U
ULTRA LIMINA
Da Costa e Silva
Em frágil barca de ébano e marfim,
De tírias velas côncavas ao vento,
Vago pela amplidão do firmamento
Nas ondas do éter pelo azul sem fim...
Aonde vou nesse estranho bergantim,
Veloz e afoito como o pensamento?
Que céu de sonho, que país nevoento,
Que mundo de mistério busco, enfim?
Nos extremos remotos do horizonte,
Perde-se a barca, espaço em fora, sem
Que com o porto encantado se defronte.
Colho as velas, deito a âncora, porém
Surge na proa o vulto de Caronte,
Com a mão no leme, a dirigir-me: — Além!
FOEDERIS ARCA
Cruz e Sousa
Visão que a luz dos Astros louros trazes,
Papoula real tecida de neblinas
Leves, etéreas, vaporosas, finas,
Com aromas de lírios e lilazes.
Brancura virgem do cristal das frases,
Neve serene das regiões alpinas,
Willis juncal de mãos alabastrinas,
De fugitivas correções vivazes.
Floresces no meu Verso como o trigo,
O trigo de ouro dentre o sol floresce
E és a suprema Religião que eu sigo...
O Missal dos Missais, que resplandece,
A igreja soberana que eu bendigo
E onde murmuro a solitária prece!...
PERSEVERANDO
Castro Alves
(Tradução de V. Hugo)
a Regueira Costa
A águia é o gênio... Da tormenta o pássaro,
Que do monte arremete altivo píncaro,
Quergue um grito aos fulgores do arrebol,
Cuja garra jamais se peia em lodo,
E cujo olhar de fogo troca raios
— Contra os raios do sol.
Não tem ninho de palhas... tem um antro
— Rocha talhada ao martelar do raio,
— Brecha em serra, anta qual o olhar tremeu ...
No flanco da montanha — asilo trêmulo,
Que sacode o tufão entre os abismos
— O precipício e o céu.
Nem pobre verme, nem dourada abelha
Nem azul borboleta... sua prole
Faminta, boquiaberta espera ter...
Não! São aves da noite, são serpentes,
São lagartos imundos, que ela arroja
Aos filhos pra viver.
Ninho de rei!... palácio tenebroso,
Que a avalanche a saltar cerca tombando!...
O gênio aí enseiba a geração...
E ao céu lhe erguendo os olhos flamejantes
Sob as asas de fogo aquenta as almas
Que um dia voarão.
Por que espantas-te, amigo, se tua fronte
Já de raios pejada, choca a nuvem?...
Se o réptil em seu ninho se debate?...
É teu folgar primeiro... é tua festa!...
Águias! Pra vós cadhora é uma tormenta,
Cada festa um combate!
Radia!... É tempo!... E se a lufada erguer-se
Muda a noite feral em prisma fúlgido!
De teu alto pensar completa a lei!...
Irmão! — Prende esta mão de irmão na minha!...
Toma a lira — Poeta! Águia! — esvoaça!
Sobe, sobe, astro rei!...
De tua aurora a bruma vai fundir-se
Águia! faz-te mirar do sol, do raio;
Arranca um nome no febril cantar.
Vem! A glória, que é o alvo de vis setas,
É bandeira arrogante, que o combate
Embeleza ao rasgar.
O meteoro real — de coma fúlgida —
Rola e se engrossa ao devorar dos mundos...
Gigante! Cresces todo o dia assim!...
Tal teu gênio, arrastando em novos trilhos
No curso audaz constelações de idéias,
Marcha e recresce no marchar sem fim! ...
BORBOLETA
Casimiro de Abreu
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tu a rosa
E vais beijar o jasmim?
Pois essa alma é tão sedenta
Que um só amor não contenta
E louca quer variar?
Se já tens amores belos,
P’ra que vais dar teus desvelos
Aos goivos da beira-mar?
Não sabes que a flor traída
Na débil haste pendida
Em breve murcha será?
Que de ciúme fenece
E nunca mais estremece
Aos beijos que a brisa dá?…
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tua a rosa
E vais beijar o jasmim?!
Tu vês a flor da campina,
E bela e terna e divina,
Tu dá-lhe o que essa alma tem;
Depois, passado o delírio,
Esqueces o pobre lírio
Em troca duma cecém!
Mas tu não sabes, louquinha
Que a flor que pobre definha
Merece mais compaixão?
Que a desgraça precisa,
Como sopro da brisa,
Os ais do teu coração?
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tua a rosa
E vais beijar o jasmim?!
Se a borboleta dourada
Esquece a rosa encarnada
Em troca duma outra flor;
Ela – a triste, molemente
Pendida sobre a corrente,
Falece à míngua d’amor.
Tu também, minha inconstante,
Tens tido mais dum amante
E nunca amaste a um só!
Eles morrem de saudade
Mas tu na variedade
Vais vivendo e não tens dó!
Ai! és muito caprichosa!
Sem pena deixas a rosa
E vais beijar outras flores;
Esqueces os que te amam…
Por isso todos te chamam:
– Borboleta dos amores!
INFÂNCIA
Carlos Drummond de Andrade
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
— Psiu . . . Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro . . . que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mas bonita que a de Robinson Crusoé.
TROVA 026
Belmiro Braga
Vi teus braços... que ventura!
Teu colo... as pernas... gue gosto!
Agora, tira a pintura
Que eu quero ver o teu rosto.
SEIO DE VIRGEM
Álvares de Azevedo
O que eu sonho noite e dia,
O que me dá poesia
E me torna a vida bela,
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
É o teu seio, donzela!
Oh! quem pintara o cetim
Desses limões de marfim,
Os leves cerúleos veios
Na brancura deslumbrante
E o tremido de teus seios?
Quando os vejo, de paixão
Sinto pruridos na mão
De os apalpar e conter...
Sorriste do meu desejo?
Loucura! bastava um beijo
Para neles se morrer!
TERCEIRO CANTO
Alberto de Oliveira
I
Embala-me, balanço da mangueira,
Embala-me, que enquanto vou contigo,
Contigo venho, o meu pesar esqueço.
Rompe a luz da manhã rosada e linda,
Tudo desperta. E essa por quem padeço,
Lânguida e preguiçosa,
Entre brancos lençóis repousa ainda.
Embala-me, pendente da mangueira,
Na tensa corda, meu balanço amigo!
Em claro a noite inteira
Passei, pensando nela. Ah! que formosa
Estava ontem à tarde no mirante,
Um livro ao colo, às tranças uma rosa,
E o olhar perdido na amplidão distante!
Pensava... Em quem pensava?
Se fosse em mim... Como formosa estava!
Oh! não pausado e manso,
Mas aos arrancos, estirado voa,
Leva-me, meu balanço!
II
Assim cismando, à toa,
Olhos voltados já para a querida
Visão de Laura, já para o céu claro,
Para o campo e arredores,
A manhã passo. Sobre a serra erguida
Em frente nasce e, coroando-a, brilha
O sol. Loureja o ipê com as áureas flores.
Late nos grotões fundos, indo ao faro
Da caça, ao buzinar dos caçadores,
Da fazenda a matilha.
E no ar que sopra dos capões escuros,
Sente-se, de mistura a essências finas
E ao cheiro das resinas,
Um sabor acre de cajás maduros.
III
Cajás! Não é que lembra à Laura um dia
(Que dia claro! esplende o mato e cheira!)
Chamar-me para em sua companhia
Saboreá-los sob a cajazeira!
— Vamos sós? perguntei-lhe. E a feiticeira:
— Então! tens medo de ir comigo? — E ria.
Compõe as tranças, salta-me ligeira
Ao braço, o braço no meu braço enfia.
— Uma carreira! — Uma carreira! — Aposto!
A um sinal breve dado de partida,
Corremos. Zune o vento em nosso rosto.
Mas eu me deixo atrás ficar, correndo,
Pois mais vale que a aposta da corrida
Ver-lhe as saias a voar, como vou vendo.
POEMAS PARA A AMIGA
FRAGMENTO 4
Affonso Romano de Sant'Anna
(Grafia original)
As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.
Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava,
em mim te possuía
De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias
Contudo, em paz
eu recebia o carinho,
compungindo o recebia,
tranqüilo em meu silêncio
e tão tranqüilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.
A PRIMEIRA NAMORADA
Vinícius de Moraes
Eu gostaria de saber contar
Uma pequena linda história
Minha memória até que é ruim
Mas dessa eu nunca me esqueci
Nem nunca ouvi tão linda assim
Havia um banco e um jardim
Que era puro jasmim
E um luar transparente
Eu te beijava e sofria
E a gente morria
Uma morte sem fim
Depois sumiu o jardim
E você ficou outra
E eu fiquei sem nada
Até que, amor, te encontrei
E de novo beijei
Tua face adorada
E vi que o amor é você
Porque havia em você
A primeira namorada
A MENINA E A CAJAZEIRA
Patativa do Assaré
(Grafia original)
Arguém diz que o mundo presta,
Grita mêrmo em arto som,
Mas é tolo e nada sabe
Quem diz que este mundo é bom.
Como é que ele tem bondade
Se a nossa felicidade
Voa como o pensamento,
E da praça inté o campo
O gozo é cumo relampo,
Que abre e fecha num momento?
Dêrne do premêro dia
Que Adão mais Eva pecou,
A rosa criou espinho,
Tudo se desmantelou.
E Deus, vendo que a desgraça
De Adão, o chefe da raça,
Percisava sê comum,
Depressa sentenciou,
E uma parcela de dô
Reservou pra cada um.
Inté as arve do campo,
Que não ofende a ninguém,
Herdou aquela miséra,
Tem suas máguas tombém.
Muntas vêz, um pau bonito
Que os gáio vai no infinito
Parece alegre e feliz,
Mas quando o ráio lhe acerta,
Sapeca todo e concerta
Da copa inté a raiz.
Que curpa tem esse pau,
Promode o raivoso ráio
Lhe queimá de meio a meio,
Lascando gáio por gáio?
Se o pobre é um inocente
E o corisco, de repente,
Faz a maió anarquia,
Tá quage certo e provado
Que tudo vem do pecado
De adão, o pai de famia.
Tudo quanto a terra cria
Tem que passá sofrimento,
Tem seus momento de gôzo
E os seus ano de tromento.
As pobre arve, coitada,
Sem a ninguém devê nada
Sofre martiro e cansêra.
Cumo prova eu conto agora
A triste e penosa histora
Da menina e a cajazêra.
Num sito munto distante,
Na bêra de uma lagoa,
Morava um casá fié,
Uma gente muito boa.
Tinha uma linda criança,
Rizonha cumo a esperança,
Era linda e prazentêra.
E brincava todo o dia
Na sombra fresca e sadia
De uma bela cajazêra.
Bem juntinho de casa
A cajazêra nasceu,
Linhêra, iguá uma frecha,
No rumo do céu cresceu.
Era franzina, dergada,
Mas a copa arredondada
Não podia havê maió.
Quem reparava, dizia
Que a mêrma só parecia
Um grande chapé de só.
Entounce a linda criança,
Aquela boa menina,
Era o prazê e era a paz
Da cajazêra franzina.
Naquela sombra vevia,
Durante as horas do dia
Não se afastava dali,
Sempre contente, brincando,
Cheia de vida, zelando
Os seus brinquedos infantí.
Aquela copa vistosa
Pra inocente criança
Era um céu, um paraíso
Verde, da cô da esperança.
As ave fazia festa,
Tinha graça a doce orquesta
Daqueles musgo de pena,
Com seus requebrado canto,
Lovando o riso e o encanto
Daquela santa pequena.
Se o vento vinha de longe,
Todo amoroso, brincá,
Encrespando na lagoa,
As água cô de cristá,
Na cajazêra chegando
Era tão macio e brando
Cumo quem faz a escóia
De um amô e de um carinho,
Soprando devagarinho
Mode não derrubá fôia.
Tudo quanto era bondade,
Paz, inocença e beleza,
Vinha ali fazê morada
E de toda essa riqueza
A menina era a rainha,
Dava a entendê que Deus tinha
Pra o nosso mundo de increu,
Em favô daquele sito,
Mandado lá do infinito
Um pedacinho do céu.
Se em cima, na verde copa,
A passarada cantava,
Em baxo, na fresca sombra,
A criançinha brincava.
Aquela arve tão amiga,
Caridosa, sem fadiga,
De tudo era a potreção.
Sua copa arredondada
Vivia sempre enfoiada,
Que fosse inverno ou verão.
Mas a nossa curta vida,
Quando começa a sê bela,
O vento da negra sorte
Dá um sopro e desmantela.
Se o sito era um paraíso
De sossego, paz e riso,
Se aquela doce união
Foi grande felicidade,
Maió foi a crueldade,
E a dô da separação.
A amiga da cajazêra,
Tão nova, tão pequenina,
Perdeu ali um tesoro,
Pois a mão da triste sina
Robou-lhe a felicidade,
E umas água de orfandade
Dos óio dela caiu.
Quem era tão prazentêra,
Da querida cajazêra
Chorando se despediu.
Foi se embora soluçando
Aquela criança boa,
Dêxando luto e tristeza
La na bêra da lagoa.
E a cajazêra copada
Vendo a sua camarada
Da sombra se retirá
Levando o pranto no rosto,
De tanto sofrê desgosto
Nunca mais botou cajá.
Sentindo a sombra vazia,
Aquela pobre infeliz
Foi ficando deferente,
Acabrunhando as raiz,
E com a macha dos ano
E o choque dos desengano
Que o mau destino lhe deu,
A cajazêra franzina,
Com sodade da menina
Murchou a copa e morreu.
Morreu a pobre, sem curpa,
Sem devê nada a ninguém.
Inté as arve do campo
Tem suas mágoas tombém.
Ficou entonce a memora
Do dia e da crué hora
Daquele amargoso adeus,
Seca, no sito deserto.
Com os seus braços aberto,
Pedindo o socorro a Deus.
Quem lhe tinha conhecido
Na doce felicidade,
Vendo o seu grande abandono
Chorava de piedade,
Pois aquela cajazêra,
Bonita, alegre e linhêra,
Tava um pau véio, cacundo,
De gaio tingido e preto,
Parecendo um esqueleto
Chorando as dô desse mundo.
No gáio, onde os passarinho
Grogeava de manhã,
Ficou cantando somente
A feia e triste coã.
E de noite o vento afoito,
Roncando e lhe dando açoito,
Formava uma entoação
De causá medonho espanto,
Acompanhada do canto
Do agourento corujão.
E pra ficá bem provado
Que tudo o que a terra cria
Tem seus momento de gôzo
E os seus anos de agonia,
Ela foi, de pôco a pôco,
Banindo e criando oco,
Num desmante-lo sem fim,
E sujeita aos bichos mau:
O besôro serra-pau,
A broca, a traça e o cupim.
Tudo sofre, tudo pena,
A vida é pesada cruz,
Ninguém se julgue feliz,
Que aquilo que agora é luz
Mais tarde pode sê treva.
A curpa de Adão mais Eva
Se espaiou na terra intêra.
Tudo ali tornou-se em ruína,
Com a farta da menina
E a morte da cajazêra.
Inté a prope lagoa
Perdeu a quilaridade,
Criou nas águas uma sombra
Roxa, da cô da sodade.
Tudo nesse mundo passa,
O sito perdeu a graça,
Daquele sonho de amô
Hoje ali já nada existe,
Apenas o choro triste
Da rola fogo-pagô.
RENÚNCIA
Olegário Mariano
Renunciar. Todo o bem que a vida trouxe,
toda a expressão do humano sofrimento.
A gente esquece assim como se fosse
um voo de andorinha em céu nevoento.
Anoiteceu de súbito. Acabou-se
tudo… A miragem do deslumbramento…
Se a vida que rolou no esquecimento
era doce, a saudade inda é mais doce.
Sofre de ânimo forte, alma intranquila!
Resume na lembrança de um momento
teu amor. Olha a noite: ele cintila.
Que o grande amor, quando a renúncia o invade
fica mais puro porque é pensamento,
fica muito maior porque é saudade.
O INCÊNDIO DE ROMA
Olavo Bilac
(Grafia original)
Raiva o incêndio. A ruir, soltas, desconjuntadas,
As muralhas de pedra, o espaço adormecido
De eco em eco acordando ao medonho estampido,
Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.
E os templos, os museus, o Capitólio erguido
Em mármore frígio, o Foro, as erectas arcadas
Dos aquedutos, tudo as garras inflamadas
Do incêndio cingem, tudo esbroa-se partido.
Longe, reverberando o clarão purpurino,
Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte...
– Impassível, porém, no alto do Palatino,
Nero, com o manto grego ondeando ao ombro, assoma
Entre os libertos, e ébrio, engrinaldada a fronte,
Lira em punho, celebra a destruição de Roma.
SIMULTANEIDADE
Mário Quintana
MEU QUINTANA
Manuel Bandeira
“Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.
Quinta-essência de cantares…
Insólitos, singulares…
Cantares? Não! Quintanares!
Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.
São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.
São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.
São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.
Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.
E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares
Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.
Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares…
Perdão! digo quintanares.”
SONETO ROMÂNTICO
Luís Guimarães Júnior
Soam ao longe as trompas vencedoras;
Vibra o hallali na mata rumorosa;
Latem os cães, e a cavalgada airosa
Das elegantes, fortes caçadoras,
Cabelo ao ar, altivas, tentadoras,
Qual de Diana a escolta poderosa,
Persegue a fera, e açula jubilosa
As matilhas cruéis e vingadoras.
No entanto, a castelã, triste e isolada,
A sombra dos frondosos arvoredos,
Pálida, loira, casta e enamorada,
Passeia ouvindo uns matinais segredos,
E como a Margarida da balada,
Desfolha um malmequer entre os seus dedos.
PROFISSÃO DE FÉ
Júlio Dinis
Se vires a lira entoar alegrias, Prazeres e orgias, das festas à luz,
Não creias as vozes que solta; mentida
É toda essa vida, que nela transluz.
Se a vires cantando felizes amores, Perfumes de flores parecendo aspirar,
Não creias; minh’alma surgir não viu ainda
A aurora bem-vinda de grato raiar.
Se vendo no mundo somente ímpias cenas, Pérfidas apenas, funestas
paixões,
De escárnio e desprezo soltar os seus cantos, São falsos; que
em prantos lhe vão ilusões.
Porém, quando triste, falar da saudade, Em grata ansiedade fitar
o porvir
Em sonhos de esperanças, talvez que mentidas,
Soltar seus gemidos, temor exprimir;
Se a ouvires falando de chamas ocultas Que n’alma sepultas encobrem seus
véus, Quais fogos acesos ao ar elevados, Ardendo ateados, numa ara
sem Deus
Se a vire s nos cantos falar magoada, Da lut a travada no meu coração,
Qu e muit o deseja, que tanto empreende
E em vã o se defende da ignota prisão.
Ouvindo- a em segredo, soltar suas queixas
E e m triste s endeixas sentida gemer,
Chora r o passado, odiar o presente
E a o long e somente fulgores entrever.
Entã o cr ê os hinos que ouvires à lira,
O peit o os inspira, do peito eles vem,
A m ã o indiferente suas cordas não pulsa
Febri l e convulsa se agita também.
ORGULHO E RENÚNCIA
J. G. de Araújo Jorge
Não penses que a mentira me consola:
parte em silêncio, será bem melhor...
Se tudo terminou a tua esmola
meu sofrimento ainda fará maior...
Não te condeno nem te recrimino
ninguém tem culpa do que aconteceu...
Não posso contrariar o meu destino
nem tu podias contrariar o teu!
Sofro, que importa? mas não te censuro,
o inevitável quando chega é assim,
-se esse amor não devia ter futuro
foi bem melhor precipitar seu fim...
Não te condeno nem te recrimino
tinha que ser! Tudo passou, morreu!
Cada qual traz do berço seu destino
e esse afinal, bem doloroso, é o meu!
Estranho, é que a afeição quando se acabe
traga inútil consolo ao nosso fim
quando penso que ainda ontem, - quem o sabe?
tenha sentido algum amor por mim...
Não procures mentir. Compreendo tudo.
Tudo por si justificado está:
- não tens culpa se te amo... se me iludo,
se a vida para mim é que foi má...
Vês? Meus olhos chorando estão contentes!
Não fales nada. Vai! Ninguém te obriga
a dizeres aquilo que não sentes,
nem eu preciso disto minha amiga...
Parte. E que nunca sofrer alguém te faça
o que sofri com o teu ingênuo amor;
- pensa que tudo morre, tudo passa,
que hei de esquecer-te, seja como for...
Pensa que tudo foi uma tolice...
Só mais tarde, bem sei, - compreenderás
as palavras de dor que não te disse
e outras, de amor... que não direi jamais!
QUIRIRI
Guilherme de Almeida
Calor. Nos tapetes
tranquilos da noite, os grilos
fincam alfinetes.
VÊNUS
Francisca Júlia
(Grafia original)
Branca e herculea, de pé, num bloco de Carrara,
Que lhe serve de throno, a formosa esculptura,
Venus, tumido o collo, em severa postura,
Com seus olhos de pedra o mundo inteiro encara.
Um sopro, um quê de vida o genio lhe insuflára;
E impassivel, de pé, mostra em toda a brancura,
Desde as linhas da face ao talhe da cintura,
A magestade real de uma belleza rara.
Vendo-a nessa postura e nesse nobre entono
De Minerva marcial que pelo gladio arranca,
Julgo vel-a descer lentamente do throno.
É, na mesma attitude a que a insolencia a obriga,
Postar-se á minha frente, impassivel e branca,
Na regia perfeição da formosura antiga.
IMPOSSÍVEL
Florbela Espanca
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar d’olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe...
O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por ’star contente! Pois então?!...”
Quando se sofre, o que se diz é vão...
Meu coração, tudo, calado, ouviste...
Os meus males ninguém mos adivinha...
A minha Dor não fala, anda sozinha...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!...
Os males d’Anto toda a gente os sabe!
Os meus... ninguém... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!...
|UM SORRISO
Ferreira Gullar
Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas
quando
com o meu aceso archote e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
senão colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?
ELA IA, TRANQUILA PASTORINHA
Fernando Pessoa
(Grafia original)
Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...
"Em longes terras hás de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora _
Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...
TROVA HUMORÍSTICA 34
Eno Teodoro Wanke
Muito bonita. Queixou-se
– Sou gorda demais, por certo
– Pode ser – digo, em voz doce –
Mas gorda no luga certo!
TARÂNTULA
Da Costa e Silva
Doudo, sonho que o Sol é a maior das aranhas,
–Tarântula do Azul – a ígnea teia da Vida
Tecendo caprichosa, a arrancar das entranhas
Rubros fios de sangue e de luz difundida.
Urde os fios e os prende, elo por elo, à urdida
Rede transluminosa, a alongar as estranhas
Antenas de ouro de fogo, e com a trama tecida
Estende véus iriais para além das montanhas…
Nessa teia de luz um mistério se encerra:
Sabe-o a Aranha, cravando o enorme olhar que infunde
A energia vital que há no ventre da terra.
Aracnídeo exemplo, almo e augusto, desvendo
No Sol, como a ensinar que tudo se fecunde
Sempre, Aranha do Azul, véus de noiva tecendo…
FLOR DO MAR
Cruz e Sousa
És da origem do mar, vens do secreto,
Do estranho mar espumaroso e frio
Que põe rede de sonhos ao navio,
E o deixa balouçar, na vaga, inquieto.
Possuis do mar o deslumbrante afeto,
As dormências nervosas e o sombrio
E torvo aspecto aterrador, bravio
Das ondas no atro e proceloso aspecto.
Num fundo ideal de púrpuras e rosas
Surges das águas mucilaginosas
Como a lua entre a névoa dos espaços...
Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
Auroras, virgens musicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços...
A UMA ESTRANGEIRA
Castro Alves
Lembrança de uma noite no mar
Sens-tu mon coeur, comme il palpite?
Le tien comme il battait gaiement!
Je m’en vais pourtant, ma petite,
Bien loin, bien vite,
Toujours t’aimant.
Chanson
Inês! nas terras distantes,
Aonde vives talvez,
Inda lembram-te os instantes
Daquela noite divina?...
Estrangeira, peregrina,
Quem sabe? — Lembras-te, Inês?
Branda noite! A noite imensa
Não era um ninho? — Talvez!...
Do Atlântico a vaga extensa
Não era um berço? — Oh! se o era...
Berço e ninho... ai, primavera!
O ninho, o berço de Inês.
Às vezes estremecias...
Era de febre? Talvez!...
Eu pegava-te as mãos frias
Pra aquentá-las em meus beijos...
Oh! palidez! Oh! desejos!
Oh! longos cílios de Inês
Na proa os nautas cantavam;
Eram saudades?... Talvez!
Nossos beijos estalavam
Como estala a castanhola...
Lembras-te acaso, espanhola?
Acaso lembras-te, Inês?
Meus olhos nos teus morriam...
Seria vida? — Talvez!
E meus prantos te diziam:
"Tu levas minh’alma, ó filha,
Nas rendas desta mantilha...
Na tua mantilha, Inês!"
De Cádiz o aroma ainda
Tinhas no seio... — Talvez!
De Buenos Aires a linda,
Volvendo aos lares, trazia
As rosas de Andaluzia
Nas lisas faces de Inês!
E volvia a Americana
Do Plata às vagas... Talvez?
E a brisa amorosa, insana
Misturava os meus cabelos
Aos cachos escuros, belos,
Aos negros cachos de Inês!
As estrelas acordavam
Do fundo do mar... Talvez!
Na proa as ondas cantavam.
E a serenata divina
Tu, com a ponta da botina,
Marcavas no chão... Inês!
Não era cumplicidade
Do céu, dos mares? Talvez!
Dir-se-ia que a imensidade
— Conspiradora mimosa —
Dizia à vaga amorosa:
"Segreda amores à Inês!"
E como um véu transparente,
Um véu de noiva... talvez,
Da lua o raio tremente
Te enchia de casto brilho...
E a rastos no tombadilho
Caía a teus pés... Inês!...
E essa noite delirante
Pudeste esquecer? — Talvez...
Ou talvez que neste instante,
Lembrando-te inda saudosa,
Suspires, moça formosa!...
Talvez te lembres... Inês!
BERÇO E TÚMULO
Casimiro de Abreu
Trago-te flores no meu canto amigo
- Pobre grinalda com prazer tecida -
E - todo amores - deposito um beijo
Na fronte pura em que desponta a vida.
É cedo ainda! - quando moça fores
E percorreres deste livro os cantos,
Talvez que eu durma solitário e mudo
- Lírio pendido a que ninguém deu prantos! -
Então, meu anjo, compassiva e meiga
Depõe-me um goivo sobre a cruz singela,
E nesse ramo que o sepulcro implora
Paga-me as rosas desta infância bela!
INDAGAÇÃO
Carlos Drummond de Andrade
Como é o corpo?
Como é o corpo da mulher?
Onde começa: aqui no chão
Ou na cabeleira, e vem descendo?
Como é a perna subindo e vai subindo
Até onde?
Vê-la num corisco é uma dor
No peito, a terra treme.
Diz-que na mulher tem partes linda
E nunca se revelam. Maciezas
Redondas. Como fazem
Nuas, na bacia, se lavando,
Para não se verem nuas nuas nuas?
Por que dentro do vestido muitos outros
vestidos e brancuras e engomados,
Até onde? Quando é que já sem roupa
É ela mesma, só mulher? E como que faz
Quando que faz
Se é que faz
O que fazemos todos porcamente?
TROVA 025
Belmiro Braga
Dizem que a lágrima nasce
Do fundo do coração
Ah! Se a lágrima falasse
Que doce consolação!
SE EU MORRESSE AMANHÃ
Álvares de Azevedo
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que amanhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o doloroso afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
TAÇA DE CORAL
Alberto de Oliveira
Lícias, pastor — enquanto o sol recebe,
Mugindo, o manso armento e ao largo espraia.
Em sede abrasa, qual de amor por Febe,
— Sede também, sede maior, desmaia.
Mas aplacar-lhe vem piedosa Naia
A sede dágua: entre vinhedo e sebe
Corre uma linfa, e ele no seu de faia
De ao pé do Alfeu tarro escultado bebe.
Bebe, e a golpe e mais golpe: — "Quer ventura
(Suspira e diz) que eu mate uma ânsia louca,
E outra fique a penar, zagala ingrata!
Outra que mais me aflige e me tortura,
E não em vaso assim, mas de uma boca
Na taça de coral é que se mata",
POEMAS PARA A AMIGA - FRAGMENTO 3
Affonso Romano de Sant'Anna
É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.
E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.
A PORTA
Vinícius de Moraes
Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta
Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão
Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta
Eu sou muito inteligente!
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!
TEMO POR MEUS OLHOS
Thiago de Mello
Temo por meus olhos
diante das puras vestes.
E no entretanto, desejo.
Temor que sugere o epilogo
de ser cantaro partido
ao lado de fonte prodiga.
A nao contemplar, prefiro
definitiva cegueira.
Nao como os homens cegos,
mas como os pes das criancas
que sao cegos, caminhando.
SEU DOTÔ ME CONHECE?
Patativa do Assaré
(Grafia original)
Seu dotô, só me parece
Que o sinhô não me conhece
Nunca sôbe quem sou eu
Nunca viu minha paioça,
Minha muié, minha roça,
E os fio que Deus me deu.
Se não sabe, escute agora,
Que eu vô contá minha história,
Tenha a bondade de ouvi:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasil.
Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na vida
De cinco mês em seguida
Sem comê carne uma vez.
Sou o que durante a semana,
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação
Pra sustentá a famia
Só tem direito a dois dia
O resto é pra o patrão.
Sou o que no tempo da guerra
Contra o gosto se desterra
Pra nunca mais vortá
E vai morrê no estrangêro
Como pobre brasilêro
Longe do torrão natá.
Sou o sertanejo que cansa
De votá, com esperança
Do Brasil ficá mió;
Mas o Brasil continua
Na cantiga da perua
Que é: pió, pió, pió...
Sou o mendigo sem sossego
Que por não achá emprego
Se vê forçado a seguí
Sem direção e sem norte,
Envergonhado da sorte,
De porta em porta a pedí.
Sou aquele desgraçado,
Que nos ano atravessado
Vai batê no Maranhão,
Sujeito a todo o matrato,
Bicho de pé, carrapato,
E os ataques de sezão.
Senhô dotô, não se enfade
Vá guardando essa verdade
Na memória, pode crê
Que sou aquele operário
Que ganha um nobre salário
Que não dá nem pra comê
Sou ele todo, em carne e osso,
Muitas vez, não tenho armoço
Nem também o que jantá;
Eu sou aquele rocêro,
Sem camisa e sem dinhêro,
Cantado por Juvená.
Sim, por Juvená Galeno,
O poeta, aquele geno,
O maió dos trovadô,
Aquele coração nobre
Que a minha vida de pobre
Muito sentido cantou.
Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou;
Sofro munto e corro estreito,
Inda tou do mermo jeito
Que Juvená me deixou.
Sofrendo a mesma sentença
Tou quase perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou deixá o meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasil,
E o meu nome é Ceará.
O SOL QUE CANTA
Olegário Mariano
Quando a cigarra canta é o sol que canta.
Por isso o canto dela acorda cedo
E vai rolando com veemência tanta
Que enche as grotas, os campos e o arvoredo.
Desce aos vales, penetra na garganta
Da serra e acorda a pedra do rochedo.
Parece que da terra se levanta
Um punhado de pássaros com medo.
Em chispas de ouro e vibrações estranhas
Vibram clarins nas notas derramadas …
Estilhaçam-se taças nas montanhas …
E o sol, seguindo o canto que se alteia,
Deita fogo na poeira das estradas
E põe pingos de luz nos grãos de areia.
A SESTA DE NERO
Olavo Bilac
Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial de pórfiro luzente
E mármor da Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.
Nero no toro ebúrneo estende-se indolente…
Gemas em profusão no estrágulo custoso
De ouro bordado veem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.
Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em rescendente pira.
Formas quebram, dançando, escravas em coreia…
E Nero dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popeia.
SEMPRE QUE CHOVE
Mário Quintana
Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!
OS MENINOS CARVOEIROS
Manuel Bandeira
Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
— Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.
Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.)
— Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles…
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
— Eh, carvoero!
Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,
Encarapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados.
SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHO
Manoel de Barros
1.
Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.
2.
Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias...
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter — ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos, enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportância científica — como andar de costas.
3.
Ilhota de pedra no meio de um corixo é de nome sarã.
Amanhecer de um sarã tem gala! Eu assisto:
Martim-pescador, de repente, no alto da água, arregaça o cuzinho e solta sua isca de guspe.
Peixe vai ver o que foi aquele guspe: antepara!
De veloz arroio martim-pescador frecha na água, e num átimo sobe -
O peixe atravessado no bico!
As águas remansam e rezam.
Que esse martim-pescador é fela.
4.
Tem quatro teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo aguenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.
5.
A água passa por uma frase e por mim.
Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos.
A boca desarruma os vocábulos na hora de falar
E os deixa em lanhos na beira da voz.
6.
O coró é um bicho abléfaro - e sem engonços.
Habita encostado nos termos que lhe referem.
Tem o corpo transparente e lambe o próprio oco na fortuna
de que esse oco ainda seja a placenta em que morou.
O coró se suficienta.
Devora-se como um prato azedo de formigas.
E lambe até o algodão do nariz em que está morto.
7.
O rio atravessou um besouro pelo meio - e uma falena.
Era um besouro de âmbar, hosco
E uma falena de Ocaso. O besouro
Enfiou na falena seu aguilhão
E a trouxe para seu esconderijo.
Depois esplendorou-a toda antes de comê-la.
8.
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.
9.
De noite passarinho é órfão
para voar. Não enxerga
nem o pai das vacas
nem o adágio dos arroios.
Seu olho de ovo emaranha com folhas.
No escuro não sabe medir direção e trompa nos paus.
Passarinho é poeta de arrebol.
10.
Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a lesma deixa risquinhos lindos.
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma escorre...
Ela fode a pedra.
Ela precisa deste deserto para viver.
11.
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.
12.
Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.
13.
Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
PAULO E VIRGÍNIA
Luís Guimarães Júnior
Fomos um dia alegres, estouvados,
Ao clarão matinal do sol nascente,
Colher as flores do vergel ridente
E as primeiras amoras dos cercados.
Venturosos, risonhos, namorados,
Cada qual mais feliz e mais contente,
Esquecemos a terra inteiramente:
Doidos de amor, de gozo embriagados.
Seus cabelos — enquanto ela corria,
Voavam, loiros como a luz, dispersos!
Eu a chamava e ela me fugia.
Por fim voltamos — em prazer imersos:
E das venturas todas desse dia...
Resta a saudade que inspirou meus versos.
1 DE MAIO DE 1860
Júlio Dinis
Onde vai teu pensamento
Quando, os olhos elevando,
Segues das aves ligeiras
Esse harmonioso bando?
Que te dizem os gorjeios
Dessas pobres foragidas,
Que vão procurar ao longe
Outras selvas mais floridas?
Acaso temes, como elas,
As nuvens negras, pesadas,
E os ventos que descem rápidos
Das altas serras nevadas?
Acaso invejas as asas
Desses plumosos viajantes?
Acaso aspiras à vida
Noutros climas mais distantes?
ORDEM DO DIA
J. G. de Araújo Jorge
Não chegaremos ao livro, sem o leite e o pão,
nem chegaremos ao pão sem à terra e sem o teto,
nem chegaremos à terra sem liberdade e justiça,
nem chegaremos à liberdade, sem coragem e honestidade,
oh! a indispensável coragem para essa luta.
Lutemos pois, - todos nos, -brancos, pretos e amarelos,
que choramos e comemos, que crescemos e estudamos,
que sofremos e construímos, como homens sem cor,
todos nos que precisamos do mesmo leite branco
e do mesmo livro, e da mesma terra, e da mesma liberdade
para Viver. Viver. Ou ao menos morrer, mas lutando.
PRECE A ANCHIETA
Guilherme de Almeida
Santo: erguestes a cruz na selva escura;
Herói: plantastes nossa velha aldeia;
Mestre: ensinastes a doutrina pura;
Poeta: escrevestes versos sobre a areia!
Golpeia a cruz a foice inculta e dura;
Invade a vila multidão alheia;
Morre a voz santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a onda espumejante e cheia...
Santo, herói, mestre e poeta: - Pela glória
que destes a esta Terra e a sua História,
Pela dor que sofremos sempre nós.
Pelo bem que quisestes a este povo,
O novo Cristo deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós!
SONHO AFRICANO
Francisca Júlia
Ei-lo em sua choupana. A lâmpada, suspensa
Ao teto, oscila; a um canto, um velho e ervado fimbo;
Entrando, porta dentro, o sol forma-lhe um nimbo
Cor de cinábrio em torno à carapinha densa.
Estira-se no chão... Tanta fadiga e doença!
Espreguiça, boceja... O apagado cachimbo
Na boca, nessa meia escuridão de limbo,
Mole, semicerrando os dúbios olhos, pensa...
Pensa na pátria, além... As florestas gigantes
Se estendem sob o azul, onde, cheios de mágoa,
Vivem negros reptis e enormes elefantes...
Calma em tudo. Dardeja o sol raios tranquilos...
Desce um rio, a cantar... Coalham-se à tona d'água
Em compacto apertão, os velhos crocodilos...
HORAS RUBRAS
Florbela Espanca
Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...
Oiço olaias em flor às gargalhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas...
Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve e branca e mist’riosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!
ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA
Fernando Pessoa
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões para cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
TROVA HUMORÍSTICA 33
Eno Teodoro Wanke
E como ralhava a sapa
Com seu ardente amiguinho
Após aplicar-lhe um tapa
– Não sabe que dá sapinho?
SUPREMO ENIGMA
Da Costa e Silva
Quando os meus olhos aos teus olhos volvo,
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.
Um mistério de Amor que eu não resolvo
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.
Quem me decifrará todo esse enigma
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…
Quem há que o teu segredo me desvende
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende
ENCARNAÇÃO
Cruz e Sousa
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos e enleios,
Das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
A noite, ao luar, intumescer os seios
Lácteos, de finos e azulados veios
De virgindade, de pudor, de pejos...
Sejam carnais todos os sonhos brumos
De estranhos, vagos, estrelados rumos
Onde as Visões do amor dormem geladas...
Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
Formem, com claridades e fragrâncias,
A encarnação das lívidas Amadas!
TU TENS MEDO
Cecília Meireles
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo…
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos…
Enganados…
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…
… E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.
A BOA VISTA
Castro Alves
Era uma tarde triste, mas límpida e suave…
Eu — pálido poeta — seguia triste e grave
A estrada, que conduz ao campo solitário,
Como um filho, que volta ao paternal sacrário,
E ao longe abandonando o múrmur da cidade
— Som vago, que gagueja em meio à imensidade, —
No drama do crepúsculo eu escutava atento
A surdina da tarde ao sol, que morre lento.
A poeira da estrada meu passo levantava,
Porém minh’alma ardente no céu azul marchava
E os astros sacudia no vôo violento
— Poeira, que dormia no chão do firmamento.
A pávida andorinha, que o vendaval fustiga,
Procura os coruchéus da catedral antiga.
Eu — andorinha entregue aos vendavais do inverno.
Ia seguindo triste p’ra o velho lar paterno.
Como a águia, que do ninho talhado no rochedo
Ergue o pescoço calvo por cima do fraguedo,
— (P’ra ver no céu a nuvem, que espuma o firmamento,
E o mar,-corcel que espuma ao látego do vento…
Longe o feudal castelo levanta a antiga torre,
Que aos raios do poente brilhante sol escorre!
Ei-lo soberbo e calmo o abutre de granito
Mergulhando o pescoço no seio do infinito,
E lá de cima olhando com seus clarões vermelhos
Os tetos, que a seus pés parecem de joelhos!…
Não! Minha velha torre! Oh! atalaia antiga,
Tu olhas esperando alguma face amiga,
E perguntas talvez ao vento, que em ti chora:
“Por que não volta mais o meu senhor d’outrora?
Por que não vem sentar-se no banco do terreiro
Ouvir das criancinhas o riso feiticeiro
E pensando no lar, na ciência, nos pobres
Abrigar nesta sombra seus pensamentos nobres?
Onde estão as crianças-grupo alegre e risonho
— Que escondiam-se atrás do cipreste tristonho…
Ou que enforcaram rindo um feio Pulchinello,
Enquanto a doce Mãe, que é toda amor, desvelo
Ralha com um rir divino o grupo folgazão,
Que vem correndo alegre beijar-lhe a branca mão?…~
É nisto que tu cismas, ó torre abandonada,
Vendo deserto o parque e solitária a estrada.
No entanto eu estrangeiro, que tu já não conheces—
No limiar de joelhos só tenho pranto e preces.
Oh! deixem-me chorar!… Meu lar… meu doce ninho!
Abre a vetusta grade ao filho teu mesquinho!
Passado— mar imenso!… inunda-me em fragrância!
Eu não quero lauréis, quero as rosas da infância.
Ai! Minha triste fronte, aonde as multidões
Lançaram misturadas glórias e maldições…
Acalenta em teu seio, ó solidão sagrada!
Deixa est’alma chorar em teu ombro encostada!
Meu lar está deserto… Um velho cão de guarda
Veio saltando a custo roçar-me a testa parda,
Lamber-me após os dedos, porém a sós consigo
Rusgando com o direito, que tem um velho amigo..
Como tudo mudou-se!… O jardim ‘stá inculto
As roseiras morreram do vento ao rijo insulto…
A erva inunda a terra; o musgo trepa os muros
A ortiga silvestre enrola em nós impuros
Uma estátua caída, em cuja mão nevada
A aranha estende ao sol a teia delicada!…
Mergulho os pés nas plantas selvagens, espalmadas,
As borboletas fogem-me em lúcidas manadas…
E ouvindo-me as passadas tristonhas, taciturnas,
Os grilos, que cantavam, calaram-se nas furnas…
Oh! jardim solitário! Relíquia do passado!
Minh’alma, como tu. é um parque arruinado!
Morreram-me no seio as rosas em fragrância,
Veste o pesar os muros dos meus vergéis da infância,
A estátua do talento, que pura em mim s’erguia,
Jaz hoje — e nela a turba enlaça uma ironia!…
Ao menos como tu, lá d’alma num recanto
Da casta poesia ainda escuto o canto, —
Voz do céu, que consola, se o mundo nos insulta,
E na gruta do seio murmura um treno oculta.
Entremos!… Quantos ecos na vasta escadaria,
Nos longos corredores respondem-me à porfia!…
Oh! casa de meus pais!… A um crânio já vazio,
Que o hóspede largando deixou calado e frio,
Compara-te o estrangeiro, caminhando indiscreto
Nestes salões imensos, que abriga o vasto teto.
Mas eu no teu vazio — vejo uma multidão
Fala-me o teu silêncio — ouço-te a solidão!…
Povoam-se estas salas…
E eu vejo lentamente
No solo resvalarem falando tenuemente
Dest’alma e deste seio as sombras venerandas
Fantasmas adorados — visões sutis e brandas…
Aqui… além… mais longe… por onde eu movo
o passo,
Como aves, que espantadas arrojam-se ao espaço,
Saudades e lembranças s’erguendo — bando alado
— Roçam por mim as asas voando p’ra o passado.
BÁLSAMO
Casimiro de Abreu
Eu vi-a lacrimosa sobre as pedras
Rojar-se essa mulher que a dor ferira!
A morte lhe roubara dum só golpe
Marido e filho, encaneceu-lhe a fronte,
E deixou-a sozinha e desgrenhada
- Estátua da aflição aos pés dum túmulo! -
O esquálido coveiro p'ra dois corpos
Ergueu a mesma enxada, e nessa noite
A mesma cova os teve!
E a mãe chorava,
E mais alto que o choro erguia as vozes!
.......................
No entanto o sacerdote - fronte branca
Pelo gelo dos anos - a seu lado
Tentava consolá-la
A mãe aflita
Sublime desse belo desespero
As vozes não lhe ouvia; a dor suprema
Toldava-lhe a razão no duro trance.
"Oh! padre! - disse a pobre s'estorcendo
Co'a voz cortada dos soluços d'alma -
"Onde o bálsamo, as falas d'esperança,
"O alívio à minha dor?!"
Grave e solene,
O padre não falou - mostrou-lhe o céu!
IGREJA
Carlos Drummond de Andrade
Tijolo
areia
andaime
água
tijolo.
O canto dos homens trabalhando trabalhando
mais perto do céu
cada vez mais perto
mais
— a torre.
E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações.
O padre que fala do inferno
sem nunca ter ido lá.
Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos.
Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.
A manhã pintou-se de azul.
No adro ficou o ateu,
no alto fica Deus.
Domingo...
Bem bão! Bem bão!
Os serafins, no meio, entoam quii ieleisão.
TROVA 024
Belmiro Braga
Politiqueiros... Que súcia!
Segundo as leis de Lavater
O que lhes sobra de astúcia
É o que lhes falta em caráter
POR QUE MENTIAS?
Álvares de Azevedo
Por que mentias leviana e bela?
Se minha face pálida sentias
Queimada pela febre, e minha vida
Tu vias desmaiar, por que mentias?
Acordei da ilusão, a sós morrendo
Sinto na mocidade as agonias.
Por tua causa desespero e morro...
Leviana sem dó, por que mentias?
Sabe Deus se te amei! Sabem as noites
Essa dor que alentei, que tu nutrias!
Sabe esse pobre coração que treme
Que a esperança perdeu por que mentias!
Vê minha palidez- a febre lenta
Esse fogo das pálpebras sombrias...
Pousa a mão no meu peito! Eu morro! Eu morro!
Leviana sem dó, por que mentias?
SONETO - A GALERA DE CLEÓPATRA
Alberto de Oliveira
(Grafia original)
Rio abaixo lá vai, de proa ao sol do Egito,
A galera real. Cinquenta remos lestos
Impelem-na. O verão faz rutilar, aos estos
Da luz, de um céu de cobre o horizonte infinito.
Pesa, abafado e quente, o ar circunstante. Uns restos
De templo ora se veem, lembrando velho rito;
E inda um pilono erguido, uma esfinge de granito,
De empoeirada figura e taciturnos gestos.
De quando em quando à flor do Nilo se destaca,
D’água morna emergindo, a escama de um fakaka;
O íbis branco revoa entre os juncais. Entanto,
Numa sorte de naos, Cleópatra procura
Su’alma distrair, prestando ouvido ao canto
Que a escrava Carmion tristemente murmura.
POEMA PARA A AMIGA - FRAGMENTO 2
Affonso Romano de Sant'Anna
Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.
Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.
A PONTE DE VAN GOGH
Vinícius de Moraes
O lugar não importa: pode ser o Japão, a Holanda, a campina inglesa.
Mas é absolutamente preciso que seja domingo.
O azul do céu ecoa na esmeralda do rio
E o rio reflete docemente as margens de relva verde-laranja
Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o lençol virginal de miss
Para ser no céu sem mancha a única nuvem.
A calma é velha, de uma velhice sem pátina
As cores são simples, ingênuas
A estação é feliz: o guarda da ponte chegou a pintar
De listas vermelhas o teto de sua casinhola.
E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos de pinheiros a fazer caretas
E a pressa com que o homem da charrete vai:
- A pressa de quem atravessou um vago perigo
Tudo estivesse perfeito, e não me viesse esse medo tolo de a pequena ponte levadiça
Desabe e se molhe o vestido preto de Cristina Georgina Rosseti
Que vai de umbrela especialmente para ouvir a prédica do novo pastor da vila
SONHO DOMADO
Thiago de Mello
Sei que é preciso sonhar.
Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.
Quem não sonha o azul do vôo
perde seu poder de pássaro.
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.
Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.
Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.
A FILOSOFIA DE UM TROVADOR SERTANEJO
Patativa do Assaré
O FLIRT
Olegário Mariano
Retirei um breve instante
Das minhas cogitações,
Para falar-vos do Flirt,
A epidemia elegante
Dos salões.
Nasce de um sorriso mudo,
De um quase nada que, enfim
Vale tudo
Para elas e para mim.
O Flirt. Haverá no mundo
Quem não sinta essa embriaguez
De um momento, de um segundo,
De quinze dias, de um mês?
Ele é efêmero e fortuito,
Vale pouco ou vale muito,
Conforme o Diabo o compôs.
É um simples curto-circuito
Entre dois.
Uma carícia inflamável
Doidinha por incendiar,
Um micróbio insuportável
Que vai de olhar para olhar.
Ou antes: um precipício
Que a gente olha sem pavor.
O divino instante, o início
Do êxtase imenso do amor.
Um galanteio, uma frase
Intencional
Que sendo frívola, é quase
Um madrigal.
A mão que outra mão afaga,
O pé que pisa outro pé.
Carícia lânguida e vaga...
Só quem ama e quem divaga
Pode saber o que isto é.
A orquestra soluça um tango:
Dois. Ela folle, ele fou.
Flor de Tango. — A flor de Tango,
Diz ele baixinho, és tu.
E assim vai num tal crescendo,
Que ela se debate em vão.
Parece que está morrendo
Nos braços do cidadão.
Quando passa o áureo momento,
Vem a tragédia em três atos.
Três atos
Com um epílogo. Depois,
Um noivado, um casamento,
Um bruto arrependimento
E ao fim divórcio entre os dois.
A UM GRANDE HOMEM
Olavo Bilac
Heureuse au fond du bois
Ia source pauvre et pure!
Lamartine.
Olha: era um tênue fio
De água escassa. Cresceu Tornou-se em rio
Depois. Roucas, as vagas
Engrossa agora, e é túrbido e bravio,
Roendo penedos, alagando plagas.
Humilde arroio brando!...
Nele, no entanto, as flores, inclinando
O débil caule, inquietas
Miravam-se. E, em seu claro espelho, o bando
Se revia das leves borboletas.
Tudo, porém: - cheirosas
Plantas, curvas ramadas rumorosas,
Úmidas relvas, ninhos
Suspensos no ar entre jasmins e rosas,
Tardes cheias da voz dos passarinhos, -
Tudo, tudo perdido
Atrás deixou. Cresceu. Desenvolvido,
Foi alargando o seio,
E do alpestre rochedo, onde nascido
Tinha, crespo, a rolar, descendo veio...
Cresceu. Atropeladas,
Soltas, grossas as ondas apressadas
Estendeu largamente,
Tropeçando nas pedras espalhadas,
No galope impetuoso da corrente...
Cresceu. E é poderoso:
Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso...
É grande, é largo, é forte:
Mas, de parcéis cortado, caudaloso,
Leva nas dobras de seu manto a morte.
Implacável, violento,
Rijo o vergasta o latego do vento.
Das estrelas, caindo
Sobre ele em vão do claro firmamento
Batem os raios límpidos, luzindo...
Nada reflete, nada!
Com o surdo estrondo espanta a ave assustada;
É turvo, é triste agora.
Onde a vida de outrora sossegada?
Onde a humildade e a limpidez de outrora?
Homem que o mundo aclama!
Semideus poderoso, cuja fama
O mundo com vaidade
De eco em eco no século derrama
Aos quatro ventos da celebridade!
Tu, que humilde nasceste,
Fraco e obscuro mortal, também cresceste
De vitória em vitória,
E, hoje, inflado de orgulhos, ascendeste
Ao sólio excelso do esplendor da glória!
Mas, ah! nesses teus dias
De fausto, entre essas pompas luzidias,
- Rio soberbo e nobre!
Hás de chorar o tempo em que vivias
Como um arroio sossegado e pobre...
Um livro de poesia feito inteiramente de plástico reciclado
Nova obra de Pedro Tancini explora o tema do plástico para buscar o amor, o futuro e a literatura entre a violência do capitalismo
Poemas de Plástico, novo livro de poesia de Pedro Tancini, vai além da abstração e se torna a primeira obra de literatura do mundo produzida inteiramente com plástico reciclado e reciclável. As páginas são impressas em um papel sintético com as mesmas propriedades do papel de celulose, feito principalmente de tampinhas de garrafa PET coletadas por catadores. Já as capas de cada exemplar são personalizadas pelo próprio autor, com colagem de pedaços de plástico que ele retirou das praias do estado de São Paulo.
O projeto se baseia na contradição do plástico no mundo contemporâneo: ao mesmo tempo que é um material tão descartável, leva mais de quatrocentos anos para se decompor na natureza. É esse paradoxo que conecta os poemas, sejam os que denunciam a descartabilidade de tudo, inclusive do amor, na sociedade capitalista, sejam os que procuram um futuro diferente do fim para o qual o mundo está se encaminhando.
Como evitar as cada vez mais intensas e frequentes catástrofes ambientais se até as corporações que se posicionam como "amigas” do meio ambiente estão devastando o planeta? Como a vida psíquica e emocional é afetada pelo império do desperdício? Qual o poder da poesia dentro do sistema capitalista? Essas e outras questões são propostas pelo escritor entre poesias repletas de metalinguagem e ironia.
é nossa a culpa?
os castelos
que erguemos
para os inúteis reis
desta terra
e talvez seja a ilha
(de plástico)
nosso refúgio
mais doentio
nossa revolta
mais possível
nossa mais duradoura
destruição
(Poemas de Plástico, p. 41)
Em meio a versos que desbravam as margens da folha e desafiam as estruturas padrões de um trabalho poético, o livro em si é a tentativa de se fazer durar em uma realidade onde tudo parece inútil. A grande ironia é que, para fazer isso, Pedro Tancini utiliza o plástico, material que é produzido e descartado de forma irrestrita.
“Fiz questão de que o livro fosse produzido com plástico reciclado e reciclável para que o seu impacto ambiental se aproximasse do zero. Porém, a proposta da obra é alertar que, infelizmente, a saída não está no âmbito individual, pois o verdadeiro responsável pelas catástrofes ambientais e sociais que estamos vivendo é o sistema em si. O livro é uma tentativa de sobreviver psiquicamente e emocionalmente nesse mundo que nos violenta diariamente e, mais do que isso, vislumbrar caminhos possíveis de superação do capitalismo também por meio da poesia”, comenta o autor.
Poemas de Plástico tem o apoio do Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas.
FICHA TÉCNICA
Título: Poemas de Plástico
Autor: Pedro Tancini
ISBN: 978-65-01-12872-6
Páginas: 64
Preço: R$ 50
Onde comprar: Amazon
Sobre o autor: Pedro Tancini é poeta, dramaturgo, ator, diretor, produtor e fundador do Coletivo Parêntesis de Teatro. É graduado em Comunicação Social pela ESPM, mestre em Comunicação e Práticas de Consumo também pela ESPM e pesquisa sobre os impactos do capitalismo contemporâneo nas sociedades do século XXI. Como autor, escreveu oito peças de teatro, publicou o livro de contos “Nove Autores – Nova Histórias” e a edição “Erramos” da revista literária “Moreia” junto de outros escritores. Teve, ainda, poemas, dramaturgias e crônicas selecionados por diversos editais e premiações. Em 2024, lançou os livros “Teatro à Venda”, “Professores Online” e Poemas de Plástico.
Redes sociais do autor:
Instagram: @pedrotancini e @coletivoparentesis
SEGUNDA CANÇÃO DE MUITO LONGE
Mário Quintana
Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro…
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa…
Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas…
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos…
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras…
Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar o Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!…
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!
MASCARADA
Manuel Bandeira
Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)
- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.
- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.
- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!
Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?
- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.
SABIÁ COM TREVAS - IV
Manoel de Barros
IV
(a um Pierrô de Picasso)
Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.
Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.
Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto
Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.
PAISAGEM
Luís Guimarães Júnior
O dia frouxo e lânguido declina
Da Ave-Maria às doces badaladas;
Em surdo enxame as auras perfumadas
Sobem do vale e descem da colina.
A juriti saudosa o colo inclina
Gemendo entre as paineiras afastadas;
E além nas pardas serras elevadas
Vê-se da Lua a curva purpurina.
O rebanho e os pastores caminhando
Por entre as altas matas, lentamente,
Voltam do pasto num tranqüilo bando;
Suspira o rio tépido e plangente,
E pelo rio as vozes afinando,
As lavadeiras cantam tristemente
PRESSÁGIO
Júlio Dinis
Era em florente Junho; A Lua se ostentava Serena em seu brilhar; A brisa
na alameda Saudosa suspirava
Nas folhas ao passar.
Contigo, eu só no bosque
Ouvia-te, tao triste,
Soltar, mais triste, a voz;
Falavas magoada
Da paz que só existe
Da fria morte após.
E os olhos lacrimosos
Fitavas nos espaços
Da mais amena cor,
Como se desejasses
Romper terrenos laços
E o azul do céu transpor.
Calado eu te fitava,
Porém ao ver-te o pranto
Banhar-te a face assim,
Não sei que dor pungente,
Não sei que mago encanto,
Me fez falar-te enfim.
E disse-te: «Não chores, Na Terra é tudo flores, No Céu
é tudo luz.
Escuta os sons do bosque, Respira os seus odores,
O aroma que seduz.»
Olhaste-me e sorriste; E quanto não diziam Então os olhos
teus! Quão íntima tristeza,
Que dor não reflectiam
Quando os erguestes aos céus!
E eu ficava mudo, Olhando-te inquieto,
Sem bem te compreender; E um ramo de cipreste,
O arbusto teu dilecto, Vieste-me oferecer.
«Bem vês, da campa à beira Também a flor rebenta»,
Disseste-me a sorrir,
«Também no chão da morte De seiva se alimenta, Também
a vês florir.
«Quem vir esta campina
Virente e matizada
Viçar à luz do Sol,
Dirá, que neste manto
Se envolve a fria ossada
Do morto em seu lençol!»
De novo emudeceste,
E eu, triste, contemplei-te:
Mas não, não te entendi,
Parecia que na mágoa
Achavas um deleite,
Qual nunca igual senti!
Mas cedo teus perfumes
Da Terra aos Céus subiram,
E soube tudo então!
Era uma voz profética
Das que o poeta inspiram,
Falando ao coração.
No meio dos festejos Da estiva natureza, Sentias só a dor,
Vias a campa aberta
E em sua profundeza
Sumir-se a esp’rança em flor.
E hoje, sim, compreendo Tua conversa triste, Quando comigo a sós…
E porque a entende agora? Não sei. Talvez existe
Em mim a mesma voz.
Oh! sim, ele me mostre
No meio destas galas,
Que vejo em torno de mim,
A terra húmida e fria,
Do cemitério as valas
E o esquecimento enfim.
O VERBO AMAR
J. G. de Araújo Jorge
Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.
Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.
Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...
Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!
OS ANDAIMES
Guilherme de Almeida
Na gaiola cheia
(pedreiros e carpinteiros)
o dia gorjeia.
RÚSTICA
Francisca Júlia
Da casinha, em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirão na água clara e sonora.
Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora;
Além, o seu quintal, este, o seu aposento.
Vem do campo, a correr; e úmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora
Que parece trazer consigo, lá de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento...
E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocência boia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno,
Pegando da costura à luz da claraboia,
Põe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensão de joia.
HORA QUE PASSA
Florbela Espanca
Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!
Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh'alma triste, dolorida, escura,
Minh'alma sem amor é cinza, é pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!
Que tragédia tão funda no meu peito!...
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!
Deus! Como é triste a hora quando morre...
O instante que foge, voa, e passa...
Fiozinho d'água triste... a vida corre...
OVNI
Ferreira Gullar
Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
– reflete a parede
a janela aberta
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito
O bom-humor e a poesia que sintetizam a complexidade da vida
Os contos, poemas e carta de "O Grito do Trovão" convidam os leitores a adentrarem um universo insólito acompanhados de personagens clownescos
Os personagens clownescos e imprevisíveis de O Grito do Trovão surpreendem por suas ações e, por isso, se aproximam de uma realidade onde ninguém tem o controle dos acontecimentos. Escrito pelo ator e pedagogo Henrique Cesarino Pessoa os 10 contos, 21 poemas e uma carta presentes na obra constroem um mosaico complexo e bem-humorado da sociedade.
Entre as histórias, um menino não compreende a professora quando ela insiste que coloque o número "ao quadrado" durante uma atividade sobre potência. Ao descer do ônibus, um homem se coloca em uma série de interações que beiram o absurdo após perguntar onde fica a praça Ramos. Um jovem decide abrir uma frutaria para ajudar o Brasil contanto que o empreendimento tenha dois tipos de tomates.
Com linguagem leve e singular, o escritor reflete sobre temas do cotidiano ao apresentar uma nova possibilidade de compreender a contemporaneidade a partir das lentes do humor. O lançamento convida ainda os leitores a perceber os desafios dos artistas no país, além de percorrer questões como a inadequação, o excesso de racionalidade, o papel da cultura e a força da liberdade.
Acredito que por ser diferente Rodolpho era mal compreendido. Um “outsider” justamente por pertencer à categoria dos que vão mais fundo nas questões do espírito e talvez por isso não se adaptasse ao cotidiano, como quem luta diariamente com um demônio interno para perseverar seus propósitos em um diálogo com a realidade. (O Grito do Trovão, p. 52)
Prefaciado pelo professor de português Francisco Marto de Moura, o livro começa leve e vai gradativamente se tornando mais denso na intenção de levar o público a percorrer um universo insólito com percepções agudas sobre a alma humana. Este caminho é trilhado até chegar aos contos “Amigo secreto budista” e “Prima Melancolia e avó Sabedoria”, que têm influência de escritores clássicos como Edgar Allan Poe e Machado de Assis.
Dividida como um disco de vinil, composto por lado A e lado B, a obra encerra a primeira parte com uma carta à classe teatral, onde há um olhar crítico acerca das artes cênicas. Já o segundo momento da narrativa apresenta poemas sensíveis e concisos, inspirados em Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e no movimento concretista brasileiro. Entre versos e prosa, a obra defende uma sensibilidade e autoexpressão que valorizam o aspecto humano da escrita.
FICHA TÉCNICA
Título: O Grito do Trovão
Autora: Henrique Cesarino Pessoa
Editora: Artêra Editorial
ISBN: 978-6525050003
Páginas: 93 | Livraria da Vila
Preço: R$ 42
Onde comprar: Amazon | Livraria da Vila | Appris
Sobre o autor: Henrique Cesarino Pessoa é ator e pedagogo formado pela Universidade de São Paulo (USP). Com especialização em Clown, trabalhou em diversas peças e ganhou prêmios de atuação em diferentes festivais nacionais. Foi professor convidado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) por oito anos e lecionou no Teatro do Gracinha por quinze anos. Atualmente dirige, leciona e atua no Esporte Clube Pinheiros e no Espaço Rasa, onde é coordenador do núcleo de humor “Arrasa no Riso”.
É BRANDO O DIA, BRANCO O VENTO
Fernando Pessoa
É brando o dia, brando o vento.
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento!
Assim fosse eu, assim fosse eu!
Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim, ser eu assim!
Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo quanto existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!
TROVA HUMORÍSTICA 32
Eno Teodoro Wanke
Este psiquiatra é perfeito
E garante mesmo a cura
Não ficando satisfeito
Ele devolve a loucura
SUPREMO ENIGMA
Da Costa e Silva
Quando os meus olhos aos teus olhos volvo,
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.
Um mistério de Amor que eu não resolvo
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.
Quem me decifrará todo esse enigma
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…
Quem há que o teu segredo me desvende
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende?
EM SONHOS
Cruz e Sousa
(Grafia original)
Nos santos oleos do luar, floria
Teu corpo ideal, com o resplendôr da Hellade...
E em toda a ethérea, brauda claridade
Como que erravam fluidos de harmonia...
As Aguias immortaes da Phantasia
Déram-te as azas e a serenidade
Para galgar, subir á Immensidade
Onde o clarão de tantos sóes radia.
Do espaço pelos limpidos velinos
Os Astros viéram claros, crystalinos,
Com chammas, vibrações, do alto, cantando...
Dos santos oleos no luar envôlto
Teu corpo éra O Astro nas esphéras sôlto,
Mais Sóes e mais Estrellas fecundando!
TIMIDEZ
Cecília Meireles
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...
- palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
- e um dia me acabarei.
ONDE ESTÁS?
Castro Alves
É meia-noite… e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
“Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?”
Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
“Oh! minh’amante, onde estás?. . .
Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono! …
‘Stá vazio nosso leito…
‘Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu’eu fique
Solitário nesta vida…
Mas por que tardas, querida?…
Já tenho esperado assaz…
Vem depressa, que eu deliro
Oh! minh’amante, onde estás? …
Estrela — na tempestade,
Rosa — nos ermos da vida;
lris — do náufrago errante,
Ilusão — d’alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu! …
… E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz…
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte…
“Oh! minh’amante, onde estás?…”
A VOZ DO RIO
Casimiro de Abreu
Nosso sol é de fogo, o campo é verde,
O mar é manso, nosso céu azul!
- Ai! porque deixas este pátrio ninho
Pelas friezas dos vergéis do sul?
Lá nessa terra onde o Guaíba chora
Não são as noites, como aqui, formosas
E as duras asas do Pampeiro iroso
Quebra as tulipas e desfolha as rosas.
A lua é doce, nosso mar tranqüilo,
Mais leve a brisa, nosso céu azul!...
- Tupá! Quem troca pelo pátrio ninho
As ventanias dos vergéis do sul?
Lá novos campos outros campos ligam
E a vista fraca na extensão se perde!
E tu sozinha viverás no exílio
- Garça perdida nesse mar que é verde! -
Nossas campinas como doces noivas
Vivem c’os montes sob o céu azul!
- Há vida e amores neste pátrio ninho
Mais rico e belo que os vergéis do sul!
Essas palmeiras não têm tantos leques,
O sol dos Pampas mareou seu brilho,
Nem cresce o tronco que susteve um dia
O berço lindo em que dormiu teu filho!
Nossas florestas sacudindo os galhos
Tocam c’os braços este céu azul!...
- Se tudo é grande neste pátrio ninho
Porque deixá-lo p’ra viver no sul?!
Embora digas: - essa terra fria
Merece amores, é irmã da minha -
quem dar-te pode este calor do ninho,
A luz suave que o teu berço tinha?!
Eu - Guanabara - no meu longo espelho
Reflito as nuvens deste céu azul;
- Ó minha filha! acalentei-te o sono,
Porque me deixas p’ra viver no sul?!...
Lá, quando a terra s’embuçar nas sombras
E o medroso sol s’esconder nas águas,
Teu pensamento, como o sol que morre,
Há de cismando mergulhar-se em mágoas!
Mas se forçoso t’é deixar a pátria
Pelas friezas dos vergéis do sul,
Ó minha filha! não t’esqueças nunca
Destas montanhas, deste céu azul.
Tupá bondoso te derrame graças,
Doce ventura te bafeje e siga,
E nos meus braços - ao voltar do exílio -
Saudando o berço que teu lábio diga:
“Volvo contente para o pátrio ninho,
“Deixei sorrindo esses vergéis do sul;
“Tinha saudades deste sol de fogo...
“Não deixo mais este meu céu azul!...”
HINO NACIONAL
Carlos Drumond de Andrade
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonnettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas.
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas…
Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;
Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;
Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:
Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.
TROVA 023
Belmiro Braga
Desilusões, desenganos
Tudo a velhice nos traz
Mas existe, além dos anos
A eterna bênção da paz
POR MIM?
Álvares de Azevedo
Lira dos Vinte Anos
Segunda Parte
Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
Pálida de langor, eu vi, te olhando,
Mulher do meu amor, meu serafim,
Esse amor que em teus olhos refletia...
Talvez! - era por mim?
Pendeste, suspirando, a face pura,
Morreu nos lábios teus um ai perdido...
Tão ébrio de paixão e de ventura!
Mulher de meu amor, meu serafim,
Por quem era o suspiro amortecido?
Suspiravas por mim?...
Mas... eu sei!... ai de mim? Eu vi na dança
Um olhar que em teus olhos se fitava...
Ouvi outro suspiro... d'esperança!
Mulher do meu amor, meu serafim,
Teu olhar, teu suspiro que matava...
Oh! não eram por mim.
SOLIDÃO ESTRELADA
Alberto de Oliveira
Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,
Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?
Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!
Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
De nuvens, de estrelas, de ar...
Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.
Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!
E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?
Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem!
POEMAS PARA A AMIGA - FRAGMENTO 1
Affonso Romano de Sant'Anna
“O amor com seus contrários se acrescenta”
Camões
Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.
Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.
Por isto é que te sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.
A PAIXÃO DA CARNE
Vinícius de Moraes
Envolto em toalhas
Frias, pego ao colo
O corpo escaldante.
Tem apenas dois anos
E embora não fale
Sorri com doçura.
É Pedro, meu filho
Sêmen feito carne
Minha criatura
Minha poesia.
É Pedro, meu filho
Sobre cujo sono
Como sobre o abismo
Em noites de insônia
Um pai se debruça.
Olho no termômetro:
Quarenta e oito décimos
E através do pano
A febre do corpo
Bafeja-me o rosto
Penetra-me os ossos
Desce-me às entranhas
Úmida e voraz
Angina pultácea
Estreptocócica?
Quem sabe... quem sabe...
Aperto meu filho
Com força entre os braços
Enquanto crisálidas
Em mim se desfazem
Óvulos se rompem
Crostas se bipartem
E de cada poro
Da minha epiderme
Lutam lepidópteros
Por se libertar.
Ah, que eu já sentisse
Os êxtases máximos
Da carne nos rasgos
Da paixão espúria!
Ah, que eu já bradasse
Nas horas de exalta-
São os mais lancinantes
Gritos de loucura!
Ah, que eu já queimasse
Da febre mais quente
Que jamais queimasse
A humana criatura!
Mas nunca como antes
Nunca! nunca! nunca!
Nem paixão tão alta
Nem febre tão pura.
QUANDO A VERDADE FOR FLAMA
Thiago de Mello
As colunas da injustiça
sei que só vão desabar
quando o meu povo, sabendo
que existe, souber achar
dentro da vida o caminho
que leva à libertação.
Vai tardar, mas saberá
que esse caminho começa
na dor que acende uma estrela
no centro da servidão.
De quem já sabe, o dever
(luz repartida) é dizer.
Quando a verdade for flama
nos olhos da multidão,
o que em nós hoje é palavra
no povo vai ser ação.
A FESTA DA MARICOTA
Patativa do Assaré
O ENAMORADO DAS ROSAS
Olegário Mariano
Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.
Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.
Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.
Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.
PARA A RAINHA DONA AMÉLIA DE PORTUGAL
Olavo Bilac
Um rude resplendor, de rude brilho, touca
E nimba o teu escudo, em que as quinas e a esfera
Guardam, ó Portugal! a tua glória austera,
Feita de louco heroísmo e de aventura louca.
Ver esse escudo é ver a Terra toda, pouca
Para a tua ambição; é ver Afonso, à espera
Dos mouros, em Ourique; e, em redor da galera
Do Gama, ouvir do mar a voz bramante e rouca...
Mas no vosso brasão, Borgonha! Avis! Bragança!
De ouro e ferro, encerrando o orgulho da conquista,
Faltava a suavidade e o encanto de uma flor;
E eis sobre ele pairando o alvo lírio de França,
Que lhe deu, flor humana, alma gentil de artista,
Um sorriso de graça e um perfume de amor...
SE EU FOSSE UM PADRE
Mário Quintana
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!
MASCARADA
Manuel Bandeira
- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores…
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.
- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia…
Era a minha fala
Canto e persuasão…
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.
- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!
.
Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?
.
- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição."