Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quinta, 21 de março de 2019

A LUCIDEZ PERIGOSA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

A LUCIDEZ PERIGOSA

Clarice Lispector

 

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes.

Pois sei que
– em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.


Poemas e Poesias quarta, 20 de março de 2019

A ARTE DE SER FELIZ (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

A ARTE DE SER FELIZ

Cecília Meireles

 

 


Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Poemas e Poesias terça, 19 de março de 2019

A LAGARTIXA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

A LAGARTIXA

Álvares de Azevedo

 

 A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.

Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.

Possa agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores.

Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha;
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.

 


Poemas e Poesias segunda, 18 de março de 2019

A BELA ADORMECIDA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

 A BELA ADORMECIDA

Adélia Prado

 

Estou alegre e o motivo
beira secretamente à humilhação, 
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.
No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa dele que volta 
e põe tudo arcaico, como a matéria da alma, 
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.
O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja
quando ele vem eu sei,
porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço 
a cada ano mais. 
Sob juramento lhes digo: 
tenho 18 anos. Incompletos.


Poemas e Poesias sábado, 16 de março de 2019

SANGUE DE AFRICANO (17ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO DO BAIANO CASTRO ALVES)

SANGUE DE AFRICANO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Aqui sombrio, fero, delirante
Lucas ergueu-se como o tigre bravo...
Era a estátua terrível da vingança...
O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

Crispado o braço, no punhal segura!
Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam,
Qual das janelas de um palácio em chamas
As labaredas, irrompendo, saltam.

Com o gesto bravo, sacudido, fero,
A destra ameaçando a imensidade...
Era um bronze de Aquiles furioso
Concentrando no punho a tempestade!

No peito arcado o coração sacode
O sangue, que da raça não desmente,
Sangue queimado pelo sol da Líbia,
Que ora referve no Equador ardente.


Poemas e Poesias sexta, 15 de março de 2019

A ANTÔNIO NOBRE (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A ANTÔNIO NOBRE

Manuel Bandeira

 

Tu que penaste tanto e em cujo canto
Há a ingenuidade santa do menino;
Que amaste os choupos, o dobrar do sino,
E cujo pranto faz correr o pranto:

Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino,
A esmorecer e desejando tanto...

Mas tu dormiste em paz como as crianças.
Sorriu a Glória às tuas esperanças
E beijou-te na boca... O lindo som!

Quem me dará o beijo que cobiço?
Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...
Eu, não terei a Glória... nem fui bom.


Poemas e Poesias quinta, 14 de março de 2019

A CHARLES BAUDELAIRE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)E

A CHARLES BAUDELAIRE

Carlos Pena Filho

 

Carlos também
embora sem
flores nem aves
vinho nem naves,

eu te remeto
este soneto
para saberes,
se o acaso o leres,

que existe alguém
no mundo, cem
anos após

que não vaiou
e nem magoou
teu albatroz.


Poemas e Poesias quarta, 13 de março de 2019

A CAVALHADA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

A CAVALHADA

Ascenso Ferreira

 

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis,

Alegria nervosa de bandeirinhas trêmulas!
Bandeirinhas de papel bulindo no vento!...

Foguetes do ar...

— "De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai começar!"

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis...

— Lá vem Papa-Légua em toda carreira
e vem com os arreios luzindo no sol!
— Danou-se! Vai tirar a argolinha!

— Pra quem será?
— Lá vem Pé-de-Vento!
— Lá vem Tira-Teima!
— Lá vem Fura-Mundo!
— Lá vem Sarará!
— Passou lambendo!
— Se tivesse cabelo, tirava!...
— Andou beirando!...
— Tirou!!!
— Música, seu mestre!
— Foguetes, moleque!
— Palmas, negrada!
— Tiraram a argolinha!
— Foi Sarará!

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis...

— Viva a cavalhada!
— Vivôô!!!

— De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai terminar!


Poemas e Poesias terça, 12 de março de 2019

ACAUHAN, A MALHAÇÃO DA ONÇA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A ACAUHAN – A MALHADA DA ONÇA
(com mote de Janice Japiassu)
Ariano Suassuna
 
Aqui morava um Rei, quando eu menino:
vestia ouro e Castanho no gibão.
Pedra da sorte sobre o meu Destino,
pulsava, junto ao meu, seu Coração.
Para mim, seu Cantar era divino,
quando, ao som da Viola e do bordão,
cantava com voz rouca o Desatino,
o Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu Pai. Desde esse dia,
eu me vi, como um Cego, sem meu Guia,
que se foi para o Sol, transfigurado.
Sua Efígie me queima. Eu sou a Presa,
Ele, a Brasa que impele ao Fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto ensanguentado.

Poemas e Poesias segunda, 11 de março de 2019

SONETO 041 (AQUELA FERA HUMANA QUE ENRIQUECE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AQUELA FERA HUMANA QUE ENRIQUECE

Soneto 041

Luís de Camões

 

Aquela fera humana que enriquece 
A sua presuntuosa tirania 
Destas minhas entranhas, onde cria 
Amor um mal, que falta quando cresce; 

Se nela o Céu mostrou (como parece) 
Quanto mostrar ao mundo pretendia, 
Porque de minha vida se injuria? 
Porque de minha morte se enobrece? 

Ora, enfim, sublimai vossa vitória, 
Senhora, com vencer-me e cativar-me: 
Fazei dela no mundo larga história. 

Pois, por mais que vos veja atormentar-me, 
Já me fico logrando desta glória 
De ver que tendes tanta de matar-me. 


Poemas e Poesias domingo, 10 de março de 2019

SONETO DO PRAZER MAIOR (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)
 
 
SONETO DO PRAZER MAIOR
Bocage

 

Amar dentro do peito uma donzella;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Fallar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janella:

Fazel-a vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertal-a nos braços casta e bella:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a bocca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vel-a rendida emfim a Amor fecundo;
Dictoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

 


Poemas e Poesias sábado, 09 de março de 2019

ÚLTIMO CREDO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

 

ÚLTIMO CREDO

Augusto dos Anjos

 

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o trancendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui ...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!


Poemas e Poesias sexta, 08 de março de 2019

HINO À RAZÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

     HINO À RAZÃO

Antero de Quental


     
     Razão, irmã do Amor e da Justiça,
     Mais uma vez escuta a minha prece,
     É a voz dum coração que te apetece,
     Duma alma livre, só a ti submissa.
     
     Por ti é que a poeira movediça
     De astros e sóis e mundos permanece;
     E é por ti que a virtude prevalece,
     E a flor do heroísmo medra e viça.
     
     Por ti, na arena trágica, as nações 
     Buscam a liberdade, entre clarões; 
     E os que olham o futuro e cismam, mudos,
     
     Por ti, podem sofrer e não se abatem, 
     Mãe de filhos robustos, que combatem 
     Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

          


Poemas e Poesias quinta, 07 de março de 2019

A PASSIFLORA (POEMA DO MINEIRO AUGUSTO GUIMARAENS)

A PASSIFLORA

Alphonsus Gumaraens

 

A Passiflora, flor da Paixão de Jesus,
Conserva em si, piedosa, os divinos Tormentos:
Tem cores roxas, tons magoados e sangrentos
Das Chagas Santas, onde o sangue é como luz.

Quantas mãos a colhê-la, e quantos seios nus
Vêm, suaves, aninhá-la em queixas e lamentos!
Ao tristonho clarão dos poentes sonolentos,
Sangram dentro da flor os emblemas da Cruz...

Nas noites brancas, quando a lua é toda círios,
O seu cálice é como entristecido altar
Onde se adora a dor dos eternos Martírios...

Dizem que então Jesus, como em tempos de outrora,
Entre as pétalas pousa, inundado de luar...
Ah! Senhor, a minha alma é como a passiflora!


Poemas e Poesias quarta, 06 de março de 2019

SAUDADE (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

SAUDADE

Raimundo Correia

 

Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito côche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os européis mais finos...

Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, badeiras desfraldadas,
Girândolas, clarins, atropeladas
Legiões de povo, bimbalar de sinos...

Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;

E, em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia e chora, como Jeremias,
Sobra a Jerusalém de tantos sonhos!...


Poemas e Poesias terça, 05 de março de 2019

CRIME IMPERDOÁVEL (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

CRIME IMPERDOÁVEL

Patativa do Assaré

 

 

Com sua filha de bondade infinda,

Maria Rita, encantadora e bela,

Morava a viúva dona Carolinda,

Junto ao engenho do senhor Favela.

Paciente e boa e cheia de carinho,

Passava os dias sem pensar na dor

Reinava ali, naquele tosco ninho,

Um grande exemplo do mais puro amor.

A linda jovem, flor de simpatia,

De olhos brilhantes e cabelo louro,

Além de arrimo e doce companhia

Era da mãe o virginal tesouro.

Tinha uma voz harmoniosa e grata

Maria Rita, a filha da viúva,

Igual a voz do sabiá da mata,

Quando êle canta na primeira chuva.

Maurício, um filho do senhor do engenho,

Um estudante, bacharel futuro,

Apaixonou-se, com o maior empenho

De saciar o coração impuro.

E com promessas de um porvir brilhante,

Fazendo juras de casar com ela,

Tanto insistiu o traidor pedante

Que conquistou a infeliz donzela.

Tornou-se em pranto da menina o riso,

Anuveou-se o doce amor materno,

Aquêle rancho, que era um paraíso,

Foi transformado em verdadeiro inferno.

Depois, expulsas pelo mundo afora,

Sorvendo a taça de amargo fel,

Soluça a mãe e a triste filha chora,

Horrorizadas do chacal cruel.

Vive o monstro a prosseguir no estudo,

Enquanto o manto da miséria as cobre,

Porque só o rico tem direito a tudo,

Não há justiça para quem é pobre...

 


Poemas e Poesias segunda, 04 de março de 2019

VITA NUOVA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VITA NUOVA

Olavo Bilac

 

Se ao mesmo gozo antigo me convidas, 
Com esses mesmos olhos abrasados, 
Mata a recordação das horas idas, 
Das horas que vivemos apartados! 

Não me fales das lágrimas perdidas, 
Não me fales dos beijos dissipados! 
Há numa vida humana cem mil vidas, 
Cabem num coração cem mil pecados! 

Amo-te! A febre, que supunhas morta, 
Revive. Esquece o meu passado, louca! 
Que importa a vida que passou? que importa, 

Se inda te amo, depois de amores tantos, 
E inda tenho, nos olhos e na boca, 
Novas fontes de beijos e de prantos?! 


Poemas e Poesias domingo, 03 de março de 2019

LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL

Mário de Andrade

 


Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!

Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês "singe"
Mas não sabe o que é guariba?
- Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.


Poemas e Poesias sábado, 02 de março de 2019

EU QUERO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

EU QUERO

(Patativa do Assaré)

 

Quero um chefe brasileiro 
Fiel, firme e justiceiro 
Capaz de nos proteger 
Que do campo até à rua 
O povo todo possua 
O direito de viver

Quero paz e liberdade 
Sossego e fraternidade 
Na nossa pátria natal 
Desde a cidade ao deserto 
Quero o operário liberto 
Da exploração patronal

Quero ver do Sul ao Norte 
O nosso caboclo forte 
Trocar a casa de palha 
Por confortável guarida 
Quero a terra dividida 
Para quem nela trabalha

Eu quero o agregado isento 
Do terrível sofrimento 
Do maldito cativeiro 
Quero ver o meu país 
Rico, ditoso e feliz 
Livre do jugo estrangeiro

A bem do nosso progresso 
Quero o apoio do Congresso 
Sobre uma reforma agrária 
Que venha por sua vez 
Libertar o camponês 
Da situação precária

Finalmemte, meus senhores, 
Quero ouvir entre os primores 
Debaixo do céu de anil 
As mais sonoras notas 
Dos cantos dos patriotas 
Cantando a paz do Brasil


Poemas e Poesias sexta, 01 de março de 2019

MUNDO INTERIOR (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

MUNDO INTERIOR

Machado de Assis

 


Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
Do sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, - a natureza externa, -
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida,
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E, contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia, - e dorme.


Poemas e Poesias quinta, 28 de fevereiro de 2019

A BOMBA SUJA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A BOMBA SUJA

Ferreira Gullar

 

Introduzo na poesia 
A palavra diarreia. 
Não pela palavra fria 
Mas pelo que ela semeia. 

Quem fala em flor não diz tudo. 
Quem me fala em dor diz demais. 
O poeta se torna mudo 
sem as palavras reais. 

No dicionário a palavra 
é mera ideia abstrata. 
Mais que palavra, diarreia 
é arma que fere e mata. 

Que mata mais do que faca, 
mais que bala de fuzil, 
homem, mulher e criança 
no interior do Brasil. 

Por exemplo, a diarréia, 
no Rio Grande do Norte, 
de cem crianças que nascem, 
setenta e seis leva á morte. 
É como uma bomba D 
que explode dentro do homem 
quando se dispara, lenta, 
a espoleta da fome. 

É uma bomba-relógio 
(o relógio é o coração) 
que enquanto o homem trabalha 
vai preparando a explosão. 

Bomba colocada nele 
muito antes dele nascer; 
que quando a vida desperta 
nele, começa a bater. 

Bomba colocada nele 
Pelos séculos de fome 
e que explode em diarreia 
no corpo de quem não come. 

Não é uma bomba limpa: 
é uma bomba suja e mansa 
que elimina sem barulho 
vários milhões de crianças. 

Sobretudo no nordeste 
mas não apenas ali 
que a fome do Piauí 
se espalha de leste a oeste. 

Cabe agora perguntar 
quem é que faz essa fome, 
quem foi que ligou a bomba 
ao coração desse homem. 

Quem é que rouba a esse homem 
o cereal que ele planta, 
quem come o arroz que ele colhe 
se ele o colhe e não janta. 

Quem faz café virar dólar 
e faz arroz virar fome 
é o mesmo que põe a bomba 
suja no corpo do homem. 

Mas precisamos agora 
desarmar com nossas mãos 
a espoleta da fome 
que mata nossos irmãos. 

Mas precisamos agora 
deter o sabotador 
que instala a bomba da fome 
dentro do trabalhador. 

E sobretudo é preciso 
trabalhar com segurança 
pra dentro de cada homem 
trocar a arma de fome 
pela arma da esperança.


Poemas e Poesias quarta, 27 de fevereiro de 2019

A MORTE CHEGA CEDO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

A MORTE CHEGA CEDO

Fernando Pessoa

 

 

A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

 

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

 

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.


Poemas e Poesias terça, 26 de fevereiro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 20 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 20

Eno Teodoro Wanke

 

Seguindo a trilha infinita

Do meu destino estrelado

Eu sou aquele que habita

A ilusão de ser amado


Poemas e Poesias segunda, 25 de fevereiro de 2019

AMOR (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

AMOR

Cruz e Sousa

 

Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos
à fresca exalação salúbrica das flores...

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor — na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...


Poemas e Poesias sábado, 23 de fevereiro de 2019

NO MONTE (16ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

NO MONTE

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

"PAREI... Volvi em torno os olhos assombrados...
Ninguém! A solidão pejava os descampados...
Restava inda um segundo... um só pra me salvar;
Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...
E do peito arranquei um pavoroso grito,
Que foi bater em cheio às portas do infinito!
Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte
Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...
Depois a solidão ainda mais calada
Na mortalha envolveu a serra descampada!...

"Ai! que pode fazer a rola triste
Se o gavião nas garras a espedaça?
Ai! que faz o cabrito do deserto,
Quando a jibóia no potente aperto
Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

"Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,
E finalmente expiram de tortura.
Ou, se escapam trementes, arquejantes,
Vão, lambendo as feridas gotejantes,
Morrer à sombra da floresta escura! ...

"E agora está concluída
Minha história desgraçada.
Quando caí — era virgem!
Quando ergui-me — desonrada!"


Poemas e Poesias sábado, 23 de fevereiro de 2019

NO MONTE (16ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, CO BAIANO CASTRO ALVES)

NO MONTE

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"PAREI... Volvi em torno os olhos assombrados...
Ninguém! A solidão pejava os descampados...
Restava inda um segundo... um só pra me salvar;
Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...
E do peito arranquei um pavoroso grito,
Que foi bater em cheio às portas do infinito!
Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte
Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...
Depois a solidão ainda mais calada
Na mortalha envolveu a serra descampada!...

"Ai! que pode fazer a rola triste
Se o gavião nas garras a espedaça?
Ai! que faz o cabrito do deserto,
Quando a jibóia no potente aperto
Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

"Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,
E finalmente expiram de tortura.
Ou, se escapam trementes, arquejantes,
Vão, lambendo as feridas gotejantes,
Morrer à sombra da floresta escura! ...

"E agora está concluída
Minha história desgraçada.
Quando caí — era virgem!
Quando ergui-me — desonrada!"


Poemas e Poesias sexta, 22 de fevereiro de 2019

CENA ÍNTIMA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

CENA ÍNTIMA

Casimiro de Abreu

 

Como estás hoje zangada
E como olhas despeitada
Só pra mim!
- Ora diz-me: esses queixumes,
Esses injustos ciúmes
No têm fim?


Que pequei eu bem conheço,
Mas castigo não mereço
Por pecar;
Pois tu queres chamar crime
Render-me à chama sublime
Dum olhar!


Porventura te esqueceste
Quando de amor me perdeste
Num sorrir?
Agora em cólera imensa
Já queres dar a sentença
Sem me ouvir!


E depois, se eu te repito
Que nesse instante maldito
- sem querer -
Arrastado por magia
Mil torrentes de poesia
Fui beber!


Eram uns olhos escuros
Muito belos, muito puros,
Como os teus!
Uns olhos assim tão lindos
Mostrando gozos infindos,
Só dos céus!


Quando os vi fulgindo tanto
Senti no peito um encanto
Que não sei!
Juro falar-te a verdade...
Foi decerto - sem vontade -
Que eu pequei!


Mas hoje, minha querida,
Eu dera até esta vida
Pra poupar
Essas lágrimas queixosas,
Que as tuas faces mimosas
Vêm molhar!


Sabe ainda ser clemente,
Perdoa um erro inocente,
Minha flor!
Seja grande embora o crime
O perdão sempre é sublime
Meu amor!


Mas se queres com maldade
Castigar quem - sem vontade
Só pecou;
Olha, linda, eu não me queixo;
A teus pés cair me deixo...
Aqui ' stou!


Mas se me deste, formosa,
De amor na taça mimosa
Doce mel;
Ai! Deixa que peça agora
Esses extremos d'outrora
O infiel:


Das brisas do sul;


Prende-me... nesses teus braços
Em doces, longos abraços
Com paixão;
Ordena com gesto altivo...
Que te beije este cativo
Essa mão!


Mata-me sim... de ventura,
Com mil beijos de ternura
Sem ter dó
Que eu prometo, anjo querido,
Não desprender um gemido,
Nem um só!


Poemas e Poesias quinta, 21 de fevereiro de 2019

APOLO E AS NOVE MUSAS DISCANTANDO - SONETO 051 (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

APOLO E AS NOVE MUSAS DISCANTANDO

Soneto 051

Luís de Camões

 

Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influíam
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:

«Ditoso seja o dia e hora, quando
tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar-se em seu desejo traspassando»...

Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corrria
tão ligeira que quase era invisível.

Converteu-se-me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possível.


Poemas e Poesias quarta, 20 de fevereiro de 2019

SONETO DA CÓPULA ESCULPIDA (POEMA DO PORTUGUÊS MANOEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA CÓPULA ESCULPIDA

Bocage

 

Nesta, cuja memória esquece à Fama,

Feira, que de Santarém vem de ano em ano,

Jazia co'uma freira um franciscano;

Eram de barro os dois, de barro a cama:

 

Co'a mão, que à virgindade injúrias trama,

Pretendia o cabrão ferrar-lhe o pano;

Eis que um negro barrasco, um Frei Tutano

O espetáculo vê, que os rins lhe inflama:

 

"Irra! Vens me atiçar, gente danada!

Não basta a felpa dos buréis opacos,

Com que a carne rebelde anda ralada?"

 

"Fora, vis tentações, fora, velhacos!..."

Disse, e ao ríspido som de atroz patada

O escandaloso par converte em cacos.

 


Poemas e Poesias terça, 19 de fevereiro de 2019

IDEALISMO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

IDEALISMO

Augusto dos Anjos

 

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo
O amor na Humanidade é uma mentira.
E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!


Poemas e Poesias segunda, 18 de fevereiro de 2019

CONTEMPLAÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ATERO DE QUENTAL)

CONTEMPLAÇÃO

Antero de Quental

 

Sonho de olhos abertos, caminhando 
Não entre as formas já e as aparências, 
Mas vendo a face imóvel das essências, 
Entre ideias e espíritos pairando... 

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando, 
Visões sem ser, fragmentos de existências... 
Uma névoa de enganos e impotências 
Sobre vácuo insondável rastejando... 

E d'entre a névoa e a sombra universais 
Só me chega um murmúrio, feito de ais... 
É a queixa, o profundíssimo gemido 

Das coisas, que procuram cegamente 
Na sua noite e dolorosamente 
Outra luz, outro fim só presentido... 


Poemas e Poesias domingo, 17 de fevereiro de 2019

A CATEDRAL (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

A CATEDRAL

Alphonsus Guimaraens

 

 

Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino geme em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"


Poemas e Poesias sábado, 16 de fevereiro de 2019

MARÍLIA (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

MARÍLIA

Raimundo Correia

 

 

Ó Marília! Ó Dirceu! Eram dois ninhos
Os vossos corações, ninhos de flores;
Mas, entre os quais, sentíeis os rigores
Lacerantes de incógnitos espinhos;

Tremiam, como em flácidos arminhos,
Promiscuamente, neles os amores,
As saudades, os cânticos, as dores,
Como uma multidão de passarinhos...

O sulco profundíssimo que traça
Nos corações amantes a desgraça,
Ambos nos corações traçados vistes,

Quando os vossos olhares, no momento,
Cruzaram-se, do negro afastamento,
Marejados de lágrimas e tristes...


Poemas e Poesias sexta, 15 de fevereiro de 2019

A ALVORADA DO AMOR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A ALVORADA DO AMOR

Olavo Bilac

 

Um horror grande e mudo, um silêncio profundo 
No dia do Pecado amortalhava o mundo. 
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo 
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo, 
Disse: 

"Chega-te a mim! entra no meu amor, 
E à minha carne entrega a tua carne em flor! 
Preme contra o meu peito o teu seio agitado, 
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado! 
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto, 
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto! 

Vê! tudo nos repele! a toda a criação 
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação... 
A cólera de Deus torce as árvores, cresta 
Como um tufão de fogo o seio da floresta, 
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios; 
As estrelas estão cheias de calefrios; 
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu... 

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu, 
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos! 
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos; 
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos; 
Surjam feras a uivar de todos os caminhos; 
E, vendo-te a sangrar das urzes através, 
Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés... 
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto, 
Ilumina o degredo e perfuma o deserto! 
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido, 
Levo tudo, levando o teu corpo querido! 

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar: 
- Tudo renascerá cantando ao teu olhar, 
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas, 
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas! 
Rosas te brotarão da boca, se cantares! 
Rios te correrão dos olhos, se chorares! 
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu, 
Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu, 
Agora que és mulher, agora que pecaste! 

Ah! bendito o momento em que me revelaste 
O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime! 
Porque, livre de Deus, redimido e sublime, 
Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus, 
- Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!"


Poemas e Poesias quinta, 14 de fevereiro de 2019

ODE AO BURGUÊS (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

ODE AO BURGUÊS

Mário de Andrade

 

 

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, 
o burguês-burguês! 
A digestão bem-feita de São Paulo! 
O homem-curva! o homem-nádegas! 
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, 
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas! 
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros! 
que vivem dentro de muros sem pulos; 
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos 
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês 
e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto! 
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! 
Fora os que algarismam os amanhãs! 
Olha a vida dos nossos setembros! 
Fará Sol? Choverá? Arlequinal! 
Mas à chuva dos rosais 
o èxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura! 
Morte às adiposidades cerebrais! 
Morte ao burguês-mensal! 
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! 
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano! 
"Ai, filha, que te darei pelos teus anos? 
Um colar... Conto e quinhentos!!! 
Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma! 
Oh! purée de batatas morais! 
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas! 
Ódio aos temperamentos regulares! 
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! 
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! 
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, 
sempiternamente as mesmices convencionais! 
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! 
Dois a dois! Primeira posição! Marcha! 
Todos para a Central do meu rancor inebriante 
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! 
Morte ao burguês de giolhos, 
cheirando religião e que não crê em Deus! 
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! 
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burgês!... 


Poemas e Poesias quarta, 13 de fevereiro de 2019

SEU DOTÔ ME CONHECE? (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

 

SEU DOTÔ ME CONHECE?

Patativa do Assaré

 
 


Seu dotô só me parece
Que o sinhô não me conhece
Nunca soube quem sou eu
Nunca viu minha paioça
Minha muié, minha roça
E nem os fios que Deus me deu

Se não sabe escute agora
Que eu vou conta minha istora
Tenha a bondade de ouvi
Eu sou da crasse matuta
Da crasse que não disfruta
Das riqueza do Brasi

Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês
Tenho passado na vida
De quatro meis em siguida
Sem cumê carne uma vez

Sou o que durante a semana
Cumprindo a sina tirana
Da grande labutação
Pra sustentá  a famia
Só tem direito a dois dia
E o resto é do patrão

Sou o que no tempo da guerra
Contra o gosto se desterra
Para nunca mais vortá
E vai morrê nos estrangero
Como pobre brasilero
Longe do torrão natá

Sou o sertanejo que cansa
De votá com esperança
Do Brasil fica mió
Mas o Brasí continua
Na cantiga da piruá
Que é pió, pió, pió

Sou o mendigo sem sussego
Que por não achá imprego
Se vê forçado a siguí
Sem dereção e sem norte
Envergonhado  da sorte
De porta em porta a pidi

Sou aquele disgraçado
Que nos ano atravessado
Vai batê no Maranhão
Sujeito a todo martrato
Bicho de pé, carrapato
E os ataque da sezão

Seu  dotô não se infade
Vá guardando esta verdade
Na memória e pode crê
Que eu sô aquele operáro
Que ganha o pobre saláro
Que não dá nem pra comê

Sou ele todo, em carne e osso
Munta vez não tenho armoço
Nem também o que  jantá
Eu sou aquele rocero
Sem camisa e sem dinhero
Cantado por Juvená

Sim, por Juvená Galeno
O poeta, aquele gêno
O maió dos cantadô
Aquele coração nobre
Que  minha vida de pobre
Munto sentido cantou

Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou  
Sofro munto e corro estreito
Inda tou do mermo jeito
Que Juvená me deixou

Sofrendo a merma sentença
Tô quage perdendo a crença
E pra ninguém se inganá
Vou dexá meu nome aqui
Eu sou fio do Brasí
E o meu nome é Ceará.

Poemas e Poesias terça, 12 de fevereiro de 2019

MINHA MUSA - DECLAMAÇÃO (POEMA DO CARIOCAS MACHADO DE ASSIS)

MINHA MUSA

Machado de Assis

(Declamação)

 


Poemas e Poesias segunda, 11 de fevereiro de 2019

MAU POVO, MEU POEMA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

MEU POVO, MEU POEMA

Ferreira Gullar

 

 

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova.

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema  está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo 
menos como quem canta
do que planta.


Poemas e Poesias domingo, 10 de fevereiro de 2019

A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO

Fernando Pessoa

 

 

A minha vida é um barco abandonado 
Infiel, no ermo porto, ao seu destino. 
Por que não ergue ferro e segue o atino 
De navegar, casado com o seu fado? 

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado 
Torne seu vulto em velas; peregrino 
Frescor de afastamento, no divino 
Amplexo da manhã, puro e salgado. 

Morto corpo da ação sem vontade 
Que o viva, vulto estéril de viver, 
Boiando à tona inútil da saudade. 

Os limos esverdeiam tua quilha, 
O vento embala-te sem te mover, 
E é para além do mar a ansiada Ilha. 


Poemas e Poesias sábado, 09 de fevereiro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 19 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 19

Eno Teodoro Wanke

 

Quem vai ao mar deitar rede

Que tome chuidado, tome

O mar nunca teve sede

Mas nunca vi tanta fome

 


Poemas e Poesias sexta, 08 de fevereiro de 2019

ÊXTASE (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ÊXTASE

Cruz e Sousa

 

Quando vens para mim, abrindo os braços 
Numa carícia lânguida e quebrada, 
Sinto o esplendor de cantos de alvorada 
Na amorosa fremência dos teus passos. 

Partindo os duros e terrestres laços, 
A alma tonta, em delírio, alvoroçada, 
Sobe dos astros a radiosa escada 
Atravessando a curva dos espaços. 

Vens, enquanto que eu, perplexo d’espanto, 
Mal te posso abraçar, gozar-te o encanto 
Dos seios, dentre esses rendados folhos. 

Nem um beijo te dou! abstrato e mudo 
Diante de ti, sinto-te, absorto em tudo, 
Uns rumores de pássaros nos olhos. 


Poemas e Poesias quarta, 06 de fevereiro de 2019

NOS CAMPOS (15ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

NOS CAMPOS

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Fugi desvairada!
Na moita intrincada,
Rasgando uma estrada,
Fugaz me embrenhei.
Apenas vestindo
Meus negros cabelos,
E os seios cobrindo
Com os trêmulos dedos,
Ligeira voei!

"Saltei as torrentes.
Trepei dos rochedos
Aos cimos ardentes,
Nos ínvios caminhos,
Cobertos de espinhos,
Meus passos mesquinhos
Com sangue marquei!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

"Avante! corramos!
Corramos ainda!...
Da selva nos ramos
A sombra é infinda.
A mata possante
Ao filho arquejante
Não nega um abrigo...
Corramos ainda!
Corramos! avante!

"Debalde! A floresta
— Madrasta impiedosa —
A pobre chorosa
Não quis abrigar!
"Pois bem! Ao deserto!

"De novo, é loucura!
Seguindo meus traços
Escuto seus passos
Mais perto! mais perto!
Já queima-me os ombros
Seu hálito ardente.
Já vejo-lhe a sombra
Na úmida alfombra...
Qual negra serpente,
Que vai de repente
Na presa saltar!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Na douda
Corrida,
Vencida,
Perdida,

Quem me há de salvar?"


Poemas e Poesias terça, 05 de fevereiro de 2019

PRIMAVERAS (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

PRIMAVERAS

Casimiro de Abreu

 


I
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores.
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!

II
Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.

São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s'erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.

Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio

Na primavera - na manhã da vida -
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.

Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida - a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s'extasia e goza.

 

Poemas e Poesias segunda, 04 de fevereiro de 2019

SONETO 068 - APARTAVA-SE NISE DE MONTANO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

APARTAVA-SE NISE DE MONTANO

Camões

(Respeitada a grafia original)

 

Apartava-se Nise de Montano,
Em cuja alma, partindo-se, ficava;
Que o pastor na memoria a debuxava,
Por poder sustentar-se deste engano.

Por huma praia do Indico Oceano
Sôbre o curvo cajado se encostava,
E os olhos por as águas alongava,
Que pouco se doião de seu dano.

Pois com tamanha mágoa e saudade,
(Dizia) quiz deixar-me a que eu adoro,
Por testimunhas tómo ceo e estrellas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,
Levai tambem as lagrimas que chóro,
Pois assi me levais a causa dellas.


Poemas e Poesias domingo, 03 de fevereiro de 2019

SONETO DA ESCULTURA ESCANDALOSA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DA ESCULTURA ESCANDALOSA

Bocage

 

 

Esquentado frisão, brutal masmarro

Girava em Santarém na pobre feira;

Eis que divisa ao longe em couva ceira

Seus bons irmãos seráficos de barro:

 

O bruto, que arremeda um boi de carro

Na carranca feroz, parte à carreira,

Os sagrados bonecos escaqueira,

E arranca de ufania um longo escarro:

 

N'alma o santo furor lhe arqueja, e berra;

Mas vós enchei-vos de íntimo alvoroço,

Povos, que do burel sofreis a guerra:

 

Que dos bonzos de barro o vil destroço

É presságio talvez de irem por terra

Membrudos fradalhões de carne e osso!


Poemas e Poesias sábado, 02 de fevereiro de 2019

LUPANAR (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

AUGUSTO DOS ANJOS

Lupanar

 

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!

Este lugar, moços do mundo, vede:
É o grande bebedouro coletivo, 
Onde os bandalhos, como um gado vivo, 
Todas as noites, vêm matar a sede!

É o afrodístico leito do hetairismo 
A antecâmara lúbrica do abismo, 
Em que é mister que o gênero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última forca geradora
E comer o último óvulo do ventre!


Poemas e Poesias sexta, 01 de fevereiro de 2019

MORS - AMOR (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

HORS - AMOR

Antero de Quental

 

Esse negro corcel, cujas passadas 
Escuto em sonhos, quando a sombra desce, 
E, passando a galope, me aparece 
Da noite nas fantásticas estradas, 

Donde vem ele? Que regiões sagradas 
E terríveis cruzou, que assim parece 
Tenebroso e sublime, e lhe estremece 
Não sei que horror nas crinas agitadas? 

Um cavaleiro de expressão potente, 
Formidável, mas plácido, no porte, 
Vestido de armadura reluzente, 

Cavalga a fera estranha sem temor: 
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!" 
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!" 


Poemas e Poesias quinta, 31 de janeiro de 2019

ÁRIA DO LUAR (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ÁRIA DO LUAR

Alphonsus Guimaraens

 

O luar, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
Azul, azul em fora rola...

Cauda de virgem lacrimosa,
Sobre montanhas negras pousa,
Da luz na quietação radiosa.

Como lençóis claros de neve,
Que o sol filtrando em luz esteve,
É transparente, é branco, é leve.

Eurritmia celestial das cores,
Parece feito dos menores
E mais transcendentes odores.

Por essas noites, brancas telas,
Cheias de esperanças de estrelas,
O luar é o sonho das donzelas.

Tem cabalísticos poderes
Como os olhares das mulheres:
Melancoliza e enerva os seres.

Afunda na água o alvo cabelo,
E brilha logo, algente e belo,
Em cada lago um sete-estrelo.

Cantos de amor, salmos de prece,
Gemidos, tudo anda por esse
Olhar que Deus à terra desce.

Pela sua asa, no ar revolta,
Ao coração do amante volta
A Alma da amada aos beijos solta.

Rola, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
O luar, azul em fora, rola...


Poemas e Poesias quarta, 30 de janeiro de 2019

O VINHO DE HEBE (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA

O VINHO DE HEBE

Raimundo Correia

 

Quando o Olimpo nos festins surgia
Hebe risonha, os deuses majestosos
Os copos estendiam-lhe, ruidosos
E ela passando, os copos lhes enchia...
 
A Mocidade, assim, na rubra orgia
Da vida, alegre e pródiga de gozos,
Passa por nós, e nós também, sequiosos,
Nossas taças estendemos-lhe, vazia...
 
E o vinho do prazer em nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos e passa...
Passa, e não torna atrás o seu caminho.
 
Nós chamamo-la em vão; em nossos lábios
Restam apenas, tímidos ressábios,
Como recordações daquele vinho.

Poemas e Poesias terça, 29 de janeiro de 2019

CABOCLA DA MINHA TERRA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

CABOCLA DA MINHA TERRA

Patativa do Assaré

 


Quem me dera ser poeta 
Da mais rica inspiração 
Pra, na linguagem correta, 
Fazer do choro canção, 
Fazer riso do gemido. 
Ah! Se os esprito sabido 
De Catulo e Juvenal 
Falassem por minha boca, 
Pro mode eu cantá a caboca 
Da minha terra natal. 

Desta terra de gulóra, 
Meu querido Ceará ,
Que é conhecido na históra 
Por “Terra dos Alencar “,
Terra dos índios valentes 
Que mataram muita gente 
De frecha e também de pau, 
E terra onde, primeiro, 
O povo do cativeiro 
Se livrou do bacalhau. 

A sua pobre caboca 
É bela, forte e gentil, 
Porém minha idéia é pouca, 
Mode eu dizê tudo aqui 
Tem ela o corpo composto, 
Também a marca no rosto 
Do quente sol do sertão. 
E tem a cabeça chata 
De tanto carregá lata 
Com água do cacimbão. 

Ela não anda decente 
Nem pissui inducação 
Pois veve constantemente 
De alpargata ou pé no chão. 
Não tem de letra ricurso 
Não sabe fazê discurso 
Não sabe lê nem contá 
Pois não tem sabedoria 
Mas faz renda, cose e fia 
E trabaia no tear. 

É simples, muito singela, 
Porém tem grande valor:
Quem véve pertinho dela 
Tem um anjo potretor !
Ela não tem pele fina, 
Como as donzela granfina 
Que tiveram inducação. 
Nem tem dedo despontado, 
O seu dedo é achatado 
Da enxada e do pilão. 

Mas porém a gente nota 
Nela um jeito, um não sei quê 
Com um risinho ela bota 
Qualquer rapaz pra ruê. 
É boa, amável e bonita 
E quando, de amor, palpita, 
Querendo arranjá xodó, 
Tem caborge, tem feitiço, 
Não precisa de artifíço, 
Não bota ruge nem pó!

Pensando no casamento, 
Véve cheia de prazê. 
O beijo do atrevimento 
Não gosta de recebê. 
Não gosta de certas graça, 
E, muitas vez, até passa 
Dez ano sem namorá! 
Esperando o noivo amado, 
Que saiu do seu estado, 
Pras bandas do Paraná. 

Esta caboca roceira, 
Que na armadia não cai;
Muntas veis morre sorteira, 
Pra num disgostá seu pai. 
Só satisfaz a vontade 
Se o véio dé liberdade, 
Eu conheço muito bem! 
Essa caboca interada, 
Que sabe sofrê, calada, 
As mágoa que o peito tem. 

Eu sei de tudo, e tô certo, 
Do seu prazê e sua dor. 
Eu conheço, bem de perto, 
Sua corage e valor; 
Pois eu tenho visto munto, 
Quando é dia de adjunto, 
Na mais quente animação, 
Ela fazê, com despacho, 
Proeza de cabra macho, 
Com uma enxada na mão! 

Bem cedo, de menhãzinha, 
Quando o sol briando sai, 
Quando ela arruma a cozinha, 
Para o seu roçado vai, 
Pro móde ajudá o marido,
Muitas vêiz, endurecido, 
Sem esperança e sem fé... 
Que só não se desespera, 
Pruque ouve e considera 
Os conseio da muié! 

Caboca, eu bem te compreendo: 
Sinto muito e tenho dó. 
Quando eu te vejo sofrendo, 
Derramando o teu suó, 
Lutando por tua vida.
Caboca desprotegida, 
Eu tenho pena de tu, 
Quando eu encontro teu fio, 
Exposto ao calô e ao frio, 
Doente com fome e nu!

O grande, o maior coidado, 
Que tu nesta vida tem 
É zelá teu fio amado, 
Que tanto adora e qué bem. 
E, muntas vêiz, chega a hora 
De vê teu fio i simbóra, 
De farda, quépe e fuzí, 
Pra se metê nas fiêra, 
Honrando a nossa bandeira, 
Em defesa do Brasí!

Muntas veis te móia o rosto 
O pranto triste que dói! 
Quando teu fio, disposto, 
Fazendo papel de herói, 
Vai se oferecê à guerra. 
Caboca de minha terra, 
Tu devia ser feliz! 
Em recompensa dos fio, 
De tanto valor e brio, 
Que tu tem dado ao país. 

Só a potreção do Eterno 
Te faz corajosa assim!
Quando fáia o nosso inverno, 
Que chega o rigor sem fim, 
Tu, sem pão e emagrecida, 
Deixa a terra bem querida, 
teu caro e doce torrão, 
E vai, toda paciente, 
Com a família na frente, 
Escapar no Maranhão. 

Munta prova tu tem dado, 
Da mais disposta muié! 
Eu, que vivo do teu lado, 
Tô vendo e sei que tu é 
Bela, forte e muito boa, 
Mas, te peço, me perdoa, 
Eu não te posso cantá! 
Pruque num sou protegido 
Pelos esprito sabido 
De Catulo e Juvená


Poemas e Poesias segunda, 28 de janeiro de 2019

IN EXTREMIS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

IN EXTREMIS

Olavo Bilac

 

 

Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! de um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...

E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo!
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
E arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...

Eu, com o frio a crescer no coração, — tão cheio
De ti, até no horror do derradeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!

E eu morrendo! e eu morrendo
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,
A delícia da vida! a delícia da vida!


Poemas e Poesias domingo, 27 de janeiro de 2019

DESCOBRIMENTO (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

DESCOBRIMENTO

Mário de Andrade

 

 

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.


Poemas e Poesias sábado, 26 de janeiro de 2019

LIVROS E FLORES (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

LIVROS E FLORES

Machado de Assis

 

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?


Poemas e Poesias sexta, 25 de janeiro de 2019

AMOR ANTIGO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ ARMANDO RODRIGUES DE SOUSA)


Poemas e Poesias quinta, 24 de janeiro de 2019

A BELA ADORMECIDA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A BELA ADORMECIDA

Ferreira Gullar

 

Onde ela dorme
não há lugar senão
o que o sono faz

a grama não é:
cresce perene e azul
rente a seus pés

os pássaros cantam
- é a antiga flor que volta
das vasilhas do pó

e nem move os lábios
dessa que dorme
fora da esperança

E a flora suicida
vai dançando em volta
seus fachos mortais


Poemas e Poesias quarta, 23 de janeiro de 2019

A GRANDE ESFINGE DO EGITO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

A GRANDE ESFINGE DO EGITO

Fernando Pessoa

 

 

A Grande Esfinge do Egito

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro... 
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente 
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides... 
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena 
Ser o perfil do rei Quéops ... 
De repente paro... 
Escureceu tudo...

Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro 
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro 
O som da minha pena a correr no papel... 
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, 
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim, 
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve 
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos, 
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo 
E uma alegria de barcos embandeirados erra 
Numa diagonal difusa 
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...


Poemas e Poesias terça, 22 de janeiro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 18 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 18

Eno Teodoro Wanke

 

A gente sempre acredita

Em qualquer coisa inventada

Desde que ela seja dita

Ao ouvido, cochichada

 


Poemas e Poesias segunda, 21 de janeiro de 2019

LIRIAL (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

LIRIAL

Cruz e Sousa

Vens com uns tons de searas,
De prados enflorescidos
E trazes os coloridos
Das frescas auroras claras.

E tens as nuances raras
Dos bons prazeres servidos
Nos rostos enlourecidos
Das parisienses preclaras.

Chapéu das finas elites,
De roses e clematites,
Chapéu Pierrette — entre o sol

Passando, esbelta e rosada,
Pareces uma encantada
Canção azul do Tirol.


Poemas e Poesias sábado, 19 de janeiro de 2019

NA FONTE (14ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, BAIANO CASTRO ALVES)

NA FONTE

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

I
"Era hoje ao meio-dia.
Nem uma brisa macia
Pela savana bravia
Arrufava os ervaçais...
Um sol de fogo abrasava;
Tudo a sombra procurava;
Só a cigarra cantava
No tronco dos coqueirais.

II
"Eu cobri-me da mantilha,
Na cabeça pus a bilha,
Tomei do deserto a trilha,
Que lá na fonte vai dar.
Cansada cheguei na mata:
Ali, na sombra, a cascata
As alvas tranças desata
Como u'a moça a brincar.

III
"Era tão densa a espessura!
Corria a brisa tão pura!
Reinava tanta frescura,
Que eu quis me banhar ali.
Olhei em roda... Era quedo
O mato, o campo, o rochedo...
Só nas galhas do arvoredo
Saltava alegre o sagüi.

IV
"Junto às águas cristalinas
Despi-me louca, traquinas,
E as roupas alvas e finas
Atirei sobre os cipós.
Depois mirei-me inocente,
E ri vaidosa... e contente...
Mas voltei-me de repente...
Como que ouvira uma voz!

V
"Quem foi que passou ligeiro,
Mexendo ali no ingazeiro,
E se embrenhou no balceiro,
Rachando as folhas do chão?...
Quem foi?! Da mata sombria
Uma vermelha cutia
Saltou tímida e bravia,
Em procura do sertão.

VI
"Chamei-me então de criança;
A meus pés a onda mansa
Por entre os juncos s'entrança
Como uma cobra a fugir!
Mergulho o pé docemente;
Com o frio fujo à corrente...
De um salto após de repente
Fui dentro d'água cair.

VII
"Quando o sol queima as estradas,
E nas várzeas abrasadas
Do vento as quentes lufadas
Erguem novelos de pó,
Como é doce em meio às canas,
Sob um teto de lianas,
Das ondas nas espadanas
Banhar-se despida e só!...

VIII
"Rugitavam os palmares...
Em torno dos nenufares
Zumbiam pejando os ares
Mil insetos de rubim...
Eu naquele leito brando
Rolava alegre cantando...
Súbito... um ramo estalando
Salta um homem junto a mim!"


Poemas e Poesias sexta, 18 de janeiro de 2019

DEUS (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

DEUS

Casimiro de Abreu

 

Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia,
E, erguendo o dorso altivo, sacudia,
A branca espuma para o céu sereno.

E eu disse a minha mãe nesse momento:
“Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver de maior do que o oceano
Ou que seja mais forte do que o vento?”

Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
E respondeu: – Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar que nós tememos,
Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.


Poemas e Poesias quinta, 17 de janeiro de 2019

SONETO 058 - A MORTE, QUE DA VIDA O NÓ DESATA ( POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

A MORTE, QUE DA VIDA O NÓ DESATA

Luís de Camões


A Morte, que da vida o nó desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na Ausência, que é contra ele espada fera,
e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência
a Morte, em apartar dum corpo a alma.
Duas num corpo o Amor ajunte e una;

por que assi leve triunfante a palma
Amor da Morte, apesar da Ausência,
do Tempo, da Razão e da Fortuna.


Poemas e Poesias quarta, 16 de janeiro de 2019

SONETO DA DONZELA ANSIOSA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA DONZELA ANSIOSA

Bocage

 

Arreitada donzela em fofo leito,
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras sutis pachacho estreito:

De louro pêlo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branca crica, nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito:

A voraz porra as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrados:

Como é inda boçal, perde os sentidos:
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.
 

Poemas e Poesias terça, 15 de janeiro de 2019

MATER ORIGINALES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

MATER ORIGINALES

Augusto dos Anjos

 

Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
À contigência orgânica do sexo
A tua estacionaria alma prendeu...

Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas, 
Oh! Mãe original das outras formas, 
A minha forma lúgubre nasceu!


Poemas e Poesias segunda, 14 de janeiro de 2019

SONHO ORIENTAL (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

SONHO ORIENTAL

Antero de Quental

 

Sonho-me às vezes rei, n'alguma ilha, 
Muito longe, nos mares do Oriente, 
Onde a noite é balsâmica1 e fulgente2 
E a lua cheia sobre as águas brilha... 

O aroma da magnólia e da baunilha 
Paira no ar diáfano e dormente... 
Lambe a orla dos bosques, vagamente, 
O mar com finas ondas de escumilha3... 

E enquanto eu na varanda de marfim 
Me encosto, absorto n'um cismar sem fim, 
Tu, meu amor, divagas ao luar, 

Do profundo jardim pelas clareiras, 
Ou descansas debaixo das palmeiras, 
Tendo aos pés um leão familiar.


Poemas e Poesias domingo, 13 de janeiro de 2019

ÁRIA DOS OLHOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ÁRIA DOS OLHOS

Alphonsus Guimaraens

 

Mágoas de além
De olhos de quem
Pede esmolas:
Gemidos e ais
Das autunais
Barcarolas:

Cisnes em bando
Sonambulando
Sobre o mar:
Nuvens de incenso
No céu imenso,
Todo luar:

Olhos sutis,
Ah! que me diz
O olhar santo,
Que sobre mim
Volveis assim
Tanto e tanto?

E que esperança
Nessa romança
Cheia de ais,
Olhos nevoentos,
Noites e ventos
Autunais!


Poemas e Poesias sábado, 12 de janeiro de 2019

SER MOÇA E BELA SER (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

SER MOÇA E BELA SER

Raimundo Correia

 

 

Ser moça e bela ser, por que é que lhe não basta?
Porque tudo o que tem de fresco e virgem gasta
E destrói? Porque atrás de uma vaga esperança 
Fátua, aérea e fugaz, frenética se lança 
A voar, a voar?... 
                            Também a borboleta, 
Mal rompe a ninfa, o estojo abrindo, ávida e inquieta, 
As antenas agita, ensaia o vôo, adeja; 
O finíssimo pó das asas espaneja;
Pouco habituada à luz, a luz logo a embriaga; 
Bóia do sol na morna e rutilante vaga;
Em grandes doses bebe o azul; tonta, espairece 
No éter; voa em redor, vai e vem; sobe e desce; 
Torna a subir e torna a descer; e ora gira 
Contra as correntes do ar, ora, incauta, se atira 
Contra o tojo e os sarcais; nas puas lancinantes 
Em pedaços faz logo às asas cintilantes; 
Da tênue escama de ouro os resquícios mesquinhos 
Presos lhe vão ficando à ponta dos espinhos; 
Uma porção de si deixa por onde passa, 
E, enquanto há vida ainda, esvoaça, esvoaça, 
Como um leve papel solto à mercê do vento; 
Pousa aqui, voa além, até vir o momento 
Em que de todo, enfim, se rasga e dilacera.

Ó borboleta, pára! ó mocidade, espera!


Poemas e Poesias sexta, 11 de janeiro de 2019

MARIA DE TODO JEITO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

MARIA DE TODO JEITO

Patativa do Assaré

 

 

Sou um pobre vagabundo
Meu nome é Mané Preá,
Vivo vagando no mundo
Que nem bola de biá
Pelo taco sacudida;
A história de minha vida
É de arrupiá cabelo;
Vou contá pubricamente,
Pra todos ficá ciente
D’onde vem meu dismantelo.

Vou dá uma prova boa,
Por mintira ninguém tome.
A bondade da pessoa
Nada tem havê com nome.
Minha mãe era Maria,
Nome que lhe deu a pia
Numa abençoada hora;
Era carinhosa e bela.
Maria do jeito dela
Só mesmo a Nossa Senhora.

Divido a sua bondade
E o seu nome tão bonito,
Eu tinha grande vontade,
Uma esperança, um parpito
De quando ficá rapaz,
Pra omentá meu cartaz
Meu prazê, minha alegria
E a vida ficá mais boa,
Casá com uma pessoa
Com o nome de Maria.

E quando rapaz fiquei,
Foi sacrifício de morte
Andei, virei, revirei
E a coisa não dava sorte;
Foi um trabaio penoso,
Porém eu sempre teimoso,
Sem mudá meu pensamento,
Queria pruque queria,
Toda Maria que eu via
Lhe falava em casamento.

Naquele meu abandono,
Eu incabulado andava,
De noite não tinha sono,
De dia não trabaiava
E de tanto maginá
Naquele meu grande azá
Ainda uns dia passei
Leso, de cabeça tonta,
Não sei nem dizê a conta
Das malas que eu arrastei.

Lá mesmo no meu distrito
Morava umas dez Maria
Mas por parte do mardito
As mesmas não me quiria
Quando do assunto eu tratava,
Muntas inté se zangava.
Era um grande caipora.
E eu vendo que não achava
No lugá onde morava
Dei um broqueio pra fora.

A gente só desingana
Dispois que chega no fim;
Se deu no sitio Imburana
Um animado festim
E fui com munta alegria
Percurá uma Maria,
Porém, não deu risurtado,
Tive uma sorte misquinha
Na festa as moça já tinha
Cada quá seu namorado.

Porém dispois de hora e meia
Vi chegá perto de mim
Uma moça gorda e feia
Do cabelo pichuin;
Tinha aquela criatura
O corpo inguá, sem cintura.
O pescoço era incuído
Sua venta era achatada
Os óio munto cumprido
E as pestana bem faiada.

Como quem amô percura
Aquela rola de gente,
Com toda sua feiúra
Se sentou na minha frente
E eu fiz que não tava vendo
Dispois fiquei conhecendo
Que a gurducha da Imburana
Me arreparava e surria
Piscava os óio e batia
Aquelas quatro pestana.

Eu vendo aquela figura
Se atirando pra meu lado,
Divido a sua feiúra
Fiquei bastante acanhado
Com aquela arrumação;
Mas dixe com meus botão
Ela não tem um siná
De beleza e simpatia
Mais, porém, se fô Maria
Ainda vou me arriscá.

Casamento não se apela,
Por não ser isto brinquedo:
Me cheguei pra perto dela
Como quem fica com medo
Quando vê uma visage;
Dispois criando corage,
Preguntei com inergia
Que naci foi pra sê home:
Moça, me diga seu nome
E ela respondeu: – Maria

Com esta resposta bela,
Meu coração se buliu
E a feiúra da donzela
Depressa diminuiu;
Pois tinha o nome sagrado
Tão querido e abençoado
Da mamãe que Deus me deu.
E eu repreto de alegria
Preguntei logo: Maria,
Você qué casá com eu?

Ela não teve demora
Foi respondendo: pois não!
Graças a Deus eu agora
Descansei meu coração
Sempre sempre tinha andado
Percurando um namorado
E vivendo sempre só
No mundo do desengano
Já tou com trinta e dois ano
E nunca achei um xodó.

Eu, com o prazê que tive
Tratei logo de casá
O mais dipressa pussive,
Com medo de si acabá.
Falando com o vigaro,
Fui cuidá de meus preparo
Naquela mesma sumana,
E com doze ou quinze dia,
Eu já tava com Maria
Dentro da minha chupana.

Eu, com a minha Maria,
Fumo tratá de vivê;
Era uma amizade fria
Mas dava pra se ruê.
Porém veja o que ela fez,
Dispois de none ou dez mês
Que o casamento se deu,
Maria tava sisuda
Munto grossêra e bicuda
Sem querê falá com eu.

Mamãe munto me queria,
Era carinhosa e boa,
Mas minha muié Maria
Era o demônio in pessoa.
Tanta força que botei
Pra casá; quando casei
Não tive felicidade,
O maió desgosto tive,
Vivendo assim como vive
Um criminoso na grade.

Quando eu saía pra roça,
Maria ficava in casa,
Sisuda, de cara grossa,
Raivosa pisando em brasa,
E um certo jeito ela tinha
Que in vez de tá na cozinha
Se largava a passiá;
Quando eu vortava do roçado,
O fogo inda tava apagado
E o feijão sem cuzinhá

E se um jeitinho eu caçava,
Nas minhas arrumação
E uma carninha comprava
Pra misturá com feijão,
Pra mim de nada sirvia.
Quando pro roçado eu ia,
Munta vez aconteceu,
A safada na cuzinha
Cumê a carne suzinha
E largá o feijão pra eu.

Dimenhã quando eu dizia:
Maria, alevanta e faça o café,
Ela, bruta, respondia:
Faça ocê, se quizé
Não gosto de sê mandada
E nem sou sua empregada;
Era o que fartava agora!
Sua preguiça era tanta
Que merenda, armoço e janta
Tudo era fora da hora.

E assim Maria passava
Toda noite e todo dia;
Aquilo que eu preguntava
Munta vez não respondia.
Umas palavra de agrado
Não dizia pra meu lado
Tava sempre zuruó,
E além de sê priguiçosa
Bruta, grossêra e teimosa
Tinha farta mais pió.

Sem confiá no marido,
Muntas vez ela mandava
Arguém me botá sintido
Pra sabê se eu namorava.
E toda minha sentença,
Sofria com paciença,
Mas porém achava feio
Aquele seu mau custume,
Pois além de tê ciúme
Gostava dos home aleio.

Foi bem triste a vida minha
Foi bem triste o meu estado
Os objetos que eu tinha
Dentro da mala guardado
Maria dava sumiço.
Só Jesus sabe o supriço
Que eu sufri nas unha dela,
Filizmente, um missanguêro
Que passou no meu terrêro,
Um dia carregou ela.

E hoje, só, no meu caminho,
Vou pensando no ditado:
É mió vivê suzinho
Do que malacompanhado -
Foi esta a maió lição
Passada inriba do chão.
Não fiz meu prano direito,
E agora conheço bem
Que este mundo véio tem
Maria de todo jeito.


Poemas e Poesias quinta, 10 de janeiro de 2019

TERCETOS (POEMA DO CAROCA OLAVO BILAC)

TERCETOS 

Olavo Bilac

 


Noite ainda, quando ela me pedia 
Entre dois beijos que me fosse embora, 
Eu, com os olhos em lágrimas, dizia: 

"Espera ao menos que desponte a aurora! 
Tua alcova é cheirosa como um ninho... 
E olha que escuridão há lá por fora! 

Como queres que eu vá, triste e sozinho, 
Casando a treva e o frio de meu peito 
Ao frio e à treva que há pelo caminho?! 

Ouves? é o vento! é um temporal desfeito! 
Não me arrojes à chuva e à tempestade! 
Não me exiles do vale do teu leito! 

Morrerei de aflição e de saudade... 
Espera! até que o dia resplandeça, 
Aquece-me com a tua mocidade! 

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça 
Repousar, como há pouco repousava... 
Espera um pouco! deixa que amanheça!" 

E ela abria-me os braços. E eu ficava.


Poemas e Poesias quarta, 09 de janeiro de 2019

POEMAS DA AMIGA (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

POEMAS DA AMIGA

Mário de Andrade

 

A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei por que, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.


Poemas e Poesias terça, 08 de janeiro de 2019

HORAS VIVAS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

HORAS VIVAS

Machado de Assis

 

Noite: abrem-se as flôres...
        Que explendores!
Cynthia sonha amores
        Pelo céu.
Tenues os neblinas
        Ás campinas
Descem das collinas,
        Como um véu.


Mãos em mãos travadas,
        Animadas,
Vão aquellas fadas
        Pelo ar;
Soltos os cabellos,
        Em novellos,
Puros, louros, bellos,
        A voar.

— «Homem, nos teus dias
        Que agonias,
Sonhos, utopias.
        Ambições;
Vivas e fagueiras,
        As primeiras,
Como as derradeiras
        Illusões!

— «Quantas, quantas vidas
        Vão perdidas,
Pombas mal feridas
        Pelo mal!

Annos apoz annos,
        Tão insanos,
Vem os desenganos
        Afinal.

— «Dorme: se os pesares
        Repousares,
Vês?—por estes ares
        Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
        E lascivas,
Somos — horas vivas
        De dormir! — »

 

Poemas e Poesias segunda, 07 de janeiro de 2019

RECADO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

RECADO

Ferreira Gullar

 

Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.

Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo;
meu corpo mutilado em fachos.
Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja,
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
- e obrigo o tempo a ser verdade


Poemas e Poesias domingo, 06 de janeiro de 2019

ABISMO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ABISMO

Fernando Pessoa

 

 

Olho o Tejo, e de tal arte 
Que me esquece olhar olhando, 
E súbito isto me bate 
De encontro ao devaneando — 
O que é sério, e correr? 
O que é está-lo eu a ver? 

Sinto de repente pouco, 
Vácuo, o momento, o lugar. 
Tudo de repente é oco — 
Mesmo o meu estar a pensar. 
Tudo — eu e o mundo em redor — 
Fica mais que exterior. 

Perde tudo o ser, ficar, 
E do pensar se me some. 
Fico sem poder ligar 
Ser, idéia, alma de nome 
A mim, à terra e aos céus... 

E súbito encontro Deus. 


Poemas e Poesias sábado, 05 de janeiro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 17 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA 17

Eno Teodoro Wanke

 

Invejo a felicidade

De quem saudoso se diz

Quem hoje sente maldade

Já foi, um dia, feliz

"


Poemas e Poesias sexta, 04 de janeiro de 2019

ETERNO SONHO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ETERNO SONHO

Cruz e Sousa

 

 

 

Talvez alguém estes meus versos lendo
Não entenda que amor neles palpita,
Nem que saudade trágica, infinita
Por dentro dele sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo
A paixão que me enleva e que me agita,
Como de uma alma dolorosa, aflita
Que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,
Diga, a sorrir, num pouco de amizade,
Boa, gentil e carinhosa e franca:

— Ah! bem conheço o teu afeto triste...
E se em minha alma o mesmo não existe,
É que tens essa cor e é que eu sou branca!


Poemas e Poesias quarta, 02 de janeiro de 2019

MUDO E QUEDO (13ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

MUDO E QUEDO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

E Calado Ficou... De pranto as bagas
Pelo moreno rosto deslizaram,
qual da braúna, que o machado fere,
Lágrimas saltam de um sabor amargo
Mudos, quedos os dois neste momento
Mergulhavam no dédalo dangústia,
No labirinto escuro que desgraça...
Labirinto sem luz, sem ar, sem fio ...

Que dor, que drama torvo de agonias
Não vai naquelas almas! ... Dor sombria
De ver quebrado aquele amor tão santo,
De lembrar que o passado está passado...
Que a esperança morreu, que surge a morte! ...
Tanta ilusão! ... tanta carícia meiga!...
Tanto castelo de ventura feito
À beira do riacho, ou na campanha!...
Tanto êxtase inocente de amorosos!...
Tanto beijo na porta da choupana,
Quando a lua invejosa no infinito
Com uma bênção de luz sagrava os noivos!...

Não mais! não mais! O raio, quando esgalha
O ipê secular, atira ao longe
Flores, que há pouco se beijavam nhástea,
Que unidas nascem, juntas viver pensam,
E que jamais na terra hão de encontrar-se?

Passou-se muito tempo... Rio abaixo
A canoa corria ao tom das vagas.

De repente ele ergueu-se hirto, severo,
— O olhar em fogo, o riso convulsivo —
Em golfadas lançando a voz do peito! ...

"Maria! — diz-me tudo... Fala! fala
Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta!
Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo...

A correnteza, estrepitando, arrasta
Uma palmeira, quanto mais um homem! ...
Pois bem! Do seio túrgido do abismo
Há de romper a maldição do morto;
Depois o meu cadáver negro, lívido,
Irá seguindo a esteira da canoa
Pedir-te inda que fales, desgraçada,
Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!...

Era tremenda aquela dor selvagem,
Que rebentava enfim, partindo os diques
Na fúria desmedida!...
Em meio às ondas
Ia Lucas rolar
Um grito fraco,
Uma trêmula mão susteve o escravo...
E a pálida criança, desvairada.
Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.
Ela encostou-se ao peito do selvagem
— Como a violeta, as faces escondendo
Sob a chuva noturna dos cabelos —!
Lenta e sombria após contou destarte
A treda história desse tredo crime! ...


Poemas e Poesias terça, 01 de janeiro de 2019

BÁLSAMO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

BÁLSAMO

Casimiro de Abreu

 

 

Eu vi-a lacrimosa sobre as pedras

Rojar-se essa mulher que a dor ferira!

A morte lhe roubara dum só golpe

Marido e filho, encaneceu-lhe a fronte,

E deixou-a sozinha e desgrenhada

– Estátua da aflição aos pés dum túmulo! –

O esquálido coveiro p’ra dois corpos

Ergueu a mesma enxada, e nessa noite

A mesma cova os teve!

E a mãe chorava,

E mais alto que o choro erguia as vozes!

.....................................................................................

No entanto o sacerdote – fronte branca

Pelo gelo dos anos – a seu lado

Tentava consolá-la

A mãe aflita

Sublime desse belo desespero

As vozes não lhe ouvia; a dor suprema

Toldava-lhe a razão no duro trance.

“Oh! padre! – disse a pobre s’estorcendo

Co’a voz cortada dos soluços d’alma –

“Onde o bálsamo, as falas d’esperança,

“O alívio à minha dor?!”

Grave e solene,

O padre não falou – mostrou-lhe o céu!


Poemas e Poesias segunda, 31 de dezembro de 2018

SONETO 042 - AMOR, QUE O GESTO HUMANO N,ALMA ESCREVE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AMOR, QUE O GESTO HUMANO N'ALMA ESCREVE

Luís de Camões

 

 

Amor, que o gesto humano n'alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.


Poemas e Poesias domingo, 30 de dezembro de 2018

SONETO DA CAGADA (POEMA DO PORTUGUÊS MANOEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA CAGADA

Bocage

 

Vae cagar o mestiço e não vae só;
Convida a algum, que esteja no Gará,
E com as longas calças na mão ja
Pede ao cafre canudo e tambió:

Destapa o banco, atira o seu fuscó,
Depois que ao liso cu assento dá,
Diz ao outro: "Ó amigo, como está
A Rittinha? O que é feito da Nhonhó?"

"Vieste do Palmar? Foste a Pangin?
Não me darás noticias da Russu,
Que desde o outro dia inda a não vi?"

Assim prosegue, e farto ja de gu,
O branco, e respeitavel canarim
Deita fora o cachimbo, e lava o cu.

Poemas e Poesias sábado, 29 de dezembro de 2018

SOLITÁRIO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

SOLITÁRIO

Augusto dos Anjos

 

 

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumbas carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!


Poemas e Poesias sexta, 28 de dezembro de 2018

MÃE (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

MÃE

Antero de Quental

 

Mãe ‑ que adormente este viver dorido.
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas até o fio
Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem – dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!


Poemas e Poesias quinta, 27 de dezembro de 2018

ÁRIAS E CANÇÕES - IV - OUVINDO UM TRIO DE VIOLINO, VIOLETA E VIOLONCELO (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

OUVINDO UM TRIO DE VIOLINO, VIOLETA E VIOLONCELO

Alphonsus Guimaraens

 

Simbolicamente vestida de roxo
(Eram flores roxas num vestido preto)
Tão tentadora estava que um diabo coxo
Fez rugir a carne no meu esqueleto.

Toda a pureza do meu amor por ela
Se foi num sopro tombar no pó.
Os seus olhos intercederam por ela...
Mais uma vez eu vi que não me achava só.

Simbolicamente vestida de roxo
(Talvez saudade de vida mais calma)
Tão macerada estava que a asa de um mocho
Adejou agoureira pela minha Alma.

Todos os sonhos do meu amor por ela
Vieram atormentar-me sem dó.
Mas ninguém na terra intercedeu por ela...
Para divinizá-la era bastante eu só.


Poemas e Poesias quarta, 26 de dezembro de 2018

ANOITECER (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

ANOITECER

Raimundo Correia

 

A Adelino Fontoura


Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia...

Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.


Poemas e Poesias terça, 25 de dezembro de 2018

CABOCLO ROCEIRO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

CABOCLO ROCEIRO

Patativa do Assaré

 

Caboclo Roceiro, das plaga do Norte
Que vive sem sorte, sem terra e sem lar
A tua desdita é tristonho que canto
Se escuto o meu pranto me ponho a chorar

Ninguém te oferece um feliz lenitivo
És rude e cativo, não tens liberdade
A roça é teu mundo e também tua escola
Teu braço é a mola que move a cidade

De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça de enxada na mão
Julgando que Deus é um pai vingativo
Não vês o motivo da tua opressão

Tu pensas, amigo, que a vida que levas
De dores e trevas debaixo da cruz
E as crides constantes, quais sinas e espadas
São penas mandadas por nosso Jesus

Tu és nesta vida o fiel penitente
Um pobre inocente no banco do réu
Caboclo não guarda contigo esta crença
A tua sentença não parte do céu

O mestre divino que é sábio profundo
Não faz neste mundo teu fardo infeliz
As tuas desgraças com tua desordem
Não nascem das ordens do eterno juiz

A lua se apaga sem ter empecilho
O sol do seu brilho jamais te negou
Porém os ingratos, com ódio e com guerra
Tomaram-te a terra que Deus te entregou

De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça, de enxada na mão
Caboclo roceiro, sem lar, sem abrigo
Tu és meu amigo, tu és meu irmão


Poemas e Poesias segunda, 24 de dezembro de 2018

VANITAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VANITAS

Olavo Bilac

 

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria, 
Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada, 
E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada 
De gritos de triunfo e gritos de agonia. 

Prende a idéia fugaz; doma a rima bravia, 
Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada: 
"Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada! 
Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia! 

Cheia da minha febre e da minha alma cheia, 
Arranquei-te da vida ao ádito profundo, 
Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta! 

Posso agora morrer, porque vives!" E o Poeta 
Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo, 
E cai - vaidade humana! - ao pé de um grão de areia... 


Poemas e Poesias domingo, 23 de dezembro de 2018

MOÇA LINDA BEM TRATADA (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

MOÇA LINDA BEM TRATADA

Mário de Andrade

 

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.


Poemas e Poesias sábado, 22 de dezembro de 2018

HORAS VIVAS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

HORAS VIVAS

Machado de Assis

 

Noite: abrem-se as flôres...
        Que explendores!
Cynthia sonha amores
        Pelo céu.
Tenues os neblinas
        Ás campinas
Descem das collinas,
        Como um véu.


Mãos em mãos travadas,
        Animadas,
Vão aquellas fadas
        Pelo ar;
Soltos os cabellos,
        Em novellos,
Puros, louros, bellos,
        A voar.

— «Homem, nos teus dias
        Que agonias,
Sonhos, utopias.
        Ambições;
Vivas e fagueiras,
        As primeiras,
Como as derradeiras
        Illusões!

— «Quantas, quantas vidas
        Vão perdidas,
Pombas mal feridas
        Pelo mal!

Annos apoz annos,
        Tão insanos,
Vem os desenganos
        Afinal.

— «Dorme: se os pesares
        Repousares,
Vês?—por estes ares
        Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
        E lascivas,
Somos — horas vivas
        De dormir! — »


Poemas e Poesias sexta, 21 de dezembro de 2018

UM HOMEM RI (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

 

UM HOMEM RI

Ferreira Gullar

 
 

Ele ria da cintura para cima. Abaixo
da cintura, atrás, sua mão
furtiva
inspecionava na roupa
Na frente e sobretudo no rosto, ele ria,
expelia um clarão, um sumo
servil
feito uma flor carnívora se esforça na beleza da corola
na doçura do mel
Atrás dessa auréola, saindo
dela feito um galho, descia o braço
com a mão e os dedos
e à altura das nádegas trabalhavam
no brim azul das calças
(como um animal no campo na primavera
visto de longe, mas
visto de perto, o focinho, sinistro,
de calor e osso come o capim do chão)
O homem lançava o riso como o polvo lança a sua
[tinta e foge
Mas a mão buscava o cós da cueca
talvez desabotoada
um calombo que coçava
uma pulga sob a roupa
qualquer coisa que fazia a vida pior


Poemas e Poesias quinta, 20 de dezembro de 2018

ABDICAÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ABDICAÇÃO

Fernando Pessoa

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

        Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mãos viris e calmas entreguei;

E meu ceptro e coroa, — eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços.

 

Minha cota de malha, tão inútil

Minhas esporas, de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.


Poemas e Poesias quarta, 19 de dezembro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 16 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA 16

Eno Teodoro Wanke

 

O Rio de fevereiro

Até no céu se intromete

A lua vira pandeiro

Estrelas viram confete


Poemas e Poesias terça, 18 de dezembro de 2018

CRENÇA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CRENÇA

Cruz e Sousa

 

Filha do céu, a pura crença é isto

Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas,

Nessa mudez castíssima das lousas,

No belo rosto sonhador do Cristo.

 

A crença é tudo quanto tenho visto

Nos olhos teus, quando a cabeça pousas

Sobre o meu colo e que dizer não ousas

Todo esse amor que eu venço e que conquisto.

 

A crença é ter os peregrinos olhos

Abertos sempre aos ríspidos escolhos;

Tê-los à frente de qualquer farol

 

E conservá-los, simplesmente acesos

Como dois fachos — engastados, presos

Nas radiações prismáticas do sol!


Poemas e Poesias domingo, 16 de dezembro de 2018

ADEUS (12ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

ADEUS

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

— Adeus — Ai criança ingrata!
Pois tu me disseste — adeus — ?
Loucura! melhor seria
Separar a terra e os céus.

— Adeus — palavra sombria!
De uma alma gelada e fria
És a derradeira flor.

— Adeus! — miséria! mentira
De um seio que não suspira,
De um coração sem amor.

Ai, Senhor! A rola agreste
Morre se o par lhe faltou.
O raio que abrasa o cedro
A parasita abrasou.

O astro namora o orvalho:
— Um é a estrela do galho,
— Outro o orvalho da amplidão.

Mas, à luz do sol nascente,
Morre a estrela — no poente!
O orvalho — morre no chão!

Nunca as neblinas do vale
Souberam dizer-se — adeus —
Se unidas partem da terra,
Perdem-se unidas nos céus.

A onda expira na plaga...
Porém vem logo outra vaga
P'ra morrer da mesma dor...

— Adeus — palavra sombria!
Não digas — adeus —, Maria!
Ou não me fales de amor!


Poemas e Poesias sábado, 15 de dezembro de 2018

SONETO 005 - AMOR É UM FOGO QUE ARDE SM SE VER (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

POEMA 005

AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Luís de Camões

 

Amor é um fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói, e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer. 

É um não querer mais que bem querer; 
É um andar solitário entre a gente; 
É nunca contentar-se e contente; 
É um cuidar que ganha em se perder; 

É querer estar preso por vontade; 
É servir a quem vence, o vencedor; 
É ter com quem nos mata, lealdade. 

Mas como causar pode seu favor 
Nos corações humanos amizade, 
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Poemas e Poesias sexta, 14 de dezembro de 2018

SONETO DO VELHO ESCANDALOSO (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO DO VELHO ESCANDALOSO

Manuel Maria Du Bocage

 

 

 
Tu, oh demente velho descarado,
Escândalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado:

Tu, que, em torpe furor incendiado
Sofres d'ímpia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infrutífero castrado:

Tu, que tendo bebido o méstruo imundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
D'ímpia mulher o orgulho furibundo;

Em castigo do vício, que te arrasta,
Saiba a ínclita Lísia, e todo o mundo 
Que és vil por gênio, que és cabrão, e basta

 


Poemas e Poesias quinta, 13 de dezembro de 2018

SONHO DE UM MONISTA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

SONHO DE UM MONISTA

Augusto dos Anjos

 

Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
Por toda a pró-dinâmica infinita,
Na consciência de um zoófito tranquilo.

A verdade espantosa de Protilo
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus - essa mônada esquisita -
Coordenando e animando tudo aquilo!

E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,
Na guturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,

Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intracósmica divina
Que é o pai e é a mãe das outras energias!

"


Poemas e Poesias quarta, 12 de dezembro de 2018

A SUAVE CASTELÃ DAS HORAS MORTAS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS

A SUAVE CASTELÃ DAS HORAS MORTAS

Alphonsus Guimaraens 

 

 

ÁRIAS E CANÇÕES

III

A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,
Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à Luz celeste e clara.
Como em órbitas de fatais caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,
Os astros morrem pelo céu pressago…
São como círios a tombar num lago.
E o céu, diante de mim, todo escurece…
E eu nem sei de cor uma só prece!
Pobre Alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.
Hirta e branca… Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lírios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer Além novos martírios.
De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.
Os poentes sepulcrais do extremo desengano
Vão enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.
Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…


Poemas e Poesias terça, 11 de dezembro de 2018

JULIETA (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

JULIETA

Raimundo Correia

 

A loura Julieta enamorada,
Triste, lânguida, pálida, abatida, 
Aparece radiante na sacada 
Dos raios brancos do luar ferida.

Engolfa o olhar na sombra condensada, 
Perscruta, busca em torno... e na avenida
Surge Romeu; da valerosa espada
Esplende a clara lâmina polida...

Sente-se o arfar de sôfregos desejos, 
Estoura no ar um turbilhão de beijos,
Mas o dia reponta!... Ó indiscreta

Da cotovia matinal garganta!
Ó perigo do amor, que o amor quebranta!
Ó noites de Verona! Ó Julieta!


Poemas e Poesias segunda, 10 de dezembro de 2018

MÃE PRETA, POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ

MÃE PRETA

Patativa do Assaré

 

 

O coração do inocente, 
É como a terra estrumada, 
Qui a gente pranta a simente 
E a mesma nace corada, 
Lutrida e munto viçosa. 
Na nossa infança ditosa, 
Quando o amô e a simpatia 
Toma conta da criança, 
Esta sodosa lembrança 
Vai batê na cova fria.

Quem pela infança passou, 
O meu dito considera, 
Eu quero, com grande amô, 
Dizê Mãe Preta quem era. 
- Mãe Preta dava a impressão 
Da noite de iscuridão, 
Com seus mistero profundo, 
Iscondendo seus praneta; 
Foi ela a preta mais preta 
Das preta qui eu vi no mundo.

Mas porém, sua arma pura, 
Era branca como a orora, 
E tinha a doce ternura 
Da Virge Nossa Senhora. 
Quando amanhecia o dia, 
Pra minha rede ela ia 
Dizendo palavra bela; 
Pra cuzinha me levava 
E um cafezim eu tomava 
Sentado no colo dela.

Quando as minha brincadêra 
Causava contrariedade 
A minha mãe verdadêra 
Com a sua otoridade, 
As vez brigava comigo 
E num gesto de castigo, 
Botava os óio pra mim, 
Mas porém, não me batia, 
Somente pruque sabia 
Qui mãe preta achava ruim.

Por isso eu não tinha medo, 
Sempre contente vivia 
Mexendo nos meus brinquedo 
E fazendo istripolia. 
Dentro de nossa morada, 
Pra mim não fartava nada, 
O meu mundo era Mãe Preta; 
Foi ela quem me ensinou 
Muntas cantiga de amô, 
E brincá de carrapeta.

Se as vez eu brincando tava 
De barbuleta a pegá, 
E impaciente ficava 
Inraivicido a chorá, 
Ela com munta alegria, 
Um certo jeito fazia, 
Com carinho e com amô, 
Apanhava as barbuleta; 
Foi ela uma santa preta, 
Que o mundo de Deus criou.

Se chegava a noite iscura 
Com seus negrume sem fim, 
Ela com toda ternura, 
Chegava perto de mim 
Uma coisa cochichava 
E depois qui me bejava, 
Me levava pra dromida 
Sobre os seus braços lustroso. 
Aquilo sim, era gozo, 
Aquilo sim, era vida.

E despois de me deitá 
Na minha pequena rede, 
Balançava devagá 
Pra não batê na parede, 
Contando estes lindos verso 
Qui neste grande universo 
Ôtros mais belo não vi, 
E enquanto ela balançava 
E estes versinho cantava, 
Eu percurava dromi.

- Dorme, dorme, meu menino, 
Já chegou a escuridão, 
A treva da noite escura 
Está cheia de papão.

No teu sono terás beijos 
Da rosa e do bugari 
E os espíritos benfazejos 
Te defendem do saci.

Dorme, dorme, meu menino, 
Já chegou a escuridão 
A treva da noite escura 
Está cheia de papão.

Dorme teu sono inocente 
Com Jesus e com Maria, 
Até chegar novamente 
O clarão do novo dia.

Iscutando com respeito 
Estes verso pequenino, 
Eu sintia no meu peito 
Tudo quanto era divino; 
Nem tuada sertaneja, 
Nem os bendito da igreja, 
Nem os toque de retreta, 
In mim ficaro gravado, 
Como estes versos cantado 
Por minha boa Mãe Preta.

Mas porém, eu bem menino, 
Qui nem sabia pecá, 
Os ispinho do destino 
Começaro a me furá. 
Mãe Preta qui era contente, 
tava um dia deferente. 
Preguntei o que ela tinha 
E assim que ela oiô pra eu 
Dois pingo d'água desceu 
Dos óio da coitadinha.

Daquele dia pra cá, 
Minha amorosa Mãe Preta, 
Não pôde mais me ajudá 
Nas pega de barbuleta, 
Sem prazê, sem alegria 
Dentro de um quarto vivia, 
O dia e a noite intêra, 
Sem achá consolação, 
Inriba de seu croxão 
De foia de bananera.

Quando ela pra mim oiava, 
Como quem sente um desgosto, 
A minha mão apertava 
E o pranto banhava o rosto. 
Divido este sofrimento, 
Naquele seu aposento, 
No quarto onde ela viva, 
Me improibiro de entrá, 
Promode não magoá 
As dô que a pobe sintia.

Eu mesmo dizê não sei 
Qual foi a surpresa minha, 
Quando um dia eu acordei, 
Bem cedo domenhãzinha 
Entrei na sala e dei fé 
Qui um magote de muié 
Tava rezando oração; 
E vi Mãe Preta vestida 
Numa ropona comprida, 
Arva, da cô de argodão.

Sinti no peito um cansaço, 
Depois uns home chegaro 
Levantaro ela nos braço 
E numa rede botaro. 
A rede tava amarrada 
Numa peça perparada 
De madêra bem polida, 
E naquela mesma hora, 
Levaro de estrada afora 
Minha Mãe Preta querida.

Mamãe com todo carinho, 
Chorando um bêjo me deu 
E me disse - meu fiinho, 
Sua Mãe Preta morreu! 
E ôtras coisa me dizendo, 
Sinti meu corpo tremendo, 
Me jurguei um pobre réu, 
Sem consolo e sem prazê, 
Com vontade de morrê, 
Pra vê Mãe Preta no céu.

O coração do inocente, 
É como terra estrumada 
Que a gente pranta a semente, 
E a mesma nasce corada 
Lutrida e munto viçosa; 
Na nossa infança ditosa, 
Quando o amô e a simpatia 
Toma conta da criança, 
Esta sodosa lembrança 
Vai batê na cova fria.


Poemas e Poesias domingo, 09 de dezembro de 2018

ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO? (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO?

Mário de Andrade

 

 

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.
 
Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
 
Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
 
Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.
 

Poemas e Poesias sábado, 08 de dezembro de 2018

ESTA NOITE (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ESTA NOITE

Machado de Assis

 


Os teus beijos ardentes,
Teus afagos mais veementes,
Guarda, guarda-os, anjo meu;
Esta noite entre mil flores,
Um sonho todo de amores
Nos dará de amor um céu!


Poemas e Poesias sexta, 07 de dezembro de 2018

ABAT-JOUR (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ABAT-JOUR

Fernando Pessoa

 

 

A lâmpada acesa 
(Outrem a acendeu) 
Baixa uma beleza 

Sobre o chão que é meu. 
No quarto deserto 
Salvo o meu sonhar, 
Faz no chão incerto 
Um círculo a ondear. 

E entre a sombra e a luz 
Que oscila no chão 
Meu sonho conduz 
Minha inatenção. 

Bem sei ... Era dia 
E longe de aqui... 
Quanto me sorria 
O que nunca vi! 

E no quarto silente 
Com a luz a ondear 
Deixei vagamente 
Até de sonhar... 


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