dos viajantes.

Dos 163 quadros pintados por Frans Post, hoje espalhados pelo mundo, o Instituto Ricardo Brennand reúne vinte deles, constituindo-se na maior coleção deste pintor reunida em um só local. Dentre as raridades do conjunto, encontra-se uma tela retratando o Forte Frederick Hendrick com a ilha de Antônio Vaz à distância (61,6 x 88,9 cm.); datada de 1641, sendo uma das sete pintadas no Brasil.

Além de Frans Post, a coleção ostenta dois importantes quadros do pintor italiano Antônio Canal (1697-1768), que passou para a história das artes conhecido pelo apelido de O Canaletto. Trata-se de duas cenas da cidade de Veneza, A Praça Maior com a basílica de San Marco e O Grande Canal com a igreja de Nossa Senhora da Saúde.

No âmbito da arte brasileira, a produção dos pintores-viajantes, chegados ao Brasil após a Abertura dos Portos (1808), juntamente com a de artistas da Academia Imperial do Rio de Janeiro, bem como de representantes do Neoclassicismo e Impressionismo nos séculos XIX, tem ali um especial destaque na sala dedicada A Paisagem Brasileira.

Para a realização de grandes eventos e exposições temporárias, o Instituto Ricardo Brennand dispõe de uma suntuosa galeria, na qual se encontra exposta a réplica autorizada d’ O Pensador, obra de Auguste Rodin, concluída em 1904.

Integra ainda o conjunto um auditório para 100 pessoas e uma biblioteca com 45.000 volumes, localizada no prédio anexo à Pinacoteca, com especial enfoque para a história colonial brasileira, destacando-se o período Brasil-Holandês (1630-1654) e a História do Açúcar.

O Instituto Ricardo Brennand tem como principal objetivo a educação pela arte e, para isso, vem mantendo, especificamente, programas de caráter educativo voltados para crianças e jovens do Recife e de outras cidades do Nordeste.

Quando se indaga do industrial Ricardo Brenannd o segredo do sucesso de sua obra, demonstrado pelas contínuas romarias de visitantes, originários das mais diferentes regiões do país e, em particular, das mais diversas camadas da população do Grande Recife, ele explica tudo com um sorriso bonachão e um verso do poeta português Fernando Pessoa: Deus quer, o homem sonha e a obra nasce.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 24 de maio de 2017

RICARDO BRENNAND, O CONSTRUTOR DE SONHOS
 


Neste 27 de maio passado, o industrial Ricardo Coimbra de Almeida Brennand, completará 90 anos de existência, notabilizando-se, não somente como um construtor de fábricas (19 projetadas e modernizadas), mas também no grande criador do Instituto Ricardo Brennand, a sua Cidade dos Sonhos, que hoje se destaca como um dos mais importantes museus do Brasil.

Tudo começa quando ele, ainda muito jovem, inicia a sua coleção de armas brancas. Durante toda a sua vida e em todas as suas viagens aos mais diferentes continentes, foi ele formando a sua própria coleção de armas brancas, reunindo espadas, facas, alabardas, lanças, escudos, punhais, adagas, armaduras (para cavalos e cavaleiros), balestras, elmos, arcabuzes, espingardas, mosquetes, carabinas, pistolas de duelo, milhares de canivetes, uma singular armadura para cachorro, quadros e esculturas de procedências diversas, além de curiosidades; como as espadas de cerimonial do Rei Faruk I do Egito, folheadas a ouro e cravejadas por brilhantes.

 

 

Antes da criação do instituto, armas brancas não só da Europa, mas do Oriente, como as procedentes da China, Japão, Índia (verdadeiras joias da cutelaria mongol), do Nepal, da Oceania, integravam um pandemônio de peças que se espalhava pelos diversos cômodos de sua residência em São João da Várzea.

No início do século XXI, capitalizado com a venda de três fábricas de cimento do Grupo Brennand – Cimento Atol, nas Alagoas; Cimento Goiás, em Cesarina, e a CIMEPAR, na Paraíba -, que juntas produziam 2,5 milhões de toneladas/ano, Ricardo Brennand pensou em tornar realidade um antigo sonho; o de reunir no mesmo local todas as peças de sua monumental coleção.

Através de traços rabiscados com uma caneta vermelha, ele ia criando algo semelhante a um castelo medieval, como aqueles que despertaram a sua atenção quando de suas visitas ao Vale de Loire (Vallé de la Loire), na França.

Desejava Ricardo Brennand tão somente um cenário de época que servisse de fundo para exposição e guarda de suas peças seculares.

Um castelo construído no estilo Tudor; o mesmo estilo que dominou a arquitetura inglesa entre 1585 a 1603, tão presente nos prédios das Universidades Cambridge e Oxford, que remontam os primeiros tempos do neogótico.

Não mais pensamentos ou hipóteses, mas um castelo medieval na Várzea do Capibaribe, com todo o seu impacto, nuances, particularidades e mistérios, que pudesse abrigar a sua incomparável coleção de armas brancas em grande parte constituída de verdadeiras joias da cutelaria universal.

A tarefa de transformar o sonho em realidade foi entregue à firma Augusto Reinaldo Arquitetura e Desenho, cujo titular entregou-se de corpo e alma à ideia.

Para isso viajou ele à Europa numa temporada de observação aos monumentos do Vale de Loire, bem como de outros recantos da França, a fim de adquirir restos de demolição de antigos castelos a serem aplicados na construção do novo Castelo de São João.

Concluída a sua viagem de observação, Augusto Reinaldo vai ao encontro de Ricardo Brennand, no Hotel Ritz de Paris, levando em mãos uma coletânea de fotografias documentando 23 castelos do Vale do Loire, com detalhes que ele gostaria de repetir no Castelo de São João da Várzea; inclusive a portada de entrada esculpida em pedra, originária de um castelo francês.

Em sua viagem, Augusto Reinaldo foi aconselhado a visitar a pequena comunidade de Houdan (2.912 habitantes), nas cercania de Paris, onde adquiriu 19 peças de demolição que vieram ser aplicadas no Castelo de São João, como ele próprio relata: “todas restos de castelos medievais, como algumas janelas, telhado tipo de pombal, os dois portais de pedra, o piso, a escada, a balaustrada da varanda do primeiro andar, além de outras que ficaram guardadas para futuras construções”.

A construção do Castelo de São João prolongou-se por mais de dois anos, dando origem a um edifício de 7000 metros quadrados, destinado a guarda de toda a notável coleção de armas, passando a se destacar na paisagem da Várzea do Capibaribe pela imponência do seu estilo incomum.

Concluído o Castelo de São João, Ricardo Brennand acresce a área construída do seu instituto, com um novo espaço com 1.200 m.² destinado a uma Pinacoteca. O novo prédio viria abrigar a exposição da coleção dos quadros do pintor Frans Post (1612-1680), todo acervo do Brasil Holandês, bem como da nova exposição temporária dos 28 quadros da mostra itinerante Albert Eckhout volta ao Brasil – 1644-2002, trazida especialmente do Museu Nacional da Dinamarca.

A inauguração desta Cidade dos Sonhos acontece em 12 de setembro de 2002, com as presenças, além do casal Ricardo (Graça) Brennand, do Príncipe Herdeiro Frederik da Dinamarca; vice-presidente da República do Brasil, Marco Maciel; governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, dentre outras autoridades, culminando com a abertura da exposição Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002.

A mostra reunia pela primeira em terras brasileiras 28 grandes quadros daquele pintor holandês, alguns em grandes dimensões (168 x 294 cm.), produzidos entre 1637 e 1644 em Pernambuco, época em que o artista esteve a serviço do conde alemão João Maurício de Nassau-Siegen, exercia o posto de Governador do Brasil Holandês.

Na noite da inauguração uma multidão de mais de 5000 pessoas tomou conta dos caminhos que levavam ao Instituto Ricardo Brennand, localizado em terras do primitivo Engenho São João que, no século XVII, fora propriedade de João Fernandes Vieira, principal líder o movimento da Insurreição Pernambucana (1645-1654).

Nos seus primeiros três meses de atividades, o Instituto Ricardo Brennand registrou a frequência de 164.419 pessoas, em grande parte motivadas pela exposição inaugural Albert Eckhout volta ao Brasil 1637-2002.

Com a abertura do seu Instituto Ricardo Brennand, ele veio se transformar no construtor de sonhos, figura conhecida em toda região, para alegria e deleite dos 2.480.000 visitantes que, durante os últimos quinze anos, visitaram o seu empreendimento em terras de São João da Várzea.

Hoje, aos noventa anos, olhando para o seu instituto, ele pode exclamar como o poeta Carlos Pena Filho:

… é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.

Foto do colunista


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 17 de maio de 2017

REPÚBLICA DE 1817 LEMBRADA PELO SENADO

 

 

 


Exmos Senadores Humberto Costa e Cristovam Buarque, ilustres membros, companheiros estudiosos de 1817, meu amigo Rubem Amaral Júnior, Embaixador, que aqui veio prestigiar a nossa fala, fala esta que vai de todo à gratidão, à gratidão ao Senador Humberto Costa, que teve a iniciativa de festejar, lembrar e proclamar os feitos da Primeira República do Brasil, a República de 1817. Portanto, o meu agradecimento pessoal, como pernambucano.

Mas eu tomo para mim, neste início de fala, as palavras do poeta João Cabral de Melo Neto, quando ele, no poema Pergunta a Joaquim Cardozo, interroga:

É que todo o dar ao Brasil
de Pernambuco há de ser nihil?
Será que o dar de Pernambuco
é suspeitoso porque em tudo
sintam à distância, o pé atrás,
insubserviente de quem já foi mais?

Meus amigos, o que hoje se comemora foi um comportamento permanente dos pernambucanos.

Muito antes do iluminismo, existia um sentimento de autonomismo em Pernambuco, sentimento este que se encontra presente até nos dias atuais.

Quem nasce em Pernambuco – desculpem a imodéstia – tem sempre um queixo levantado, tem sempre um orgulho muito grande de ser pernambucano.

Não é à toa que o símbolo dos revolucionários de 1817 está nas cabeças, nas camisas dos pernambucanos, que é a nossa bandeira, proclamada, outorgada pelos revolucionários de 1817, desenhada pelo Padre João Ribeiro Pessoa Montenegro e ressurgida pelo Governador Manuel Borba.

O pavilhão azul e branco encontra-se sempre nas cabeças de todos aqueles que, em plena festa de Carnaval, estão a demonstrar o seu orgulho; se vão para um campo de futebol, levam uma bandeira de Pernambuco.

Portanto, estamos diante do sentimento de autonomismo ainda hoje presente em Pernambuco.

Das antigas províncias formadoras do Território nacional, nenhuma deu maior número de mártires do que Pernambuco, haja vista a imensa lista de condenados à morte que nós herdamos de 1710, de 1817, de 1824, de 1848.

Numa consulta à história de Pernambuco, veremos que todos esses movimentos foram gerados do orgulho nativista dos restauradores de 1654.

Com uma mesma ideologia, de que os antepassados pernambucanos conquistaram toda a região do Nordeste do Brasil, da foz do São Francisco até o Maranhão, fora conquistada pelos seus antepassados.

Como diria o Padre Antonio Vieira, sós, pelejando com suas relíquias, Pernambuco conquistou todo aquele território, em batalhas de 1648 e 1649, com a expulsão dos holandeses em 1654. Com tal conquista doaram todo aquele território – que hoje é o Nordeste brasileiro – ao El-Rei de Portugal, à suserania da Coroa Portuguesa, mas debaixo de certas condições, a condição do autonomismo. E essa doutrina nos segue, nos persegue, nos impregna até os dias atuais.

Então, toda vez que Pernambuco se achava ferido no seu autonomismo, ele se manifestava através de uma revolta armada, como a que aconteceu com a República de Olinda, de 1710, chefiada por Bernardo Vieira de Melo, seus filhos e irmãos.

Nela, o governador português, Sebastião de Castro Caldas, se refugiou na Bahia, deixando no governo da capitania o bispo de Olinda, mas logo depois veio o outro governador.

O novo Governador português Félix José Machado de Mendonça – sucedendo a Sebastião de Castro Caldas – resolveu acusar os pernambucanos de tentarem uma rebelião contra a família do próprio governador e, com isso, mandou encarcerar todos os que tiveram destaque no movimento de 1710 e os envia para Lisboa, trancafiando-os na prisão do Limoeiro.

Nos cárceres, os prisioneiros pernambucanos, com o tempo, vão desaparecendo pelas mortes mais misteriosas, como se pode comprovar nos atestados do Livro de Óbitos da Paróquia de São Martinho. Um a um, vão morrendo e, quando chega o perdão real da Coroa, já não havia mais ninguém para perdoar, todos já haviam morrido.
Graças a tais certidões de óbito, pudemos comprovar o dia da morte da cada um dos nove que pereceram na prisão.

Observa José Antônio Gonsalves de Mello que a interligação de um ideário de liberdade dos pernambucanos remonta “à vitória sobre os holandeses e se renova não só em 1710, aqui referido, como ainda em 1817, em 1824 e em 1848. Dentro dessa linha de reivindicações, aqueles que pagaram então com a vida, nas celas do Limoeiro, seu ideal político de participação no governo de sua terra estão na companhia de outros mártires pernambucanos como o Padre João Ribeiro, o Frei Caneca e o Desembargador Nunes Machado”.

No século XVIII, por conta das ideias dos filósofos iluministas da segunda metade, veio a ser gerado, entre os estudantes de Pernambuco, um ideário liberal, um ideário republicano.

Essas ideias vieram a ser propagadas não só por aqueles estudantes de Coimbra e de Lisboa, cujos processos consegui ler detidamente.

Alguns deles tomaram parte ativa na Revolução de 1817, como é o caso do nosso Antônio Morais Silva, autor do primeiro Dicionário da Língua Portuguesa.

No século XVIII, as ideias daqueles iluministas foram divulgadas pelos seminaristas do então Seminário de Olinda, criado em 1799, e pelas lojas maçônicas, que já se faziam presentes no Recife.

Tais ideias passaram para uma revolta armada, eclodida no dia 6 de março de 1817, quando era proclamado um governo de caráter republicano, com representação dos militares, do clero, da magistratura, do comércio e dos senhores rurais.

Por um curto período de dois meses e meio, viveu-se naquela capitania um regime republicano, regido por uma Constituição, chamada de Lei Orgânica, que, sob a orientação de um Conselho de Estado, regulava a representatividade de classes, a independência da magistratura, a imprensa livre e outros direitos até então desconhecidos entre nós.

A Coroa Portuguesa logo combateu a revolta a ferro e fogo, levando à prisão centenas de patriotas, como eram chamados, nas cadeias do Recife e de Salvador.

Dessa lista, 13 presos foram condenados à morte, quatro foram fuzilados em Salvador, e nove foram enforcados no Recife, sendo depois seus corpos esquartejados; com suas cabeças separadas do corpo, juntamente com seus membros. Os troncos eram amarrados às caudas dos cavalos e arrastados até o cemitério.

Esses troféus de cabeça e dos quatro membros eram colocados em pontos previamente determinados.

Morreram, como consequência direta no envolvimento da Revolução de 1817, na atual Praça da República, no centro do Recife, que veio a ser chamada de Campo da Honra, em 8 de julho de 1817, os Capitães Domingos Teotônio Jorge e José de Barros Lima, além dos mártires Antônio Henrique Rabelo, Amaro Coutinho, José Peregrino Xavier de Carvalho, Inácio de Albuquerque Maranhão e o Padre Antônio Pereira de Albuquerque.

Na Bahia, foi executado por fuzilamento, no Campo da Pólvora, o Padre José Ignácio de Abreu e Lima (Padre Roma), em 29 de março de 1817, seguindo-se dos patriotas Domingos José Martins, José Luiz de Mendonça e o Padre Miguel Joaquim de Almeida (Frei Miguelinho), em data de 12 de junho de 1817.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 10 de maio de 2017

A PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA

A única revolução brasileira digna desse nome e credora de entusiasmo pela feição idealista que a distinguiu e lhe dá foros de ensinamento cívico, e pela realização prática que por algum, embora pouco, tempo lhe coube. Eu lhe disse uma vez que foi instrutivo pelas correntes de opinião que no seu seio se desenharam, atraente pelas peripécias, simpática pelos caracteres e tocante pelo desenlace. Foi um movimento a um tempo demolidor e construtor, como nenhum outro entre nós e como nenhuma outra em grau superior, na América espanhola. (Manuel de Oliveira Lima)

Em março de 1817, um observador estrangeiro, o comerciante francês Louis François de Tollenare (1780-1853), que residia no Recife no Largo do Paraíso, foi testemunha presencial dos acontecimentos e registrou nos seus apontamentos, depois publicados em livro com o título de Notas Dominicais, por Alfredo de Carvalho (Recife: Jornal do Recife, 1905)¹

Escrevendo no domingo, 9 de março de 1817, observa que na data de 6 do mesmo mês, “teve lugar uma revolução bem inesperada. O estandarte da independência foi levantado; as tropas colocaram-se em volta dele. O governador, assim traído, viu-se forçado a refugiar-se em um forte, ali capitular e acaba de embarcar para o Rio de Janeiro.”

Dos quartéis às ruas, foi apenas questão de tempo. Os sinos das igrejas tocavam rebate (sinal de alarme); o enviado do governador fora morto a tiros; um jovem tenente de Artilharia, Antônio Henriques, dirigiu-se à cadeia a fim de libertar Domingos José Martins e demais presos comuns que ali se encontravam, enquanto o capitão Manuel D’Azevedo entrava em negociações para soltura dos oficiais recolhidos à Fortaleza das Cinco Pontas.

O governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro recolheu-se ao Forte do Brum, com seus familiares e demais oficiais, enquanto caíam os últimos redutos da resistência, com a rendição das tropas comandadas pelo marechal José Roberto Pereira da Silva que guarneciam o Campo do Erário (hoje Praça da República), às 16 horas do mesmo dia.

Destacamento comandado pelo tenente José Mariano foi enviado a Olinda e no dia seguinte os 800 milicianos de Domingos Teotônio Jorge fizeram o cerco da Fortaleza do Brum. Um ultimatum, assinado por Domingos Teotônio Jorge, padre João Ribeiro e Domingos José Martins, foi levado pelo advogado José Luiz de Mendonça ao governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro exigindo imediata rendição.

As condições foram logo aceitas pelos oficiais portugueses e governador, ali recolhidos, e a rendição foi de pronto assinada, enquanto os revoltosos providenciavam o transporte dos presos e familiares para o Rio de Janeiro.

Com gritos de regozijo pela vitória, os oficiais revoltosos retiraram das barretinas e dos pavilhões as insígnias do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, sendo o gesto seguido pela soldadesca. Uma bandeira toda branca veio a surgir, no meio da tropa, substituindo a real.

As tropas e o povo marcharam para o Campo do Erário [Praça da República], onde foram escolhidos os eleitores para a nomeação do novo governo, sendo posteriormente lavrado o seguinte termo:

Nós, abaixo assinados, presentes para votarmos na nomeação de um governo provisório para cuidar na causa da pátria, declaramos à face de Deus que temos votado e nomeado os cinco patriotas seguintes: da parte do eclesiástico, o Patriota João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro; da parte militar, o patriota capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa; da parte da magistratura, o patriota José Luiz de Mendonça; da parte da agricultura, o patriota coronel Manuel Correia de Araújo; e da parte do comércio, o patriota Domingos José Martins e ao mesmo tempo todos firmamos esta nomeação, e juramos de obedecer a este governo em todas as suas deliberações e ordens. Dado na Casa do Erário, às doze horas do dia 7 de março de 1817. E eu Maximiano Francisco Duarte escrevi. Assinados – Luís Francisco de Paula Cavalcanti – José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima – Joaquim Ramos de Almeida – Francisco de Brito Bezerra Cavalcanti de Albuquerque – Joaquim José Vaz Salgado – Antônio Joaquim Ferreira de S. Paio -Francisco de Paula Cavalcanti – Felipe Néri Ferreira – Joaquim da Anunciação e Siqueira -Tomás Ferreira Vila Nova – José Maria de Vasconcelos Bourbon – Francisco de Paula Cavalcanti Júnior – Tomás José Alves de Siqueira – João de Albuquerque Maranhão – João Marinho Falcão.

A essa junta agregou-se um Conselho, formado pelos notáveis da nova república, que incluíam o desembargador Antônio Carlos de Andrade (irmão de José Bonifácio Andrade e Silva), o dicionarista Antônio Moraes Silva e o Deão da Sé, Dr. Bernardo Luís Ferreira Portugal.

 

Imediatamente, concedeu-se aumento de soldo aos militares e aboliram-se alguns impostos. Proclamações e pastorais impressas, além de cerimônias públicas, procuraram evitar os choques dos nativos com os europeus e conquistar a confiança da população de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Comarca das Alagoas, que tinham espontaneamente aderido à República Pernambucana.

De logo foram enviados emissários ao Ceará (subdiácono José Martiniano de Alencar e Miguel Joaquim César) e à Bahia (padre José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, Padre Roma), enquanto o governo provisório ganha popularidade com apoio do clero e de nomes de grande expressão na vida da província.²

A República de Pernambuco de 1817, porém teve curta duração, como escreve L. F. de Tollenare em suas notas, no domingo 25 de maio daquele ano:

– A revolução de Pernambuco terminou a 20, depois de ter durado dois meses e meio.

Sobre o fim da Revolução de 1817, informa Manuel de Oliveira Lima que “escrevendo meses depois ao presidente da Alçada, Bernardo Teixeira Coutinho Álvares de Carvalho, dizia Luís do Rêgo: “Não remeto os selos³ e as bandeiras que usaram os rebeldes, porque não existem, as bandeiras contam-se que foram rotas e despedaçadas pelo povo no dia da restauração” (Manuscritos da Biblioteca Nacional).

O belo pavilhão dos Patriotas de 1817 desapareceu dos olhos dos pernambucanos, o ideário de liberdade, bem como os sonhos de uma nova República, ficaram adormecidos. Os heróis de então foram enforcados e arcabuzados, com seus corpos mutilados depois de mortos, enquanto pais de famílias eram seviciados nos interiores das masmorras do Recife e de Salvador e os lares eram desonrados.

Todavia a chama da liberdade, permaneceu bem viva no espírito de nossa gente, voltando a se manifestar em 1821. Neste ano, a 29 de agosto, era formada a Junta de Goiana que depois de render as tropas portuguesas sediadas em Pernambuco, intimou o governador português Luís do Rego a deixar a deixar a capitania, mediante capitulação assinada em 5 de outubro do mesmo ano, quando da Convenção do Beberibe.

Tal episódio veio separar, definitivamente, a capitania de Pernambuco do Reino de Portugal onze meses antes da proclamação da Independência do Brasil pelo Príncipe Dom Pedro de Orleans e Bragança, em 7 de setembro de 1822.

Da República de Pernambuco de 1817, porém restaram o testemunho da Bandeira Bicolor e os ensinamentos democráticos de sua primeira constituição, a Lei Orgânica da República de 1817, que passamos a transcrever e sugerir a sua leitura pelas atuais e futuras gerações:

LEI ORGÂNICA DA REPÚBLICA DE PERNAMBUCO DE 1817

Segundo compilação de Oliveira Lima nos comentários à História da Revolução de Pernambuco de 1817, em edição impressa no Recife, Imprensa Industrial, 1917, p. 231-238. A primeira edição desta obra surgiu em 1840, impressa no Recife pela Tipografia Imparcial de Luiz Ignácio Ribeiro Roma.

O Governo Provisório da República de Pernambuco, revestido da Soberania pelo Povo, em quem ela só reside, desejando corresponder à confiança do dito Povo, e conhecendo que sem formas e regras fixas e distintas o exercício das funções que lhe são atribuídas, por vago, inexato e confuso, não pode deixar de produzir choques, e dissensões sempre nocivas ao bem geral, e assustadoras da segurança individual, fim e alvo dos sacrifícios sociais. Decreta e tem Decretado.

1º Os poderes, e legislatura estão concentrados no Governo Provisório, enquanto se não conhece a Constituição do Estado determinada pela Assembleia Constituinte, que será convocada assim que se incorporarem as Comarcas, que formavam a antiga Capitania e ainda não têm abraçado os princípios da independência.

2º Para o exercício da legislatura haverá um Conselho permanente composto de seis membros escolhidos pelas Câmaras na mesma forma em que são escolhidos os seus oficiais a exceção da aprovação do Corregedor dentre os Patriotas de mais probidade, e luzes em matérias de Administração pública, e que não sejam parentes entre si, até segundo grau Canônico.

3º O Governo e Conselho assim reunidos formarão a Legislatura propriamente dita, e a decisão da pluralidade dará existência aos Atos de Legislatura ou Decretos, que serão assinados pelo Governo só sendo porém passados em Conselho à pluralidade o que se decolará, pena de insanável nulidade, e ninguém deverá lhe dar a devida execução.

4º As sessões da Legislatura continuarão todos os dias a exceção dos consagrados ao Culto Divino. Elas começarão às seis horas da tarde, e durarão por todo o tempo que a discussão e conclusão dos negócios propostos o exigir. Serão presididas pelos cinco Membros do Governo um cada semana, o qual mal se assentar, guardar-se-á o mais inviolável silêncio, estando todos atentos ao que se propõe e opina, não interrompendo uns aos outros, mas opondo-se mal findar algum de falar as objeções que se tiver contra a opinião emitida. Nas ditas sessões escreverá as deliberações o Secretário do Interior.

Os projetos da Lei, depois de propostos, ficarão sobre a mesa pelo espaço de seis dias, para dar tempo a que os membros o meditem e se aprontem para a discussão, para cujo fim em trabalhando a imprensa, serão impressos e distribuídos por cada Membro.

Cada Membro opinará com plena liberdade, e igualdade, e pela opinião que emitir em Conselho ninguém será increpado e menos perseguido.

Serão membros do Conselho, além dos seis de que ele se compõe, os Secretários do Governo, o Inspetor do Erário e o Bispo de Pernambuco, e na sua falta o Deão.

Para o exercício do Poder Executivo criam-se duas Secretarias, uma para o expediente dos negócios do Interior, Graça, Política, Justiça e Cultos; outra para o expediente dos negócios da Guerra, Fazenda, marinha e negócios Estrangeiros. Os Patriotas nomeados para estes empregos nomearão os Oficiais que carecerem, e farão subir ao Governo para sua aprovação.

O despacho dos negócios pertencentes às duas Secretarias far-se-á todos os dias das nove horas da manhã em diante e durará o tempo preciso para sua ultimação.

10º Parecendo ao Governo ouvir o Conselho sobre medidas que deva tomar na parte executiva convocá-lo-á; e as sessões neste caso se farão fora do alcance dos ouvidos curiosos para não abortarem negócios que dependem de segredo.

11º Pelos atos do Governo que minem a Soberania do Povo e os direitos dos homens e que produzam desarmonia entre os diferentes membros da República serão responsáveis os Governadores que os assinarem e os Secretários por cuja Secretaria forem passados, e não devem por esse motivo ter execução sem a prévia assinatura do Secretário respectivo. Os Secretários podem ser logo acusados, os Governadores porém só findo o seu tempo de serviço.

12º Para a boa administração, arrecadação, e contabilidade das rendas públicas, cria-se um Inspetor do Erário, a quem é sujeita toda a Repartição, que só depende do Governo de quem recebe ordens pela Secretaria da Fazenda. E ordena-se que a receita e despesa das rendas se publique cada ano por via da imprensa.

13º A administração da Justiça na primeira Instância fica a cargo de dois juízes ordinários, que serão eleitos em cada Cidade e Vila pelo povo do seu distrito na forma estabelecida, e as eleições serão remetidas ao Colégio de Justiça, de que abaixo se faz menção para aprovação das pautas. A um deles pertencerá o expediente Crime, e de Polícia; ao outro o das contendas cíveis, e bom regímen dos Órfãos e Enjeitados. Não terão salário algum do Público, nem coisa alguma das partes pelo desempenho de suas funções, contentando-se com o respeito que lhes resulta do exercício dos seus cargos. Deles se agravará e apelará em direitura para o Colégio de Justiça. Serão os Inquisidores, Distribuidores e Contadores do seu juízo tudo gratuitamente.

14º São extintos os Ouvidores e Corregedores das Comarcas e igualmente os Juízes de órfãos nas Vilas aonde os há, por serem cometidas suas atribuições aos Juízes Ordinários.

15º Cria-se na Capital do Governo um Colégio Supremo de Justiça para decidir em última Instância as causas cíveis e crimes. Será composto o dito colégio de cinco membros literatos de bons costumes, prudentes e zelosos do bem público.

16º Serão pagos os Membros do Colégio pelo Erário, sendo-lhes vedado receber salário algum, assinaturas ou prós das partes que perante eles requerem a fim de evitar as concussões.

17º Farão cada ano dois Membros do Colégio Supremo de justiça a visita dos Julgados do Estado, e conhecerão das omissões, e comissões dos juízes Ordinários para se lhes dar a devida pena. Terão estes Juízes de alçada uma ajuda de custo do Governo, além do Salário e aposentadoria à custa das Câmaras ou Municipalidades.

18º Os magistrados uma vez empregados não podem mais ser removidos senão por sentença, em pena de suas prevaricações.

19º Colégio de Justiça deverá apresentar ao Governo pela Secretaria da Justiça os planos tendentes ao melhoramento desta repartição e reforma de abusos nela introduzidos.

20º Para decisão dos crimes dos militares, em última instância, cria-se uma Comissão Militar, composta de quatro membros, dois do Colégio de justiça e dois oficiais generais, e na sua falta Coronéis. A comissão será presidida pelo General das Armas.

21º As leis até agora em vigor e que não estão, ou forem ab-rogadas, continuarão a ter a mesma autoridade enquanto lhes não for sub-rogado um código nacional e apropriado às nossas circunstâncias e precisões.

22º A administração das Câmaras ou Municipalidades continua no pé antigo.

23º A Religião do Estado é a Católica Romana, todas as mais seitas cristãs de qualquer denominação são toleradas. É permitido a cada um dos Ministros defender a verdade da sua comunhão. É-lhes porém vedado o invectivar em púlpito e publicamente umas contra as outras, pena de serem os que o fizeram perseguidos como perturbadores do sossego público. É proibido a todos os Patriotas o inquietar e perseguir a alguém por motivos de consciência.

24º Os Ministros da Comunhão Católica são assalariados pelo Governo, os das outras Comunhões porém só o podem ser pelos indivíduos da sua Comunhão. E basta que haja de cada Comunhão vinte famílias numa Povoação para o Governo conceder-lhes à sua instância a ereção dos lugares de adoração e culto de sua respectiva seita, nos quais porém não poderão ter sinos.

25º A Liberdade de imprensa é proclamada, ficando porém o autor de qualquer obra, e seu impressor sujeito a responder pelos ataques feitos à Religião, à Constituição, Bons Costumes e caráter dos indivíduos na maneira determinada pelas leis em vigor.

26º Os Europeus entre nós naturalizados e estabelecidos que derem prova da adesão ao partido da Regeneração e Liberdade são nossos Patriotas e ficarão habilitados para entrar nos empregos da República para que forem hábeis e capazes.

27º Os estrangeiros de qualquer país e Comunhão Cristã que sejam podem ser entre nós naturalizados por atos do Governo, e ficam hábeis para exercer todos os cargos da República uma vez assim naturalizados.

28º O presente Governo e suas formas durarão somente enquanto se não ultimar a Constituição do Estado. E como pode suceder, o que não é de esperar, e Deus não permita que o Governo para conservar o poder de que se acha apossado frustre a justa expectação do povo, não se achando convocada a Assembleia Constituinte dentro de um ano da data deste ou não se achando concluída a Constituição no espaço de três anos, fica cessado de fato o dito Governo, e entra o Povo no exercício da Soberania para o delegar a quem melhor cumpra os fins da sua delegação.

__________________________

¹TOLLENARE, L. F. de (Louis François de). – Notas Dominicaes – Tomadas durante uma residência em Portugal e no Brasil nos anos de 1816, 1817 e 1818. Parte Relativa a Pernambuco. Traduzida do Manuscrito Francês Inédito por Alfredo de Carvalho, com um prefácio de M. de Oliveira Lima. Recife: Jornal do Recife, 1905.

²“No dia 8 confirmou o governo no mesmo caráter de secretário, que exercia, a José Mairinck da Silva Ferrão, e reconhecendo que o expediente seria muito, nomeou, para melhor ordem dos trabalhos, um outro secretário, que foi o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro; e criou um Conselho de Estado, para auxiliar o governo em suas deliberações, para o qual foram nomeados os seguintes patriotas: Desembargador Antônio Carlos Ribeiro de Andrade Machado e Silva, Doutor Antônio de Morais Silva, Doutor José Pereira Caldas, Deão Doutor Bernardo Luís Ferreira Portugal e o comerciante Gervásio Pires Ferreira” (Pereira da Costa, ob. cit., vol. VII, p. 382). “O Conselho Consultivo organizado pela junta governativa constituía um verdadeiro senado, um senado, bem entendido, como o ideado por Bolívar nas suas várias constituições, congregando o escol da inteligência, da ilustração e do prestígio”; Oliveira Lima, notas LIV (54) e seguintes (ob. cit.).

³O selo do governo provisório encontra-se reproduzido na obra de Melo Morais, Brasil Histórico, vol. II, 1867, p. 11. É o mesmo desenho da bandeira, com um dístico em redor, na parte superior: Salus Populi, e na inferior: Pernambuco.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 26 de abril de 2017

OS FRUTOS DO IDEÁRIO LIBERAL DE SEIS DE MARÇO DE 1817

Derrotada a iniciativa de implantar, pela primeira vez, um regime republicano em terras brasileiras, o ideário de liberdade dos patriotas de 1817, ficaram adormecidos. Os heróis de então foram enforcados e/ou arcabuzados, com seus corpos mutilados depois de mortos, enquanto pais de famílias eram seviciados nos interiores das masmorras do Recife e de Salvador e os lares eram desonrados.

Segundo o padre Dias Martins, autor do livro Os Mártires Pernambucanos – vítimas da liberdade nas duas revoluções ensaiadas em 1710, 1817 e 1824 (Recife, 1853), a lista dos denunciados nesses movimentos somam o número de 628.

Todavia a chama da liberdade, permaneceu bem viva no espírito da gente de Pernambuco, que voltou a se manifestar em 1821.

Neste ano, a 29 de agosto, teve início um movimento armado contra o governo do capitão general Luiz do Rego Barreto, culminando com a formação da a Junta de Goiana, tornando-se vitorioso com a rendição das tropas portuguesas em capitulação assinada a 5 de outubro do mesmo ano, quando da Convenção do Beberibe, responsável pela expulsão dos exércitos portugueses do território de Pernambuco.

Tal episódio veio separar, definitivamente, a capitania de Pernambuco do Reino de Portugal; onze meses antes da proclamação da Independência do Brasil pelo Príncipe Dom Pedro de Orleans e Bragança, em 7 de setembro de 1822.

Nota-se porém, pelo acompanhamento do “seu simpático caminhar” que, em todos os movimentos emancipacionistas originários de Pernambuco, o que se vislumbra é o orgulho nativista dos Restauradores de 1654.

Uma mesma ideologia, a de que os antepassados pernambucanos conquistaram esta terra aos holandeses e que doaram a El-Rei de Portugal debaixo de certas condições, se repete ao longo de todas as revoluções e vem explicar o ideal republicano da gente de Pernambuco. Esse comportamento é uma constante em quase todos os movimentos revolucionários como bem observou Evaldo Cabral de Mello, uma espécie de doutrina das relações entre a Capitania e a Coroa.

Segundo tal interpretação, passou a ser doutrina entre os pernambucanos, ao longo dos séculos que se sucederam, o entendimento de que:

A gente da terra deveria à Coroa não a vassalagem ‘natural’ a que estariam obrigados os habitantes do Reino e os demais povoadores da América Portuguesa, mas uma vassalagem de cunho contratual, de vez que restaurada a capitania, haviam-na espontaneamente restituído à suserania portuguesa¹.

 

Em 1824, era frei Joaquim do Amor Divino Caneca quem relembrava os feitos dos Restauradores de Pernambuco ao conclamar as novas gerações através de O Typhis Pernambucano². Mais tarde, já quando o Brasil se apresentava no consórcio das nações como país independente, Gervásio Pires Ferreira (1765-1836) chamava a atenção dos seus contemporâneos para o fato de que os interesses da Província de Pernambuco não coincidiam nem com os de Lisboa nem com os do Rio de Janeiro, chegando o editorialista do Diario de Pernambuco, de 3 de janeiro de 1865, a comentar:

Ele aceitava a ideia de independência nacional, mas quanto a nossa união com o Rio de Janeiro ele opunha sisudas ponderações, demonstrando que nos cumpria estabelecer condições.

Não podendo exterminar o nativismo dos pernambucanos, sem forças para domar a sua insubserviência, o Poder Central vem, ao longo dos anos, empobrecendo a Província de Pernambuco: primeiro, com a cobrança de tributos, como aquele que em 1817 era destinado à iluminação das ruas do Rio de Janeiro; posteriormente, com a Revolução Republicana de 1817, Pernambuco teve o seu território mutilado com a perda da Comarca das Alagoas e por sua participação na Confederação do Equador de 1824, lhe foram suprimidos como castigo os 130 mil quilômetros quadrados da Comarca do São Francisco, até os dias atuais anexados provisoriamente ao território da antiga Província da Bahia.

Não somente mutilaram o seu território, mas também suas rendas, no firme propósito de empobrecer toda uma região, conforme demonstram os editoriais do Diario de Pernambuco de 11 de dezembro de 1845 – Apreciação de Pernambuco em sua relação com o Império; 3 de março de 1846 – Rendas de Pernambuco apuradas e como se vão; 29 de agosto de 1859 – Editorial; 3 de janeiro de 1865 -Pernambuco e Rio de Janeiro; 3 de agosto de 1884 – Interessante. Um curioso remeteu-nos as seguintes linhas; 10 de julho de 1878 – O Sul e o Norte do Império (continua em 19 de agosto e 18 de outubro de 1878), só para citar esses³.

Tais expedientes e retaliações vieram a contribuir para a aversão dos de Pernambuco a qualquer poder centralizador que viesse de encontro a sua autonomia. A centralização de um governo no Rio de Janeiro, sem ouvir os interesses das demais províncias, insuflava os brios dos pernambucanos e provocava temores em Joaquim Nabuco (Recife, 19 de agosto de 1849 – Washington, 17 de janeiro de 1910), o nosso mais brilhante pensador da segunda metade do século XIX e início do século XX.

Confidenciava ele, em artigo publicado no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), edição de 16 de dezembro de 1888, que o espírito do pernambucano era, ao mesmo tempo, republicano e separatista.

As notícias que nos chegam de Pernambuco, a respeito do movimento republicano, são notícias más para quem toma interesse pela causa liberal em nosso país. Eu conheço bem o caráter dos meus coprovincianos para afirmar que, sem uma esperança razoável de conseguir uma medida decisiva de autonomia, a Província de Pernambuco estará republicana dentro de pouco tempo. A sua tradição é republicana: ela fez-se por si, defendeu-se sozinha contra a Holanda, quando Portugal estava em poder dos espanhóis: conquistou a sua independência por suas próprias mãos, e nada deve ao Império senão a centralização, que já a teria morto, como as suas irmãs do Norte, se não fosse a sua vitalidade extraordinária, alguma coisa no seu clima e na sua luz que impede a decadência, talvez a consciência da sua identidade histórica.

Em política, a principal ciência é ver as coisas como elas são. Eu concordo que o espírito pernambucano é republicano, mas é também separatista. Se a República fosse proclamada amanhã, seria quase impossível continuar o Norte a ser governado do Sul.

E, mais adiante, adverte Joaquim Nabuco:

Eu quero fazer duas ou três observações a esses nossos antigos camaradas. A primeira é esta: se estás pronto, se esta é a vossa intenção, a ir até a separação, até a destruição disto que se chama Brasil, a constituir um Pernambuco independente, com uma política interna e externa exclusivamente sua, se esse é o vosso sonho, podeis continuar a vossa agitação. Mas se querem manter a integridade da pátria brasileira, não vos iludais pensando que podeis servir a dois fins, para atear e para apagar o incêndio; para acordar e para adormecer as tradições pernambucanas; para criar e para destruir a força revolucionária. Para fazerdes Pernambuco republicano em nome de suas tradições, para colherdes a seara da liberdade pernambucana em torno dos cadafalsos dos seus mártires, não vos iludais, precisais reconstituir esse passado tal qual foi, ressuscitar esses sonhos patrióticos exatamente como eram, e então ser-vos-á impossível soldar de novo ao pescoço do Leão do Norte a corrente que o houverdes quebrado do governo sulista. Ser-vos-á impossível restaurar historicamente, como quereis, o Pernambuco dos holandeses, o de 1817, de 1821 e de 1824, para o fazerdes governar do Rio de Janeiro. Não tenhais dúvidas a esse respeito. Essas tradições são maiores que toda a vossa eloquência, e quando depois de destruída a Monarquia as quisésseis deixar de lado como armas inúteis ou perigosas, veríeis logo outros correrem a apossar-se delas, porque esse grandioso arsenal no nosso passado está aberto a todos os patriotas, e não poderíeis fechar.

E, concluindo, afirma com esperança no futuro de sua Província natal:

Eu acredito conhecer bem o entusiasmo pernambucano, mas o povo pernambucano, como diz Curtius do povo ateniense, só foi grande porque achou sempre nos momentos do seu maior arrebatamento algum homem que falasse à sua razão calma e lhe mostrasse o seu verdadeiro caminho.

A herança de 1817…

Hoje, em pleno século XXI, ainda permanece o mesmo ranço de tempos passados.

Dirigido por um sistema centralizador, que tem como sede o Centro-Sul do país, o Nordeste brasileiro, não somente Pernambuco, paga caro por ser parte integrante desta Federação. Todo o sistema de produção de bens foi instalado nos Estados do Centro-Sul, consequentemente uma política fiscal inconsequente vem carreando recursos para essa região, em prejuízo dos estados do Norte-Nordeste. Tal política em muito contribuiu para o empobrecimento regional e o consequente desnível nacional que caracteriza o nosso quadro socioeconômico.

O sentimento republicano, em Pernambuco, tem se mantido constante ao longo de sua história.

Um mesmo ideário nativista, o de que esta terra fora conquistada por seus antepassados e doada a El-Rei debaixo de certas condições e a de que fora o povo pernambucano o único responsável pela fixação de suas próprias fronteiras, tem estado presente em todos os movimentos emancipacionistas.

O imaginário popular se encarregou de criar um Panteão Pernambucano, inicialmente com uma tetrarquia de heróis, os chamados pais da Pátria – João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Felipe Camarão –, depois acrescido com os nomes de todos os mártires e ideólogos dos movimentos revolucionários de 1710, 1817, 1824, 1848, além de outros que integram a legião dos chamados Grandes de Pernambuco.

Todos eles, como vimos, vinculados por uma mesma raiz ideológica e dedicados a manter acesa a chama da autonomia da gente pernambucana.5

Em nada mudou o panorama da província com o novo regime republicano: Mantiveram-se as mesmas punições e retaliações feitas no Império contra a província de Pernambuco, com a perda do território da Comarca do São Francisco para a Bahia (1827) e a não ressarcimento pelas perdas do território da Comarca das Alagoas (1817), e até o não reconhecimento do seu líder maior, frei Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-1825), como o verdadeiro Mártir da República, Pai da Pátria e outros títulos ainda hoje negados.

Em Pernambuco de José Mariano Carneiro da Cunha se ouviu o primeiro brado de rebeldia contra o regime despótico do segundo presidente republicano, o Marechal Floriano Peixoto, quando do seu manifesto hipotecando seu apoio à Revolta da Armada, publicado na edição de A Província (Recife) de 5 de novembro de 1893, em que ressalta:

É preciso que a Nação inteira se levante fazendo uma última intimação ao Marechal Floriano Peixoto para que deixe o poder, pelo bem da paz e salvação da República.

O manifesto custou à prisão de José Mariano, em 14 de novembro do mesmo ano, que, depois de recolhido ao Forte do Brum, foi transferido para a Fortaleza da Laje, no Rio de Janeiro, onde permaneceu.

Mesmo prisioneiro no Rio de Janeiro, José Mariano vem a ser o candidato às eleições federais de 1º de março de 1895, elegendo deputado a si e aos seus companheiros de chapa do 1º Distrito Eleitoral de Pernambuco; mesmo atrás das grades, era ele mais importante líder político de sua província.

Em 18 de maio de 1922, foi a vez do então senador Manuel Antônio Pereira Borba denunciar uma tentativa de intervenção federal no seu Estado em enfático e exaltado telegrama dirigido ao Presidente Epitácio Pessoa, onde concluía de forma exaltada: Pernambuco não se deixará humilhar.

Surgia assim a campanha autonomista que veio a mobilizar todo o Estado contra às manobras de intervenção postas em prática, naqueles tumultuados dias, pelo Governo Federal que mais uma vez se levantava contra a autonomia de Pernambuco.

Quando da proclamação do Estado Novo, ou Terceira República Brasileira, fundado por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937, que vigorou até 29 de outubro de 1945, caracterizado pela centralização do poder, nacionalismo, anticomunismo e por seu autoritarismo, a Constituição promulgada, na mesma data, rezava no seu art. 2º – “Art. 2º – A bandeira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo o País. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regulará o uso dos símbolos nacionais”.

Imediatamente convencionou-se que a Bandeira de Pernambuco, a mesma dos Patriotas de 1817, oficializada por Decreto Estadual nº 59, de 26 de fevereiro de 1917, assinado pelo governador Manuel Borba, seria entregue ao Governo Central, a fim de ser cremada na cerimônia da queima das bandeiras estaduais, a ter lugar na Esplanada do Russell no Rio de Janeiro.

Contra tal medida, levantou-se contrariamente o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano que, em sua sessão de 17 de novembro de 1937, recebeu a proposição do sócio Samuel Campello que, por especial gentileza do consócio Tácito Galvão, passamos a transcrever:

Considerando que a bandeira da revolução de 1817 consubstanciava o maior e mais puro sonho de república no Brasil, no período colonial, quiçá em toda a História brasileira; considerando que à sua sombra dezenas de pernambucanos lutaram pela independência brasileira dentro do ideal republicano; considerando que a referida bandeira representou um governo de vários meses, constituído por homens dignos e patriotas; considerando que pelo ideal que ela representou foram imolados no patíbulo muitos pernambucanos; considerando que no centenário da revolução de 1817, no dia 6 de março por interferência e pedido do Instituto Arqueológico, o governo de então, sob a chefia do sr. Manuel Borba, considerou a mencionada bandeira como símbolo do Estado de Pernambuco; considerando que durante vinte anos foi ela a bandeira do Estado; mas, considerando que a nossa Constituição do país outorgada pelo presidente da República, sr. Getúlio Vargas, fez desaparecer as bandeiras estaduais, proponho que o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano considere como seu estandarte oficial o mesmo que foi durante vinte anos o do Estado de Pernambuco e há 127 anos representou o ideal de independência e república do povo brasileiro, com a revolução pernambucana de 1817.

Receosos os sócios do Instituto Arqueológico de então, encarregaram o jornalista Mário Melo para desenvolver sondagens, junto ao interventor Agamenon Magalhães, que não apresentou qualquer obstáculo à proposição daquele instituição, adiantando que a Constituição de 1937 fazia referência, tão somente, às bandeiras estaduais, silenciando no que diz respeito às sociedades privadas.

Na sessão ordinária de 27 de julho de 1937, o jornalista Mário Melo informa que “a opinião do chefe do Estado é que o Instituto pode fazê-lo, pois o que a Constituição de 10 de novembro proibiu foram símbolos de governos regionais – de Estados ou de municípios – e não de sociedades”.

A partir de então, a Bandeira de Pernambuco tremulou como pavilhão do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano até 29 de novembro de 1945, quando veio ser encerrado o “Estado Novo”, e as bandeiras estaduais voltaram novamente aos céus dos seus respectivos estados.

O imaginário nativista chega até os dias atuais, com os pernambucanos praticando, no seu simpático caminhar, de que fala Oliveira Lima, a insubserviência de quem já foi mais, da imagem do poeta João Cabral de Mello Neto, que assim vislumbrou no seu poema: Pernambuco, em mapa:6

Só vai na horizontal
nos mapas em que o mutilaram;
em tudo é vertical:
dos sobrados aos bueiros da Mata.

Até o mandacaru
que dá a vitalícia banana
a todos que do Sul
olham-no do alto da mandância.

Aquela horizontal
é enganosa, está só nos mapas:
não diz de sua história
e muito menos de sua casta.

_______________________________

¹ MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. Rio: Nova Fronteira, 1986. p. 124; 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 473p.

² Typhis Pernambucano foi um periódico pernambucano, editado por Frei Caneca no contexto da Confederação do Equador, em formato 21 x 30 centímetros. Circulava às quintas-feiras. O seu primeiro número circulou em 25 de dezembro de 1823, encerrando-se a sua publicação em 12 de agosto de 1824.

³ O Diario de Pernambuco e a História Social do Nordeste. José Antônio Gonsalves de Mello (organizador). Recife: Diario de Pernambuco, 1975. 2 v.; MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império 1871-1889. Rio: Topbooks, 1999. 299p.

4 GOUVÊA, Fernando da Cruz. Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República. Recife: Editora Massangana, 1990.

5 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. Rio: Nova Fronteira, 1986. p. 124; 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 473p

6  MELLO NETO, João Cabral – Museu de Tudo – poesia, 1966-1974. Rio de Janeiro: J. Olympio,


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 20 de abril de 2017

A TRÁGICA VIAGEM DE PEDRO ÁLVARES CABRAL

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa

Numa sala de aula, diante da pergunta – Quem descobriu o Brasil?

E qualquer criança responde com precisão: Pedro Álvares Cabral!

Ao que a professora complementa:

No dia 22 de abril do ano de 1500.

A verdadeira história, porém, nos seus meandros de grandeza e tragédias, só os versos do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) podem melhor enunciar:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por que te cruzamos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nossos, ó mar!

Na década final do século XV, graças aos informes seguros trazidos pelo navegador Duarte Pacheco (1460-1533), D. Manuel I, O Venturoso, resolve consolidar o chamado Caminho das Índias, descoberto por Vasco da Gama (c.1469-1524), em 1498, iniciando a exploração das terras desconhecidas ao sul do Equador.

Para isso vem constituir uma grande esquadra formada por seis naus, três caravelas redondas, uma nau mercante, uma naveta de mantimentos, acrescida da nau-capitânia e da sota-capitânia, cujo comando, por carta régia de 15 de fevereiro de 1500, sob o comando de Pedro Álvares de Gouveia, depois Pedro Álvares Cabral, com ofalecimento do seu irmão mais velho.

 

caravela

 

Na manhã de 9 de março daquele ano, zarpou de Lisboa a armada levando em seu bojo entre 1200 a 1500 homens. Na tripulação, soldados, besteiros, feitor, agentes comerciais e escrivães, além do cosmógrafo Mestre João Faras, especialista em geografia e astronomia, do capelão frei Henrique de Coimbra, oito sacerdotes seculares, oito frades franciscanos. Levava como intérprete o cristão-novo Gaspar da Gama, também conhecido como “Gaspar da Índia”, um judeu polonês, capturado por Vasco da Gama, que lá vivera 30 anos e que, em Lisboa, fora convertido ao cristianismo e batizado com o nome de família do seu padrinho.

Contando com a experiência de navegadores consagrados, como Nicolau Coelho, que acompanhara Vasco da Gama em sua primeira viagem; de Bartolomeu Dias, o primeiro a contornar o Cabo da Boa Esperança (1487) – conhecido pelos mareantes como Cabo das Tormentas ou Cabo Não -, e de seu irmão, Diogo Dias, Pedro Álvares aventurou-se no mar. As demais naus eram comandadas por representantes da nobreza de então: Simão de Miranda Azevedo, Aires Gomes da Silva, Simão de Pina, Vasco de Ataíde, Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Gaspar de Lemos, Luís Pires e Simão de Pina.

Na terça-feira após a Páscoa, 21 de abril, segundo testemunho do escrivão da armada, Pero Vaz de Caminha, foram encontradas, muita quantidade d’ervas compridas a que os mareantes chamam de botelho e assim outras, a que também chamam de rabo d’asno confirmando assim os primeiros sinais de terra.

No dia seguinte, 22 de abril de 1500, segundo a mesma fonte, pela manhã, topamos aves conhecidas por fura-buchos, e nestes dias, a hora das vésperas, houvemos vista de terra, primeiramente dum grande monte bem alto e redondo e de outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos; ao monte pôs o capitão o nome de Pascoal e à terra, Terra da Vera Cruz.

Estava assim lavrado o “Auto de Achamento do Brasil”, culminando com Pedro Álvares a série de incursões de navegadores anônimos.

 

Descobrimento do Brasil 02

 

Nas suas expedições, anteriores a 1500, procuravam esses anônimos portugueses, tendo a frente Duarte Pacheco, situar um ponto do desembarque oficial. De modo a obedecer a raia estabelecida a 7 de julho de 1494, quando da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que reservara para a coroa portuguesa as terras existentes dentro das 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.

A trágica viagem

Passada uma semana, Pedro Álvares continuou sua viagem com destino à Índia, seguindo as recomendações de Vasco da Gama, navegando, no sentido sudeste, em busca do Cabo da Boa Esperança (África do Sul), denominado então pelos marinheiros de Cabo das Tormentas.

A sorte, porém, que o acompanhara até então, parece o ter abandonado: logo no dia 23 de maio, quando uma forte tempestade, já nas proximidades do cabo veio a provocar fortes baixas na esquadra. Na ocasião naufragaram as naus de Aires Gomes da Silva, Luís Pires e Simão Dias, levando consigo mais de 300 homens, seguindo-se da caravela de Bartolomeu Dias, o mesmo que houvera descoberto o dito Cabo da Boa Esperança, com 80 homens.

Somente a 16 de julho, os cinco navios restantes da esquadra vieram se reencontrar, completamente avariados e com as suas tripulações em pânico, na ilha de Quiloa, na costa do atual Quênia.

A viagem se seguiu com o que restou da primitiva frota atingindo Sofala (Moçambique), em julho, e Melinde (Quênia), a dois de agosto, onde com o apoio do xeque Omar conseguiu os serviços de um piloto hindu que a conduziu até a Índia.

Em 13 de setembro, aportaram em Calicute (Índia) a capitânia de Pedro Álvares, a sota-capitânia de Sancho Tovar, e a Anunciada, de Nuno Leitão da Cunha, além de duas outras comandadas por Nicolau Coelho e Simão de Miranda.

No final de setembro o capitão-mor teve o esperado encontro com o Samorim de Calicute – ou Samudri-Raj, o “Senhor do Mar” -, quando lhe fez entrega da carta do D. Manuel I, escrita em árabe, e presenteou-lhe com moedas de ouro e prata, sedas e brocados, recebendo em troca autorização para instalação de uma feitoria naquele movimentado centro comercial.

Mas o pior estava por vir. Enquanto os portugueses carregavam suas naus de especiarias, enfrentando a concorrência dos comerciantes árabes, que os viam como uma ameaça aos seus negócios, a esquadra veio a ser atacada, a 16 de dezembro de 1500, por cerca de 300 árabes e hindus.

Na ocasião perdeu a vida o escrivão Pero Vaz de Caminha, juntamente com o feitor Aires Corrêa, seis frades franciscanos e 50 outros portugueses. Em represália, segundo relato do Piloto Anônimo, foi Calicute bombardeada durante dois dias pelos portugueses “matando infinita gente e causando muito dano à cidade”.

Em seguida Pedro Álvares buscou abrigo no reino de Cochim (hoje a maior cidade do estado de Kerala, na costa do Malabar), distante 200 km de Calicute, para onde se dirigiu no dia 20 de dezembro. O rajá local, rival de Calicute, permitiu a instalação de uma feitoria e o carregamento das naus de pimenta, gengibre, canela e outras especiarias.

Em 16 de janeiro de 1501, com uma cabeça de ponte instalada em Cochim, na Índia, os navios que restaram da esquadra de Pedro Álvares iniciaram sua viagem de retorno a Lisboa.

No seu regresso foi encontrar em Bezeguiche, hoje Dakar, a nau desgarrada de Diogo Dias, com uma tripulação de apenas sete homens, e, numa feliz coincidência, com a expedição de Gonçalo Coelho que seguia em busca do Brasil.

Dos treze navios somente regressaram a Lisboa, a nau Anunciada, sob o comando de Nuno Leitão da Cunha, em 23 de junho de 1501, seguindo-se depois da nau capitânia de Pedro Álvares, que veio aportar no Tejo a 21 de julho de 1501, unindo pela primeira vez os quatro continentes: Europa, América, África e Ásia.

O restante dos navios e suas tripulações pereceram no mar, juntamente com todos os seus tripulantes; bem de acordo com a descrição do poeta Fernando Pessoa:

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 12 de abril de 2017

OLIVEIRA LIMA, O HISTORIADOR POR EXCELÊNCIA

 



Em 1997, dirigia eu a Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco quando, dentro da Série Descobrimentos, por mim dirigida, fiz entrega ao público ledor da terceira edição da primeira obra de Manuel de Oliveira Lima (1867-1928), Pernambuco seu desenvolvimento histórico, cujo primeira edição fora publicada em 1895 e a segunda em 1975…

Muito embora se tratando de um verdadeiro breviário da pernambucanidade, este primeiro livro de Oliveira Lima, escrito em Berlim e impresso em Leipzig em 1895, é apontado por bibliógrafos, do quilate de um Rubem Borba de Moraes, como texto básico e indispensável para o conhecimento da formação histórica do Norte do Brasil e muito especialmente para o entendimento daquilo que o autor denominou de “simpático caminhar” da gente de Pernambuco.

 

Nascido na cidade do Recife, em rua que hoje guarda o seu nome, a 25 de dezembro de 1867, Manoel de Oliveira Lima conviveu poucos anos em sua terra natal, pois, junto com seus genitores, se transfere em 1873 para Lisboa, onde vem a realizar os estudos que o levaram a optar pela carreira diplomática.

Apesar de distante, a paisagem pernambucana jamais lhe sairá da memória, como ele próprio, mais tarde, vem externar em suas Memórias (Rio de Janeiro: Recife, 1986):

De Pernambuco eu trazia recordações que em breve se fizeram vagas; um dia passado no engenho do meu cunhado Araújo Beltrão, onde eu passeara pela primeira vez a cavalo, montado na maçaneta e seguro por um escravo, porque até então a minha montaria fora um carneiro por nome Cadete; outro dia passado em Olinda, meu tio Quintino, que ali era juiz de direito e morreu presidente da Relação do Recife, à cabeceira da mesa servindo a sopa de uma grande terrina; a campina por trás de nossa casa, onde se erguiam coqueiros e por onde de quando em vez silvava a maxambomba. Na minha memória ficou porém gravada a figura de Dom Vital [1844-1878], com a sua bela barba negra de capuchinho que os seus adversários diziam lustrada à brilhantina, como diziam perfumadas a sabão de Houbigant as suas mãos aristocráticas. Era nosso vizinho, ficando-nos fronteiro o Palácio da Soledade e, quando saía a pé à tardinha, não raro entrava no nosso jardim e demorava-se a conversar com o meu pai, sentados os dois por trás do portão de ferro.

Pernambuco foi sempre a sua pátria primeira, aquela que, como um ferro em brasa, marca a alma e, para todo sempre, se transforma com o passar dos anos na ideia de céu que fustiga o inconsciente de cada um.

O meu gosto pelos assuntos históricos foi temporão. Fiz exame de história com 11 anos e meio e tão bem me saí que o presidente da mesa declarou que, se a lei previsse um prêmio em casos tais, este me caberia. Pelo desenho, pela música e pelo canto e porquanto exige talento manual nunca senti a menor aptidão e às matemáticas e ciências naturais fui sempre avesso que duas vezes fui reprovado em física com grande humilhação para meu pai, que não se queria capacitar da minha incompatibilidade congênita com a ótica, parte que num e noutro exame me caiu o ponto.

 

Para seu torrão natal foi dedicado o primeiro livro, um trabalho de juventude, publicado aos 28 anos, Pernambuco seu desenvolvimento histórico, editado em Leipzig, por F. Brockhaus datado de 1895, no qual se assina, “M. de Oliveira Lima, sócio correspondente do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano”, e faz a seguinte advertência ao referir-se à lista de escritores que compõem a bibliografia nele incluída:

Em todos procurei os fatos pernambucanos, dos quais tentei explicar a significação, relacionando-os com a marcha da civilização brasileira e prendendo-os com os acontecimentos do Velho Mundo, de que eles foram efeito ou reflexo. Em todo este trabalho animou-me sobretudo, e seja esta a sua recomendação, o amor à terra natal, pátria de tão generosos sentimentos, campo de tão dramáticas peripécias. Julgar-me-ei feliz se houver conseguido retratar lhe nas páginas que se seguem o simpático caminhar.

Berlim, 29 de junho de 1893.

Nunca a História de Pernambuco foi contada em tão curto espaço, com precisão de datas, fatos e, particularmente, causas que geraram as mais diversas situações. Escrito com apurado bom gosto, procurando traçar um paralelo entre os acontecimentos da história mundial com o “simpático caminhar” de sua província, utilizando-se para isso de uma linguagem fácil e amena, Oliveira Lima conseguiu compor uma verdadeira síntese, um autêntico breviário cívico do povo pernambucano. Ontem, como hoje, este manual de pernambucanidade continua assim a sua missão, a de lembrar às gerações que se sucedem os bravos feitos destes filhos de Marte em cujas artérias “corre sangue de heróis, rubro veio”.

A hegemonia de Pernambuco, no Norte, pode-se dizer-se em todo Norte, porque ainda a Amazônia se não desenhava, estabeleceu-se neste fim do século XVI. Pernambuco, que já dera o seu contingente de homens e mantimentos para a expedição de Estácio de Sá contra os índios do Rio de Janeiro, colonizou a Paraíba e o Rio Grande do Norte à custa de sangue seu, libertando do gentio estes territórios, e vê-lo-emos prosseguir a sua marcha civilizadora até ao Ceará e Pará, emancipar o Maranhão de uma brilhante ocupação francesa, e sacudir de todo o Norte o arraigado domínio holandês.

Em um só parágrafo, quando da abertura do quarto capítulo, Oliveira Lima define, com o poder de síntese que caracteriza os seus escritos, a importância da primitiva Capitania Duartina no cenário da historiografia nacional. Das nascentes do São Francisco à conquista da Amazônia, a influência da gente pernambucana se fez presente fincando as raízes formadoras da nacionalidade brasileira.

Hoje tudo não passa de recordações de um velho editor, responsável que foi pela segunda e terceira edição do primeiro livro de M. de Oliveira Lima: Pernambuco seu desenvolvimento histórico; hoje raridade, só encontrado pela internet, com auxílio do Google, em Estante Virtual.

Reencontrei-me com Manuel de Oliveira Lima em 1986, quando da publicação da segunda edição de Memórias – Estas minhas reminiscências que veio a integrar, com o prefácio de Fernando da Cruz Gouvêa, a segunda fase da Coleção Pernambucana (v. XXIX), impressa naquele ano sob o patrocínio da Diretoria de Assuntos Culturais da FUNDARPE – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico Pernambucano.

Deixando Pernambuco em 1873, vai Oliveira Lima residir em Lisboa (Rua da Glória nº 23), onde vem realizar dos os seus estudos e iniciar-se na vida literária. Doutorado em Filosofia de Letras, pela Faculdade de Letras de Lisboa (1888), vem abraçar a carreira diplomática, onde ingressa em 10 de dezembro de 1890 como adido de primeira classe junto à Secção do Brasil em Lisboa.

Em 15 de outubro de 1891 casa-se, por procuração, com a pernambucana Flora Cavalcanti de Albuquerque, que vem a ser não somente sua companheira, mas sua incentivadora em sua agitada vida de diplomata e escritor.

Pernambuco esteve sempre ligado à obra de Oliveira Lima, como se depreende de sua bibliografia organizada por Neusa Dias Macedo, revista e atualizada por Fernando da Cruz Gouvêa; in Oliveira Lima – Obra seleta. São Paulo, 1971. P. 1018-1033.

A sua obra mais festejada veio a ser Dom João VI no Brasil (Tipografia do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 1908. 2 v.). Este livro contou com uma reedição em 1945 (3 v.) e uma terceira edição em 1996 da TopBooks – Rio de Janeiro; editada por José Mário Rodrigues prefácio de Wilson Martins.

Dom João VI no Brasil vem a ser consagrado como a maior produção intelectual do século XIX, lembrando Octávio Tarquino de Souza ser ele “uma dos maiores livros de nossa historiografia”, apontando Gilberto Freyre como “uma das obras mais importantes, de qualquer gênero, jamais produzidas no Brasil”.

Dom João VI no Brasil abriu as portas da Universidade da Sorbonne (Paris) para Oliveira Lima, que ali pronunciou uma série de conferências sobre a Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, depois reunidas em livro sob o título Formation Historique de la Nacionalité Brésilienne (Paris,1911), considerado por Gilberto Freyre como o seu segundo melhor trabalho literário:

São talvez os dois melhores trabalhos que Oliveira Lima nos deixou. Em Dom João VI no Brasil revela o historiador todas as virtudes do seu poder de análise, que era extraordinário; em Formation Historique de la Nacionalité Brésilienne nos surpreende com um poder de síntese igualmente raro. Dificilmente se imagina um resumo dos fatos da formação nacional do Brasil, mais rico dos traços essenciais dessa formação e escritos de forma mais capaz de iniciar o brasileiro ou o estrangeiro no conhecimento do passado luso americano.

O livro em questão foi traduzido para o português por Aurélio Domingues, recebendo o título de Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, publicado com prefácio de Gilberto Freyre, M.E. Martinenche e José Veríssimo, pela Companhia de Leitura (Rio de Janeiro, 1944).

Um nova edição veio acontecer, em 1997, publicada sob a coordenação de José Mário Pereira (Rio de Janeiro, TopBooks), trazendo em sua abertura textos dos prefaciadores da primeira edição.

A narrativa contida do Dom João VI no Brasil vem ter sua continuidade no livro O Movimento da Independência – Aspectos da história e da cultura do Brasil que, publicado pela primeira vez em 1923, reaparece em sua sexta edição com prefácio de Evaldo Cabral de Mello (Rio de Janeiro: TopBooks, 1997. 493 p.), da qual faz a seguinte observação:

Graças as esse traquejo de história portuguesa, de história das Américas e dos arquivos diplomáticos, Oliveira Lima pôde abrir o janelão que arejou a história da nossa independência, até então à camarinha da visão estreita fluminense e imperial da emancipação brasileira. […] É significativo que dessa atmosfera ideológica que a descoberta de Tiradentes e da Inconfidência Mineira tenha sido basicamente criação da República Velha. Só com o regime de 1889 os mineiros sentiram-se à vontade para se impingirem como precursores da República após o século de boca de siri que fizeram sobre o seu ilustre protomártir, não fosse a relação comprometer ambições políticas da província, que se achavam, em última análise, na dependência de um risco sumário do lápis vigilante do bisneto de D. Maria I. É provável que sem a atmosfera descontraída da Regência, monsenhor Muniz Tavares não tivesse escrito sua história da revolução pernambucana de 1817, que aparece precisamente no umbral (1840) do Segundo Reinado para ser reeditada por Oliveira Lima quando das celebrações do centenário do movimento.

A reedição referida por Evaldo Cabral de Mello surgiu quando dos preparativos para as comemorações do primeiro centenário da Revolução de 1817, pelo Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. Inicialmente os comentários e anotações à nova edição foram entregues ao escritor Alfredo de Carvalho, mas adoecendo este gravemente vem falecer em 23 de julho de 1916, quatro dias antes de completar 46 anos, transferindo-se a tarefa para o diplomata M. de Oliveira Lima, que concorda com tal empreitada na sessão de 13 de julho de 1916 daquela instituição.

Surge assim a História da Revolução de Pernambuco em 1817, pelo Doutor Francisco Muniz Tavares, Terceira Edição, comemorativa ao Centenário do 1º Centenário – Revista e anotada por Oliveira Lima, 700 p. il. – Recife: Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, Imprensa Industrial, 1917.

A esta edição seguiu-se a de 1969, editada pelo jornalista Paulo Fernando Craveiro, para a Casa Civil do Governo do Estado de Pernambuco, com prefácio do escritor José da Costa Porto, porém ficou faltando uma publicação definitiva, com todas as anotações constantes da edição de 1917.

Historiador e diplomata brasileiro, Manuel de Oliveira Lima foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1906), sócio correspondente do Instituto Arqueológico e Histórico Pernambucano, residindo em Washington (DC) desde 1918, onde exercia as funções de professor na Universidade Católica e para a qual doou depois sua biblioteca particular. São cerca de 55 mil volumes, além de mapas, manuscritos e objetos de arte. Contribuiu para o aprimoramento dos estudos históricos no Brasil, inclusive preocupando-se com a reedição de obras raras e com a pesquisa de várias fontes da história brasileira.

Manuel de Oliveira Lima vem a falecer nos Estados Unidos, em 24 de março de 1928, estando o seu corpo sepultado no Cemitério Mont Olivet (Washington) em um túmulo assinalado com a inscrição: Aqui jaz um Amigo dos Livros.

 

 

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Leonardo Dantas - Esquina quarta, 05 de abril de 2017

OS MÁRTIRES DE 1817

 

Debelada a revolução e deixando o governo provisório o Recife, em 19 de maio de 1817, logo no dia seguinte os portugueses saíram às ruas com as bandeiras do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves alçadas, dando vivas a El-Rei e morras aos patriotas pernambucanos, ao mesmo tempo que despedaçavam as bandeiras republicanas.

Não se fez tardar a reação por parte de Dom Marcos de Noronha e Brito, oitavo Conde dos Arcos, (1771-1828), que governava à Bahia, que, em sucessivas proclamações, anuncia terríveis castigos contra os revoltosos pernambucanos; três dessas proclamações foram por mim compiladas na Biblioteca de Guita e José Mindlin (São Paulo):

Dom Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, do Conselho de SUA MAGESTADE EL-REI NOSSO SENHOR, Gentil-Homem da Câmara de SUA ALTEZA REAL do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, Grão-Cruz da Ordem de S. Bento d’Avis, Marechal de Campo dos Reais Exércitos, Comandante em Chefe do Real Corpo de Artilheiros Guarda-Costas do PRINCIPE PEDRO, e Capitão da Companhia de Voluntários, Governador e Capitão General da Capitania da Bahia, &c &c. &c.

Habitantes de Pernambuco! Marcham para a Comarca das Alagoas Bandeiras Portuguesas, e Soldados Baianos para as içar em toda extensão dessa Capitania.

Todo o Habitante de Pernambuco que não seguir rapidamente, e marchar junto com elas será fuzilado.

As Forças Navais ora a vista, e em Bloqueio do Porto têm ordem de arrazar a Cidade, e passar tudo à Espada se imediatamente não forem instauradas as Leis de SUA MAGESTADE EL-REI NOSSO SENHOR.

Nenhuma Negociaçãos será atendida sem que se proceda como preliminar a entrega dos Chefes da Revolta a bordo, ou a certeza de sua morte; ficando na inteligência de que a todos é lícito atirar-lhes a Espingarda como a Lobos.

Bahia 29 de Março de 1817.

(Assinado) Conde dos Arcos.

Pelo menos dois outros proclamas, assinados pelo Conde dos Arcos e trazidos pela esquadra real, chegaram a Pernambuco, datados de 21 e 29 de março de 1817, com textos e ameaças no mesmo teor, segundo confirma L.F. de Tollenare e as cópias dos nossos arquivos.

No domingo 25 de maio de 1817, continua L.F. de Tollenare, em seus apontamentos:

– A revolução de Pernambuco terminou a 20, depois de ter durado dois meses e meio.

A 18 recebeu-se do comandante da esquadra a resposta às propostas de acordo: prometia que a cidade seria poupada se os chefes se entregassem à clemência de sua majestade. A 19, as tropas foram reunidas, arengadas [conversa longa e enfadonha] e excitadas à defesa. Parece que mostravam pouca firmeza.

Ao meio-dia foi resolvida a retirada para o interior do país. Às três horas o Padre João Ribeiro mandou me dizer que o governo estava dissolvido; ele seguia o exército a pé, descalço, afim de dar o exemplo das privações, às quais cumpria preparar.

Uma hora depois recebi aviso de me prevenir, porque o exército se retirava e não se podia responder pelas desordens que ameaçam os retardatários e a retaguarda. (…)

Com grande surpresa nossa, a noite foi calma; não se ouvia rumor algum na cidade. A 20, ao nascer do dia, percebi na praia um padre que fazia sinais; dirigi-me a ele num bote. Acolheu-me com o grito de: “Viva El Rei”! e me pediu uma bandeira portuguesa.O governo provisório tinha feito destruir todas, poucos dias antes; entretanto, achou-se algumas que os marinheiros haviam escondido.

Dei-lhe a da escuna. Este padre me informou que os patriotas, em número de 6.000 homens, inclusive os escravos alforriados, se tinham retirado para o lado de Olinda com bagagens e uma numerosa artilharia; que quase não havia ninguém na cidade; que se os marinheiros desembarcassem fariam ali o que quisessem; que ia fazer içar a bandeira real por sua conta e risco. Durante este colóquio estabeleceram-se outras comunicações entre os navios e a praia. A coragem dos realistas crescia à medida que adquiria certeza do afastamento dos patriotas. Ao levantar do sol uma pequena sumaca içou o pavilhão português; os seus vizinhos saudaram-no e imitaram-na; pouco a pouco o exemplo alastrou e o porto reboou (ecoar) com o ruído das aclamações e das salvas.

Os navios estrangeiros levantaram os seus pavilhões nacionais. Entretanto os cinco fortes não faziam demonstração alguma. (…)

A grande Fortaleza do Brum era comandada por um jovem oficial, que permanecia indeciso entre o seu dever como militar e a sua prudência como cidadão; o sr. Ramos teve a felicidade de fazê-lo decidir a seguir o movimento geral. A Fortaleza do Buraco seguiu imediatamente o exemplo da do Brum.

O pequeno forte do Picão e os brigues armados foram também logo tomados sem resistência.

As sete horas as cores reais flutuavam por toda a parte, as salvas reais se repetiam, o ar vibrava abalado pelas contínuas descargas de artilharia. Tudo se fez sem resistência da parte dos patriotas e assistência do exército real. Os marinheiros foram quase que os únicos autores desta restauração.

Mais adiante o mesmo L.F. de Tollenare dá notícia do final de dois dos seus amigos revolucionários:

Parece que os seus chefes partiram sem haver concertado planos entre si; é preciso que julguem a sua causa desesperada.

O sr. José Luiz de Mendonça teve a ingenuidade de ficar na cidade e de se apresentar ao almirante, que o mandou prender.

O Padre João Ribeiro suicidou-se a três léguas daqui; passeiam a sua cabeça sangrenta pelas ruas da cidade.

Quando, a 19, me mandou dizer que o governo estava dissolvido, acrescentou que lamentava não poder me dizer adeus, mas, que eu podia ficar certo de que ele saberia morrer como homem livre. Não era um homem desonesto; mas, estava alucinado pela leitura dos nossos filósofos do século XVIII. O seu crime político não me pode fazer esquecer que fui seu amigo.

E as prisões dos líderes revolucionários vão se seguindo, um após outro, como se depreende das mesmas Notas Dominicais, de L.F. de Tollenare, que assim registra:

As prisões na cidade são numerosas; a mais notável foi a do sr. Gervásio Pires Ferreira, o negociante mais rico da cidade; quase que nenhuma parte tomou na revolução, e isto causa inquietação àqueles que o temor fez menos inocentes.

Cita-se a prisão dos dois vigários de Santo Antônio e da Boa Vista, do guardião de S. Francisco e de frades carmelitas; quase todos estes se envolveram na revolução, Receava-se pelo sr. Bento Jose da Costa, sogro do sr. (Domingos) Martins; mas, parece que ele se justificou. Os negociantes da cidade se interessavam por ele. Tem-se detalhes acerca da batalha de 15; travou-se perto de Salgado.

  Domingos José Martins – 1817

Não sei de que proezas brilhantes se possa falar, se é verdade que tudo se reduziu a três homens mortos. Aliás, o marechal Melo foi um Fábio, e tinha razão, porque, além da cavalaria da Bahia, o seu exército não podia inspirar-lhe grande confiança: não valia mais do que o dos patriotas (…) Sabemos a sorte do sr. Domingos José Martins; ferido na batalha de 14 ou 15, refugiou-se numa cabana e disfarçou-se. Fugindo de asilo em asilo, uma índia o denunciou; preso, foi embarcado no Pontal e conduzido para bordo da fragata.

Com ele achavam-se seu irmão, o sr. Vasconcelos Bourbon, e outros revolucionários. 0 sr. Manuel Correia de Araújo havia traído o partido antes do dia 20 de maio. Conquanto tenha assinado proclamações muito injuriosas à majestade real, e tomado parte em todas as deliberações do governo provisório, espera-se que a sua defecção [deserção] lhe proporcione a graça. 0 sr. José Luiz de Mendonca podia ter feito o mesmo, se o quisesse; mas, teve repugnância em ser um traidor; preferiu oferecer-se como vítima e não procurar desculpar-se. Dos cinco membros do governo provisório só resta prender o sr. Domingos Teotônio (Jorge). E’ homem de uma coragem fria e intrépida, mas, não tem os talentos de um chefe de partido. Vários dos conselheiros têm também sido presos. 0 novo governador, o sr. Rodrigo Lobo, mostra muita afabilidade para com os nacionais e estrangeiros; é apenas provisório: espera-se um outro nomeado pelo rei.

 

Sobre o fim da Revolução de 1817, informa M. de Oliveira Lima que “escrevendo meses depois ao presidente da Alçada, Bernardo Teixeira Coutinho Álvares de Carvalho, dizia Luís do Rêgo: “Não remeto os selos e as bandeiras que usaram os rebeldes, porque não existem, as bandeiras contam-se que foram rotas e despedaçadas pelo povo no dia da restauração (Manuscritos da Biblioteca Nacional).¹

Em 6 de fevereiro de 1818, por ocasião da aclamação do rei Dom João VI, foi determinada a suspensão da Devassa sobre a revolução e de novas prisões. Os réus sem culpa comprovada foram libertados, continuando presos em Salvador os envolvidos que estavam com processo formado; a notícia chegou a Pernambuco em 8 de maio de 1818.

Das cadeias do Recife foram libertados 60 presos, mas os recolhidos aos cárceres da Bahia, em número superior a cinquenta, somente regressaram a Pernambuco em 26 de maio de 1821.

Entre os participantes da Revolução de 1817, treze presos foram condenados à morte. Quatro foram fuzilados em Salvador. Em Pernambuco, nove foram enforcados no Recife, tendo depois seus corpos esquartejados, com as cabeças e mãos expostas em diferentes locais públicos de Pernambuco e da Paraíba, e os troncos amarrados e arrastados por cavalos até o cemitério.

Fontes sem confirmação estimam aproximadamente 1600 mortos ou feridos nos combates, 800 degredados (números que se pode considerar exagerados) e 117 presos em Salvador por quatro anos, até serem anistiados em 1821.

Morreram ainda como consequência direta no envolvimento da revolução em 1817:

José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima (padre Roma): Nascido em Recife, teólogo e bacharel em Direito, deixou a vida sacerdotal para dedicar-se à advocacia e à política. Enviado pelo governo revolucionário à Bahia, foi descoberto, preso, rapidamente julgado, condenado e fuzilado em 29 de março de 1817 no Campo da Pólvora em Salvador, três dias depois de ser preso. A execução foi assistida obrigatoriamente por seu filho, então capitão José Inácio de Abreu e Lima, posteriormente conhecido como general Abreu e Lima.

João Ribeiro de Pessoa de Mello Montenegro (padre): Maçom. Nascido em Tracunhaém, Pernambuco, era professor do Seminário de Olinda e foi eleito presidente da junta governista revolucionária em Pernambuco. Construiu uma biblioteca particular em sua residência, disponibilizando volumes para vários companheiros de ideologia iluminista. Com a derrota da revolução, suicidou-se no interior da capela do engenho Paulista. Três dias depois de seu suicídio, o corpo enterrado ao lado da capela foi exumado e mutilado, suas mãos enviadas para Goiana (PE), e sua cabeça, após ser exibida pelas ruas de Recife ao longo do dia da exumação, por ordem do governador ficou espetada por dois anos no poste do pelourinho em frente à Igreja do Corpo Santo, no Recife.

André de Albuquerque Maranhão (coronel de milícias a cavalo): Nascido em Canguaretama, Rio Grande do Norte, foi um dos líderes do movimento separatista, tornando-se presidente do governo provisório no Rio Grande do Norte diante da pouca ação do padre Dornellas, escolhido para o cargo. Em 26 de abril de 1817, sentado à mesa dos despachos, teve sua sala invadida pelos contra-revolucionários. Negou-se a se entregar e reagiu, sendo ferido por Antônio José Leite Pinho, que o atingiu com a espada. Ferido, foi conduzido para a Fortaleza dos Três Reis Magos e colocado a noite inteira no chão molhado de uma cela escura. Agonizou sem assistência e perto de sua morte, seu amigo – padre Dornellas – prestou-lhe as últimas orações. Morto aos 40 anos, pela manhã, transportaram seu corpo nu e coberto com sangue coagulado para ser sepultado sem caixão na Igreja Matriz. Seu cadáver foi enterrado com grilhões. (A história da Revolução Pernambucana de 1817)

No Largo do Erário (atual Praça da República), depois denominado de Campo da Honra, foram enforcado em 8 de julho de 1817, os capitães Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa e José de Barros Lima, além dos mártires Antônio Henrique Rabelo, Amaro Coutinho, José Peregrino Xavier de Carvalho, Inácio de Albuquerque Maranhão e o padre Antônio Pereira de Albuquerque.

Na Bahia foram executados o padre José Ignácio de Abreu e Lima – Padre Roma, em 29 de março de 1817. Também fuzilados no Campo da Pólvora (Salvador), foram os patriotas Domingos José Martins e José Luiz de Mendonça, em 12 de junho de 1817.

Um monumento aos Mártires da República de Pernambuco de 1817, concebido em bronze pelo escultor Abelardo da Hora, foi inaugurado em 1987 pelo Governo de Pernambuco, atendendo à sugestão do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, na alameda em frente ao Palácio da Justiça.

Derrotado o movimento visando implantar, pela primeira vez, um regime republicano em terras brasileiras, o belo pavilhão dos Patriotas de 1817 desapareceu dos olhos dos pernambucanos, o ideário de liberdade, bem como os sonhos de uma nova República, ficaram adormecidos. Os heróis de então foram enforcados e arcabuzados, com seus corpos mutilados depois de mortos, enquanto pais de famílias eram seviciados nos interiores das masmorras do Recife e de Salvador e os lares eram desonrados.

Segundo o padre Dias Martins, autor do livro Os Mártires Pernambucanos – vítimas da liberdade nas duas revoluções ensaiadas em 1710 e 1817 (Recife, 1853), a lista dos denunciados nos dois movimentos somam o número de 628.

Todavia a chama da liberdade, permaneceu bem viva no espírito da gente de Pernambuco, voltou a se manifestar em 1821.

Neste ano, a 29 de agosto, teve início um movimento armado contra o governo de Luiz do Rego Barreto, culminando com a formação da a Junta de Goiana, vitorioso com a rendição das tropas portuguesas em capitulação assinada a 5 de outubro do mesmo ano, quando da Convenção do Beberibe, responsável pela expulsão dos exércitos portugueses do território de Pernambuco.

Tal episódio veio separar, definitivamente, a capitania do Reino de Portugal onze meses antes da proclamação da Independência do Brasil pelo Príncipe Dom Pedro de Orleans e Bragança, em 7 de setembro de 1822.

______________________________________

¹ O selo do governo provisório encontra-se reproduzido na obra de Melo Morais, Brasil Histórico, vol. II, 1867, p. 11. É o mesmo desenho da bandeira, com um dístico em redor, na parte superior: Salus Populi, e na inferior: Pernambuco.

 

 

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Leonardo Dantas - Esquina quarta, 29 de março de 2017

MONSENHOR MUNIZ TAVARES, TESTEMUNHA OCULAR DE 1817

 

Nascido em 16 de fevereiro de 1793, na freguesia de Santo Antônio do Recife, Francisco Muniz Tavares, filho do comerciante português João Muniz Tavares, natural  da ilha de São Miguel dos Açores, e de Rita Soares de Mendonça, natural do Recife, foi uma pessoa direcionada pelo destino.

 

Orientado pelos seus pais, naquele Recife desprovido de oportunidades para um jovem, vem abraçar a carreira eclesiástica, fazendo os seus estudos filosóficos e teológicos na Congregação dos Padres da Madre de Deus, concluídos em 2 de abril de 1808.

Em 1817 estava Muniz Tavares com vinte e quatro anos de idade, ocupando as funções na Capelania do Hospital do Paraíso, ao lado do padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro. O local era denominado de “Academia do Pátio do Paraíso”, onde eram debatidos o ideário dos filósofos do iluminismo, notadamente os filósofos franceses, que gozavam de grande simpatia por parte do padre João Ribeiro.

Vencido o movimento republicano de março de 1817, foi Muniz Tavares um dos primeiros prisioneiros do almirante Rodrigo Lobo que, agrilhoado [pelos pés e pelo pescoço] nos porões da corveta Mercúrio, foi enviado junto com outros prisioneiros para a cadeia da Bahia.

Recolhido às mais abjetas das masmorras, preso por corrente que impediam os seus movimentos, impedido inclusive de trocar a roupa imunda do seu corpo, o jovem sacerdote foi entregue a sanha de um carcereiro embriagado, de cuja boca era obrigado a ouvir os mais vis impropérios, contra os prisioneiros pernambucanos.

Nesta sucursal do inferno, Muniz Tavares teve a iniciativa de transformar o tempo ocioso do cárcere em horas de estudos. “Mediante avultado ganho para os carcereiro”, os prisioneiros tiveram acesso “ao uso do papel, pena, tinta, e com maior custo ainda tiveram algumas novelas e livros de viagens, que ambiciosamente passavam de mão em mão.”(¹)

 

Foi quando o jovem Muniz Tavares ponderou: Se nós havemos de entreter com essas novelas, que corrompem antes do que moralizam, por que não mandamos vir livros de instrução que utilizando-nos, matam o tempo que passamos na ociosidade.

Aceita por unanimidade a proposta, foi o cárcere, segundo Pereira da Costa, transformado numa universidade livre, com a entrada de “dicionários franceses, Telêmaco, Fábulas de La Fontaine e outros clássicos franceses, e logo após outros livros de línguas e ciências, convertendo-se a cadeia numa universidade, onde Muniz Tavares, Antônio Carlos [de Andrade e Silva], frei Caneca, Mena Calado, Pedroso, Vilela Tavares e outros difundiam o estudo das letras e das ciências, cabendo a Muniz Tavares a regência da cadeira de Lógica. Indivíduos houve, que entrando para a cadeia quase analfabetos, saíram possuindo alguma instrução literária […]. Enfim, como diz Antônio Joaquim de Melo, todo mundo estudava; a habitação das trevas transformou-se em asilo da luz”.²

Libertado da cadeia da Bahia, em 22 de fevereiro de 1821, Muniz Tavares “saiu dos cárceres sabendo muito mais do que quanto entrara”.

Voltando ao Recife, vem a ocupar às funções de professor de Latim da Vila do Cabo, mas logo depois é eleito pelos seus correligionários para o Congresso das Cortes de Lisboa onde representaria Pernambuco juntamente com sete outros deputados.

Tinha 28 anos quando partiu para Lisboa, em 29 de agosto de 1821, assumindo sua cadeira de deputado e logo chamando a atenção dos seus pares para a situação de Pernambuco, entregue a sanha despótica do capitão general Luiz do Rego Barreto cujos crimes e desmandos punham à sociedade em constantes sobressaltos.

No seu pronunciamento de 30 de agosto de 1821, Muniz Tavares requer a soltura de todos os presos, envolvidos na Devassa de 1817, que por sua participação em um movimento constitucional ainda padeciam nos cárceres de Lisboa e no degredo na costa da África. Requer que sejam repatriados “à custa do Tesouro Nacional, pois que obriga-los ao pagamento das despesas, seria impor-lhe pesada multa, que de certo não merecem.”

Mas o clima dos debates da Assembleia Constituinte de Lisboa se volta contra os deputados brasileiros, ameaçando-os em sua própria segurança pessoal, o que obriga a Muniz Tavares, após assinar o manifesto de 22 de outubro de 1822, embarcar de regresso a Pernambuco, quando encontra o Brasil independente pelo Grito do Ipiranga de 7 de setembro daquele ano.

Voltando a Pernambuco é condecorado com a Imperial Ordem do Cruzeiro, em 1º de dezembro de 1822, pelo Imperador D. Pedro I, sendo designado a compor à Assembleia Constituinte encarregada de escrever a primeira constituição, juntamente com outros nomes no cenário das ideias da nova nação.

Objeto de críticas exaltadas pelo redator do periódico Sentinela da Liberdade na guarita de Pernambuco, Sypriano José Barata de Almeida (nº 54/1823), Muniz Tavares envia carta à Câmara Constituinte apresentando renúncia do seu mandato de constituinte.

A Assembleia Constituinte, por unanimidade dos seus membros rejeitou o pedido, continuando Muniz Tavares no exercício de suas funções até a dissolução daquele colegiado por ato do próprio D. Pedro I.

A reação em Pernambuco não se fez tardar e logo o Thyphis Pernambucano, jornal que tinha como redator o carmelita frei Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-1825), no seu número de 15 de abril de 1824 vem apresentar as bases da Confederação do Equador.

Muniz Tavares não aderiu ao novo movimento, explicando, na ocasião, que o seu objetivo era, tão somente, à independência da Pátria; “depois de atingir esse alvo, queria unicamente a sua prosperidade e o bem-estar: Não sigo partidos, só quero a ordem e a tranquilidade da minha Pátria”.

Em 1824, resolve viajar para a Europa onde, em Paris, se matricula na universidade e lá obtém o grau de Bacharel em Teologia, na data de 26 de março de 1825, conquistando, posteriormente, a láurea de doutor.

Em 1826 retornou ao Rio de Janeiro, sendo nomeado à 18 de maio para a Legação Diplomática do Brasil em Roma. Entre 23 de outubro de 1826 e maio de 1832, Muniz Tavares atua como diplomata junto à Santa Sé.

A partir de então, volta a Pernambuco e, retirado da vida pública, dá início a construção do seu livro História da Revolução de Pernambuco de 1817, obra cuja primeira edição veio a ser impressa no Recife, pela Typographia Imparcial de L.I.R. Roma, em 1840.

Comenta Manuel de Oliveira Lima, no prefácio da terceira edição do seu livro, Recife 1917, sobre Francisco Muniz Tavares:

A atividade política do doutor Muniz Ta¬vares não foi desde então tão brilhante quanto a que mareara sua juventude. Seu livro foi pelos historiadores cortesãos julgado um libelo democrático, quase tão virulento quanto o Libelo do Povo. Censuraram-no sob esse pre¬texto ou sustentaram vistas antagônicas, entre outros, Pereira da Silva, de quem a política fazia um áulico, e Varnhagen, sempre incisivo e intransigente nas suas opiniões conservadoras, repassadas da disciplina germânica. Faltaram-lhe pelo motivo alegado as simpatias do regime imperial, assim como depois da reação ultramontana de 1870, moralizadora do sacerdócio e expurgadora da doutrina e dos cânones, lhe faltaram mais acentuadamente as simpatias clericais.

O seu testemunho de testemunha ocular dos fatos acontecidos antes e depois de 6 de março de 1817, tornaram-se com o passar dos anos em fonte primeira de pesquisa histórica.

O seu livro não pareceu agradável aos áulicos do poder, geralmente sediados no Rio de Janeiro no convívio da Casa Imperial, como já observada Oliveira Lima em seu prefácio.

Em 1861, ao escrever o artigo “Luiz dei Rego e a posteridade – Estudo histórico sobre a revolução de Pernambuco de 1817”, o cônego Fernandes Pinheiro, na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXIV, classifica o livro de Muniz Tavares de narrativa apaixonada e romanceada dos fatos.

Felizmente era vivo Muniz Tavares que, em carta dirigida àquele articulista, publicada na edição do Diário de Pernambuco, de 18 de dezembro de 1861, contesta às críticas formuladas por quem defendia o comportamento do nosso último capitão general responsável pela repressão do movimento republicano de 1817:

Não, sr. Cônego, eu não confundo os fatos, o que disse e digo, é que Rodrigo Lobo principiou, Luiz do Rego continuou. Ninguém no princípio de sua governança julgava-se seguro, todos tremiam, as prisões não cessavam, o confisco as acompanhava, a força não tinha descanso. Sr. Fernandes Pinheiro, se V.S. conhecesse-me de perto, seria mais justo, não classificava-me-ia “romancista”. Confesso a minha inabilidade para este gênero de literatura. Os fatos que patenteei na minha obra, nem V.S. nem pessoa alguma de boa-fé os pode contestar.

Depois de ocupar vários cargos, nomeado pelo Governo de sua província, Muniz Tavares vem a ser escolhido Monsenhor da Capela Imperial do Rio de Janeiro (1850), afastando-se anos depois da vida pública, dedicando-se administrar o Hospital do Pátio do Paraíso.

Criado o Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco, em 28 de janeiro de 1862, foi Francisco Muniz Tavares escolhido, por conta de seu passado de militante na Revolução Republicana de 1817, seu primeiro presidente, tarefa que desempenhou com brio e pertinácia por catorze anos.

Aos 81 anos de idade, em 17 de outubro de 1876, o monsenhor Francisco Muniz Tavares veio a ser acometido de um possível ataque cardíaco, quando celebrava em sua capela do Parnamirim, o que veio motivar o seu falecimento em data de 23 do mesmo mês.

O seu livro, História da Revolução de Pernambuco de 1817, além de sua primeira edição em 1840, teve uma segunda edição em 1884, com prefácio de Maximiano Lopes Machado; uma terceira edição em 1917, patrocinada pelo Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, valorizada pelos comentários de Manuel de Oliveira Lima; uma quarta edição em 1969, patrocinada pelo Governo de Pernambuco – Secretaria da Casa Civil, em 1969, com prefácio de José da Costa Porto, e finalmente a quinta edição entregue por nós à Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, comemorativa do 2º Centenário da República de Pernambuco de 6 de março de 1817.

Santo Antônio do Recife, Julho de 2016.

_____________________

(1) COSTA, F. A. Pereira da. Dicionário biográfico de pernambucanos célebres. Apresentação de Leonardo Dantas Silva; Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1982. 816 p. (Coleção Recife; v. 16). Fac-símile da 1ª ed. Recife: Typographia Universal, 1882. 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 22 de março de 2017

A BANDEIRA DE 1817

 

Proclamada a República de 6 de março de 1817, uma bandeira toda branca substituiu, desde os primeiros momentos, o pavilhão nacional do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, criado pelo decreto de 13 de maio de 1816. Ao descrever os acontecimentos daquele dia, Muniz Tavares, informa que “as tropas de Domingos Teotônio Jorge traziam arvorada uma bandeira branca em vez da real”.

Também na Paraíba confirma o mesmo autor: “A bandeira branca, símbolo da insurreição, foi içada com estrondosos vivas da multidão que não ficou ociosa”. O mesmo aconteceu na tomada da Fortaleza de Itamaracá, pelo padre Pedro de Souza Tenório.¹

A bandeira de então, a do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, era toda branca, tendo no centro as armas da união, isto é, o escudo das armas de Portugal e

Algarves sobreposro as armas do Reino do Brasil e por timbre a coroa real.

 

 

O mesmo Louis François de Tollenare, nascido em Nantes (França), em 4 de abril de 1780 e lá falecido em 23 de dezembro de 1853, que se encontrava no Recife de 1816 a 1818, continua no seu papel de testemunha ocular dos fatos que aconteceram nesse conturbado período, depois registrados em seu manuscrito publicado, parcialmente, por Alfredo de Carvalho (1905) sob o título de Notas Dominicais. Tal manuscrito, desconhecido por Muniz Tavares, mas largamente citado por Oliveira Lima, vem a ser republicado na primeira fase da Coleção Pernambucana (v. 16) em 1978.²

Segundo Tollenare, em suas Notas Dominicais, o pavilhão branco tinha por fim tornar menos brusca a transição de regime era uma bandeira com que “os fortes do Recife anunciavam, havia muito tempo, o aparecimento de navios na costa e as embarcações vindas de fora, vendo sempre o sinal acostumado, entravam sem desconfiança: era isto o que justamente se queria, porquanto havia falta de víveres na cidade e se receava que o aspecto de uma nova bandeira assustasse os que traziam”.

Todavia, esta bandeira provisória, foi aos poucos sendo substituída por outra, descrevendo o mesmo Tollenare, em 16 de março, o projeto de um novo pavilhão; foi ventilada também a hipótese da adoção do pavilhão tricolor francês, porém logo afastada “por representar as três ordens honoríficas existentes na França”.

 

Pela informação de L.F. de Tollenare, que trata dos vários acontecimentos naquele domingo 16 de março, uma nova bandeira veio a surgir 2 de abril, e não no dia 1, como é largamente afirmado por vários historiadores: “A nova bandeira é azul e branca; embaixo há uma pequena cruz vermelha; na parte azul, em cima, um sol, cercado de um arco-íris, e uma estrela, ao lado da qual se espera ver juntar-se muitas outras”.

Proscreveu-se da conversação as antigas fórmulas, cuja polidez achou-se demasiado servil.

Em lugar de “Vossa mercê”, diz-se “Vós”, simplesmente; em lugar de Senhor é-se interpelado pela palavra Patriota, o que equivale a cidadão e ao tratamento de tu, de que nos servimos em França, nos nossos tempos demagógicos.

As cruzes de Cristo e outras condecorações reais abandonam as botoeiras; faz-se desaparecer as armas e os retratos do rei. Prepara-se uma nova bandeira nacional; a Branca arvorada a princípio, tinha apenas por fim tornar menos brusca a transição; apresentaram-na como símbolo de intenções pacíficas.

É, aliás, a com que os fortes portugueses anunciam aqui, há muito tempo, o aparecimento de navios na costa.

As embarcações vindas de fora, vendo sempre o sinal acostumado, entram sem desconfiança, é o que se quer, porque há falta de víveres; receiava-se que uma nova bandeira não assustasse os que os trazem.

Apesar dos protestos de amizade que os novos governantes prodigam aos estrangeiros, fazemos todos preparativos para deixar um país que experimentará provavelmente, bastante calamidades antes de alcançar a felicidade política que procura.

Segundo escreve F. A. Pereira da Costa no volume VII dos Anais Pernambucanos, p. 412, a fim de expressar os reais propósitos do novo regime.³

Naquele dia, 2 de abril, “um bando soleníssimo do governo provisório da república”, a toque de caixas, apareceu nas ruas convidando todo o povo para, no dia seguinte, a bênção solene das novas bandeiras nacionais no Campo da Honra, assim denominado pelos patriotas o Campo do Erário, hoje Praça da República.

Muniz Tavares, em sua História da Revolução de Pernambuco em 1817, não se refere ao arco-íris, na descrição que faz da nova bandeira, e o padre Joaquim Dias Martins (Mártires Pernambucanos) não menciona a cor azul, salientando que constava do arco-íris tendo sobreposto o sol, e sobreposta a cruz, ocupando a metade inferior do campo branco e por baixo as iniciais S. P. S. L. E.; que representam a legenda latina Salus populos suprema lex est.

A descrição de Tollenare é a mais exata, estando bem de acordo com o desenho em aquarela, com notas explicativas em inglês, enviado pelo governo provisório aos Estados Unidos da América do Norte e entregue por Antônio Gonsalves da Cruz, o Cabugá, encontrado no Arquivo da Secretaria dos negócios Estrangeiros de Washington. A descoberta do documento se deu em 1886 pelo Dr. José Augusto Ferreira da Costa, representante do Brasil junto ao mesmo governo, que remeteu uma cópia da aquarela ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em carta datada de 20 de novembro daquele ano.

A aquarela original foi oferecida em 21 de agosto de 1919 àquela instituição, pelo então ministro Barros Pimentel, nela se encontrando, em inglês, a seguinte nota explicativa:

“As três estrelas representam os Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, que, segundo as últimas notícias (5 de abril), compunham a Confederação para a liberdade e independência. Logo que outras províncias do Reino do Brasil tiveram aderido à Confederação, outras estrelas serão colocadas em volta do arco-íris. O arco-íris tem três cores, simbolizando paz, amizade e união, que a Confederação oferece aos europeus portugueses e aos povos de todas as nações que vierem pacificamente aos seus portos ou porventura venham residir entre eles. O sol significa que os habitantes de Pernambuco são filhos do sol e vivem sob ele. A cruz alude ao nome de Santa Cruz (the Holy Cross) dado ao Brasil na época de seu descobrimento”.

Alfredo de Carvalho, em artigo publicado na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, nº 65/70, se refere à nova representação da bandeira, também em aquarela, possivelmente retirado dos autos da Devassa, que figurou na Exposição de História do Brasil, realizada no Rio de Janeiro em 1881, sob o nº 20.075, devendo se encontrar hoje na Seção de manuscritos da Biblioteca Nacional.

O projeto da bandeira, segundo o mesmo Alfredo de Carvalho, presume-se ao padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro (1766-1817), professor de desenho do Seminário de Olinda, ficando a sua confecção a cargo do pintor Antônio Álvares, pardo fluminense residindo então no Recife, que realizou o desenho e depois o remeteu ao alfaiate José do Ó Barbosa, capitão de milícias do Regimento dos Homens Pardos, para executar os estandartes da nova república. Para isso contou com a ajuda de sua mulher e suas filhas, além de seu irmão Francisco Dornelas Pessoa, capitão do mesmo Corpo, “trabalho este que fizeram gratuita e desveladamente”.4

Os primeiros pavilhões foram confeccionados em seda, “composto de pequenas partes da mesma fazenda para representar não só o colorido como o desenho de todas as peças de que se dispunha o estandarte”, destinados aos três corpos do exército.

Escrevendo no Domingo de Páscoa, 6 de abril de 1817, Tollenare, relata as cerimônias da Semana Santa, salientando: “Havia alguma inquietação quanto à inauguração da nova bandeira nacional; exerceu-se uma polícia muito vigilante e tudo se passou tranquilamente” (ob. cit.).

Provavelmente no dia 3 de abril, pois como salientamos anteriormente se o domingo ocorreu no dia 6, a Quinta-Feira Santa aconteceu no dia 3, concordando assim com o calendário, era armado um altar no Campo da Honra, hoje Praça da República, voltado para o Oriente, tendo sido iniciada a cerimônia da bênção das bandeiras às oito horas da manhã presidida pelo Deão de Olinda, Dr. Bernardo Luís Ferreira Portugal (1755-1835), com três regimentos formados.

Terminado o discurso, feito o juramento, o Deão fez entrega dos estandartes aos governadores da nova República, Manuel Correia de Araújo, Domingos José Martins e padre João Ribeiro Pessoa Montenegro, que, entre salvas e músicas militares dão o primeiro a Pedro da Silva Pedroso, coronel comandante do Regimento dos Homens Brancos; o segundo a Francisco Dornelas Pessoa, dos Pardos; e o terceiro a Joaquim Ramos de Almeida, dos pretos.

“Pedroso, por fim, levou seu estandarte ao general Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa e a José de Barros Lima, o Leão Coroado”.

O restante do dia, em que pese ter sido numa Quinta-Feira Santa, foi todo de festa, com grande regozijo popular, havendo ainda muitos discursos sobressaindo a todos o do poeta Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque. O carmelita frei Joaquim do Amor Divino Caneca, que mais tarde veio a ser mártir da Confederação do Equador, fez a distribuição de versos patrióticos, denominados Canção Pernambucana, dos quais somente três estrofes chegaram aos nossos dias:

Cidadãos pernambucanos
Sigamos de Marte a lida;
É triste acabar no ócio,
Morrer pela Pátria é vida.

Quando a voz da Pátria chama
Tudo deve obedecer;
Por ela a morte é suave,
Por ela cumpre a morrer.

O patriota não morre
Vive além da eternidade
Sua glória, seu renome
São troféus da humanidade

“Com facilidade, comenta Muniz Tavares, quase todos juram; raramente um ou outro mantém o juramento; os vínculos sagrados se despedaçam com imprudência, calamidade de todas as idades, que devendo excitar as lágrimas, move o riso”.

_________________________________________________

¹ Muniz Tavares, p. 72 (op. cit.).

² TOLLENARE, L. F. de. Notas dominicais. Tradução de Alfredo de Carvalho. Apresentação José Antônio Gonsalves de Mello. 3. ed. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1978. 272 p. il. (Coleção pernambucana; 1ª fase, v. 16). Inclui desenhos do autor e notas sobre a Bahia p.207-270.

³ Existe um conflito em datas, entre Tollenare, Muniz Tavares, padre Joaquim Dias Martins, autor de Mártires Pernambucanos (1821 ou 1822), alguns depoimentos na Alçada, cartas e Pereira da Costa. Este último, com base no relato do padre Dias Martins, afirma que a nova bandeira veio surgir no 1º de abril ocorrendo a bênção no dia seguinte; desprezando o relato do monsenhor Muniz Tavares que, escrevendo muito tempo após, diz ter o fato acontecido no dia 21 de março, caindo, assim, num lapso de memória. A data de Pereira da Costa, embora aceita pacificamente até pela Constituição do Estado de Pernambuco (art. 5º, 1º), também não corresponde à verdade: Escrevendo em suas Notas Dominicais, no Domingo de Páscoa, 6 de abril. Tollenare se refere aos atos da Semana e a “inauguração da nova bandeira nacional”. João Lopes Cardoso Machado, escrevendo a um compadre em 17 de junho de 1817, situa a benção das bandeiras “na Quinta-Feira de Endoenças” (Documentos Históricos, vol. 102, p. 6). Todas as testemunhas e cronistas são unânimes, com exceção do depoimento do Deão de Olinda que fala de Sexta-Feira Santa (Documentos Históricos, vol. 105, p. 175), em ter a bênção das bandeiras ocorrido na Quinta-Feira Santa. Sendo, portanto, domingo dia 6 a quinta-feira ocorreu no dia 3 e não no dia 2; conferindo assim com o calendário.

4 Antônio Álvares, além da nova bandeira, pintou retratos dos membros do governo provisório, sendo por isso atrozmente perseguido. Dos trabalhos do artista pardo fluminense resta, na galeria do Instituto Arqueológico, o de José Luís de Mendonça faltando os demais. O de Domingos José Martins, segundo Oliveira Lima, parece não ser de sua autoria, mas “antes trabalho europeu”. Foi o artista condenado a ser surrado nas grades da cadeia, pelo almirante Rodrigo José Ferreira Lobo, mas livrou-se da pena apadrinhando-se com um retrato de Dom João VI, “que possuía, e com o qual abraçou quando foi preso”, sendo porém recolhido à cadeia onde ficou até a vinda do general Luís do Rêgo Barreto que, conhecendo o pintor do Rio de Janeiro, mandou-o soltar. É de autoria do mesmo artista, denominado por Teixeira Melo de habilíssimo pintor, as estampas coloridas da Flora Fluminense, escrita pelo frade Francisco José Mariano da Conceição Veloso e concluída em 1790. Nasceu o artista no Rio de janeiro, na segunda metade do Século XVIII e fez seus estudos na Europa, pouco se sabe com respeito a sua vida após 1817. Os irmãos Francisco Dornelas Pessoa e José do Ó Barbosa, homens pardos, alfaiates, capitães de corpos milicianos de gente de sua cor, por patente régia, foram também arrastados às enxovais da cadeia onde permaneceram por um ano. Só não foram açoitados, conforme havia determinado Rodrigo lobo, pelo fato “de velar, e de dormir sempre em uniforme de capitão, feito pelo rei”. (Pereira da Costa, ob. cit., VII, p. 424 e 467).


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 15 de março de 2017

O IDEÁRIO DA REPÚBLICA DE 1817

 

A única revolução brasileira digna desse nome e credora de entusiasmo pela feição idealista que a distinguiu e lhe dá foros de ensinamento cívico, e pela realização prática que por algum, embora pouco, tempo lhe coube. Eu lhe disse uma vez que foi instrutivo pelas correntes de opinião que no seu seio se desenharam, atraente pelas peripécias, simpática pelos caracteres e tocante pelo desenlace. Foi um movimento a um tempo demolidor e construtor, como nenhum outro entre nós e como nenhuma outra em grau superior, na América espanhola.

Manuel de Oliveira Lima.

O século XVIII, conhecido como o Século do Iluminismo, teve a sua segunda metade tomada por uma total revisão no âmbito social das ideias, a partir da Declaração de Independência das treze colônias inglesas, que vieram a se constituir nos Estados Unidos da América, em 4 de julho de 1776, com repercussões nos movimentos que antecederam a Revolução Francesa de 1789.

Autores de várias nacionalidades vieram expressar os seus princípios democráticos e nacionalistas, pondo em discussão o direito divino dos reis e despertando a burguesia para os princípios da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, mais tarde consagrados na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

Filósofos como o suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que em 1762 fez publicar Du Contrat Social (Do Contrato Social), formulando uma nova teoria do Estado, fundamentado na convenção entre os homens com base no princípio da soberania popular; e Charles Louis de Secondat Montesquieu (1689-1755), autor de L’Esprit des Lois (O Espírito das Leis)¹ , eram lidos e discutidos não somente na França como em outros países. As obras poéticas e filosóficas de Voltaire (1694-1778), pseudônimo de François Marie Arounet, autor do Dicionário Filosófico; de Denis Diderot (1713-1784), editor da Enciclopédia Diderot; e do italiano Cesare Beccaria (1738-1794), autor do clássico Dos Delitos e das Penas (1764), despertavam a juventude para um novo comportamento.

A esse movimento de ideias não ficaram alheios os estudantes da Universidade de Coimbra que, levados pela atuação das Lojas Maçônicas, presentes em Portugal desde 1740, tornaram-se ávidos leitores daqueles filósofos cujas obras eram proibidas em Portugal e em suas colônias.

O ambiente em que viviam os estudantes daquela universidade portuguesa e as discussões motivadas pela influência das diversas correntes de ideias se depreende das páginas do Processo n.º 8094/1779 da Inquisição de Coimbra, por mim anotado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa). Nele foram denunciados nove estudantes brasileiros, então matriculados na Universidade de Coimbra, dentre os quais Antônio de Moraes Silva (Rio de Janeiro, 1 de Agosto de 1755 – Recife, 11 de Abril de 1824), que vem a ser o primeiro dicionarista da língua portuguesa e que, em 1817, seria nomeado membro do Conselho de Estado da República de Pernambuco.

O processo é fruto da denúncia do estudante de Geometria Francisco Cândido Chaves, 23 anos, ao Tribunal da Inquisição de Coimbra em 17 de maio de 1779, onde afirma que na casa do também estudante Antônio de Moraes Silva, brasileiro nascido no Rio de Janeiro, se discutiam pontos de religião e se citavam autores como Helvécio, Voltaire e Rousseau, a quem chamavam de profundíssimos filósofos e que alguns estudantes “eram aliciadores da seita dos Pedreiros Livres”, como se denominavam na época os simpatizantes da maçonaria.²

Ao depor em sua defesa, no processo movido contra si e mais oito colegas, Antônio Moraes Silva, na audiência de 28 de maio, declarou estar cursando o quinto ano do curso jurídico, sendo filho de Antônio de Moraes e Silva e de Rosa Maria de Carvalho, com idade de 23 anos, morador da Rua do Loureiro, Freguesia do Salvador, Coimbra. Nas audiências de 12 e 18 de junho, 6 e 7 de julho, disse ainda ser aplicado no estudo das línguas francesa, inglesa e italiana, sendo leitor de obras do Conde de Mirabeau (Honoré Gabriel Riqueti, 1749-1791), de quem lera o Sistema da Natureza e Instituições Políticas; bem como das obras de Montesquieu, Cavaleiro de Milagan (sic) e Quadro da História Moderna (sic); Beccaria, Tratado dos delitos e das penas; Voltaire, Obras poéticas, e Rousseau.

Na sua defesa, porém, diz “não entender nem entende que toque ao Santo Ofício puni-lo por essa razão, pois que o conhecimento [de tal matéria] está reservado a Real Mesa Censória”. Disse ainda ter emprestado a obra de Mirabeau a José Antônio de Mello, conhecido por Misantropo, que afirmou ser a dita obra perigosíssima e capaz de enganar a todos que não soubessem Filosofia, mas que ele não deixará de achar alguma preciosidade. Concluindo o curso de Medicina, em 1778, José Antônio se transferira para Pernambuco, no mês de novembro daquele ano, levando consigo a obra de Mirabeau. (Processo n.º 8094/ANTT).³

Mas a Inquisição do final do século XVIII não era a mesma de tempos passados: os seus segredos já vazavam para o mundo exterior…

Sabedor por um informante da sentença do inquisidor José Antônio Ribeiro de Moura, prolatada em 20 de julho de 1779, condenando a si e todos os demais companheiros por crime de heresia e apostasia, Antônio de Moraes Silva fugiu com destino à Lisboa, escondido numa carroça de feno. Dias depois, contando novamente com o concurso de amigos, se transfere para Londres onde permaneceu sob a proteção do embaixador de Portugal na Grã Bretanha, tenente-general Luís Pinto de Souza Coutinho, futuro Conde de Balsemão, a quem ele dedica à primeira edição do seu Diccionário da Língua Portugueza (1789).

No mesmo processo, o estudante Vicente Júlio Fernandes, filho de Júlio Fernandes, 25 anos de idade, natural da Ilha da Madeira, então condenado por heresia e apostasia, depondo em 30 de agosto de 1779, afirma que o estudante Francisco de Mello Franco “levara de sua casa dois ou mais tomos das Cartas do Marquês d’Argent para ler, os quais lhe emprestara Antônio de Moraes Silva, que lhe disse ter lido o Sistema da Natureza”, obtido por empréstimo a José Antônio da Silva Mello a quem tratava por Misantropo.

Depois de exercer atividades diplomáticas em Londres, Roma, e Paris, Antônio de Moraes e Silva regressa a Portugal. Em Lisboa, novamente comparece ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, em 21 de janeiro de 1785, Processo n.º 2015, apresentando atestado de ter procedido como bom católico, assinado pelo padre Ricardo a Sto. Silvano, vice provincial dos carmelitas descalços na Inglaterra, datado de 23 de novembro de 1784. Em sua confissão diz que, quando estudante em Coimbra, discutia com vários colegas acerca de matérias da religião, reduzindo todos os dogmas aos ditames razão, desprezando as verdades reveladas pelo lume da fé; que lera livros anticatólicos, como Emile (Emílio, ou Da Educação)4, de Rousseau. Absolvido, em 23 de dezembro de 1785, teve como pena de levi [pena menor] a de confessar-se nas quatro festas do ano – Natal, Páscoa da Ressurreição, Pentecostes e Assunção de Nossa Senhora – e o preceito de certas e determinadas orações.

Novamente indiciado pela Inquisição de Lisboa (Processo n.º 14.215), Antônio de Moraes Silva se vê compelido a retornar ao Brasil e assim tentar nova vida. Já casado com Narcisa Pereira da Silva, filha do tenente-coronel José Roberto Pereira da Silva, transfere-se para Pernambuco (Paranambuco), em 30 de abril de 1788, segundo denúncia de Escolástica Maurizia.5

Estabelecido no Recife, morador na Rua Nova, a partir de 1796, se transforma em proprietário do Engenho Novo da Muribeca, que recebera de seu sogro, aonde veio a escrever a segunda e mais importante edição do seu Dicionário da Língua Portugueza (1813) – recompilada, emendada e muito acrescentada, a partir da qual passa o seu nome a figurar como autor.

Com a chegada do século XIX, as ideias liberais, introduzidas em Pernambuco por estudantes e bacharéis da Universidades de Coimbra e Montpellier (França), alguns deles simpatizantes da maçonaria e outros pertencentes ao clero regular e secular, começaram a despertar na população antigos sentimentos nativistas.

A fundação do Seminário de Olinda, a 16 de fevereiro de 1800 pelo bispo Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1821), em muito contribuiu para que tais ideias liberais republicanas, divulgadas pelos teóricos da Revolução Francesa (1789), fossem debatidas nos púlpitos e entre os alunos do novo centro de estudos.

Depois de transformado em Seminário Diocesano de Olinda, o antigo Colégio dos Jesuítas foi logo transformado em uma instituição educacional cuja finalidade era “dar instruções à mocidade em todos os principais ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas também de um grande cidadão que se propõe a servir ao Estado”.

 

Com a abertura dos portos do Brasil às nações amigas pelo Príncipe Regente Dom João em 1808, o Recife, que segundo Henry Koster possuía uma população de cerca de 25 mil habitantes, veio a possuir o maior movimento comercial da colônia, chegando a exportar em 1815: 15.500 caixas de açúcar [300 kg.]. Os altos preços obtidos por esse produto, que em 1817 atingiu a quantia de 17 francos a arroba, e pelo algodão, então com um aumento de 500 por cento, fez surgir na província grandes fortunas e um maior intercâmbio com portos dos Estados Unidos e da Europa.

Por essa época as sociedades secretas continuavam sua marcha doutrinária, a fim de tornar conhecido o estado geral da Europa, os estremecimentos e destroços dos governos absolutos, sob os influxos das ideias democráticas, tornando-se verdadeiros celeiros de liberais.

Paralelamente os professores e seminaristas do Seminário de Olinda se encarregavam de difundir as ideias e os princípios dos filósofos franceses, particularmente Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu, além dos preceitos da Constituição dos Estados Unidos da América e da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, fermentando assim princípios liberais que viriam a mudar o cenário político dos anos que se seguiram.

Em 1801, fora sustada a misteriosa Conspiração dos Suassunas – que tinha por fim transformar Pernambuco em uma República sob a proteção de Napoleão Bonaparte – com a prisão dos irmãos Francisco de Paula, Luís e José Francisco Cavalcanti de Albuquerque.

Quando da deflagração da República de Pernambuco, em 6 de março de 1817, os sentimentos nativistas forjados por ocasião da Restauração Pernambucana de 1654 continuavam bem presentes nos pronunciamentos dos patriotas de então. Assim é que O Preciso etc., o primeiro jornal a circular nesta província, redigido por José Luiz de Mendonça6, narrando os fatos acontecidos quando da eclosão do movimento, tem como impressor a Off. da República de Pernambuco, 2ª vez restaurado, numa alusão clara à Restauração Pernambucana de 27 de  janeiro de 1654.


¹Do Espírito das Leis (De l’esprit des lois), publicado em 1748, é o livro no qual Montesquieu elabora conceitos sobre formas de governo e exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política. Suas teorias exerceram profunda influência no pensamento político moderno. Elas inspiram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada em 1789, durante a Revolução Francesa.

²“Pedreiros livres – membros de uma sociedade secreta, espalhada por todo o globo, e que se supõe ter principiado por uma associação de arquitetos de diversas nações, na Idade Média, outros pretendem que teve origem na construção do templo de Salomão”; Diccionário da Língua Portugueza, composto por Antônio de Moraes Silva. Lisboa, 1858. 6ª ed.

³Antônio de Moraes Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1º de agosto de 1755, transferindo-se para Portugal, em 1774, onde se matriculou no Curso de Leis da Universidade de Coimbra, tendo concluído em 1779. Em 1789 publica o primeiro Dicionário da Língua Portugueza, cujos direitos autorais vendera aos livreiros Borel & Cia. por 2 000 cruzados, recebendo ainda uma gratificação de 600.000 reis. Vem a falecer no Recife (residia no prédio de esquina da atual Rua Nova com a Rua do Sol), em 11 de abril de 1824, sendo o seu corpo sepultado na igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, na Rua Nova.

4 Emílio, ou Da Educação é uma obra filosófica sobre a natureza do homem, escrita por Jean-Jacques Rousseau em 1762, no qual aborda temas políticos e filosóficos referentes à relação do indivíduo com a sociedade, particularmente explica como o indivíduo pode conservar sua bondade natural (Rousseau sustenta que o homem é bom por natureza), enquanto participa de uma sociedade inevitavelmente corrupta. “No Emílio, Rousseau propõe, mediante a descrição do homem, um sistema educativo que permita ao “homem natural” conviver com essa sociedade corrupta. Rousseau acompanha o tratado de uma história romanceada do jovem Emílio e seu tutor, para ilustrar como se deve educar ao cidadão ideal. No entanto, Emílio não é um guia detalhado, ainda sim inclui alguns conselhos sobre como educar as crianças. Hoje se considera o primeiro tratado sobre filosofia da educação no mundo ocidental”. – wikipedia.org/wiki/Wikipédia

5 Inquisição de Lisboa Processo n.º 14. 215/1788 – ANTT (Lisboa).

6 Ao depor no Processo n.º 7.058, Inquisição de Lisboa, em que figura como denunciado o padre Bernardo Luiz Ferreira Portugal (1755-post1832), diz José Luiz de Mendonça ser “advogado dos Auditórios Eclesiástico e Secular, tenente do Regimento de Cavalaria de Olinda, casado, natural de Porto Calvo (Alagoas), morador na Vila de Santo Antônio do Recife, 31 anos de idade”. No “Livro (1º) dos Termos das Entradas de Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento do Bairro de Santo Antônio 1791-1833”, o seu nome aparece na fls. 36: “13 de abril de 1799, José Luiz de Mendonça e sua mulher D. Vitoriana Pereira da Silva”. Condenado por sua participação na República de Pernambuco, veio a ser arcabuzado, em 12 de junho de 1817, junto com os patriotas Domingos José Martins e o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro, no Campo da Pólvora da cidade do Salvador (Bahia).


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 08 de março de 2017

1817, UMA TESTEMUNHA OCULAR DA REVOLTA

 

Estávamos em março de 1817, quando o Ouvidor da Comarca do Sertão, magistrado José da Cruz Ferreira, comparece perante o governador da capitania Caetano Pinto de Miranda Montenegro (1748-1827), a fim de narrar a denúncia, recebida da parte do português Manuel de Carvalho Medeiros, sobre a nova conspiração encabeçada pelo padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro (1766-1817), Domingos José Martins (1781-1817) e Antônio Gonçalves da Cruz (c.1775-1833), além de alguns oficiais dos regimentos de 1ª linha.

 

 

Imediatamente foram convocados os Oficiais-Generais portugueses, que se encontravam no Recife, e determinada a prisão dos civis e militares envolvidos, entre eles os capitães de Artilharia Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, José de Barros Lima e Pedro da Silva Pedroso, tenente-secretário do mesmo Corpo, José Mariano de Albuquerque, e a do ajudante de Infantaria, Manuel de Souza Teixeira.

A prisão dos implicados dar-se-ia no dia seguinte, 6 de março, tendo sido destacados o marechal José Roberto Pereira da Silva para efetuar a dos civis e o comandante de cada um dos Corpos a dos militares. Nesse período, o brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro, chefe da Artilharia, português, orgulhoso, altivo, violento e severo, no dizer de Muniz Tavares, reuniu a tropa e resolveu desacatar os oficiais suspeitos acusando-os de agitadores. Domingos Teotônio Jorge o repeliu, tendo o brigadeiro, imediatamente, ordenado ao capitão Antônio José Vitoriano que efetuasse a sua prisão na Fortaleza das Cinco Pontas.

De maneira diferente procedeu o capitão José de Barros Lima, conhecido pela alcunha de Leão Coroado, que ao ser intimado da voz de prisão desembainhou a sua espada e desferiu-a contra o brigadeiro português, dando início assim à revolta.

Um observador estrangeiro, o comerciante francês Louis François de Tollenare (1780-1853), que residia no Recife no Largo do Paraíso, foi testemunha presencial dos acontecimentos e registrou nos seus apontamentos, depois publicados em livro com o título de Notas Dominicais, por Alfredo de Carvalho (Recife: Jornal do Recife, 1905)¹

Escrevendo no domingo, 9 de março de 1817, observa que na data de 6 do mesmo mês, “teve lugar uma revolução bem inesperada. O estandarte da independência foi levantado; as tropas colocaram-se em volta dele. O governador, assim traído, viu-se forçado a refugiar-se em um forte, ali capitular e acaba de embarcar para o Rio de Janeiro.”

Um governo provisório, composto de cinco membros, foi instituído por um pequeno número de conjurados; fala-se em erigir a capitania de Pernambuco em República. Um acontecimento tão extraordinário merece bem que se lhe indague das causas. Eis o que, na minha qualidade de estrangeiro, pude perceber. Teria desejado muito manter um diário mais exato durante a revolução de Pernambuco. Mas, as minhas ocupações e as constantes inquietações em que tenho vivido me impediram de fazê-lo com o interesse que merecia. As minhas notas sobre este interessante assunto são, pois, muito menos cuidadas do que algumas outras consagradas a futilidades.

E continua o nosso observador francês, L.F. de Tollenare, na sua qualidade de “correspondente”, não muito simpático ao movimento revolucionário que se instalara, naquele momento, em Pernambuco:

 

Falava-se de conciliábulos feitos sob as formas maçônicas; tinha havido banquetes brasileiros dos quais se excluía o pão e o vinho da Europa; servia-se com ostentação a farinha de mandioca e a ruim aguardente nacionais; enfim, tinham sido erguidos brindes à independência contra a tirania real e contra os portugueses da Europa.

Toda a cidade sabia destas circunstancias sediciosas; representações reiteradas haviam sido feitas ao governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro; este, porém, homem de lei, amigo da paz, infelizmente imprevidente, sem caráter nem energia, não lhes dera importância. (…) Os roubos e os assassinatos se multiplicavam e ficavam impunes, e as queixas levadas ao governador, este tinha a medonha indulgência de responder que cumpria recolher-se mais cedo às casas e trazê-las mais bem fechadas; ele próprio tinha sido atacado a um quarto de légua da cidade, e havia deixado despojar-se apesar de acompanhado de um ajudante e dos seus criados, e recusara-se a mandar perseguir os criminosos.

(…) Entretanto, a 3 deste mês, espalhou-se o boato de que a administração pretendia sair da sua letargia, e que a sua primeira operação seria dirigida contra certos brasileiros, que haviam emitido opiniões sediciosas. É provável que acabasse de ser informada de que os projetos dos conjurados se aproximavam da sua maturidade; todavia, o público parecia bem longe de supor tão próxima uma explosão, e julgou desnecessária uma proclamação que o governador fez publicar a 5 (de março).

Pregava a paz, a união, a submissão, e – coisa singular! – em vez de ameaçar os turbulentos, desculpava os seus discursos revolucionários e dizia: “Não acrediteis que expressões exageradas escapadas ao júbilo de possuir o soberano neste hemisfério possam ser consideradas criminosas; assim tranquilizai-vos”. Visava, sem dúvida iludir os conjurados, inspirando-lhes uma falsa segurança. Muita gente, notadamente as tropas, pareceu saber então pela primeira vez, que cumpria distinguir entre os portugueses do Brasil e os da Europa; proibiu-se insultar estes.

Esta proclamação, na qual a primeira vista só se descobriu a fraqueza, fez rir a socapa os autores da conjuração, levantar os ombros aos estrangeiros e indignar alguns portugueses, que desejariam fatos e não palavras; isto é: que se prendessem os que a opinião pública designava coma conjurados.

A opinião pública não se havia enganado nas suas designações.

Parece que, a 5, o governador convocou um conselho no qual foi decidida a prisão de 70 pessoas; parece também que a decisão e a lista foram comunicadas, por um traidor, as pessoas interessadas.

Talvez, também, isto só sucedesse depois; sobre este ponto correm versões contraditórias. Compreende-se facilmente, lendo isto, escrito apenas três dias após a revolução, que me é impossível dar detalhes certos.

Na manhã de 6 de março tudo parecia tranquilo na cidade; às dez horas ainda conversei com dois dos atuais chefes do governo, os quais pareciam bem longe de pensar que a explosão ia rebentar. Entretanto pelas onze horas, o governador fez começar as prisões.

O sr . Domingos José Martins, de quem adiante terei, sem dúvida, ocasião de falar, tinha sido conduzido a prisão; um general de brigada dirigiu-se ao quartel e ali prendeu a um oficial do regimento de artilharia; ia proceder ao desarmamento de outros, quando o segundo oficial designado, o sr. José de Barros, pretendeu resistir e terminou a altercação, levantada entre ele o seu general, por mergulhar lhe a espada no peito.

Este primeiro sangue derramado foi o sinal da revolução; no mesmo instante todos os militares do quartel correm as armas para defender o sr. de Barros; uns voam a prisão, libertam o sr. Domingos José Martins e assassinam o que o havia prendido; outros percorrem as ruas e fazem tocar rebate.

Não se ouve ainda o grito de liberdade e sim os de: “Viva a Pátria! Mata marinheiro!”

É assim que os brasileiros designam os portugueses da Europa, de qualquer classe que sejam.

A fuzilaria empenhou-se em diversos pontos da ilha de Santo Antônio, e o sangue correu ainda aos gritos reverenciados de “Viva a Pátria!”.

O governador, que acabava de ‘Bandar agir com severidade, não tomou nenhuma medida para fazer respeitar a sua autoridade; a primeira descarga cie mosquetaria tomou as suas disposições para fugir; como efeito, evadiu-se por uma rua afastada, protegido por parte da guarda de palácio; atravessou rapidamente, a ponte e o bairro do Recife, sem dar uma ordem, e foi lançar-se na Fortaleza do Brum.

O seu primeiro ajudante de ordens, o sr. Alexandre Thomaz, excelente e respeitável oficial, que havia mandado ao quartel no momento da sua fuga, foi assassinado, quase sob os seus olhos, na ocasião em que ali entrava para acalmar os ânimos.

A evasão do governador, de certo perturbou os planos dos conjurados, que era de sitiá-lo em palácio, e deu imediatamente lugar a, formação de dais partidos separados pela ponte de Santo Antônio; a saber, o dos marinheiros ou portugueses da Europa, que se tinham armada no Recife, e o dos insurgentes que se achavam senhores de Santo Antônio e da Boa Vista. Estes não ousavam ainda tentar a passagem da ponte e entregavam-se, nas ruas da ilha, a toda sorte de excessos, fazendo fogo solve todos os que lhes eram designados como marinheiros; abstinham-se, todavia, de penetrar nas casas. Foi neste momento de grande desordem que foram massacrados quatro marinheiros franceses, que tinham corrido ao porto a socorrer o seu capitão, meu vizinho; este entregou-lhes uma soma de 18.000 francos em ouro para transportá-la para bordo; mas, não puderam ganhar a praia a tempo; foram assassinados e despojados, não como franceses, mas, como marinheiros. Um deles, que sobreviveu aos feriremos, nos forneceu os detalhes deste triste acontecimento.

Solicitei do governo provisório que fizesse exumar, com todas as precauções, nossas três vítimas a fim de fazer verificar os seus óbitos; ele recusou-se.

O governador, refugiado na Fortaleza do Brum, desolava-se e não tomava providência alguma; tinha, entretanto, a seu lado todo o Recife armado, uma artilharia bastante numerosa, e todos os marinheiros do porto dispostos a servi-lo; é provável que, com estes recursos e um pouco de coragem, ele teria podido ganhar vantagem sobre as forças dos insurgentes, que apenas consistiam no regimento de artilharia, um pequeno número de brancos e de mulatos, de posse do segredo da conjuração, e um maior número de indivíduos de todas as cores, forçados a pegar em armas para fazer patrulhas.

Não vi durante o tumulto quase um só soldado do regimento do Recife, e, poderia quase garanti-lo, nenhum negro dos (Batalhão dos) Henriques. Os insurgentes não dispunham ainda senão de três pequenas peças de campanha; a sua fuzilaria fora apenas dirigida contra fugitivos; não haviam ainda experimentado resistência, fora do quartel reinava a maior desordem entre eles; a passagem da ponte de Santo Antônio, tentada com determinação pelas forças do Recife, teria provavelmente lançado em grande hesitação as de Santo Antônio, que só tinham então por todo ponto de apoio um miserável quartel, situado numa rua e não isolado. Não duvido absolutamente que se os realistas tivessem entrado do Recife em Santo Antonio, tudo teria voltado à ordem.

Os conjurados não haviam ainda feito disposições sólidas. A pusilanimidade dos oficiais que acompanhavam o governador, e talvez a do próprio governador, pareceram-me ter sido a causa de todo o mal. O povo não tornava parte alguma na insurreição; tinha-se armado sem saber para que, e podia facilmente ser dirigido contra os rebeldes.

Em vez de um golpe de audácia viu-se vir da Fortaleza do Brum a ordem de cortar a ponte [demolir parcialmente] de Santo Antônio [atual Maurício de Nassau]; era confessar-se batido nesta última parte da cidade, e dar ao partido insurgente uma confiança que não tinha ainda. Com efeito foi neste momenta que as tropas e os conjurados, animados pelas arengas do Padre João Ribeiro, arvoraram a bandeira branca insurrecional.

Um oficial de artilharia, o sr. Pedroso, homem de resolução, conduziu duas pequenas peças à ponte e fê-las jogar com sucesso contra as trabalhadores ocupados em cortá-la e mal protegidos por escassa fuzilaria; postos estes em fuga, avançou pela ponte e, com extrema audácia, ousou entrar no Recife onde devia encontrar a sua perda, por quanta não dispunha de mais de 120 homens. Mas, nenhuma disposição havia sido tomada; o pânico alastrou-se; cada um procurou ocultar-se ou fugir para bordo dos navios, e assim os insurgentes, em menos de uma hora, se acharam senhores da península. Muitas pessoas se lançaram ao mar; a maior parte foi recebida a bordo dos navios; algumas se afogaram.

O governador, que não se tinha mostrado um só instante, ficou encurralado, com 200 a 250 homens, na sua fortaleza, sem comunicação com Olinda, onde as cenas do Recife haviam sido repetidas pela guarnição, secundada pela populaça animada pelos gritos de “Mata marinheiro” e a esperança da pilhagem.

A populaça de Olinda se compõe quase toda de famílias de soldados; mas, este não era o caso no Recife. O movimento de Olinda havia sido determinado por mensagens partidas muito cedo do quartel do Recife, e a prontidão com que se efetuou me induz a duvidar da espontaneidade da revolução, que muitos dizem operada sem premeditação alguma.

A chalupa e os oficiais da “Felicité” tinham ido, naquele dia, fazer aguada em Olinda. Estes senhores encalharam a sua chalupa e se refugiaram em um convento, onde receberam asilo e proteção.

A noite de 6 a 7 passou-se em meio de contínuos rebates; de parte a parte receiavam-se ataques; mas, não os houve. Os insurgentes mantinham boa guarda e fortes patrulhas percorriam as ruas.

Na manhã de 7 só se saía de casa com receio; os habitantes de Santo Antônio não se podiam persuadir de que o governador houvesse tão prontamente renunciado à resistência; mas, os insurgentes não tinham perdido tempo; na própria noite haviam organizado uma espécie de governo provisório, e desde a madrugada fizeram intimar ao governador a entrega da Fortaleza do Brum, oferecendo-lhe em troca garantias para a sua pessoa e para a sua retirada ao Rio de Janeiro. Nesta intimação não assumiam outro qualificativo além do de “patriotas de Pernambuco”; a capitulação assinada pelo Sr. Caetano Pinto Montenegro hoje me autoriza a lhes dar esta qualificação, que ainda não considero como técnica, porque é preciso ver se eles a justificam.

Vi esta humilde capitulação, fruto da imprevidência e da covardia; estava escrita sobre um farrapo de papel banhado de lágrimas ridículas; tinha a forma de uma ata constatando que o governador, tendo chamado para junto de si seis ou seta generais no forte para o consultar sobre a possibilidade de ali se defenderem, estes verificaram não haver nenhuma munição de guerra nem de boca e declararam que seria derramar inutilmente sangue tentar resistir.

Cumpria, pois, ter previsto a necessidade de se refugiar nos fortes e aprovisiona-los de acordo, Se tivesse havido o menor ponto central, ao governo não teriam faltado defensores. Mas, quando se abandona o país perde-se a pátria e o direito de chamar rebeldes aos que ficam e se submetem.

Em consequência do aludido aviso o governador se resolveu a aceitar as condições propostas pelos insurgentes e capitular.

Com efeito, embarcou esta manhã em uma escuna para o Rio de Janeiro; a sua pequena guarnição confraternizou com os regimentos rebeldes, e a maior parte dos generais ficou prisioneira.

Espera-se, aparentemente, ganhá-los à causa da liberdade.

O povo assistiu muito friamente ao embarque do governador, que partiu levando as maldições dos europeus e as felicitações satíricas dos patriotas; estes sabem que devem a vitória tão semente à sua inabilidade e fraqueza de caráter.

Não se vê nenhum entusiasmo, nenhum transporte entre o povo, que parece crer só ter sido a revolução dirigida contra o governador e não contra o príncipe; os novos governantes só pronunciam a palavra república em voz baixa e só discorrem sobre a doutrina dos direitos do homem com os iniciados.

Parecem confessar que ela não seria compreendida pela canalha; só os militares testemunham a sua ebriedade; quadruplicaram lhes o soldo; os oficiais esperam promoções; a julgar só pelas demonstrações exteriores acreditar-se-ia tratar-se apenas de uma sedição militar; entretanto, o caráter de vários dos governantes faz supor projetos mais vastos e mais profundos.

Eis, pois, mais uma revolução começada, e esta boa terra de Pernambuco isenta de guerras há cento, e cinquenta anos, tão cheia de prosperidade depois da emancipação do Brasil, e da chegada da corte, exposta a todos os furores das dissenções civis, assim coma o estão as infelizes colônias espanholas.

Os patriotas persuadem-se da próxima, adesão das capitanias da Bahia e do Norte; se assim for a corte do Rio de Janeiro experimentará grandes embaraços.

Quaisquer que sejam os seus futuros sucessos, que eles não se iludam com a esperança vã de que a liberdade de um povo possa ser conquistada por meio de uma simples escaramuça, que apenas custou a vida a 50 ou 60 pessoas.

A Revolução

Dos quartéis às ruas, foi apenas questão de tempo. Os sinos das igrejas tocavam rebate (sinal de alarme); o enviado do governador fora morto a tiros; um jovem tenente de Artilharia, Antônio Henriques, dirigiu-se à cadeia a fim de libertar Domingos José Martins e demais presos comuns que ali se encontravam, enquanto o capitão Manuel D’Azevedo entrava em negociações para soltura dos oficiais recolhidos à Fortaleza das Cinco Pontas.

O governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro recolheu-se ao Forte do Brum, com seus familiares e demais oficiais, enquanto caíam os últimos redutos da resistência, com a rendição das tropas comandadas pelo marechal José Roberto Pereira da Silva que guarneciam o Campo do Erário [hoje Praça da República], às 16 horas do mesmo dia.

Destacamento comandado pelo tenente José Mariano foi enviado a Olinda e no dia seguinte os 800 milicianos de Domingos Teotônio Jorge fizeram o cerco da Fortaleza do Brum. Um ultimatum, assinado por Domingos Teotônio Jorge, padre João Ribeiro e Domingos José Martins, foi levado pelo advogado José Luiz de Mendonça ao governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro exigindo imediata rendição.

As condições foram logo aceitas pelos oficiais portugueses e governador, ali recolhidos, e a rendição foi de pronto assinada, enquanto os revoltosos providenciavam o transporte dos presos e familiares para o Rio de Janeiro.

Com gritos de regozijo pela vitória, os oficiais revoltosos retiraram das barretinas e dos pavilhões as insígnias do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, sendo o gesto seguido pela soldadesca. Uma bandeira toda branca veio a surgir, no meio da tropa, substituindo a real.

As tropas e o povo marcharam para o Campo do Erário (Praça da República), onde foram escolhidos os eleitores para a nomeação do novo governo, sendo posteriormente lavrado o seguinte termo:

Nós, abaixo assinados, presentes para votarmos na nomeação de um governo provisório para cuidar na causa da pátria, declaramos à face de Deus que temos votado e nomeado os cinco patriotas seguintes: da parte do eclesiástico, o Patriota João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro; da parte militar, o patriota capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa; da parte da magistratura, o patriota José Luiz de Mendonça; da parte da agricultura, o patriota coronel Manuel Correia de Araújo; e da parte do comércio, o patriota Domingos José Martins e ao mesmo tempo todos firmamos esta nomeação, e juramos de obedecer a este governo em todas as suas deliberações e ordens. Dado na Casa do Erário, às doze horas do dia 7 de março de 1817. E eu Maximiano Francisco Duarte escrevi. Assinados – Luís Francisco de Paula Cavalcanti – José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima – Joaquim Ramos de Almeida – Francisco de Brito Bezerra Cavalcanti de Albuquerque – Joaquim José Vaz Salgado – Antônio Joaquim Ferreira de S. Paio – Francisco de Paula Cavalcanti – Felipe Néri Ferreira – Joaquim da Anunciação e Siqueira – Tomás Ferreira Vila Nova – José Maria de Vasconcelos Bourbon – Francisco de Paula Cavalcanti Júnior – Tomás José Alves de Siqueira – João de Albuquerque Maranhão – João Marinho Falcão.

A essa junta agregou-se um Conselho, formado pelos notáveis da nova república, que incluíam o desembargador Antônio Carlos de Andrade (irmão de José Bonifácio Andrade e Silva), o dicionarista Antônio Moraes Silva e o Deão da Sé, Dr. Bernardo Luís Ferreira Portugal.

Imediatamente, concedeu-se aumento de soldo aos militares e aboliram-se alguns impostos. Proclamações e pastorais impressas, além de cerimônias públicas, procuraram evitar os choques dos nativos com os europeus e conquistar a confiança da população de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Comarca das Alagoas, que tinham espontaneamente aderido à República Pernambucana.

De logo foram enviados emissários ao Ceará (subdiácono José Martiniano de Alencar e Miguel Joaquim César) e à Bahia (padre José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, Padre Roma), enquanto o governo provisório ganha popularidade com apoio do clero e de nomes de grande expressão na vida da província.²

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¹ TOLLENARE, L. F. de (Louis François de). – Notas Dominicaes – Tomadas durante uma residência em Portugal e no Brasil nos anos de 1816, 1817 e 1818. Parte Relativa a Pernambuco. Traduzida do Manuscrito Francês Inédito por Alfredo de Carvalho, com um prefácio de M. de Oliveira Lima. Recife: Jornal do Recife, 1905.

² “No dia 8 confirmou o governo no mesmo caráter de secretário, que exercia, a José Mairinck da Silva Ferrão, e reconhecendo que o expediente seria muito, nomeou, para melhor ordem dos trabalhos, um outro secretário, que foi o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro; e criou um Conselho de Estado, para auxiliar o governo em suas deliberações, para o qual foram nomeados os seguintes patriotas: Desembargador Antônio Carlos Ribeiro de Andrade Machado e Silva, Doutor Antônio de Morais Silva, Doutor José Pereira Caldas, Deão Doutor Bernardo Luís Ferreira Portugal e o comerciante Gervásio Pires Ferreira” (Pereira da Costa, ob. cit., vol. VII, p. 382). “O Conselho Consultivo organizado pela junta governativa constituía um verdadeiro senado, um senado, bem entendido, como o ideado por Bolívar nas suas várias constituições, congregando o escol da inteligência, da ilustração e do prestígio” …, Oliveira Lima, notas LIV (54) e seguintes (ob. cit.).


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 01 de março de 2017

CANCIONEIRO DA QUARTA-FEIRA



 

Depois de um Carnaval, vem a quarta-feira ingrata, onde  “tudo é cinzas!”. A partir de então tem início a Quaresma que, no passado, era tempo de reflexão, jejum e abstinência completa de carne.

Em cada Quarta-Feira de Cinzas, porém, resta no peito do verdadeiro folião a verdadeira saudade, uma lembrança do carnaval que passou, assim expressada por vezes com lágrimas e acalentadas pelos versos do próprio cancioneiro carnavalesco de Edu Lobo.

 

 Hoje não tem dança
Não tem mais menina de trança
Nem cheiro de lança no ar
Hoje não tem frevo
Tem gente que passa com medo
Na praça ninguém pra cantar.

Como no poema de Vinícius de Moraes, musicado por Carlos Lyra, chegou ao fim mais um carnaval (Marcha da quarta-feira de cinzas):

 

Acabou o nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais
Brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas
Foi o que restou
Pelas ruas, o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando
Cantigas de amor…

Na quarta-feira, o folião de ontem volta à realidade do dia-a-dia, depois de conviver naquele reino azul da fantasia, sob a égide do Rei Momo, onde por momentos parecia ter encontrado a morada da felicidade. Ao reencontrar-se consigo mesmo, mirando-se no espelho ao amanhecer da quarta-feira, o folião cansado, vem descobrir dentro de si que o carnaval, apesar dos guizos e de todo colorido que se faz presente aos olhos, é uma festa triste; como nos versos de Raul e João Victor do Rego Valença, os Irmãos Valença (Saudade):

De que nos serve a folia
Tanto prazer e alegria
O carnaval é a ilusão
Deixando uma triste recordação
E se voltamos chorando
É a saudade
Que nos vem
Alguém nos ficou amando
E ficamos querendo alguém

De há muito o cancioneiro carnavalesco vem sendo tomado de versos inspirados na nostalgia trazida pela quarta-feira, desde os anos vinte quando os blocos carnavalescos regressavam às suas sedes cantando marchas, como esta de Raul Moraes (Despedida):

 

Adeus, ó minha gente,
O bloco vai embora
Sentindo que a alma chora
E o coração fremente
Diz, findou-se o carnaval.
Até para o ano, adeus
Guarda nossas saudades
Que implorarão aos céus
Felicidades para, nossa alma liberal
Essa canção saudosa,
Há de fazer chorar
E sempre a relembrar
Nossa gente buliçosa
De regresso a cantar.

A espera de um outro carnaval é o acalanto que embala a alma de todo poeta e sonhador, como nos versos de Capiba, em De chapéu de sol aberto (1973):

 

 Espero o ano inteiro,
Até ver chegar fevereiro
Para ouvir o clarim clarinar
E a alegria chegar!
Esta alegria que em mim
Parece que não terá fim
Mas se um dia o frevo acabar!
Juro que vou chorar…

O carnaval é talvez a forma de suavizar a vida desses poetas, daí a tristeza que toma conta do espírito de todos no alvorecer da quarta-feira, como naquele frevo de Nelson Ferreira:

Um carnaval a mais
Que beleza, no entanto…
Um carnaval a menos, que tristeza.
Vida, não foge tão depressa.
Ainda quero viver muitos carnavais…

Alguns deles não se conformam com a chegada da quarta-feira e por vezes teimam prolongar o seu próprio carnaval interior, como se fosse um ópio a lhes transportar para o mundo da fantasia e do surrealismo, como no frevo de Rudy Barbosa e Adelmo Tenório (Por que saideira?):

Estou vendo, a manhã está dizendo:
Já é quarta-feira! Por que saideira,
Se eu não queria, pra casa voltar…
Voltar, pra quê!
Voltar, pra quê!
Se vai voltar esta saudade de você

Vou desfilar meu sorriso
E ser o palhaço, desta multidão.
Pra  repousar meu cansaço,
Igual ao seu braço,
Não encontro mais não

Solidão, eu me embriago agora!
Está chegando a hora
D’ a tristeza voltar
Solidão, eu me embriago agora!
Está chegando a hora
D’ a tristeza voltar.

Para o autêntico folião, particularmente para os românticos dos anos dourados, quando a permissividade dos costumes não era a tônica dos festejos carnavalescos, a contagem regressiva da madrugada de uma quarta-feira se transformava em suplício; como nos versos de Geraldo Costa e José Menezes (Terceiro dia):

A noite morre, o sol vem chegando…
E a tristeza vai aumentando
A gente sente uma saudade sem igual
Que só termina
Com um novo carnaval

Mas o que ensina a lição é que se vai um carnaval, mas fica-se sempre com uma saudade; como no frevo dos irmãos Reinaldo e Fernando Oliveira (É quarta-feira, é madrugada):

É quarta-feira, é madrugada…
O sol já chegou
O carnaval foi tudo um sonho bom que passou
Recordar não adianta nada, meu bem…
Melhor esperar, prô ano que vem!

Saudade vive escondida…
Esperando todo fim de carnaval
Não adianta esperar por toda vida
Nem por um ponto final.

Para aquele folião empedernido, porém, que viveu o carnaval até os últimos acordes; folião daqueles que em anos passados só saía dos salões acompanhando as orquestras, sob o comando de Nelson Ferreira, Guedes Peixoto ou José Menezes, em meio à turba frevolenta até os jardins da Praça do Entroncamento ou da Praça do Internacional, para só assim encerrar, às sete horas da manhã da quarta-feira, o seu carnaval.

Para esses, que viveram tantas paixões e que ainda hoje estão a lembrar daqueles rostos juvenis, que se perderam em meio aos confetes e serpentinas dos passados carnavais, pelo menos o frevo de Luiz Bandeira, gravado por Carmélia Alves em 1957 (Copacabana nº 5699, matriz 1725),  ficou na lembrança: 

 

 É de fazer chorar
Quando o dia amanhece e obriga o frevo acabar
Ó quarta-feira ingrata
Chega tão depressa
Só pra contrariar
Quem é de fato, um bom   pernambucano…
Espera um ano,
e se mete na brincadeira
Esquece tudo, quando cai no frevo.
E no melhor da festa,
Chega a quarta-feira.

Sim meus amigos, o nosso carnaval acabou. Como o poeta Vinicius de Moraes só nos resta cantar: 

 

Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando
Seu canto de paz
Seu canto de paz
Seu canto de paz.

Mas para aquele pernambucano, ausente da terra, distante dos amigos e obrigado a conviver com gente estranha que não sabe o que é Carnaval, o espírito da quarta-feira  dura o ano inteiro e o acompanha onde quer que se encontre.

Longe do Recife, exilado voluntário do seu próprio chão, privado da paisagem e dos sons que acalenta em sua alma de folião, ele estará sempre a cantar baixinho, como a embalar o seu próprio coração, balbuciando a letra daquele frevo-canção, composto por Antônio Maria Araújo de Morais (Recife, 1921 – Rio, 1964) num de seus momentos de banzo e de saudades do seu torrão: Frevo nº 1 do Recife, gravado inicialmente pelo “Trio de Ouro” em 9 de agosto de 1951. O sucesso veio a ser regravado depois com competência por muita gente, a exemplo de Claudionor Germano e Expedito Baracho.

 

Ô, ô, ô, ô, ô… saudade
Saudade, tão grande.
Saudade que eu sinto
Do Clube das Pás, do Vassouras,
Passistas traçando tesouras,
Nas ruas repletas de lá…
Batidas de bombo,
São maracatus retardados,
Chegando à cidade, cansados,
Com seus estandartes no ar.
 
Que adianta
Se o Recife está longe
E a saudade é tão grande
Que eu até me embaraço
Parece que eu vejo
Valfrido Cebola, no passo;
Haroldo Fatia, Colaço…
Recife está perto de mim


Leonardo Dantas - Esquina segunda, 27 de fevereiro de 2017

EU BEBO SIM... ESTOU VIVENDO!
 

“Branquinha”.
“Branquinha”,
é suco de cana
pouquinho – é rainha,
muitão – é tirana…

Ascenso Ferreira.

Música e bebida são como irmãs siamesas.

Não quero dizer com isso que uma não possa existir sozinha, na ausência da outra, mas seria uma conjunção desprovida de alegria e, por vezes do romantismo do dia-a-dia, que dá um gosto especial ao conteúdo poético e musical.

 

bebida_musica

 

Chegou-se até vislumbrar uma música no silêncio, uma espécie de partitura sem som. Mas, no caminhar da vida diária, as notas da partitura se combinam com os versos que falam da bebida, ora levando às emoções vividas em eternos casos de amor e paixões, ora contagiando com sua alegria fazendo crer “que a nossa vida é um Carnaval”.

Existe até quem sinta mesmo o sabor da bebida ao ouvir ou entoar certas e determinadas canções, a exemplo do tenor Luciano Pavarotti para quem “se você comparar música e bebida, você perceberá que algumas músicas tem gosto de conhaque forte, outras tem gosto de um bom vinho e outras parecem coca-cola diet“.

Mas para nós, amantes da Música Popular Brasileira, a nossa música se retrata, segundo o poeta Olavo Bilac (1865-1908), numa “Lasciva dor, beijo de três saudades, / Flor amorosa de três raças tristes /Tristes, mas porém, bailadoras”.,

E talvez, por isso, é que a bebida se junta à música, como a cumprir o preceito que nos ensina o Talmude, no qual “não há alegria vem vinho”. E sob o seu efeito, libertam-se assim os seus pensamentos e, dando-se vazão aos sentimentos da alma, perde-se o medo de ser feliz.

Música e bebida são encontradas em nossas mais remotas manifestações folclóricas, a exemplo dessas manifestações, ainda no século XVIII, registradas por Francisco Pacífico do Amaral, em Escavações (¹) (Recife 1884), ao relatar as festas em homenagem ao governador José César de Menezes, ocorridas em 19 de março de 1775, quando dois “eremitas”, Antão e Bernabé, cantam dentre tantas essa quadrinha:

Dizei bem, vá de função,
Ferva o meu Padre a folia.
Bebamos, que a tudo chegam.
As esmolas da caixinha.

Em nossa música romântica foram tantas páginas escritas, gravadas por intérpretes famosos, logo caindo no gosto do público que as cantava e solfejavam a todo o momento, exaltando a dor de cotovelo e a bebida, sua natural companheira.

Páginas do cancioneiro popular cujos versos causariam inveja a qualquer poeta erudito, como aquela valsa composta por Orestes Barbosa (1893-1966), A Mulher que Ficou na Taça, e gravada por Francisco Alves (1898-1952) em 1934:

 

Fugindo da nostalgia
Vou procurar alegria
Na ilusão dos cabarés
Sinto beijos no meu rosto
E bebo por meu desgosto
Relembrando quem tu és.

E quando bebendo espio
Uma taça que esvazio
Vejo uma visão qualquer
Não distingo bem o vulto
Mas deve ser do meu vulto
O vulto dessa mulher.

Quanto mais ponho bebida
Mais a sombra colorida
Aparece ao meu olhar
Aumentando o sofrimento
No cristal em que sedento
Quero a paixão sufocar.

E no anseio da desgraça
Encho mais a minha taça
Para afogar a visão
Quanto mais bebida eu ponho
Mais cresce a mulher no sonho
Na taça e no coração.

Quando alguém aconselhava a não beber, eis que o próprio compositor popular saia-se com jóias como esta, composta por Luiz Antônio e João do Violão e gravada por Elizeth Cardozo em 1966:

elizeth

 

 

Eu bebo sim,
Estou vivendo.
Tem gente que não bebe
E está morrendo
Eu bebo sim,
Estou vivendo.
Tem gente que não
E está morrendo.

Tem gente
Que está com o pé na cova,
Não bebeu e isso prova
Que a bebida não faz mal.
Uma prô santo,
Bota o choro e a saideira.
Desce toda a prateleira,
Diz que a vida está legal,
E bebo sim.

E o que dizer da música carnavalesca?

Dentro desta temática, bebida e música são temas obrigatórios; pois no reinado do deus Momo, o deus Baco é quem energiza a folia.

Já pelos idos de 1870, numa revista sob o título Zé-pereira Carnavalesco, o ator Francisco Correia Vasques, numa adaptação da cançoneta Les Pompiers de Nanterre, lançava o sucesso de todos os nossos carnavais:

E viva o Zé-pereira!
Que a ninguém faz mal
E viva a bebedeira
Nos dias de carnaval!

Como não poderia deixar de ser, numa festa que une a alegria dionisíaca ao apelo do deus Baco, a bebedeira era quem embalava o nosso carnaval.

No início do século XX, precisamente no carnaval de 1905, surge uma velha cantiga popular a protestar contra o autoritarismo da polícia no seu afã de proibir a bebida em nossa festa maior:

Eu vou beber
Eu vou me embriagar
Eu vou fazer barulho
Pra polícia me pegar.

A bebida continuou de mãos dadas com a música carnavalesca, como nesta peça antológica surgida da parceria de Rubens Soares, Noel Alves e Francisco Alves, a que deram o nome de É bom parar:

Por que bebes tanto assim rapaz
Chega já é demais
Se é por causa de mulher é bom parar
Porque nenhuma delas sabe amar.

Gravado por Francisco Alves, este samba marcou sucesso em todos os carnavais, chegando até nossos dias como uma peça antológica de nossa festa maior.

Bebida e música carnavalesca continuaram presentes em nosso cancioneiro, chegando mesmo a contagiar os foliões de todo Brasil quando, no carnaval de 1953, Mirabeau Pinheiro, L. de Castro e H. Lobato, lançaram esta marchinha com o título de Cachaça:

Você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E a água vem do Ribeirão.

No carnaval do ano de 1954, a combinação de bebida e marchinha carioca volta a ser cantando por todos os foliões a exemplo do sucesso composto por Zé da Zilda, Zilda e Waldir Machado: Saca-Rolha.

As águas vão rolar
Garrafa cheia eu não quero ver sobrar
Eu taco a mão no saca, saca, saca-rolha
E bebo até me afogar
Deixa as águas rolar.

Os efeitos da bebedeira vêm a ser relembrados no carnaval de 1955, numa composição de Zé e Zilda, sob o título Ressaca:

Tá todo mundo de ressaca
Ressaca, ressaca, ressaca!
Ninguém aguenta mais
Eu vou mandar parar
Vai todo mundo pra casa curar!

No mesmo carnaval de 1955, os compositores cariocas Mirabeau e Airton tomam conta das ruas e dos salões com o sucesso Tem nego bebo aí.

Foi numa casca de banana que eu pisei
Escorreguei, quase cai.
Mas a turma lá de trás gritou – chi
Tem nego bebo aí, tem nego bebo aí.

A simbiose da música carnavalesca com a exaltação a bebida tem continuidade em 1956, com a composição de Mirabeau, Milton de Oliveira e Urgel de Castro, que leva o título de Turma do Funil, interpretada pelos Vocalistas Tropicais:

 

Chegou a turma do funil
Todo mundo bebe
Mas ninguém dorme do ponto
Ai, ai
Ninguém dorme no ponto
Nós é que bebemos
E eles que ficam tontos

A fonte nos parece inesgotável: música e bebida continuam a fazer sucesso em todos os carnavais, como naquele frevo composto por Caetano Veloso para o carnaval de 1972, Chuva, suor e cerveja.

 Não se perca de mim
Não se esqueça de mim
Não desapareça
A chuva tá caindo
E quando a chuva começa
Eu acabo de perder a cabeça.
Não saia do meu lado
Segure o meu pierrô molhado
E vamos embolar de ladeira
Ladeira abaixo.
Acho que a chuva ajuda
A gente a se ver
Venha, veja, deixa, beija, seja
O que Deus quiser.
A gente se embala, se embola, se enrola
Só para na porta da igreja
A gente se olha, se beija, se molha
De chuva, suor e cerveja.

_________________

1) AMARAL, F. P. do. Escavações – factos da história de Pernambuco. Recife: Typographia Jornal do Recife, 1884. 2ª ed. , Recife: Arquivo Público Estadual, 1974.

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Leonardo Dantas - Esquina quarta, 22 de fevereiro de 2017

PARA A HISTÓRIA DO CARNAVAL: AS VARIAÇÕES DO FREVO DAS VASSOURINHAS



A “Marcha nº 1 do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Recife”, composta em seis de janeiro de 1909 por Matias da Rocha e Joana Batista, veio a ser conhecida nacionalmente como FREVO DOS VASSOURINHAS.

Em fevereiro de 1945 a Continental, sob o selo nº 15279 B, fez a gravação em 78 rpm, da Marcha nº1. Omitindo o nome dos seus autores, apresentando como “Frevo nº 1 (Marcha Regresso do Clube Vassourinhas). Marcha popular de Pernambuco, adaptação de Almirante”. Como intérpretes Déo e Castro Barbosa, acompanhado por “Napoleão e seus soldados”.

Nesse disco, Almirante (Henrique Foréis Domingues; 1908-1980) não fez tão somente uma simples adaptação da Marcha nº 1, mas, como já acontecera com Lamartine Babo quando da gravação em 21 de dezembro de 1931 de O teu cabelo não nega, dos pernambucanos Raul e João Valença (Victor 33514 A), simplesmente escreveu outra letra e denominou de “Marcha regresso” (!), que veio a ser apresentada como “verdadeira” por Ruy Duarte no seu História social do frevo:

A saudade, ó Vassourinhas
Invadiu meu coração,
ao pensar que talvez nunca,
nunca mais te veja não.
A saudade. ó Vassourinhas,
enche d’ água os olhos meus,
ao pensar, ó Vassourinhas,
neste derradeiro adeus.

O Frevo dos Vassourinhas, como veio a ser conhecido a partir da gravação de “Severino Araújo e sua Orquestra Tabajaras”, em outubro de 1950 (Continental nº 16120 A; matriz 2147), tornou-se a música mais executada do Carnaval Brasileiro em nossos dias, segundo informa o Escritório de Arrecadação dos Direitos Autorais – Ecad que recolhe os seus direitos para o Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Recife.

No Recife, a partir de 1941, o “Frevo dos Vassourinhas” recebeu, como acréscimo nas suas execuções, as variações especialmente composta pelo saxofonista da Orquestra de Nelson Ferreira, Félix (Felinho) Lins de Albuquerque (1895-1980) e assim abriu espaço para que outros virtuoses do instrumento compusessem suas próprias variações.

José Menezes - compositor

José Menezes – compositor

Dentre os autores de tais variações figuram o instrumentista José Xavier de Menezes (1923-2013), que nos deixou este depoimento que aqui transcrevo:

“Amigo Léo,

Este é um simples relato dos fatos sobre a 2ª gravação do frevo Vassourinhas. O toque jornalístico fica com você.

Gravado no dia 06/9/1950, no Rio de Janeiro, por “Zacarias e sua Orquestra”. Disco RCA-Victor – 78 rotações – nº 80.0705 -face A, e no verso – face B – foi gravado Freio a Óleo, de minha autoria – como é do seu conhecimento.

Consta do selo como título da música: FREVO DOS VASSOURINHAS (Nº1).

Histórico do surgimento da gravação:

No mês de maio de 1950, Geraldo Vilas (hoje falecido), representante da RCA-Victor, aqui no Recife, procurou o saxofonista Felinho, criador das variações do Vassourinhas, para fazer um arranjo da música, com suas variações, para ser gravada no Rio de Janeiro pela orquestra de Zacarias, que era na época, ela e a TABAJARA de Severino Araújo, as melhores do Brasil.

Felinho recusou o convite, alegando que suas variações só deviam ser gravadas por ele. Geraldo ofereceu passagem aérea e hospedagem no Rio de Janeiro e mais um cachê, para ele ir gravar com a orquestra de Zacarias. Mais uma vez Felinho recusou o convite com a legação de que não se sentia bem viajando de avião.

Em vista disso, Geraldo Vilas me procurou para fazer o arranjo e escrever variações inéditas, de minha autoria, que seriam executadas pelo 1º sax-alto da Orquestra de Zacarias, que se chamava Guerino.

Aceitei o convite, na condição da RCA comprometer-se em gravar, na face B do referido disco (que continha apenas duas músicas), um frevo de minha autoria, que seria FREIO A ÓLEO e assim foi feito.

Um fato interessante:

Quando Felinho soube do ocorrido, me procurou para saber se realmente eu tinha feito o arranjo de Vassourinhas, para outro músico gravar, com as variações dele.

Eu lhe respondi que realmente fiz o arranjo, entretanto, com variações de minha autoria, vez que, as variações e improvisações sobre um determinado tema musical, podem ser feitas de várias formas e por qualquer um.

Não existe autor de improvisações.

Em resposta, suas palavras foram as seguintes: “Quando o disco chegar, se tiver alguma de minhas variações, irei ao jornais protestar e processarei a gravadora”.

Quando disco chegou, mostrei a ele, e até a data de sua morte, muitos anos depois, ele nunca protestou porque as variações eram realmente inéditas. Eu tenho esse disco nos meus arquivos.

Recife, 18 de fevereiro de 2009.

José Menezes”

Sob o selo Mocambo, o “Frevo dos Vassourinhas”, de Matias da Rocha e Joana Batista, veio a ser gravado em junho de 1956 pela orquestra de Nelson Ferreira apresentando, pela primeira vez em disco, as variações em sax-alto, compostas por Felinho (Félix Lins de Albuquerque) em 1941, por ele executadas na segunda parte, em dezesseis compassos sem interrupção, segundo a matriz nº R.696.

Ainda na mesma fábrica veio a ser prensado o disco, Frevo dos Vassourinhas nº 1, com orquestra e coro sob a direção de Clóvis Pereira, produção autônoma com o selo “Repertório” nº 9093, matriz R 285, gravado na sua versão cantada no auditório do Rádio Jornal do Commercio.

* * *

Frevo dos Vassourinhas nº 1, de Matias da Rocha e Joana Batista, com  Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 15 de fevereiro de 2017

MARACATUS, A PRESENÇA DA ÁFRICA NO CARNAVAL DO RECIFE

 

Maracatu Elefante – Dona Santa

O maracatu, da forma hoje conhecida, tem suas origens na instituição dos Reis Negros, já conhecida na França e em Espanha, no século XV, e em Portugal, no século XVI, passando para Pernambuco onde encontramos narrativas e documentos sobre tais coroações de soberanos do Congo e de Angola a partir de 10 de setembro de 1666, segundo testemunho de Souchou de Rennefort, in Histoire des Indes Orientales, publicado em Paris 1688.

As coroações de reis e rainhas de Angola na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Santo Antônio do Recife são documentadas a partir de 1674, segundo documentação reunida in Alguns documentos para a história da escravidão. Recife: Editora Massangana, 1988.

O folguedo do maracatu, semelhante aos bailes e batuques organizados pelos pretos de Angola ao tempo do governador José César de Menezes (1774-78), objeto de denúncia à Inquisição de Lisboa por parte dos frades capuchinhos da Penha (ANTT – Cartório da Inquisição nº4740), foi sempre alvo de censuras por parte das classes dominantes e de perseguição policial; segundo denúncia do mesmo jornal em sua edição de 11 de novembro de 1856 ao tratar do maracatu da praça da Boa Vista.

Cortejos de reis negros

Os cortejos dos reis negros, geralmente anotados pela imprensa, quando das festas de Nossa Senhora dos Prazeres e nas do Rosário de Santo Antônio, não eram conhecidos por maracatus, como se depreende do noticiário do Diario de Pernambuco de 20 de outubro de 1851:

… percorrendo à tarde algumas ruas da cidade, divididos em nações, cada uma das quais tinha à frente o seu rei acobertado por uma grande umbela ou chapéu-de-sol de variadas cores. Tudo desta vez se passou na boa paz e sossego, porquanto a polícia, além de ter responsabilizado, segundo nos consta, o soberano universal de todas as nações africanas aqui existentes, por qualquer distúrbio que aparecesse em seus ajuntamentos, não deixou por isso de vigiá-los cuidadosamente.

Os reis negros, em especial o Rei do Congo, possuidor de uma hierarquia própria sobre os membros das demais nações africanas aqui residentes, compareciam às festas religiosas protegidos pela umbela. Um grande pálio redondo, ladeado por dignitários de suas respectivas cortes, sendo o cortejo aberto pela bandeira da nação, juntamente com outras bandeiras arvoradas, e acompanhados por instrumentos de percussão, nem sempre ao gosto da população branca, como se depreende na observação do Padre Carapuceiro: “Alguns desses chapelórios ainda há poucos anos apareciam nos batuques dos pretos em dias de Nossa Senhora do Rosário, cobrindo o figurão chamado de rei dos congos” (Diario de Pernambuco, 15.3.1843).

O grande guarda-sol colorido sob o qual vinha amparado o rei de cada nação, como fora observado pelo Padre Carapuceiro, era denominado cumbi pelos africanos que, ainda em nossos dias, assim trazem protegidos os seus sobas. Inicialmente pensou-se que esta grande umbela havia sido transplantada do cerimonial da igreja católica, onde é utilizada como proteção ao santo viático, quando de sua saída às ruas, conforme bem retratou Emil Bauch em uma de suas cromolitografias tomadas da calçada da igreja matriz da Boa Vista, no Recife (c 1852).

Maracatus, ajuntamentos de negros

No Recife a denominação maracatu servia, a partir da primeira metade do século XIX, para denominar um ajuntamento de negros, como por ocasião da fuga da escrava Catarina, anotada por José Antônio Gonsalves de Mello em consulta à edição do Diario de Pernambuco de 1º de julho de 1845:

Em o dia 2ª feira do Espírito Santo do ano próximo passado, fugiu a preta Catarina, de nação Angola, ladina, alta, bastante seca de corpo, seio pequeno, cor muito preta, bem feita de rosto, olhos grandes e vermelhos, com todos os dentes da frente, pés grandes metidos para dentro, muito conversadeira e risonha, de idade de 22 anos; tem sido encontrada na Estrada da Nova da Passagem da Madalena e no Aterro dos Afogados, vendendo verduras e aos domingos no maracatu dos coqueiros do dito Aterro, e há notícia de ser o seu coito certo a matriz da Várzea; cuja escrava pertence a Manoel Francisco da Silva, morador na Rua Estreita do Rosário, 10, 3º andar, ou em seu sítio em Santo Amaro, junto à igreja, o qual gratificará generosamente a quem lh’ a apresentar.

Outro exemplo aparece na ata da sessão extraordinária da Câmara Municipal do Recife de 28 de abril de 1851, quando foi endereçada ao desembargador Chefe de Polícia “uma petição do preto africano Antônio Oliveira, intitulado Rei do Congo, queixando-se de outro que, sem lhe prestar obediência, tem reunido os de sua nação para folguedos públicos, a fim de que o mesmo desembargador providenciasse em sentido de desaparecer semelhantes reuniões, chamadas vulgarmente de maracatus, pelas conseqüências desagradáveis que delas podem resultar” (Diario de Pernambuco, 27.5.1851).

No Recife, os cortejos dos soberanos negros, trazendo os seus reis e rainhas, não saíam no período do carnaval, mas tão somente por ocasião de suas festas religiosas ou em ocasiões outras como o embarque de africanos libertos de volta à mãe África. A presença de “batuque do Rei do Congo” no carnaval do Recife só vem a ser registrada a partir do final dos anos cinqüenta do século XIX.

Os reis no Carnaval

Maracatu Elefante – Rainhas e princesas

Somente nos anos setenta do século XIX é descrita a presença desses cortejos de reis negros durante o carnaval, segundo noticia o Diario de Pernambuco sem sua edição de 10 de fevereiro de 1872, ainda sem a denominação de maracatus:

No dia 11 do corrente sairá da Rua de Santa Rita Velha (bairro de São José) a nação velha de Cambinda, a qual vai em direitura à Rua das Calçadas buscar a sua rainha, e depois percorrerá diversas ruas, e às 3 horas se achará em frente à igreja do Rosário [de Santo Antônio] onde se soltarão algumas girândolas de fogo e uma salva de 21 tiro; dali seguirá para o Recife e na Rua do Bom Jesus voltará com a vice-rainha de sua nação.

O maracatu era, até então, considerado a reunião de negros em determinado local. Um o batuque, na acepção de “dança africana ao estrépido de instrumentos de percussão” (Pereira da Costa), mas não o cortejo real que levava às ruas a corte dos reis negros, como faz ver o extenso editorial do mesmo jornal, publicado em 18 de maio de 1880:

…. Há tempos, que indicamos um maracatu que costuma reunir-se quase no extremo norte do Cais do Apolo, na freguesia de S. Pedro Gonçalves do Recife; hoje temos notícia exata de dois outros, dos quais os vizinhos têm as mais cruéis recordações. Juntam-se estes na freguesia da Boa Vista, um na Rua do Giriquiti, outro na Rua do Atalho. Neste último, anteontem, houve uma grande assuada e barulho, chegando a aparecer diversas facas de ponta. Felizmente, não se deram ferimentos, mas não esteve longe de assim acontecer. Urge, repetimos, providenciar em ordem a que cessem, desapareçam tão selvagens instrumentos, e o Sr. Dr. Chefe de Polícia, que volveu suas vistas contra as casas de tavolagem, deve também dirigir sua atenção para os maracatus.

O maracatu, na verdade, era tão somente o batuque dos negros, com localização fixa em determinado bairro da cidade. O cortejo real, como no caso anteriormente citado da “nação velha de Cambinda”, não parece ser a mesma coisa. A conclusão é reforçada pelo depoimento do carnavalesco João Batista de Jesus, “Seu Veludinho” do maracatu Leão Coroado, que segundo a tradição faleceu com 110 anos, prestado à pesquisadora Katarina Real em janeiro de 1966, in O folclore no Carnaval do Recife. Recife: Editora Massangana, 1990. 2ªed. p. 184:

Maracatu nem tinha o nome de maracatu. O nome era nação. Uma “nação” mandava ofício para outro “estado”. Surgiu essa palavra pelos homens grandes, quando ouviram os baques dos bombos, chamaram “aquele maracatu!”

Cortejo é chamado de maracatu

Com a abolição da escravatura negra, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, a figura do Rei do Congo – Muchino Riá Congo – perdeu a sua razão de ser. Os cortejos dos reis negros já presentes no carnaval, por sua vez, passaram a ter como chefe temporal e espiritual os babalorixás dos terreiros do culto nagô. Assim vieram para as ruas do Recife, não somente nos dias de festas religiosas em honra de Nossa Senhora do Rosário, mas também nas festas carnavalescas.

Após a abolição, porém, os antigos cortejos das nações africanas, que continuaram a se fazer presentes no carnaval do Recife então sob a chefia dos seus babalorixás, passaram a ser chamados de maracatus, particularmente quando a notícia tinha conotação policial, como a divulgada pelo Diario de Pernambuco, em sua edição de 26 de fevereiro de 1889:

Revista Diária. Maracatu Porto Rico – Na Praça Pedro I, da paróquia de São Frei Pedro Gonçalves do Recife, deu-se anteontem um conflito entre os sócios do Maracatu Porto Rico, quando este fazia um ensaio. Ao que parece o conflito foi motivado por uma praça do 14º Batalhão, pois que cerca de 60 homens, armados de facas e cacetes, rebelaram-se contra a dita praça, que ferida tratara de fugir, quando ali compareceu o subdelegado da paróquia. Esta autoridade conseguiu prender seis dos tais desordeiros, inclusive o ofensor da praça, que foi vistoriada pelo sr. dr. José Joaquim de Souza.

Ainda recentemente, ao que se depreende do depoimento do presidente da Nação do Leão Coroado, Luiz de França, falecido aos 95 anos, “para conversar pouco, só digo que o maracatu é da seita africana”. (Diario de Pernambuco, 14 de janeiro de 1996).

As seculares nações africanas

A mais tocante descrição de um maracatu carnavalesco do início do século vem de Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923) que, em 1908, assim relata o cortejo no seu Folk-Lore Pernambucano:

Rompe o préstito um estandarte ladeado por arqueiros, seguindo-se em alas dois cordões de mulheres lindamente ataviadas, com os seus turbantes ornados de fitas de cores variegadas, espelhinhos e outros enfeites, figurando no meio desses cordões vários personagens, entre os quais os que conduzem os fetiches religiosos, – galo de madeira, um jacaré empalhado e uma boneca de vestes brancas com manto azul -; e logo após, formados em linha, figuram os dignitários da corte, fechando o préstito o rei e a rainha.

Estes dois personagens, ostentando as insígnias da realeza, como coroas, cetros e compridos mantos sustidos por caudatários, marcham sob uma grande umbela e guardados por arqueiros.

No coice vêm os instrumentos: tambores, buzinas e outros de feição africana, que acompanham os cantos de marcha e danças diversas com um estrépito horrível.

Aruenda qui tenda, tenda,
Aruenda qui tenda, tenda,
Aruenda de totororó.

O autor chama a atenção do leitor para o Maracatu Cabinda Velha que, “desfraldando um rico estandarte de veludo bordado a ouro, como eram igualmente a umbela e as vestes dos reis e dignitários da corte, e usando todos eles de luvas de pelica branca e finíssimos calçados. Os vestuários dos arqueiros, porta-estandarte e demais figuras, eram de finos tecidos e convenientemente arranjados, sobressaindo os das mulheres, trajando saias de seda ou veludo de cores diversas, com as suas camisas alvíssimas, de custosos talhos de labirinto, rendas ou bordados, vistosos e finíssimos; e pendentes do pescoço, em numerosas voltas, compridos fios de miçangas, que do mesmo modo ornam-lhes os pulsos. Toda comitiva marchava descalça, à exceção do rei, da rainha e dos dignitários da corte, que usavam de calçados finos e de fantasia, de acordo com os seus vestuários”.

E concluindo, afirma Pereira da Costa:

“Quando o préstito saía, à tarde, recebia as saudações de uma salva de bombas reais, seguida de grande foguetearia, saudações essas que eram de novo prestadas no ato do seu recolhimento, renovando-se e continuando as danças até o amanhecer; e assim, em ruidosas festas e no meio de todas as expansões de alegria, deslizavam-se os três dias do Carnaval”.

Preservando a denominação de nação, os préstitos dos maracatus de baque virado (que utilizam nas suas apresentações tão somente instrumentos de percussão de origem africana) continuam a desfilar pelas ruas do Recife nos dias do carnaval e nos meses que antecedem a grande festa. Denominando-se de Nação do Elefante (1800), Nação do Leão Coroado (1863), Nação da Estrela Brilhante (1910), Nação do Indiano (1949), Nação Porto Rico (1915), Nação Cambinda Estrela (1953), além de outros grupos que surgiram mais recentemente, mantendo a tradição africana dos seus antepassados.


Leonardo Dantas - Esquina quarta, 08 de fevereiro de 2017

OLINDA É TODA CARNAVAL

O Carnaval de Olinda tem o seu início oficial nos primeiros minutos do domingo quando, no Bonsucesso, o Homem da Meia Noite “bota a cabeça de fora / Aquece a folia / A rua toda estremece / No céu a lua aparece / Explode a alegria” ….

No rastro deste tradicional boneco surgem, como que saídos de um conto de fadas, a Mulher do Dia, o Menino da Tarde, o Tarado da Sé, o Capibão, dentre outras dezenas de bonecos gigantes que vão, pouco a pouco, tomando conta da paisagem.

 

 

Caboclinhos, maracatus-nação de baque virado, troças e clubes de frevo, maracatus rurais com seus caboclos de lança, blocos carnavalescos com suas orquestras de pau e cordas, tribos de índios, bois, reisados, a presença cigana nas La Ursas, turmas de palhaços colorido, multidões de alegres mascarados, estão a encher de cores ladeiras, becos, ruas e avenidas, nos dias dedicados ao Carnaval, transformando Olinda no Reino Azul da fantasia.

Batidas sincopadas de bombos dos maracatus-nação, estalidos das preacas dos caboclinhos, notas agudas e dissonantes das fanfarras de frevo, sons rurais de acordeões de La Ursas, batuques de escolas de samba, cômicas toadas de um Mateus do bumba-meu-boi, o lirismo do bloco Flor da Lira cantando, se juntam aos caboclos de lança do maracatu Piaba de Ouro de modo a se misturar com a onda de passistas seguidores dos cortejos da Pitombeiras, do Elefante, da Ceroula, do Vassourinhas, de Marim dos Caetés, ou mesmo do Eu acho é pouco, que mais parecem, na imagem de Alceu Valença, com uma enorme “cobra que desce a ladeira com gosto de gás”.

O carnaval de Olinda em nada se assemelha ao do resto do Brasil. Para o escritor Luís da Câmara Cascudo, “o carnaval dos grupos e dos ranchos, das escolas de samba do Rio de Janeiro” em nada se parece ao carnaval de Olinda, “o carnaval da participação coletiva na onda humana que se desloca, contorce e vibra na coreografia, a um tempo pessoal e geral do frevo, com a sugestão de suas marchas-frevos pernambucanas, insubstituíveis e únicas”.

Nesta paisagem carnavalesca, um ritmo é o grande responsável pela aglutinação das multidões que tomam conta das ruas, becos e avenidas da Cidade Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade durante o carnaval ou em seus momentos de alegria.

Surgido do repertório das bandas militares, o frevo pernambucano como música é o resultado da fusão da marcha, do tango brasileiro, do maxixe, da quadrilha, do galope e, mais particularmente da polca e do dobrado, que num mesmo cadinho deram origem a esta música singular de andamento alegro, ainda hoje em franca evolução rítmica e coreográfica. A partir dos anos trinta, do século passado, convencionou-se dividir o frevo em frevo-de-rua, frevo-canção e frevo-de-bloco.

Como no frevo de Severino Luiz Araújo e Nelson Luiz Gusmão, “… é lindo o carnaval de Olinda / E quem não viu ainda / Não sabe o que é paixão / A vida esquece a saudade / Tudo é felicidade / E amor no coração.”

• Do livro “O’ linda, o teu nome bem diz!”, 480 p. ilustrado, a espera de patrocínio para sua edição.

* * *

 

 


Leonardo Dantas - Esquina quinta, 02 de fevereiro de 2017

OLINDA, NO TEMPO DOS FLAMENGOS

A vida religiosa da capitania tinha como centro a matriz do Salvador do Mundo, sendo ela, em todo século XVI e início do século XVII, a segunda igreja em importância da América Portuguesa, depois da Sé da Bahia. O grande templo foi parcialmente concluído em 1540, apresentava-se com três naves, tendo na portada duas colunas geminadas. O padre Fernão Cardim assim o descreve em 1584: “uma formosa igreja matriz, de três naves, com muitas capelas ao redor, e que acabada ficaria uma boa obra”.

Preocupou-se o primeiro donatário não somente com a implantação da agroindústria açucareira, mas também com a educação da juventude e, muito particularmente, com a catequese dos indígenas, tendo para isso entregue aos padres da Companhia de Jesus, em 1551, a ermida de Nossa Senhora da Graça, por ele construída na mais alta elevação da vila. Coube aos padres Manoel da Nóbrega e Antônio Pires coordenarem o nivelamento do terreno e nele iniciar a construção, junto à primitiva igreja, do edifício do Colégio de Olinda. As obras se prolongaram por toda a segunda metade do século XVI, juntamente com a instalação de um Horto Botânico destinado à aclimatação das plantas exóticas, trazidas da Europa e do Oriente para Pernambuco.

Também as ordens religiosas procuraram estabelecer os seus conventos em terras da nova capitania. Inicialmente, como já vimos, foram os Jesuítas (1551), seguindo-se dos Franciscanos (1585), Carmelitas (1588) e Beneditinos (1592).

09. Ruínas da Sé de Olinda, segundo quadro de Frans Post (detalhe)

Ruínas da Sé em Olinda – Frans Post

Uma visão de Olinda, no início do século XVII, nos é dada por Ambrósio Fernandes Brandão, em Diálogos das grandezas do Brasil (16l8):

Dentro na Vila de Olinda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda a sorte em tanta quantidade que semelha uma Lisboa pequena. A barra do seu porto é excelentíssima, guardada de duas fortalezas bem providas de artilharia e soldados, que as defendem; os navios estão surtos da banda de dentro, seguríssimos de qualquer tempo que se levante, posto que muito furioso, porque têm para sua defensão grandíssimos arrecifes, a onde o mar quebra. Sempre se acham nele ancorados, em qualquer tempo do ano, mais de trinta navios, porque lança de si, em cada um ano, passante de 120 carregados de açúcares, pau-brasil e algodão. A vila é assaz grande, povoada de muitos e bons edifícios e famosos templos, porque nela há o dos Padres da Companhia de Jesus [1551], o dos Padres de São Francisco da Ordem Capucha de Santo Antônio [1585], o Mosteiro dos Carmelitas [1588], e o Mosteiro de São Bento [1592], com religiosos da mesma ordem.

A riqueza de Olinda, por sua vez, era sustentada pelas mercadorias exportadas através porto de Pernambuco, notadamente o açúcar. Sua importância nas relações comerciais com o norte da Europa, é ressaltada em grande parte dos documentos do século XVI e início do século XVII, graças à produção do açúcar, que passara de gênero de alto luxo a produto acessível às classes de menor poder aquisitivo. Tal riqueza veio despertar a cobiça dos piratas e corsários, tornando as caravelas (navios pequenos e mal-armados), em presas fáceis. Informa K. R. Andrews que, entre 1589 e 1591, Portugal perdeu para corsários ingleses nada menos que 34 navios, em sua maioria procedentes dos portos de Pernambuco e da Bahia.

Em 1589, segundo fonte jesuítica, num período de nove meses, foram apreendidos por ingleses e franceses 73 navios carregados.

Na primeira metade do século XVII a riqueza da capitania de Pernambuco, bem conhecida em todos os portos da Europa, veio despertar a cobiça dos Países Baixos. Em guerra com a Espanha, sob cuja coroa se encontrava Portugal e suas colônias, necessitava a Holanda e demais repúblicas de todo açúcar produzido no Brasil para suas refinarias (26 só em Amsterdã). Com o insucesso da invasão da Bahia (1624), onde permaneceram por um ano, mas com o valioso apoio de Isabel da Inglaterra e Henrique IV da França, rancorosos inimigos da Espanha, a Holanda, através da Companhia das Índias Ocidentais, formada pela fusão de pequenas associações, em 1621, cujo capital elevara-se, em pouco tempo, a 7 milhões de florins, voltou o seu interesse para Pernambuco.

A produção de 121 engenhos de açúcar, “correntes e moentes” no dizer de van der Dussen, (¹) viria a despertar a sede de riqueza dos diretores da Companhia, que armou uma formidável esquadra sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck. Uma grande armada, com 65 embarcações e 7.280 homens, apresentou-se nas costas de Pernambuco em 14 de fevereiro de 1630, iniciando assim a história do Brasil Holandês.

A Vila de Olinda, uma das mais abastadas da América Portuguesa, cujo fausto era comparado com Lisboa e Coimbra, não se perturbara com os boatos da chegada dês uma grande armada .

Nas ruas os seus habitantes, aproveitando as festas pelo nascimento do príncipe Baltasar, herdeiro do trono de Espanha, vestiam seda e damasco, montavam em garbosos cavalos ajaezados em prata, com o som de suas cascavéis a chamar a atenção de sua passagem.

Senhores da terra, os holandeses escolheram o Recife como sede dos seus domínios no Brasil, por ter nesta praça a segurança que não dispunham em Olinda, “por ser aberta por muitas partes e incapaz de defesa”, na observação de Diogo Lopes Santiago (História da Guerra de Pernambuco).

Na noite de 25 de novembro de 1631, resolveram os chefes holandeses pôr fogo na sede da capitania de Pernambuco, “a infeliz vila de Olinda tão afamada por suas riquezas e nobres edifícios, arderam seus templos tão famosos, e casas que custaram tantos mil cruzados em se fazerem” (Santiago).

O soldado da Companhia das Índias Ocidentais, Ambrósio Richshoffer, em anotações ao seu Diário, relata que a demolição dos edifícios de Olinda teve início no dia 17, “transportando-se mais tarde para o Recife todo o material aproveitável”.

A 24 nossa gente que ali se achava retirou-se para a aldeia Povo ou Recife, destruindo antes tudo o que foi possível e pondo fogo à cidade em diversos pontos. Esta resolução foi motivada pelo fato de ser a cidade toda montanhosa e desigualmente edificada, sendo difícil de fortificar e exigir uma forte guarnição, que podíamos empregar melhor aqui e em outros pontos. (²)

Olinda - Frans Post - Rijksmuseum 107,5 x 172,5 (2)

Olinda – Frans Post

Segundo depoimento de Duarte de Albuquerque Coelho, em Olinda “residiam 2.500 vizinhos, possuindo quatro conventos religiosos, sendo um de São Bento, outro dos recoletos de São Francisco, o terceiro do Carmo, e um colégio dos Jesuítas; havia mais duas paróquias, uma casa de Misericórdia e a da Conceição de recolhidas, além das Ermidas. O que não pode referir-se, sem grande e devido sentimento, é que também deixaram nas chamas todas estas igrejas e conventos, e as Santas Imagens”. (³)

Em Olinda a paisagem e costumes foram assim descritos pelo Frei Manuel Calado, “tudo eram delícias e não parecia esta terra senão um retrato do terreal paraíso” (O Valeroso Lucideno).

Mas a segurança para Waerdenburch e demais chefes holandeses falava mais alto, daí fixar-se no Recife e na ilha de Antônio Vaz que “são lugares próprios para, com oportunidade, fundar-se uma cidade” e “penso que ninguém que da Holanda vier para aqui quererá ir morar em Olinda” (Adolph van Els), sendo proibidas quaisquer construções no perímetro urbano da antiga capital.

Observa José Antônio Gonsalves de Mello que “uma população enorme, calculada em mais 7.000 pessoas, teve de se comprimir no Recife e em Antônio Vaz [área hoje ocupada pelos bairros do Recife e de Santo Antônio]. Aí as casas eram em número insuficiente e muitos dos armazéns tinham sido incendiados”.

Ao contrário do que muitos podem pensar, foi o açúcar, e não a esperança de descobrimento de minas, o motivo principal da invasão, conforme bem demonstrou José Antônio Gonsalves de Mello. (4)

Açúcar, no dizer do padre Antônio Vieira, passou a ser sinônimo de Brasil.

______________

1) DUSSEN, Adriaen van der. Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil pelos holandeses (1639): suas condições econômicas e sociais. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1947. 168 p. Tradução, introdução e notas de J. A. Gonsalves de Mello.

2) RICHSHOFFER, Ambrósio. Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais 1629-1632. Tradução de Alfredo de Carvalho. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Prefácio de Ricardo José Costa Pinto. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1981. 210 p. il. (Coleção pernambucana; 1ª fase, v. 11 a). Fac-símile da. ed. Recife: Typographia a vapor de Laemmert & Comp., 1897.

3) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da guerra do Brasil 1630-1638. Apresentação de Leonardo Dantas Silva; Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. 398 p. il. (Coleção Recife; v. 12). Inclui mapas de Manoel Bandeira e índice onomástico.

4) MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. 2.ed. p. 130.


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