Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias terça, 02 de julho de 2019

DESPEDIDA (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

DESPEDIDA 

Adelino Fontoura

 

Pois que é chegada finalmente a hora
Do triste afastamento e da provança,
Venho dizer-te adeus, gentil criança,
Venho dizer-te adeus, pois vou-me embora.

Morreu em mim a última esperança,
Bem como um sonho bom que se evapora;
Não sei que dor maior que resta agora
Sofrer, nem que maior desesperança.

Não sei, ó sorte mísera e nefasta,
Que assim me arrancas do seu lar querido,
Que assim me roubas sua imagem casta.

Bem vês que eu tenho o coração partido,
E teu peito, inda assim, não desengasta
Um soluço, uma lágrima, um gemido.


Poemas e Poesias segunda, 01 de julho de 2019

A SERENATA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

A SERENATA

Adélia Prado

 


Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim. 
Estou no começo do meu desespero 
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão. 
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo  vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?


Poemas e Poesias domingo, 30 de junho de 2019

A BERLIM (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A BERLIM

Vinicius de Moraes

 


Vós os vereis surgir da aurora mansa 
Firmes na marcha e uníssonos no brado 
Os heróicos demônios da vingança 
Que vos perseguem desde Stalingrado. 

As mãos queimadas do fuzil candente 
As vestes podres de granizo e lama 
Vós os vereis surgir subitamente 
Aos heróicos prosélitos do Drama. 

De início mancha tateante e informe 
Crescendo às sombras da manhã exangue 
Logo o vereis se erguer, o Russo enorme 
Sob um sol rubro como um punho em sangue. 

E ao seu avanço há de ruir a Porta 
De Brandemburgo, e hão de calar os cães 
E então hás de escutar, Cidade Morta 
O silêncio das vozes alemãs.


Poemas e Poesias sábado, 29 de junho de 2019

COCO DE PAGU (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

COCO DE PAGU

Raul Bopp

 

Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-côco quando passa.
Coração pega a bater.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.

Eli Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.


Poemas e Poesias sexta, 28 de junho de 2019

COMUNHÃO DA SERRA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

COMUNHÃO DA SERRA

Quintino Cunha

 

Ontem, à noite, eu vi a minha Serra,
Como uma virgem, trêmula, contrita,
Recebendo de Deus, daqui da terra,
Uma hóstia do Céu, hóstia bendita.

Como foi, para vê-la assim? De neves
Era o véu transparente, que a cobria,
Vendo-se aqui e ali negros tons leves,
Do negro que do verde aparecia.

Tons negros, talvez restos, que os comparo,
De alguma nuvem torva, esfacelada
Por Deus, que só queria o Céu bem claro,
Porque ia dar a hóstia consagrada!

o cafeeiral, que rebentava em flores,
A grinalda na fronte lhe brotava;
E o frio, rebento dos temores,
No seu intimo, o frio rebentava!

Assim a Natureza era o sacrário,
De onde Deus dava a comunhão radiosa
À Serra! E era o Céu o grande hostiário
E era a lua, a hóstia luminosa.

E digam que eu não vi a minha Serra,
Como uma virgem, de grinalda e véu,
Recebendo de Deus, daqui da terra,
A hóstia luminosa lá do Céu!

 


Poemas e Poesias quinta, 27 de junho de 2019

VOU VORTÁ (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

VOU VORTÁ

Patativa do Assaré

 

 

Vou vortá pro meu sertão

Não posso me acostumar

Com o grande rebuliço das ruas da capital:

Vem um carro em minha frente,

De pressa, de repente,

Já vem outro por detrás...

É uma coisa sem soma

E o fôlego que agente toma

É só catinga de galho

Eu não gostei do rejume da vida da capital

Eu aqui só gostei muito do mar!

Deste grande mar

Que grande poço pai d´égua!

Ele tem légua e mais légua

Agente só sabe é vendo

Veve a roncar com orgulho

De longe se oiço o barulho

Das águas se arremexendo 

Aquilo é que é ser bonito!

Eta marzão colossal!

Não goza nada da vida quem morre sem ver o mar

Eu atarentado fico em ver aquele fuxico

A zuada da maré, aquela grande peleja

O mar tem o que quer que seja

Que só Deus sabe o que é.

Vi o mar, volto contente

A viagem não perdi.

Ele fez eu me lembrar

Lá dos campos onde eu nasci

Vendo a verdura das águas

Uma saudade, uma mágoa

Dentro do meu coração

Como lanceta furou:

Essas águas tem a cor das matas do meu sertão.


Poemas e Poesias quarta, 26 de junho de 2019

ACARAÚ (PEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

ACARAÚ

Padre Antônio Tomás


Revejo em sonho a terra estremecida 
Do Acaraú... seus vastos tabuleiros, 
A minha casa, os belos companheiros 
Que lá deixei na hora da partida. 

Vejo o mercado, as Pontes, a Avenida, 
O Rio, o Porto, os Mangues altaneiros, 
Ouço o rugir dos ventos nos coqueiros, 
E, além, do mar queixoso a voz sentida. 

Do velho sino os graves tons escuto, 
E lá do torreão no cocuruto, 
De andorinhas avisto inquieto bando... 

Entro na igreja, – minha igreja outrora, – 
E vejo em seu altar Nossa Senhora, 
Com seu olhar piedoso me fitando... 
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Poemas e Poesias terça, 25 de junho de 2019

CAMPO SANTO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

CAMPO SANTO

Olavo Bilac

 

Os anos matam e dizimam tanto
Como as inundações e como as pestes.
A alma de cada velho é um Campo-Santo 
Que a velhice cobriu de cruzes e ciprestes
Orvalhados de pranto.

Mas as almas não morrem como as flores, 
Como os homens, os pássaros e as feras:
Rotas, despedaçadas pelas dores,
Renascem para o sol de novas primaveras 
E de novos amores.

Assim, às vezes, na amplidão silente, 
No sono fundo, na terrível calma
Do Campo-Santo, ouve-se um grito ardente:
É a Saudade! é a Saudade!... 
E o cemitério da alma 
Acorda de repente.

Uivam os ventos funerais medonhos. .
Brilha o luar... As lápides se agitam. .
E, sob a rama dos chorões tristonhos,
Sonhos mortos de amor despertam e palpitam,
Cadáveres de sonhos...


Poemas e Poesias segunda, 24 de junho de 2019

A RUA DOS CATA-VENTOS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

 A RUA DOS CATA-VENTOS

Mário Quintana

 

 

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


Poemas e Poesias domingo, 23 de junho de 2019

A CANÇÃO DAS LÁGRIMAS DE PIERROT (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A CANÇÃO DAS LÁGRIMAS DE PIERROT

Manuel Bandeira

 




A sala em espelhos brilha 
Com lustres de dez mil velas. 
Miríades de rodelas 
Multicores - maravilha! - 

Torvelhinham no ar que alaga 
O cloretilo e se toma 
Daquele mesclado aroma 
De carnes e de bisnaga. 

E rodam mais que confete, 
Em farândolas quebradas, 
cabeças desassisadas 
Por Colombina ou Pierrete 

II 

Pierrot entra em salto súbito. 
Upa! Que força o levanta? 
E enquanto a turba se espanta, 
Ei-lo se roja em decúbito. 

A tez, antes melancólica, 
Brilha. A cara careteia. 
Canta. Toca. E com tal veia, 
com tanta paixão diabólica, 

Tanta, que se lhe ensangüentam 
Os dedos. Fibra por fibra, 
Toda a sua essência vibra 
Nas cordas que se arrebentam. 

III 

Seu alaúde de plátano 
Milagre é que não se quebre. 
E a sua fronte arde em febre, 
Ai dele! e os cuidados matam-no. 

Ai dele! e essa alegria, 
Aquelas canções, aquele 
Surto não é mais, ai dele! 
Do que uma imensa ironia. 

Fazendo à cantiga louca 
Dolorido contracanto, 
Por dentro borbulha o pranto 
Como outra voz de outra boca: 

IV 

- "Negaste a pele macia 
À minha linda paixão 
E irás entregá-la um dia 
Aos feios vermes do chão... 

"Fiz por ver se te podia 
Amolecer - e não pude! 
Em vão pela noite fria 
Devasto o meu alaúde... 

"Minha paz, minha alegria, 
Minha coragem, roubaste-mas... 
E hoje a minh'alma sombria 
É como um poço de lástimas..." 



Corre após a amada esquiva. 
Procura o precário ensejo 
De matar o seu desejo 
Numa carícia furtiva. 

E encontrando-o Colombina, 
Se lhe dá, lesta,  socapa, 
Em vez de beijo um tapa, 
O pobre rosto ilumina-se-lhe! 

Ele que estava de rastros, 
Pula, e tão alto se eleva, 
Como se fosse na treva 
Romper a esfera dos astros!...


Poemas e Poesias sábado, 22 de junho de 2019

ARTE DE INFANTILIZAR FORMIGAS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

A ARTE DE INFANTILIZAR FORMIGAS

Manoel de Barros

 

As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras.
O truque era só virar bocó.
Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol…
O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.
O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios.
Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado?
As distâncias somavam a gente para menos.
O pai campeava campeava.
A mãe fazia velas.
Meu irmão cangava sapos.
Bugrinha batia com uma vara no corpo do sapo e ele virava uma pedra.
Fazia de conta?
Ela era acrescentada de garças concluídas.


Poemas e Poesias sexta, 21 de junho de 2019

O DESFECHO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O DESFECHO

Machado de Assis

 

 

Prometeu sacudiu os braços manietados

E súplice pediu a eterna compaixão,

Ao ver o desfilar dos séculos que vão

Pausadamente, como um dobre de finados.

 

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,

Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...

Súbito, sacudindo as asas de tufão,

Fita-lhe a águ[i]a em cima os olhos espantados.

 

Pela primeira vez a víscera do herói,

Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,

Deixou de renascer às raivas que a consomem.

 

Uma invisível mão as cadeias dilui;

Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;

Acabara o suplício e acabara o homem.


Poemas e Poesias quarta, 19 de junho de 2019

INVENÇÃO DE ORFEU (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

INVENÇÃO DE ORFEU

Jorge de Lima

 

 

CANTO III

POEMAS RELATIVOS

I

Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.

Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.

O sono está.
E um homem dorme.

II

Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?
Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.

Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:
folha e flor. Tu - haste,
elas reais, mas réstias.

III

qualquer voz alou-se
muito desejada.
Branco fosse o espaço
e ela ardente cor.

Quis o espaço a voz
a voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse
propriamente voz...

Vamos nós supô-los:
dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmo
dois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmos
na voz recebida.

E o espaço esvaziado
povoá-lo de vez.

Amá-los tão sem
amada presença,
só com o coração
sem correspondência,
só com a vocação
do verso feliz.

IV

Numas noites chegamos à janela,
e as mandíbulas do ar tanto nos roem,
que os leitos rotos logo deliqüescem
com os nossos corpos complacentemente.

Certos dias olhamos o sol claro;
e a boca hiante das cores nos devora
carnes e sangues, poeiras de costelas,
que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,
vigiando dia e noite nossas vidas
um minuto no espaço, menos que ai
de chumbo soluçado nos silêncios,
ou cal de fome longa, revelada,
na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem senso
sorriso nos ares,
minha alma perdida,
os vales lá embaixo
de minhas lonjuras
de não existido,
parado nos antes,
nem sei de pecados,
nem sei de mim mesmo,
eu mesmo não sou
nem nada me vê;
ausentes palavras
não soam no vácuo
dos antes das coisas,
das coisas sem nexo,
nem fluidos. Só o Verbo
chorando por mim.

VI

Agora, escutai-me
que eu falo de mim;
ouvi que sou eu,
sou eu, eu em mim;
tocai esses cravos
já feitos pra mim,
suores de sangue,
pressuados sem poros
verônica herdada.
sem face do ser.

Embora; escutai-me,
que eu falo com a voz
inata que diz
que a voz não é essa
que fala por mim,
talvez minha fala
saída de ti.

VII

Alegria achareis neste poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se
conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doente,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;
ou como sente os ombros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,
reencontrados países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.

VIII

Se falta alguém nesses versos
pele vento interminável,
pelas arenas de estátuas,
sucedam-lhe os cegos olhos
sacudidos pelos medos,
mãos de chuvas lhe inteiricem
o corpo com algas remissas
e com matérias tranqüilas
tão soturna como os poços,
exasperados invernos,
ombros de escova comida,
as asas secas caídas,
ante seus netos calados;
e incorporem-se a esse alvitre
esse sabor de cortiça,
essas esponjas morridas,
essas marés estanhadas,
essas escunas de espáduas
estritamente fechadas
como casas de abandono,
restringem-se os conciliábulos,
certos sigilos de pez,
certas coisas enlutadas,
refúgios, dramas ocultos,
pois as rosas são de trapos
e os fios menos que teias,
menos que finos agora,
e as camisas sem os pêlos
enterrados nas ilhargas,
vestem enganos e punhos
e crimes em vez de adegas,
mas tudo em vão, mesmo as plumas,
mesmo os ausentes e as vozes
aderidas a fragmentos
aí moram degredadas,
listrando as grades, de faces
que não conhecem espelhos

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos
E flores despenteadas, flores largas e a barbárie
e inconfidentes quase abominadas dos corpos.
por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade
do espírito
Lírios eram pilares de cristal sob o cerco
subindo para as aves; então dardos da matéria.
desceram sobre os mais amados colos
cantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu
sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.
Tudo contém pequenas doces máscaras.
Mas da selva selvagem desce o pranto
dos que mastigam suas próprias fomes,
sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.
E esse amor é amaríssimo e adstringente
com a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhos
os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Clodoveu ou Clodovigo?
Éreis vós por acaso eles?
Éreis vós aqueles nomes,
estes, e os demais já mortos,
os mortos tão renovados
nós mesmos sempre chamados
Lútero, Lotário, otário,
sim otário tão singelo,
tão puro de todo o mal,
relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Dizei-me se acaso vós
éreis eles ou voz sou
de algum avo tão otário,
tão eu mesmo como voz,
como poema de outros vários.

XII

O simples ar
de uma só corda
em curta raia,
mão de menino,
punhado escasso,
ar perfumado,
sem o alvoroço
dos vendavais;
anjo acolhido
em róseo céu
abrigo instante,
pranto lavado,
chorar em ti
de arrependido,
subir teus vales,
amar teu pólen,
nunca escapar-me
de tuas pétalas
cair com elas.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O contro era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluí


Poemas e Poesias terça, 18 de junho de 2019

A PALAVRA SEDA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A PALAVRA SEDA

João Cabral de Melo Neto

 

A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície 
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma, 
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

Poemas e Poesias segunda, 17 de junho de 2019

AMANHECER (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

AMANHECER

Hilda Hilst

 

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.


Poemas e Poesias domingo, 16 de junho de 2019

NO MUNDO HÁ MUITAS ARMADILHAS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NO MUNDO HÁ MUITAS ARMADILHAS

Ferreira Gullar

 

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e aguentarás até o fim.

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje

A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.


Poemas e Poesias sábado, 15 de junho de 2019

AS HORAS PELA ALAMEDA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AS HORAS PELA ALAMEDA

Fernando Pessoa

 

As horas pela alameda 
Arrastam vestes de seda, 

Vestes de seda sonhada 
Pela alameda alongada 

Sob o azular do luar... 
E ouve-se no ar a expirar - 

A expirar mas nunca expira - 
Uma flauta que delira, 

Que é mais a idéia de ouvi-la 
Que ouvi-la quase tranquila 

Pelo ar a ondear e a ir... 
Silêncio a tremeluzir... 


Poemas e Poesias sexta, 14 de junho de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 23 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 23

Eno Teodoro Wanke

 

Felicidade, vantagem

Que todos querem ganhar

Não é bem um fin de viagem

É um modo de viajar


Poemas e Poesias quinta, 13 de junho de 2019

A GRANDE DÚVIDA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A GRANDE DÚVIDA

Da Costa e Silva

 

 

Porque hei sofrido tantos golpes rudes, 
Às vezes penso que outra vida existe, 
Para ficar mais céptico e mais triste 
Com o meu destino de vicissitudes.

 

Nem sofrendo, às celestes amplitudes 
Hei de ascender à altura que atingiste, 
Por não poder, na prova que me assiste, 
Aos meus erros opor tuas virtudes.

 

Assim temo, a evocar-te a imagem linda, 
Que após a morte, venha a eternidade 
Esta separação tornar infinda...

 

E, então, o sentimento que me invade, 
Sem a esperança de te ver ainda, 
É dor eterna, não é mais saudade.


Poemas e Poesias quarta, 12 de junho de 2019

ADALZIZA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ADALZIZA

Cruz e Sousa

 

Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa,
Tens um pisar fascinante,
Tens um olhar cintilante
Cheio de raios, faiscante
Ó criatura formosa,
Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa!...


Poemas e Poesias terça, 11 de junho de 2019

AMIGO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

AMIGO

Cora Coralina

 

 

Vamos conversar
Como dois velhos que se encontram
no fim da caminhada.
Foi o mesmo nosso marco de partida.
Palmilhamos juntos a mesma estrada.

Eu era moça.
Sentia sem saber
seu cheiro de terra,
seu cheiro de mato,
seu cheiro de pastagens

É que havia dentro de mim,
no fundo obscuro de meu ser
vivências e atavismo ancestrais:
fazendas, latifúndios,
engenhos e currais.

Mas... ai de mim!
Era moça da cidade.
Escrevia versos e era sofisticada.

Você teve medo.
O medo que todo homem sente
da mulher letrada.

Não pressentiu, não adivinhou
aquela que o esperava
mesmo antes de nascer.

Indiferente
tomaste teu caminho
por estrada diferente.
Longo tempo o esperei
na encruzilhada,
depois... depois...
carreguei sozinha
a pedra do meu destino.

Hoje, no tarde da vida,
apenas,
uma suave e perdida relembrança.


Poemas e Poesias segunda, 10 de junho de 2019

A PERFEIÇÃO (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

A PERFEIÇÃO

Clarice Lispector

 

O que me tranquiliza 
é que tudo o que existe, 
existe com uma precisão absoluta. 

O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete 
não transborda nem uma fração de milímetro 
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. 

Tudo o que existe é de uma grande exatidão. 
Pena é que a maior parte do que existe 
com essa exatidão 
nos é tecnicamente invisível. 

O bom é que a verdade chega a nós 
como um sentido secreto das coisas. 

Nós terminamos adivinhando, confusos, 
a perfeição.


Poemas e Poesias domingo, 09 de junho de 2019

A CHÁCARA DO CHICO BOLACHA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

A CHÁCARA DO CHICO BOLACHA

Cecília Meireles

 

Na chácara do Chico Bolacha,
o que se procura
nunca se acha!

Quando chove muito,
o Chico brinca de barco,
porque a chácara vira charco.

Quando não chove nada,
Chico trabalha com a enxada
e logo se machuca
e fica de mão inchada.

Por isso, com o Chico Bolacha
o que se procura
nunca se acha!

Dizem que a chácara do Chico
só tem mesmo chuchu
e um cachorro coxo
que se chama Caxambu.

Outras coisas ninguém procura,
porque não acha,
coitado do Chico Bolacha!


Poemas e Poesias sexta, 07 de junho de 2019

ANJO (19ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DE CASTRO ALVES)

ANJO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Ai! Que vale a vingança, pobre amigo,
Se na vingança a honra não se lava?...
O sangue é rubro, a virgindade é branca —
O sangue aumenta da vergonha a bava.

"Se nós fomos somente desgraçados,
Para que miseráveis nos fazermos?
Desportados da terra assim perdemos
De além da campa as regiões sem termos...

"Ai! não manches no crime a tua vida,
Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...
Seria negro o amor de uma perdida
Nos braços a sorrir de um criminoso!. . . "


Poemas e Poesias quinta, 06 de junho de 2019

PERFUMES E AMOR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

PERFUMES E  AMOR

Casimiro de Abreu

 


A flor mimosa que abrilhanta o prado
Ao sol nascente vai pedir fulgor;
E o sol, abrindo da açucena as folhas,
Dá-lhe perfumes — e não nega amor.

Eu que não tenho, como o sol, seus raios,
Embora sinta nesta fronte ardor,
Sempre quisera ao encetar teu álbum
Dar-lhe perfumes — desejar-lhe amor.

Meu Deus! nas folhas deste livro puro
Não manche o pranto da inocência o alvor,
Mas cada canto que cair dos lábios
Traga perfumes — e murmure amor.

Aqui se junte, qual num ramo santo,
Do nardo o aroma e da camélia a cor,
E possa a virgem, percorrendo as folhas,
Sorver perfumes — respirar amor.

Encontre a bela, caprichosa sempre,
Nos ternos hinos d'infantil frescor
Entrelaçados na grinalda amiga
Doces perfumes — e celeste amor.

Talvez que diga, recordando tarde
O doce anelo do feliz cantor:
— "Meu Deus! nas folhas do meu livro d'alma
Sobram perfumes — e não falta amor!"


Poemas e Poesias quarta, 05 de junho de 2019

A MESMA ROSA AMARELA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A MESMA ROSA AMARELA

Carlos Pena Filho

 

 

Você tem quase tudo dela,

o mesmo perfume, a mesma cor,

a mesma rosa amarela,

só não tem o meu amor.

 

Mas nestes dias de carnaval

para mim, você vai ser ela.

O mesmo perfume, a mesma cor,

a mesma rosa amarela.

Mas não sei o que será

quando chega a lembrança dela

e de você apenas restar

a mesma rosa amarela,

a mesma rosa amarela.


Poemas e Poesias terça, 04 de junho de 2019

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA (POEMA D MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

Carlos Drummond de Andrade

 

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
rebunda.


Poemas e Poesias segunda, 03 de junho de 2019

SONETO 091 - AQUELA TRISTE E LEDA MADRUGADA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AQUELA TRISTE E LEDA MADRUGADA

Soneto 091

Luís de Camões

 

Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
de que uns e outros olhos derivadas
se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.


Poemas e Poesias domingo, 02 de junho de 2019

SONETO DO PREGADOR PECADOR (POEMA O PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO PREGADOR PECADOR

Bocage

 

Bojudo fradalhão de larga venta,
Abismo imundo de tabaco esturro,
Doutor na asneira, na ciência burro,
Com barba hirsuta, que no peito assenta:

No púlpito um domingo se apresenta;
Pregas nas grades espantoso murro;
E acalmado do povo o grão sussurro
O dique das asneiras arrebenta.

Quatro putas mofavam de seus brados,
Não querendo que gritasse contra as modas
Um pecador dos mais desaforados:

"Não (diz uma) tu padre não me engodas:
Sempre, me hé-de lembrar por meus pecados
A noite, em que me deste nove fodas"!


Poemas e Poesias sábado, 01 de junho de 2019

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Augusto dos Anjos

 

 

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez ás máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que ainda eu suba mais!


Poemas e Poesias sexta, 31 de maio de 2019

A PEGA DO BOI (PEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

A PEGA DO BOI

Ascenso Ferreira

 

A rês tresmalhada
ouviu na quebrada,
soar a toada,
de alguém que aboiou:

— Hô — hô — hô — hô — hô,
Vaá!
Meu boi Surubim!
Boi!
Boiato!

E, logo espantada,
sentindo a laçada,
no mato embocou...

Atrás, o vaqueiro,
montando o "Veleiro"
também mergulhou...

Os casco nas pedras
davam cada risco
que só o corisco
de noite no céu...

Saltaram valados,
subriam oiteiros,
pisaram faxeiros
e mandacarus...

Até que enfim...
No Jatobá
do Catolé,
bem junto a um pé
de oiticoró,
já do Exu
na direção...

— O rabo da bicha reteve na mão!

Poeiriço danado e dois vultos no chão)
.......................................

Mas, baixa a poeira,
a res mandingueira
por terra ficou...

E um grito de glória
no espaço vibrou:

— Hô — hô — hô — hô — hô,
Váá!
Meu boi Surubim!
Boi!
Boiato!


Poemas e Poesias quinta, 30 de maio de 2019

A ESTRADA, POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA

 

 A ESTRADA

Ariano Suassuna

o relógio do Céu, o Sol ponteiro
Sangra a Cabra no estranho céu chumboso.
A Pedra lasca o Mundo impiedoso,
A chama da Espingarda fere o Aceiro.

No carrascal do sol, azul braseiro,
Refulge o Girassol rubro e fogoso.
Como morrer na sombra do meu Pouso?
Como enfrentar as flechas desse Arqueiro?

Lá fora, o incêndio: o roxo lampadário
das Macambiras rubras e auri-pardos
Anjos-diabos e Tronos-vai queimando.

Sopra o vento – o Sertão incendiário!
Andam monstros sombrios pela Estrada
e, pela Estrada, entre esses Monstros, ando!


Poemas e Poesias quarta, 29 de maio de 2019

EVOLUÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

EVOLUÇÃO

Antero de Quental

 

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo 
tronco ou ramo na incógnita floresta... 
Onda, espumei, quebrando-me na aresta 
Do granito, antiquíssimo inimigo... 

Rugi, fera talvez, buscando abrigo 
Na caverna que ensombra urze e giesta; 
O, monstro primitivo, ergui a testa 
No limoso paúl, glauco pascigo... 

Hoje sou homem, e na sombra enorme 
Vejo, a meus pés, a escada multiforme, 
Que desce, em espirais, da imensidade... 

Interrogo o infinito e às vezes choro... 
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro 
E aspiro unicamente à liberdade. 


Poemas e Poesias terça, 28 de maio de 2019

ADEUS, MEUS SONHOS (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

ADEUS, MEUS SONHOS

Álvares de Azevedo

 


Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!


Poemas e Poesias segunda, 27 de maio de 2019

ESTÂNCIA (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ESTÂNCIA

Alphonsus Guimaraens

 

Foi a tua beleza?
Foi toda a minha Dor?
Não sei, nem sabes, mas na devesa
Chorou cantando o rouxinol do amor.
Ias de preto, leve,
Como uma andorinha no ar.
Pelo céu tranquilo tombava a neve
Do meu pesar.
Como tinhas de ser crucificada,
Abri-te os braços…
O luar, mais brando do que tu, Amada,
Vinha guiar os nossos passos.
Agora que cheguei e que chegaste
Ao fim da vida,
Bem sabes que a ilusão com que sonhaste
Foi pérola de bem alto caída
E que vimos enfim no mar perdida…
No mesmo mar ebúrneo do teu seio,
Donde ela em tempos mais felizes veio!


Poemas e Poesias domingo, 26 de maio de 2019

CELESTE (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

CELESTE

Adelino Fontoura

 

 

 

É tão divina a angélica aparência 
e a graça que ilumina o rosto dela, 
que eu concebera o tipo de inocência 
nessa criança imaculada e bela.

 

Peregrina do céu, pálida estrela, 
exilada na etérea transparência, 
sua origem não pode ser aquela 
da nossa triste e mísera existência.

 

Tem a celeste e ingênua formosura 
e a luminosa auréola sacrossanta 
de uma visão do céu, cândida e pura.

 

E quando os olhos para o céu levanta, 
inundados de mística doçura, 
nem parece mulher - parece santa.

 


Poemas e Poesias sábado, 25 de maio de 2019

A INVENÇÃO DE UM MODO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

A INVENÇÃO DE UM MODO

Adélia Prado

 

 

Entre paciência e fama quero as duas,

pra envelhecer vergada de motivos.

Imito o andar das velhas de cadeiras duras

e se me surpreendem, explico cheia de verdade:

tô ensaiando. Ninguém acredita

e eu ganho uma hora de juventude.

Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,

a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"

Fico entre montanhas,

entre guarda e vã,

entre branco e branco,

lentes pra proteger de reverberações.

Explicação é para o corpo do morto,

de sua alma eu sei.

Estátua na Igreja e Praça

quero extremada as duas.

Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,

vendo televisão,

ou tirando sorte com quem vou casar.

Porque que tudo que invento já foi dito

nos dois livros que eu li:

as escrituras de Deus,

as escrituras de João.

Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão. 

Em busca de um conceito de relação.


Poemas e Poesias sexta, 24 de maio de 2019

A AUSENTE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A AUSENTE

Vinícius de Moraes

 

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...


Poemas e Poesias quinta, 23 de maio de 2019

COBRA NORATO - FRAGMENTOS (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

COBRA NORATO

Raul Bopp

 

(Fragmentos)

I
Um dia
ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.

Vou andando, caminhando, caminhando;
me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato.

— Quero contar-te uma história:
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar.

A noite chega mansinho.
Estrelas conversam em voz baixa.

O mato já se vestiu.
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a cobra.

Agora, sim,
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo:

Vou visitar a rainha Luzia.
Quero me casar com sua filha.

— Então você tem que apagar os olhos primeiro.
O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas.
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.

II
Começa agora a floresta cifrada.
A sombra escondeu as árvores.
Sapos beiçudos espiam no escuro.

Aqui um pedaço de mato está de castigo.
Árvorezinhas acocoram-se no charco.
Um fio de água atrasada lambe a lama.

— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!

Agora são os rios afogados,
bebendo o caminho.
A água vai chorando afundando afundando.

Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.

— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!

Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré.

— Eu só quero a filha da rainha Luzia.

Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.

— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!

A selva imensa está com insônia.

Bocejam árvores sonolentas.
Ai, que a noite secou. A água do rio se quebrou.
Tenho que ir-me embora.

E me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas cochilam.

De todos os lados me chamam:
— Onde vai, Cobra Norato?
Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.

— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

IV
Esta é a floresta de hálito podre,
parindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhar.

A correnteza arrepiada junto às margens
descasca barrancos gosmentos.

Raízes desdentadas mastigam lodo.

A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole
com medo de cair.

A lama se amontoa.

Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé.

Fede...

Vento mudou de lugar.

Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
Um assobio assusta as árvores.

Silêncio se machucou.

Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum

Um berro atravessa a floresta.

Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
Amarram as árvorezinhas contrariadas.

Chegam vozes.

Dentro do mato
pia a jurucutu.

— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

XXXII
— E agora, compadre,
eu vou de volta pro Sem-Fim.

Vou lá para as terras altas,
onde a serra se amontoa,
onde correm os rios de águas claras
em matos de molungu.

Quero levar minha noiva.
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar,
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor.

Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém.
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem, bem;

Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu,
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar,

E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
eu hei de contar histórias
(histórias de não-dizer-nada)
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar.


Poemas e Poesias quarta, 22 de maio de 2019

S PIRACEMA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

A PIRACEMA

Quntino Cunha

 

Aqui é um lago, feito de água clara,

Visualmente negro se mostrando;

Calmo que sobre si passa uma igara,

Como no espaço um passarinho voando.

 

Sol das dez da manhã. O amor compara

Este quadro à virtude. Um vento brando...

Mas lá fora no rio. Ele aqui para,

O lago, a mata e o céu quietos deixando.

 

Do anivelado espelho dágua, apenas

Manchado levemente por pequenas

Nódoas que lhe colorem, nódoas cérulas,

 

Aos bandos, as sardinhas vão surgindo,

Frágeis, cambiantes, rápidas, fugindo,

Como travessas conchas madrepérolas.


Poemas e Poesias terça, 21 de maio de 2019

APELO DE UM AGRICULTOR (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

APELO DE UM AGRICULTOR

Patativa do Assaré

 

 

Seu dotô, não lhe aborreço,
Venho é fazê um pedido
E como sei qui merêço,
Espero sê atendido.
Não quera se aborrecê,
Pois antes de lhe dizê
O meu desejo sagrado,
Vou minha históra contá
E o senhô vai iscutá
Todo meu palavriado.

 

 
Vevi sempre a trabaiá
De ferramenta na mão
Tenho no rosto o siná
Do quente só do sertão.
Tratando de agricurtura
Já mostrei grande bravura
Sempre dei uma premêra
Naquele tempo passado,
Fui o herói do machado
Foice, inxada e roçadeira.

 

 
Sei qui o dotô inguinora,
E tem bastante razão,
Pois quem na cidade mora,
Não vai pensá no Sertão,
E por isso eu vou assim
Contá tin-tin por tin-tin
Como é que tenho vivido,
Minhas razão eu dizendo
O dotô fica sabendo
Quanto eu lhe tenho servido.
 
Sou pai de quatôze fio,
Cabras macho de valô,
Pois num tem nenhum vadio,
São todos trabaiadô,
Cada um destes cabôco
Aprendeu a lê um pôco,
Mais porém mode votá,
Nunca nenhum levô pau,
Já são quatôze degrau
Pra seu dotô se atrepá.
 
Quando o dia amanhecia,
Que meu café eu tomava,
Pra meu roçado  ia
E os fio me acompanhava;
Pra roça eu levava tudo
Era os miúdo e os graúdo,
Era os menino e os rapaz,
Eu satisfeito e contente
Ia seguindo na frente
E aquela infiêra atráz.

O mais véio dava um grito:
__Anima rapaziada!
Era um truvejo bonito
No manejá das inxada;
Com licença da palavra,
Eu tinha da minha lavra
Munta gente em serviço
Trabaiando no roçado
Mode abastecê os mercado
Com os geno alimenticio
 
Defendendo a vida alêia,
Vivi sempre a trabaiá
E nunca fiz cara feia
Promode imposto pagá,
Pois todos aquele que tem
Budega, loja , armazém
E ôtras vendas de valô
O seu lucro nunca estraga,
Pruquê o imposto quem paga
É sempre o consumidô.
 
Fui um  correto sujeito 
E nunca baruio fiz.
Bradando contra os dereito
Criado em nosso país,
Eu nunca me revortava 
Quando pra fêra eu levava
Mio, farinha e feijão
Mode vendê no mercado
Qui chegava um impregado
Trazendo um papé na mão.
 
O agricurtô é desposto
Ele vende , paga imposto,
Se compra, paga também.
Nesta coisa maginando
Vejo qui venho pagando
Imposto derne menino,
Quando comprava bom-bom
Qui chupava e achava bom
Quando eu era pequeninino.
 
Mesmo assim , falando errado,
Já contei a seu dotô,
Quem eu já fui no passado,
Honesto e trabaiadô.
A linguage tá errada
Mas a verdade é sagrada.
E agora preste tensão,
Tenha a bondade de uvi
O qui eu venho lhe pedi
Com dereito e com razão:
 
Não lhe minto e nem lhe nego
Já tenho sessenta ano,
Sofro munto, não sossego,
Já vivo mole, sem prano;
E por isto, nesta idade,
Eu venho aqui lhe rogá
Pra eu sê apusentado
Com dereito carimbado,
Por meio do FUNRURÁ.
 
Sessenta ano, pra mim,
É uma carga pesada,
Tô achando munto ruim,
O peso da minha inxada;
Os fio todos casado
Eu, doente, fracassado,
E além de vivê doente,
Sou da percisão cativo
Sei lá se eu ainda vivo
Mais cinco ano pra frente?
 
Sei que o dotô considera
O meu dito verdadêro.
Que diabo é que a gente espera
Já com sessenta janêro?
Esta idade é um castigo
E é por isto que lhe digo:
Minha aposentadoria
Já é tempo de fazê,
Eu passos mais vivê
Dando murro todo dia.
 
Eu, novo, resovi tudo
Qui fiquei de péia grossa,
Fui cabra bamba, peitudo
Iguá um boi de carroça;
Passei minha vida intêra
Naquela grande cansêra
Da paioça pro roçado.
Se o nosso Brasi falasse
O lucro que eu tenho dado.
 
Já tô de cabelo branco,
A cara toda incuída,
Eu lhe digo e falo franco
Nesta viage da vida
Já tô no fim do caminho;
Seu dotô ,  vá de pouquinho
Mandando de lá pra cá,
Pra este meu cativêro,
Uma parte do dinhêro
Que mandei daqui pra lá.

Poemas e Poesias segunda, 20 de maio de 2019

A MORTE DO JANGADEIRO (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

A MORTE DO JANGADEIRO 

Padre Antônio Tomás

 

Ao sopro do terral abrindo a vela, 
Na esteira azul das águas arrastada, 
Segue veloz a intrépida jangada 
Entre os uivos do mar que se encapela. 

Prudente, o jangadeiro se acautela 
Contra os mil acidentes da jornada; 
Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada 
O vento, a chuva, os raios, a procela. 

Súbito, um raio o prostra e, furioso, 
Da jangada o despeja na água escura; 
E, em brancos véus de espuma, o desditoso. 

Envolve e traga a onda intumescida, 
Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura 
O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.
 


Poemas e Poesias domingo, 19 de maio de 2019

DENTRO DA NOITE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

DENTRO DA NOITE

Olavo Bilac

 

Ficas a um canto da sala,
Olhas-me e finges que lês..
Ainda uma vez te ouço a fala,
Olho-te ainda uma vez;
Saio... Silêncio por tudo:
Nem uma folha se agita;
E o firmamento, amplo e mudo,
Cheio de estrelas palpita.
E eu vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Mas não sei que luz me banha
Todo de um vivo clarão;
Não sei que música estranha
Me sobe do coração.
Como que, em cantos suaves,
Pelo caminho que sigo,
Eu levo todas as aves,
Todos os astros comigo.
E é tanta essa luz, é tanta
Essa música sem par,
Que nem sei se é a luz que canta,
Se é o som que vejo brilhar.

Caminho em êxtase, cheio
Da luz de todos os sóis,
Levando dentro do seio
Um ninho de rouxinóis.
E tanto brilho derramo,
E tanta música espalho,
Que acordo os ninhos e inflamo
As gotas frias do orvalho.
E vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Caminho. A terra deserta
Anima-se. Aqui e ali,
Por toda parte desperta
Um coração que sorri.
Em tudo palpita um beijo,
Longo, ansioso, apaixonado,
E um delirante desejo
De amar e de ser amado.
E tudo, - o céu que se arqueia
Cheio de estrelas, o mar,
Os troncos negros, a areia,
- Pergunta, ao ver-me passar:

"O Amor, que a teu lado levas,
A que lugar te conduz,
Que entras coberto de trevas,
E sais coberto de luz?
De onde vens? que firmamento
Correste durante o dia,
Que voltas lançando ao vento
Esta inaudita harmonia?
Que país de maravilhas,
Que Eldorado singular
Tu visitaste, que brilhas
Mais do que a estrela polar?"

E eu continuo a viagem,
Fantasma deslumbrador,
Seguido por tua imagem,
Seguido por teu amor.
Sigo... Dissipo a tristeza
De tudo, por todo o espaço,
E ardo, e canto, e a Natureza
Arde e canta, quando eu passo,
- Só porque passo pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar...


Poemas e Poesias sábado, 18 de maio de 2019

A LARANJA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

A LARANJA

Mário Quintana

 

 

A laranja cortada ao meio, 
Úmida de amor, anseia pela outra... 
É assim, é bem assim que eu te desejo!


Poemas e Poesias sexta, 17 de maio de 2019

A CAMÕES (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A CAMÕES

Manuel Bandeira

 

 

Quando n'alma pesar de tua raça 
A névoa da apagada e vil tristeza, 
Busque ela sempre a glória que não passa, 
Em teu poema de heroismo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça, 
Tu resumiste em ti toda a grandeza: 
Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça 
O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente 
Da estirpe que em perigos sublimados 
Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá sem poetas nem soldados 
A língua em que cantaste rudemente 
As armas e os barões assinalados. 


Poemas e Poesias quinta, 16 de maio de 2019

ARRANJOS PARA ASSOBIO (POEMAS DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

ARRANJOS PARA ASSOBIO

Manoel de Barros


ARRANJOS PARA ASSOBIO
OFERTA
Arcado ser — 
eu sou o apogeu do chão. Deixa passar o meu 
estorvo o meu trevo a minha corcova 
Senhor! 
(este assobio vai para todas as pessoas pertencidas 
pelos antros)

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
O PULO
Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo 
sapo ficou teso de flor! 
e pulou o silêncio

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
SERVIÇOS
Catar um por um os espinhos da água 
restaurar nos homens uma telha de menos 
respeitar e amar o puro traste em flor


Poemas e Poesias quarta, 15 de maio de 2019

NO ALTO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

NO ALTO

Machado de Assis


O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta 
O outro lhe deu a mão.


Poemas e Poesias terça, 14 de maio de 2019

AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS

Jorge de Lima

 

Aqui foi um lugar de calmas horas,
ali era a distância. Em cima o pássaro.
Na planta essa raiz, e agora a ausência,
agora esse tecido alinhavado
por entre unhas de dedos invisíveis.
Apagaram-se as coisas tintas com
o sopro das palavras: geografias,
paciências, velhos trigos, decisões.
Aqui era um sinal, ali um número,
em cima esse fagote, e o anzol das plantas
fisgando o grão já grávido de sumos.
Agora esses molares ruminando
amargores sumidos, sais de medos;
agora a linha preta, a fronte baixa,
a luz escurecida, as mariposas.


Poemas e Poesias segunda, 13 de maio de 2019

A LIÇÃO DA POESIA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A LIÇÃO DA POESIA

João Cabral de Melo Neto

 

1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis — naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.


Poemas e Poesias domingo, 12 de maio de 2019

SER MÃE (POEMA DO MARANHENSE COELHO NETO)

SER MÃE

Coelho Neto

 

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
O coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio, que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor cantando vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormido; é ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Poemas e Poesias domingo, 12 de maio de 2019

AMA-ME (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

AMA-ME

Hilda Hilst

 

Aos amantes é lícito a voz desvanecida. 
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido: 
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora, 
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês 
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo 
Ronda escurecida? 

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento 
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor 
Quando tudo anoitece? Antes lamenta 
Essa teia de seda que a garganta tece. 

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito 
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome 
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido 
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo. 


Poemas e Poesias sábado, 11 de maio de 2019

NÃO HÁ VAGAS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NÃO HÁ VAGAS

Ferreira Gullar

 

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira


Poemas e Poesias sexta, 10 de maio de 2019

AO LONGE, AO LUAR (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AO LONGE, AO LUAR

Fernando Pessoa

 

Ao longe, ao luar, 
No rio uma vela, 
Serena a passar, 
Que é que me revela? 

Não sei, mas meu ser 
Tornou-se-me estranho, 
E eu sonho sem ver 
Os sonhos que tenho. 

Que angústia me enlaça? 
Que amor não se explica? 
É a vela que passa 
Na noite que fica. 


Poemas e Poesias quinta, 09 de maio de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 21 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA

Eno Teodoro Wanke

 

Senhor! Que eu partique o bem

Separe o joio do trigo

E tenha forças, também

De amar o irmão inimigo

 


Poemas e Poesias quarta, 08 de maio de 2019

A ESCADA DE SONHO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A ESCADA DE SONHO

Da Costa e Silva

 

 
Sobe ao céu meu pensamento, 
Como uma espiral de incenso...

E eis numa névoa de sol, 
Minha escada de Jacó!

É por ela, quando cismo, 
Que desces ao meu abismo...

E ascendo aonde vives tu 
Entre as estrelas, no Azul...

A escada de sonho, à tarde, 
É um íris para a saudade.

É a luz eterna do Amor 
Que irradia entre nós dois...

E eleva-se o pensamento,  
Além da morte e do tempo.


Poemas e Poesias terça, 07 de maio de 2019

FRÊMITOS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

FRÊMITOS 

Cruz e Sousa

 

 

I

Arriba, abajo ó pombas luminosas                

que passais neste mundo eternamente                      

só a cantar os madrigais de rosas,                 

atravessados de um luar veemente,              

inundados de estrelas e esplendores, 5        

de carinhos, de bênçãos e de amores.                       

 

 

II

 

Ó virgens peregrinas,            

de meigo olhar banhado de esperanças,                   

que perfumais com lírios e boninas              

a aurora de cristal das louras tranças,            10      

que atravessais constantemente a vida                     

do sol eterno, da visão florida.                     

 

 

III

 

Amadas e felizes                   

gêmeas da luz das frescas alvoradas,           

vós que trazeis nas almas as raízes    15      

do que é são, do que é puro -ó vós amadas              

prendas gentis do paternal tesouro,              

iriados corações de fluidos de ouro.             

 

 

IV

 

É para vós que eu quero                    

engrinaldar de tropos e de rimas,       20      

num doce verso artístico e sincero,               

esgrimir com belíssimas esgrimas                

a estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros               

para que brilhe como uns astros puros.                    

 

 

V

 

É só a vós, apenas,      25      

que eu me dirijo, límpidas auroras,              

que pelas tardes plácidas, serenas,                

passais, galantes como ingênuas Floras,                  

coroadas de flor de laranjeira,                       

noivas, sorrindo à mocidade inteira.  30      

 

 

VI

 

Porque é de vós que deve,                

de vós que o sonho eterno dulcifica,            

partir o lume quando cai a neve,                  

surgir a crença poderosa e rica.                    

Porque afinal, o que se chama crença,           35      

senão o amor e a caridade imensa?               

 

 

VII

 

Os tristes e os pequenos                    

em quem descansam brandamente os olhos,            

esses humildes, rotos Nazarenos                  

que vivem, morrem suportando abrolhos,     40      

senão nos grandes entes piedosos                 

que dão-lhes força aos transes dolorosos?               

 

 

VIII

 

Oh, sim que a força eterna                

parte dos corpos rijos da saúde,                   

perante a lei da vida que governa,     45      

o nobre, o rei, o proletário rude;                   

parte dos seres fartos de carinhos                 

como de paz e de alegria os ninhos.             

 

 

IX

 

Eu peço para todos               

e peço a vós que sois as fortalezas     50      

da esperança, da fé -a vós que os lodos                   

da miséria, do vício, das baixezas,               

não denegriram essas consciências               

castas e brancas como as inocências.            

 

 

X

 

Nem se esperar devia 55      

que eu tentasse bater a outras portas,           

quando vós sois o exemplo de Maria;                      

não andais mudas, regeladas, mortas            

pela noite voraz da sepultura            

e escutareis os dramas da amargura.  60      

 

 

XI

 

Não julgueis que eu vos peça,                      

uma alvorada feita de um sorriso;                 

a minh'alma garante e vos confessa             

que se crê nas mansões do Paraíso,              

é porque vós reinais por sobre a terra            65      

e o Paraíso dentro em vós se encerra.                       

 

 

XII

 

A vós, a vós compete            

a glória do dever -porque assim como                     

a luz do sol na lua se reflete,             

também das aflições no duro assomo,           70      

da pobreza refletem-se nas almas,                

vossas imagens, como auroras calmas.                    

 

 

XIII

 

Portanto, a mocidade            

vossa, terá de ser de hoje em diante,            

enquanto a esmagadora atrocidade    75      

da peste -nos vorar d'instante a instante,                  

quem se há de encarregar desta manobra                 

do galeão da vida que sossobra.                   

 

 

XIV

 

E para isso, ó rainhas             

da juventude -tendes as quermesses   80      

que dão bons frutos assim como as vinhas;              

as matinées de cânticos e preces,                  

os cintilantes, pródigos bazares                    

onde a luz salta extravasando em mares.                  

 

 

XV

 

Enquanto a mim, na arena      85      

da heroicidade humana que consola,            

oh, faz-me bem a vibração da pena,             

pelo amor , pelo afago, pela esmola,            

como um radiante e fúlgido estilhaço                      

de sol febril no mármore do Espaço!


Poemas e Poesias segunda, 06 de maio de 2019

AINDA NÃO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

AINDA NÃO

Cora Coralina

 

I
Ainda não…
É a espera.
Afirmação
do tempo que vai chegar
no tempo que está passando.
 
II
Ainda não…
É a promessa.
Certeza
do tempo de querer
no tempo que vai chegando.
A mulher é a terra —
terra de semear.
 
III
Ainda não…
O tempo disse dormindo:
Por que esperar?
Plantar, colher
no amanhecer.
Não retardar o instante
maravilhoso da colheita.
 
IV
Veio o semeador,
semearam juntos
e colheram
o encantamento do fruto.
Lamentaram juntos
Retardamos tanto… no tempo.
 

Poemas e Poesias domingo, 05 de maio de 2019

A NOSSA VITÓRIA DE CADA DIA (POEMA EM PROSA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

A NOSSA VITÓRIA DE CADA DA

Clarice Lispector

 

Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. 


Poemas e Poesias sábado, 04 de maio de 2019

A BAILARINA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

A BAILARINA

Cecília Meireles

 

 

Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

 

Não conhece nem dó nem ré

mas sabe ficar na ponta do pé.

 

Não conhece nem mi nem fá

Mas inclina o corpo para cá e para lá.

 

Não conhece nem lá nem si,

mas fecha os olhos e sorri.

 

Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar

e não fica tonta nem sai do lugar.

 

Põe no cabelo uma estrela e um véu

e diz que caiu do céu.

 

Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

 

Mas depois esquece todas as danças,

e também quer dormir como as outras crianças.


Poemas e Poesias quinta, 02 de maio de 2019

AMANTE (18ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

AMANTE

(Do  poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"BASTA, criança! Não soluces tanto...
Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!
Que culpa tem a clícia descaída
Se abelha envenenada o mel lhe suga?
"Basta! Esta faca já contou mil gotas
De lágrimas de dor nos teus olhares.
Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas
No sangue dele em gotas aos milhares.

"Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Estalma é como o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.

"Se a justiça da terra te abandona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força...
E quem tem um punhal nada carece! ...

"Vamos! Acaba a história ... Lança a presa...
Não vês meu coração, que sente fome?
Amanhã chorarás; mas de alegria!
Hoje é preciso me dizer — seu nome!"


Poemas e Poesias quarta, 01 de maio de 2019

JURAMENTO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU

JURAMENTO

Casimiro de Abreu

Tu dizes oh Mariquinhas
Que não crês nas juras minhas,
Que nunca cumpridas são!
Mas se eu não te jurei nada,
Como hás de tu, estouvada,
Saber se eu as cumpro ou não?!

Tu dizes que eu sempre minto,
Que protesto o que não sinto,
Que todo o poeta é vário,
Que é borboleta inconstante;
Mas agora, neste instante,
Eu vou provar-te o contrário.

Vem cá, sentada a meu lado
Com esse rosto adorado
Brilhante de sentimento,
Ao colo o braço cingido,
Olhar no meu embebido,
Escuta o meu juramento.

Espera: - inclina essa fronte...
Assim!... - Pareces no monte
Alvo lírio debruçado!
- Agora, se em mim te fias,
Fica séria, não te rias,
O juramento é sagrado.

"- Eu juro sobre estas tranças,
"E pelas chamas que lanças
"Desses teus olhos divinos;
"Eu juro, minha inocente,
"Embalar-te docemente
"Ao som dos mais ternos hinos!

"Pelas ondas, pelas flores,
"Que se estremecem de amores
"Da brisa ao sopro lascivo;
"Eu juro, por minha vida,
"Deitar-me a teus pés, querida,
"Humilde como um cativo!

"Pelos lírios, pelas rosas,
"Pelas estrelas formosas,
"Pelo sol que brilha agora,
"- Eu juro dar-te, Maria,
"Quarenta beijos por dia
"E dez abraços por hora!"

O juramento está feito,
Foi dito co'a mão no peito
Apontando ao coração;
E agora - por vida minha,
Tu verás oh! moreninha,
Tu verás se o cumpro ou não!...


Poemas e Poesias terça, 30 de abril de 2019

A LUA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A LUA

Carlos Pena Filho

 

 


Mas, enquanto tudo é fome,
por todo o reino animal,
existe ainda fartura
na “terceira capital”,
pois os que forem passear
no cais da rua Aurora,
em certa noite do mês,
poderão sair dizendo,
todos juntos, de uma vez:
Era uma lua tão grande,
de tão vermelha amplidão
que mesmo Ascenso Ferreira,
comendo só a metade,
morria de indigestão.


Poemas e Poesias segunda, 29 de abril de 2019

A BRUXA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A BRUXA

Carlos Drummond de Andrade

 


Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes
Estou sozinho no quarto
Estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
Anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
Mas é vida. E sinto a Bruxa
Presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
E a essa hora tardia
Como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
Que entrasse nesse minuto,
Recebesse esse carinho
Salvasse do aniquilamento
Um minuto e um carinho loucos
Que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes
Quantas mulheres prováveis
Interrogam-se no espelho
Medindo o tempo perdido
Até que venha a manhã
Trazer leite, jornal, calma.
Porém a essa hora vazia
Como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
Conheço vozes de bichos,
Sei os beijos mais violentos,
Viajei, briguei, aprendi
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras

Mas se tento comunicar-me,
O que há é apenas a noite
E uma espantosa solidão

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
Querendo romper a noite
Não é simplesmente a Bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem.


Poemas e Poesias domingo, 28 de abril de 2019

SONETO 098 AQUELA QUE, DE PURA CASTIDADE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AQUELA QUE, DE PURA CASTIDADE

Luís de Camões

 

Aquela que, de pura castidade,
de si mesma tomou cruel vingança
por üa breve e súbita mudança
contrária a sua honra e qualidade,

venceu à fermosura a honestidade,
venceu no fim da vida a esperança,
por que ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade.

De si, da gente e do mundo esquecida,
feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.

Estranha ousadia! Estranho feito!
Que, dando morte breve ao corpo humano,
tenha sua memória larga vida!

 


Poemas e Poesias sábado, 27 de abril de 2019

SONETO DO PAU DECIFRADO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO PAU DECIFRADO

Bocage

 


É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser arvore de figo,
Da glande o fructo tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está comsigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-sancto mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um U; [carualho]
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar metta-o no cu.

 


Poemas e Poesias sexta, 26 de abril de 2019

O CAIXÃO FANTÁSTICO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

O CAIXÃO FANTÁSTICO

Augusto dos Anjos

 

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam, talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia multo frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!


Poemas e Poesias quarta, 24 de abril de 2019

A CHEGADA DE SUASSUNA NO CÉU (POEMA RECITADO POR ROLANDO BOLDRIN)


Poemas e Poesias terça, 23 de abril de 2019

ASPIRAÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

ASPIRAÇÃO

Antero de Quental

 

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gosos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do presentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!


Poemas e Poesias segunda, 22 de abril de 2019

À T... (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

À T...

Álvares de Azevedo

 

No amor basta uma noite para fazer de um homem um Deus.
PROPÉRCIO.


Amoroso palor meu rosto inunda,
Mórbida languidez me banha os olhos,
Ardem sem sono as pálpebras doridas,
Convulsivo tremor meu corpo vibra:
Quanto sofro por ti! Nas longas noites
Adoeço de amor e de desejo
E nos meus sonhos desmaiando passa
A imagem voluptosa da ventura...
Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens,
E ela mesma suave descorando
Os alvacentos véus soltar do colo,
Cheirosas flores desparzir sorrindo
Da mágica cintura.
Sinto na fronte pétalas de flores,
Sinto-as nos lábios e de amor suspiro.
Mas flores e perfumes embriagam,
E no fogo da febre, e em meu delírio
Embebem na minh'alma enamorada
Delicioso veneno.

Estrela de mistério, em tua fronte
Os céus revela, e mostra-me na terra,
Como um anjo que dorme, a tua imagem
E teus encantos onde amor estende
Nessa morena tez a cor de rosa
Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
O languor de teus olhos me enlanguesce,
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh'alma!

Ah! vem, pálida virgem, se tens pena
De quem morre por ti, e morre amando,
Dá vida em teu alento à minha vida,
Une nos lábios meus minh'alma à tua!
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Na tua alma infantil; na tua fronte
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as virações do paraíso;
E a teus pés, de joelhos, crer ainda
Que não mente o amor que um anjo inspira,
Que eu posso na tua alma ser ditoso,
Beijar-te nos cabelos soluçando
E no teu seio ser feliz morrendo!


Poemas e Poesias domingo, 21 de abril de 2019

É NECESSÁRIO AMAR (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

É NECESSÁRIO AMAR

Alphonsus Guimaraens

 

 

É necessário amar... Quem não ama na vida?
Amar o sol e a lua errante! amar estrelas,
Ou amar alguém que possa em sua alma contê-las,
Cintilantes de luz, numa seara florida!

Amar os astros ou na terra as flores... Vê-las
Desabrochando numa ilusão renascida...
Como um branco jardim, dar-lhes na alma guarida,
E todo, todo o nosso amor para aquecê-las...

Ou amar os poentes de ouro, ou o luar que morre breve,
Ou tudo quanto é som, ou tudo quanto é aroma...
As mortalhas do céu, os sudários de neve!

Amar a aurora, amar os flóreos rosicleres,
E tudo quanto é belo e o sentido nos doma!
Mas, antes disso, amar as crianças e as mulheres...


Poemas e Poesias sábado, 20 de abril de 2019

A IGNORÂNCIA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

A IGNORÂNCIA

Quintino Cunha

 

Na história da teimosia
Entre a rudeza e a arrogância
É tão forte a ignorância

Tão cruenta, tão mendaz
Que a própria Sabedoria
De tudo, sabendo tanto
Não pode saber de quanto 
O ignorante é capaz


Poemas e Poesias sexta, 19 de abril de 2019

A ARANHA, POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA

A ARANHA

Da Costa e Silva

 

Num ângulo do teto, ágil e astuta, a aranha,

Sobre invisível tear tecendo a tênue teia,

Arma o artístico ardil em que as moscas apanha

E, insidiosa e sutil, os insetos enleia.

 

Faz do fluido que flui das entranhas a estranha

E fina trama ideal  de seda que a rodeia

E, alargando o aranhol, os elos emaranha

Do alvo, disco nupcial, que a luz do sol prateia.

 

Em flóculos de espuma urde, borda e desenha

O arabesco fatal, onde os palpos apoia

E tenaz, a caçar os insetos se empenha.

 

Vive, mata e produz, nessa fana enfadonha;

E, o fascinante olhar a arder como uma joia,

Morre na própria teia, onde trabalha e sonha.


Poemas e Poesias quinta, 18 de abril de 2019

ATRAÇÃO E REPULSÃO (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

ATRAÇÃO E REPULSÃO

Adelino Fontoura 

 


Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui té junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.


Poemas e Poesias quarta, 17 de abril de 2019

A FORMALÍSTICA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

A FORMALÍSTICA

Adélia Prado

 

O poeta cerebral tomou café sem açúcar

e foi pro gabinete concentrar-se.

Seu lápis é um bisturi

que ele afia na pedra,

na pedra calcinada das palavras,

imagem que elegeu porque ama a dificuldade,

o efeito respeitoso que produz

seu trato com o dicionário.

Faz três horas já estuma as musas.

O dia arde. Seu prepúcio coça.

Daqui a pouco começam a fosforecer coisas no mato.

A serva de Deus sai de sua cela à noite

e caminha na estrada,

passeia porque Deus quis passear

e ela caminha.

O jovem poeta,

fedendo a suicídio e glória,

rouba de todos nós e nem assina:

"Deus é impecável."

As rãs pulam sobressaltadas

e o pelejador não entende,

quer escrever as coisas com as palavras.


Poemas e Poesias terça, 16 de abril de 2019

A ARCA DE NOÉ (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A ARCA DE NOÉ

Vinícius de Moraes

 

Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata

E abre-se a porta da arca
Lentamente surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante

E de dentro de um buraco
De uma janela aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece

 
 

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta, e o tigre - "Não"

A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Entre os pulos da bicharada
Toda querendo sair

Afinal com muito custo
Indo em fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida

Longe o arco-íris se esvai
E desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Erguem-se os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
Em meio à noite calada
Ouve-se a fala dos bichos
Na terra repovoada


Poemas e Poesias segunda, 15 de abril de 2019

A TERRA É NATURÁ (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A TERRA É NATURÁ

Patativa do Assaré

 

Sinhô dotô, meu ofiço
É serví ao meu patrão.
Eu não sei fazé comiço,
Nem discuço, nem sermão;
Nem sei as letras onde mora,
Mas porém, eu quero agora
Dizê, com sua licença,
Uma coisa bem singela,
Que a gente pra dizê ela
Não precisa de sabença.
 
Se um pai de famia honrado
Morre, deixando a famia,
Os seus fiinho adorado
Por dono da moradia,
E aquêles irmão mais véio,
Sem pensá no Evangeío,
Contra os nôvo a tôda hora
Lança da inveja o veneno
Até botá os mais pequeno
Daquela casa pra fora.
 
Disso tudo o resurtado
Seu dotô sabe a verdade,
Pois, logo os prejudicado
Recorre às oturidade
E no chafurdo infeliz
Depressa vai o juiz
Fazê a paz dos irmão
E se êle fô justicêro,
Parte a casa do herdêro
Pra cada quá seu quinhão.
 
Seu dotô, que estudou munto
E tem boa inducação,
Não ignore êste assunto
Da minha comparação,
Pois êste pai de famia
É o Deus de Soberania,
Pai do sinhô e pai meu,
Que tudo cria e sustenta,
E esta casa representa
A terra que êle nos deu.
 
O pai de famia honrado,
A quem tô me referindo,
É Deus Nosso Pai Amado,
Que lá do céu tá me uvindo,
O Deus justo que não erra
E que pra nós fez a terra,
Êste praneta comum,
Pois a terra, com certeza,
É obra da Natureza
Que pertence a cada um.
 
Se a terra foi Deus quem fez,
Se é obra da Criação,
Divia cada freguês
Ter seu pedaço de chão.
Munta gente não combina
Esta verdade divina,
Mas um jurgamento eu faço,
E vejo que jurgo bem,
Se eu sou da terra também,
Onde é que tá meu pedaço?
 
Esta terra é desmedida,
E divia ser comum,
Divia ser repartida
Um taco pra cadaum
Mode morrar sossegado.
Eu ja tenho maginado,
Que abaixo o sertão e a serra
Divia ser coisa nossa,
Quem não trabaia na roça
Que diabo é que quer com terra?
 
Esta terra é como o Só,
Que nasce todos os dia,
Briando o grande, o menó
E tudo o que a terra cria.
O Só quilareia os monte.
Também as água das fonte.
Com a sua luz amiga,
Potrege no mesmo instante,
Do grandaião elefante
À pequenina formiga.
 
Esta terra é como a chuva,
Que vai da praia à campina,
Móia a casada, a viúva,
A véia, a môça, a menina.
Quando sangra os nevuêro,
Pra conquistá o aguacêro
Ninguém vai fazê fuchico,
Pois a chuva tudo cobre,
Móia a tapera do pobre
E a grande casa do rico.
 
Esta terra é como a lua,
Êste foco prateado,
Que é do campo até a rua,
A lampa dos namorado,
Mas, mesmo ao véio cacundo,
Já com ar de moribundo,
Sem amô, sem vaidade,
Esta lua cô de prata,
Não lhe dêxa de sê grata,
Lhe manda quilaridade.
 
Esta terra é como o vento,
O vento, que, por capricho
Assopra, às vez, um momento,
Brando, fazendo cuchicho,
Outras vez, vira o capeta,
Vai fazendo pirueta,
Rocando com desatino,
Levando tudo de móio,
Jogando arguêro nos óio
Do grande e do pequenino.
 
Se o orgüioso pudesse,
Com seu rancô desmedido,
Tarvez até já tivesse
Êste vento repartido,
Ficando com a viração
E dando ao pobre o furacão.
Pois sei que ele tem vontade,
E acha mesmo que precisa
Gozá do frescô da brisa,
Dando ao pobre a tempestade.
 
Pois o vento, o Só, a Lua,
A chuva e a terra também,
Tudo é coisa minha e sua,
Seu dotô conhece bem.
Pra se sabê disso tudo
Ninguém precisa de estudo.
Eu sem escrevê, nem lê,
Conheço desta verdade.
Seu dotô, tenha a bondade
De uvi o que vou dizê.
 
Não invejo o seu tesôro,
Sua mala de dinhêro,
A sua prata, seu ôro,
O seu boi, o seu carnêro,
Seu repôso, seu recreio,
Seu bom carro de passeio,
Sua casa de morá
E a sua loja surtida,
O que quero nesta vida
É terra pra trabaiá.
 
Escute o que tou dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão, nem guerra,
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!
Tenha pena do agregado,
Não me dêxe deserdado
Daquilo que Deus me deu!
 
 
 

Poemas e Poesias domingo, 14 de abril de 2019

A MERETRIZ (POEMA D CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

A MERETRIZ

Padre Antônio Tomás

 

Essa mulher de face encaveirada
Que vês tremendo em ânsias de fadiga
Estendendo a quem passa a mão mirrada
Foi meretriz, antes de ser mendiga.

Em breve fugiu-lhe a sorte airada
A mocidade, a doce quadra amiga
E ela se viu pobre e desgraçada
Antes de tempo, a tanto o vício obriga.

Ontem, do gozo e da volúpia ardente
Fosse a quem fosse dava a qualquer hora
O seio branco e o lábio sorridente

Hoje, triste sina, embalde chora
Pedindo esmola àquela mesma gente
Que de seus beijos se fartara outrora.


Poemas e Poesias sábado, 13 de abril de 2019

MANHÃ DE VERÃO (POEMA D CARIOCA OLAVO BILAC)

MANHÃ DE VERÃO

Olavo Bilac

 

As nuvens, que, em bulcões, sobre o rio rodavam,

Já, com o vir de manhã, do rio se levantam.

Como ontem, sob a chuva, estas águas choravam!

E hoje, saudando o sol, como estas águas cantam!

 

A estrela, que ficou por último velando,

Noive que espera o noivo e suspira em segredo,

- Desmaia de pudor, apaga, palpitando,

- A pupila amorosa, e estremece de medo.

 

Há pelo Paraíba um sussurro de vozes,

Tremor de seios nuns corpos brancos luzindo...

E, alvas, a cavalgar broncos monstros ferozes,

Passam, como num sonho, as náiades fugindo.

 

A rosa, que acordou sob as ramas cheirosas,

Diz-me: “Acorda com um beijo as outras flores quietas!

Poeta! Deus criou as mulheres e as rosas

Para os beijos do sol e os beijos dos poetas!”

 

E a ave diz: “Sabes tu? Conheço-a bem... Parece

Que os Gênios de Oberon bailam pelo ar dispersos,

E que o céu se abre todo, e que a terra floresce,

- Quando ela principia a recitar teus versos!”

 

E diz a luz: “Conheço a cor daquela boca!

Bem conheço a maciez daquelas mãos pequenas!

Não fosse ela aos jardins roubar, trêfega e louca,

O rubor da papoula e o alvor das açucenas!”

 

Diz a palmeira: “Invejo-a! ao vir a luz radiante,

Vem o vento agitar-me e desnastrar-me a coma:

E eu pelo vento envio ao seu cabelo ondeante

Todo o meu esplendor e todo o meu aroma!”

 

E a floresta, que canta, e o sol, que abre a coroa

De ouro fulvo, espancando a matutina bruma,

E o lírio, que estremece, e o pássaro, que voa,

E a água, cheia de sons e de flocos de espuma,

 

Tudo, - a cor, o clarão, o perfume e o gorjeio,

Tudo, elevando a voz, nesta manhã de estio,

Diz: “Pudesses dormir, poeta! No seu seio,

Curvo como este céu, manso como este rio!”

 

 


Poemas e Poesias sexta, 12 de abril de 2019

A CANÇÃO DA VIDA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

A CANÇÃO DA VIDA

Mário Quintana

 

A vida é louca 
a vida é uma sarabanda 
é um corrupio... 
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando 
de raparigas em flor 
e está cantando 
em torno a ti: 
Como eu sou bela 
amor! 
Entra em mim, como em uma tela 
de Renoir 
enquanto é primavera, 
enquanto o mundo 
não poluir 
o azul do ar! 
Não vás ficar 
não vás ficar 
aí... 
como um salso chorando 
na beira do rio... 
(Como a vida é bela! como a vida é louca!) 


Poemas e Poesias quinta, 11 de abril de 2019

A CAMÕES (POEMA DO PERNAMBUCANO MANOEL BANDEIRA)

A CAMÕES

Manuel Bandeira

 

Quando n'alma pesar de tua raça 
A névoa da apagada e vil tristeza, 
Busque ela sempre a glória que não passa, 
Em teu poema de heroismo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça, 
Tu resumiste em ti toda a grandeza: 
Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça 
O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente 
Da estirpe que em perigos sublimados 
Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá sem poetas nem soldados 
A língua em que cantaste rudemente 
As armas e os barões assinalados. 
  


Poemas e Poesias quarta, 10 de abril de 2019

APRENDIMENTOS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

APRENDIMENTOS

Manoel de Barros

 

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.

Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.

E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.

Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.


Poemas e Poesias terça, 09 de abril de 2019

NAQUELE ETERNO AZUL, ONDE COEMA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

NAQUELE ETERNO AZUL, ONDE COEMA

Machado de Assis

 

Naquele eterno azul, onde Coema,
Onde Lindoia, sem temor dos anos,
Erguem os olhos plácidos e ufanos,
Também os ergue a límpida Iracema.
 
Elas foram, nas águas do poema,
Cantadas pela voz de americanos,
Mostrar às gentes de outros oceanos
Jóias do nosso rútilo diadema.
 
E, quando a magna voz inda afinavas
Foges-nos, como se a chamar sentiras
A voz da glória pura que esperavas.
 
O cantor do Uruguai e o dos Timbiras
Esperavam por ti, tu lhe faltavas
Para o concerto das eternas liras.


Poemas e Poesias segunda, 08 de abril de 2019

AQUI É O FIM DO MUNDO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

AQUI É O FIM DO MUNDO

Jorge de Lima

 


Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo
em que até aves vêm cantar para encerrá-lo.
Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo,
e nos vastos areais — ossadas de cavalo.

Entre as aves do céu: igual carnificina:
se dormires cansado, à face do deserto,
quando acordares hás de te assustar. Por certo,
corvos te espreitarão sobre cada colina.

E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que é debaixo dos céus, a mais triste canção),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.

E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tangê-las-ás de ti, de ti mesmo, em que estão
esses corvos fatais. E esses corvos não vão.


Poemas e Poesias domingo, 07 de abril de 2019

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

João Cabral de Melo Neto

 

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.


Poemas e Poesias sábado, 06 de abril de 2019

A MÃO, POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA

A MÃO

Adelino Fontoura

 

 

                   Quando meu lábio trêmulo te oscula

                   A pequenina mão delgada e fina,

                   Como uma pomba trêmula que arrula

                   Minha vida, mal sabes! — canta e pula

                   Na rósea palma dessa mão divina!


Poemas e Poesias sexta, 05 de abril de 2019

A CARNAUBEIRA (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

A CARNAUBEIRA

Padre Antônio Tomás

 


Nascida dos sertões na gleba adusta,
Sob os raios do sol abrasador,
Garbosa e altiva, ostenta o seu vigor,
Das nossas várzeas, a princesa augusta.

Princesa... Bem que o nome se lhe ajusta
Tal dos seus benefícios o primor,
Pois dá sustento e teto protetor
E cama e luz ao pobre, à sua custa.

Tem certos modos de mulher faceira,
Os longos verdes cachos exibindo
Como tranças de enorme cabeleira.

E quando o sol a pino a terra escalda,
Abana a fronte, as asas sacudindo
Com o seu formoso leque de esmeralda.


Poemas e Poesias quinta, 04 de abril de 2019

ALMA (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

ALMA 

Hilda Hilst

 

Que te devolvam a alma
Homem do nosso tempo.
Pede isso a Deus
Ou às coisas que acreditas
À terra, às águas, à noite
Desmedida,
Uiva se quiseres,
Ao teu próprio ventre
Se é ele quem comanda
A tua vida, não importa,
Pede à mulher
Àquela que foi noiva
À que se fez amiga,
Abre a tua boca, ulula
Pede à chuva
Ruge
Como se tivesses no peito
Uma enorme ferida
Escancara a tua boca
Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA.


Poemas e Poesias quarta, 03 de abril de 2019

POEMA BRASILEIRO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

POEMA BRASILEIRO

Ferreira Gullar

 


No  Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
De cada cem crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

N Piauí
De cada 100 crianças
Que nascem
78 morrem
Antes
De completar
8 anos de idade

Antes de completar 8 anos de idade
Antes de completar 8 anos de idade
Antes de completar 8 anios de idade
Antes de completar 8 anos de idade


Poemas e Poesias terça, 02 de abril de 2019

ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA

Fernando Pessoa

 

Andei léguas de sombra 
Dentro em meu pensamento. 
Floresceu às avessas 
Meu ócio com sem-nexo, 
E apagaram-se as lâmpadas 
Na alcova cambaleante. 

Tudo prestes se volve 
Um deserto macio 
Visto pelo meu tato 
Dos veludos da alcova, 
Não pela minha vista. 
Há um oásis no Incerto 
E, como uma suspeita 
De luz por não-há-frinchas, 
Passa uma caravana. 

Esquece-me de súbito 
Como é o espaço, e o tempo 
Em vez de horizontal 
É vertical. 


Poemas e Poesias segunda, 01 de abril de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 21 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 21

Eno Teodoro Wanke

 

Despedir-se é ver no imenso

Queixume negro do cais

A  alva gaivota de um lenço

Acenando o nunca mais...


Poemas e Poesias domingo, 31 de março de 2019

ROSA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ROSA

Cruz e Sousa

 

Rosa — chamava-se a estrela

Daquelas flóreas paragens;

Era escutá-la e era vê-la

Metida em brancas roupagens

Todas de pregas e tufos,

De laçarotes e rendas,

Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos

Ou surpreender-lhe as contendas

Nas lindas tardes radiadas

Por cores de silforamas

E sentir logo, inspiradas

Do amor, as férvidas chamas.

Ela era um beijo fundido

Ao cintilar de uma aurora,

Um sonho eterno espargido

Nos belos sonhos de Flora.

E tinha uns longes sublimes

De grande força lasciva,

A transudar, como uns crimes

Do sangue, da carne altiva.

Contava tudo... mas tanto,

Em turbilhões, em cascata,

Que recordava esse canto

Uma garganta de prata.

E quando os poetas, rapazes,

A viam passar, vibrante,

Mostrando as curvas audazes,

Do corpo todo radiante,

Diziam de entre os primores

De estrofes mais dulçurosas:

— Tu és a gêmea das flores,

Das rosas, perfeitas rosas.

Convulsionado e sem regra

O coração nos palpita;

Andas alegre e se alegra

A gente quando te fita.

Tens umas coisas estranhas

Nas refrações da pureza...

Umas finuras tamanhas...

Uma sutil gentileza...

Ficas rosada se um tico

Alguém te diz, de mais franco...

Mas como fica tão rico,

Tão belo o rubro no branco,

Nesse grácil e tão claro,

Sereno e cândido rosto

Que é mesmo um céu puro e raro

Das alvoradas de agosto.

Depressa cobre-te o pejo

A face nova e adorada,

De sorte que sem desejo

És — Rosa e ficas rosada.

Dos risos colhes a messe

E és doce como o conforto,

És casta como uma prece

Gemida ao lado de um morto.

Para que a dor não te obumbre

A glória de flores junca

Tua vida e, por isso, nunca

Nas mágoas terás vislumbre.

Permita o bom sol que inunda

De luz os bosques — permita

Que sejas sempre fecunda

De gozo e sempre bonita.

............................

Agora, quando alguém passa

Por onde a estrela morava,

Olhando pela vidraça

Bem junto da qual bordava,

Repara um silêncio triste

Na sala — em crepes envolta,

Onde parece que existe

Profunda lágrima solta.

E sente por dentro d’alma

Aquela angústia que esmaga

Bem como em noites sem calma

A vaga esmaga outra vaga.

Apenas as flores lindas

Que vendo Rosa morriam

Com brejeirices infindas

De invejas que renasciam,

Sem mais inúteis ciúmes,

Abrem os frescos pistilos,

Jogando aos céus, em perfumes,

Os seus melhores sigilos.

..........................

No entanto à luz soberana

Do amor desfilam as rimas

Dos poetas — como um hosana

A quem já goza outros climas.

Rosa — chama-se a estrela

Daquelas flóreas paragens;

Era escutá-la e era vê-la

Metida em brancas roupagens,

Para exclamar: — Dentro dela

Existe a fibra gloriosa...

Ninguém viu coisa mais bela

Nem Rosa... tão bela rosa!...


Poemas e Poesias sábado, 30 de março de 2019

A ANUNCIAÇÃO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A  ANUNCIAÇÃO

Vinícius de Moraes

 

Virgem! filha minha 
De onde vens assim 
Tão suja de terra 
Cheirando a jasmim 
A saia com mancha 
De flor carmesim 
E os brincos da orelha 
Fazendo tlintlin? 
Minha mãe querida 
Venho do jardim 
Onde a olhar o céu 
Fui, adormeci. 
Quando despertei 
Cheirava a jasmim 
Que um anjo esfolhava 
Por cima de mim...


Poemas e Poesias sexta, 29 de março de 2019

BRUXO (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

BRUXO

Raul Bopp

 

Longe
léguas adentro o Brasil parou
Parou a estrada
 
O homem pôs-se a decifrar a floresta
Deus ficou lá em cima recolhendo os silêncios
 
Curandeiro tomou diamba
Fez cosquinha de chamar sono
e virou bruxo
 
Estendeu a alma do lado de fora
Veio o gato e comeu
 
- Ai me leva! O rio crescia
Ficou só uma canoinha
- O vira-sebo te come!
 
Chegavam árvores e mais árvores
uma delas de raízes imensas
mastigando o Brasil
 
Vieram depois outros homens
Mandaram buscar o metro para medir a paisagem
Cobra Grande deu um peido: fium
Arvorezinha secou
 
Trovão tossiu feio
Tartaruga pôs a cabeça do lado de fora
ver se vinha chuva
 
- Ai me leva que está escuro
Bruxo esfregou os olhos
 
Floresta estava com fome
Formiga virou cipó
Vento assobiou Curupira passou
Cortou um pedaço da perna
A carne começou a gritar na barriga
 
Canoinha piquininha
desfiou-se na fumaça
Fumaça virou fumacinha
 
Ficou só o olho do bruxo
inchado
enorme
crescendo
 
Quando a sombra chegou
as árvores tinham fugido
 
Então a noite dissolveu sono
e meteu a floresta num saco

Poemas e Poesias quinta, 28 de março de 2019

A ARTE DE VIVER (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

A ARTE DE VIVER

Mário Quintana

 

A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!
 
 
Mario Quintana,
in Velório sem defunto

 


Poemas e Poesias quarta, 27 de março de 2019

A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU UDO DOMÉSTICO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU USO  DOMÉSTICO

Manoel de Barros

 


IV. A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU USO DOMÉSTICO
O POETA (por trás de uma rua minada de seu rosto 
andar perdido nela) 
— Só quisera trazer pra meu canto o que pode ser 
carregado como papel pelo vento

A LUA (com a noite nos lábios) 
— Pelo nome do rosto se apostava que era cálido

O PÁSSARO (olhos enraizados de sol) 
— Ainda que seu corpo permanecesse ardendo, o 
amor o destruiria

O CÓRREGO (perdido de borboletas) 
— O dia todo ele vinha na pedra do rio escutar a 
terra com a boca e ficava impregnado de árvores

O PÁSSARO (em dia ramoso, roçando seu rosto na erva 
dos ventos) 
— Há réstias de dor em teus cantos, poeta, como um 
arbusto sobre ruínas tem mil gretas esperando chuvas…

O CÓRREGO (apertado entre dois vaga-lumes) 
— … como no fundo de um homem uma árvore não 
tem pássaros!

O MAR (encostado na rã) 
— Em cima das casas um menino avino assobia 
de sol!

O SOL (sobre caules de passarinhos e pedras com 
rumores de rios antigos) 
— Iam caindo umas folhas de mar sobre as casas 
dos homens

A ESTRELA (sentada nos ombros de Ezequiel, o 
profeta, em Congonhas do Campo) 
— … e o silêncio escorava as casas!

O POETA (se usando em farrapos) 
— Meu corpo não serve mais nem para o amor nem 
para o canto

O CARAMUJO (olhos embaraçados de noite) 
— E a Máquina de Chilrear, Poeta?

A ÁRVORE (desinfluída de cantos) 
— É possessão de ouriços

A RÃ (de dentro de sua pedra) 
— … sua voz parece vir de um poço escuro

O PÁSSARO (cheiroso som de asas no ar) 
— Ela está enferrujada

A ÁRVORE (apoderada de estrelas) 
— Até o chão se enraíza de seu corpo!

O CÓRREGO (no alto de seus passarinhos) 
— Ervas e grilos crescem-lhe por cima

O PÁSSARO (submetido de árvores) 
— A Máquina de Chilrear está enferrujada e o limo 
apodreceu a voz do poeta

CHICO MIRANDA (na rua do Ouvidor) 
— O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, 
das pedras. Sua gramática se apoia em contaminações 
sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de 
árvores, de rãs

A ESTRELA (com ramificações de luar) 
— Muitos anos o poeta se empassarou de escuros, 
até ser atacado de árvore

O POETA (lesmas comendo seus cadernos relógios 
telefones) 
— Ai, meu lábio dormia no mar estragado!

O MAR (restos de crustáceos agarrados em suas pernas) 
— Parecia ter dado à praia como um pedaço de pau

A FORMIGA (carregando um homem na rua, de 
atravessado) 
— Eu vi o chão, era uma boca de gente comida de 
lodo!

O POETA (ventos o assumindo como roupas) 
— Os indícios de pessoas encontrados nos homens 
eram apenas uma tristeza nos olhos que empedravam

O CARAMUJO (se tirando de escuros, cheirando a 
seus frutos)
— Restos de pessoas saindo de dentro delas mesmas 
aos tropeços, aos esgotos, cheias de orelhas enormes 
como folhas de mamona

O CÓRREGO (mudando de passarinhos entardecentes) 
— Mas o que trinca está maduro, poeta

O POETA (ensinado de terra) 
— Amar é dar o rosto nas formigas

A PÁSSARA (nas frondes do mar) 
— Meus filhos também construíram suas casas com 
vigas de chuva

FRANCISCO (cumprimentando aos arbustos) 
— Olhai os cogumelos pondo as bocas!


Poemas e Poesias terça, 26 de março de 2019

A MÃO ENORME (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

A MÃO ENORME

Jorge de Lima

 

Dentro da noite, da tempestade, 
a nau misteriosa lá vai. 
O tempo passa, a maré cresce, 
O vento uiva. 
A nau misteriosa lá vai. 
Acima dela
que mão é essa maior que o mar? 
Mão de piloto? 
Mão de quem é? 
A nau mergulha, 
o mar é escuro, 
o tempo passa. 
Acima da nau 
a mão enorme 
sangrando está. 
A nau lá vai. 
O mar transborda, 
as terras somem, 
caem estrelas. 
A nau lá vai. 
Acima dela 
a mão eterna 
lá está.


Poemas e Poesias segunda, 25 de março de 2019

A BOMBA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A BOMBA

Carlos Drummond de Andrade

 

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos
interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,
de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera

A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,
cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos
de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger
velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação
em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.


Poemas e Poesias domingo, 24 de março de 2019

A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A CARLOS DRUMMOND DE ANDRDE

João Cabral de Melo Neto

 

Não há guarda-chuva

contra o poema

subindo de regiões onde tudo é surpresa

como uma flor mesmo num canteiro.

 

Não há guarda-chuva

contra o amor

que mastiga e cospe como qualquer boca,

que tritura como um desastre.

 

Não há guarda-chuva

contra o tédio:

o tédio das quatro paredes, das quatro

estações, dos quatro pontos cardeais.

 

Não há guarda-chuva

contra o mundo

cada dia devorado nos jornais

sob as espécies de papel e tinta.

 

Não há guarda-chuva

contra o tempo,

rio fluindo sob a casa, correnteza

carregando os dias, os cabelos.


Poemas e Poesias sábado, 23 de março de 2019

A VIDA É LÍQUIDA (POEMA D APAULISTA HILDA HILST)

A VIDA É LÍQUIDA

Hilda Hilst

 

 É crua a vida. Alça de tripa e metal. 
Nela despenco: pedra mórula ferida. 
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. 
Como-a no livro da língua 
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me 
No estreito-pouco 
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida 
Tua unha púmblea, me casaco rosso 
E perambulamos de coturno pela rua 
Rubras, góticas, altas de corpo e copos. 
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. 
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima 
Olho d’água, bebida. A vida é liquída. 

Também são cruas e duras as palavras e as caras 
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida 
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos 
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes 
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos 
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas 
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo 
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas 
Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte 
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra. 
Sussuras: ah, a vida é liquída. 


Poemas e Poesias sexta, 22 de março de 2019

O POETA E A POESIA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

O POETA E A POESIA

Cora Coralina 

 

Não é o poeta que cria a poesia.
E sim, a poesia que condiciona o poeta.


Poeta é a sensibilidade acima do vulgar.
Poeta é o operário, o artífice da palavra.
E com ela compõe a ourivesaria de um verso.

Poeta, não somente o que escreve.
É aquele que sente a poesia,
se extasia sensível ao achado
de uma rima, à autenticidade de um verso.


Poeta é ser ambicioso, insatisfeito,
procurando no jogo das palavras,
no imprevisto do texto, atingir a perfeição inalcançável.
O autêntico sabe que jamais
chegará ao prêmio Nobel.
O medíocre se acredita sempre perto dele.

Alguns vêm a mim.
Querem a palavra, o incentivo, a apreciação.
Que dizer a um jovem ansioso na sede precoce de lançar um livro...
Tão pobre ainda a sua bagagem cultural,
tão restrito seu vocabulário,
enxugando lágrimas que não chorou,
dores que não sentiu,
sofrimentos imaginários que não experimentou.

Falam exaltados de fome e saudades, tão desgastadas
de tantos já passados.
Primários nos rudimentos de escrita
e aquela pressa moça de subir.
Alcançar estatura de poeta, publicar um livro.

Oriento para a leitura, reescrever,
processar seus dados concretos.
Não fechar o caminho, não negar possibilidades.
É a linguagem deles, seus sonhos.


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