Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quinta, 06 de dezembro de 2018

MADRUGADA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

MADRUGADA

Ferreira Gullar

 

Do fundo de meu quarto, do fundo 
de meu corpo 
clandestino 
ouço (não vejo) ouço 
crescer no osso e no músculo da noite 
a noite 

a noite ocidental obscenamente acesa 
sobre meu país dividido em classes 


Poemas e Poesias quarta, 05 de dezembro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 15 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILÓSÓFICA 15

Eno Teodoro Wanke

 

O destino despetala

A rosa... Porém, ainda

Resta a lembrança, que fala

De quanto a rosa era linda

 

 


Poemas e Poesias terça, 04 de dezembro de 2018

DORMINDO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

DORMINDO

Cruz e Sousa

 

Pálida, bela, escultural, clorótica
Sobre o divã suavíssimo deitada,
Ela lembrava – a pálpebra cerrada –
Uma ilusão esplendida de ótica.

A peregrina carnação das formas,
– o sensual e límpido contorno,
Tinham esse quê de avérnico e de morno,
Davam a Zola as mais corretas normas!…

Ela dormia como a Vênus casta
E a negra coma aveludada e basta
Lhe resvalava sobre o doce flanco…

Enquanto o luar – pela janela aberta –
– como uma vaga exclamação – incerta
Entrava a flux – cascateado – branco!!…


Poemas e Poesias domingo, 02 de dezembro de 2018

NO BARCO (11ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

NO BARCO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

— Lucas — Maria! murmuraram juntos...
E a moça em pranto lhe caiu nos braços.
Jamais a parasita em flóreos laços
Assim lígou-se ao piquiá robusto...

Eram-lhe as tranças a cair no busto
Os esparsos festões da granadilha...
Tépido aljofar o seu pranto brilha,
Depois resvala no moreno seio...

Oh! doces horas de suave enleio!
Quando o peito da virgem mais arqueja,
Como o casal da rola sertaneja,
Se a ventania lhe sacode o ninho.

Cantai, ó brisas, mas cantai baixinho!
Passai, ó vagas..., mais passai de manso!
Não perturbeis-lhe o plácido remanso,
Vozes do ar! emanações do rio!

"Maria, falara — "Que acordar sombrio",
Murmura a triste com um sorriso louco,
"No Paraíso eu descansava um pouco...
Tu me fizeste despertar na vida ...

"Por que não me deixaste assim pendida
Morrer coa fronte oculta no teu peito?
Lembrei-me os sonhos do materno leito
Nesse momento divinal ... Quimporta? ...

"Toda esperança para mim sta morta...
Sou flor manchada por cruel serpente...
56 de encontro nas rochas pode a enchente
Lavar-me as nódoas, mesfolhado a vida.

"Deíxa-me! Deixa-me a vagar perdida
Tu! — Partel Volve para os lares teus.
Nada perguntes... é um segredo horrível...
Eu te amo ainda... mas agora — adeus!"

 


Poemas e Poesias sábado, 01 de dezembro de 2018

SONETO DE TODOS OS CORNOS (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DE TODOS OS CORNOS

Bocage

 

 

Não lamentes, Alcino, o teu estado,
Corno tem sido muita gente boa;
Corníssimos fidalgos tem Lisboa,
Milhões de vezes cornos têm reinado.

Siqueu foi corno, e corno de um soldado:
Marco Antonio por corno perdeu a c’roa;
Anfitrião com toda a sua proa
Na Fábula não passa por honrado;

Um rei Fernando foi cabrão famoso
(Segundo a antiga letra da gazeta)
E entre mil cornos expirou vaidoso;

Tudo no mundo é sujeito à greta:
Não fiques mais, Alcino, duvidoso
Que isto de ser corno é tudo peta.

 

 


Poemas e Poesias sexta, 30 de novembro de 2018

BUDISMO MODERNO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

BUDISMO MODERNO

Augusto dos Anjos

 

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca dextra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!


Poemas e Poesias quinta, 29 de novembro de 2018

NIRVANA (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

NIRVANA

Antero de Quental

 

Viver assim: sem ciúmes, sem saudades, 
Sem amor, sem anseios, sem carinhos, 
Livre de angústias e felicidades, 
Deixando pelo chão rosas e espinhos; 

Poder viver em todas as idades; 
Poder andar por todos os caminhos; 
Indiferente ao bem e às falsidades, 
Confundindo chacais e passarinhos; 

Passear pela terra, e achar tristonho 
Tudo que em torno se vê, nela espalhado; 
A vida olhar como através de um sonho; 

Chegar onde eu cheguei, subir à altura 
Onde agora me encontro - é ter chegado 
Aos extremos da Paz e da Ventura! 


Poemas e Poesias quarta, 28 de novembro de 2018

ISMÁLIA (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ISMÁLIA

Alphonsus Guimaraens

 

 

Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar

No sonho em que se perdeu
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu
Queria descer ao mar

E num desvario seu
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu
Estava longe do mar

E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu
Queria a lua do mar

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma subiu ao céu
Seu corpo desceu ao mar


Poemas e Poesias terça, 27 de novembro de 2018

OFÉLIA (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

OFÉLIA

Raimundo Correia

 

Num recesso da selva ínvia e sombria,
Estrelada de flores, vicejante,
Onde um rio entre seixos, espumante, 
Cursando o vale, túrgido, fluía;

A coma esparsa, lívido o semblante, 
Desvairados os olhos, como fria
Aparição dos túmulos, um dia 
Surgiu de Hamlet a lacrimosa amante;

Símplices flores o seu porte lindo
Ornavam... como um pranto, iam caindo 
As folhas de um salgueiro na corrente...

E na corrente ela também tombando, 
Foi-se-lhe o corpo alvíssimo boiando
Por sobre as águas indolentemente.


Poemas e Poesias segunda, 26 de novembro de 2018

COISAS DO MEU SERTÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

COISAS DO MEU SERTÃO

Patativa do Assaré

 

 

Seu dotô, que é da cidade
Tem diproma e posição
E estudou derne minino
Sem perdê uma lição,
Conhece o nome dos rios,
Que corre inriba do chão,
Sabe o nome de estrela
Que forma constelação,
Conhece todas as coisa
Da historia da criação
E agora qué i na Lua
Causando admiração,
Vou fazê uma pergunta,
Me preste bem atenção:
Pruque não quis aprendê
As coisa do meu sertão?

Por favô, não negue não
Quero que o sinhô me diga
Pruquê não quis o roçado
Onde se sofre de fadiga,
Pisando inriba do toco,
Lacraia, cobra e formiga,
Cocerento de friêra,
Incalombado de urtiga,
Muntas vez inté duente,
Sofrendo dô de barriga,
Mas o jeito é trabaiá
Que a necessidade obriga.


Poemas e Poesias domingo, 25 de novembro de 2018

NOITE DE INVERNO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

NOITE DE INVERNO

Olavo Bilac

 

Sonho que estás à porta...

Estás – abro-te os braços! – Quase morta,

Quase morta de amor e de ansiedade...

De onde ouviste o meu grito, que voava,

E sobre as asas trêmulas levava

As preces da saudade?

 

Corro à porta... ninguém! Silêncio e treva.

Hirta, na sombra, a Solidão eleva

Os longos braços rígidos, de gelo...

E há pelo corredor ermo e comprido

O suave rumor de teu vestido,

E o perfume subtil de teu cabelo.

 

Ah! Se agora chegasses!

Se eu sentisse bater em minhas faces

A luz celeste que teus olhos banha;

Se este quarto se enchesse de repente

Da melodia, e do clarão ardente

Que os passos te acompanha:

 

Beijos, presos no cárcere da boca,

Sofreando a custo toda a sede louca,

Toda a sede infinita que os devora,

- Beijos de fogo, palpitando, cheios

De gritos, de gemidos e de anseios,

Transbordariam por teu corpo afora!...

 

Rio aceso, banhando

Teu corpo, cada beijo, rutilando,

Se apressaria, acachoado e grosso:

E, cascateando, em pérolas desfeito,

Subiria a colina de teu peito,

Lambendo-te o pescoço...

 

Estrela humana que do céu desceste!

Desterrada do céu, a luz perdeste

Dos fulvos raios, amplos e serenos;

E na pele morena e perfumada

Guardaste apenas essa cor dourada

Que é a mesma cor de Sírius e de Vênus.

 

Sob a chuva de fogo

De meus beijos, amor! Terias logo

Todo o esplendor do brilho primitivo;

E, eternamente presa entre meus braços,

Bela, protegerias os meus passos,

-Astro formoso e vivo!

 

Mas... talvez te ofendesse o meu desejo...

E, ao teu contato gélido, meu beijo

Fosse cair por terra, desprezado...

Embora! Que eu ao menos te olharia,

E, presa do respeito, ficaria

Silencioso e imóvel a teu lado.

 

Fitando o olhar ansioso

No teu, lendo esse livro misterioso,

Eu descortinaria a minha sorte...

Até que ouvisse, desse olhar ao fundo,

Soar, num dobre lúgubre e profundo,

A hora da minha morte!

 

Longe embora de mim teu pensamento,

Ouvirias aqui, louco e violento,

Bater meu coração em cada canto;

E ouvirias, como uma melopeia,

Longe embora de mim a tua ideia,

A música abafada de meu pranto.

 

Dormirias, querida...

E eu, guardando-te, bela e adormecida,

Orgulhoso e feliz com o meu tesouro,

Tiraria os meus versos do abandono,

E eles embalariam o teu sono,

Como uma rede de ouro.

 

Mas não bens! Não virás! Silêncio e treva...

Hirta, na sombra, a Solidão eleva

Os longos braços rígidos de gelo;

E há, pelo corredor ermo e comprido,

O suave rumor de teu vestido

E o perfume subtil de teu cabelo...


Poemas e Poesias sábado, 24 de novembro de 2018

A SERRA DO ROLA-MOÇA (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

A SERRA DO ROLA-MOÇA

Mário de Andrade

 

 

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...

Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.

Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.

Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.

Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz ...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.


Poemas e Poesias sexta, 23 de novembro de 2018

ESPINOSA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ESPINOSA

Machado de Assis

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.


Poemas e Poesias quinta, 22 de novembro de 2018

O HERÓI (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

O HERÓI 

Ferreira Gullar

 

Ele amadurece

Alhures

Certas frutass

Fende seu açúcar

 

Que ele seja palha

Mas seja toque

 

Vida, sabes a urina

Neste obsceno claustro


Poemas e Poesias quarta, 21 de novembro de 2018

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA -14 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 14

Eno Teodoro Wanke

 

 

Felicidade consiste

Às vezes, num quase nada

O encanto de um verso triste

Vibrando na madrugada


Poemas e Poesias terça, 20 de novembro de 2018

APÓS O NOIVADO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUZA

APÓS O NOIVADO

Cruz e Sousa

 

Em flácido divã ela resvala

Na alcova — bem feliz, alegremente,

E o fresco penteador alvinitente,

De nardo e benjoim o aroma exala.

 

E o noivo todo amor, assim lhe fala,

Por entre vibrações do olhar ardente:

Pertences-me afinal, pomba dormente,

Parece que a razão de gozo, estala.

 

Mas eis — corre-se então nívea cortina;

E a plácida, a ideal, a branca lua

Derrama nos vergéis a luz divina...

 

Depois... Oh! Musa audaz, ousada, e nua,

Não rompas esse véu de gaze fina

Que encerra um madrigal — Vamos... recua!...

 


Poemas e Poesias domingo, 18 de novembro de 2018

O NADADOR (10ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

 

O NADADOR

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

 

E-lo que ao rio arroja-se.
As vagas bipartiram-se;
Mas rijas contraíram-se
Por sobre o nadador...
Depois sentreabre lúgubre
Um círculo simbólico...
É o riso diabólico
Do pego zombador!

Mas não! Do abismo — indômito
Surge-me um rosto pálido,
Como o Netuno esquálido,
Que amaina a crina ao mar;
Fita o batel longínquo
Na sombra do crepúsculo...
Rasga com férreo músculo
O rio par a par,
Vagas! Dalilas pérfidas!
Moças, que abris um túmulo,
Quando do amor no cúmulo
Fingis nos abraçar!
O nadador intrépido
Vos toca as tetas cérulas...
E após — zombando — as pérolas
Vos quebra do colar.
Vagas! Curvai-vos tímidas!

Abri fileiras pávidas
Às mãos possantes, ávidas
Do nadador audaz!...
Belo, de força olímpica
— Soltos cabelos úmidos —
Braços hercúleos, túmidos...
o rei dos vendavais!

Mas ai! Lá ruge próxima
A correnteza hórrida,
Como da zona tórrida
A boicininga a urrar...
É lá que o rio indômito,
Como o corcel da Ucrânia,
Rincha a saltar de insânia,
Freme e se atira ao mar.
Tremeste? Não! Quimporta-te
Da correnteza o estríduío?
Se ao longe vês teu ídolo,
Ao longe irás também...
Salta à garupa úmida
Deste corcel titânico...
— Novo Mazeppa oceânico —
Além! além! além!...


Poemas e Poesias sábado, 17 de novembro de 2018

ORAÇÕES (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

ORAÇÕES

Casimiro de Abreu

 

A ***

A alma, como o incenso, ao céu s'eleva
Da férvida oração nas asas puras,
E Deus recebe como um longo hosana
O cântico de amor das criaturas.

Do trono d'ouro que circundam anjos
Sorrindo ao mundo a Virgem-Mãe s'inclina
Ouvindo as vozes d'inocência bela
Dos lábios virginais duma menina.

Da tarde morta o murmurar se cala
Ante a prece infantil, que sobe e voa
Fresca e serena qual perfume doce
Das frescas rosas de gentil coroa.

As doces falas de tua alma santa
Valem mais do que eu valho oh! querubim!
Quando rezares por teu mano
Não t'esqueças também - reza por mim!


Poemas e Poesias sexta, 16 de novembro de 2018

SONETO 083 - AMOR CO A ESPERANÇA JÁ PERDIDA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

SONETO 083

AMOR CO'A ESPERNÇA JÁ PERDIDA

Luís de Camões

 

Amor, co'a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída
me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar-me, que não sei
tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto o quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado,
contenta-te co'as lágrimas que choro.

 


Poemas e Poesias quinta, 15 de novembro de 2018

SONETO DE TODAS AS PUTAS (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO DE TODAS AS PUTAS

Manuel Maria Barbosa Du Bocage

 

 

Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas teem reinado:

Dido foi puta, e puta d'um soldado;
Cleopatra por puta alcança a c'roa;
Tu, Lucrecia, com toda a tua proa,
O teu conno não passa por honrado:

Essa da Russia imperatriz famosa,
Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, ó Nize, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.

Poemas e Poesias quarta, 14 de novembro de 2018

AS CISMAS DO DESTINO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

AS CISMAS DO DESTINO

Augusto dos Anjos

 



I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte 
Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro, 
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro 
Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona 
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.

Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse úbiqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do Cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam 
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, 
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!

Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!

Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos, 
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os actos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia, 
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.

Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto, 
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram 
Da miniatura singular de uma aspa, 
À anatomia mínima da caspa, 
Embriões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!

Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos, 
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos 
A contracção dos gritos instintivos!

Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!

Nessa época que os sábios não ensinam, 
A pedra dura, os montes argilosos 
Criariam feixes de cordões nervosos 
E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O, 
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéias carolíngias!

Era a revolta trágica dos tipos 
Ontogênicos mais elementares, 
Desde os foraminíferos dos mares 
À grei liliputiana dos pólipos.

Todos os personagens da tragédia, 
Cansados de viver na paz de Buda, 
Pareciam pedir com a boca muda 
A ganglionária célula intermédia.

A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!

E apesar de já ser assim tão tarde, 
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita, 
No meu temperamento de covarde!

Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso, 
Vi que, igual a um amniota subterrâneo, 
Jazia atravessada no meu crânio 
A intercessão fatídica do atraso!

A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!

Enterram as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam destarte os blastodermas, 
Em cujo repugnante receptáculo 
Minha perscrutação via o espetáculo 
De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite, 
É que as mulheres ruins ficam sem leite 
E os meninos sem pai morrem de fome!

Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos esponjando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria embele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!

Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!

E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me 
Na vida universal, e, em tudo imerso, 
Fazer da parte abstracta do Universo, 
Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, pior que o remorso do assassino, 
Reboou, tal qual, num fundo de caverna, 
Numa impressionadora voz interna, 
O eco particular do meu Destino:

III

"Homem! por mais que a Idéia desintegres, 
Nessas perquisições que não têm pausa, 
Jamais, magro homem, saberás a causa 
De todos os fenômenos alegres!

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas 
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene 
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!

Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a reflectir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!

A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!

Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!

Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéia
Dás ao sôfrego estudo da ninféia
E de outras plantas dicotiledôneas!

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;

As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;

O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;

Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;

O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre, 
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;

As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;

O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;

A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopéias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;

As projecções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;

O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira mateórica do arco-íris;

Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;

O instinto de procriar, a ânsia legítima 
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;

As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos dez minutos de um acesso de asma;

E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda, 
A morte desgraçada dos açougues...

Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!

Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;

Última das criaturas inferiores 
Governada por átomos mesquinhos, 
Teu pé mata a uberdade dos caminhos 
E esteriliza os ventres geradores!

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno,
Ao sangue dos mamíferos vorazes!

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes 
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes 
Na anatomia horrenda dos detalhes!

O Espaço — esta abstração spenceriana 
Que abrange as relações de coexistência
É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham 
São verdades de luz que os homens olham 
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes 
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges, 
Também prova o princípio de Arquimedes!

A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!

Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!

Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!

Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!"

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o Rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentorde mil línguas insurrectas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos maus dos códigos recentes!

Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.

Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sostenidos de uma endeixa, 
Vinha me às cordas glóticas a queixa 
Das coletividades sofredoras.

O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!

O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.

Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!

Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!


Poemas e Poesias terça, 13 de novembro de 2018

AI DOS QUE VIVEM, SE NÃO FORA O SONO, POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS

AI DOS QUE VIVEM, SE NÃO FORA O SONO

Alphonsus Guimaraens

 

 

Ai dos que vivem, se não fora o sono!
O sol, brilhando em pleno espaço, cai
Em cascatas de luz; desce do trono
E beija a terra inquieta, como um pai.

E surge a primavera. O áureo patrono
Da terra é sempre o mesmo sol. Mas ai
Da primavera, se não fora o outono,
Que vem e vai, e volta, e outra vez vai.

Ao níveo luar que vaga nos outeiros
Sucedem sombras. Sempre a lua tem
A escuridão dos sonhos agoureiros.

Tudo vem, tudo vai, do mundo é a sorte...
Só a vida, que se esvai, não mais nos vem.
Mas ai da vida, se não fora a morte!


Poemas e Poesias segunda, 12 de novembro de 2018

VÉSPER (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

VÉSPER

Raimundo Correia

 

Do seu fastígio azul, serena e fria,
Desce a noite outonal, augusta e bela;
Vésper fulgura além... Vésper! Só ela
Todo o céu, doce e pálida, alumia.

De um mosteiro na cúpula irradia

Com frouxa luz... Em sua humilde cela,
Contemplativa e lânguida à janela, 
Triste freira, fitando-a, se extasia...

Vésper, envolta em deslumbrante alvura, 

Ó nuvens, que ides pelo espaço afora!
A quem tão longo olhar volve da altura?

Que olhar, irmão do seu, procura agora 

Na terra o astro do amor? O olhar procura 
Da solitária freira que o namora.


Poemas e Poesias domingo, 11 de novembro de 2018

DOIS QUADROS (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

 

DOIS QUADROS

Patativa do Assaré

 

 

Dois quadros

Na seca inclemente do nosso Nordeste, 
O sol é mais quente e o céu mais azul 
E o povo se achando sem pão e sem veste, 
Viaja à procura das terra do Sul.

De nuvem no espaço, não há um farrapo, 
Se acaba a esperança da gente roceira, 
Na mesma lagoa da festa do sapo, 
Agita-se o vento levando a poeira.

A grama no campo não nasce, não cresce: 
Outrora este campo tão verde e tão rico, 
Agora é tão quente que até nos parece 
Um forno queimando madeira de angico.

Na copa redonda de algum juazeiro 
A aguda cigarra seu canto desata 
E a linda araponga que chamam Ferreiro, 
Martela o seu ferro por dentro da mata.

O dia desponta mostrando-se ingrato, 
Um manto de cinza por cima da serra 
E o sol do Nordeste nos mostra o retrato 
De um bolo de sangue nascendo da terra.

Porém, quando chove, tudo é riso e festa, 
O campo e a floresta prometem fartura, 
Escutam-se as notas agudas e graves 
Do canto das aves louvando a natura.

Alegre esvoaça e gargalha o jacu, 
Apita o nambu e geme a juriti 
E a brisa farfalha por entre as verduras, 
Beijando os primores do meu Cariri.

De noite notamos as graças eternas 
Nas lindas lanternas de mil vagalumes. 
Na copa da mata os ramos embalam 
E as flores exalam suaves perfumes.

Se o dia desponta, que doce harmonia! 
A gente aprecia o mais belo compasso. 
Além do balido das mansas ovelhas, 
Enxames de abelhas zumbindo no espaço.

E o forte caboclo da sua palhoça, 
No rumo da roça, de marcha apressada 
Vai cheio de vida sorrindo, contente, 
Lançar a semente na terra molhada.

Das mãos deste bravo caboclo roceiro 
Fiel, prazenteiro, modesto e feliz, 
É que o ouro branco sai para o processo 
Fazer o progresso de nosso país.


Poemas e Poesias sábado, 10 de novembro de 2018

IDA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

IDA

Olavo Bilac

 

Para a porta do céu, pálida e bela, 
Ida as asas levanta e as nuvens corta.
Correm os anjos: e a criança morta 
Foge dos anjos namorados dela.


Longe do amor materno o céu que importa?
O pranto os olhos límpidos lhe estrela...
Sob as rosas de neve da capela,
Ida soluça, vendo abrir-se a porta.


Quem lhe dera outra vez o escuro canto 
Da escura terra, onde, a sangrar, sozinho, 
Um coração de mãe desfaz-se em pranto!


Cerra-se a porta: os anjos todos voam. 
Como fica distante aquele ninho, 
Que as mães adoram... mas amaldiçoam!


Poemas e Poesias sexta, 09 de novembro de 2018

ERRO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ERRO

Machado de Assis

 

Erro é teu. Amei-te um dia 
Com esse amor passageiro 
Que nasce na fantasia 
E não chega ao coração; 
Nem foi amor, foi apenas 
Uma ligeira impressão; 
Um querer indiferente, 
Em tua presença vivo, 
Nulo se estavas ausente. 
E se ora me vês esquivo, 
Se, como outrora, não vês 
Meus incensos de poeta 
Ir eu queimar a teus pés, 
É que, — como obra de um dia, 
Passou-me essa fantasia. 

Para eu amar-te devias 
Outra ser e não como eras. 
Tuas frívolas quimeras, 
Teu vão amor de ti mesma, 
Essa pêndula gelada 
Que chamavas coração, 
Eram bem fracos liames 
Para que a alma enamorada 
Me conseguissem prender; 
Foram baldados tentames, 
Saiu contra ti o azar, 
E embora pouca, perdeste 
A glória de me arrastar 
Ao teu carro...Vãs quimeras! 
Para eu amar-te devias 
Outra ser e não como eras... 


Poemas e Poesias quinta, 08 de novembro de 2018

BEATRIZ, POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS

 

BEATRIZ

Humberto de Campos

Bandeirante a sonhar com pedrarias
Com tesouros e minas fabulosas,
Do amor entrei, por ínvias e sombrias
Estradas, as florestas tenebrosas.

Tive sonhos de louco, à Fernão Dias...
Vi tesouros sem conta: entre as umbrosas
Selvas, o outro encontrei, e o ônix, e as frias
Turquesas, e esmeraldas luminosas...

E por eles passei. Vivi sete anos
Na floresta sem fim. Senti ressábios
De amarguras, de dor, de desenganos.

Mas voltei, afinal, vencendo escolhos,
Com o rubi palpitante dos seus lábios
E os dois grandes topázios dos seus olhos!


Poemas e Poesias terça, 06 de novembro de 2018

O CORNETEIRO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

 

O CORNETEIRO

Ferreira Gullar

 

O meu toque

Ergue

Muros reais

 

O meu toque

É palha

As traças o espreitam

 

O meu toque é traça

Palha que se espreita

 

 O meu toque é traço

Letra, sol fictício

 

Ele é pássaro

Cujo voo, sozinho

Se alça

E o pássaro fica


Poemas e Poesias segunda, 05 de novembro de 2018

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 13 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILÓSOFICA - 13

Eno Teodoro Wanke

Desconfio que em teus braços

Reside, morno e feliz

O segredo do fracasso

Das trovas que eu nunca fiz


Poemas e Poesias domingo, 04 de novembro de 2018

NA MAZURKA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

NA MAZURKA

Cruz e Sousa

 

Morava num palácio — estranha Babilônia

De arcadas colossais, de impávidos zimbórios,

Alcovas de damasco e torreões marmóreos,

Volutas primorais de arquitetura jônia.

 

Assim, quando surgia em meio aos peristilos

Descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,

Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,

Cercavam-na do belo os místicos sigilos!

 

E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,

O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,

Vibrava nos salões, como uma adaga turca,

 

Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,

— Nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo...

Ao vê-la escultural no passo da Mazurka...


Poemas e Poesias sexta, 02 de novembro de 2018

DIÁLOGO DOS ECOS (9ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO DO BAIANO CASTRO ALVES)

DIÁLOGO DOS ECOS

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

 

E chegou-se pra a vivenda
Risonho, calmo, feliz...
Escutou... mas só ao longe
Cantavam as juritis...
Murmurou: "Vou surpr’endê-la!"
E a porta ao toque cedeu...
"Talvez agora sonhando
Diz meu nome o lábio seu,
Que a dormir nada prevê..."

E o eco responde: — Vê! ...

"Como a casa está tão triste!
Que aperto no coração! ...
Maria!... Ninguém responde!
Maria, não ouves, não?...
Aqui vejo uma saudade
Nos braços de sua cruz...
Que querem dizer tais prantos,
Que rolam tantos, tantos,
Sobre as faces da saudade
Sobre os braços de Jesus?...
Oh! quem me empresta uma luz?...
Quem me arranca a ansiedade,
Que no meu peito nasceu?
Quem deste negro mistério
Me rasga o sombrio véu?...

E o eco responde: — Eu! ...

E chegou-se para o leito
Da casta flor do sertão...
Apertou coa mão convulsa
O punhal e o coração! ...
Stava inda tépido o ninho
Cheio de aromas suaves...
E — como a pena, que as aves
Deixam no musgo ao voar, —
Um anel de seus cabelos
Jazia cortado a esmo
Como relíquia no altar! ...
Talvez prendendo nos elos
Mil suspiros, mil anelos,
Mil soluços, mil desvelos,
Que ela deu-lhes pra guardar!...
E o pranto em baga a rolar ...

"Onde a pomba foi perder-se?
Que céu minha estrela encerra?
Maria, pobre criança,
Que fazes tu sobre a terra?"

E o eco responde: — Erra!

"Partiste! Nem te lembraste
Deste martírio sem fim!...
Não! perdoa... tu choraste
E os prantos, que derramaste
Foram vertidos por mim...
Houve pois um braço estranho
Robusto, feroz, tamanho,
Que pôde esmagar-te assim?...

E o eco responde: — Sim!

E rugiu: "Vingança! guerra!
Pela flor, que me deixaste,
Pela cruz em que rezaste,
E que teus prantos encerra!
Eu juro guerra de morte
A quem feriu desta sorte
O anjo puro da terra...
Vê como este braço é forte!
Vê como é rijo este ferro !
Meu golpe é certo... não erro.
Onde há sangue, sangue escorre!...
Vilão! Deste ferro e braço,
Nem a terra, nem o espaço,
Nem mesmo Deus te socorre !!..."

E o eco responde: — Corre !
Como o cão ele em tomo o ar aspira,
Depois se orientou.
Fareja as ervas... descobriu a pista
E rápido marchou.

....................................

No entanto sobre as águas, que cintilam,
Como o dorso de enorme crocodilo,
Já manso e manso escoa-se a canoa;
Parecia assim vista — ao sol poente —
Esses ninhos, que o vento lança às águas,
E que na enchente vão boiando à toa! ...


Poemas e Poesias quinta, 01 de novembro de 2018

POESIA E AMOR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

POESIA E AMOR

Casimiro de Abreu

 

 

A tarde que expira,
A flor que suspira,
O canto da lira,
Da lua o clarão;
Dos mares na raia
A luz que desmaia,
E as ondas na praia
Lambendo-lhe o chão;

Da noite a harmonia
Melhor que a do dia,
E a viva ardentia
Das águas do mar;
A virgem incauta,
As vozes da flauta,
E o canto do nauta
Chorando o seu lar;

Os trêmulos lumes,
Da fonte os queixumes,
E os meigos perfumes
Que solta o vergel;
As noites brilhantes,
E os doces instantes
Dos noivos amantes
Na lua de mel;

Do templo nas naves
As notas suaves,
E o trino das aves
Saudando o arrebol;
As tardes estivas,
E as rosas lascivas
Erguendo-se altivas
Aos raios do sol;

A gota de orvalho
Tremendo no galho
Do velho carvalho,
Nas folhas do ingá;
O bater do seio,
Dos bosques no meio
O doce gorjeio
Dalgum sabiá;

A órfã que chora,
A flor que se cora
Aos raios da aurora,
No albor da manhã;
Os sonhos eternos,
Os gozos mais ternos,
Os beijos maternos
E as vozes de irmã;

O sino da torre
Carpindo quem morre,
E o rio que corre
Banhando o chorão;
O triste que vela
Cantando à donzela
A trova singela
Do seu coração;

A luz da alvorada,
E a nuvem dourada
Qual berço de fada
Num céu todo azul;
No lago e nos brejos
Os férvidos beijos
E os loucos bafejos
Das brisas do sul;

Toda essa ternura
Que a rica natura
Soletra e murmura
Nos hálitos seus,
Da terra os encantos,
Das noites os prantos,
São hinos, são cantos
Que sobem a Deus!

Os trêmulos lumes,
Da veiga os perfumes,
Da fonte os queixumes,
Dos prados a flor,
Do mar a ardentia
Da noite a harmonia,
Tudo isso é – poesia!
Tudo isso é – amor!


Poemas e Poesias quarta, 31 de outubro de 2018

SONETO 080 - ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

SONETO 080

ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE

Luís de Camões

 

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou 
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


Poemas e Poesias terça, 30 de outubro de 2018

SONETO AO ARCADE FRANÇA (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO AO ARCADE FRANÇA

Manuel Maria Barbosa Du Bocage

 

No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França: 
 
Este, com mogigangas de criança,
Com a mão pelos ovos encrespada,
Brandia sobre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança:
 
Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo meneia, e sua o bicho,
Que em Bocage o tesão vence a vergonha:
 
Quis vir-me por luxúria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-lhe alva langonha
Rebenta-lhe do cu merdoso esguicho.


Poemas e Poesias segunda, 29 de outubro de 2018

DEBAIXO DO TAMARINDO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

DEBAIXO DO TAMARINDO

Augusto dos Anjos

 

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei biliões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!


Poemas e Poesias domingo, 28 de outubro de 2018

PLENILÚNIO (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

PLENILÚNIO

Raimundo Correia

 

Além nos ares, tremulamente, 
Que visão branca das nuvens sai! 
Luz entre as franças, fria e silente; 
Assim nos ares, tremulamente, 
Balão aceso subindo vai...

Há tantos olhos nela arroubados, 
No magnetismo do seu fulgor! 
Lua dos tristes e enamorados, 
Golfão de cismas fascinador!

Astro dos loucos, sol da demência, 
Vaga, noctâmbula aparição! 
Quantos, bebendo-te a refulgência, 
Quantos por isso, sol da demência, 
Lua dos loucos, loucos estão!

Quantos à noite, de alva sereia 
O falaz canto na febre a ouvir, 
No argênteo fluxo da lua cheia, 
Alucinados se deixam ir...

Também outrora, num mar de lua, 
Voguei na esteira de um louco ideal; 
Exposta aos euros a fronte nua, 
Dei-me ao relento, num mar de lua, 
Banhos de lua que fazem mal.

Ah! quantas vezes, absorto nela, 
Por horas mortas postar-me vim 
Cogitabundo, triste, à janela, 
Tardas vigílias passando assim!

E assim, fitando-a noites inteiras, 
Seu disco argênteo n'alma imprimi; 
Olhos pisados, fundas olheiras, 
Passei fitando-a noites inteiras, 
Fitei-a tanto que enlouqueci!

Tantos serenos tão doentios, 
Friagens tantas padeci eu; 
Chuva de raios de prata frios 
A fronte em brasa me arrefeceu!

Lunárias flores, ao feral lume, 
-Caçoilas de ópio, de embriaguez- 
Evaporavam letal perfume... 
E os lençóis d'água, do feral lume 
Se amortalhavam na lividez...

Fúlgida névoa vem-me ofuscante 
De um pesadelo de luz encher, 
E a tudo em roda, desde esse instante, 
Da cor da lua começo a ver.

E erguem por vias enluaradas 
Minhas sandálias chispas a flux... 
Há pó de estrelas pelas estradas... 
E por estradas enluaradas 
Eu sigo às tontas, cego de luz...

Um luar amplo me inunda, e eu ando 
Em visionária luz a nadar. 
Por toda parte louco arrastando 
O largo manto do meu luar...


Poemas e Poesias sábado, 27 de outubro de 2018

A ESCRAVA DO DINHEIRO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A ESCRAVA DO DINHEIRO

Patativa do Assaré 

 

A sua fala não era

Como as fala do sertão.

Tinha todo o requifife

Da coisa de inducação,

Mas não valia de nada,

Era inducação formada

De pena, tinta e papé.

Era inducação no jeito,

Mas tinha dentro do peito

Veneno de cascavé.

 

Naquela noite de festa,

Provou com seu mau costume

Que a inducação dele era

Fora do santo rejume.

Quando ele oiou pra Regina,

Pra beleza da menina,

Vi logo que ele ficou

Mardando e se penerando,

Como gavião oiando

Pra rola fogo-pagou.

 

Regina oiava pra ele

Mas sem pensá em xodó,

Sua ceguêra era o enfeito

Da gola do palitó,

Eu tava vendo e sabia

Que não era simpatia,

Era inveja, era imbição,

Não era amô nem caboje,

Era os ôro, era o reloge,

A corrente e os anelão.

 

Agora vocemincêis

Preste atenção e me escute,

Pra sabê como o dinhêro

Faz a pintura do fute.

Apois aquele sujeito,

Me fartando com o respeito

E abrindo pertinho d’eu

Uma borsa atopetada

De nota verde e rajada,

Regina se derreteu.

 

Regina se transformou

E com inveja sem fim

Piscava os óio pro cara,

Sem querê sabê de mim.

E pra encurtá minha histora,

Mais tarde umas certas hora

Qué sabê o que ela fez?

Me engabelou sem escrupo

E logo, traz-zás num vupo,

Foi se embora com o freguês.

 

Pras banda do Pioí

O descarado azulou,

Com Regina, a sertaneja,

A causa da minha dô.

Por isso é que eu disse e digo:

Dinhêro é grande inimigo,

Dinhêro é farso e crué,

E ainda mais faz afronta

Quando ele toma de conta

De um coração de muié.

 

Ninguém vá pensá que eu conto

Histora que uvi contá,

Isso se passô comigo

Numa noite de Natá,

Vinte e quatro de dezembro.

Inda hoje, quando me lembro

Daquela farsa Regina,

Daquela ingrata cabôca,

Eu sinto no céu da boca

Um gosto de quina-quina.

 

Já tou véio e sou casado,

Não tenho mais inlusão,

Mas inda vejo Regina

Na minha maginação,

Essa mágua inda padeço,

Pelejo mas não me esqueço

Do má que ela fez a mim,

Inda me fere e me dói,

Não sei pra que Deus estrói

Beleza com gente ruim.

 

Ô natureza de cobra!

Bem dizia o meu avô

Que há gente pra tudo e sobra

Neste mundo enganadô.

Eu fiquei horrorizado,

Quage doido, amalucado,

De vê aquela muié

Se atranvancá nos abismo

Por causa de uns argarismo

E uns pedaço de papé.

 

Dinhêro é um fogo ardente

Que faz munto coração

Se derretê como cera

Na quintura do tição.

Dinhêro trensforma tudo,

Faz de um alegre um sisudo,

Dá nó e desmancha nó,

E finalmente o dinhêro

É o maió feiticêro,

É o Rei do Catimbó.


Poemas e Poesias sexta, 26 de outubro de 2018

O CAVALEIRO POBRE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O CAVALEIRO POBRE

Olavo Bilac

 

Ninguém soube quem era o Cavaleiro Pobre,

Que viveu solitário, e morreu sem falar:

Era simples e sóbrio, era valente e nobre,

E pálido como o luar.

 

Antes de se entregar às fadigas da guerra,

Dizem que um dia viu qualquer cousa do céu:

E achou tudo vazio... e pareceu-lhe a terra

Um vasto e inútil mausoléu.

 

Desde então, uma atroz devoradora chama

Calcinou-lhe o desejo, e o reduziu a pó.

E nunca mais o Pobre olhou uma só dama,

- Nem uma só! Nem uma só!

 

Conservou, desde então, a viseira abaixada:

E, fiel à Visão, e ao seu amor fiel,

Trazia uma inscrição de três letras, gravada

A fogo e sangue no broquel.

 

Foi aos prélios da Fé. Na Palestina, quando,

No ardor do seu guerreiro e piedoso mister,

Cada filho da Cruz se batia, invocando

Um nome caro de mulher,

 

Ela rouco, brandindo o pique no ar, clamava:

“Lumen coeli Regina!” E, ao clamor dessa voz,

Nas hostes dos incréus como uma tromba entrava,

Irresistível e feroz.

 

Mil vezes sem morrer viu a morte de perto,

E negou-lhe o destino outra vida melhor:

Foi viver no deserto... E era imenso o deserto!

Mas o seu Sonho era maior!

 

E um dia, a se estorcer, aos saltos, desgrenhado,

Louco, velho, feroz, - naquela solidão

Morreu: - mudo, rilhando os dentes, devorado

Pelo seu próprio coração.


Poemas e Poesias quinta, 25 de outubro de 2018

CÍRCULO VICIOSO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

CÍRCULO VICIOSO

Machado de Assis

 

 

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
“Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!
“Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela
“Mas a lua, fitando o sol com azedume:

“Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume”!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:


Pesa-me esta brilhante auréola de nume…
Enfara-me esta luz e desmedida umbela…
Por que não nasci eu um simples vagalume?”…


Poemas e Poesias quarta, 24 de outubro de 2018

RETROSPECTO (POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

RETROSPECTO

Humberto de Campos

Vinte e seis anos, trinta amores: trinta 
vezes a alma de sonhos fatigada. 
e, ao fim de tudo, como ao fim de cada 
amor, a alma de amor sempre faminta! 

Ó mocidade que foges! brada 
aos meus ouvidos teu futuro, e pinta 
aos meus olhos mortais, com toda a tinta, 
os remorsos da vida dissipada! 

Derramo os olhos por mim mesmo... E, nesta 
muda consulta ao coração cansado, 
que é que vejo? que sinto? que me resta? 

Nada: ao fim do caminho percorrido, 
o ódio de trinta vezes ter jurado 
e o horror de trinta vezes ter mentido!


Poemas e Poesias segunda, 22 de outubro de 2018

A BAIONETA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A BAIONETA

Ferreira Gullar

 

Defendo

a fome que

no aço come;

a felcidade

do vrerão das armas;

e, sobretudo, uma

mentira:

para os que não amam

o comércio

nemo cultivo

de cerejas

nem os riscos 

da avicultura


Poemas e Poesias domingo, 21 de outubro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 12 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA 12

Eno Teodoro Wanke

 

Aquele mulher que eu ponho

Em secredo, em meus anseios

Tem alma tecida en sonhos

E leva a aurora nos seios

 


Poemas e Poesias sábado, 20 de outubro de 2018

MUSAS DE TODOS OS TEMPOS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

 

MUSAS DE TODOS OS TEMPOS

SONETO

(O desembarque de Julieta dos Santos)

 

Chegou enfim, e o desembarque dela

Causou-me logo uma impressão divina!

É meiga, pura como sã bonina,

Nos olhos vivos doce luz revela!

 

É graciosa, sacudida e bela,

Não tem os gestos de qualquer menina:

Parece um gênio que seduz, fascina,

Tão atraente, singular é ela!

 

Chegou, enfim! eu murmurei contente!

Fez-se em minh’alma purpurina aurora,

O entusiasmo me brotou fervente!

 

Vimos-lhe apenas a construção sonora,

Vimos a larva, nada mais, somente

Falta-nos ver a borboleta agora!

 


Poemas e Poesias quinta, 18 de outubro de 2018

A SENZALA (8ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

A SENZALA

Castro Alves

(Do poema a Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Qual o veado, que buscou o aprisco,
Balindo arisco, para a cerva corre...
ou como o pombo, que os arrulos solta,
Se ao ninho volta, quando a tarde morre...,

Assim, cantando a pastoril balada,
Já na esplanada o lenhador chegou.
Para a cabana da gentil Maria
Com que alegria a suspirar marchou!

Ei-la a casinha... tão pequena e bela!
Como é singela com seus brancos muros!
Que liso teto de sapé doirado!
Que ar engraçado! que perfumes puros!

Abre a janela para o campo verde,
Que além se perde pelos cerros nus...
A testa enfeita da infantil choupana
Verde liana de festões azuis. I

É este o galho da rolinha brava,
Aonde a escrava seu viver abriga...
Canta a jandaia sobre a curva rama
E alegre chama sua dona amiga.

Aqui naurora, abandonando os ninhos,
Os passarinhos vêm pedir-lhe pão;
Pousam-lhe alegres nos cabelos bastos,
Nos seios castos, na pequena mão.


Poemas e Poesias quarta, 17 de outubro de 2018

SETE DE SETEMBRO - A DOM PEDRO II

SETE DE SETEMBRO

Casimiro de Abreu

 

A D.Pedro II

I
Foi um dia de glória! - O povo altivo
Trocou sorrindo as vozes de cativo
Pelo cantar das festas!
O leão indomável do deserto
Bramiu soberbo, dos grilhões liberto,
No meio das florestas!

Lá no Ipiranga do Brasil o Marte
Enrolado nas dobras do estandarte
Erguia o augusto porte;
Cercada a fronte dos lauréis da glória
Soltou tremendo brado da vitória:
- Independência ou morte!

O santo amor dos corações ardentes
Achou eco no peito dos valentes
No campo e na cidade;
E nos salões - do pescador nos lares,
Livres soaram hinos populares
À voz da liberdade!

II
Anos correram; - no torrão fecundo
Ao sol de fogo deste novo-mundo
A semente brotou;
E franca e leda, a geração nascente
À copa altiva da árvore frondente
Segura se abrigou!

A roda da bandeira sacrossanta
Um povo esperançoso se levanta
Infante e a sorrir!
A nação do letargo se desperta,
E - livre - marcha pela estrada aberta
Às glórias do porvir!

O país, n'alegria todo imerso,
Velava atento à roda só dum berço.
Era o vosso, Senhor!
Vós do tronco feliz doce renovo,
Vede agora, Senhor, na voz do povo
Quão grande é seu amor!


Poemas e Poesias terça, 16 de outubro de 2018

SONETO 013 - ALEGRES CAMPOS, VERDES ARVOREDOS (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

SONETO 013

ALEGRES CAMPOS, VERDES ARVOREDOS

Luís de Camões

 

 

Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual,
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
Regando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.


Poemas e Poesias segunda, 15 de outubro de 2018

SONETO (DES) PEJADO (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO (DES) PEJADO

Manuel Maria Barbosa Du Bocage

 

 

Num capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe fui (oh céus) metendo
O meu caralho, que de amor fervia:
 
Entre o susto, entre o pejo a moça ardia;
E eu solapado os beijos remordendo,
Pela fisga da saia a mão crescendo
A chamada sacana lhe fazia:
 
Entra a vir-se a menina... Ah! que vergonha!
"Que tens?" — lhe diz a mãe sobressaltada:
Não pode ela encobrir na mão langonha:
 
Sufocada ficou, a mãe corada:
Finda a partida, e mais do que medonha
A noite começou de bofetada.


Poemas e Poesias domingo, 14 de outubro de 2018

O DEUS-VERME (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

O DEUS-VERME

Augusto dos Anjos

 

Fator universal do transformismo,

Filho da teleológica matéria,

Na superabundância ou na miséria,

Verme — é o seu nome obscuro de batismo.

 

Jamais emprega o acérrimo exorcismo

Em sua diária ocupação funérea,

E vive em contubérnio com a bactéria,

Livre das roupas do antropomorfismo.

 

Almoça a podridão das drupas agras,

Janta hidrópicos, rói vísceras magras

E dos defuntos novos incha a mão...

 

Ah! Para ele é que a carne podre fica,

E no inventário da matéria rica

Cabe aos seus filhos a maior porção!


Poemas e Poesias sábado, 13 de outubro de 2018

NUVEM BRANCA (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

NUVEM BRANCA

Raimundo Correia

 

Dizei-me: é ela a noiva casta e pura,
Que no alvor dessa nuvem rutilante,
Passa agora? Dizei-me, nesse instante,
Turbilhões de translúcida brancura;

Colar, broches de pérolas e opalas;
Gaza que, em níveos flocos, por formosas,
Rijas pomas de mármore, ondulosas
Curvas e espáduas de marfim, resvalas...

Dizei-me, branca, virginal capela;
Nítida espuma de nevadas rendas;
Alvos botões de laranjeira; prendas
Simbólicas do amor; dizei-me: é ela?

É ela a noiva? É mesto, ou prazenteiro,
Seu doce olhar? Sorri alegre, ou chora, 
Seu semblante gentil oculto agora
Do espesso véu no alvíssimo nevoeiro?

É ela, sim! Su’alma, entre os fulgores 
Das claras tochas cândidas e ardentes,
Nas querúbicas asas transparentes, 
Voa, festiva, a um tálamo de flores...

Mistérios nupciais, só vos devassa 
Um louco amante! Ao seu olhar ansioso
Velais debalde o arcanjo, o astro radioso
Que, dentro dessa nuvem branca, passa...


Poemas e Poesias sexta, 12 de outubro de 2018

O INFERNO, O PARAÍSO E O PURGATÓRIO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

 

 
 
 
O INFERNO, O PURGATÓRIO E O PARAÍSO
Patativa do Assaré
 
 
 
 
Pela estrada da vida nós seguimos,
Cada qual procurando melhorar,
Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos,
Desejamos, na mente, interpretar,
Pois nós todos na terra possuímos
O sagrado direito de pensar,
Neste mundo de Deus, olho e diviso
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
 
Este Inferno, que temos bem visível
E repleto de cenas de tortura,
Onde nota-se o drama triste horrível
De lamentos e gritos de loucura
E onde muitos estão no mesmo nível
De indigência, desgraça e desventura,
É onde vive sofrendo a classe pobre
Sem conforto, sem pão, sem lar, sem cobre.
 
É o abismo do povo sofredor,
Onde nunca tem certo o dormitório
É sujeito e explorado com rigor
Pela feia trapaça do finório
É o inferno, em plano inferior,
Mas acima é que fica o Purgatório,
Que apresenta também sua comédia
E é ali onde vive a classe média.
 
Este ponto também tem padecer,
Porém seus habitantes é preciso
Simularem semblantes de prazer,
Transformando a desdita num sorriso.
E agora, meu leitor, nós vamos ver,
Mais além, o bonito Paraíso,
Que progride, floresce e frutifica,
Onde vive gozando a classe rica.
 
Este é o Éden dos donos do poder,
Onde reina a coroa da potência.
O Purgatório ali tem que render
Homenagem, Triunfo e Obediência.
Vai o Inferno também oferecer
Seu imposto tirado da indigência,
Pois, no mastro tremula, a todo instante,
A bandeira da classe dominante.
 
É o Inferno o teatro do agregado
E de todos que vivem na pobreza,
Do faminto, do cego e do aleijado,
Que não acham abrigo nem defesa
E é também causador do triste fado
Da donzela repleta de beleza
Que, devido à cruel necessidade,
Vende as flores de sua virgindade.
 
Que tristeza, que mágoa, que desgosto
Sente a pobre mendiga pela rua!
O retrato da dor no próprio rosto,
Como é dura e cruel a sorte sua!
Com o corpo mirrado e mal composto,
A coitada chorosa continua
A pedir, pelas praças da cidade:
“Uma esmola, senhor, por piedade!”
 
Para que outro estado mais precário
Do que a vida cansada do roceiro?
Sem gozar do direito do salário,
Trabalhando na roça o dia inteiro,
Nunca pode ganhar o necessário,
Vive sempre sem roupa e sem dinheiro,
E, se o inverno não vem molhar o chão,
Vai expulso da roça do patrão.
 
Como é triste viver sem possuir
Uma faixa de terra para morar
E um casebre, no qual possa dormir
E dizer satisfeito: “este é meu lar”.
Ninguém pode, por certo, resistir
Tal desgraça na vida sem chorar.
Se é que existe inferno no outro mundo
Com certeza, o de lá é o segundo!
 
Veja bem, meu leitor, que quadro triste,
Este inferno que temos nesta vida,
O sofrimento atroz dele consiste
Em viver sem apoio e sem guarida.
Minha lira sensível não resiste
Descrever tanta coisa dolorida
Com as rimas do mesmo repertório,
Quero um pouco falar do Purgatório
 
Purgatório da falsa hipocrisia,
Onde vemos um rosto prazenteiro
Ocultando uma dor que o excrucia
E onde vemos também um cavalheiro
Usar terno de linda fantasia,
Com o bolso vazio de dinheiro:
Pra poder trajar bem, até se obriga
Dar, com jeito, uma prega na barriga.

Purgatório infeliz do desgraçado,
Que trabalha e faz tudo o que é preciso
No comércio, lutando com cuidado,
Com desejo de entrar no Paraíso,
Porém quando termina derrotado,
Fracassado, com grande prejuízo,
Desespera, enlouquece, perde a bola
E no ouvido dispara uma pistola
 
Ali vemos um gesto alegre e lindo
Disfarçando uma dor, uma aflição,
Afirmando gozar prazer infindo
De esperança, de sonho e de ilusão.
Mas, enquanto esses lábios vão sorrindo,
Vai chorando, no peito, o coração.
É um mundo repleto de amarguras,
Com bastante aparência de venturas.
 
Veja agora leitor que diferença
Encontramos no lindo Paraíso:
O habitante não fala de sentença
Tudo é paz, alegria, graça e riso.
Tem remédio e conforto, na doença
E, se a morte lhe surge, de improviso,
Quando morre inda deixa por memória
Uma lousa, contando a sua glória.
 
Neste reino, que cresce e que vigora,
Vive a classe feliz e respeitada,
Tem tudo o que quer, a toda hora,
Pois do belo e do bom não falta nada,
Tem estrela brilhante e linda aurora,
Borboletas azuis, contos de fada
E, se quer gozar mais a vida sua,
Vai uns dias passar dentro da lua.


O Paraíso e o ponto culminante
De riqueza, grandeza e majestade,
Ali o homem desfruta ouro e brilhante,
Vive em plena harmonia e liberdade,
Tem sossego, conforto e tem amante,
Tudo quanto há de bom tem à vontade
E a mulher, que possui corpo de elástico,
Para não ficar velha, vai ao plástico.

Já mostrei, meu leitor, com realeza,
Pobres, médios e ricos potentados,
Na linguagem sem arte e sem riqueza.
Não são versos com ouro burilados,
São singelos, são simples, sem beleza,
Mas, nos mesmos eu deixo retratados,
Com certeza, verdade e muito siso,
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
 

Poemas e Poesias quinta, 11 de outubro de 2018

VIRGENS MORTAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VIRGENS MORTAS

Olavo Bilac

 

Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova, no velho engaste azul do firmamento:
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu palpita e resplandece.

Ó vós, que no silêncio e no recolhimento
Do campo, conversais a sós, quando anoitece,
Cuidado! – o que dizeis, como um rumor de prece,
Vai sussurrar no céu, levado pelo vento…

Namorados, que andais, com a boca transbordando
De beijos, perturbando o campo sossegado
E o casto coração das flores inflamando,

- Piedade! elas veem tudo entre as moitas escuras…
Piedade! esse impudor ofende o olhar gelado
Das que viveram sós, das que morreram puras!


Poemas e Poesias quarta, 10 de outubro de 2018

CALA-TE, AMOR DE MÃE (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

CALA-TE, AMOR DE MÃE

Machado de Assis

 


Cala-te, amor de mãe! Quando o inimigo
Pisa da nossa terra o chão sagrado.
Amor de pátria, vivido, elevado,
Só tu na solidão serás comigo!


O dever é maior do que o perigo;
Pede-te a pátria, cidadão honrado;
Vai, meu filho, e nas lides do soldado
Minha lembrança viverá contigo!


É o sétimo, o último. Minh’alma repartida,
Vai toda aí, convosco repartida,
E eu dou-a de olhos secos, fria e calma.


Oh! não te assuste o horror da márcia lida;
Colhe no vasto campo a melhor palma;
Ou morte honrada ou gloriosa vida.


Poemas e Poesias terça, 09 de outubro de 2018

DOR (POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

DOR

Humberto de Campos

 

Há de ser uma estrada de amarguras

a tua vida. E andá-la-ás sozinho,

vendo sempre fugir o que procuras

disse-me um dia um pálido advinho.

 

No entanto, sempre hás de cantar venturas

que jamais encontraste... O teu caminho,

dirás que é cheio de alegrias puras,

de horas boas, de beijos, de carinho..."

 

E assim tem sido... Escondo os meus lamentos:

É meu destino suportar sorrindo

as desventuras e os padecimentos.

 

E no mundo hei de andar, neste desgosto,

a mentir ao meu íntimo, cobrindo

os sinais destas lágrimas no rosto!

 


Poemas e Poesias domingo, 07 de outubro de 2018

A SENTINELA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRAS GULLAR)

A SENTINELA

Ferreira Gullar

As galinhas

Abandonam seus voos

Na terra da tarde.

 

Que é que eu defendo

Em abril?

O apuro

Das éguas?

O vento que,

No  pátio, 

Envilece os heróis

Ou

A pobreza dstes dias

Militares?

 

 


Poemas e Poesias sábado, 06 de outubro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 11 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA 11

Eno Teodoro Wanke

Ó rosa, nobre e bonita

Que encantamento trazeis!

Em vossa beleza habita

A majestade dos reis!


Poemas e Poesias sexta, 05 de outubro de 2018

JULIETA DOS SANTOS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

JULIETA DOS SANTOS

Cruz e Sousa

 

Tu passas rutilante em toda a parte

Oh! Sol de nossa pátria, oh! Sol da arte!...

Virgílio Várzea

 

Quando eu te vi pela primeira vez no palco

Avassalando as almas,

N'um referver de palmas,

Cheia de vida e cândido lirismo!

Senti na mente uns divinais tremores...

 

E louco e louco,

A pouco e pouco

Vi rebentar o inferno cataclismo!...

 

Mil pensamentos galoparam, céleres

Por minha fronte

E do horizonte

Quis arrancar os astros diamantinos,

Para arrojá-los a teus pés mimosos

E arrebatado,

Fanatizado

Por entre um mar de cintilantes hinos!...

 

Esse teu busto, a genial cabeça

Tão bem talhada

E burilada

Com o escopro límpido da arte,

Tem umas puras fulgurações suaves

E a tu'alma

Ardente ou calma

Os corações arrasta por toda a parte!...

 

A encarnação tu és das maravilhas,

A doce aurora,

Branda e sonora

Das teatrais e lúcidas ideias!...

Tens no olhar o filtro que arrebata

E és profética

E magnética,

Possuis na voz o som das melopeias!...

 

És a escolhida para as grandes lutas

Esplendorosas

E majestosas!...

E sobre os débeis, delicados ombros,

Bem como Homero a sua lira d'ouro,

Resplandecente,

Trazes pendente

O Infinito enorme dos assombros!...

 

Quando apareces tudo ri e chora,

Se endeusa, agita,

Como que palpita

N'uma explosão de férvidos louvores!

E o potentado mais febril da terra

Gagueja um bravo,

E faz-se escravo

O mais severo e nobre dos senhores!...

 

A Dejaset, uma Favart, Rachel,

O João Caetano

Como um arcano

Imperscrutável, hórrido, terrível!...

Quebram as louças sepulcrais e frias

E te louvando

Vão recuando...

Dizem que é sonho, é mito, é impossível!

 

Oh! Tu nasceste para suplantar, JULIETA

Os grandes mundos,

Os mais profundos

D'ess'arte bela, magistral, divina!...

E esse olhar tão expressivo e terno

Já eletriza

E cauteriza...

É como um raio que a corações fulmina!...

 

Que sol é este, vão bradando os polos,

Tão sobranceiro,

Que o brasileiro

O vasto império confundindo está?!...

Venham teólogos, venham sábios... todos

Venham troianos,

Venham germanos,

Venham os vultos da Caldéia, lá!...

 

Oh! Resolvei o mais atroz problema,

Fundo mistério,

Alto, sidéreo

Do gênio altivo na criança, ali!...

Vamos, natura, rasga o véu dos medos,

Dizei ó mares,

Falai luares,

Sombras dos bosques, respondei-me aqui!...

 

Astros da noite, tempestades, ventos

Erguei as vozes,

Falai velozes

N’um som estranho, n’um clangor audaz!...

E respondei-me e explicai ao orbe

Se essa menina,

Que nos fascina

É um fenômeno ou outro tanto mais!...

 

Tudo emudece na natura imensa

E desde os Andes,

Dos cedros grandes

Ao verme, à pedra, às amplidões do mar!...

Tudo se oculta na invisível raia

No espaço a bruma,

No mar a espuma

Vão-se esgarçando também, a se ocultar!...

 

Tudo emudece na natura imensa

Quando na cena

Surges serena

Como a visão das noites infantis!

Dos olhos vivos dos que são-te adeptos

Bem como prata

Eis se desata

A aluvião de lágrimas febris!...

 

É que tu tens esse poder superno

Real, sublime

Que até ao crime

Faz arrastar o mísero mortal!

É que tu és a embrionária horrível,

Mística, ingente

Que de repente

Fazes de um ser estúpido animal!...

 

Tudo emudece na natura imensa

Desde nos campos

Os pirilampos

Até as grimpas colossais do céu!...

Tudo emudece e até eu JULIETA,

Já delirante

Vou vacilante

Cair-te aos pés como um servil, um réu!!...

 


Poemas e Poesias quarta, 03 de outubro de 2018

TIRANA (7ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

TIRANA 

TIRANA (7ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO  CASTRO ALVES)

 

 

"Minha Maria é bonita,

Tão bonita assim não há;

O beija-flor quando passa

Julga ver o manacá.

 

"Minha Maria é morena,

Como as tardes de verão;

Tem as tranças da palmeira

Quando sopra a viração.

 

"Companheiros! o meu peito

Era um ninho sem senhor;

Hoje tem um passarinho

P'ra cantar o seu amor.

 

"Trovadores da floresta!

Não digam a ninguém, não!...

Que Maria é a baunilha

Que me prende o coração.

 

"Quando eu morrer só me enterrem

Junto às palmeiras do val,

Para eu pensar que é Maria

Que geme no taquaral . . ."


Poemas e Poesias terça, 02 de outubro de 2018

A VOZ DO RIO - NUM ÁLBUM (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU

A VOZ DO RIO

NUM ÁLBUM

Casimiro de Abreu

 

 

Nosso sol é de fogo, o campo é verde,

O mar é manso, nosso céu azul!

– Ai! Por que deixas este pátrio ninho

Pelas friezas dos vergéis do sul?

 

Lá nessa terra onde o Guaíba chora

Não são as noites, como aqui, formosas,

E as duras asas do Pampeiro iroso

Quebra as tulipas e desfolha as rosas.

 

A lua é doce, nosso mar tranquilo,

Mais leve a brisa, nosso céu azul!...

– Tupá! Quem troca pelo pátrio ninho

As ventanias dos vergéis do sul?!

 

Lá novos campos outros campos ligam

E a vista fraca na extensão se perde!

E tu sozinha viverás no exílio

– Garça perdida nesse mar que é verde! –

 

Nossas campinas como doces noivas

Vivem c’os montes sob o céu azul!

– Há vida e amores neste pátrio ninho

Mais rico e belo que os vergéis do sul!

 

Essas palmeiras não têm tantos leques,

O sol das Pampas marcou seu brilho,

22

Nem cresce o tronco que susteve um dia

O berço lindo em que dormiu teu filho!

 

Nossas florestas sacudindo os galhos

Tocam c’os braços este céu azul!...

– Se tudo é grande neste pátrio ninho

Porque deixai-o p’ra viver no sul?!...

 

Embora digas – essa terra fria

Merece amores, é irmã da minha –

Quem dar-te pode este calor do ninho,

A luz suave que o teu berço tinha?!

 

Eu – Guanabara – no meu longo espelho

Reflito as nuvens deste céu azul;

– Ó minha filha! Acalentei-te o sono,

Porque me deixas p’ra viver no sul?!...

 

Lá, quando a terra s’embuçar nas sombras

E o sol medroso s’esconder nas águas,

Teu pensamento, como o sol que morre,

Há de cismando mergulhar-se em mágoas!

 

Mas se forçoso t’é deixar a pátria

Pelas friezas dos vergéis do sul,

Ó minha filha! Não t’esqueças nunca

Destas montanhas, deste céu azul.

 

Tupá bondoso te derrame graças,

Doce ventura te bafeje e siga,

E nos meus braços – ao voltar do exílio –

Saudando o berço que teu lábio diga:

 

“Volvo contente para o pátrio ninho,

“Deixei sorrindo esses vergéis do sul;

“Tinha saudades deste sol de fogo...

“Não deixo mais este meu céu azul!...

 


Poemas e Poesias segunda, 01 de outubro de 2018

SONETO 101 - AH! MINHA DINAMENE! ASSIM DEIXASTE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

POEMA 101

AH! MINHA DINAMENE! ASSIM DEIXASTE

Luís de Camões

 

Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já pera sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!

Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!
Que pena sentirei que valha tanto,
Que inda tenha por pouco viver triste? 


Poemas e Poesias domingo, 30 de setembro de 2018

SONETO DO MEMBRO MONSTRUOSO (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO DO MEMBRO MONSTRUOSO

Manuel Maria Barbosa Du Bocage

Esse disforme, e rígido porraz
Do semblante me faz perder a cor:
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para trás:

A espada do membrudo Ferrabrás
De certo não metia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz.

Creio que nas fodais recreações
Não te hão de a rija máquina sofrer
Os mais corridos, sórdidos cações:

De Vênus não desfrutas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.

 


Poemas e Poesias sábado, 29 de setembro de 2018

VERSOS A UM CÃO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

VERSOS A UM CÃO

Augusto dos Anjos

 

Que força pôde adstrita e embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! - Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...

E irás assim, pelos séculos, adiante, 
Latindo a esquisitíssima prosódia 
Da angustia hereditária dos teus pais!


Poemas e Poesias sexta, 28 de setembro de 2018

LUIZ GAMA (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

LUIZ GAMA

Raimundo Correia

 

A Raul Pompéia


Tantos triunfos te contando os dias,
Iam-te os dias descontando e os anos,
Quando bramavas, quando combatias
Contra os bárbaros, contra os desumanos;

Quando a alma brava e procelosa abrias
Invergável ao pulso dos tiranos,
E ígnea, como os desertos africanos
Dilacerados pelas ventanias...

Contra o inimigo atroz rompeste em guerra,
Grilhões a rebentar por toda a parte,
Por toda a parte a escancarar masmorras.

Morreste!... Embalde, Escravidão! Por terra
Rolou... Morreu por não poder matar-te!
Também não tarda muito que tu morras!


Poemas e Poesias quinta, 27 de setembro de 2018

A MORTE DE NANÃ (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A MORTE DE NANÃ

Patativa do Assaré

 

Eu vou contá uma históra

Que eu não sei como comece,

Pruquê meu coração chora,

A dô do meu peito cresce,

Omenta o meu sofrimento

E fico uvindo o lamento

De minha arma dilurida,

Pois é bem triste a sentença

De quem perdeu na isistença

O que mais amou na vida.

 

Já tou véio, acabrunhado,

Mas inriba deste chão,

Fui o mais afurtunado

De todos fios de Adão.

Dentro da minha pobreza,

Eu tinha grande riqueza:

Era uma quirida fia,

Porém morreu muito nova.

Foi sacudida na cova

Com seis ano e doze dia.

 

Morreu na sua inocença

Aquele anjo incantadô,

Que foi na sua isistença,

A cura da minha dô

E a vida do meu vivê.

Eu bejava, com prazê,

Todo dia, demenhã,

Sua face pura e bela.

Era Ana o nome dela,

Mas, eu chamava Nanã.

 

Nanã tinha mais primô

De que as mais bonita jóia,

Mais linda do que as fulô

De um tá de Jardim de Tróia

Que fala o dotô Conrado.

Seu cabelo cachiado,

Preto da cô de viludo.

Nanã era meu tesôro,

Meu diamante, meu ôro,

Meu anjo, meu céu, meu tudo.

 

Pelo terrêro corria,

Sempre sirrindo e cantando,

Era lutrida e sadia,

Pois, mesmo se alimentando

Com fejão, mio e farinha,

Era gorda, bem gordinha

Minha querida Nanã,

Tão gorda que reluzia.

O seu corpo parecia

Uma banana-maçã.

 

Todo dia, todo dia,

Quando eu vortava da roça,

Na mais compreta alegria,

Dentro da minha paioça

Minha Nanã eu achava.

Por isso, eu não invejava

Riqueza nem posição

Dos grande deste país,

Pois eu era o mais feliz

De todos fio de Adão.

 

Mas, neste mundo de Cristo,

Pobre não pode gozá.

Eu, quando me lembro disto,

Dá vontade de chorá.

Quando há seca no sertão,

Ao pobre farta fejão,

Farinha, mio e arrôis.

Foi isso o que aconteceu:

A minha fia morreu,

Na seca de trinta e dois.

 

Vendo que não tinha inverno,

O meu patrão, um tirano,

Sem temê Deus nem o inferno,

Me dexou no desengano,

Sem nada mais me arranjá.

Teve que se alimentá

Minha querida Nanã,

No mais penoso matrato,

Comendo caça do mato

E goma de mucunã.  

 

E com as braba comida,

Aquela pobre inocente

Foi mudando a sua vida,

Foi ficando deferente.

Não sirria nem brincava,

Bem pôco se alimentava

E inquanto a sua gordura

No corpo diminuía,

No meu coração crescia

A minha grande tortura.

 

Quando ela via o angú,  

Todo dia demenhã,

Ou mesmo o rôxo bejú

Da goma da mucunã,   

Sem a comida querê,   

Oiava pro dicumê,    

Depois oiava pra mim

E o meu coração doía,

Quando Nanã me dizia:

Papai, ô comida ruim!

 

Se passava o dia intêro

E a coitada não comia,

Não brincava no terrêro

Nem cantava de alegria,

Pois a farta de alimento

Acaba o contentamento,

Tudo destrói e consome.

Não saía da tipóia

A minha adorada jóia,

Infraquecida de fome.

 

Daqueles óio tão lindo

Eu via a luz se apagando

E tudo diminuindo.

Quando eu tava reparando

Os oinho da criança,

Vinha na minha lembrança

Um candiêro vazio

Com uma tochinha acesa

Representando a tristeza

Bem na ponta do pavio.

 

E, numa noite de agosto,

Noite escura e sem luá,  

Eu vi crescê meu desgosto,

Eu vi crescê meu pená.    

Naquela noite, a criança

Se achava sem esperança

E quando vêi o rompê

Da linda e risonha orora,

Fartava bem pôcas hora

Pra minha Nanã morrê.   

 

Por ali ninguém chegou,

Ninguém reparou nem viu

Aquela cena de horrô    

Que o rico nunca assistiu,

Só eu e minha muié,    

Que ainda cheia de fé

Rezava pro Pai Eterno,

Dando suspiro maguado

Com o seu rosto moiado

Das água do amô materno.

 

E, enquanto nós assistia

A morte da pequenina,

Na menhã daquele dia,

Veio um bando de campina,

De canaro e sabiá

E começaro a cantá

Um hino santificado,

Na copa de um cajuêro

Que havia bem no terrêro    

Do meu rancho esburacado.

 

Aqueles passo cantava,

Em lovô da despedida,

Vendo que Nanã dexava

As misera desta vida,

Pois não havia ricurso,

Já tava fugindo os purso,

Naquele estado misquinho,

Ia apressando o cansaço,

Seguido pelo compasso

Da musga dos passarinho.

 

Na sua pequena boca

Eu via os laibo tremendo

E, naquela afrição loca,

Ela também conhecendo

Que a vida tava no fim,

Foi regalando pra mim

Os tristes oinho seu,

Fez um esforço ai, ai, ai,

E disse: “abença, papai!”

Fechô os óio e morreu.

 

Enquanto finalizava

Seu momento derradêro,

Lá fora os passo cantava,

Na copa do cajuêro.

Em vez de gemido e choro,

As ave cantava em coro.

Era o bendito prefeito

Da morte de meu anjinho.

Nunca mais os passarinho

Cantaro daquele jeito.

 

Nanã foi, naquele dia,

A Jesus mostrá seu riso

E omentá mais a quantia

Dos anjo do Paraíso.

Na minha maginação,

Caço e não acho expressão

Pra dizê como é que fico.

Pensando naquele adeus

E a curpa não é de Deus,

A curpa é dos home rico.

 

Morreu no maió matrato

Meu amô lindo e mimoso.

Meu patrão, aquele ingrato,

Foi o maió criminoso,

Foi o maió assarsino.

O meu anjo pequenino

Foi sacudido no fundo

Do mais pobre cimitero

E eu hoje me considero

O mais pobre deste mundo.

 

Soluçando, pensativo,

Sem consolo e sem assunto,

Eu sinto que inda tou vivo,

Mas meu jeito é de defunto.

Invorvido na tristeza,

No meu rancho de pobreza,

Toda vez que eu vou rezá,

Com meus juêio no chão,

Peço em minhas oração:

Nanã, venha me buscá!


Poemas e Poesias quarta, 26 de setembro de 2018

NOTURNO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

NOTURNO

Olavo Bilac

 

Já toda a terra adormece.
Sai um soluço da flor.
Rompe de tudo um rumor,
Leve como o de uma prece.


A tarde cai. Misterioso, 
Geme entre os ramos e o vento, 
E há por todo o firmamento
Um anseio doloroso.


Áureo turíbulo imenso,
O ocaso em púrpuras arde,
E para a oração da tarde 
Desfaz-se em rolos de incenso.


Moribundos e suaves,
O vento na asa conduz
O último raio da luz
E o último canto das aves.


E Deus, na altura infinita,
Abre a mão profunda e calma,
Em cuja profunda palma
Todo o Universo palpita.


Mas um barulho se eleva...
E, no páramo celeste,
A horda dos astros investe
Contra a muralha da treva.


As estrelas, salmodiando
O Peã sacro, a voar,
Enchem de cânticos o ar...
E vão passando... passando...


Agora, maior tristeza,
Silêncio agora mais fundo;
Dorme, num sono profundo,
Sem sonhos, a natureza.


A flor-da-noite abre o cálix...
E, soltos, os pirilampos
Cobrem a face dos campos,
Enchem o seio dos vales:


Trêfegos e alvoroçados,
Saltam, fantásticos Djins,
De entre as moitas de jasmins,
De entre os rosais perfumados.


Um deles pela janela
Entra do teu aposento,
E pára, plácido e atento
Vendo-te, pálida e bela.


Chega ao teu cabelo fino,
Mete-se nele: e fulgura,
E arde nessa noite escura, 
Como um astro pequenino.


E fica. Os outros lá fora
Deliram. Dormes... Feliz,
Não ouves o que ele diz,
Não ouves como ele chora...


Diz ele: "O poeta encerra
Uma noite, em si, mais triste
Que essa que, quando dormiste,
Velava a face da terra...


Os outros saem do meio
Das moitas cheias de flores:
Mas eu saí de entre as dores
Que ele tem dentro do seio.


Os outros a toda parte
Levam o vivo clarão,
E eu vim do seu coração
Só para ver-te e beijar-te.


Mandou-me sua alma louca,
Que a dor da ausência consome,
Saber se em sonho o seu nome
Brilha agora em tua boca!


Mandou-me ficar suspenso
Sobre o teu peito deserto,
Por contemplar de mais perto
Todo esse deserto imenso!"


Isso diz o pirilampo...
Anda lá fora um rumor
De asas rufladas... A flor
Desperta, desperta o campo...


Todos os outros, prevendo
Que vinha o dia, partiram,
Todos os outros fugiram...
Só ele fica gemendo.


Fica, ansioso e sozinho, 
Sobre o teu sono pairando...
E apenas, a luz fechando,
Volve de novo ao seu ninho,


Quando vê, inda não farto
De te ver e de te amar,
Que o sol descerras do olhar,
E o dia nasce em teu quarto...


Poemas e Poesias terça, 25 de setembro de 2018

A UMA SENHORA QUE PEDIU MEUS VERSOS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A UMA SENHORA QUE PEDIU MEUS VERSOS

Machado de Assis

 

Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.

Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.


Poemas e Poesias segunda, 24 de setembro de 2018

A FUNDA (POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A FUNDA

Humberto de Campos

 

O verso é a funda de uma ideia. À teia
Dos fios trá-la, sem calhaus, pendida;
Mas, se a tomares, que lhe emprestes vida,
E a tornes digna da atenção alheia.
Funda é o verso. Faiscando, balanceia
No ígneo cérebro a pedra incandescida;
E ao futuro, de súbito impelida,
Caminhando veloz, relampagueia.
O verso é a funda que uma ideia lança.
A pedra passa pela nossa frente
E no giro dos séculos não cansa.
E tu, que és perta e sonhador austero,
Lembra as pedras em funda resistente
Alto lançadas pela mão de Homero!


Poemas e Poesias sábado, 22 de setembro de 2018

O ARSENAL (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

O ARSENAL

Ferreira Gullar

 

A ferrugem abre suas flores

É uma sinistra botânica

E as abelhas vêm

Filhas do ar frio

 

Certos pássaros descem

Neste campo de armas

Que os Heróis espiam

 

Quem aproveita

O arroz

Daquele aço?

 

Coronel

Um arsenal disponível

Guerreia sempre


Poemas e Poesias sexta, 21 de setembro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 10 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA 10

Eno Teodoro Wanke

 

Ao criar o amor materno

Ficou Jesus tão contente

Que, deixando o Trono Eterno

Desceu à Terra e foi gente

 


Poemas e Poesias quinta, 20 de setembro de 2018

SONETO 8 (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

SONETO 8 

Cruz e Sousa

À Julieta dos Santos

 

Lágrimas da aurora, poemas cristalinos

Que rebentais das cobras do mistério!

Aves azuis do manto auri-sidéreo...

Raios de luz, fantásticos, divinos!...

 

Astros diáfanos, brandos, opalinos,

Brancas cecéns do Paraíso etéreo,

Canto da tarde, límpido, aéreo,

Harpa ideal, dos encantados hinos!...

 

Brisas suaves, virações amenas,

Lírios do vale, roseirais do lago,

Bandos errantes de sutis falenas!...

 

Vinde do arcano n’um potente afago

Louvar o Gênio das mansões serenas,

Esse Prodígio singular e mago!!...


Poemas e Poesias terça, 18 de setembro de 2018

LUCAS (6ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

LUCAS

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Quem fosse naquela hora,

Sobre algum tronco lascado

Sentar-se no descampado

Da solitária ladeira,

Veria descer da serra,

Onde o incêndio vai sangrento,

A passo tardio e lento,

Um belo escravo da terra

Cheio de viço e valor...

Era o filho das florestas!

Era o escravo lenhador !

Que bela testa espaçosa,

Que olhar franco e triunfante!

E sob o chapéu de couro

Que cabeleira abundante!

De marchetada jibóia

Pende-lhe a rasto o facão...

E assim... erguendo o machado

Na larga e robusta mão...

Aquele vulto soberbo,

— Vivamente alumiado, —

Atravessa o descampado

Como uma estátua de bronze

Do incêndio ao fulvo clarão.

Desceu a encosta do monte,

Tomou do rio o caminho...

E foi cantando baixinho

Como quem canta p'ra si.

Era uma dessas cantigas

Que ele um dia improvisara,

Quando junto da coivara

Faz-se o Escravo — trovador.

Era um canto languoroso,

Selvagem, belo, vivace,

Como o caniço que nasce

Sob os raios do Equador.

Eu gosto dessas cantigas,

Que me vem lembrar a infância,

São minhas velhas amigas,

Por elas morro de amor...

Deixai ouvir a toada

Do — cativo lenhador —

E o sertanejo assim solta a tirana,

Descendo lento p'ra a servil cabana...


Poemas e Poesias segunda, 17 de setembro de 2018

NA REDE (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

NA REDE 

Casimiro de Abreu

 

Nas horas ardentes do pino do dia 
Aos bosques corri; 
E qual linda imagem dos castos amores, 
Dormindo e sonhando cercada de flores 
Nos bosques a vi! 
 
Dormia deitada na rede de penas 
– O céu por dossel, 
De leve embalada no quieto balanço 
Qual nauta cismando num lago bem manso 
Num leve batel! 
 
Dormia e sonhava – no rosto serena 
Qual um serafim; 
Os cílios pendidos nos olhos tão belos, 
E a brisa brincando nos soltos cabelos 
De fino cetim! 
 
Dormia e sonhava – formosa embebida 
No doce sonhar, 
E doce e sereno num mágico anseio 
Debaixo das roupa batia-lhe o seio 
No seu palpitar! 
 
Dormia e sonhava – a boca entreaberta 
O lábio a sorrir; 
No peito cruzados os braços dormentes, 
Compridos e lisos quais brancas serpentes 
No colo a dormir! 
 
Dormia e sonhava – no sonho de amores. 
Chamava por mim, 
E a voz suspirosa nos lábios morria 
Tão terna e tão meiga qual vaga harmonia 
De algum bandolim! 
 
Dormia e sonhava – de manso cheguei-me 
Sem leve rumor; 
Pendi-me tremendo e qual fraco vagido, 
Qual sopro da brisa, baixinho ao ouvido 
Falei-lhe de amor! 
 
Ao hálito ardente o peito palpita... 
Mas sem despertar; 
E como nas ânsias dum sonho que é lindo, 
A virgem na rede corando e sorrindo... 
Beijou-me – a sonhar!


Poemas e Poesias domingo, 16 de setembro de 2018

SONETO 114 - AH! FORTUNA CRUEL! AH! DUROS FADOS! (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

POEMA 114

AH! FORTUNA CRUEL! AH! DUROS FADOS!

Luís de Camões

Ah! Fortuna cruel! Ah! Duros Fados!
Quão asinha em meu dano vos mudastes!
Passou o tempo que me descansastes;
Agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados,
Para mor dor da dor que me ordenastes;
Então núa hora juntos mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.

Ah! quanto milhor fora não vos ver,
Gostos, que assi passais tão de corrida
Que fico duvidoso se vos vi.

Sem vós já me não fica que perder,
Senão se for esta cansada vida
Que, por mor perda minha, não perdi.


Poemas e Poesias sábado, 15 de setembro de 2018

SONETO DO EPITÁFIO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DO BOCAGE

SONETO DO EPITÁFIO

Bocage

 

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
Que engrole “sub-venites” em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”.


Poemas e Poesias sexta, 14 de setembro de 2018

SONETO, AO PRIMEIRO FILHO, NASCIDO MORTO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

SONETO

Augusto dos Anjos

 

 

 

 Ao meu primeiro filho nascido

morto com 7 meses incompletos

2 fevereiro 1911.

Agregado infeliz de sangue e cal,

Fruto rubro de carne agonizante,

Filho da grande força fecundante

De minha brônzea trama neuronial,

 

Que poder embriológico fatal

Destruiu, com a sinergia de um gigante,

Em tua morfogênese de infante

A minha morfogênese ancestral?!

 

Porção de minha plásmica substância,

Em que lugar irás passar a infância,

Tragicamente anônimo, a feder?...

 

Ah! Possas tu dormir feto esquecido,

Panteisticamente dissolvido

Na noumenalidade do NÃO SER!

 


Poemas e Poesias quinta, 13 de setembro de 2018

PLENA NUDEZ (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

PLENA NUDEZ

Raimundo Correia

 

Eu amo os gregos tipos de escultura: 
Pagãs nuas no mármore entalhadas; 
Não essas produções que a estufa escura 
Das modas cria, tortas e enfezadas.

Quero um pleno esplendor, viço e frescura 
Os corpos nus; as linhas onduladas 
Livres: de carne exuberante e pura 
Todas as saliências destacadas...

Não quero, a Vênus opulenta e bela 
De luxuriantes formas, entrevê-la 
De transparente túnica através:

Quero vê-la, sem pejo, sem receios, 
Os braços nus, o dorso nu, os seios 
Nus... toda nua, da cabeça aos pés!


Poemas e Poesias quarta, 12 de setembro de 2018

INGÉM DE FERRO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

INGÉM DE FERRO

Patativa do Assaré

 

Ingém de ferro, você

Com seu amigo motô,

Sabe bem desenvorvê,

É munto trabaiadô.

Arguém já me disse até

E afirmô que você é

Progressista em alto grau;

Tem força e tem energia,

Mas não tem a poesia

Que tem o ingém de pau.

 

O ingém de pau quando canta,

Tudo lhe presta atenção,

Parece que as coisa santa

Chega em nosso coração.

Mas você, ingém de ferro,

Com este horroroso berro,

É como quem qué brigá,

Com a sua grande afronta

Você tá tomando conta

Dos nossos canaviá.

 

Do bom tempo que se foi

Faz mangofa, zomba, escarra.

Foi quem expulsou os boi

Que puxava na manjarra.

Todo soberbo e sisudo,

Qué governá e mandá tudo,

É só quem qué sê ingém.

Você pode tê grandeza

E pode fazê riqueza,

Mas eu não lhe quero bem.

 

Mode esta suberba sua

Ninguém vê mais nas muage,

Nas bela noite de lua,

Aquela camaradage

De todos trabaiadô.

Um falando em seu amô

Outro dizendo uma rima,

Na mais doce brincadêra,

Deitado na bagacêra,

Tudo de papo pra cima.

 

Esse tempo que passô

Tão bom e tão divertido,

Foi você quem acabô,

Esguerado, esgalamido!

Come,come interessêro!

Lá dos confim do estrangêro,

Com seu baruio indecente,

Você vem todo prevesso,

Com históra de progresso,

Mode dá desgosto a gente!

 

Ingém de ferro, eu não quero

Abatê sua grandeza,

Mas eu não lhe considero

Como coisa de beleza,

Eu nunca lhe achei bonito,

Sempre lhe achei esquesito,

Orguioso e munto mau.

Até mesmo a rapadura

Não tem aquela doçura

Do tempo do ingém de pau.

 

Ingém de pau! Coitadinho!

Ficou no triste abandono

E você, você sozinho

Hoje é quem tá sendo dono

Das cana do meu país.

Derne o momento infeliz

Que o ingém de pau levou fim,

Eu sinto sem piedade

Três moenda de sodade

Ringindo dentro de mim.

 

Nunca mais tive prazê

Com muage neste mundo

E o causadô de eu vivê

Como um pobre vagabundo,

Pezaroso, triste e pérro,

Foi você, ingém de ferro,

Seu safado, seu ladrão!

Você me dexô à toa,

Robou as coisinhas boa

Que eu tinha em meu coração!


Poemas e Poesias terça, 11 de setembro de 2018

DORMINDO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

DORMINDO

Olavo Bilac

 

De qual de vós desceu para o exílio do mundo 
A alma desta mulher, astros do céu profundo? 
Dorme talvez agora... Alvíssimas, serenas, 
Cruzam-se numa prece as suas mãos pequenas. 
Para a respiração suavíssima lhe ouvir, 
A noite se debruça... E, a oscilar e a fulgir, 
Brande o gládio de luz, que a escuridão recorta, 
Um arcanjo, de pé, guardando a sua porta. 
Versos! podeis voar em torno desse leito, 
E pairar sobre o alvor virginal de seu peito, 
Aves, tontas de luz, sobre um fresco pomar... 
Dorme... Rimas febris, podeis febris voar... 
Como ela, num livor de névoas misteriosas, 
Dorme o céu, campo azul semeado de rosas; 
E dois anjos do céu, alvos e pequeninos, 
Vêm dormir nos dois céus dos seus olhos divinos... 
Dorme... Estrelas, velai, inundando-a de luz! 
Caravana, que Deus pelo espaço conduz! 
Todo o vosso dano nesta pequena alcova 
Sobre ela, como um nimbo esplêndido, se mova: 
E, a sorrir e a sonhar, sua leve cabeça 
Como a da Virgem Mie repouse e resplandeça! 


Poemas e Poesias segunda, 10 de setembro de 2018

SAUDADE (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SAUDADE

Machado de Assis

 

Por que sinto falta de você? Por que está saudade?
Eu não te vejo mas imagino suas expressões, sua voz teu cheiro.
Sua amizade me faz sonhar com um carinho,
Um caminhar, a luz da lua, a beira mar.
Saudade este sentimento de vazio que me tira o sono 
me fazendo sentir num triste abandono, é amizade eu sei, será amor talvez...
Só não quero perder sua amizade, esta amizade... 
Que me fortalece me enobrece por ter você.


Poemas e Poesias domingo, 09 de setembro de 2018

OS HIPERBÓREOS (POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

 

OS HIPERBÓREOS

Humberto de Campos

 

Cabeça erguida, o céu no olhar, que o céu procura,
Baixa o humano caudal, dos desertos de gelo...
Em farrapos, ao sol, derrete-se a brancura
Da neve boreal sobre o ouro do cabelo.
Ulula, e desce; e tudo invade: a atra espessura
Dos bosques entra, a urrar e a uivar. E, uivando, pelo
Continente, a descer, ganha a úmida planura,
E a brenha secular, em sonoro atropelo.
Assustam-se os chacais pelas selvas serenas.
A turba ulula, o druida canta, enchendo os ares.
Entre os uivos dos cães e o grunhido das renas...
Escutando o tropel, rincha o poldro, e galopa.
Derrama-se, a rugir, das geleiras polares,
A semente feraz dos Bárbaros, na Europa...


Poemas e Poesias sexta, 07 de setembro de 2018

FORA DA LUZ (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

FORA DA LUZ

Ferreira Gullar

 

 

 

Derrubado em seu corpo na trevosa
boca doce da carne que o engole
como um sexo, dorme. E é lume o sono
que em vão se queima pelas torres jovens

Dorme fora da luz no velho esgoto
onde as harpas. Outubro flamabrando
Às suas portas de carne adormecidas
a corneta do mar abandonamos

Resta o teu rosto solto a terra sacra
as aranhas de sal tecendo um cubo
Treme em teu lábio do dia assassinado
O sol o girassol a flama surda

Resta o facho de borco a flor perdida
o homem mordendo a sombra desse facho
As coroas da terra dissipando
seu escuro clamor na luz. E resta

de tal fogo tal facho trabalhado
às portas desse homem a leste dele
Fogo poeira pó pólvora acesa
na epiderme comum. Bonjour, Madame!


Poemas e Poesias quinta, 06 de setembro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 09 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA N 09

Eno Teodoro Wanke

 

Levanto essa trova em taça

A Itajubá,  Sul de Minas

Pedra de toque de graça

Presépio em meio às Colinas


Poemas e Poesias quarta, 05 de setembro de 2018

SONETO 7 (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

SONETO 7

Cruz e Souza

 

À Julieta dos Santos

 

Quando apareces, fica-se impassível

E mudo e quedo, trêmulo, gelado!...

Quer-se ficar com atenção, calado,

Quer-se falar sem mesmo ser possível!.

 

Anda-se c'o a alma n'um estado horrível

O coração completamente ervado!...

Quer-se dar palmas, mas sem ser notado,

Quer-se gritar, n'uma explosão temível!...

 

Sobe-se e desce-se ao país das fadas,

Vaga-se co’as nuvens das mansões doiradas

Sob um esforço colossal, titânio!...

 

E as ideias galopando voam...

Então lá dentro sem parar, ressoam

As indomáveis convulsões do crânio!!...

 


Poemas e Poesias segunda, 03 de setembro de 2018

A CAROLINA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A CAROLINA

Machado de Assis

 

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.


Poemas e Poesias domingo, 02 de setembro de 2018

SONETO 136 - A FERMOSURA DESTA FRESCA TERRA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS CE CAMÕES)

POEMA 136

A FERMOSURA DESTA FRESCA TERRA

Luís de Camões

 

fermosura desta fresca serra
e a sombra dos verdes castanheiros,
o manso caminhar destes ribeiros,
donde toda a tristeza se desterra;

o rouco som do mar, a estranha terra,
o esconder do Sol pelos outeiros,
o recolher dos gados derradeiros,
das nuvens pelo ar a branda guerra;

enfim, tudo o que a rara natureza
com tanta variedade nos ofrece,
me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando,
nas mores alegrias, mor tristeza.



Poemas e Poesias sábado, 01 de setembro de 2018

SONETO NAPOLEÔNICO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE

SONETO NAPOLEÔNICO

Manuel Maria Barbosa du Bocage

 

Tendo o terrivel Bonaparte à vista,
Novo Hannibal, que esfalfa a voz da Fama,
"Ó cappados heroes!" (aos seus exclama
Purpureo fanfarrão, papal sacrista):

"O progresso estorvae da atroz conquista
Que da philosophia o mal derrama?..."
Disse, e em fervido tom sauda, e chama, [férvido]
Sanctos surdos, varões por sacra lista:

Delles em vão rogando um pio arrojo,
Convulso o corpo, as faces amarellas,
Cede triste victoria, que faz nojo!

O rapido francez vae-lhe às cannellas;
Dá, fere, macta: ficam-lhe em despojo
Reliquias, bullas, merdas, bagatellas.

 

 


Poemas e Poesias sexta, 31 de agosto de 2018

A QUEIMADA (5ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

A QUEIMADA

Castro Alves

(Do Poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Meu nobre perdigueiro! Vem comigo. 
Vamos a sós, meu corajoso amigo,
Pelos ermos vagar!
Vamos Já dos gerais, que o vento açoita, 
Dos verdes capinais n'agreste moita 
A perdiz levantar!...

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos... 
Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos 
O céu se iluminou.
Eis súbito da barra do ocidente, 
Doudo, rubro, veloz, incandescente,
O incêndio que acordou!

A floresta rugindo as comas curva...
As asas foscas o gavião recurva,
Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas,
Galopando no ar.

E a chama lavra qual jibóia informe, 
Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
Ferra os dentes no chão...
Nas rubras roscas estortega as matas....
Que espadanam o sangue das cascatas
Do roto coração!...

O incêndio — leão ruivo, ensangüentado, 
A juba, a crina atira desgrenhado 
Aos pampeiros dos céus!...
Travou-se o pugilato e o cedro tomba...
Queimado... Retorcendo na hecatomba 
Os braços para Deus.

A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara — pula; a cascavel — chocalha...
Raiva, espuma o tapir!
... E às vezes sobre o cume de um rochedo 
A corça e o tigre — náufragos do medo —
Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto...
N'último ramo do pau-d'arco adusto
O jaguar se abrigou...
Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...
E após... Tombam as selvas seculares...
E tudo se acabou!...


Poetas Brasileiros quinta, 30 de agosto de 2018

SONETO DA FIDELIDADE (POEMA DE VINÍCIUS DE MORAES)

SONETO DA FIDELIDADE

Vinícius de Moraes

 

De tudo, ao meu amor serei atento 
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto 
Que mesmo em face do maior encanto 
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento 
E em seu louvor hei de espalhar meu canto 
E rir meu riso e derramar meu pranto 
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure 
Quem sabe a morte, angústia de quem vive 
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa (me) dizer do amor (que tive): 
Que não seja imortal, posto que é chama 
Mas que seja infinito enquanto dure.


Poetas Brasileiros domingo, 26 de agosto de 2018

NO ÁLBUM DE J. C. M. (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

NO ÁLBUM DE J. C. M.

Casimiro de Abreu

 

 

Nestas folhas perfumadas 
Pelas rosas desfolhadas 
Desses cantos de amizade, 
Permite que venha agora 
Quem longe da pátria chora 
Bem triste gravar: – saudade!

 


Poetas Brasileiros sábado, 25 de agosto de 2018

IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA

Augusto dos Anjos

 

 

Rugia nos meus centros cerebrais 
A multidão dos séculos futuros 
- Homens que a herança de ímpeto impuros 
Tornara etnicamente irracionais! -

Não sei que livro, em letras garrafais 
Meus olhos liam! No humus dos monturos, 
Realizavam-se os partos mais obscuros 
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários 
Meti todos os dedos mercenários 
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama 
Somente achei moléculas de lama 
E a mosca alegre da putrefação!


Poetas Brasileiros sexta, 24 de agosto de 2018

A MESA (POEMA DO MARANHENSE BANDEIRA TRIBUZI)

A MESA

Bandeira Tribuzi

 

A mesa tem somente o que precisa
para estar, circundada de cadeiras,
fazendo parte da vida familiar
entre alimentos, flores e conversa.

Escura mesa gravemente muda
que, parecendo alheia a quanto a cerca,
encerra no silêncio toda a ciência
da idade desdobrando gerações.

olho de cerne, comovido e frio!
indiferente coração parado
entre o grito infantil e o olhar cansado.

Mistério de madeira rodeado
por cadeiras, lembranças, utensílios,
e um leve odor de tempo alimentício.


Poetas Brasileiros quinta, 23 de agosto de 2018

ONDAS (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

ONDAS

Raimundo Correia

 

Ilha de atrozes degredos!
Cinge um muro de rochedos
Seus flancos.  Grosso a espumar
Contra a dura penedia,
Bate, arrebenta, assobia,
Retumba, estrondeia o mar.

Em circuito, o Horror impera; 

No centro, abrindo a cratera 
Flagrante, arroja um volcão 
Ígnea blasfêmia às alturas... 
E, nas ínvias espessuras, 
Brame o tigre, urra o leão.

Aqui chora, aqui, proscrita,

Clama e desespera aflita
A alma de si mesma algoz,
Buscando na imensa plaga,
Entre mil vagas, a vaga,
Que neste exílio a depôs.

Se a vida a prende à matéria,

Fora desta, a alma, sidérea,
Radia em pleno candor;
O corpo, escravo dos vícios,
É que teme os precipícios,
Que este mar cava em redor.

No azul eterno ela busca,

No azul, cujo brilho a ofusca,
Pairar, incendida ao sol,
Despindo a crusta vil, onde
Se esconde, como se esconde
A lesma em seu caracol.

Contempla o infinito ... Um bando

De gerifaltos voando
Passou, desapareceu
No éter azul, na água verde...
E onde esse bando se perde,
seu longo olhar se perde...

Contempla o mar, silenciosa:

Ora mansa, ora raivosa,
Vai e vem a onda minaz,
E entre as pontas do arrecife,
Às vezes leva um esquife,
Às vezes um berço traz.

Contempla, de olhos magoados,

Tudo...  Muitos degredados
Findo o seu degredo têm;
Vão-se na onda intumescida
Da Morte, mas na da Vida,
Novos degredados vêm.

Ó alma contemplativa !

Vem já, decumana e altiva,
Entre as ondas talvez,
A que, no supremo esforço
Da morte, em seu frio dorso,
Te leve ao largo, outra vez.

Quanto esplendor!  São aquelas

As regiões de luz, que anelas,
Rompe os rígidos grilhões,
Com que à Carne de agrilhoa
O instinto vital!  E voa,
e voa àquelas regiões!...


Poetas Brasileiros quarta, 22 de agosto de 2018

MARIA TETÊ (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

MARIA TETÊ

Patativa do Assaré

(A história da mulher que tinha muita sorte na vida)

 

Dotô, meu sinhô dotô,

Eu nunca gostei de inredo

Mas vou lhe dizê quem sou

Mesmo sem pedi segredo.

Sou um cabôco sem sorte,

Naci nas terra do Norte

E se de lá vim me imbora

E tô no Sú do país,

É somente pruque fiz

Um casamento caipora.

 

Nunca quis questão nem briga

Nem com quem já me ofendeu

Não sei pruque Deus castiga

Um home bom como eu

Que não maltrata ninguém.

Pro sinhô conhecê bem,

Meu nome é Jorge Sutinga,

Sou honesto e sou honrado

E nunca fui viciado,

Não fumo, nem bebo pinga.

 

Promode vivê tranquilo

Não gosto de censurá,

Só acredito naquilo

Que vejo a prova legá

E é por isto que eu tou certo

Que o mundo é cheio de isperto

Iganando a boa fé;

O dotô vai já sabê

Quem foi Maria Têtê

A minha ingrata muié.

 

Têtê era uma morena

Destas que sabe laçá

Que infeitiça e que invenena

Logo do premêro oiá:

Lôco por ela eu vivia

E ela tombém me queria

Nós dois tava apaxonado

Com o mesmo pensamento

Até que veio o momento

Do casamento azalado.

 

Casei com munto prazê,

Pois com certeza lhe digo,

Nunca Maria Têtê

Se aborrecia comigo.

Além de sê munto bela,

Minha vontade era a dela,

Sua vontade era minha.

A nossa vida eu cumparo

Duas conta do rosaro

Correndo na mesma linha.

 

No meu vivê de marido,

Fiz inveja a munta gente,

De Tetê sempre querido,

Mas como sou decendente

De famia de agregado,

Com dois ano de casado

Por capricho do destino,

Ao lado da minha prenda

Eu fui morá na fazenda

Do coroné Virgulino.

 

A fazenda era um colosso

De terra, miunça e gado

E o coroné, belo moço

Lôro, dos óio azulado.

Recebeu nóis satisfeito,

Com tenção e com respeito,

Com delicada manêra,

Com inducação e brio,

Como quem recebe um fio

Qui vem das terra istrangêra.

 

E me dixe: seu Sutinga,

Pode morá sossegado,

Tem baxio e tem catinga

Pro sinhô botá roçado.

Mode o sinhô trabaiá,

Toda vez que precisá,

Posso lhe arrumá dinhêro

E in suas arrumação,

Se achando com precisão,

Pode matá um carnêro.

 

Com o que ele dixe a mim,

Eu falei para a Têtê:

Patrão delicado assim,

É custoso a gente vê,

Com esta grande franqueza

Já quage tenho a certeza

De nóis miorá depois,

Este é patrão de verdade;

Repare a felicidade

Correndo atrás de nós dois.

 

As promessa que ele fez

Correto desempenhava,

E com seis ou sete mês

Que nóis na fazenda tava,

Quando foi um certo dia

No caminho que descia

Pra cacimba de bebê,

Têtê achou um tesôro,

Era um rico cordão de ôro,

Valia a pena se vê.

 

Eu lhe dixe com razão:

- Grande preço a jóia tem,

Acho bom guardá o cordão

Que o dono a percura vem.

Mas Têtê me arrespondeu:

- Esta jóia arguém perdeu,

Ela tava no abandono

Perdida inriba do chão,

Vou usando este cordão

Inté aparecê dono.

 

Com mais uns tempo pra frente

Que isto tinha acunticido,

Tetê achou novamente

Ôtro objeto perdido.

Da cidade eu tinha vindo,

Quando ela me oió se rindo

Com seu oiá feiticêro

E dixe: quirido Jorge

Hoje eu achei um reloge

Que vale munto dinhêro.

 

Vendo que ela tinha sorte,

O dito era verdadêro

Proque passava trensporte

Bem perto do meu terrêro,

Dixe com sinceridade

Sem um pingo de mardade

Batê no meu coração:

Este reloginho é

De arguma rica muié

Que passou no caminhão.

 

Logo um jurgamento eu fiz,

De prazê todo repreto.

Eita, que Têtê feliz

Promode achá objeto!

Foi tanta felicidade,

Que pra dizê a verdade

Inté dinhêro ela achô.

E com tanta coisa achada,

Têtê andava infeitafa

Que nem muié de dotô.

 

Ela já tinha pursêra

Ané, reloge e cordão,

Mas de minha companhêra

Eu não censurava não!

Pois delicada, tão boa,

Eu não podia mardá.

Meu coração é tranquilo,

Só acredito naquilo

Que veio prova legá.

 

O tempo alegre corria

E nóis alegre vivendo,

Quando uma coisa eu queria,

Têtê já tava querendo.

Causava admiração

A nossa grande união,

Sem ninguém se aborrecê.

Tudo era amô e carinho,

Mas porém nóis dois sozinho

Sem famía aparecê.

 

Ia dia, vinha dia,

E a união a crecê

Inté que chegou o dia

De Maria adoecê.

A pobre fazia pena,

Sua cô que era morena

Tava ficando amarela,

Um fastio, uma murrinha

E sintindo uma coisinha

Friviando dentro dela.

 

Com esta situação

Eu fiquei triste e sem graça,

Pedi um burro ao patrão,

Fui batê lá na farmaça

E contei tudo ao dotô;

Ele um caderno pegou

E logo que o istudo fez

Me garantiu que Maria

Ia sê mãe de famia

No prauzo de nove mês.

 

Não era coisa medonha,

O dotô logo deu fé

Que era uma tal de cegonha,

Que mexe com as muié

Eu sinti grande alegria

Quando sube que Maria

Ia sê a mãe de um fio,

E tanto que da viage

Só truxe uma beberage

Mode ela acabá o fastio.

 

A gente fica contente

Que só mesmo deus conhece

Quando o desejo da gente

Na nossa vida acontece.

Eu vivia a maginá

Aqui, ali e acolá,

No mato, in casa e na roça;

Os nove mês eu contava,

Quanto mais dia passava,

Mais Têtê ficava grossa.

 

Deus é grande e tem bondade

Ele é o nosso Pai Celeste

Que defende a humanidade

De fome, de guerra e peste.

Mas é preciso que eu diga,

Não sei pruquê Deus castiga

Um homem bom cumo eu.

Dotô, veja o meu azá,

Agora é que eu vou contá

O que foi que aconteceu.

 

Certo dia da sumana,

Eu chegando da cidade,

Vi que na minha chupana

Tinha grande nuvidade,

Tudo in rubuliço tava,

Muié saía e entrava,

Muié entrava e saía

No maió contentamento;

Têtê naquele momento

Já era mãe de famia.

 

Eu que tudo já sabia

Sinti naquele segundo,

A mais maió alegria

Que si pode tê no mundo.

Mas veja a sorte misquinha:

Quando eu entrei na cuzinha,

Uvi no pé do fogão

Arguém, baixinho, dizê:

O minino da Têtê

Tem a cara do patrão.

 

Com esta conversa feia,

Que arguém cuchichou dizendo,

Com um fogo nas urêia

Saí pro quarto correndo

E vi lá Têtê deitada

Na cama toda imbruiada,

O corpo todo cuberto

E a cara também ocurta,

Como a pessoa qui furta

E o robô vai discuberto.

 

Quando naquele minino,

Eu vi a cópias fié

Da cara do Virgulino,

O traidô coroné,

Vi que o tiro da desgraça

Bateu in minha vifraça

E a minha luz apagou.

A coisa tava sem jeito,

O coração no meu peito

Virou um bolo de dô.

 

Meu trumento e meu castigo

Naquela criança eu via

Não parecia comigo

Nem com a mãe parecia.

Têtê da cô de canela;

Tombém o cabelo dela

Cô de pena de jacu

E o capeta do minino,

Lôro, do cabelo fino

Além disto, os óio azu!

 

Foi grande a minha caipora

E foi maió o meu desgosto,

Eu saí de porta afora

Com as duas mão no rosto

Andando sem dereção;

E fui me sentá no chão

Lá pru detrás do currá.

E pensando in meu distino

Chorei mais de que minino

Quando chora pra mamá.

 

Sinti minha arma firida,

Não pude istancá meu choro,

Pruquê Têtê nesta vida

Era todo o meu tesôro,

E eu vi naquele momento

Disonrado o juramento

Mais sagrado deste mundo;

Vi naquela hora misquinha

Que a minha requeza tinha

Virado um cheque sem fundo.

 

Com o corpo ardendo in brasa,

Eu vortei de pé manêro

E entrando dentro de casa

Como o gato treiçoêro

Quando qué jogá o bote

Arrumei meus cafiote,

Botei no borso uns vintém

E como negro fugido

Saí de casa escondido,

Sem dizê nada a ninguém.

 

Dotô, derne aquele istante,

Eu virei um vagabundo

E hoje do torrão distante

Ando na lasca do mundo,

Sempre de ruim a pió,

Sem ninguém de mim tê dó,

Vagando com sacrifiço

Todo dia da sumana

Como abêia intaliana

Quando não acha curtiço.

 

Muié farsa é um castigo

E dela ninguém iscapa,

Têtê foi farsa comigo

Dibaxo de sete capa

Com a cara do seu fio

Discubrio o trocadio,

Vi que o reloge e os ané,

A pursêra, o cordão de ôro

E todo aquele tesôro,

Quem deu foi o coroné.

 

Veja dotô minha sorte,

Sou vagabundo infeliz

Longe das terra do Norte,

Aqui no Sú do país,

Coberto de sofrimento,

Só proquê meu casamento

Com a Maria Têtê

Foi triste e foi azalado

Foi mesmo que eu tê comprado

Cartia pro ôtro lê.


Poetas Brasileiros terça, 21 de agosto de 2018

PRIMAVERA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

PRIMAVERA

Olavo Bilac

 

Ah! quem nos dera que isto, como outrora, 
Inda nos comovesse! Ah! quem nos dera 
Que inda juntos pudéssemos agora 
Ver o desabrochar da primavera! 

Saíamos com os pássaros e a aurora. 
E, no chão, sobre os troncos cheios de hera, 
Sentavas-te sorrindo, de hora em hora: 
"Beijemo-nos! amemo-nos! espera!" 

E esse corpo de rosa recendia, 
E aos meus beijos de fogo palpitava, 
Alquebrado de amor e de cansaço. 

A alma da terra gorjeava e ria... 
Nascia a primavera... E eu te levava, 
Primavera de carne, pelo braço! 


Poetas Brasileiros segunda, 20 de agosto de 2018

POEIRA (POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

POEIRA

Humberto de Campos

 

Poeira leve, a vibrar as moléculas: poeira
Que um pobre sonhador, à luz da Arte, risonho,
Busca fazer faiscar: pó, que se ergue à carreira
Do Mazepa do Amor pela estepe do Sonho.
Para ver-te subir, voar da crosta rasteira
Da terra, a trabalhar, todas as forças ponho:
E a seguir teu destino, enlevada, a alma inteira
O teu ciclo fará, seja suave ou tristonho.
Não irás, com certeza, alto ou distante. O insano
Pó não és que, a turvar o céu claro da Itália,
Traz o vento, a bramir, do Deserto africano:
Que és o humílimo pó duma estrada sem povo,
Que, pisado uma vez, pelo ambiente se espalha,
Sente um raio de Sol, cai na terra de novo.


Poetas Brasileiros sábado, 18 de agosto de 2018

A AVENIDA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

 

A AVENIDA

Ferreira Gullar

 

16

O relógio al alto,

As flores que o vento subjuga

A grama a crescer

Na ausência dos homens.

Não obstante,

As praias não cessam.

Simultaneidade!

Diurno milagre, fruto de

Lúcida matéria – Imputrescível!

O claro contorno elaborado sem descanso.

Alegria limpa, roubada

Sem qualquer violência

Ao trabalho doloroso das coisas!

2

Matéria! Esta avenida é eterna!

Que fazem os galhos

Erguidos no vazio

Se não garantem sua permanência?

O relógio ri.

O canteiro é um mar sábio

Contido, suicidado.

Na luz desamparada,

As corolas desamparadas.

3

Precárias são as praias dos homens:

Praias que morrem na cama com ódio

E o sexo: perde- no pó sem voz.

A importância das praias para o mar!

Praias, amadurecimento:

Aqui o mar crepita e fulgura

Fruto trabalhado dum fogo seu,

Aceso das águas,

Pela faina das águas.


Poetas Brasileiros sexta, 17 de agosto de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 08 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA -08 

Eno Teodoro Wanke

Felicidade, vantagem

Que todos querem ganhar

Não é bem um fim de  viagem

É um modo de viajar

 


Poetas Brasileiros quinta, 16 de agosto de 2018

SONETO - 6 (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUZA)

SONETO - 6 

Cruz e Sousa

Quando apareces, fica-se impassível

E mudo e quedo, trêmulo, gelado!...

Quer-se ficar com atenção, calado,

Quer-se falar sem mesmo ser possível!...

 

Anda-se c'o a alma n'um estado horrível

O coração completamente ervado!...

Quer-se dar palmas, mas sem ser notado,

Quer-se gritar, n'uma explosão temível!...

 

Sobe-se e desce-se ao país das fadas,

Vaga-se co’as nuvens das mansões doiradas

Sob um esforço colossal, titânio!...

 

E as ideias galopando voam...

Então lá dentro sem parar, ressoam

As indomáveis convulsões do crânio!!...


Poetas Brasileiros terça, 14 de agosto de 2018

NA MARGEM (4ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

NA MARGEM

Castro Alves

(Do Poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

 

"Vamos! Vamos! Aqui por entre os juncos
Ei-la a canoa em que eu pequena outrora
Voava nas maretas... Quando o vento,
Abrindo o peito à camisinha úmida,
Pela testa enrolava-me os cabelos,
Ela voava qual marreca brava
No dorso crespo da feral enchente!

Voga, minha canoa! Voga ao largo!
Deixa a praia, onde a vaga morde os juncos
Como na mata os caititus bravios...

Filha das ondas! andorinha arisca!
Tu, que outrora levavas minha infância
— Pulando alegre no espumante dorso
Dos cães-marinhos a morder-te a proa, —
Leva-me agora a mocidade triste
Pelos ermos do rio ao longe... ao longe..."

Assim dizia a Escrava...
Iam caindo
Dos dedos do crepúsclo os véus de sombra,
Com que a terra se vela como noiva
Para o doce himeneu das noites límpidas ...

Lá no meio do rio, que cintila,
Como o dorso de enorme crocodilo,
Já manso e manso escoa-se a canoa.
Parecia, assim vista ao sol poente,
Esses ninhos, que tombam sobre o rio,
E onde em meio das flores vão chilrando
— Alegres sobre o abismo — os passarinhos!...

............................................

Tu — guardas algum segredo?...
Maria, stás a chorar!
Onde vais? Por que assim foges,
Rio abaixo a deslizar?
Pedra — não tens o teu musgo?
Não tens um favônio — flor?
Estrela — não tens um lago?
Mulher — não tens um amor?


Poetas Brasileiros segunda, 13 de agosto de 2018

JURITI (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

JURITI

Casimiro de Abreu

Na minha terra, no bulir do mato, 
A juriti suspira; 
E como o arrulo dos gentis amores, 
São os meus cantos de secretas dores 
No chorar da lira. 

De tarde a pomba vem gemer sentida 
À beira do caminho; 
– Talvez perdida na floresta ingente – 
A triste geme nessa voz plangente 
Saudades do seu ninho. 

Sou como a pomba e como as vozes dela 
É triste o meu cantar; 
– Flor dos trópicos – cá na Europa fria 
Eu definho, chorando noite e dia 
Saudades do meu lar. 

A juriti suspira sobre as folhas secas 
Seu canto de saudade; 
Hino de angústia, férvido lamento, 
Um poema de amor e sentimento, 
Um grito d’orfandade! 

Depois... o caçador chega cantando. 
À pomba faz o tiro... 
A bala acerta e ela cai de bruços, 
E a voz lhe morre nos gentis soluços, 
No final suspiro. 

E como o caçador, a morte em breve 
Levar-me-á consigo; 
E descuidado, no sorrir da vida, 
Irei sozinho, a voz desfalecida, 
Dormir no meu jazigo. 

E – morta – a pomba nunca mais suspira 
À beira do caminho; 
E como a juriti, – longe dos lares – 
Nunca mais chorarei nos meus cantares 
Saudades do meu ninho!


Poetas Brasileiros domingo, 12 de agosto de 2018

O LÁZARO DA PÁTRIA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

O LÁZARO DA PÁTRIA

Augusto dos Anjos

 

 

Filho podre de antigos Goitacases, 
Em qualquer parte onde a cabeça ponha, 
Deixa circunferências de peçonha, 
Marcas oriundas de úlceras e antrazes. 
 
Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha, 
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes. 
 
Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece. 
 
Riem as meretrizes no Cassino, 
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!


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