Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias sexta, 17 de janeiro de 2025

ULTRA KUNUBA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

U

ULTRA LIMINA

Da Costa e Silva

 

 

 

Em frágil barca de ébano e marfim,
De tírias velas côncavas ao vento,
Vago pela amplidão do firmamento
Nas ondas do éter pelo azul sem fim...

Aonde vou nesse estranho bergantim, 
Veloz e afoito como o pensamento?
Que céu de sonho, que país nevoento,
Que mundo de mistério busco, enfim?

Nos extremos remotos do horizonte,
Perde-se a barca, espaço em fora, sem
Que com o porto encantado se defronte.

Colho as velas, deito a âncora, porém
Surge na proa o vulto de Caronte, 
Com a mão no leme, a dirigir-me: — Além!

 

 

 


Poemas e Poesias quinta, 16 de janeiro de 2025

FOEDERIS ARCA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

FOEDERIS ARCA

Cruz e Sousa

 

 

 

     Visão que a luz dos Astros louros trazes,
     Papoula real tecida de neblinas
     Leves, etéreas, vaporosas, finas,
     Com aromas de lírios e lilazes.
      
     Brancura virgem do cristal das frases,
     Neve serene das regiões alpinas,
     Willis juncal de mãos alabastrinas,
     De fugitivas correções vivazes.
      
     Floresces no meu Verso como o trigo,
     O trigo de ouro dentre o sol floresce
     E és a suprema Religião que eu sigo...
      
     O Missal dos Missais, que resplandece,
     A igreja soberana que eu bendigo
     E onde murmuro a solitária prece!...


Poemas e Poesias terça, 14 de janeiro de 2025

PERSEVERANDO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

PERSEVERANDO

Castro Alves

 

 

 

(Tradução de V. Hugo)

a Regueira Costa

A águia é o gênio... Da tormenta o pássaro,
Que do monte arremete altivo píncaro,
Quergue um grito aos fulgores do arrebol,
Cuja garra jamais se peia em lodo,
E cujo olhar de fogo troca raios
— Contra os raios do sol.

Não tem ninho de palhas... tem um antro
— Rocha talhada ao martelar do raio,
— Brecha em serra, anta qual o olhar tremeu ...
No flanco da montanha — asilo trêmulo,
Que sacode o tufão entre os abismos
— O precipício e o céu.

Nem pobre verme, nem dourada abelha
Nem azul borboleta... sua prole
Faminta, boquiaberta espera ter...
Não! São aves da noite, são serpentes,
São lagartos imundos, que ela arroja
Aos filhos pra viver.

Ninho de rei!... palácio tenebroso,
Que a avalanche a saltar cerca tombando!...
O gênio aí enseiba a geração...
E ao céu lhe erguendo os olhos flamejantes
Sob as asas de fogo aquenta as almas
Que um dia voarão.

Por que espantas-te, amigo, se tua fronte
Já de raios pejada, choca a nuvem?...
Se o réptil em seu ninho se debate?...
É teu folgar primeiro... é tua festa!...
Águias! Pra vós cadhora é uma tormenta,
Cada festa um combate!

Radia!... É tempo!... E se a lufada erguer-se
Muda a noite feral em prisma fúlgido!
De teu alto pensar completa a lei!...
Irmão! — Prende esta mão de irmão na minha!...
Toma a lira — Poeta! Águia! — esvoaça!
Sobe, sobe, astro rei!...

De tua aurora a bruma vai fundir-se
Águia! faz-te mirar do sol, do raio;
Arranca um nome no febril cantar.
Vem! A glória, que é o alvo de vis setas,
É bandeira arrogante, que o combate
Embeleza ao rasgar.

O meteoro real — de coma fúlgida —
Rola e se engrossa ao devorar dos mundos...
Gigante! Cresces todo o dia assim!...
Tal teu gênio, arrastando em novos trilhos
No curso audaz constelações de idéias,
Marcha e recresce no marchar sem fim! ...


Poemas e Poesias segunda, 13 de janeiro de 2025

BORBOLETA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

BORBOLETA

Casimiro de Abreu

 

 

 

Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tu a rosa
E vais beijar o jasmim?
Pois essa alma é tão sedenta

Que um só amor não contenta
E louca quer variar?
Se já tens amores belos,
P’ra que vais dar teus desvelos
Aos goivos da beira-mar?
Não sabes que a flor traída
Na débil haste pendida
Em breve murcha será?
Que de ciúme fenece
E nunca mais estremece
Aos beijos que a brisa dá?…
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tua a rosa
E vais beijar o jasmim?!
Tu vês a flor da campina,
E bela e terna e divina,
Tu dá-lhe o que essa alma tem;
Depois, passado o delírio,
Esqueces o pobre lírio
Em troca duma cecém!
Mas tu não sabes, louquinha
Que a flor que pobre definha
Merece mais compaixão?
Que a desgraça precisa,
Como sopro da brisa,
Os ais do teu coração?
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tua a rosa
E vais beijar o jasmim?!
Se a borboleta dourada
Esquece a rosa encarnada
Em troca duma outra flor;
Ela – a triste, molemente
Pendida sobre a corrente,
Falece à míngua d’amor.
Tu também, minha inconstante,
Tens tido mais dum amante
E nunca amaste a um só!
Eles morrem de saudade
Mas tu na variedade
Vais vivendo e não tens dó!
Ai! és muito caprichosa!
Sem pena deixas a rosa
E vais beijar outras flores;
Esqueces os que te amam…
Por isso todos te chamam:
– Borboleta dos amores!


Poemas e Poesias domingo, 12 de janeiro de 2025

INFÂNCIA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

INFÂNCIA

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
— Psiu . . . Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro . . . que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mas bonita que a de Robinson Crusoé.


Poemas e Poesias sábado, 11 de janeiro de 2025

SONETO 125 - ESTE AMOR QUE VOS TENHO LIMPO E PURO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
 
SONETO 125 - ESTE AMOR QUE VOS TENHO LIMPO E PURO
Luís de Camões
(Grafia original) 
 
 
 
Este amor, que vos tenho limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado,
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.

D'haver nelle mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso, ou duro fado,
Nem o supremo bem, ou baixo estado,
Nem o tempo presente, nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o inverno e estio deita;
Só para meu amor he sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E qu'essa ingratidão tudo me engeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

Poemas e Poesias sexta, 10 de janeiro de 2025

CEM TROVAS - 026 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 

TROVA 026

Belmiro Braga

 

 

Vi teus braços... que ventura!

Teu colo... as pernas... gue gosto!

Agora, tira a pintura

Que eu quero ver o teu rosto.

 

 


Poemas e Poesias quinta, 09 de janeiro de 2025

SEIO DE VIRGEM (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

SEIO DE VIRGEM

Álvares de Azevedo

 

 

 

O que eu sonho noite e dia,
O que me dá poesia
E me torna a vida bela,
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
É o teu seio, donzela!

Oh! quem pintara o cetim
Desses limões de marfim,
Os leves cerúleos veios
Na brancura deslumbrante
E o tremido de teus seios?

Quando os vejo, de paixão
Sinto pruridos na mão
De os apalpar e conter...
Sorriste do meu desejo?
Loucura! bastava um beijo
Para neles se morrer!


Poemas e Poesias quarta, 08 de janeiro de 2025

TERCEIRO CANTO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

TERCEIRO CANTO

Alberto de Oliveira

 

 

 

I

Embala-me, balanço da mangueira,
Embala-me, que enquanto vou contigo,
Contigo venho, o meu pesar esqueço.
Rompe a luz da manhã rosada e linda,
Tudo desperta. E essa por quem padeço,
Lânguida e preguiçosa,
Entre brancos lençóis repousa ainda.
Embala-me, pendente da mangueira,
Na tensa corda, meu balanço amigo!
Em claro a noite inteira
Passei, pensando nela. Ah! que formosa
Estava ontem à tarde no mirante,
Um livro ao colo, às tranças uma rosa,
E o olhar perdido na amplidão distante!
Pensava... Em quem pensava?
Se fosse em mim... Como formosa estava!
Oh! não pausado e manso,
Mas aos arrancos, estirado voa,
Leva-me, meu balanço!

II

Assim cismando, à toa,
Olhos voltados já para a querida
Visão de Laura, já para o céu claro,
Para o campo e arredores,
A manhã passo. Sobre a serra erguida
Em frente nasce e, coroando-a, brilha
O sol. Loureja o ipê com as áureas flores.
Late nos grotões fundos, indo ao faro
Da caça, ao buzinar dos caçadores,
Da fazenda a matilha.
E no ar que sopra dos capões escuros,
Sente-se, de mistura a essências finas
E ao cheiro das resinas,
Um sabor acre de cajás maduros.

III

Cajás! Não é que lembra à Laura um dia
(Que dia claro! esplende o mato e cheira!)
Chamar-me para em sua companhia
Saboreá-los sob a cajazeira!

— Vamos sós? perguntei-lhe. E a feiticeira:
— Então! tens medo de ir comigo? — E ria.
Compõe as tranças, salta-me ligeira
Ao braço, o braço no meu braço enfia.

— Uma carreira! — Uma carreira! — Aposto!
A um sinal breve dado de partida,
Corremos. Zune o vento em nosso rosto.

Mas eu me deixo atrás ficar, correndo,
Pois mais vale que a aposta da corrida
Ver-lhe as saias a voar, como vou vendo.


Poemas e Poesias terça, 07 de janeiro de 2025

POEMAS PARA A AMIGA - FRAGMENTO 4 (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

POEMAS PARA A AMIGA 

FRAGMENTO 4

Affonso Romano de Sant'Anna

(Grafia original)

 

 

 

As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.


Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava,
em mim te possuía


De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias


Contudo, em paz
eu recebia o carinho,
compungindo o recebia,
tranqüilo em meu silêncio
e tão tranqüilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.

 


Poemas e Poesias segunda, 06 de janeiro de 2025

A PRIMEIRA NAMORADA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A PRIMEIRA NAMORADA

Vinícius de Moraes

 

 

Eu gostaria de saber contar
Uma pequena linda história
Minha memória até que é ruim
Mas dessa eu nunca me esqueci
Nem nunca ouvi tão linda assim

Havia um banco e um jardim
Que era puro jasmim
E um luar transparente
Eu te beijava e sofria
E a gente morria
Uma morte sem fim

Depois sumiu o jardim
E você ficou outra
E eu fiquei sem nada
Até que, amor, te encontrei
E de novo beijei
Tua face adorada
E vi que o amor é você
Porque havia em você
A primeira namorada

 

 

 


Poemas e Poesias domingo, 05 de janeiro de 2025

A MENINA E A CAJAZEIRA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A MENINA E A CAJAZEIRA

Patativa do Assaré

(Grafia original)

 

 

 

Arguém diz que o mundo presta,

Grita mêrmo em arto som,

Mas é tolo e nada sabe

Quem diz que este mundo é bom.

Como é que ele tem bondade

Se a nossa felicidade

Voa como o pensamento,

E da praça inté o campo

O gozo é cumo relampo,

Que abre e fecha num momento?

 

Dêrne do premêro dia

Que Adão mais Eva pecou,

A rosa criou espinho,

Tudo se desmantelou.

E Deus, vendo que a desgraça

De Adão, o chefe da raça,

Percisava sê comum,

Depressa sentenciou,

E uma parcela de dô

Reservou pra cada um.

 

Inté as arve do campo,

Que não ofende a ninguém,

Herdou aquela miséra,

Tem suas máguas tombém.

Muntas vêz, um pau bonito

Que os gáio vai no infinito

Parece alegre e feliz,

Mas quando o ráio lhe acerta,

Sapeca todo e concerta

Da copa inté a raiz.

 

Que curpa tem esse pau,

Promode o raivoso ráio

Lhe queimá de meio a meio,

Lascando gáio por gáio?

Se o pobre é um inocente

E o corisco, de repente,

Faz a maió anarquia,

Tá quage certo e provado

Que tudo vem do pecado

De adão, o pai de famia.

 

Tudo quanto a terra cria

Tem que passá sofrimento,

Tem seus momento de gôzo

E os seus ano de tromento.

As pobre arve, coitada,

Sem a ninguém devê nada

Sofre martiro e cansêra.

Cumo prova eu conto agora

A triste e penosa histora

Da menina e a cajazêra.

 

Num sito munto distante,

Na bêra de uma lagoa,

Morava um casá fié,

Uma gente muito boa.

Tinha uma linda criança,

Rizonha cumo a esperança,

Era linda e prazentêra.

E brincava todo o dia

Na sombra fresca e sadia

De uma bela cajazêra.

 

Bem juntinho de casa

A cajazêra nasceu,

Linhêra, iguá uma frecha,

No rumo do céu cresceu.

Era franzina, dergada,

Mas a copa arredondada

Não podia havê maió.

Quem reparava, dizia

Que a mêrma só parecia

Um grande chapé de só.

 

Entounce a linda criança,

Aquela boa menina,

Era o prazê e era a paz

Da cajazêra franzina.

Naquela sombra vevia,

Durante as horas do dia

Não se afastava dali,

Sempre contente, brincando,

Cheia de vida, zelando

Os seus brinquedos infantí.

 

Aquela copa vistosa

Pra inocente criança

Era um céu, um paraíso

Verde, da cô da esperança.

As ave fazia festa,

Tinha graça a doce orquesta

Daqueles musgo de pena,

Com seus requebrado canto,

Lovando o riso e o encanto

Daquela santa pequena.

 

Se o vento vinha de longe,

Todo amoroso, brincá,

Encrespando na lagoa,

As água cô de cristá,

Na cajazêra chegando

Era tão macio e brando

Cumo quem faz a escóia

De um amô e de um carinho,

Soprando devagarinho

Mode não derrubá fôia.

 

Tudo quanto era bondade,

Paz, inocença e beleza,

Vinha ali fazê morada

E de toda essa riqueza

A menina era a rainha,

Dava a entendê que Deus tinha

Pra o nosso mundo de increu,

Em favô daquele sito,

Mandado lá do infinito

Um pedacinho do céu.

 

Se em cima, na verde copa,

A passarada cantava,

Em baxo, na fresca sombra,

A criançinha brincava.

Aquela arve tão amiga,

Caridosa, sem fadiga,

De tudo era a potreção.

Sua copa arredondada

Vivia sempre enfoiada,

Que fosse inverno ou verão.

 

Mas a nossa curta vida,

Quando começa a sê bela,

O vento da negra sorte

Dá um sopro e desmantela.

Se o sito era um paraíso

De sossego, paz e riso,

Se aquela doce união

Foi grande felicidade,

Maió foi a crueldade,

E a dô da separação.

 

A amiga da cajazêra,

Tão nova, tão pequenina,

Perdeu ali um tesoro,

Pois a mão da triste sina

Robou-lhe a felicidade,

E umas água de orfandade

Dos óio dela caiu.

Quem era tão prazentêra,

Da querida cajazêra

Chorando se despediu.

 

Foi se embora soluçando

Aquela criança boa,

Dêxando luto e tristeza

La na bêra da lagoa.

E a cajazêra copada

Vendo a sua camarada

Da sombra se retirá

Levando o pranto no rosto,

De tanto sofrê desgosto

Nunca mais botou cajá.

 

Sentindo a sombra vazia,

Aquela pobre infeliz

Foi ficando deferente,

Acabrunhando as raiz,

E com a macha dos ano

E o choque dos desengano

Que o mau destino lhe deu,

A cajazêra franzina,

Com sodade da menina

Murchou a copa e morreu.

 

Morreu a pobre, sem curpa,

Sem devê nada a ninguém.

Inté as arve do campo

Tem suas mágoas tombém.

Ficou entonce a memora

Do dia e da crué hora

Daquele amargoso adeus,

Seca, no sito deserto.

Com os seus braços aberto,

Pedindo o socorro a Deus.

 

Quem lhe tinha conhecido

Na doce felicidade,

Vendo o seu grande abandono

Chorava de piedade,

Pois aquela cajazêra,

Bonita, alegre e linhêra,

Tava um pau véio, cacundo,

De gaio tingido e preto,

Parecendo um esqueleto

Chorando as dô desse mundo.

 

No gáio, onde os passarinho

Grogeava de manhã,

Ficou cantando somente

A feia e triste coã.

E de noite o vento afoito,

Roncando e lhe dando açoito,

Formava uma entoação

De causá medonho espanto,

Acompanhada do canto

Do agourento corujão.

 

E pra ficá bem provado

Que tudo o que a terra cria

Tem seus momento de gôzo

E os seus anos de agonia,

Ela foi, de pôco a pôco,

Banindo e criando oco,

Num desmante-lo sem fim,

E sujeita aos bichos mau:

O besôro serra-pau,

A broca, a traça e o cupim.

 

Tudo sofre, tudo pena,

A vida é pesada cruz,

Ninguém se julgue feliz,

Que aquilo que agora é luz

Mais tarde pode sê treva.

A curpa de Adão mais Eva

Se espaiou na terra intêra.

Tudo ali tornou-se em ruína,

Com a farta da menina

E a morte da cajazêra.

 

Inté a prope lagoa

Perdeu a quilaridade,

Criou nas águas uma sombra

Roxa, da cô da sodade.

Tudo nesse mundo passa,

O sito perdeu a graça,

Daquele sonho de amô

Hoje ali já nada existe,

Apenas o choro triste

Da rola fogo-pagô.

 


Poemas e Poesias sábado, 04 de janeiro de 2025

RENÚNCIA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

RENÚNCIA

Olegário Mariano

 

 

Renunciar. Todo o bem que a vida trouxe,
toda a expressão do humano sofrimento.
A gente esquece assim como se fosse
um voo de andorinha em céu nevoento.

Anoiteceu de súbito. Acabou-se
tudo… A miragem do deslumbramento…
Se a vida que rolou no esquecimento
era doce, a saudade inda é mais doce.

Sofre de ânimo forte, alma intranquila!
Resume na lembrança de um momento
teu amor. Olha a noite: ele cintila.

Que o grande amor, quando a renúncia o invade
fica mais puro porque é pensamento,
fica muito maior porque é saudade.


Poemas e Poesias sexta, 03 de janeiro de 2025

O INCÊNDIO DE ROMA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O INCÊNDIO DE ROMA

Olavo Bilac

(Grafia original)

 

 

 

Raiva o incêndio. A ruir, soltas, desconjuntadas,

As muralhas de pedra, o espaço adormecido

De eco em eco acordando ao medonho estampido,

Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.

 

E os templos, os museus, o Capitólio erguido

Em mármore frígio, o Foro, as erectas arcadas

Dos aquedutos, tudo as garras inflamadas

Do incêndio cingem, tudo esbroa-se partido.

 

Longe, reverberando o clarão purpurino,

Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte...

– Impassível, porém, no alto do Palatino,

 

Nero, com o manto grego ondeando ao ombro, assoma

Entre os libertos, e ébrio, engrinaldada a fronte,

Lira em punho, celebra a destruição de Roma.


Poemas e Poesias quinta, 02 de janeiro de 2025

SIMULTANEIDADE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

 

SIMULTANEIDADE

Mário Quintana

 

 

SIMULTANEIDADE - Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver! - Você é louco? - Não, sou poeta.... Frase de Mario Quintana.

 


Poemas e Poesias quarta, 01 de janeiro de 2025

MEU QUINTANA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

MEU QUINTANA

Manuel Bandeira

 

 

 

“Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares…
Insólitos, singulares…
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares…
Perdão! digo quintanares.”


Poemas e Poesias segunda, 30 de dezembro de 2024

SONETO ROMÂNTICO (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

SONETO ROMÂNTICO

Luís Guimarães Júnior

 

 

Soam ao longe as trompas vencedoras;
Vibra o hallali na mata rumorosa;
Latem os cães, e a cavalgada airosa
Das elegantes, fortes caçadoras,

Cabelo ao ar, altivas, tentadoras,
Qual de Diana a escolta poderosa,
Persegue a fera, e açula jubilosa
As matilhas cruéis e vingadoras.

No entanto, a castelã, triste e isolada,
A sombra dos frondosos arvoredos,
Pálida, loira, casta e enamorada,

Passeia ouvindo uns matinais segredos,
E como a Margarida da balada,
Desfolha um malmequer entre os seus dedos.


Poemas e Poesias domingo, 29 de dezembro de 2024

PROFISSÃO DE FÉ (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

PROFISSÃO DE FÉ

Júlio Dinis

 

Se vires a lira entoar alegrias, Prazeres e orgias, das festas à luz,
Não creias as vozes que solta; mentida
É toda essa vida, que nela transluz.

Se a vires cantando felizes amores, Perfumes de flores parecendo aspirar,
Não creias; minh’alma surgir não viu ainda
A aurora bem-vinda de grato raiar.

Se vendo no mundo somente ímpias cenas, Pérfidas apenas, funestas
paixões,
De escárnio e desprezo soltar os seus cantos, São falsos; que
em prantos lhe vão ilusões.

Porém, quando triste, falar da saudade, Em grata ansiedade fitar
o porvir
Em sonhos de esperanças, talvez que mentidas,
Soltar seus gemidos, temor exprimir;

Se a ouvires falando de chamas ocultas Que n’alma sepultas encobrem seus
véus, Quais fogos acesos ao ar elevados, Ardendo ateados, numa ara
sem Deus

Se a vire s nos cantos falar magoada, Da lut a travada no meu coração,
Qu e muit o deseja, que tanto empreende
E em vã o se defende da ignota prisão.

Ouvindo- a em segredo, soltar suas queixas
E e m triste s endeixas sentida gemer,
Chora r o passado, odiar o presente
E a o long e somente fulgores entrever.

Entã o cr ê os hinos que ouvires à lira,
O peit o os inspira, do peito eles vem,
A m ã o indiferente suas cordas não pulsa
Febri l e convulsa se agita também.


Poemas e Poesias sábado, 28 de dezembro de 2024

ORGULHO E RENÚNCIA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

ORGULHO E RENÚNCIA

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Não penses que a mentira me consola:
parte em silêncio, será bem melhor...
Se tudo terminou a tua esmola
meu sofrimento ainda fará maior...

Não te condeno nem te recrimino
ninguém tem culpa do que aconteceu...
Não posso contrariar o meu destino
nem tu podias contrariar o teu!

Sofro, que importa? mas não te censuro,
o inevitável quando chega é assim,
-se esse amor não devia ter futuro
foi bem melhor precipitar seu fim...

Não te condeno nem te recrimino
tinha que ser! Tudo passou, morreu!
Cada qual traz do berço seu destino
e esse afinal, bem doloroso, é o meu!

Estranho, é que a afeição quando se acabe
traga inútil consolo ao nosso fim
quando penso que ainda ontem, - quem o sabe?
tenha sentido algum amor por mim...

Não procures mentir. Compreendo tudo.
Tudo por si justificado está:
- não tens culpa se te amo... se me iludo,
se a vida para mim é que foi má...

Vês? Meus olhos chorando estão contentes!
Não fales nada. Vai! Ninguém te obriga
a dizeres aquilo que não sentes,
nem eu preciso disto minha amiga...

Parte. E que nunca sofrer alguém te faça
o que sofri com o teu ingênuo amor;
- pensa que tudo morre, tudo passa,
que hei de esquecer-te, seja como for...

Pensa que tudo foi uma tolice...
Só mais tarde, bem sei, - compreenderás
as palavras de dor que não te disse
e outras, de amor... que não direi jamais!


Poemas e Poesias sexta, 27 de dezembro de 2024

QUIRIRI (HAIKAI DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

QUIRIRI

Guilherme de Almeida

 

 

 

Calor. Nos tapetes
tranquilos da noite, os grilos
fincam alfinetes.

 


Poemas e Poesias quinta, 26 de dezembro de 2024

VÊNUS (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

VÊNUS

Francisca Júlia

(Grafia original)

 

 

 

Branca e herculea, de pé, num bloco de Carrara,
Que lhe serve de throno, a formosa esculptura,
Venus, tumido o collo, em severa postura,
Com seus olhos de pedra o mundo inteiro encara.

Um sopro, um quê de vida o genio lhe insuflára;
E impassivel, de pé, mostra em toda a brancura,
Desde as linhas da face ao talhe da cintura,
A magestade real de uma belleza rara. 

Vendo-a nessa postura e nesse nobre entono
De Minerva marcial que pelo gladio arranca,
Julgo vel-a descer lentamente do throno.

É, na mesma attitude a que a insolencia a obriga,
Postar-se á minha frente, impassivel e branca,
Na regia perfeição da formosura antiga.


Poemas e Poesias quarta, 25 de dezembro de 2024

IMPOSSÍVEL (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

IMPOSSÍVEL

Florbela Espanca

 

 

 

Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar d’olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe...

O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por ’star contente! Pois então?!...”
Quando se sofre, o que se diz é vão...
Meu coração, tudo, calado, ouviste...

Os meus males ninguém mos adivinha...
A minha Dor não fala, anda sozinha...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!...

Os males d’Anto toda a gente os sabe!
Os meus... ninguém... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!...

 


Poemas e Poesias terça, 24 de dezembro de 2024

UM SORRISO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

|UM SORRISO

Ferreira Gullar

 

 

 

Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas

quando
com o meu aceso archote e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
senão colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?


Poemas e Poesias segunda, 23 de dezembro de 2024

ELA IA, TRANQUILA PASTORINHA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ELA IA, TRANQUILA PASTORINHA

Fernando Pessoa

(Grafia original)

 

 

 

Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...

"Em longes terras hás de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás,  rainha não, mas só pastora  _

Só sempre a mesma pastorinha a ir, 
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

 


Poemas e Poesias domingo, 22 de dezembro de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 34 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

TROVA HUMORÍSTICA 34

Eno Teodoro Wanke

 

 Muito bonita. Queixou-se

– Sou gorda demais, por certo

– Pode ser – digo, em voz doce –

Mas gorda no luga certo!


Poemas e Poesias sábado, 21 de dezembro de 2024

TARÂNTULA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

TARÂNTULA

Da Costa e Silva

 

 

 

Doudo, sonho que o Sol é a maior das aranhas,
–Tarântula do Azul – a ígnea teia da Vida
Tecendo caprichosa, a arrancar das entranhas
Rubros fios de sangue e de luz difundida.

Urde os fios e os prende, elo por elo, à urdida
Rede transluminosa, a alongar as estranhas
Antenas de ouro de fogo, e com a trama tecida
Estende véus iriais para além das montanhas…

Nessa teia de luz um mistério se encerra:
Sabe-o a Aranha, cravando o enorme olhar que infunde
A energia vital que há no ventre da terra.

Aracnídeo exemplo, almo e augusto, desvendo
No Sol, como a ensinar que tudo se fecunde
Sempre, Aranha do Azul, véus de noiva tecendo…


Poemas e Poesias quinta, 19 de dezembro de 2024

FLOR DO MAR (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

FLOR DO MAR

Cruz e Sousa

 

 

 

     És da origem do mar, vens do secreto,
     Do estranho mar espumaroso e frio
     Que põe rede de sonhos ao navio,
     E o deixa balouçar, na vaga, inquieto.
      
 
     Possuis do mar o deslumbrante afeto,
     As dormências nervosas e o sombrio
     E torvo aspecto aterrador, bravio
     Das ondas no atro e proceloso aspecto.
      
 
     Num fundo ideal de púrpuras e rosas
     Surges das águas mucilaginosas
     Como a lua entre a névoa dos espaços...
      
 
     Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
     Auroras, virgens musicas marinhas,
     Acres aromas de algas e sargaços...


Poemas e Poesias terça, 17 de dezembro de 2024

A UMA ESTRANGEIRA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

A UMA ESTRANGEIRA

Castro Alves

 

Lembrança de uma noite no mar
Sens-tu mon coeur, comme il palpite?
Le tien comme il battait gaiement!
Je m’en vais pourtant, ma petite,
Bien loin, bien vite,
Toujours t’aimant.
Chanson

Inês! nas terras distantes,
Aonde vives talvez,
Inda lembram-te os instantes
Daquela noite divina?...
Estrangeira, peregrina,
Quem sabe? — Lembras-te, Inês?

Branda noite! A noite imensa
Não era um ninho? — Talvez!...
Do Atlântico a vaga extensa
Não era um berço? — Oh! se o era...
Berço e ninho... ai, primavera!
O ninho, o berço de Inês.

Às vezes estremecias...
Era de febre? Talvez!...
Eu pegava-te as mãos frias
Pra aquentá-las em meus beijos...
Oh! palidez! Oh! desejos!
Oh! longos cílios de Inês

Na proa os nautas cantavam;
Eram saudades?... Talvez!
Nossos beijos estalavam
Como estala a castanhola...
Lembras-te acaso, espanhola?
Acaso lembras-te, Inês?

Meus olhos nos teus morriam...
Seria vida? — Talvez!
E meus prantos te diziam:
"Tu levas minh’alma, ó filha,
Nas rendas desta mantilha...
Na tua mantilha, Inês!"

De Cádiz o aroma ainda
Tinhas no seio... — Talvez!
De Buenos Aires a linda,
Volvendo aos lares, trazia
As rosas de Andaluzia
Nas lisas faces de Inês!

E volvia a Americana
Do Plata às vagas... Talvez?
E a brisa amorosa, insana
Misturava os meus cabelos
Aos cachos escuros, belos,
Aos negros cachos de Inês!

As estrelas acordavam
Do fundo do mar... Talvez!
Na proa as ondas cantavam.
E a serenata divina
Tu, com a ponta da botina,
Marcavas no chão... Inês!

Não era cumplicidade
Do céu, dos mares? Talvez!
Dir-se-ia que a imensidade
— Conspiradora mimosa —
Dizia à vaga amorosa:
"Segreda amores à Inês!"

E como um véu transparente,
Um véu de noiva... talvez,
Da lua o raio tremente
Te enchia de casto brilho...
E a rastos no tombadilho
Caía a teus pés... Inês!...

E essa noite delirante
Pudeste esquecer? — Talvez...
Ou talvez que neste instante,
Lembrando-te inda saudosa,
Suspires, moça formosa!...
Talvez te lembres... Inês!


Poemas e Poesias segunda, 16 de dezembro de 2024

BERÇO E TÚMULO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

BERÇO E TÚMULO

Casimiro de Abreu

 

 

 

Trago-te flores no meu canto amigo
- Pobre grinalda com prazer tecida -
E - todo amores - deposito um beijo
Na fronte pura em que desponta a vida.

É cedo ainda! - quando moça fores
E percorreres deste livro os cantos,
Talvez que eu durma solitário e mudo
- Lírio pendido a que ninguém deu prantos! -

Então, meu anjo, compassiva e meiga
Depõe-me um goivo sobre a cruz singela,
E nesse ramo que o sepulcro implora
Paga-me as rosas desta infância bela!


Poemas e Poesias domingo, 15 de dezembro de 2024

INDAGAÇÃO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

INDAGAÇÃO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Como é o corpo?
Como é o corpo da mulher?
Onde começa: aqui no chão
Ou na cabeleira, e vem descendo?
Como é a perna subindo e vai subindo
Até onde?
Vê-la num corisco é uma dor
No peito, a terra treme.
Diz-que na mulher tem partes linda
E nunca se revelam. Maciezas
Redondas. Como fazem
Nuas, na bacia, se lavando,
Para não se verem nuas nuas nuas?
Por que dentro do vestido muitos outros
vestidos e brancuras e engomados,
Até onde? Quando é que já sem roupa
É ela mesma, só mulher? E como que faz
Quando que faz
Se é que faz
O que fazemos todos porcamente?


Poemas e Poesias sábado, 14 de dezembro de 2024

SONETO 024 - ESTÁ-SE A PRIMAVERA TRASLADANDO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

 

 
 
SONETO 024 - ESTÁ-SE A PRIMAVERA TRASLADANDO
Luís de Camões
(Grafia original) 
 
 
Está-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta;
Nas bellas faces, e na boca e testa,
Cecens, rosas, e cravos debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto póde manifesta,
Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,
Se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
Possa colher o fructo destas flores,
Perderão toda a graça os vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
Que semeasse o Amor em vós amores,
Se vossa condição produze abrolhos.

Poemas e Poesias sexta, 13 de dezembro de 2024

CEM TROVAS - 025 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 

TROVA 025

Belmiro Braga

 

 

Dizem que a lágrima nasce

Do fundo do coração

Ah! Se a lágrima falasse

Que doce consolação!


Poemas e Poesias quinta, 12 de dezembro de 2024

SE EU MORRESSE AMANHÃ (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

 

SE EU MORRESSE AMANHÃ

Álvares de Azevedo

 

 

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que amanhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o doloroso afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!


Poemas e Poesias quarta, 11 de dezembro de 2024

TAÇA DE CORAL (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

TAÇA DE CORAL

Alberto de Oliveira

 

 

 

Lícias, pastor — enquanto o sol recebe,
Mugindo, o manso armento e ao largo espraia.
Em sede abrasa, qual de amor por Febe,
— Sede também, sede maior, desmaia.

Mas aplacar-lhe vem piedosa Naia
A sede dágua: entre vinhedo e sebe
Corre uma linfa, e ele no seu de faia
De ao pé do Alfeu tarro escultado bebe.

Bebe, e a golpe e mais golpe: — "Quer ventura
(Suspira e diz) que eu mate uma ânsia louca,
E outra fique a penar, zagala ingrata!

Outra que mais me aflige e me tortura,
E não em vaso assim, mas de uma boca
Na taça de coral é que se mata",


Poemas e Poesias terça, 10 de dezembro de 2024

POEMAS PARA A AMIGA - FRATGMENTO 3 (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

POEMAS PARA A AMIGA - FRAGMENTO 3

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.

E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.


Poemas e Poesias segunda, 09 de dezembro de 2024

A PORTA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A PORTA

Vinícius de Moraes

 

 

 

Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado

Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão

Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta

Eu sou muito inteligente!
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!


Poemas e Poesias domingo, 08 de dezembro de 2024

TEMO POR MEUS OLHOS (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

TEMO POR MEUS OLHOS

Thiago de Mello

 

 

 

Temo por meus olhos
diante das puras vestes.
E no entretanto, desejo.

Temor que sugere o epilogo
de ser cantaro partido
ao lado de fonte prodiga.

A nao contemplar, prefiro
definitiva cegueira.

Nao como os homens cegos,
mas como os pes das criancas
que sao cegos, caminhando.


Poemas e Poesias sábado, 07 de dezembro de 2024

SEU DOTÔ ME CONHECE? (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASARÉ)

SEU DOTÔ ME CONHECE?

Patativa do Assaré

(Grafia original)

 

 

 

Seu dotô, só me parece

Que o sinhô não me conhece

Nunca sôbe quem sou eu

Nunca viu minha paioça,

Minha muié, minha roça,

E os fio que Deus me deu.

 

Se não sabe, escute agora,

Que eu vô contá minha história,

Tenha a bondade de ouvi:

Eu sou da crasse matuta,

Da crasse que não desfruta

Das riqueza do Brasil.

 

Sou aquele que conhece

As privação que padece

O mais pobre camponês;

Tenho passado na vida

De cinco mês em seguida

Sem comê carne uma vez.

 

Sou o que durante a semana,

Cumprindo a sina tirana,

Na grande labutação

Pra sustentá a famia

Só tem direito a dois dia

O resto é pra o patrão.

 

Sou o que no tempo da guerra

Contra o gosto se desterra

Pra nunca mais vortá

E vai morrê no estrangêro

Como pobre brasilêro

Longe do torrão natá.

 

Sou o sertanejo que cansa

De votá, com esperança

Do Brasil ficá mió;

Mas o Brasil continua

Na cantiga da perua

Que é: pió, pió, pió...

 

Sou o mendigo sem sossego

Que por não achá emprego

Se vê forçado a seguí

Sem direção e sem norte,

Envergonhado da sorte,

De porta em porta a pedí.

 

Sou aquele desgraçado,

Que nos ano atravessado

Vai batê no Maranhão,

Sujeito a todo o matrato,

Bicho de pé, carrapato,

E os ataques de sezão.

 

Senhô dotô, não se enfade

Vá guardando essa verdade

Na memória, pode crê

Que sou aquele operário

Que ganha um nobre salário

Que não dá nem pra comê

 

Sou ele todo, em carne e osso,

Muitas vez, não tenho armoço

Nem também o que jantá;

Eu sou aquele rocêro,

Sem camisa e sem dinhêro,

Cantado por Juvená.

 

Sim, por Juvená Galeno,

O poeta, aquele geno,

O maió dos trovadô,

Aquele coração nobre

Que a minha vida de pobre

Muito sentido cantou.

 

Há mais de cem ano eu vivo

Nesta vida de cativo

E a potreção não chegou;

Sofro munto e corro estreito,

Inda tou do mermo jeito

Que Juvená me deixou.

 

Sofrendo a mesma sentença

Tou quase perdendo a crença,

E pra ninguém se enganá

Vou deixá o meu nome aqui:

Eu sou fio do Brasil,

E o meu nome é Ceará.


Poemas e Poesias sexta, 06 de dezembro de 2024

O SOL QUE CANTA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

O SOL QUE CANTA

Olegário Mariano

 

 

 

Quando a cigarra canta é o sol que canta.
Por isso o canto dela acorda cedo
E vai rolando com veemência tanta
Que enche as grotas, os campos e o arvoredo.

Desce aos vales, penetra na garganta
Da serra e acorda a pedra do rochedo.
Parece que da terra se levanta
Um punhado de pássaros com medo.

Em chispas de ouro e vibrações estranhas
Vibram clarins nas notas derramadas …
Estilhaçam-se taças nas montanhas …

E o sol, seguindo o canto que se alteia,
Deita fogo na poeira das estradas
E põe pingos de luz nos grãos de areia.


Poemas e Poesias quinta, 05 de dezembro de 2024

A SESTA DE NERO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A SESTA DE NERO

Olavo Bilac

 

 

 

Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial de pórfiro luzente
E mármor da Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.

Nero no toro ebúrneo estende-se indolente…
Gemas em profusão no estrágulo custoso
De ouro bordado veem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.

Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em rescendente pira.

Formas quebram, dançando, escravas em coreia…
E Nero dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popeia.


Poemas e Poesias quarta, 04 de dezembro de 2024

SEMPRE QUE CHOVE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

SEMPRE QUE CHOVE

Mário Quintana

 

 

Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!


Poemas e Poesias terça, 03 de dezembro de 2024

OS MENINOS CARVOEIROS (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

OS MENINOS CARVOEIROS

Manuel Bandeira

 

 

 

Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
— Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.

Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.)

— Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles…
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
— Eh, carvoero!

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,
Encarapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados.


Poemas e Poesias segunda, 02 de dezembro de 2024

SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHO

Manoel de Barros

 

 

 

1.
Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.

2.
Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias...
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter — ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos, enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportância científica — como andar de costas.

3.
Ilhota de pedra no meio de um corixo é de nome sarã.
Amanhecer de um sarã tem gala! Eu assisto:
Martim-pescador, de repente, no alto da água, arregaça o cuzinho e solta sua isca de guspe.
Peixe vai ver o que foi aquele guspe: antepara!
De veloz arroio martim-pescador frecha na água, e num átimo sobe -
O peixe atravessado no bico!
As águas remansam e rezam.
Que esse martim-pescador é fela.

4.
Tem quatro teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo aguenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

5.
A água passa por uma frase e por mim.
Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos.
A boca desarruma os vocábulos na hora de falar
E os deixa em lanhos na beira da voz.

6.
O coró é um bicho abléfaro - e sem engonços.
Habita encostado nos termos que lhe referem.
Tem o corpo transparente e lambe o próprio oco na fortuna
de que esse oco ainda seja a placenta em que morou.
O coró se suficienta.
Devora-se como um prato azedo de formigas.
E lambe até o algodão do nariz em que está morto.

7.
O rio atravessou um besouro pelo meio - e uma falena.
Era um besouro de âmbar, hosco
E uma falena de Ocaso. O besouro
Enfiou na falena seu aguilhão
E a trouxe para seu esconderijo.
Depois esplendorou-a toda antes de comê-la.

8.
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.

9.
De noite passarinho é órfão
para voar. Não enxerga
nem o pai das vacas
nem o adágio dos arroios.
Seu olho de ovo emaranha com folhas.
No escuro não sabe medir direção e trompa nos paus.
Passarinho é poeta de arrebol.

10.
Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a lesma deixa risquinhos lindos.
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma escorre...
Ela fode a pedra.
Ela precisa deste deserto para viver.

11.
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

12.
Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

13.
Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.


Poemas e Poesias domingo, 01 de dezembro de 2024

PAULO E VIRGÍNIA (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

PAULO E VIRGÍNIA

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

Fomos um dia alegres, estouvados,
Ao clarão matinal do sol nascente,
Colher as flores do vergel ridente
E as primeiras amoras dos cercados.

Venturosos, risonhos, namorados,
Cada qual mais feliz e mais contente,
Esquecemos a terra inteiramente:
Doidos de amor, de gozo embriagados.

Seus cabelos — enquanto ela corria,
Voavam, loiros como a luz, dispersos!
Eu a chamava e ela me fugia.

Por fim voltamos — em prazer imersos:
E das venturas todas desse dia...
Resta a saudade que inspirou meus versos.


Poemas e Poesias sábado, 30 de novembro de 2024

1 DE MAIO DE 1860 (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

1 DE MAIO DE 1860

Júlio Dinis

 

 

 

Onde vai teu pensamento
Quando, os olhos elevando,
Segues das aves ligeiras
Esse harmonioso bando?

Que te dizem os gorjeios

Dessas pobres foragidas,

Que vão procurar ao longe
Outras selvas mais floridas?

Acaso temes, como elas,
As nuvens negras, pesadas,
E os ventos que descem rápidos
Das altas serras nevadas?

Acaso invejas as asas
Desses plumosos viajantes?
Acaso aspiras à vida
Noutros climas mais distantes?


Poemas e Poesias sexta, 29 de novembro de 2024

ORDEM DO DIA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

ORDEM DO DIA

J. G. de Araújo Jorge

 

 

Não chegaremos ao livro, sem o leite e o pão,
nem chegaremos ao pão sem à terra e sem o teto,
nem chegaremos à terra sem liberdade e justiça,
nem chegaremos à liberdade, sem coragem e honestidade,
oh! a indispensável coragem para essa luta.

Lutemos pois, - todos nos, -brancos, pretos e amarelos,
que choramos e comemos, que crescemos e estudamos,
que sofremos e construímos, como homens sem cor,
todos nos que precisamos do mesmo leite branco
e do mesmo livro, e da mesma terra, e da mesma liberdade
para Viver. Viver. Ou ao menos morrer, mas lutando.


Poemas e Poesias quinta, 28 de novembro de 2024

PRECE A ANCHIETA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

PRECE A ANCHIETA

Guilherme de Almeida

 

 

Santo: erguestes a cruz na selva escura;
Herói: plantastes nossa velha aldeia;
Mestre: ensinastes a doutrina pura;
Poeta: escrevestes versos sobre a areia!

Golpeia a cruz a foice inculta e dura;
Invade a vila multidão alheia;
Morre a voz santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a onda espumejante e cheia...

Santo, herói, mestre e poeta: - Pela glória
que destes a esta Terra e a sua História,
Pela dor que sofremos sempre nós.

Pelo bem que quisestes a este povo,
O novo Cristo deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós!

 


Poemas e Poesias quarta, 27 de novembro de 2024

SONHO AFRICANO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

SONHO AFRICANO

Francisca Júlia

 

 

 

Ei-lo em sua choupana. A lâmpada, suspensa
Ao teto, oscila; a um canto, um velho e ervado fimbo;
Entrando, porta dentro, o sol forma-lhe um nimbo
Cor de cinábrio em torno à carapinha densa.

Estira-se no chão... Tanta fadiga e doença!
Espreguiça, boceja... O apagado cachimbo
Na boca, nessa meia escuridão de limbo,
Mole, semicerrando os dúbios olhos, pensa...

Pensa na pátria, além... As florestas gigantes
Se estendem sob o azul, onde, cheios de mágoa,
Vivem negros reptis e enormes elefantes...

Calma em tudo. Dardeja o sol raios tranquilos...
Desce um rio, a cantar... Coalham-se à tona d'água
Em compacto apertão, os velhos crocodilos...


Poemas e Poesias terça, 26 de novembro de 2024

HORAS RUBRAS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

HORAS RUBRAS

Florbela Espanca

 

 

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço olaias em flor às gargalhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve e branca e mist’riosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!


Poemas e Poesias segunda, 25 de novembro de 2024

OS REINOS INIMIGOS (POEMAS DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR) - VÍDEO


Poemas e Poesias domingo, 24 de novembro de 2024

ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA

Fernando Pessoa

 

 

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!


Poemas e Poesias sábado, 23 de novembro de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 33 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

TROVA HUMORÍSTICA 33

Eno Teodoro Wanke

 

 E como ralhava a sapa

Com seu ardente amiguinho

Após aplicar-lhe um tapa

– Não sabe que dá sapinho?

 


Poemas e Poesias sexta, 22 de novembro de 2024

SUPREMO ENIGMA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA DA SILVA)

SUPREMO ENIGMA

Da Costa e Silva

 

 

Quando os meus olhos aos teus olhos volvo,
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.

Um mistério de Amor que eu não resolvo
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.

Quem me decifrará todo esse enigma
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…

Quem há que o teu segredo me desvende
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende


Poemas e Poesias quinta, 21 de novembro de 2024

ENCARNAÇÃO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ENCARNAÇÃO

Cruz e Sousa

 

 

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos e enleios,
Das harpas da emoção tantos arpejos...

Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
A noite, ao luar, intumescer os seios
Lácteos, de finos e azulados veios
De virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
De estranhos, vagos, estrelados rumos
Onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
Formem, com claridades e fragrâncias,
A encarnação das lívidas Amadas!


Poemas e Poesias quarta, 20 de novembro de 2024

TU TENS MEDO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

TU TENS MEDO

Cecília Meireles

 

 

 

Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo…
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos…
Enganados…
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…
… E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.


Poemas e Poesias segunda, 18 de novembro de 2024

A BOA VISTA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

A BOA VISTA

Castro Alves

 

 

 

Era uma tarde triste, mas límpida e suave…
Eu — pálido poeta — seguia triste e grave
A estrada, que conduz ao campo solitário,
Como um filho, que volta ao paternal sacrário,

E ao longe abandonando o múrmur da cidade
— Som vago, que gagueja em meio à imensidade, —
No drama do crepúsculo eu escutava atento

A surdina da tarde ao sol, que morre lento.
A poeira da estrada meu passo levantava,
Porém minh’alma ardente no céu azul marchava
E os astros sacudia no vôo violento
— Poeira, que dormia no chão do firmamento.
A pávida andorinha, que o vendaval fustiga,

 

Procura os coruchéus da catedral antiga.
Eu — andorinha entregue aos vendavais do inverno.
Ia seguindo triste p’ra o velho lar paterno.
Como a águia, que do ninho talhado no rochedo
Ergue o pescoço calvo por cima do fraguedo,
— (P’ra ver no céu a nuvem, que espuma o firmamento,

E o mar,-corcel que espuma ao látego do vento…
Longe o feudal castelo levanta a antiga torre,
Que aos raios do poente brilhante sol escorre!
Ei-lo soberbo e calmo o abutre de granito
Mergulhando o pescoço no seio do infinito,
E lá de cima olhando com seus clarões vermelhos

 

Os tetos, que a seus pés parecem de joelhos!…
Não! Minha velha torre! Oh! atalaia antiga,
Tu olhas esperando alguma face amiga,
E perguntas talvez ao vento, que em ti chora:
“Por que não volta mais o meu senhor d’outrora?
Por que não vem sentar-se no banco do terreiro

Ouvir das criancinhas o riso feiticeiro
E pensando no lar, na ciência, nos pobres
Abrigar nesta sombra seus pensamentos nobres?
Onde estão as crianças-grupo alegre e risonho
— Que escondiam-se atrás do cipreste tristonho…
Ou que enforcaram rindo um feio Pulchinello,

 

Enquanto a doce Mãe, que é toda amor, desvelo
Ralha com um rir divino o grupo folgazão,
Que vem correndo alegre beijar-lhe a branca mão?…~

É nisto que tu cismas, ó torre abandonada,
Vendo deserto o parque e solitária a estrada.
No entanto eu estrangeiro, que tu já não conheces—
No limiar de joelhos só tenho pranto e preces.
Oh! deixem-me chorar!… Meu lar… meu doce ninho!

Abre a vetusta grade ao filho teu mesquinho!
Passado— mar imenso!… inunda-me em fragrância!
Eu não quero lauréis, quero as rosas da infância.
Ai! Minha triste fronte, aonde as multidões

 

Lançaram misturadas glórias e maldições…
Acalenta em teu seio, ó solidão sagrada!
Deixa est’alma chorar em teu ombro encostada!
Meu lar está deserto… Um velho cão de guarda
Veio saltando a custo roçar-me a testa parda,

Lamber-me após os dedos, porém a sós consigo
Rusgando com o direito, que tem um velho amigo..
Como tudo mudou-se!… O jardim ‘stá inculto
As roseiras morreram do vento ao rijo insulto…
A erva inunda a terra; o musgo trepa os muros
A ortiga silvestre enrola em nós impuros

Uma estátua caída, em cuja mão nevada
A aranha estende ao sol a teia delicada!…
Mergulho os pés nas plantas selvagens, espalmadas,

 

As borboletas fogem-me em lúcidas manadas…
E ouvindo-me as passadas tristonhas, taciturnas,
Os grilos, que cantavam, calaram-se nas furnas…

Oh! jardim solitário! Relíquia do passado!
Minh’alma, como tu. é um parque arruinado!
Morreram-me no seio as rosas em fragrância,
Veste o pesar os muros dos meus vergéis da infância,

A estátua do talento, que pura em mim s’erguia,
Jaz hoje — e nela a turba enlaça uma ironia!…

Ao menos como tu, lá d’alma num recanto
Da casta poesia ainda escuto o canto, —
Voz do céu, que consola, se o mundo nos insulta,
E na gruta do seio murmura um treno oculta.
Entremos!… Quantos ecos na vasta escadaria,
Nos longos corredores respondem-me à porfia!…

 

Oh! casa de meus pais!… A um crânio já vazio,
Que o hóspede largando deixou calado e frio,
Compara-te o estrangeiro, caminhando indiscreto
Nestes salões imensos, que abriga o vasto teto.
Mas eu no teu vazio — vejo uma multidão
Fala-me o teu silêncio — ouço-te a solidão!…

Povoam-se estas salas…
E eu vejo lentamente
No solo resvalarem falando tenuemente
Dest’alma e deste seio as sombras venerandas
Fantasmas adorados — visões sutis e brandas…
Aqui… além… mais longe… por onde eu movo
o passo,

 

Como aves, que espantadas arrojam-se ao espaço,
Saudades e lembranças s’erguendo — bando alado
— Roçam por mim as asas voando p’ra o passado.


Poemas e Poesias domingo, 17 de novembro de 2024

BÁLSAMO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

 

BÁLSAMO

Casimiro de Abreu 

 

 

Eu vi-a lacrimosa sobre as pedras
Rojar-se essa mulher que a dor ferira!
A morte lhe roubara dum só golpe
Marido e filho, encaneceu-lhe a fronte,
E deixou-a sozinha e desgrenhada
- Estátua da aflição aos pés dum túmulo! -
O esquálido coveiro p'ra dois corpos
Ergueu a mesma enxada, e nessa noite
A mesma cova os teve!
E a mãe chorava,
E mais alto que o choro erguia as vozes!

.......................


No entanto o sacerdote - fronte branca
Pelo gelo dos anos - a seu lado
Tentava consolá-la
A mãe aflita
Sublime desse belo desespero
As vozes não lhe ouvia; a dor suprema
Toldava-lhe a razão no duro trance.

"Oh! padre! - disse a pobre s'estorcendo
Co'a voz cortada dos soluços d'alma -
"Onde o bálsamo, as falas d'esperança,
"O alívio à minha dor?!"
Grave e solene,
O padre não falou - mostrou-lhe o céu!

 


Poemas e Poesias sábado, 16 de novembro de 2024

IGREJA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

IGREJA

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Tijolo
areia
andaime
água
tijolo.
O canto dos homens trabalhando trabalhando
mais perto do céu
cada vez mais perto
mais
— a torre.

E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações.
O padre que fala do inferno
sem nunca ter ido lá.
Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos.
Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.
A manhã pintou-se de azul.
No adro ficou o ateu,
no alto fica Deus.
Domingo...
Bem bão! Bem bão!
Os serafins, no meio, entoam quii ieleisão.


Poemas e Poesias sexta, 15 de novembro de 2024

SONETO 014 - ESTÁ O LASCIVO E DOCE PASSARINHO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

 

 
 
SONETO 014 - ESTÁ O LASCIVO E DOCE PASSARINHO
Luís de Camões
(Grafia original) 
 
 
Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as pennas ordenando;
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rustico raminho.

O cruel caçador, que do caminho
Se vem callado e manso desviando,
Com prompta vista a setta endireitando,
Lhe dá no Estygio Lago eterno ninho.

Desta arte o coração, que livre andava,
(Postoque ja de longe destinado)
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.
 

Poemas e Poesias quinta, 14 de novembro de 2024

CEM TROVAS - 024 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 

TROVA 024

Belmiro Braga

 

Politiqueiros... Que súcia!

Segundo as leis de Lavater

O que lhes sobra de astúcia

É o que lhes falta em caráter

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 13 de novembro de 2024

POR QUE MENTIAS? (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

POR QUE MENTIAS?

Álvares de Azevedo

 

 

 

Por que mentias leviana e bela?
Se minha face pálida sentias
Queimada pela febre, e minha vida
Tu vias desmaiar, por que mentias?

Acordei da ilusão, a sós morrendo
Sinto na mocidade as agonias.
Por tua causa desespero e morro...
Leviana sem dó, por que mentias?

Sabe Deus se te amei! Sabem as noites
Essa dor que alentei, que tu nutrias!
Sabe esse pobre coração que treme
Que a esperança perdeu por que mentias!

Vê minha palidez- a febre lenta
Esse fogo das pálpebras sombrias...
Pousa a mão no meu peito! Eu morro! Eu morro!
Leviana sem dó, por que mentias?


Poemas e Poesias terça, 12 de novembro de 2024

SONETO - A GALERA DE CLEÓPATRA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA

SONETO - A GALERA DE CLEÓPATRA

Alberto de Oliveira

(Grafia original)

 

 

 

Rio abaixo lá vai, de proa ao sol do Egito,

A galera real. Cinquenta remos lestos

Impelem-na. O verão faz rutilar, aos estos

Da luz, de um céu de cobre o horizonte infinito.

 

Pesa, abafado e quente, o ar circunstante. Uns restos

De templo ora se veem, lembrando velho rito;

E inda um pilono erguido, uma esfinge de granito,

De empoeirada figura e taciturnos gestos.

 

De quando em quando à flor do Nilo se destaca,

D’água morna emergindo, a escama de um fakaka;

O íbis branco revoa entre os juncais. Entanto,

 

Numa sorte de naos, Cleópatra procura

Su’alma distrair, prestando ouvido ao canto

Que a escrava Carmion tristemente murmura.

 


Poemas e Poesias segunda, 11 de novembro de 2024

POEMA PARA A AMIGA - FRAGMENTO 2 (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

POEMA PARA A AMIGA - FRAGMENTO 2

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.


Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.

 


Poemas e Poesias domingo, 10 de novembro de 2024

A PONTE DE VAN GOGH (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A PONTE DE VAN GOGH

Vinícius de Moraes

 

 

O lugar não importa: pode ser o Japão, a Holanda, a campina inglesa.

Mas é absolutamente preciso que seja domingo.

 

O azul do céu ecoa na esmeralda do rio

E o rio reflete docemente as margens de relva verde-laranja

Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o lençol virginal de miss

Para ser no céu sem mancha a única nuvem.

A calma é velha, de uma velhice sem pátina

As cores são simples, ingênuas

A estação é feliz: o guarda da ponte chegou a pintar

De listas vermelhas o teto de sua casinhola.

E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos de pinheiros a fazer caretas

E a pressa com que o homem da charrete vai:

- A pressa de quem atravessou um vago perigo

Tudo estivesse perfeito, e não me viesse esse medo tolo de a pequena ponte levadiça

Desabe e se molhe o vestido preto de Cristina Georgina Rosseti

Que vai de umbrela especialmente para ouvir a prédica do novo pastor da vila

 

 

 
 

Poemas e Poesias sábado, 09 de novembro de 2024

SONHO DOMADO (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

SONHO DOMADO

Thiago de Mello

 

 

Sei que é preciso sonhar.

Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.

Quem não sonha o azul do vôo
perde seu poder de pássaro.

A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.

Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.

Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.

É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.


Poemas e Poesias sexta, 08 de novembro de 2024

A FILOSOFIA DE UM TROVADOR SERTANEJO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

    

 

A FILOSOFIA DE UM TROVADOR SERTANEJO

Patativa do Assaré

 

 

SEU DOTÔ PEDE QUE EU CANTE
COISA DA FILOSOFIA;
ESCUTE QUE EU VOU AGORA
CANTÁ TUDO EM CARRETIA;
O SENHÔ PODE ESCUTÁ,
QUE AS CORDA NÃO QUEBRÁ,
NEM FARTÁ MINHA CACHOLA,
EU LHE ANTENDO NUM INSTANTE:
NADA EXISTE QUE EU NUM CANTE
NAS CORDA DESTA VIOLA.
 
 
SOBRE ESTE MUNDO CRUÉ,
DE TURMENTO E CONFUSÃO,
OS POETA SEMPRE GOSTA
DE DÁ SUA PINIÃO;
UM - DESCREVE DE PROVISO
QUE O MUNDO É UM PARAÍSO
ENFEITADO DE FULÔ;
JÁ ÔTO, QUE É MAIS IZATO,
DIZ QUE O MUNDO É UM TRIATO
CHEIO DE CENA DE HORRÔ.
 
 
E AFINÁ, TODOS POETA
FALANDO NESTE RESPEITO.
DESCREVE ESTE MUNDO VÉIO,
CADA UM LÁ DO SEU JEITO;
POR ISSO, EU AGORA VOU
PEDI AO SENHÔ DOTÔ
UM POUQUINHO DE ATENÇÃO;
NO CAUSO QUE POSSA SÊ,
QUE EU QUERO TOMBÉM FAZÊ
A MINHA COMPARAÇÃO.
 
 
NÃO VOU DIZÊ QUE OS POETA
NÃO TÃO COMPARANDO BEM,
MAS COMO O ASSUNTO ME CABE,
EU QUERO FALÁ TOMBÉM.
O MUNDO É UMA CADEIA
QUE DE PRESO VEVE CHEIA,
NINGUÉM ME DIGA QUE NÃO;
A MORTE É SEU SENTINELA,
E É QUEM ARRANCA AS TRAMELA
DAS PORTA DESTA PRISÃO.
 
 
O MUNDO É UMA CADEIA
ONDE SE VÉVE A PENÁ;
NÓS SOMO OS PRISIONÊRO
DESTE CERCE UNIVERSÁ;
VIVENDO NESTA PRISÃO,
TUDO DE ARGEMA NAS MÃO,
OS GRIÃO É AS DOENÇA;
DENTRO DESTE CALABOÇO
SOFRE O VÉIO E SOFRE O MOÇO,
QUE A VIDA É DURA SENTENÇA!
 
 
TUDO GEME NESTE CERCE,
GRITA UM - AI! ÔTO - ÔI!
E A CAUSA DESSA DERROTA
EU VOU LHE DIZÊ QUEM FOI:
APOIS BEM, TODO MOTIVO
DE HOJE NÓS VIVÊ CATIVO,
NO MAIS HORRIVE PENÁ,
FOI ADÃO E SUA ESPOSA,
QUE OS MAIS VÉIO DAZ AS COISA
MODE OS MAIS NOVO PAGÁ.
 
 
NO MÊRMO TEMPO QUE DEUS
FEZ O CÉU, O MÁ, E O CHÃO,
FAZ TOMBÉM DE BARRO UM HOME,
QUE É JUSTAMENTE ESSE ADÃO;
ELE ERA UM BELO VIVENTE,
SANTO FIÉ, INOCENTE,
MAS DEPOIS FOI TREÇOÊRO,
FEZ UMA GRANDE DESORDE,
PRUQUÊ NÃO CUMPRIU AS ORDE
DO NOSSO DEUS VERDADÊRO.
 
 
POR ESSAS CAUSA, NO MUNDO
SOFRE O GRANDE E O PEQUENINO,
EU INTÉ FICO ABUSADO,
SEU DOTÔ, QUANDO MAGINO
EM ADÃO, ESSE MARVADO
SACUDÍ NÓS NO PECADO,
PODENDO NÓS TÁ INOCENTE!
MAS NÃO TEM JEITO QUE DÁ,
O JEITO É NÓS PERDOÁ,
PRUQUE DEUS PERDOA A GENTE.
 
 
NO DIA QUE DEUS FEZ ELE,
INCALOCOU NUM LUGÁ
QUE OS HOME SABIDO CHAMA
PARAÍSO TERREÁ,
TARVEZ UMA BELA CHARCA,
DESSAS DE PREMÊRA MARCA,
QUE TEM TODAS PRANTAÇÃO;
OU ENTONCE, COMO A QUINTA
DE SEU MANÉ DA JACINTA,
MORADÔ NO BUQUERÃO.
 
 
ENTONCE, NAQUELA CHARCA,
OU POR ÔTA, PARAÍSO,
ERA MÊRMO UM CÉU ABERTO,
TUDO ERA RIQUEZA E RISO;
MAS ADÃO, SE ACHANDO SÓ,
PEDIU A DEUS UM XODÓ,
QUE A VIDA TAVA CRUÉ;
DEUS, VENDO ESSA CHORADÊRA,
LHE ENTREGOU POR COMPANHÊRA
UMA FORMOSA MUIÉ.
 
 
E EU VOU JÁ LHE CONTÁ TUDO
DO JEITO QUE ACONTECEU;
TARVEZ INTÉ VAMINCÊ
SABA MIÓ DO QUE EU,
APOIS VEJO QUE O SENHÔ
TEM A CARTA DE DOTÔ,
REMEXE EM TODOS PAPÉ
É SABE LÊ E ESCREVÊ,
MAS VOU SEMPRE LHE DIZÊ
CUMO DEUS FEZ A MUIÉ.
 
 
DEUS MANDOU ADÃO DRUMI
E LOGO, ASSIM QUE MANDOU,
SEM DEMORÁ UM MOMENTO
ADÃO NO SONO PEGOU.
E NESSE SONO PESADO,
DEUS APARPANDO DUM LADO
ARRANCOU-LHE UMA COSTELA,
E SEM PERPARÁ O ESBOÇO,
DAQUELE PEQUENO OSSO
FEZ EVA, FORMOSA E BELA.
 
 
DAQUELE OSSINHO PEQUENO
NUM MOMENTO DEUS FEZ EVA,
POIS PRA FAZÊ QUARQUÉ COISA
MUNTO TEMPO DEUS NÃO LEVA;
AQUELE ARTISTA PROFUNDO
FEZ AQUILO NUM SEGUNDO,
SEM NUNCA TÊ ESTUDADO;
ENTONCE, ADÃO ACORDOU,
E QUANDO SE LEVANTOU,
EVA JÁ TAVA DUM LADO.
 
 
MORANDO NO PARAÍSO,
ADÃO COM EVA FICOU,
AQUELE SANTO CASÁ
FEITO POR NOSSO SENHÔ;
SATISFEITO ELES VIA
UMA FARTURA SEM FIM;
SEM TRABAIO E SEM CANSÊRA,
TODA SORTE DE FRUITÊRA
TINHA NAQUELE JARDIM.
 
 
MAS ENTRE AS FRUITÊRA BOA
HAVIA A DA TRISTE SORTE,
QUE QUEM COMESSE O SEU FRUITO
FICAVA SUJEITO Á MORTE.
SE EVA E ADÃO PERCISAVA,
DOS ÔTOS TODOS TIRAVA
E COMIA SE FARTÁ;
MAS DAQUELE NÃO COMIA.
PRUQUÊ COMENDO, FAZIA
GRANDE PECADO MORTÁ.
 
 
ESSE FRUITO DO PECADO
PARECE QUE TINHA UM QUÊ,
QUE A GENTE VENDO, FICAVA
COM VONTADE DE COMÊ.
SEU DOTÔ, EU NÃO SEI NÃO,
MAS FAÇO AVALIAÇÃO
QUE AQUELE FRUITO DALI
AGRADAVA A NOSSO ORFATO,
COMO ESSA FRUITA DO MATO
QUE O POVO CHAMA PIQUI.
 
 
DEUS PEDIU A ADÃO E A EVA
QUE ELES NUNCA SE ESQUECESSE:
COMESSE DOS ÔTO TODO,
MAS AQUELE NÃO COMESSE,
PRUQUÊ SE ADÃO NÃO UVISSE,
E UM DIA NELE BOLISSE,
VINHA FOME, PESTE E GUERRA
PRA CASTIGÁ SUA RAÇA,
E TUDO QUE ERA DESGRAÇA
APARECIA NA TERRA.
 
 
MAS ADÃO, ESSE SUJEITO
A QUEM TOU ME REFERINDO
( QUE JESUS LHE TAPE AS OIÇA,
MODE ELE NÃO TÁ ME UVINDO )
ERA MUNTO CABEÇUDO!
PRUQUÊ DEUS ENSINOU TUDO
DO JEITO QUE ERA PRECISO,
E O PATETA DE ATEIMOSO
COMEU DO FRUITO GOSTOSO
QUE TINHA NO PARAÍSO.
 
 
DA CABEÇA DELE MÊRMO
PODIA NÃO TÊ COMIDO,
MAS A MUIÉ SEMPRE FAZ
A DESGRAÇA DO MARIDO!
VEIO UMA COBRA DAS TREVA,
E TANTO FEZ, INTÉ QUE EVA
DO FRUITO PÔDE COMÊ.
E NA MÊRMA CASIÃO
DEU A SEU MARIDO ADÃO,
MODE O POBE SE PERDÊ.
 
 
EU SEI QUE ADÃO É CURPADO
E NO PECADO CAIU,
MAS PORÉM NÃO FOI POR GOSTO,
FOI PRUQUE EVA INLUDIU;
APOIS ELA, SEU DOTÔ,
FOI QUEM PREMÊRO PORVOU
DO FRUITO DA PERDIÇÃO
QUEBRANDO A SANTA PREMESSA,
E O POVO, QUANDO CONVESSA,
E O POVO, QUANDO CONVESSA,
SÓ BOTA A CURPA EM ADÃO.
 
 
SE ADÃO VIVESSE SOZINHO,
TAVA LIVRE DE PECÁ,
MAS O HOME É BEM TOLO E CAÇA
SARNA MODE SE COÇÁ;
QUANDO O FRUITO EVA LHE DEU,
ELE, DE BOBO, COMEU,
E EU PENSO QUE O POBRE INTÉ
NEM TAVA COM ESSA FOME,
É PRUQUE ELE ERA UM HOME
GUNVERNADO POR MUIÉ.
 
 
LOGO QUE COMÊRO O FRUITO
AQUELES DOIS MAL UVIDO,
QUANDO CUIDARO, ERA TARDE:
TAVA TODOS DOIS DESPIDO;
UM DO ÔTO ENVERGONHADO,
CADA QUÁ MAIS ACANHADO
QUERIA SE ESCAPULÍ.
Ô HORA TRISTE E MESQUINHA!
EVA, COITADA, NÃO TINHA
UM PANO PRA SE COBRI.
 
 
DEUS, VENDO AQUILO, ORDENOU
A UM ANJO DA GULÓRA
QUE EXPURSASSE ADÃO MAIS EVA
DO PARAÍSO PRA FORA;
E ELES DOIS FÔRO SOFRÊ
INTÉ UM DIA MORRÊ,
MODE ASSIM PODÊ GOZÁ.
DIZ AS LEITURA SAGRADA
QUE A MORTE FOI INVENTADA
DAQUELE TEMPO PRA CÁ.
 
 
ANTE DAQUELE PECADO
A VIDA ERA UMA DELIÇA;
MAS DESPOIS DELE FICOU
CHEIA DE DÔ E MALIÇA.
POR CAUSA DE EVA E DE ADÃO
O MUNDO É UMA PRISÃO,
CUMO EU DIXE A SEU DOTÔ:
FOI EVA MAIS SEU ESPOSO
OS PREMÊRO CRIMINOSO
QUE NESTA CADEIA ENTROU.
 
 
ENTONCE DEUS RESORVEU,
PRA SE VINGÁ DESSA DESSA AFRONTA,
ENTREGÁ O MUNDO Á MORTE,
MODE ELA TOMÁ DE CONTA,
E A MORTE, CUMO VIGIA
VEVE SEMPRE, NOITE E DIA,
DO BRASI AO ESTRANGÊRO,
COM SUA FOICE NA MÃO
VIGIANDO ESTA PRISÃO
E SORTANDO PRISIONÊRO.
 
 
COM A GRANDE FARSIDADE
QUE EVA A SEU MARIDO FEZ,
DEXOU TUDO PADECENDO
NAS GRADE DESTE XADREZ.
SÓ SE GOZA BOA SORTE
DEPOIS DE UMA BOA MORTE;
E DESTE XADREZ IMUNDO
A MORTE É QUEM NOS TRENSPORTA,
CADA UM TEM SUA PORTA
DE SAÍ PRO ÔTO MUNDO.
 
 
A PESSOA, QUANDO TÁ
BEM DOENTE, QUAGE MORTA,
A MORTE TÁ COM CERTEZA
BEM NO PÉ DA SUA PORTA;
JÁ TÁ PEGADA NA TRANCA,
E NO MOMENTO QUE ARRANCA,
O ESPRITO AVOA VELOZ
DE DENTRO DESTA PRISÃO,
QUE EVA E SEU MARIDO ADÃO
DEXOU DE HERANÇA PRA NÓS.
 
 
SEU DOTÔ, EU FALO FRANCO
SE EU MORRÊ NÃO DOU CAVACO,
EU MÊRMO TENHO VONTADE
DE SAÍ DESTE BURACO;
JURO POR NOSSA SENHORA
QUE CHEGANDO A MINHA HORA
EU NÃO DIGO NEM ADEUS
A ESTE TRISTE RECANTO,
E VOU GOZÁ DOS ENCANTO
DAS SANTA COISA DE DEUS.
 
 
SE A VIDA TRAZ O TROMENTO
E A MORTE O DESCANSO TRAZ,
NÃO DOU CAVACO EM MORRÊ,
PRA GOZÁ DA SANTA PAZ.
EU INTÉ TENHO ALEGRIA,
PRUQUÊ VEJO TODO DIA
QUE A MORTE QUÉ ME LEVÁ;
JÁ OIÇO A ZOADA DELA,
SACOLEJANDO A TRAMELA
DA PORTA, PRA ME SORTÁ.
 
 
SEU DOTÔ, E AGORA MÊRMO
QUE EU JÁ FIZ O SEU MANDADO,
DÊ LICENÇA PR'EU FINDÁ
ESTE ASSUNTO TÃO PUXADO.
PENSO QUE JÁ LHE AGRADEI,
APOIS BOA PROVA DEI
DA MINHA COMPARAÇÃO,
LHE JURANDO COM FRANQUEZA,
E AFIRMANDO COM CERTEZA
QUE O MUNDO É UMA PRISÃO.
 
 
E EU SÓ NÃO CANTO MIÓ,
LHE ESPRICANDO TUDO A FUNDO,
É PRUQUE NUNCA ESTUDEI
E SÓ CONHEÇO NO MUNDO
A MINHA VÉIA PAIOÇA,
OS TRABAIADÔ DA ROÇA
E OS VAQUÊRO DA FAZENDA;
SOU MATUTO DE VERDADE
E SÓ VOU LÁ NA CIDADE
COMPRÁ MINHAS ENCOMENDA.
 
 
MÊRMO O JEITO É EU DEXÁ:
QUE A VIOLA SE DANOU,
PIPOCOU UMA DAS PRIMA
E O BORDÃO DESAFINOU;
TOMBÉM, EU JÁ CANTEI MUNTO,
TÁ TREMINANDO ESSE ASSUNTO
QUE VASMICÊ ME PEDIA,
E O QUE DIXE JÁ PORVEI;
DESCURPE SE EU NÃO CANTEI
COISA DA FILOSOFIA.

Poemas e Poesias quinta, 07 de novembro de 2024

O FLIRT (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

O FLIRT

Olegário Mariano

 

 

 

Retirei um breve instante
Das minhas cogitações,
Para falar-vos do Flirt,
A epidemia elegante
Dos salões.

Nasce de um sorriso mudo,
De um quase nada que, enfim
Vale tudo
Para elas e para mim.

O Flirt. Haverá no mundo
Quem não sinta essa embriaguez
De um momento, de um segundo,
De quinze dias, de um mês?

Ele é efêmero e fortuito,
Vale pouco ou vale muito,
Conforme o Diabo o compôs.
É um simples curto-circuito
Entre dois.

Uma carícia inflamável
Doidinha por incendiar,
Um micróbio insuportável
Que vai de olhar para olhar.

Ou antes: um precipício
Que a gente olha sem pavor.
O divino instante, o início
Do êxtase imenso do amor.

Um galanteio, uma frase
Intencional
Que sendo frívola, é quase
Um madrigal.

A mão que outra mão afaga,
O pé que pisa outro pé.
Carícia lânguida e vaga...
Só quem ama e quem divaga
Pode saber o que isto é.

A orquestra soluça um tango:
Dois. Ela folle, ele fou.
Flor de Tango. — A flor de Tango,
Diz ele baixinho, és tu.

E assim vai num tal crescendo,
Que ela se debate em vão.
Parece que está morrendo
Nos braços do cidadão.

Quando passa o áureo momento,
Vem a tragédia em três atos.
Três atos
Com um epílogo. Depois,
Um noivado, um casamento,
Um bruto arrependimento
E ao fim divórcio entre os dois.

 


Poemas e Poesias quarta, 06 de novembro de 2024

A UM GRANDE HOMEM (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A UM GRANDE HOMEM

Olavo Bilac

 

 

 

Heureuse au fond du bois
Ia source pauvre et pure!
Lamartine.

Olha: era um tênue fio
De água escassa. Cresceu Tornou-se em rio
Depois. Roucas, as vagas
Engrossa agora, e é túrbido e bravio,
Roendo penedos, alagando plagas.

Humilde arroio brando!...
Nele, no entanto, as flores, inclinando
O débil caule, inquietas
Miravam-se. E, em seu claro espelho, o bando
Se revia das leves borboletas.

Tudo, porém: - cheirosas
Plantas, curvas ramadas rumorosas,
Úmidas relvas, ninhos
Suspensos no ar entre jasmins e rosas,
Tardes cheias da voz dos passarinhos, -
Tudo, tudo perdido
Atrás deixou. Cresceu. Desenvolvido,
Foi alargando o seio,
E do alpestre rochedo, onde nascido
Tinha, crespo, a rolar, descendo veio...

Cresceu. Atropeladas,
Soltas, grossas as ondas apressadas
Estendeu largamente,
Tropeçando nas pedras espalhadas,
No galope impetuoso da corrente...

Cresceu. E é poderoso:
Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso...
É grande, é largo, é forte:
Mas, de parcéis cortado, caudaloso,
Leva nas dobras de seu manto a morte.

Implacável, violento,
Rijo o vergasta o latego do vento.
Das estrelas, caindo
Sobre ele em vão do claro firmamento
Batem os raios límpidos, luzindo...

Nada reflete, nada!
Com o surdo estrondo espanta a ave assustada;
É turvo, é triste agora.
Onde a vida de outrora sossegada?
Onde a humildade e a limpidez de outrora?

 



Homem que o mundo aclama!
Semideus poderoso, cuja fama
O mundo com vaidade
De eco em eco no século derrama
Aos quatro ventos da celebridade!

Tu, que humilde nasceste,
Fraco e obscuro mortal, também cresceste
De vitória em vitória,
E, hoje, inflado de orgulhos, ascendeste
Ao sólio excelso do esplendor da glória!

Mas, ah! nesses teus dias
De fausto, entre essas pompas luzidias,
- Rio soberbo e nobre!
Hás de chorar o tempo em que vivias
Como um arroio sossegado e pobre...


Poemas e Poesias quarta, 06 de novembro de 2024

POEMAS DE PLÁSTICO: LIVRO DE PEDRO TANCINI (POSTAGEM DA LEITORA MARIA CLARA MENEZES)

Um livro de poesia feito inteiramente de plástico reciclado

Nova obra de Pedro Tancini explora o tema do plástico para buscar o amor, o futuro e a literatura entre a violência do capitalismo

Poemas de Plástico, novo livro de poesia de Pedro Tancini, vai além da abstração e se torna a primeira obra de literatura do mundo produzida inteiramente com plástico reciclado e reciclável. As páginas são impressas em um papel sintético com as mesmas propriedades do papel de celulose, feito principalmente de tampinhas de garrafa PET coletadas por catadores. Já as capas de cada exemplar são personalizadas pelo próprio autor, com colagem de pedaços de plástico que ele retirou das praias do estado de São Paulo.

O projeto se baseia na contradição do plástico no mundo contemporâneo: ao mesmo tempo que é um material tão descartável, leva mais de quatrocentos anos para se decompor na natureza. É esse paradoxo que conecta os poemas, sejam os que denunciam a descartabilidade de tudo, inclusive do amor, na sociedade capitalista, sejam os que procuram um futuro diferente do fim para o qual o mundo está se encaminhando.

Como evitar as cada vez mais intensas e frequentes catástrofes ambientais se até as corporações que se posicionam como "amigas” do meio ambiente estão devastando o planeta? Como a vida psíquica e emocional é afetada pelo império do desperdício? Qual o poder da poesia dentro do sistema capitalista? Essas e outras questões são propostas pelo escritor entre poesias repletas de metalinguagem e ironia.

é nossa a culpa?
os castelos
que erguemos
para os inúteis reis
desta terra
e talvez seja a ilha
(de plástico)
nosso refúgio
mais doentio
nossa revolta
mais possível
nossa mais duradoura
destruição
(Poemas de Plástico, p. 41)

Em meio a versos que desbravam as margens da folha e desafiam as estruturas padrões de um trabalho poético, o livro em si é a tentativa de se fazer durar em uma realidade onde tudo parece inútil. A grande ironia é que, para fazer isso, Pedro Tancini utiliza o plástico, material que é produzido e descartado de forma irrestrita.

“Fiz questão de que o livro fosse produzido com plástico reciclado e reciclável para que o seu impacto ambiental se aproximasse do zero. Porém, a proposta da obra é alertar que, infelizmente, a saída não está no âmbito individual, pois o verdadeiro responsável pelas catástrofes ambientais e sociais que estamos vivendo é o sistema em si. O livro é uma tentativa de sobreviver psiquicamente e emocionalmente nesse mundo que nos violenta diariamente e, mais do que isso, vislumbrar caminhos possíveis de superação do capitalismo também por meio da poesia”, comenta o autor.

Poemas de Plástico tem o apoio do Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas.

FICHA TÉCNICA

Título: Poemas de Plástico
Autor: Pedro Tancini
ISBN: 978-65-01-12872-6
Páginas: 64
Preço: R$ 50
Onde comprar: Amazon

Sobre o autor: Pedro Tancini é poeta,  dramaturgo, ator, diretor, produtor e fundador do Coletivo Parêntesis de Teatro. É graduado em Comunicação Social pela ESPM, mestre em Comunicação e Práticas de Consumo também pela ESPM e pesquisa sobre os impactos do capitalismo contemporâneo nas sociedades do século XXI. Como autor, escreveu oito peças de teatro, publicou o livro de contos “Nove Autores – Nova Histórias” e a edição “Erramos” da revista literária “Moreia” junto de outros escritores. Teve, ainda, poemas, dramaturgias e crônicas selecionados por diversos editais e premiações. Em 2024, lançou os livros “Teatro à Venda”, “Professores Online” e Poemas de Plástico.

Redes sociais do autor:

Instagram: @pedrotancini e @coletivoparentesis


Poemas e Poesias terça, 05 de novembro de 2024

SEGUNDA CANÇÃO DE MUITO LONGE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

SEGUNDA CANÇÃO DE MUITO LONGE

Mário Quintana

 

 

Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro…
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa…

Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.

Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas…
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos…
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras…

Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar o Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!…
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!

 


Poemas e Poesias segunda, 04 de novembro de 2024

MASCARADA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

MASCARADA

Manuel Bandeira

 

 

Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)

- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.

- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.

- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!

Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?

- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.


Poemas e Poesias domingo, 03 de novembro de 2024

SABIÁ COM TREVAS - IV (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

SABIÁ COM TREVAS - IV

Manoel de Barros

 

 

IV

(a um Pierrô de Picasso)
Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.

Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.

Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto

Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.


Poemas e Poesias sábado, 02 de novembro de 2024

PAISAGEM (POEMA DE LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

PAISAGEM

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

 

O dia frouxo e lânguido declina

Da Ave-Maria às doces badaladas;

Em surdo enxame as auras perfumadas

Sobem do vale e descem da colina.

 

A juriti saudosa o colo inclina

Gemendo entre as paineiras afastadas;

E além nas pardas serras elevadas

Vê-se da Lua a curva purpurina.

 

O rebanho e os pastores caminhando

Por entre as altas matas, lentamente,

Voltam do pasto num tranqüilo bando;

 

Suspira o rio tépido e plangente,

E pelo rio as vozes afinando,

As lavadeiras cantam tristemente

 


Poemas e Poesias sexta, 01 de novembro de 2024

PRESSÁGIO (POEMA DO PORTGUÊS JÚLIO DINIS)

PRESSÁGIO

Júlio Dinis

 

 

 

Era em florente Junho; A Lua se ostentava Serena em seu brilhar; A brisa
na alameda Saudosa suspirava
Nas folhas ao passar.

Contigo, eu só no bosque
Ouvia-te, tao triste,
Soltar, mais triste, a voz;
Falavas magoada
Da paz que só existe
Da fria morte após.

E os olhos lacrimosos
Fitavas nos espaços
Da mais amena cor,
Como se desejasses
Romper terrenos laços
E o azul do céu transpor.

Calado eu te fitava,
Porém ao ver-te o pranto
Banhar-te a face assim,
Não sei que dor pungente,
Não sei que mago encanto,
Me fez falar-te enfim.

E disse-te: «Não chores, Na Terra é tudo flores, No Céu
é tudo luz.
Escuta os sons do bosque, Respira os seus odores,
O aroma que seduz.»

Olhaste-me e sorriste; E quanto não diziam Então os olhos
teus! Quão íntima tristeza,
Que dor não reflectiam
Quando os erguestes aos céus!

E eu ficava mudo, Olhando-te inquieto,
Sem bem te compreender; E um ramo de cipreste,
O arbusto teu dilecto, Vieste-me oferecer.

«Bem vês, da campa à beira Também a flor rebenta»,
Disseste-me a sorrir,
«Também no chão da morte De seiva se alimenta, Também
a vês florir.

«Quem vir esta campina
Virente e matizada
Viçar à luz do Sol,
Dirá, que neste manto
Se envolve a fria ossada
Do morto em seu lençol!»

De novo emudeceste,
E eu, triste, contemplei-te:
Mas não, não te entendi,
Parecia que na mágoa
Achavas um deleite,
Qual nunca igual senti!

Mas cedo teus perfumes
Da Terra aos Céus subiram,
E soube tudo então!
Era uma voz profética
Das que o poeta inspiram,
Falando ao coração.

No meio dos festejos Da estiva natureza, Sentias só a dor,
Vias a campa aberta
E em sua profundeza
Sumir-se a esp’rança em flor.

E hoje, sim, compreendo Tua conversa triste, Quando comigo a sós…
E porque a entende agora? Não sei. Talvez existe
Em mim a mesma voz.

Oh! sim, ele me mostre
No meio destas galas,
Que vejo em torno de mim,
A terra húmida e fria,
Do cemitério as valas
E o esquecimento enfim.


Poemas e Poesias quinta, 31 de outubro de 2024

O VERBO AMAR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

O VERBO AMAR

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!

 


Poemas e Poesias quarta, 30 de outubro de 2024

OS ANDAIMES (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

OS ANDAIMES

Guilherme de Almeida

 

 

Na gaiola cheia
(pedreiros e carpinteiros)
o dia gorjeia.


Poemas e Poesias terça, 29 de outubro de 2024

RÚSTICA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

RÚSTICA

Francisca Júlia

 

 

Da casinha, em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirão na água clara e sonora.
Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora;
Além, o seu quintal, este, o seu aposento.

Vem do campo, a correr; e úmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora
Que parece trazer consigo, lá de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento...

E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocência boia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno,

Pegando da costura à luz da claraboia,
Põe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensão de joia.

 


Poemas e Poesias segunda, 28 de outubro de 2024

HORA QUE PASSA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

HORA QUE PASSA

Florbela Espanca

 

 

 

Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!

Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh'alma triste, dolorida, escura,
Minh'alma sem amor é cinza, é pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!...
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre...
O instante que foge, voa, e passa...
Fiozinho d'água triste... a vida corre...


Poemas e Poesias domingo, 27 de outubro de 2024

OVNI (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

 

OVNI

Ferreira Gullar

 

 

Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho

Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
– reflete a parede
a janela aberta

Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito

 


Poemas e Poesias domingo, 27 de outubro de 2024

O BOM-0HUMOR E A POESIA QUE SINTETIZAM A COMPLEXIDADE DA VIDA (POSTAGEM DA LEITORA LUÍSA LACOMBE)

O bom-humor e a poesia que sintetizam a complexidade da vida

Os contos, poemas e carta de "O Grito do Trovão" convidam os leitores a adentrarem um universo insólito acompanhados de personagens clownescos

Os personagens clownescos e imprevisíveis de O Grito do Trovão surpreendem por suas ações e, por isso, se aproximam de uma realidade onde ninguém tem o controle dos acontecimentos. Escrito pelo ator e pedagogo Henrique Cesarino Pessoa os 10 contos, 21 poemas e uma carta presentes na obra constroem um mosaico complexo e bem-humorado da sociedade.

Entre as histórias, um menino não compreende a professora quando ela insiste que coloque o número "ao quadrado" durante uma atividade sobre potência. Ao descer do ônibus, um homem se coloca em uma série de interações que beiram o absurdo após perguntar onde fica a praça Ramos. Um jovem decide abrir uma frutaria para ajudar o Brasil contanto que o empreendimento tenha dois tipos de tomates.

Com linguagem leve e singular, o escritor reflete sobre temas do cotidiano ao apresentar uma nova possibilidade de compreender a contemporaneidade a partir das lentes do humor. O lançamento convida ainda os leitores a perceber os desafios dos artistas no país, além de percorrer questões como a inadequação, o excesso de racionalidade, o papel da cultura e a força da liberdade.

Acredito que por ser diferente Rodolpho era mal compreendido. Um “outsider” justamente por pertencer à categoria dos que vão mais fundo nas questões do espírito e talvez por isso não se adaptasse ao cotidiano, como quem luta diariamente com um demônio interno para perseverar seus propósitos em um diálogo com a realidade. (O Grito do Trovão, p. 52)

Prefaciado pelo professor de português Francisco Marto de Moura, o livro começa leve e vai gradativamente se tornando mais denso na intenção de levar o público a percorrer um universo insólito com percepções agudas sobre a alma humana. Este caminho é trilhado até chegar aos contos “Amigo secreto budista” e “Prima Melancolia e avó Sabedoria”, que têm influência de escritores clássicos como Edgar Allan Poe e Machado de Assis.

Dividida como um disco de vinil, composto por lado A e lado B, a obra encerra a primeira parte com uma carta à classe teatral, onde há um olhar crítico acerca das artes cênicas. Já o segundo momento da narrativa apresenta poemas sensíveis e concisos, inspirados em Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e no movimento concretista brasileiro. Entre versos e prosa, a obra defende uma sensibilidade e autoexpressão que valorizam o aspecto humano da escrita.

FICHA TÉCNICA

Título: O Grito do Trovão
Autora: Henrique Cesarino Pessoa
Editora: Artêra Editorial
ISBN: 978-6525050003
Páginas: 93 | Livraria da Vila
Preço: R$ 42
Onde comprar: Amazon | Livraria da Vila | Appris

Sobre o autor: Henrique Cesarino Pessoa é ator e pedagogo formado pela Universidade de São Paulo (USP). Com especialização em Clown, trabalhou em diversas peças e ganhou prêmios de atuação em diferentes festivais nacionais. Foi professor convidado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) por oito anos e lecionou no Teatro do Gracinha por quinze anos. Atualmente dirige, leciona e atua no Esporte Clube Pinheiros e no Espaço Rasa, onde é coordenador do núcleo de humor “Arrasa no Riso”.


Poemas e Poesias sábado, 26 de outubro de 2024

É BRANDO O DIA, BRANDO O VENTO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

É BRANDO O DIA, BRANCO O VENTO

Fernando Pessoa

 

 

 

É brando o dia, brando o vento.

É brando o sol e brando o céu.

Assim fosse meu pensamento!

Assim fosse eu, assim fosse eu!

 

Mas entre mim e as brandas glórias

Deste céu limpo e este ar sem mim

Intervêm sonhos e memórias...

Ser eu assim, ser eu assim!

 

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.

Existe tudo quanto existo.

Há porque vemos.

E tudo é isto, tudo é isto!


Poemas e Poesias sexta, 25 de outubro de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 32 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

TROVA HUMORÍSTICA 32

Eno Teodoro Wanke

 

 

 Este psiquiatra é perfeito

E garante mesmo a cura

Não ficando satisfeito

Ele devolve a loucura


Poemas e Poesias quinta, 24 de outubro de 2024

SUPREMO ENIGMA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA DA SILVA)

SUPREMO ENIGMA

Da Costa e Silva

 

 

Quando os meus olhos aos teus olhos volvo,
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.

Um mistério de Amor que eu não resolvo
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.

Quem me decifrará todo esse enigma
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…

Quem há que o teu segredo me desvende
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende?


Poemas e Poesias quarta, 23 de outubro de 2024

EM SONHOS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

 

EM SONHOS

Cruz e Sousa

(Grafia original)

 

 

Nos santos oleos do luar, floria
Teu corpo ideal, com o resplendôr da Hellade...
E em toda a ethérea, brauda claridade
Como que erravam fluidos de harmonia...

As Aguias immortaes da Phantasia
Déram-te as azas e a serenidade
Para galgar, subir á Immensidade
Onde o clarão de tantos sóes radia.


Do espaço pelos limpidos velinos
Os Astros viéram claros, crystalinos,
Com chammas, vibrações, do alto, cantando...

Dos santos oleos no luar envôlto
Teu corpo éra O Astro nas esphéras sôlto,
Mais Sóes e mais Estrellas fecundando!


Poemas e Poesias terça, 22 de outubro de 2024

TIMIDEZ (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

TIMIDEZ

Cecília Meireles

 

 

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

- e um dia me acabarei.

 


Poemas e Poesias domingo, 20 de outubro de 2024

ONDE ESTÁS? (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

ONDE ESTÁS?

Castro Alves

 

 

 

É meia-noite… e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
“Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?”
Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
“Oh! minh’amante, onde estás?. . .

Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono! …
‘Stá vazio nosso leito…
‘Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu’eu fique
Solitário nesta vida…
Mas por que tardas, querida?…
Já tenho esperado assaz…
Vem depressa, que eu deliro
Oh! minh’amante, onde estás? …

Estrela — na tempestade,
Rosa — nos ermos da vida;
lris — do náufrago errante,
Ilusão — d’alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu! …
… E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz…
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte…
“Oh! minh’amante, onde estás?…”


Poemas e Poesias sábado, 19 de outubro de 2024

A VOZ DO RIO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

A VOZ DO RIO

Casimiro de Abreu

 

 

Nosso sol é de fogo, o campo é verde,

O mar é manso, nosso céu azul!

- Ai! porque deixas este pátrio ninho

Pelas friezas dos vergéis do sul?

Lá nessa terra onde o Guaíba chora

Não são as noites, como aqui, formosas

E as duras asas do Pampeiro iroso

Quebra as tulipas e desfolha as rosas.

 

A lua é doce, nosso mar tranqüilo,

Mais leve a brisa, nosso céu azul!...

- Tupá! Quem troca pelo pátrio ninho

As ventanias dos vergéis do sul?

Lá novos campos outros campos ligam

E a vista fraca na extensão se perde!

E tu sozinha viverás no exílio

- Garça perdida nesse mar que é verde! -

Nossas campinas como doces noivas

Vivem c’os montes sob o céu azul!

- Há vida e amores neste pátrio ninho

Mais rico e belo que os vergéis do sul!

Essas palmeiras não têm tantos leques,

O sol dos Pampas mareou seu brilho,

Nem cresce o tronco que susteve um dia

O berço lindo em que dormiu teu filho!

Nossas florestas sacudindo os galhos

Tocam c’os braços este céu azul!...

- Se tudo é grande neste pátrio ninho

Porque deixá-lo p’ra viver no sul?!

Embora digas: - essa terra fria

Merece amores, é irmã da minha -

quem dar-te pode este calor do ninho,

A luz suave que o teu berço tinha?!

Eu - Guanabara - no meu longo espelho

Reflito as nuvens deste céu azul;

- Ó minha filha! acalentei-te o sono,

Porque me deixas p’ra viver no sul?!...

Lá, quando a terra s’embuçar nas sombras

E o medroso sol s’esconder nas águas,

Teu pensamento, como o sol que morre,

Há de cismando mergulhar-se em mágoas!

Mas se forçoso t’é deixar a pátria

Pelas friezas dos vergéis do sul,

Ó minha filha! não t’esqueças nunca

Destas montanhas, deste céu azul.

Tupá bondoso te derrame graças,

Doce ventura te bafeje e siga,

E nos meus braços - ao voltar do exílio -

Saudando o berço que teu lábio diga:

“Volvo contente para o pátrio ninho,

“Deixei sorrindo esses vergéis do sul;

“Tinha saudades deste sol de fogo...

“Não deixo mais este meu céu azul!...”


Poemas e Poesias sexta, 18 de outubro de 2024

HINO NACIONAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMONND DE ANDRADE)

HINO NACIONAL

Carlos Drumond de Andrade

 

 

Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonnettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas.

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas…

Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

 

 


Poemas e Poesias quinta, 17 de outubro de 2024

SONETO 155 - ESFORÇO GRANDE, IGUAL AO PENSAMENTO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
SONETO 155 - ESFORÇO GRANDE, IGUAL AO PENSAMENTO
Luís de Camões
(Grafia original) 
 
 

Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;

Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;

Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:

Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.


Poemas e Poesias quarta, 16 de outubro de 2024

CEM TROVAS - 023 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 

TROVA 023

Belmiro Braga

 

 

Desilusões, desenganos

Tudo a velhice nos traz

Mas existe, além dos anos

A eterna bênção da paz 


Poemas e Poesias terça, 15 de outubro de 2024

POR MIM? (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

POR MIM?

Álvares de Azevedo

 

 

 

Lira dos Vinte Anos
Segunda Parte

Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
Pálida de langor, eu vi, te olhando,
Mulher do meu amor, meu serafim,
Esse amor que em teus olhos refletia...
Talvez! - era por mim?

Pendeste, suspirando, a face pura,
Morreu nos lábios teus um ai perdido...
Tão ébrio de paixão e de ventura!
Mulher de meu amor, meu serafim,
Por quem era o suspiro amortecido?
Suspiravas por mim?...

Mas... eu sei!... ai de mim? Eu vi na dança
Um olhar que em teus olhos se fitava...
Ouvi outro suspiro... d'esperança!
Mulher do meu amor, meu serafim,
Teu olhar, teu suspiro que matava...
Oh! não eram por mim.


Poemas e Poesias segunda, 14 de outubro de 2024

SOLIDÃO ESRTRELADA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

SOLIDÃO ESTRELADA

Alberto de Oliveira

 

 

 

Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,

Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?

Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!

Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
De nuvens, de estrelas, de ar...

Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.

Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!

E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?

Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem!


Poemas e Poesias domingo, 13 de outubro de 2024

POEMAS PARA A AMIGA - FRATGMENTO 1 (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

POEMAS PARA A AMIGA - FRAGMENTO 1

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

 

“O amor com seus contrários se acrescenta”
Camões

Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.

Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.

Por isto é que te sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.

 


Poemas e Poesias sábado, 12 de outubro de 2024

A PAIXÃO DA CARNE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A PAIXÃO DA CARNE

Vinícius de Moraes

 

 

Envolto em toalhas
Frias, pego ao colo
O corpo escaldante.
Tem apenas dois anos
E embora não fale
Sorri com doçura.
É Pedro, meu filho
Sêmen feito carne
Minha criatura
Minha poesia.
É Pedro, meu filho
Sobre cujo sono
Como sobre o abismo
Em noites de insônia
Um pai se debruça.
Olho no termômetro:
Quarenta e oito décimos
E através do pano
A febre do corpo
Bafeja-me o rosto
Penetra-me os ossos
Desce-me às entranhas
Úmida e voraz
Angina pultácea
Estreptocócica?
Quem sabe... quem sabe...
Aperto meu filho
Com força entre os braços
Enquanto crisálidas
Em mim se desfazem
Óvulos se rompem
Crostas se bipartem
E de cada poro
Da minha epiderme
Lutam lepidópteros
Por se libertar.
Ah, que eu já sentisse
Os êxtases máximos
Da carne nos rasgos
Da paixão espúria!
Ah, que eu já bradasse
Nas horas de exalta-
São os mais lancinantes
Gritos de loucura!
Ah, que eu já queimasse
Da febre mais quente
Que jamais queimasse
A humana criatura!
Mas nunca como antes
Nunca! nunca! nunca!
Nem paixão tão alta
Nem febre tão pura.


Poemas e Poesias sexta, 11 de outubro de 2024

QUANDO A VERDADE FOR FLAMA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

QUANDO A VERDADE FOR FLAMA

Thiago de Mello

 

 

 

As colunas da injustiça
sei que só vão desabar
quando o meu povo, sabendo
que existe, souber achar
dentro da vida o caminho
que leva à libertação.
Vai tardar, mas saberá
que esse caminho começa
na dor que acende uma estrela
no centro da servidão.
De quem já sabe, o dever
(luz repartida) é dizer.
Quando a verdade for flama
nos olhos da multidão,
o que em nós hoje é palavra
no povo vai ser ação.


Poemas e Poesias quinta, 10 de outubro de 2024

A FESTA DA MARICOTA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A FESTA DA MARICOTA

Patativa do Assaré

 

 

SEU MOÇO QUE VAI PASSANDO
COM SEU MAÇO DE PAPÉ,
DESCURPE EU TÁ LHE FALANDO,
MAS ME ESCUTE SE PUDÉ.
APOI, QUANDO EU FUI OIANDO
QUE LHE VI, FIQUEI PENSANDO
 
E SOU CAPAZ DE JURÁ,
LOGO DA PREMÊRA VISTA,
QUE O SENHÔ É JORNALISTA,
E EU TENHO O QUE LHE CONTÁ.
 
 
O QUE EU QUERO LHE CONTÁ
NÃO É COISA BOA NÃO!
É UM BARUIO INFERNÁ
QUE SE DEU LÁ NO SERTÃO.
VOU DIZENDO, VOU DIZENDO
E O SENHÔ VAI ESCREVENDO,
NO PAPÉ TOMANDO NOTA,
MODE BOTÁ NO JORNÁ
CUMO FOI O GRANDE AZÁ
DA FESTA DE MARICOTA.
 
 
FOI ANTONTE ÁS DOZE HORA
DA NOITE O TÁ BRUBURINHO,
EU CORRI DE MUNDO AFORA
SEM PREGUNTÁ POR CAMINHO.
QUANDO CHEGUEI NA RODAGE,
ARRANJEI UMA PASSAGE
NUM CAMINHÃO QUE PASSOU;
DE MEDO CHEGUEI TREMENDO,
NÃO TOU AINDA SABENDO
QUEM MORREU, NEM QUEM MATOU.
 
 
MAS PORÉM É DO COMEÇO
QUE A HISTÓRA EU VOU PRINCIPIAR
APOIS EU TUDO CONHEÇO,
FALO SEM MEDO DE ERRÁ.
EU ME CHAMO JOÃO MOIRIÇO,
NESTE MUNDO O MEU SERVIÇO
É CANTÁ E TOCÁ VIOLA.
VIVO CANTANDO NO PINHO,
LIVRE CUMO UM PASSARINHO
QUE NUNCA ENTROU NA GAIOLA.
 
 
NO NORDESTE BRASILÊRO
CONHEÇO OS CANTÔ MAIS FINO,
CUMO O VICENTE GRANGÊRO,
MENDONÇA E SIRVA RUFINO,
JOÃO ALEXANDRE E DEDÉ,
CEGO BOBÔCO E CAZÉ,
E OS MIÓ DO CEARÁ,
QUE É JOÃO SIQUÊRA E FONSECA,
QUE INDA TANDO DE ENXAQUECA
NÃO SE ESCORA PRA CANTÁ.
 
 
FAÇO A MINHA VIDA INTÊRA
NO SERTÃO, SEM NEM ME OSTENTÁ.
É COM ESTA A VEZ TERCÊRA
QUE EU ANDO NA CAPITÁ.
NA VIDA DE VIOLÊRO
SOU QUAGE CUMO DINHÊRO,
QUE VEVE DE MÃO EM MÃO,
EU SOU, COM MEU INSTRUMENTO,
O MIÓ DIVERTIMENTO
DAS FAMIA DO SERTÃO.
 
 
AGORA, SEU JORNALISTA,
JÁ LHE DIXE QUEM SOU EU:
JOÃO MOIRIÇO, O REPENTISTA
QUE A RIMA NUNCA PERDEU.
É BOM QUE COIDADO TOME,
ESCREVA LOGO O MEU NOME
ANTE QUE O SENHÔ SE ESQUEÇA,
E VAMO PRA DIANTE AGORA,
SENÃO COM PÔCO ESTA HISTÓRA
FICA SEM PÉ E SEM CABEÇA.
 
 
LÁ NAQUELA BELA ZONDA
DO MEU QUERIDO SERTÃO,
NO LUGÁ BAXA REDONDA,
MORA SEU ZÉ DAMIÃO,
UM DOS AGRICURTÔ POBRE
QUE O CÉU DO CEARÁ COBRE,
NÃO É RICO, NÃO SENHÔ,
MAS É HOME AJUIZADO,
SINCERO, CONSIDERADO,
HONRADO E TRABAIANDÔ.
 
 
POBRE, MAS NÃO VEVE A RASTO
APOIS SEU ZÉ DAMIÃO
SEMPRE GUARDA PRA SEU GASTO
MIO, FARINHA E FEIJÃO.
NÃO É LÁ CUMO QUEM PODE,
MAS POSSUI OVEIA E BODE,
E DE TRÊS VACAS QUE TEM
NO INVERNO UM LEITINHO COME,
E NUNCA PADECE FOME
QUANDO OS REPIQUETE VEM.
 
 
ELE É O PAI DE MARICOTA,
MUIÉ TÃO SIMPATE E BELA
QUE O SERTÃO NUNCA MAIS BOTA
OUTRA FULÔ CUMO AQUELA,
O SENHÔ FIQUE CIENTE
QUE É VISTO POR TODA GENTE
QUE DERNE DELA MENINA
NA SUA DOCE INOCENÇA
DEU UMA CERTA PARENÇA
DAS COISAS SANTA E DIVINA.
 
 
TODO O POVO TAVA VENDO
QUE O TEMPO IA SE PASSANDO,
MARICOTA IA CRESCENDO,
E A BELEZA ACOMPANHANDO.
QUANTO MAIS ELA CRESCIA
MAIS BELEZA RECEBIA,
E QUANDO CHEGOU ENFIM
NA CASA DOS DEZASSEIS,
NEM A PRECENZA DO REIS
ERA TÃO BONITA ASSIM.
 
 
SUA FROMOSURA É TÁ,
QUE SE O POVO INDA FIZÉ
DOIS PARTIDO PRA VOTÁ
NA BELEZA DAS MUIÉ,
VAI SÊ GRANDE O MOVIMENTO.
E QUANDO CHEGÁ O MOMENTO
DO PREITO DESSA INLEIÇÃO,
TODO SERTANEJO VOTA
NA BONITA MARICOTA,
FIA DO ZÉ DAMIÃO.
 
 
NUNCA ELA GOSTOU DO MOÇO
DERRETIDO POR MUIÉ,
DE GRUVATA NO PESCOÇO
E OS DEDOS DURO DE ANÉ.
ELA SÓ SIMPATIZAVA
O RAPAZ QUE TRABAIAVA
E DERRAMAVA SUÓ.
POR ISSO TINYHA DESEJO
DE CASÁ COM O SERTANEJO
QUE SE CHAMA ZÉ LOLÓ.
 
 
ZÉ LOLÓ, SEU JORNALISTA,
É UM DISPOSTO FREGUÊS
QUE NÃO HAI QUEM LHE RESISTA,
TRABAIA POR DOIS OU TRÊS.
TUDO QUE FAZ É BEM FEITO,
SUAS CERCA É DUM TÁ JEITO
QUE MESTRE NENHUM PROTESTA,
É BEM FEITA, É DE PREMÊRA,
TÃO APRUMADA E LINHÊRA
QUE NEM A FRECHA DA BESTA.
 
 
PRA FAZ^CERCA É O ARTISTA
MIÓ QUE O SERTÃO CRIOU,
PARECE QUE TEM NA VISTA
AGÚIA DE AGRIMENSÔ.
TODO SERVIÇO ELE TOPA,
É RAPAZ QUE NÃO SE POPA,
NO ROJÃO ELE TÁ SÓ.
QUEM CONVENÇA EM ADJUNTO,
ALI, O PREMÊRO ASSUNTO
É O CABOCO ZÉ LOLÓ.
 
 
JÁ TENHO ASSISTIDO MUNTO,
JÁ GOSTEI MUNTO DE VÊ
ZÉ LOLÓ NOS ADJUNTO
BOTANDO OS ÔTO A SOFRÊ.
SE UM ROJÃO ELE PUXAVA,
OS COMPANHÊRO SUAVA,
E ELE ADIANTE, TODO ESPERTO,
LIGÊRO QUE SÓ UM GATO, 
E TANTO ESPAIAVA O MATO
CUMO FAZIA COBERTO.
 
 
SE FALAVA UM CAMARADA
NO NOME DE MARICOTA,
ZÉ LOLÓ JOGAVA A ENXADA
DA DIREITA PRA CANHOTA,
DE ALEGRE DAVA DOIS GRITO,
PUXAVA UM ROJÃO BONITO
QUE O MATO VINHA DE ROLO.
NÃO TINHA QUEM LHE IGUAIASSE,
NÃO TINHA QUEM LHE ARCANÇASSE,
TUDO COMIA MIOLO.
 
 
ZÉ DAMIÃO E DONA ROSA,
A SUA ESPÔSA DE AMÔ,
DEU A DONZELA FROMOSA
AO MOÇO TRABAIADÔ;
MARIDO E MUIÉ QUERIA,
APOIS TODOS DOIS DIZIA
QUE A MOÇA É PRA SE CASÁ,
NÃO É COMO ESSES TESÔRO
DEPRATA, BRIANTE E DE ÔRO
QUE A GENTE POSSA GUARDÁ.
 
 
FÔRO LOGO BOTÁ OS BANHO
E O CASAMENTO MARCÁ.
O PRAZÊ ERA TAMANHO
QUE NINGUÉM PODE CONTÁ.
FOI GRANDE O CONTENTAMENTO
LÁ NO SERTÃO SE ESPAIOU
A MAIS ALEGRE NOTIÇA,
ARGUÉM PEDIU AS ARVIÇA,
E ARGUÉM DE INVEJA CHOROU.
 
 
NÃO TEM QUEM SABA NA VIDA
DOS PRANO DE UMA MUIÉ,
TODA MÃE É PERVENIDA.
E SABE O QUE AS FIA QUÉ.
APOIS DONA ROSA VINHA
CEVANDO MUNTA GALINHA
E PATO, PERU E CAPÃO,
SÓ PRUQUÊ ELA SABIA
QUE O MOÇO ZÉ LOLÓ IA
SÊ GENRO DE DAMIÃO.
 
 
AFINÁ VIU-SE ROMPÊ
O DIA DO CASAMENTO,
DIA QUE ENQUANTO EU VIVE
NÃO SAI DO MEU PENSAMENTO.
SEU MOÇO ZÉ LOLÓ IA
SÊ GENRO DE DAMIÃO.
 
 
AFINÁ VIU-SE ROMPÊ
O DIA DO CASAMENTO,
DIA QUE ENQUANTO EU VIVÊ
NÃO SAI DO MEU PENSAMENTO.
SEU MOÇO, EU NÃO SEI DE NADA,
MAS AS LEITURA SAGRADA,
O LIVRO DOS EVANGÉIO,
QUE É TÃO BOM, TÃO SANTO E PURO,
DEVIA DIZÊ O FUTURO
DAS COISA DO MUNDO VÉIO.
 
 
MAS A GRANDE HUMANIDADE
QUE DE TUDO QUÉ SABÊ,
NUNCA ADIVINHA A VERDADE
DO QUE VAI ACONTECÊ.
E TEM BICHINHO SERVAGE
QUE, COM A SUA LINGUAGE
E A MUSGA DA SUA VOZ,
CONTA TUDO CERTO E EXATO,
APOIS TEM BICHO NO MATO,
QUE SABE MAIS DO QUE NÓIS.
 
 
NO DIA DO CASAMENTO,
QUANDO TUDO SE APRONTOU,
QUE O GRANDE ACOMPANHAMENTO
ATRÁS DOS NOIVO MACHOU,
DO LADO ESQUERDO DA ESTRADA
LÁ NUMA FEIA QUEBRADA
NO FUNDO DE UM CAFUNDÓ
UMA COÃ GARGAIAVA,
GARGAIAVA E AGORAVA,
NA COPA DE UM PAU-MOCÓ.
 
 
SEU MOÇO, FIQUE SABENDO
QUE AQUELA BICHA É ASSIM:
GARGAIANDO, TÁ DIZENDO
QUE VAI SE DÁ COISA RIM.
DAQUI A PÔCA DEMORA,
QUANTO SE PASSOU,
O SENHÔ FICA CIENTE
QUE AQUELA COÃ NÃO MENTE,
POIS A BICHA ADIVINHOU.
 
 
EU CONHECI DO PERIGO,
MAS NÃO CONTEI A NINGUÉM.
FIQUEI A DIZÊ COMIGO:
- A DESGRAÇA LOGO VEM!
E SÓ NÃO SAÍ DA FESTA,
DEXANDO AQUELA PALESTRA,
PRUQUÊ SEU ZÉ DAMIÃO
NA FESTA DA SUA FIA
QUERIA UMA CANTORIA
DO CANTADÔ DO SERTÃO.
 
 
FINGUI QUE TAVA CONTENTE
E FUI AJUDÁ AS MUIÉ
TRABAIANDO DE SERVENTE
AO POVO DANDO CAFÉ;
TRABAIANDO NAS COMIDA,
E AFINÁ EM TODA LIDA,
DA DESPENSA PRO FOGÃO,
NAQUELE CONSTANTE JOGO,
BOTÁ PANELA NO FOGO,
BOTÁ PANELA NO CHÃO.
 
 
QUAGE ÁS SEIS HORA DO DIA
CHEGARO OS NOIVO, CASADO,
ZÉ LOLÓ FAZENDO GUIA
COM MARICOTA DE LADO,
E ATRÁS O RESTO DO POVO,
HOME, MUIÉ, VÉIO E NOVO,
UNS CASADO, OUTROS RAPAZ.
FOI TUDO BEM SUCEDIDO,
NADA TINHA ACONTECIDO,
CHEGARO NA SANTA PAZ.
 
 
MARICOTA, O ANJO PREFEITO,
A PRENCEZA DO SERTÃO,
VINHA BONITA, DE UM JEITO
DE MACHUCÁ CORAÇÃO.
DE PARMA, VÉU E CAPELA
NÃO SEI A BELEZA DELA
COM QUE POSSO COMPARÁ.
APOIS TÃO BONITA TAVA
QUE PRA SANTA, SÓ FARTAVA
SE ENCOLOCÁ NUM ARTÁ.
 
 
PRA VÊ A FIA CASADA,
PREMÊRO VEM MÃE E PAI.
QUE COM AS FALA CORTADA
AS ÁGUA DOS ÓIO CAI.
DESPOIS TUDO, DE UM EM UM,
NAQUELE PRAZÊ COMUM,
PRA PERTO DOS NOIVO VEM
COM GRANDE SATISFAÇÃO
DÁ UM APERTO DE MÃO,
E OS ALEGRE PARABÉM.
 
 
ERA COM PRAZÊ E ALEGRIA
CUMO EU NUNCA VI ASSIM,
SÓ EU, SEU MOÇO, SENTIA
UM CHOQUE DE COISA RUIM,
E NÃO TIRAVA A COÃ,
QUE GARGAIOU DE MANHÃ,
DA MINHA MAGINAÇÃO.
PARECE INTÉ QUE EU NOTAVA
QUE ÔTA COÃ GARGAIAVA
CÁ DENTRO, EM MEU CORAÇÃO.
 
 
SEU MOÇO, EU SEMPRE PENSAVA,
PENSAVA COMIGO SÓ,
QUE ARGUMA COISA SE DAVA
NA FESTA DE ZÉ LOLÓ.
MAIS TARDE, DESPOIS DA CEIA,
DESPOIS DAS BARRIGA CHEIA,
ME PEDIRO PRA CANTÁ,
E EU NÃO RESPONDI QUE NÃO,
POIS A SEU ZÉ DAMIÃO
EU NÃO PODIA FARTÁ.
 
 
ME FINGI DE SATISFEITO
E CUMO BOM CANTADÔ
ENCALOQUEI SOBRE O PEITO
O MEU PINHO GEMEDÔ.
DO BORDÃO PRAS ÔTAS CORDA
PERCUREI LOGO A CONCORDA,
DO COMEÇO ATÉ O FIM,
BOTEI OS DEDO NA ESCALA,
CORRI A VISTA NA SALA,
E ENTREI POR AQUI ASSIM:
 
 
 
- VIVA A NOIVA E VIVA O NOIVO,
VIVA SEU ZÉ DAMIÃO,
DONA ROSA, A SUA ESPOSA,
COM TODA A REUNIÃO,
E VIVA EU, JOÃO MOIRIÇO,
O CANTADÔ DO SERTÃO!
 
 
MEU BOM POVO, AGORA EU QUERO
LICENÇA PREMERAMENTE,
PRO MODE EU RIMÁ UNS VERSO
PROS NOIVO QUE TÁ PRESENTE
QUE A LUZ QUE MAIS ALUMEIA
DEVE SE BOTÁ NA FRENTE.
 
 
MARICOTA, DE HOJE EM DIANTE
VOCÊ NÃO VAI VIVE SÓ
ZÉ LOLÓ AGORA É SEU,
E VOCÊ DE ZÉ LOLÓ,
QUE OS DOIS VIVENDO ASSIM JUNTO
FICA A VIDA MAIS MIÓ.
 
 
CUMO UM CASÁ DE ASA BRANCA,
MORANDO N0 MÊRMO NINHO,
VOCÊS DOIS AGORA VÃO
TRIÁ O MÊRMO CAMINHO,
TROCANDO BÊJO POR BÊJO,
E CARINHO POR CARINHO.
 
 
VÃO VIVÊ DE UM PARA O ÔTO,
SE, OFENDÊ A NINGUÉM,
QUANDO ZÉ LOLÓ CHORÁ
VOCÊ SOLUÇA TOMBÉM,
E VÃO PASSANDO A VIDA
SE AMANDO E QU7ERENDO BEM.
 
 
ZÉ LOLÓ QUE É SEU MARIDO,
LHE TRAZ NA PARMA DA MÃO,
DANDO GOSTO A DONA ROSA
E AO SENHÔ ZÉ DAMIÃO,
FINAMENTE A TODO POVO
DO NOSSO BELO SERTÃO.-
 
 
ASSIM, SEU MOÇO, EU CANTAVA,
E QUANDO FINDAVA UM PÉ,
DO POVO QUE ALI SE ACHAVA,
HOME, MENINO, E MUIÉ,
PARMAS E VIVAS CHOVIA,
QUE VOSSEMICÊ PODIA
FAZÊ A COMPARAÇÃO
DE UM CANDIDATO FALANDO
NOS COMIÇO, CABALANDO
OS INLEITÔ DO SERTÃO.
 
 
A NOITE IA SE PASSANDO
E O POVO A SE DIVERTI,
EU JÁ TAVA INTÉ PENSANDO
QUE A COÃ IA MENTI,
QUANDO VI ENTRÁ NA SALA,
LIGÊRO, IGUÁ UMA BALA,
UM RAPAZ, E FOI DIZENDO
QUE TAVA LÁ NO TERRÊRO
O DIABO DUM CANGACÊRO
JOGANDO, PUIA E BEBENDO.
 
 
EU SENTI LOGO UM VEXAME
DAS PERNA PRO CORAÇÃO,
OS MEUS DEDO NOS ARAME
FOI AQUELA CONFUSÃO,
TREMIA A MINHA VIOLA,
O VERSO EM MINHA CACHOLA,
CACEI, MAS NÃO PUDE ACHÁ!
EU SOU MUNTO ESMORECIDO,
NÃO HERDEI NESSE SENTIDO
O GENO DO CEARÁ.
 
 
ERA MAIS NOITE EM PONTO,
HORA QUE O DIABO SE SORTA
LÁ DOS INFERNO, E VEM PRONTO
PRA DÁ NO MUNDO UMAS VORTA.
É NESSA HORA QUE O DIABO
SAI, DE ESPORÃO, CHIFRE E RABO,
POR ESTE MUNDO A VAGÁ,
AJUDANDO OS MAFAZEJO
E O SEU INSTINTO INFERNÁ.
 
 
O CABRA VINHA COBERTO
DA TENDA DA PERDIÇÃO,
EU REPAREI E TOU CERTO
QUE ELE TRAZIA NA MÃO
O MAIS PIÓ DOS FRAGELO:
UM RIFE PAPO-AMARELO,
E SEM COMPAXÃO NEM DÓ,
UM FEIO PUNHÁ DE UM LADO,
E UM GRANDE LENÇO ENCARNADO
AMARRADO NO GOGÓ.
 
 
CHAPÉU DE DOIS BRABICACHO,
UM NO QUÊXO, OUTRO NA TESTA,
ERA A PINTURA DO DIACHO
O CABRA NAQUELA FESTA.
QUE HORA DE GRANDE AGONIA!
TUDO DE MEDO TREMIA,
SÓ ZÉ LOLÓ NÃO MUDOU.
ESTE TAVA CARRANCUDO,
SISUDO, MUNTO SISUDO.
DÊRNE QUE O CABRA CHEGOU.
 
 
ENTONTECE, AQUELE SUJEITO
DE CARA LISA, LAMBIDA,
FARTANDO COM O RESPEITO,
TRÔXE UM COPO DE BEBIDA
ENTROU NA SOCIEDADE,
E COM CERTA LIBERDADE
A MARICOTA OFERECEU,
PEDINDO QUE ELA BEBESSE,
OU ENTONCE RECEBESSE,
MAS ELA NÃO RECEBEU.
 
 
SEU MOÇO, O SENHÔ PRECEBE
QUE NO SERTÃO, DE ONDE
EU SOU,
TEM PESSOA QUE NÃO BEBE
NEM MODE FAZÊ FAVÔ:
EU CONHEÇO SERTANEJA
QUE, MODE AS REZA DA IGREJA,
NUNCA TOMA UMA  BICADA
NEM MÊRMO UMA BICADINHA,
PRA LHE SERVI DE MEIZINHA,
QUANDO ELA TÁ RESGUARDADA.
 
 
MARICOTA É DESTE JEITO,
POIS DURANTE A SUA VIDA
MODE NÃO QUEBRÁ O PERCEITO
NUNCA ELA TOMOU BEBIDA.
O CABRA, DESENGANANDO.
FOI DEPRESSA SE AFOBANDO,
E SEM MAGINÁ EM DERROTA,
SM PENSÁ NA PROPE VIDA,
JOGOU O COPE DE BEBIDA
EM RIBA DA MARICOTA.
 
 
SEU MOÇO! Ô QUE FUZUÊ!
FOI UM LELÊ DOS MAIÓ,
EU VI O CABRA GEMÊ
NA PEXÊRA DO LOLÓ.
QUANDO EU VI AQUELE EMBRUIO
DA SALA DEI UM MARGUIO,
LEVANDO O PINTO NA MÃO,
MINHA QUERIDA VIOLA,
QUE NEM BOTEI NA SACOLA,
Ô NOITE DE CONFUSÃO!
 
 
FOI O MAIÓ ALARIDO,
TUDO GRITAVA: AI, AI, AI!
MUIÉ CHAMANDO O MARIDO,
O FIO CHAMANDO O PAI,
SÓ O DIABO, CERTAMENTE,
PÔDE INVENTÁ DE REPENTE
UM TÃO GRANDE ESPAIAFATO,
CUMO UM TROVÃO QUANDO ESTRONDA,
POR TODA A BAXA REDONDA
CORRIA GENTE NOS MATO.
 
 
EU TOMBÉM CORRI COM MEDO,
NÃO VOU NEGÁ NEM MENTI,
TIVE QUE PISÁ NO BRÊDO,
TIVE QUE ME ESCAPULÍ,
E NUM MOMENTO MESQUINHO
CAÍ POR RIBA DO PINHO,
MEU PINHO DE ESTIMAÇÃO
FICOU TODINHO EM PEDAÇO,
FOI O DERRADÊRO ABRAÇO
QUE DEU NO MEU CORAÇÃO.
 
 
E ANTE QUE A HISTÓRA EU ACABE
SEU JORNALISTA, DÊ FÉ,
VELA A COÃ COMO SABE!
É COMO EU DIGO OU NÃO É?
ELA, QUANDO GARGAIAVA,
COM CERTEZA ME CONTAVA
QUE A DESGRAÇA IA SE DÁ.
MAS PORÉM NINGUÉM COMPREENDE,
NINGUÉM SABE NEM ENTENDE
A LÍNGUA DOS ANIMÁ.
 
 
MINHA QUERIDA VIOLA,
ALIVE DO MEU PENÁ,
VALIA MAIS QUE AS VITROLA
DAS SALA DA CAPITÁ
MINHA VIOLA QUERIDA
FOI DURANTE A MINHA VIDA
REMÉDIO DAS AFRIÇÃO,
DAS MINHAS CANSÊRA E PENA,
E ERA O PRAZÊ DAS MORENA,
NAS NOITE DE SÃO JOÃO.
 
 
VÁ-SE OS ANÉ, FIQUE OS DEDO:
É DITO BOM NATURÁ SÓ QUEBREI 
POR VIM COM MEDO
AH, INFELIZ VAGABUNDO!
E INDA TEM GENTE NO MUNDO
QUE PENSA E DIZ INTÉ,
QUE RIM SÓ FOI LAMPIÃO,
MAS TEM CABRA NO SERTÃO
QUE ANDA FAZENDO O QUE QUÊ.

SEU MOÇO, EU FAÇO JUÍZO
DESTE MUNDO, E DIGO ASSIM:
- O MUNDO ERA UM PARAÍSO 
SE NÃO FOSSE GENTE RIM,
SE NÃO FOSSE O GANGACÊRO,
O ROBADÔ, O DESORDÊRO.
ESSES ARGENTE DO DIACHO,
DA NATUREZA DE INCRÉU,
NÓS CONTAVA COM DOIS CÉU,
ERA UM EM RIBA E ÔTO EM BAXO.


MAS O MUNDO TÁ DE UM JEITO
QUE NO SERTÃO DO BRASIL,
A GENTE NÃO TEM DIREITO
NEM MÊRMO DE DIVERTI
EU, QUE NÃO GOSTO DE INTRIGA
E MUNDO MENO DE BRIGA,
QUANDO VEJO ESSES HORRÔ
SAIO CORRENDO, ASSOMBRADO,
CUMO O VEADO CHUMBADO
COM MEDO DO CAÇADÔ.


DAQUELA CENA MARDITA
EU AINDA TOU COM MEDO
TANTA MOCINHA BONITA
CORRÊ, PRA DORMI NO BRÊDO!
QUE ZOADA! QUE ARVOROÇO!
EU SÓ QUERIA, SEU MOÇO,
QUE PRO PAÍS BRASILÊRO
DEUS DO CÉU INDA MANDASSE
UM CASTIGO, QUE ACABASSE,
COM TUDO QUE É CANGACÊRO.

 


Poemas e Poesias quarta, 09 de outubro de 2024

O ENAMORADO DAS ROSAS (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

O ENAMORADO DAS ROSAS

Olegário Mariano

 

 

 

Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.

Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.

Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.


Poemas e Poesias terça, 08 de outubro de 2024

PARA A RAINHA DONA AMÉLIA DE PORTUGAL (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

PARA A RAINHA DONA AMÉLIA DE PORTUGAL

Olavo Bilac

 

 

 

Um rude resplendor, de rude brilho, touca
E nimba o teu escudo, em que as quinas e a esfera
Guardam, ó Portugal! a tua glória austera,
Feita de louco heroísmo e de aventura louca.

Ver esse escudo é ver a Terra toda, pouca
Para a tua ambição; é ver Afonso, à espera
Dos mouros, em Ourique; e, em redor da galera
Do Gama, ouvir do mar a voz bramante e rouca...

Mas no vosso brasão, Borgonha! Avis! Bragança!
De ouro e ferro, encerrando o orgulho da conquista,
Faltava a suavidade e o encanto de uma flor;

E eis sobre ele pairando o alvo lírio de França,
Que lhe deu, flor humana, alma gentil de artista,
Um sorriso de graça e um perfume de amor...


Poemas e Poesias segunda, 07 de outubro de 2024

SE EU FOSSE UM PADRE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

SE EU FOSSE UM PADRE

Mário Quintana

 

 

 

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!


Poemas e Poesias domingo, 06 de outubro de 2024

MASCARADA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

MASCARADA

Manuel Bandeira

 

 

 

- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores…
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.

- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia…
Era a minha fala
Canto e persuasão…
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.

- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!
.
Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?
.
- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição."


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