Naquela manhã, dia de finados, Norminha tirou o carro da garage, distraída, pensava no marido e como foi traída. Pela primeira vez retornava ao cemitério desde os acontecimentos no enterro, afinal passaram 18 anos juntos. Fernandinha, a filha de 14 anos, perguntou se ia encontrar a Adélia, filha do pai com a outra mulher.
– Deus me livre, nunca mais em minha vida quero ver aquela desgraçada, vadia, sirigaita, enfeitiçou o finado seu pai, ainda fez essa filha. É sua irmã, por parte de pai, apenas. Não quero e você está proibida de fazer amizade com essa moça.
Mal sabia Norminha, as duas estudavam em colégios do CEPA, são amigas desde que descobriram serem meio irmãs, filhas do Peixotinho, funcionário exemplar da Rede Ferroviária. Norminha rumou para ao cemitério, Fernanda ao lado, calada, a mãe em devaneios.
Fernando Lyra Peixoto, ainda jovem, conseguiu um emprego na Rede Ferroviária com um deputado amigo da família, assíduo e trabalhador, todos os chefes gostavam daquele servidor, gentil. Sempre arranjavam uma maneira de uma função gratificada. Peixotinho não reclamava o salário de funcionário, tinha outra viração, emprestar dinheiro, um pequeno agiota, controlado, morava com a mãe viúva. Adolescente descobriu uma das coisas mais importante em sua vida, sexo e mulher. Carinha de santo, sonso que só o cão, uma lábia de encantar mulheres, vivia atrás das empregadas na vizinhança, os amigos o apelidaram maldosamente, Rei das Peniqueiras.
Guardou seu dinheirinho ganho na repartição, tinha casa, comida e roupa lavada. Por acaso investiu na agiotagem, um amigo desesperado pediu-lhe emprestado, pagou-lhe com juro de 10%, Peixotinho gostou, tornou-se agiota, investia também em apartamentos pequenos, o aluguel aumentava sua renda. Solteiro, gostava mesmo de uma garota de programa, teve poucas namoradas. Certo dia percebeu, os amigos de infância estavam casados. Aos 30 anos resolveu se casar, namorou e casou-se com Norminha, três anos depois apareceu sua filha, Fernandinha. Homem sério, todos admiravam, Norminha não cansava de se orgulhar, pelo Peixotinho botava a mão no fogo.
Certo dia amanheceu com a garganta inflamada, ao tomar algumas injeções na farmácia, conheceu a enfermeira, Ana, bonita morena, mãe solteira, vivia com o filho e o pai no bairro do Jacintinho. Trabalhava muito em hospital e dava plantão em farmácias fazendo curativos, aplicando injeções para sustentar a casa. Peixotinho empolgado com a sensualidade da jovem, retornou à farmácia paquerando abertamente Aninha. Sua insistência e lábia conseguiram levá-la a um motel. A partir daí teve encontros semanais com a carinhosa enfermeira, preenchendo parte de sua vida amorosa. Aninha engravidou quase ao mesmo tempo que Norminha, as duas filhas nasceram com diferença de um mês. Ana não fazia questão em ser a “outra”, afinal Peixoto ajudava muito, até cedeu um de seus apartamentos para moradia de Ana, o pai e os filhos. Peixoto conseguiu guardar esse segredo durante 15 anos. Certa manhã, na repartição, sentado, de repente veio-lhe suor frio, dor aguda no peito, a dor aumentou, caiu a cabeça para frente no birô, infarto fulminante. Morreu feito um passarinho.
Dia seguinte no enterro Norminha percebeu uma morena junto à filha adolescente, as duas chorando no caixão, quis saber quem eram aquelas intrusas. Everaldo, amigo, confidente de Peixotinho, contou-lhe a verdade. Norminha partiu desesperada, puxou Aninha e a filha do caixão, chamando-a de vadia, deu tapa na cara, alguns amigos intervieram botando paz no enterro. Depois de alguns meses, as duas, encontraram-se em audiência, brigando pela herança de Peixotinho. O “come quieto” deixou onze apartamentos pequenos.
Naquele dia de finado finalmente Norminha chegou ao Campo Santo, uma orquestra tocava as Bachianas de Villa Lobos enchendo o ambiente de saudades. Cemitério lotado, Norminha e Fernandinha dirigiram-se ao túmulo de Peixotinho, ao ver, ao longe, Aninha e filha ajoelhadas colocando flores no túmulo do marido, a viúva partiu em disparada, na velocidade que vinha rodou a bolsa na cara da “outra”, atordoada, levou murro na cara, ao cair revidou puxando o cabelo de Norminha. Atracaram-se no chão xingando-se mutuamente de vadia e puta. Ninguém teve coragem de apartar a briga, as duas rolaram, puxaram cabelo, deram tapas, jogaram areia, por mais de cinco minutos. Precisou dois policiais para terminar o briga. Perante o Delegado as duas tiveram que explicar para não ser enquadradas em perturbação da ordem pública. Uma coisa ficou clara, o UFC do Campo Santo ainda terá mais rounds.
Ninguém sabe de onde veio, nem ele. A mãe o abandonou na Praça do Centenário quando Cícero não havia completado oito anos, negrinho, chamava atenção sua figura bonita. Olhos pretos, vivos, cabelos crespos. Sozinho no mundo, ficou a vagar pela cidade grande.
O menino enjeitado, triste e assustado, perambulou durante dias pelas ruas de Maceió, dormindo sob marquise, em praças, faminto, até que encontrou um bando de meninos abandonados. Foi uma alegria tornarem-se amigos, entrosou-se com esses menores que faziam ponto no centro da cidade, Praça Deodoro e arredores. Sobreviviam de esmola, do que achavam no lixo, de roubos fortuitos, até pequenos assaltos. Assim viveu Cicinho por anos nas ruas da cidade, abandonado pela sociedade, pelos governos, sem escola, sem casa, sem documentos, duas vezes preso por vagabundagem. Sua família eram os colegas de rua, de cola e de cruz.
Num dia de festa, o Brasil havia vencido um jogo da Copa do Mundo, enquanto a cidade comemorava, Cicinho procurava comida num container no bairro chique da Jatiúca, lixo de qualidade.
Alzira, moradora de um prédio, da janela reparou a cena, comoveu-se, teve pena do adolescente catador, alheio à festa. Agradou-lhe a silhueta daquele jovem moreno, cabelos crespos cumpridos, vestes maltrapilhas, capa velha surrada, parecia o Pequeno Príncipe Mendigo. De repente, ao acaso, ele olhou para a coroa, cumprimentou-a sorrindo. Ela respondeu-lhe outro sorriso. Com a mão direita aberta Alzira deu um sinal para ele esperar, desceu levando um bolo de chocolate na mão, ao aproximar, sentiu uma forte empatia, um afeto maternal pelo jovem. Cicinho recebeu o bolo, dividiu com amigos, comeram sentados no chão. A partir daquela dia, algumas vezes na semana, o jovem cheira-cola aparecia em frente ao edifício, a coroa lhe dava o que comer em um saco de papel pardo.
Alzira havia completado 41 anos no dia que conheceu Cicinho, dizia para si mesma, ser um presente de Deus. Mulher sofrida no amor, foi casada, sem filhos, por onze anos com um médico, abandonou-a por uma aluna da Faculdade. Um trauma para Alzira, quarentona bonita, vistosa, charmosa. Desde sua decepção amorosa, trancou-se para o mundo, mora sozinha, evitou namoro, sexo e amigas. Funcionária pública, o trabalho ajuda sua existência
Sentia-se abandonada igual ao jovem catador de lixo, ele veio preencher uma carência afetiva, alegrava-se ao dar-lhe parte de sua comida, depois presenteou-lhe camisa, roupa. Com o passar do tempo deu-lhe trabalho, mandou o barbeiro dar-lhe um trato, tornou-se uma espécie de secretário para limpeza da casa, do carro, fazer compras e outros afazeres. Cicinho toda manhã dava plantão em frente ao prédio de Alzira, à tarde caía no mundo junto aos companheiros. Certo dia ela convidou-o a morar no quarto de empregada, almoçava com a cozinheira.
Alzira ficou apegada ao adolescente, durante a noite ensinava a ler, a escrever e contas aritméticas. Deu sorte, conseguiu matricular o jovem no Colégio Marista onde os Irmãos têm cursos gratuitos para os necessitados.
Cicinho é calado, casmurro por natureza. Alzira descobriu, em conversa, seu sonho, uma prancha de surf. No natal ela presenteou-lhe uma prancha, o jovem feliz da vida, danou-se a surfar na praia de Cruz das Almas. Nunca abandonou os amigos, quando ia ao surf marcava com os companheiros cheira-cola, eles pegando carona na prancha. Quando podia, arranjava comida para sua turma. Cicinho tem consciência que a sorte passou em sua vida. É generoso e solidário, embora o sentimento de injustiça e desigualdade social seja forte em suas convicções.
Tornou-se um forte e belo rapaz, espadaúdo, típico surfista. Atualmente estuda para vestibular de Direito, quer ser um bom advogado e criar uma casa de abrigo a menores moradores de rua, seus sonhos fizeram feliz Dona Alzira, como ele a chama.
Cicinho deixou a dependência de empregada, dorme em quarto próprio. Mostra sua gratidão, tem verdadeiro afeto e carinho por sua protetora que mudou sua vida, lhe deu o que um jovem precisa, um lar, afeto e estudo. Está aprendendo a dirigir, carro prometido se passar no vestibular. Para Alzira é como se fosse um filho, aliás, mais que um filho.
Nas refeições divide a mesa com seu protegido. Segundo línguas ferinas, sem provas, invencionice de quem não têm o que fazer, durante parte da noite, divide também a cama forrada de lençol de linho e travesseiros de marcela. Alzira anda na maior felicidade, apenas um problema, administrar o ciúme das paqueras que dão em cima de seu belo Pequeno Príncipe Negro.
Dr. Romero chegou cedo ao escritório, algumas pessoas o esperavam na sala. Cumprimentou-as, ao mesmo tempo deu um olhar fotográfico, entrou na sala, sentou-se no birô, iniciou a leitura da correspondência. Logo chamou Nena, perguntou os assuntos daquela manhã, a secretária explicou cada caso, a filha de Adamastor veio pegar o cheque mensal
Romero lembrou o amigo de infância, Adamastor, o melhor ponta esquerda do time de futebol da praia. Naquela época, adolescentes, a juventude aceitava melhor as diferenças, com mais honestidade, valia mais quem sabia jogar mais, quem trepava mais rápido num coqueiro e sabia fugir correndo do vigia. Adamastor, um atleta nato, desde o futebol na praia até mergulhar da cumeeira do trapiche avançado mar adentro. Tornou-se o melhor amigo de Romero, andavam sempre juntos caçando lagartixa com atiradeira, mergulhavam e pescavam à beira mar, pegavam caranguejo goiamum e outras brincadeira inventada por aqueles jovens adolescentes, na puberdade, se descobrindo, se possuindo dentro do mar, em intenção às moças de maiô deitadas na areia alva da praia.
O tempo que tudo desfaz, separou a amizade de infância. Raras vezes eles se viam, embora fossem compadres, Romero era padrinho de uma de suas filhas. Anos depois Adamastor procurou o amigo, estava morrendo, pediu ajuda, não deixar a família desamparada. Há dois anos Romero mensalmente dá um cheque de R$ 500,00 à família, um dos filhos vem buscá-lo no início de cada mês. Ele não conhecia essa filha à sua espera, ela entrou no escritório.
– “Você parece com o Adamastor, sente-se por favor” recebeu em pé. A jovem puxou a cadeira confortável sentou-se elegante, cruzou as pernas, sorriu.
-“Meu pai falava muito no senhor, muitas histórias ele contou, uma juventude alegre e livre na praia. Eu sou Clarissa, sua afilhada.”
– “Não me diga que prazer, ter uma afilhada bonita, não é para todo mundo”. Disse Romero rendendo-se ao encanto da morena. “Clarissa, minha afilhada, o que você faz na vida? Adamastor foi meu grande amigo de infância, gostaria de saber se posso ajudar em alguma coisa a mais?”
-“Doutor Romero na verdade eu trabalhava numa loja do Shopping, a empresa passando por dificuldades, fiquei desempregada, ainda bem que moro com mamãe.”
– “Faça o seguinte, traga seu currículo, deixe com minha secretária, vou ver o que posso fazer.” Levantou-se deu-lhe o cheque, ficou olhando a filha de Adamastor se retirar. Pensou, uma bela mulher!
Duas semanas depois Clarissa trabalhava no escritório, auxiliando Nena. A convivência entre o padrinho e a afilhada foi se estreitando, Romero tinha maior carinho pela filha do amigo, às vezes iam lanchar numa sorveteria perto do escritório, conversavam bastante, ele sorria com o bom humor da afilhada. Entretanto, ao olhar as pernas da jovem esquentava o sangue na veia, tentava se policiar. Certo vez, final do expediente ele dirigia rumo à sua casa, avistou Clarissa no ponto de ônibus, ofereceu carona. Ela abriu a porta do carro, sentou-se como uma princesa, no primeiro sinal vermelho o carro parou, ele olhou nos olhos de Clarissa, no verde arrancou, deixou-a em frente de sua casa, na despedida em vez de beijinho na face, aconteceu o primeiro beijo na boa, ficou só no beijo, ela desceu rápida.
Dia seguinte Clarissa estava encabulada, mal encarou o padrinho. Ele a chamou, disse que o beijo foi uma coisa natural, afinal ela é uma mulher atraente. Pediu a Clarissa fazer alguns pagamentos, ela saiu à pé, o banco era perto. De repente, Romero encheu-se de desejo, desceu à garagem, conseguiu alcançá-la , parou o carro. Passarem uma tarde inesquecível num motel luxuoso.
Romero adorou a aventura, toda semana repetiam a tarde maravilhosa, por muito tempo. Na virada desse ano, durante o réveillon na praia, um italiano conheceu Clarissa, conversaram, tomaram champanhe, celebraram com fogos a entrada do ano novo, dormiram juntos no hotel. Paolo apaixonou-se pela morenice, pela sensualidade daquela jovem, embarcou para Itália quatro dias depois, levou Clarissa, a jovem está em Gênova. Na véspera da viagem a afilhada explicou ao padrinho o inesperado acontecido, o italiano apaixonou-se, prometeu o mundo à ela. Romero chocou-se. Teve enorme depressão, a tristeza aumenta quando pensa, talvez nunca mais veja sua querida afilhada.
Maria Lúcia acordou-se com leve dor de cabeça, amargo na boca, havia bebido na noite anterior. Ainda deitada desligou o ar condicionado. Veio-lhe a imagem, detalhes da tarde de amor, Marcelo, terno, carinhoso, ao mesmo tempo selvagem, deixou-a em êxtase duas vezes, quase desmaia. Jamais pensou ficar apaixonada por um homem mais velho, poderia ser seu pai. Lucinha não tinha algum sentimento de culpa, não importava aquela situação camuflada, pouquíssimos amigos sabiam do caso. Sem problema ou preconceito em amar um homem mais velho e casado. Bem melhor que Julião, ex marido, Marcelo usava a experiência, sabia mexer nos pontos sensíveis de uma mulher, devagar, sem pressa, ficava a explorar sua anatomia, enquanto Julião um desastre na cama, apesar do belo corpo jovem, bebia muito, cheirava; na hora do amor pensava apenas em satisfazer-se. Maria Lúcia aguentou apenas dois anos de casada, não tinha saudade daquela época. Hoje, uma mulher livre, fazia o que queria, até um caso de amor com um homem maduro. Na véspera, depois da estonteante tarde de amor, Maria Lúcia saiu com um grupo de amigos na balada noturna, dançou e bebeu até quae amanhecer o dia
Saiu do devaneio ao olhar o relógio, 11:30 h, levantou-se, abriu a cortina, dia ensolarado, luminosa manhã. O mar de um verde esmeralda misturava um azul turquesa em suas águas, pequenas marolas. Contemplando do alto da janela deu-lhe uma sensação de bem estar, amava sua cidade, sua praia, a vida é bela.
Na sala encontrou os pais, a irmã mais nova.
– “Lucinha querida, a noitada foi boa, sua cara de ressaca não nega.” Entregou a irmã.
– “Foi ótima, saí com as amigas, eu posso, sou adulta, independente, dona do meu nariz”.
Conversavam enquanto Maria Lúcia preparava um lanche na cozinha. O celular tocou, era Dudu. Toda mulher bonita, gostosa, separada, tem um amigo homossexual.
Eduardo não parece homo, não dá para notar sua opção sexual até ele abrir a boca. Lucinha atendeu.
– “Diga Duduzinho querido! Como está vossa excelência?”
– “Estou à toa na vida, quero saber da programação nesse belo sábado, que tal nos encontramos numa barraca de praia, para um bom chope? Depois seja o que Deus quiser. Esse dia ensoralado é um convite para desmantelo.
– “Fechado, uma hora na Barraca Pedra Virada, tem sempre amigos curtindo uma cervejinha”.
A mãe ouvindo a conversa, não perdeu oportunidade para um conselho e um puxão de orelha.
– “Lucinha, você já vai sair? Daqui a pouco fica falada, não arranja outro marido. Esse Dudu parece, mas não é homem, cuidado com a vida. Quero que você se divirta, com juízo.”
– “Minha mãe essa vida é curta, ou eu me divirto ou tenho juízo, os dois são incompatíveis”. Deu uma gargalhada.
Maria Lúcia deu partida no carro rumo ao encontro, tomou a Avenida Beira Mar. De repente, sinal vermelho, ela freou, ficou na espera, ao olhar de lado teve um susto. Seu amado Marcelo entrava num restaurante de mãos dadas com a esposa. Deu-lhe uma sensação de mal estar, acabou-se a alegria, veio-lhe um profundo ciúme do fundo da alma. Precisou uma buzinada para acordá-la ao abrir sinal verde, acelerou o carro, mais adiante parou no acostamento, colocou a cabeça entre as mãos por cima do volante, chorou de raiva e pena de si mesma. Ao se recuperar retomou a Avenida Beira Mar.
Dudu esperava sentado, camisa vermelha, bem penteado, moço bonito, elegante, copo de cerveja na mão, peixinho frito na outra, ao vê-la fez sinal. Lucinha achegou-se devagar, sentou-se, chorou discretamente, queria tomar um porre, contou ao amigo o encontro inesperado com o amado Marcelo.
– “Você diz não ter preconceito, aceita esse amor proibido. Faz análise, tem cabeça boa, não entendo esse choque, esse chilique ao ver Marcelo e a esposa.” Provocou-a Dudu.
– “De mãozinhas dadas! De mãozinhas dadas não dá para aguentar!”
– Depois de velho, você ficou relaxado, coisa feia! Não corta o cabelo, unhas grandes, vou contratar manicure. Se eu morrer você vai virar lobisomem. Vivia reclamando Dona Sílvia aos ouvidos de Fonseca.
Certo sábado, pela manhã, a campanhia do apartamento tocou, uma morena sorridente se apresentou, Aparecida, manicure. Dona Sílvia tirou o marido da leitura dos jornais na varanda, hora de fazer as unhas, ele levantou-se, mais para livrar-se da insistente mulher. Sentou-se na poltrona, cumprimentou a manicure, acionou o controle remoto da televisão. Colocou os pés numa bacia de água quente para amolecer as unhas. Dona Sílvia deixou o marido entregue à manicure, foi às compras, sábado é dia de Shopping, encontro de amigas, só retrnaria na hora do almoço.
Durante o cortar das unhas de mão, Aparecida alisava a de Fonseca com suavidade, ele sentiu uma sensação gostosa, carícia no toque de mãos, olhou para manicure com curiosidade, ficou inquieto ao perceber o generoso decote da manicure, seios duros, empinados, há tempo não excitava-se com uma mulher. Puxou conversa.
– Menina você é a boa manicure, sabe cortar com suavidade, onde aprendeu essa delicadeza?
– Eu precisava de uma profissão, ganhar dinheiro, sustentar minha filha, uma vizinha me ensinou, hoje tenho bons fregueses, não paro de cortar unhas, os clientes gostam. Ser manicure foi muito bom para mim. Ganho meu sustento.
– E seu marido, pai de sua filha, não lhe ajuda?
– Marido não, meu vizinho, namorei com ele, me emprenhou ainda menina, eu tinha 15 anos. Danou-se para o Rio de Janeiro, sonhava ser cantor de rádio e televisão, canta bem. Há mais de cinco anos não tenho notícias dele, soube que é traficante no morro. Por isso vivo com minha mãe.
Conversaram muito, Aparecida contou sua vida severina, comum na periferia do Nordeste. Ao terminar, ele olhou os pés, as mãos, admirou as unhas simetricamente cortadas, perfeitas. Perguntou o preço do serviço, pagou R$ 35,00, cinco a mais do valor pedido. A morena agradeceu, guardou o material. Fonseca ficou encantado ao perceber o corpo da morena dentro do vestido azul claro, quase transparente. Aparecida despediu-se perguntando quando retornava. Venha no próximo sábado, disse com entusiasmo admirando o rebolado da manicure em direção à porta.
Na hora do almoço Dona Sílvia inspecionou as mãos, os pés, do marido, aprovou, perguntou se havia gostado da manicure, Fonseca resmungou, fez-se indiferente, entretanto, a jovem não saía da cabeça.
Dois meses Fonseca alimentou-se de fantasia, sonhava com a morena acariciando seus pés. Ficava feliz desde sexta-feira. Em conversas enquanto cortava unhas, tornaram-se amigos, íntimos, certa vez ela confessou ter sido garota de programa, não gostou. Num sábado cheio de sol, ao pagar a manicure, Fonseca encorajou-se, alisou-lhe o pescoço, o colo, deu-lhe um beijo na testa. Ela reclamou baixinho, “não Seu Fonseca, não…” Ele a trouxe num abraço apertado, beijou-lhe a boca. No apartamento da Ponta Verde, embalado pela carícia do vento Nordeste, em cima do tapete comprado na Capadócia fizeram amor pela primeira vez.
Dona Sílvia ao chegar notou a cara de felicidade do marido tomando uma cervejinha, cantando na varanda, achando o mar e a vida bonita. Convidou a mulher para almoçar, variar de comida, de tempero, foram à Barraca Pedra Virada na orla da Ponta Verde, encontraram amigos, passaram uma tarde maravilhosa conversando, uísque de combustível. Ao chegar em casa amaram-se como nunca mais tinham amado. Dona Sílvia, antes de adormecer, conseguiu perguntar, o que deu em você hoje?
Fonseca, homem decente, conversou sério com a manicure, não ficava bem fazer amor dentro de sua casa, era falta de respeito. Marcou, estabeleceu com Aparecida, encontram-se uma vez por semana para deliciosa tarde de amor, com ajutório. Fonseca está sentindo-se mais jovem, cabelo cortado, camisa da moda. Nunca mais Dona Sílvia reclamou o relaxamento do marido.
Nesse final de ano recebi um presente, o livro, “SE FOR PRA CHORAR QUE SEJA DE ALEGRIA” de meu querido amigo Ignácio Loyola Brandão, jornalista, ator, o
escritor brasileiro mais lido no país e no estrangeiro.
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Uma dedicatória gentil, generosa, deixou-me emocionado, “Para o grande Carlito, que me deu o título deste livro, com a amizade de sempre”. No final do livro cheio de histórias e crônicas fascinantes, Ignácio explica o título.
“Final de ano é também momento de desejar boas-festas. Mas todas as frases, todos os cartões, tudo foi esgotado, virou clichê, lugar-comum, banalidade. Estava no computador buscando alguma originalidade, porque é o que esperam de mim. Aí travei! De repente, meu amigo Carlito Lima, de Marechal Deodoro, cidadezinha vizinha a Maceió, me salvou. Carlito organiza um dos menores e mais amados festivais de literatura do Brasil, FLIMAR (Festa Literária de Marechal Deodoro), pequeno, mas com nomes de primeiro time e muito companheirismo. Pois repasso aos leitores os desejos de Carlito. Vejam que delícia. Podem usar.
Alguns desejos para o próximo ano novo.
Se existir guerra, que seja de travesseiro.
Se for pra prender, que seja o cabelo.
Se existir fome, que seja de amor.
Se for pra atirar, que seja o pau no gato-t-ó-tó.
Se for pra atacar, que seja pela pontas.
Se for pra enganar, que seja o estômago.
Se for pra armar, que arme um circo.
Se for pra chorar, que seja de alegria.
Se for pra assaltar, que seja a geladeira.
Se for para mentir, que seja a idade.
Se for para algemar, que se algeme na cama.
Se for pra roubar, que seja um beijo.
Se for pra afogar, que afogue o ganso.
Se for pra perder, que seja o medo.
Se for pra brigar que briguem as aranhas.
Se for pra doer, que doa a saudade.
Se for pra cair, que caia na gandaia.
Se for pra morrer, que morra de amores.
Se for pra tomar, que tome um vinho.
Se for pra queimar, que queime um fumo.
Se for pra garfar, que garfe um macarrone.
Se for pra enforcar, que enforque a aula.
Se for pra ser feliz, que seja o tempo todo.
Não vacilei (continua Ignácio) copiei e enviei para vários amigos, inclusive ao Chico Buarque, devia uma mensagem a ele. Meia hora depois veio a resposta.
Adendo para adictos:
Se for pra cheirar, que seja a flor.
Se for pra fumar, que seja a cobra.
Se for pra picar, que seja a mula.
Obs. de Ignácio. – Pensando nas novas gerações, esclareço: “a cobra está fumando” era a expressão que os soldados brasileiros, chamados de pracinhas, que lutavam na Europa na última Grande Guerra, usavam ao atacar o inimigo.”
Assim Ignácio Loyola Brandão encerra seu novo livro, encantador. Aproveito para enviar aos amigos, novamente, esses desejos de ano novo, em meu nome, em nome do Loyola e do meu novo parceiro, Chico Buarque. Um ótimo 2017.