Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)
Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.
Poemas e Poesias sexta, 04 de agosto de 2023
POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)
POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO
Hilda Hilst
Amada vida, minha morte demora. Dizer que coisa ao homem, Propor que viagem? Reis, ministros E todos vós, políticos, Que palavra além de ouro e treva Fica em vossos ouvidos? Além de vossa RAPACIDADE O que sabeis Da alma dos homens? Ouro, conquista, lucro, logro E os nossos ossos E o sangue das gentes E a vida dos homens Entre os vossos dentes.
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Ao teu encontro, Homem do meu tempo, E à espera de que tu prevaleças À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras, Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros, Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa. As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei Minha própria rudeza e o difícil de antes, Aparências, o amor dilacerado dos homens Meu próprio amor que é o teu O mistério dos rios, da terra, da semente. Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu
Compaixão e ternura e paz na Terra Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.
Poemas e Poesias quinta, 03 de agosto de 2023
MÃE (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)
MÃE
Hermes Fontes
Para dizer quem foi a minha mãe, não acho Uma palavra própria, um pensamento bom Diógenes — busco-o em vão; falta-me a luz de um facho — Se acho som, falta a luz; se acho luz, falta o som!
Teu nome — ó minha mãe — tem o sabor de um cacho De uvas diáfanas, cor de ouro e pérola, com Polpa de beijos de anjo... ouvi-lo é ouvir um sacho Merencóreo, a rezar, no seu eterno tom. ..
Minha mãe! Minha mãe! Eu não fui qual devera. Morreste e eu não bebi nos teus lábios de cera A doçura que as mães, ainda mortas, contêm...
Ao pé de nossas mães — todos nós somos crentes... Um filho que tem mãe — tem todos os parentes... — E eu não tenho por mim, ó minha mãe, ninguém!
Poemas e Poesias terça, 01 de agosto de 2023
HARMONIA VELHA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)
HARMONIA VELHA
Guilherme de Almeida
O teu beijo resume Todas as sensações dos meus sentidos A cor, o gosto, o tato, a música, o perfume Dos teus lábios acesos e estendidos Fazem a escala ardente com que acordas o fauno encantador Que, na lira sensual de cinco cordas, Tange a canção do amor!
E o tato mais vibrante, O sabor mais sutil, a cor mais louca, O perfume mais doido, o som mais provocante Moram na flor triunfal da tua boca! Flor que se olha, e ouve, e toca, e prova, e aspira; Flor de alma, que é também Um acorde em minha lira, Que é meu mal e é meu bem...
Se uma emoção estranha o gosto de uma fruta, a luz de um poente - chega a mim, não sei de onde, e bruscamente ganha qualquer sentido meu, é a ti somente que ouço, ou aspiro, ou provo, ou toco, ou vejo... E acabo de pensar Que qualquer emoção vem de teu beijo Que anda disperso no ar...
Poemas e Poesias segunda, 31 de julho de 2023
O TEU ANIVERSÁRIO (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)
O TEU ANIVERSÁRIO
Guerra Junqueiro
Pediste-me sorrindo, ó minha flor gentil, Uns versos às tuas vinte alvoradas de Abril. Vinte anos já!... não creio, estás equivocada... Enganas-te. Eu irei perguntar à alvorada Quantas vezes pousou em êxtase, ao de leve, A sua boca de rosa em tua fronte de neve. Vinte anos! Podes crer, pomba que eu idolatro, Que se o corpo fez vinte, a alma, não: fez quatro. A tua alma nasceu inefável, divina, Para ser sempre grande e sempre pequenina. É como a estrela d'alva; enche o seu esplendor O Mundo, e ela não enche o cálix duma flor!...
Poemas e Poesias domingo, 30 de julho de 2023
EGITO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)
EGITO
Francisca Júlia
No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito; Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno; Um velho ibe somente arranca um raro piorno Que cresce pelos vãos das lájeas de granito.
A aura branda, que vem do deserto infinito, Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno. Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.
Destacando na luz, agora o vulto absorto De um adelo que passa, em caminho da feira, Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.
Bate na areia o sol. E, num sonho tranqüilo, Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira, A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.
Poemas e Poesias sábado, 29 de julho de 2023
O RETRATO FIEL (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)
O RETRATO FIEL
Gilka Machado
Não creias nos meus retratos, nenhum deles me revela, ai, não me julgues assim!
Minha cara verdadeira fugiu às penas do corpo, ficou isenta da vida.
Toda minha faceirice e minha vaidade toda estão na sonora face;
naquela que não foi vista e que paira, levitando, em meio a um mundo de cegos.
Os meus retratos são vários e neles não terás nunca o meu rosto de poesia.
Não olhes os meus retratos, nem me suponhas em mim.
Poemas e Poesias sexta, 28 de julho de 2023
COTO DD FADAS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)
CONTO DE FADAS
Florbela Espanca
Eu trago-te nas mãos o esquecimento Das horas más que tens vivido, Amor! E para as tuas chagas o ungüento Com que sarei a minha própria dor.
Os meus gestos são ondas de Sorrento... Trago no nome as letras duma flor... Foi dos meus olhos garços que um pintor Tirou a luz para pintar o vento...
Dou-te o que tenho: o astro que dormita, O manto dos crepúsculos da tarde, O sol que é de oiro, a onda que palpita.
Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez! Eu sou Aquela de quem tens saudade, A princesa de conto: "Era uma vez..."
Poemas e Poesias quinta, 27 de julho de 2023
A VOZ DO POETA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)
A VOZ DO POETA
Ferreira Gullar
Não é voz de passarinho flauta do mato viola
Não é voz de violão clarinete pianola
É voz de gente (na varanda? na janela? na saudade? na prisão?)
é voz de gente - poema: fogo logro solidão.
Poemas e Poesias quarta, 26 de julho de 2023
DA MINHA IDEIA DO MUNDO (POEMA DO PORTUGUÊS FERANNDO PESSOA)
DA MINHA IDEIA DO MUNDO
Fernando Pessoa
Da minha ideia do mundo Caí... Vácuo além do profundo, Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos De ser pensado como ser... Escada absoluta sem degraus... Visão que se não pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma... Clarão do Desconhecido... Tudo tem outro sentido, ó alma, Mesmo o ter-um-sentido...
Poemas e Poesias terça, 25 de julho de 2023
PÁGINA VAZIA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)
PÁGINA VAZIA
Euclides da Cunha
Quem volta da região assustadora De onde eu venho, revendo, inda na mente, Muitas cenas do drama comovente De guerra despiedada e aterradora.
Certo não pode ter uma sonora Estrofe ou canto ou ditirambo ardente Que possa figurar dignamente Em vosso álbum gentil, minha senhora.
E quando, com fidalga gentileza Cedestes-me esta página, a nobreza De nossa alma iludiu-vos, não previstes
Que quem mais tarde, nesta folha lesse Perguntaria: “Que autor é esse De uns versos tão mal feitos e tão tristes?”
Poemas e Poesias segunda, 24 de julho de 2023
TROVAS HUMORÍSTICAS - 21 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA 21
Eno Teodoro Wanke
Esbrajava um caipora:
– Dormiu com minha mulher?
E o outro, antes de ir-se embora:
– Nem um minuto sequer!
Poemas e Poesias domingo, 23 de julho de 2023
O ETERNO MISTÉRIO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)
O ETERNO MISTÉRIO
Da Costa e Silva
Desde a tarde violácea em que partiste Para tão longe, para não sei onde, Eu vivo a interrogar, calado e triste, A natureza que me não responde.
Falo à estrela no espaço, à flor na fronde, A perguntar em vão se o céu existe; E tudo que a luz mostra e a treva esconde À voz da minha súplica resiste.
Se há um mundo divino, além do humano, Indago; e o vento, as águas, o arvoredo, Têm o mesmo mistério soberano...
A vida não revela esse segredo, Que a morte oculta num sombrio arcano, Que enche os homens de dúvida e de medo.
Poemas e Poesias sábado, 22 de julho de 2023
APARIÇÃO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ SOUSA)
APARIÇÃO
Cruz e Sousa
Por uma estrada de astros e perfumes A Santa Virgem veio ter comigo: Doiravam-lhe o cabelo claros lumes Do sacrossanto resplendor amigo.
Dos olhos divinais no doce abrigo Não tinha laivos de Paixões e ciúmes: Domadora do Mal e do perigo Da montanha da Fe galgara os cumes.
Vestida na alva excelsa dos Profetas Falou na ideal resignação de Ascetas, Que a febre dos desejos aquebranta.
No entanto os olhos dela vacilavam, Pelo mistério, pela dor flutuavam, Vagos e tristes, apesar de Santa!
Poemas e Poesias sexta, 21 de julho de 2023
NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)
NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER
Cesário Verde
Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
Poemas e Poesias quinta, 20 de julho de 2023
PRIMEIRO MOTIVO DA ROSA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
PRIMEIRO MOTIVO DA ROSA
Cecília Meireles
Vejo-te em seda e nácar, e tão de orvalho trêmula, que penso ver, efêmera, toda a Beleza em lágrimas por ser bela e ser frágil.
Meus olhos te ofereço: espelho para a face que terás, no meu verso, quando, depois que passes, jamais ninguém te esqueça.
Então, de seda e nácar, toda de orvalho trêmula, serás eterna. E efêmero o rosto meu, nas lágrimas do teu orvalho... E frágil.
Poemas e Poesias terça, 18 de julho de 2023
O *ADEUS* DE TERESA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)
O "ADEUS" DE TERESA
Castro Alves
A vez primeira que eu fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos levou nos giros seus E amamos juntos E depois na sala "Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala
E ela, corando, murmurou-me: "adeus."
Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . . E da alcova saía um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus Era eu Era a pálida Teresa! "Adeus" lhe disse conservando-a presa
E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"
Passaram tempos sec'los de delírio Prazeres divinais gozos do Empíreo ... Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . " Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"
Quando voltei era o palácio em festa! E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra Preenchiam de amor o azul dos céus. Entrei! Ela me olhou branca surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!
E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"
Poemas e Poesias segunda, 17 de julho de 2023
LEMBRANÇA - NUM ALBUM (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
LEMBRANÇA - NUM ÁLBUM
Casimiro de Abreu
NUM ÁLBUM.
Como o triste marinheiro Deixa em terra uma lembrança, Levando n'alma a esperança E a saudade que consome, Assim nas folhas do álbum Eu deixo meu pobre nome.
E se nas ondas da vida Minha barca for fendida E meu corpo espedaçado, Ao ler o canto sentido Do pobre nauta perdido Teus lábios dirão: - coitado!
Poemas e Poesias domingo, 16 de julho de 2023
AO RECANTO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO
POEMA AO RECANTO
Carlos Pena Filho
Num recanto sem data e sem ternura,
e mais, sem pretensão a ser recanto,
descobri em teu corpo o amargo canto
de quem despenca para a desventura.
Há nos recantos sempre uma segura
desvantagem de unir o desencanto
e é por isto talvez que não me espanto
de ali perder teu corpo e a ventura
de viver entre atento e descuidado,
mirando o pardo tédio que descansa
nos subúrbios do amor desmantelado.
E só para ganhar mais espessura
eu resolvi fazer esta lembrança
de um recanto sem data e sem ternura.
Poemas e Poesias sábado, 15 de julho de 2023
CANÇÃO FINAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRMMOND DE ANDRADE)
CANÇÃO FINAL
Carlos Drummond de Andrade
Oh! se te amei, e quanto! Mas não foi tanto assim. Até os deuses claudicam em nugas de aritmética. Meço o passado com régua de exagerar as distâncias. Tudo tão triste, e o mais triste é não ter tristeza alguma. É não venerar os códigos de acasalar e sofrer. É viver tempo de sobra sem que me sobre miragem. Agora vou-me. Ou me vão? Ou é vão ir ou não ir? Oh! se te amei, e quanto, quer dizer, nem tanto assim.
Poemas e Poesias sexta, 14 de julho de 2023
SONETO 123 - DOCE SONHO, SUAVE E SOBERANO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)
DOCE SONHO, SUAVE E SOBERANO
Soneto 123
Luís de Camões
Doce sonho, suave e soberano, se por mais longo tempo me durara! Ah! quem de sonho tal nunca acordara, pois havia de ver tal desengano!
Ah! deleitoso bem! ah! doce engano, se por mais largo espaço me enganara! Se então a vida mísera acabara, de alegria e prazer morrera ufano.
Ditoso, não estando em mim, pois tive, dormindo, o que acordado ter quisera. Olhai com que me paga meu destino!
Enfim, fora de mim, ditoso estive. Em mentiras ter dita razão era, pois sempre nas verdades fui mofino.
Poemas e Poesias quinta, 13 de julho de 2023
SONETO TO GOZADOR CAÇAOR (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)
SONETO DO GOZADOA CAÇADOR
Bocage
(Grafia original)
"Apre! não mettas todo... Eu mais não posso..."
Assim Marcia formosa me dizia;
— Não sou barbaro (à moça eu respondia)
Brandamente verás como te coço!
"Ai! por Deus, não... não mais, que é grande! e grosso!"
Quem resistir ao seu fallar podia?
Meigamente o conninho lhe battia;
Ella diz "Ah meu bem! meu peito é vosso!"
O rebolar do cu (ah!) não te esqueça
Como és bella, meu bem! (então lhe digo)
Ella em suspiros mil a ardencia expressa.
Por te unir fazer muito ao meu umbigo;
Assim, assim... menina, mais depressa!...
Eu me venho... ai Jesus!... vem-te commigo!
Poemas e Poesias quarta, 12 de julho de 2023
CEM TROVAS - 011 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
TROVA 011
Belmiro Braga
Eu não lamento o revés do morto que se fez pó; do vivo, que espera a vez, desse sim, eu tenho dó.
Poemas e Poesias terça, 11 de julho de 2023
A ILHA DE CYPANGO (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)
A ILHA DE CYPANGO
Augusto dos Anjos
Estou sósinho! A estrada se desdobra Como uma immensa e rutilante cobra De epiderme finissima de areia E por essa finissima epiderme Eis-me passeiando como um grande verme Que, ao sol, em plena podridão, passeia!
A agonia do sol vae ter começo Caio de joelhos, tremulo... Offereço Preces a Deus de amor e de respeito E o Occaso que nas aguas se retrata Nitidamente reproduz, exacta, A saudade interior que ha no meu peito...
Tenho allucinações de toda a sorte... Impressionado sem cessar com a Morte E sentindo o que um lazaro não sente, Em negras nuanças lugubres e aziagas Vejo terribilissimas adagas, Atravessando os ares bruscamente.
Os olhos volvo para o ceu divino E observo-me pygmeu e pequenino Atravez de minusculos espelhos. Assim, quem deante duma cordilheira, Pára, entre assombros, pela vez primeira, Sente vontade de cahir de joelhos!
Sôa o rumor fatidico dos ventos, Annunciando desmoronamentos De mil lagedos sobre mil lagedos... E ao longe sôam tragicos fracassos De heroes, partindo e fracturando os braços Nas pontas escarpadas dos rochedos!
Mas de repente, num enleio doce, Qual se num sonho arrebatado fosse, Na ilha encantada de Cypango tombo, Da qual, no meio, em luz perpetua, brilha A arvore da perpetua maravilha, Á cuja sombra descansou Colombo!
Foi nessa ilha encantada de Cypango, Verde, affectando a forma de um losango, Rica, ostentando amplo floral risonho, Que Toscanelli viu seu sonho extincto E como succedeu a Affonso Quinto Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!
Lembro-me bem. Nesse maldito dia O genio singular da Fantasia Convidou-me a sorrir para um passeio... Iriamos a um paiz de eternas pazes Onde em cada deserto ha mil oasis E em cada rocha um crystallino veio.
Gozei numa hora seculos de affagos, Banhei-me na agua de risonhos lagos E finalmente me cobri de flores... Mas veio o vento que a Desgraça espalha E cobriu-me com o panno da mortalha, Que estou cozendo para os meus amores!
Desde então para cá fiquei sombrio! Um penetrante e corrosivo trio Anesthesiou-me a sensibilidade E a grande golpes arrancou as raizes Que prendiam meus dias infelizes A um sonho antigo de felicidade!
Invoco os Deuses salvadores do erro. A tarde morre. Passa o seu enterro!... A luz descreve zigzags tortos Enviando á terra os derradeiros beijos. Pela estrada feral dous realejos Estão chorando meus amores mortos!
E a treva occupa toda a estrada longa... O Firmamento é unia caverna oblonga Em cujo fundo a Via-lactea existe. E como agora a lua cheia brilha! Ilha maldita vinte vezes a ilha Que para todo o sempre me fez triste!
Poemas e Poesias segunda, 10 de julho de 2023
O LENÇO DELA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
O LENÇO DELA
Álvares de Azevedo
Quando, a primeira vez, da minha terra Deixei as noites de amoroso encanto, A minha doce amante suspirando Volveu-me os olhos úmidos de pranto.
Um romance cantou de despedida, Mas a saudade amortecia o canto! Lágrimas enxugou nos olhos belos... E deu-me o lenço que molhava o pranto.
Quantos anos, contudo, já passaram! Não
olvido porém amor tão santo! Guardo ainda num cofre perfumado O lenço dela que molhava o pranto...
Nunca mais a encontrei na minha vida, Eu contudo, meu Deus, amava-a tanto! Oh! quando eu morra estendam no meu rosto O lenço que eu banhei também de pranto!
Poemas e Poesias domingo, 09 de julho de 2023
NÃO ÉS TU (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)
NÃO ÉS TU
Almeida Garrett
Era assim, tinha esse olhar, A mesma graça, o mesmo ar, Corava da mesma cor, Aquela visão que eu vi Quando eu sonhava de amor, Quando em sonhos me perdi.
Toda assim; o porte altivo, O semblante pensativo, E uma suave tristeza Que por toda ela descia Como um véu que lhe envolvia, Que lhe adoçava a beleza.
Era assim; o seu falar, Ingénuo e quase vulgar, Tinha o poder da razão Que penetra, não seduz; Não era fogo, era luz Que mandava ao coração.
Nos olhos tinha esse lume, No seio o mesmo perfume , Um cheiro a rosas celestes, Rosas brancas, puras, finas, Viçosas como boninas, Singelas sem ser agrestes.
Mas não és tu... ai!, não és: Toda a ilusão se desfez. Não és aquela que eu vi, Não és a mesma visão, Que essa tinha coração, Tinha, que eu bem lho senti.
Poemas e Poesias sábado, 08 de julho de 2023
O GRANDE SONHO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)
O GRANDE SONHO
Alceu Wamosy
... e eu sonho que hás de vir. Sonho que um dia mais ardente e mais bela do que eras, virás encher de graça e de harmonia meu jardim de tristíssimas quimeras.
Sonho que hás de trazer toda a alegria, todo o encanto das tuas primaveras, ou que em um reino antigo de poesia, o meu amor, entre rosais, esperas.
E fico na ilusão de que tu vieste E nesse sonho de ouro mergulhado, o teu vulto alvoral surgindo vejo sobre as próprias feridas que fizeste...
E fico na ilusão de que tu vieste o bálsamo estendendo do teu beijo, sobre as próprias feridas que fizeste...
Poemas e Poesias sexta, 07 de julho de 2023
FONTE OCULTA (POEMA DO FLUMNENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
FONTE OCULTA
Alberto de Oliveira
Entre umas pedras metida,
Rolando clara e modesta,
No coração da floresta
Vive uma fonte escondida.
Receosa de ser ouvida,
Talvez abafando um ai,
Quase sem queixa ou murmúrio
Fluindo vai;
E de ser vista receosa,
O vivo fio adelgaça;
E assim ignorada passa,
Passa ligeira e medrosa.
Tal em alma desditosa
Que já não ama nem crê,
Se escoa um fio de lagrimas
Que ninguém vê...
Poemas e Poesias quinta, 06 de julho de 2023
FASCÍNIO (POMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA
FASCÍNIO
Affonso Romano de Sant'Anna
Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis. Não deveria, dizem. Me esforço. Aliás, já nem me esforço. Abertamente me ponho a admirá-las. Não estou traindo ninguém, advirto. Como pode o amor trair o amor? Amar o amor num outro amor é um ritual que, amante, me permito.
Poemas e Poesias quarta, 05 de julho de 2023
PAIXÃO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)
PAIXÃO
Adélia Prado
De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo. O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita caminhando solta no espaço.
Poemas e Poesias segunda, 03 de julho de 2023
REPOUSO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
REPOUSO
Adalgicsa Nery
Dá-me tua mão
E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos,
Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas.
Dá-me tua mão
E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido,
Te darei por leito a terra amiga
E repousarei tua cabeça envelhecida
Na relva silenciosa dos campos.
Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada.
Poemas e Poesias domingo, 02 de julho de 2023
A MORTE DE MADRUGADA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A MORTE DE MADRUGADA
Vinícius de Moraes
Muerto cayó Federico. Antonio Machado
Uma certa madrugada Eu por um caminho andava Não sei bem se estava bêbado Ou se tinha a morte n'alma Não sei também se o caminho Me perdia ou encaminhava Só sei que a sede queimava-me A boca desidratada. Era uma terra estrangeira Que me recordava algo Com sua argila cor de sangue E seu ar desesperado. Lembro que havia uma estrela Morrendo no céu vazio De uma outra coisa me lembro: ... Un horizonte de perros Ladra muy lejos del río...
De repente reconheço: Eram campos de Granada! Estava em terras de Espanha Em sua terra ensangüentada Por que estranha providência Não sei... não sabia nada... Só sei da nuvem de pó Caminhando sobre a estrada E um duro passo de marcha Que em meu sentido avançava.
Como uma mancha de sangue Abria-se a madrugada Enquanto a estrela morria Numa tremura de lágrima Sobre as colinas vermelhas Os galhos também choravam Aumentando a fria angústia Que de mim transverberava.
Era um grupo de soldados Que pela estrada marchava Trazendo fuzis ao ombro E impiedade na cara Entre eles andava um moço De face morena e cálida Cabelos soltos ao vento Camisa desabotoada. Diante de um velho muro O tenente gritou: Alto! E à frente conduz o moço De fisionomia pálida. Sem ser visto me aproximo Daquela cena macabra Ao tempo em que o pelotão Se dispunha horizontal.
Súbito um raio de sol Ao moço ilumina a face E eu à boca levo as mãos Para evitar que gritasse. Era ele, era Federico O poeta meu muito amado A um muro de pedra seca Colado, como um fantasma. Chamei-o: Garcia Lorca! Mas já não ouvia nada O horror da morte imatura Sobre a expressão estampada... Mas que me via, me via Porque em seus olhos havia Uma luz mal-disfarçada. Com o peito de dor rompido Me quedei, paralisado Enquanto os soldados miram A cabeça delicada.
Assim vi a Federico Entre dois canos de arma A fitar-me estranhamente Como querendo falar-me. Hoje sei que teve medo Diante do inesperado E foi maior seu martírio Do que a tortura da carne. Hoje sei que teve medo Mas sei que não foi covarde Pela curiosa maneira Com que de longe me olhava Como quem me diz: a morte É sempre desagradável Mas antes morrer ciente Do que viver enganado.
Atiraram-lhe na cara Os vendilhões de sua pátria Nos seus olhos andaluzes Em sua boca de palavras. Muerto cayó Federico Sobre a terra de Granada La tierra del inocente No la tierra del culpable. Nos olhos que tinha abertos Numa infinita mirada Em meio a flores de sangue A expressão se conservava Como a segredar-me: - A morte É simples, de madrugada...
Poemas e Poesias sábado, 01 de julho de 2023
SERENATA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)
SERENATA
Vicente de Carvalho
Pela vasta noite indolente Voga um perfume estranho. Eu sonho... E aspiro o vago aroma ausente Do teu cabello castanho.
Pela vasta noite tranquilla Pairam, longe, as estrellas. Eu sonho... O teu olhar tambem scintilla Assim, tão longe como ellas.
Pela vasta noite povoada De rumores e arquejos Eu sonho... E’ tua voz, entrecortada De suspiros e de beijos.
Pela vasta noite sem termo, Que deserto sombrio! Eu sonho... Inda é mais triste, inda é mais ermo O nosso leito vasio.
Pela vasta noite que finda Sóbe o dia risonho... E eu cerro os olhos para ver-te ainda, Ainda e sempre, em meu sonho.
Poemas e Poesias sexta, 30 de junho de 2023
QUANDO O SANTO GUERREIRO ENTREGA AS PONTAS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)
QUANDO O SANTO GUERREIRO ENTGREGA AS PONTAS
Torquato Neto
nada de mais: o muro pintado de verde e ninguém que precise dizer-me que esse verde que não quero verde lírico mais planos e mais planos se desfaz: nada demais: aqui de dentro eu pego e furo a fogo e luz (é movimento) vosso sistema protetor de incêndios e pinto a tela o muro diferente porque uso como quero minhas lentes e filmo o verde, que eu não temo o verde, de outra cor: diariamente encaro bem de perto e escarro sobre o muro: nada demais
a fruta não está verde nem madura é dura e dura e dura o tempo contratempo de escolher o enquadramento melhor — ver do outro lado com olhos livres (nem deus nem diabo), projetar lado de dentro — a luz mais pura embora a sala do cinema seja escura: nada demais: planos gerais sobre a paisagem sobre o muro da passagem proibida enquanto procuramos (encontramos) infinitas brechas escondidas. cuidado madame. nada de mais: cadê o câncer daquela tarde alucinante? ai de mim, copacabana, desvairada, mon amour. nada de mais na tela do cinema oficial: já não estamos nos formando com o tal, o general da banda do cinema que deserta: a arqueologia é na cinemateca. esquece. e tudo começou de novo e já acontece (sentença de deus) e o resto aconteceu: the end. fim. não falem mais dessa mulher perto de mim. depois da fruta podreverde que apodrece — a tela livre de quem só tem memória a aí só conta história, o muro iluminado de outra cor e outra glória pois quem não morre não deserta nem se entrega desprega o comovido verde lírico e apronta e inventa e acontece com o perigo (poesia) a imagem nova — o arco tenso os nove fora (tema: cinema: lema) a prova.
Poemas e Poesias quinta, 29 de junho de 2023
FIO DE VIDA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)
FIO DE VIDA
Thiago de Mello
Já fiz mais do que podia Nem sei como foi que fiz. Muita vez nem quis a vida a vida foi quem me quis.
Para me ter como servo? Para acender um tição na frágua da indiferença? Para abrir um coração
no fosso da inteligência? Não sei, nunca vou saber. Sei que de tanto me ter, acabei amando a vida.
Vida que anda por um fio, diz quem sabe. Pode andar, contanto (vida é milagre) que bem cumprido o meu fio.
Poemas e Poesias quarta, 28 de junho de 2023
FRAGMENTOS DO MAR (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)
FRAGMENTOS DO MAR
Sousândrade
Meneia a larga cauda e as barbatanas Limoso leviatã cheio de conchas Com dorso de rochedo que ondas cercam; Cristalinos pendões planta nas ventas, De brilhantes vapores, que em bandeiras Íris enrolam de formosa sombra. Negra fragata lá circula as asas Sobre a nuvem dos peixes voadores. Agora rompe a nau lençóis infindos Que o mar tépido choca, e vindo a aurora Já salta a criação d'escamas belas.
Poemas e Poesias terça, 27 de junho de 2023
COMPLETUDE (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)
COMPLETUDE
Ricardo Lima
A profundidade humana que lamenta, adentra
Sensatez insensata, imediata
Nó e pauta, desata, ata.
A completude humana, emana, insensata, mata.
Poemas e Poesias segunda, 26 de junho de 2023
LEGENDA DOS DIAS (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)
LEGENDA DOS DIAS
Rau de Leôni
O Homem desperta e sai cada alvorada Para o acaso das cousas... e à saída, Leva uma crença vaga, indefinida, De achar o ideal nalguma encruzilhada...
As horas morrem sobre as horas... Nada! E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida, Volta pensando: "Se o Ideal da Vida Não veio hoje, virá na outra jornada “...
Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim, Mais ele avança, mais distante é o fim, Mais se afasta o horizonte pela esfera...
E a Vida passa... efêmera e vazia; Um adiamento eterno que se espera, Numa eterna esperança que se adia...
Poemas e Poesias domingo, 25 de junho de 2023
SOU CABRA DA PESTE (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)
SOU CABRA DA PESTE
Patativa do Assaré
Eu sou de uma terra que o povo padece Mas nunca esmorece, procura vencê, Da terra adorada, que a bela caboca De riso na boca zomba no sofrê.
Não nego meu sangue, não nego meu nome, Olho para fome e pergunto: o que há? Eu sou brasilêro fio do Nordeste, Sou cabra da peste, sou do Ceará.
Tem munta beleza minha boa terra, Derne o vale à serra, da serra ao sertão. Por ela eu me acabo, dou a própria vida, É terra querida do meu coração.
Meu berço adorado tem bravo vaquêro E tem jangadêro que domina o má. Eu sou brasilêro fio do Nordeste, Sou cabra da peste, sou do Ceará.
Ceará valente que foi munto franco Ao guerrêro branco Soare Moreno, Terra estremecida, terra predileta Do grande poeta Juvená Galeno.
Sou dos verde mare da cô da esperança, Que as água balança pra lá e pra cá. Eu sou brasilêro fio do Nordeste, Sou cabra da peste, sou do Ceará.
Ninguém me desmente, pois, é com certeza, Quem qué vê beleza vem ao Cariri, Minha terra amada pissui mais ainda, A muié mais linda que tem o Brasí.
Terra da jandaia, berço de Iracema, Dona do poema de Zé de Alencá. Eu sou brasilêro fio do Nordeste, Sou cabra da peste, sou do Ceará.
Poemas e Poesias sábado, 24 de junho de 2023
DE PAPO PRO AR (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)
DE PAPO PRO AR
Olegário Mariano
Eu não quero outra vida
Pescando no rio de Jereré
Tenho peixe bom
Tem siri patola
Que dá com o pé
Quando no terreiro
Faz noite de luar
E vem a saudade me atormentar
Eu me vingo dela
Tocando viola de papo pro ar
Se compro na feira
Feijão, rapadura
Pra que trabalhar
Sou filho do homem
E o homem não deve
Se apoquentar
Poemas e Poesias sexta, 23 de junho de 2023
CÉSAR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)
CÉSAR
Olavo Bilac
Na ilha de Seine. O mar brame na costa bruta.
Gemem os bardos. Triste, o olhar por céus em fora
Uma druidisa alonga, e os astros mira, e chora
De pé, no limiar de tenebrosa gruta.
Abandonou-te o deus que a tua raça adora,
Pobre filha de Teut! César aí vem! Escuta
O passo das legiões! ouve o fragor da luta
E o alto e crebro clangor da bucina sonora!
Dos Alpes, sacudindo as asas de ouro ao vento,
As grandes águias sobre os domínios gauleses
Descem, escurecendo o azul do firmamento...
E já, do Interno mar ao mar Armoricano,
Retumba o entrechocar dos rútilos paveses
Que carregam a glória o imperador romano.
Poemas e Poesias quinta, 22 de junho de 2023
O MAPA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)
O MAPA
Mário Quintana
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso…
Poemas e Poesias quarta, 21 de junho de 2023
ENQUANTO A CHUVA CAI (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)
ENQUANTO A CHUVA CAI
Manuel Bandeira
A chuva cai. O ar fica mole . . . Indistinto . . . ambarino . . . gris . . . E no monótono matiz Da névoa enovelada bole A folhagem como o bailar.
Torvelinhai, torrentes do ar!
Cantai, ó bátega chorosa, As velhas árias funerais. Minh’alma sofre e sonha e goza À cantilena dos beirais.
Meu coração está sedento De tão ardido pelo pranto. Dai um brando acompanhamento À canção do meu desencanto.
Volúpia dos abandonados . . . Dos sós . . . — ouvir a água escorrer, Lavando o tédio dos telhados Que se sentem envelhecer . . .
Ó caro ruído embalador, Terno como a canção das amas! Canta as baladas que mais amas, Para embalar a minha dor!
A chuva cai. A chuva aumenta. Cai, benfazeja, a bom cair! Contenta as árvores! Contenta As sementes que vão abrir!
Eu te bendigo, água que inundas! Ó água amiga das raízes, Que na mudez das terras fundas Às vezes são tão infelizes!
E eu te amo! Quer quando fustigas Ao sopro mau dos vendavais As grandes árvores antigas, Quer quando mansamente cais.
É que na tua voz selvagem, Voz de cortante, álgida mágoa, Aprendi na cidade a ouvir Como um eco que vem na aragem A estrugir, rugir e mugir, O lamento das quedas-d’água!
Poemas e Poesias terça, 20 de junho de 2023
O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)
O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA
Manoel de Barros
Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio, do que do cheio. Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito, porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Poemas e Poesias segunda, 19 de junho de 2023
HISTÓRIA DE UNS BEIJOS (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)
HISTÓRIA DE UNS BEIJOS
Júlio Dinis
Ouvi gabar os beijosDizer deles tanto bemQue me nasceram desejosDe provar alguns também.Esta fruta não é raraMas nem toda tem valorA melhor é muito caraE a barata é sem sabor.Colhi-os dos mais mimososProvei três; mas por meu mal,Ao princípio saborososAmargaram-me afinal.Um colhi eu de uma belaQue era Rosa, sem ser flor,Se tinha espinhos como ela,Dela também tinha a cor.Vi-a a dormir e furtei-lheUm beijo que a acordou.Eu gostei, porém causei-lheTal susto que desmaiou.Logo que a vi sem sentidosFugi sem outro lhe dar,Dois beijos sem ser pedidosNão são coisa para brincar.Porém deste beijo aindaPouco tive que dizer,Pois a tal Rosa, era lindaE tornou a reviver.
Poemas e Poesias domingo, 18 de junho de 2023
VELHO TEMA - A SAUDADE (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)
VELHO TEMA - A SAUDADE
Jorge de Lima
Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?
— Chama que já passou mas que assim mesmo é chama...
A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.
Que de longe me acena e me fascina e chama...
Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:
Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama...
..Um segredo de amor que se desfaz e mente...
Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?
Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,
Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente
Te ficaste gozando uma saudade boa?
Se vês que em teu passado uma saudade adeja,
— Faze que uma saudade a ti seja o presente!
— Faze que tua morte uma saudade seja!
Poemas e Poesias sábado, 17 de junho de 2023
SEVILHA EM CASA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)
SEVILHA EM CASA
João Cabral de Melo Neto
Tenho Sevilha em minha casa. Não sou eu que está chez Sevilha. É Sevilha em mim, minha sala. Sevilha e tudo o que ela afia.
Sevilha veio a Pernambuco porque Aloísio lhe dizia que o Capibaribe e o Guadalquivir são de uma só maçonaria.
Eis que agora Sevilha cobra onde a irmandade que haveria: faço vir as pressas ao Porto Sevilhana além de Sevilha.
Sevilhana que além do Atlântico vivia o trópico na sombra fugindo os sóis Copacabana traz grossas cortinas de lona.
Poemas e Poesias sexta, 16 de junho de 2023
FALTA DE AR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)
FALTA DE AR
J. G. de Araújo Jorge
Há dias que posso passar sem sol, sem luz, sem pão, sem tudo enfim...
( Tenho até a impressão de que não preciso de nada... ... nem mesmo de mim...)
Mas há dias, amor... ( e parece mentira) - nem eu sei explicar o porquê de tão grande aflição -
em que não posso passar sem Você um segundo que seja! - de repente preciso encontrá-la, é preciso que a veja -
- Você é o ar com que respira meu coração !
Poemas e Poesias quinta, 15 de junho de 2023
PASSEIO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST
PASSEIO
Hilda Hilst
De um exílio passado entre a montanha e a ilha Vendo o não ser da rocha e a extensão da praia. De um esperar contínuo de navios e quilhas Revendo a morte e o nascimento de umas vagas. De assim tocar as coisas minuciosa e lenta E nem mesmo na dor chegar a compreendê-las. De saber o cavalo na montanha. E reclusa Traduzir a dimensão aérea do seu flanco. De amar como quem morre o que se fez poeta E entender tão pouco seu corpo sob a pedra. E de ter visto um dia uma criança velha Cantando uma canção, desesperando, É que não sei de mim. Corpo de terra.
Poemas e Poesias quarta, 14 de junho de 2023
LUAR DE PAQUETÁ (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)
LUAR DE PAQUETÁ
Hermes Fontes
Nessas noites olorosas, quando o mar, desfeito em rosas se desfolha a lua cheia, lembra a Ilha um ninho oculto, onde o Amor celebra, em culto, todo encanto que a rodeia. Nos canteiros ondulantes, as Nereidas, incessantes, abrem lírios ao luar… A água, em prece, burburinha, e, em redor da capelinha, vai rezando o verbo amar. . Pensamento de quem ama, hóstia azul, fervendo em chama, entre lábios separados… Pensamento de quem ama, leva o meu radiograma ao jardim dos namorados! Onde é esse paraíso, o caminho que idealizo, na ascensão para esse altar? Paquetá é um céu profundo que começa nesse mundo, mas não sabe onde acabar… . Sobre o mar de azul rendado, que é toalha de um noivado, surge a Ilha-taça erguida: E o luar-vinho doirado – enche a taça do Passado que embriaga a nossa vida! Ai! que filtro milagroso, para a mágoa e para o gozo, para a eterna Inspiração: o Luar, na mocidade, abre as rosas da saudade dentro em nosso coração.
Estribilho: Jardim de afetos, pombal de amores Humildes tetos de pescadores… Se a lua brilha, que bem nos dá Amar na Ilha de Paquetá
Poemas e Poesias terça, 13 de junho de 2023
HAICAIS DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA
HAICAIS
Guilherme de Almeida
O PENSAMENTO
O ar. A folha. A fuga. No lago, um círculo vago. No rosto, uma ruga.
HORA DE TER SAUDADE
Houve aquele tempo... (E agora, que a chuva chora, ouve aquele tempo!)
INFÂNCIA
Um gosto de amora comida com sol. A vida chamava-se "Agora".
CIGARRA
Diamante. Vidraça. Arisca, áspera asa risca o ar. E brilha. E passa.
CONSOLO
A noite chorou a bolha em que, sobre a folha, o sol despertou.
CHUVA DE PRIMAVERA
Vê como se atraem nos fios os pingos frios! E juntam-se. E caem.
NOTURNO
Na cidade, a lua: a jóia branca que bóia na lama da rua.
OS ANDAIMES
Na gaiola cheia (pedreiros e carpinteiros) o dia gorjeia.
TRISTEZA
Por que estás assim, violeta? Que borboleta morreu no jardim?
PESCARIA
Cochilo. Na linha eu ponho a isca de um sonho. Pesco uma estrelinha.
JANEIRO
Jasmineiro em flor. Ciranda o luar na varanda. Cheiro de calor.
DE NOITE
Uma árvore nua aponta o céu. Numa ponta brota um fruto. A lua?
FRIO
Neblina? ou vidraça que o quente alento da gente, que olha a rua, embaça?
FESTA MÓVEL
Nós dois? - Não me lembro. Quando era que a primavera caía em setembro?
ROMANCE
E cruzam-se as linhas no fino tear do destino. Tuas mãos nas minhas.
Poemas e Poesias segunda, 12 de junho de 2023
O PRIMEIRO FILHO (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)
O PRIMEIRO FILHO
Guerra Junqueiro
(Carta ao amigo Bernardo Pindela)
Entre tanta miséria e tantas coisas vis Deste vil grão de areia, Ainda tenho o condão de me sentir feliz Com a ventura alheia.
À minha noite triste, à noite tormentosa, Onde busco a verdade, Chegou com asas d'oiro a canção cor-de-rosa Da tua felicidade.
És pai, viste nascer um fragmento d'aurora Da tua alma, de ti... Oh, momento divino em que o sorriso chora, E em que o pranto sorri!
Que ventura radiante! oh que ventura infinda! Olímpicos amores Ter frutos em Abril com o vergel ainda Carregado de flores!
Deslumbramento!... ver num berço o teu futuro Sorrindo ao teu presente!... Ter a mulher e a mãe: juntar o beijo puro Com o beijo inocente!...
Eu que vou, javali de flanco ensanguentado, Pelos rudes caminhos Ajoelho quando escuto à beira dum valado Os murmúrios dos ninhos!
Em tudo que alvorece há um sorriso d'esperança, Candura imaculada!... E quer seja na flor, quer seja na criança Sente-se a madrugada.
Quando, como um aroma, o hálito da infância Passa nos lábios meus Vejo distintamente encurtar-se a distância Entre a minh'alma e Deus.
A mão para apontar o azul, mão cor-de-rosa Que aconselha e domina, Será tanto mais forte e tanto mais bondosa Quanto mais pequenina.
Poemas e Poesias domingo, 11 de junho de 2023
DESEJO INÚTIL (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)
DESEJO INÚTIL
Francisca Júlia
[Ao querido mestre e amigo
Vicente de Carvalho]
Qualquer cousa afinal de belo escolher devo
Para em verso plasmar no esforço da obra prima:
Flor que viceja á sombra, aza que paira em cima,
Aroma de um pomar ou de um campo de trevo.
Aroma, ou asa, ou flor... Tudo o que diga e exprima
Perde, ao moldar-se em verso, o seu próprio relevo,
Porque sinto, mau grado a gloria com que escrevo,
Presa a imaginação no limite da rima.
Não vai pois provocar, e sem que isto te praza,
Minh′ alma, e por amor d′ arte que se não doma,
A mágoa que te dói e a febre que te abrasa:
O aroma, sente! Est’asa, admira! esta flor, toma!
Mas deixa continuar inexprimidas a asa,
A beleza da flor e a frescura do aroma.
Poemas e Poesias sábado, 10 de junho de 2023
NESTA AUSÊNCIA (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)
NESTA AUSÊNCIA
Gilka Machado
Nesta ausência que me excita, tenho-te, à minha vontade, numa vontade infinita... Distância, sejas bendita! Bendita sejas, saudade!
Teu nome lindo...Ao dizê-lo queimo os lábios, meu amor! - O teu nome é um setestrelo na noite da minha dor.
Nunca digas com firmeza que a mágoa apenas crucia: a saudade é uma tristeza, que nos dá tanta alegria!
Passo horas calada e queda, a rever, a relembrar as duas asas de seda do teu langoroso olhar.
Se a mágoa nos não conforta, por que é que a felicidade tem mais sabor quando morta, depois que se faz saudade?
Poemas e Poesias sexta, 09 de junho de 2023
CASTELÃ DA TRISTEZA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)
CASTELÃ DA TRISTEZA
Florbela Espanca
Altiva e couraçada de desdém, Vivo sozinha em meu castelo: a Dor! Passa por ele a luz de todo o amor ... E nunca em meu castelo entrou alguém!
Castelã da Tristeza, vês? ... A quem? ... – E o meu olhar é interrogador – Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr ... Chora o silêncio ... nada ... ninguém vem ...
Castelã da Tristeza, porque choras Lendo, toda de branco, um livro de horas, À sombra rendilhada dos vitrais? ...
À noite, debruçada, plas ameias, Porque rezas baixinho? ... Porque anseias? ... Que sonho afagam tuas mãos reais? ...
Poemas e Poesias quinta, 08 de junho de 2023
A ALEGRIA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)
A ALEGRIA
Ferreira Gullar
O sofrimento não tem nenhum valor Não acende um halo em volta de tua cabeça, não ilumina trecho algum de tua carne escura (nem mesmo o que iluminaria a lembrança ou a ilusão de uma alegria).
Sofres tu, sofre um cachorro ferido, um inseto que o inseticida envenena. Será maior a tua dor que a daquele gato que viste a espinha quebrada a pau arrastando-se a berrar pela sarjeta sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça não. A dor te iguala a ratos e baratas que também de dentro dos esgotos
espiam o sol e no seu corpo nojento de entre fezes querem estar contentes.
Poemas e Poesias quarta, 07 de junho de 2023
DÁ A SURPRESA DE SER (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)
DÁ A SURPRESA DE SER
Fernando Pessoa
Dá a surpresa de ser
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?
Poemas e Poesias terça, 06 de junho de 2023
OS LÊMURES (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)
OS LÊMURES
Euclides da Cunha
Ó minha musa — imaculada e santa! Deixa um momento os sonhos teus benditos Despe os teus véus de noiva do ideal Deixa-os, despe-os e canta Sobre as ruínas trágicas do mal As almas arruinadas dos malditos!…
Poemas e Poesias segunda, 05 de junho de 2023
TROVAS HUMORÍSTICAS - 20 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA 20
Eno Teodoro Wanke
O mesmo vento que agita
As saias e expõe, trocista
Alguma perna bonita
Nos joga areia na vista
Poemas e Poesias domingo, 04 de junho de 2023
O BEATA SOLITUDO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)
O BEATA SOLITUDO
Da Costa e Silva
Amada solidão, silêncio amigo, Vosso convívio me é tão grato e ameno Que, voluntariamente, me condeno A viver só, para vos ter comigo.
Alheio ao mundo, como um poeta antigo, Noto, isolado, que ao mais leve aceno, Me vêm, em ronda, ao espírito sereno As idéias e imagens que persigo...
Solidão! vem de ti o êxtase infindo Em que sinto, em constantes primaveras, Meu ser a natureza refletindo...
Silêncio! enchendo o espaço onde me esperas, Sonho, como Pitágoras, ouvindo A harmonia divina das esferas.
Poemas e Poesias sábado, 03 de junho de 2023
ANTÍFONA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)
ANTÍFONA
Cruz e Sousa
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas!... Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras...
5Formas do Amor, constelarmente puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas, 10Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... 15Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versos 20Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades Que fuljam, que na Estrofe se levantem E as emoções, todas as castidades Da alma do Verso, pelos versos cantem.
25Que o pólen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça 30De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passa Do Éter nas róseas e áureas correntezas...
Cristais diluídos de clarões álacres, Desejos, vibrações, ânsias, alentos, 35Fulvas vitórias, triunfamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas De amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas 40Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhões quiméricos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalístico da Morte...
Poemas e Poesias sexta, 02 de junho de 2023
SONETO IV (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANOEL DA COSTA)
SONETO IV
Cláudio Manuel da Costa
Sou pastor; não te nego; os meus montados São esses, que aí vês; vivo contente Ao trazer entre a relva florescente A doce companhia dos meus gados;
Ali me ouvem os troncos namorados, Em que se transformou a antiga gente; Qualquer deles o seu estrago sente; Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia Firmes vos contemplastes, e seguros Nos braços de uma bela companhia;
Consolai-vos comigo, ó troncos duros; Que eu alegre algum tempo assim me via; E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
Poemas e Poesias quinta, 01 de junho de 2023
MANIAS! (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)
MANIAS!
Cesário Verde
O mundo é velha cena ensanguentada, Coberta de remendos, picaresca; A vida é chula farsa assobiada, Ou selvagem tragédia romanesca.
Eu sei um bom rapaz, -- hoje uma ossada, -- Que amava certa dama pedantesca, Perversíssima, esquálida e chagada, Mas cheia de jactância quixotesca.
Aos domingos a deia já rugosa, Concedia-lhe o braço, com preguiça, E o dengue, em atitude receosa,
Na sujeição canina mais submissa, Levava na tremente mão nervosa, O livro com que a amante ia ouvir missa!
Poemas e Poesias quarta, 31 de maio de 2023
PARA IR À LUA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
PARA IR À LUA
Cecília Meireles
Enquanto não têm foguetes para ir à Lua os meninos deslizam de patinete pelas calçadas da rua.
Vão cegos de velocidade: mesmo que quebrem o nariz, que grande felicidade! Ser veloz é ser feliz.
Ah! se pudessem ser anjos de longas asas! Mas são apenas marmanjos.
Poemas e Poesias segunda, 29 de maio de 2023
O VOO DO GÊNIO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)
O VOO DO GÊNIO
Castro Alves
À ATRIZ EUGÊNIA CÂMARA
Um dia, em que na terra a sós vagava Pela estrada sombria da existência, Sem rosas — nos vergéis da adolescência, Sem luz destrela — pelo céu do amor; Senti as asas de um arcanjo errante Roçar-me brandamente pela fronte, Como o cisne, que adeja sobre a fonte, As vezes toca a solitária flor.
E disse então: "Quem és, pálido arcanjo! Tu, que o poeta vens erguer do pego? Eras acaso tu, que Milton cego Ouvia em sua noite erma de sol? Quem és tu? Quem és tu?" — "Eu sou o gênio", Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo, Quero contigo me arrojar no espaço, Onde tenho por croas o arrebol".
"Onde me levas, pois?.. . " — "Longe te levo Ao país do ideal, terra das flores, Onde a brisa do céu tem mais amores E a fantasia — lagos mais azuis. . . " E fui... e fui... ergui-me no infinito, Lá onde o vôo dáguia não se eleva... Abaixo — via a terra — abismo em treva! Acima — o firmamento — abismo em luz!
"Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!" — "Não, poeta, é o vedado paraíso, Onde os lírios mimosos do sorriso Eu abro em todo o seio, que chorou, Onde a loura comédia canta alegre, Onde eu tenho o condão de um gênio infindo, Que a sombra de Molière vem sorrindo Beijar na fronte, que o Senhor beijou. . . "
"Onde me levas mais, anjo divino?" — "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas, O canto das esferas namoradas, Quando eu encho de amor o azul dos céus. Quero levar-te das paixões nos mares. Quero levar-te a dédalos profundos, Onde refervem sóis... e céus... e mundos... Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é rneu...
"Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia: A brisa morna, a sombra do arvoredo, A linfa clara, que murmura a medo, A luz que abraça a flor e o céu ao mar. Ó princesa, a razão já se me perde, És a sereia da encantada Sila. Anjo, que transformaste-te em Dalila, Sansão de novo te quisera amar!
"Porém não paras neste vôo errante! A que outros mundos elevar-me tentas? Já não sinto o soprar de auras sedentas, Nem bebo a taça de um fogoso amor. Sinto que rolo em báratros profundos... Já não tens asas, águia da Tessália, Maldições sobre ti... tu és Onfália, Ninguém te ergue das trevas e do horror.
"Porém silêncio! No maldito abismo, Onde caí contigo criminosa, Canta uma voz, sentida e maviosa, Que arrependida sobe a Jeová! Perdão! Perdão! Senhor, pra quem soluça, Talvez seja algum anjo peregrino... ... Mas não! inda eras tu, gênio divino, Também sabes chorar, como Eloá!
"Não mais, ó serafim! suspende as asas! Que, através das estrelas arrastado, Meu ser arqueja louco, deslumbrado, Sobre as constelações e os céus azuis. Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo Mergulhei das paixões nas vagas cérulas... Mas nos meus dedos — já não cabem — pérolas — Mas na minhalma — já não cabe — luz!...
Poemas e Poesias domingo, 28 de maio de 2023
SONHANDO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
SONHANDO
Casimiro de Abreu
Um dia, oh linda, embalada Ao canto do gondoleiro, Adormeceste inocente No teu delírio primeiro, - Por leito o berço das ondas, Meu colo por travesseiro!
Eu, pensativo, cismava Nalgum remoto desgosto, Avivado na tristeza Que a tarde tem, ao sol-posto, E ora mirava as nuvens, Ora fitava teu rosto.
Sonhavas então, querida, E presa de vago anseio Debaixo das roupas brancas Senti bater o teu seio, E meu nome num soluço À flor dos lábios te veio!
Tremeste como a tulipa Batida do vento frio... Suspiraste como a folha Da brisa ao doce cicio... E abriste os olhos sorrindo Às águas quietas do rio!
Depois - uma vez - sentados Sob a copa do arvoredo, Falei-te desse soluço Que os lábios abriu-te a medo... - Mas tu, fugindo, guardaste Daquele sonho o segredo!...
Poemas e Poesias sábado, 27 de maio de 2023
SONETO (POEMA DO PENRAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)
SONETO
Carlos Pena Filho
O quanto perco em luz conquisto em sombra. E é de recusa ao sol que me sustento. Às estrelas, prefiro o que se esconde Nos crepúsculos graves dos conventos.
Humildemente envolvo-me na sombra que veste, à noite, os cegos monumentos isolados nas praças esquecidas e vazios de luz e movimento.
Não sei se entendes: em teus olhos nasce a noite côncava e profunda, enquanto clara manhã revive em tua face.
Daí amar teus olhos mais que o corpo com esse escuro e amargo desespero com que haverei de amar depois de morto.
Poemas e Poesias sexta, 26 de maio de 2023
CANÇÃO AMIGA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
CANÇÃO AMIGA
Carlos Drummond de Andrade
Eu preparo uma canção Em que minha mãe se reconheça Todas as mães se reconheçam E que fale como dois olhos
Caminho por uma rua Que passa em muitos países Se não me veem, eu vejo E saúdo velhos amigos
Eu distribuo um segredo Como quem ama ou sorri No jeito mais natural Dois carinhos se procuram
Minha vida, nossas vidas Formam um só diamante Aprendi novas palavras E tornei outras mais belas
Eu preparo uma canção Que faça acordar os homens E adormecer as crianças
Poemas e Poesias quinta, 25 de maio de 2023
SONETO 22 - DOCE CONTENTAMENTO JÁ PASSADO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)
DOCE CONTENTAMENTO JÁ PASSASO
Soneto 122
Luís de Camões
Doce contentamento já passado, em que todo o meu bem já consistia, quem vos levou de minha companhia e me deixou de vós tão apartado?
Quem cuidou que se visse neste estado naquelas breves horas de alegria, quando minha ventura consentia que de enganos vivesse meu cuidado?
Fortuna minha foi cruel e dura aquela, que causou meu perdimento, com a qual ninguém pode ter cautela.
Nem se engane nenhüa criatura, que não pode nenhum impedimento fugir do que ordena sua estrela.
Poemas e Poesias quarta, 24 de maio de 2023
SONETO DAS GLÓRIAS CARNAIS (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)
SONETO DAS GLÓRIAS CARNAIS
Bocage
Soneto localizado em um caderno onde poemas de Bocage e de Pedro José Constâncio
estavam misturados, não tendo se chegado em nenhuma conclusão definitiva sobre a
autoria do mesmo.
Cante a guerra quem for arrenegado,
Que eu nem palavra gastarei com ele;
Minha Musa será sem par canela
Co'um felpudo coninho abraseado:
Aqui descreverei com arreitado
N'um mar de bimbas navegando à vela,
Cheguei, propício o vento, à doce, àquela
Enseada d'Amor, rei coroado:
Direi também os beijos sussurrantes,
Os intrincados nós das línguas ternas,
E o aturado fungar de dois amantes :
Estas glórias serão na fama eternas;
Às minhas cinzas me farão descantes
Fêmeos vindouros, alargando as pernas.
Poemas e Poesias terça, 23 de maio de 2023
CEM TROVAS - 010 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
TROVA 010
Belmiro Braga
Muitas vezes imagino Nos meus dias desolados Que o meu coração é um sino Dobrando sempre a finados
Poemas e Poesias segunda, 22 de maio de 2023
VENCEDOR (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)
V
V
VENCEDOR
Augusto dos Anjos
Toma as espadas rútilas, guerreiro, E à rutilância das espadas, toma A adaga de aço, o gládio de aço, e doma Meu coração – estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro E o mais possante gladiador de Roma. E qual mais pronto, e qual mais presto assoma Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas. Veio depois um domador de hienas E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem… E não pôde domá-lo, enfim, ninguém, Que ninguém doma um coração de poeta!
Poemas e Poesias domingo, 21 de maio de 2023
LEMBRANÇAS DE MORRER (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
LEMBRANÇAS DE MORRER
Álvares de Azevedo
No more! O never more! SHELLEY
Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poento caminheiro… Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro…
Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia, Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade — e dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas… E de ti, ó minha mãe! pobre coitada Que por minhas tristezas te definhas!
De meu pai… de meus únicos amigos, Poucos, — bem poucos! e que não zombavam Quando, em noites de febre endoidecido, Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei!… que nunca Aos lábios me encostou a face linda!
Ó tu, que à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores… Se vivi… foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo… Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu! eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz! e escrevam nela: — Foi poeta, sonhou e amou na vida. —
Sombras do vale, noites da montanha, Que minh’alma cantou e amava tanto, Protejei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-lhe um canto!
Mas quando preludia ave d’aurora E quando, à meia-noite, o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri as ramas… Deixai a lua pratear-me a lousa!
Poemas e Poesias sábado, 20 de maio de 2023
NÃO TE AMO (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)
NÃO TE AMO
Almeida Garrett
Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma. E eu n’alma - tenho a calma, A calma - do jazigo. Ai! não te amo, não. Não te amo, quero-te: o amor é vida. E a vida - nem sentida A trago eu já comigo. Ai, não te amo, não! Ai! não te amo, não; e só te quero De um querer bruto e fero Que o sangue me devora, Não chega ao coração. Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela. Quem ama a aziaga estrela Que lhe luz na má hora Da sua perdição? E quero-te, e não te amo, que é forçado, De mau, feitiço azado Este indigno furor. Mas oh! não te amo, não. E infame sou, porque te quero; e tanto Que de mim tenho espanto, De ti medo e terror... Mas amar!... não te amo, não.
Poemas e Poesias sexta, 19 de maio de 2023
NOTURNO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)
NOTURNO
Alceu Wamosy
Tu pensarás em mim, por esta noite imensa e erma, em que tudo é um frio e um silêncio profundo? Tu pensarás em mim? Por esta noite, enfermo, tendo os olhos em febre e a voz cheia de sustos, eu penso em ti, no teu amor e na promessa muda que o teu olhar me fez e que eu espero.
(Que dor de não saber se tu pensas em mim!)
Sob a tenda da noite estrelada de outono, que eu contemplo através os cristais da janela, junto ao manso tepor da lâmpada que escuta — antiga confidente — os meus sonhos e as minhas vigílias de tormento, eu penso em ti, divina.
(E tu talvez nem te recordes deste ausente!)
Penso em ti. Penso e evoco o teu vulto adorado. Penso nas tuas mãos — um lis de cinco pétalas — que, em vez de sangue, têm luar dentro das veias; nos teus olhos, que são Noturnos de Chopin agonizando à luz de uma tarde de sonho; na tua voz, que lembra um beijo que se esfolha. Penso.
(E nem sei se tu também pensas em mim!)
Talvez não. No tranquilo altar da tua alcova, onde se extingue a luz de um velho candelabro como uma lâmpada votiva, tu adormeces sorrindo ao Anjo fiel que as tuas pálpebras fecha para que tu não tenhas sonhos maus.
E eu penso em ti, sem sono, a sós, angustiado e febril, em ti, que nem eu sei se te lembras de mim...
Poemas e Poesias quinta, 18 de maio de 2023
FLOR DE CAVERNA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
FLOR DE CAVERNA
Alberto de Oliveira
Fica às vezes em nós um verso a que a ventura Não é dada jamais de ver a luz do dia; Fragmento de expressão de idéia fugidia, Do pélago interior bóia na vaga escura.
Sós o ouvimos conosco; à meia voz murmura, Vindo-nos da consciência a flux, lá da sombria Profundeza da mente, onde erra e se enfastia, Cantando, a distrair os ócios da clausura.
Da alma, qual por janela aberta par e par, Outros livre se vão, voejando cento e cento Ao sol, à vida, à glória e aplausos. Este não.
Este aí jaz entaipado, este aí jaz a esperar Morra, volvendo ao nada, — embrião de pensamento Abafado em si mesmo e em sua escuridão.
Poemas e Poesias quarta, 17 de maio de 2023
ESTÃO SE ADIANTANDO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)
De tal ordem é e tão precioso o que devo dizer-lhes que não posso guardá-lo sem que me oprima a sensação de um roubo: cu é lindo! Fazei o que puderdes com esta dádiva. Quanto a mim dou graças pelo que agora sei e, mais que perdoo, eu amo.
Poemas e Poesias segunda, 15 de maio de 2023
POEMA SIMPLES (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
POEMA SIMPLES
Adalgisa Nery
Deixa-me recolher as rosas que estão morrendo nos jardins da noite, Deixa-me recolher o fruto antes que este volva as raízes da terra, Deixa-me recolher a estrela úmida Antes que sua luz desapareça na madrugada, Deixa-me recolher a tristeza da alma Antes que a lágrima banhe a pálpebra Do órfão abandonado e faminto, Deixa-me recolher a ternura parada No coração da mulher que desejou ser mãe. Deixa-me recolher a esperança dos que acreditam, Recolher o que ainda não passou E mais do que tudo dá-me a recolher A palavra de amor e de doçura para que reparta Com os ouvidos que esperam como uma gota de mel Caindo na alma e no coração, Como a única luz dentro de tanta escuridão.
Poemas e Poesias domingo, 14 de maio de 2023
RENÚNCIA (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)
RENÚNCIA
Virgínia Victorino
Fui nova, mas fui triste; só eu sei como passou por mim a mocidade! Cantar era o dever da minha idade… Devia ter cantado, e não cantei!
Fui bela. Fui amada. E desprezei… Não quis beber o filtro da ansiedade. Amar era o destino, a claridade… Devia ter amado, e não amei!
Ai de mim! Nem saudades, nem desejos; nem cinzas mortas, nem calor de beijos… — Eu nada soube, nada quis prender!
E o que me resta? Uma amargura infinda: ver que é, para morrer, tão cedo ainda, e que é tão tarde já para viver!
Poemas e Poesias sábado, 13 de maio de 2023
A MORTE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A MORTE
Vinícius de Moraes
A morte vem de longe Do fundo dos céus Vem para os meus olhos Virá para os teus Desce das estrelas Das brancas estrelas As loucas estrelas Trânsfugas de Deus Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida A grande esperada! A desesperada Do amor fratricida Dos homens, ai! dos homens Que matam a morte Por medo da vida.
Poemas e Poesias sexta, 12 de maio de 2023
SAUDADE (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)
SAUDADE
Vicente de Carvalho
Belos amores perdidos, Muito fiz eu com perder-vos; Deixar-vos, sim: esquecer-vos Fora demais, não o fiz.
Tudo se arranca do seio, – Amor, desejo, esperança… Só não se arranca a lembrança De quando se foi feliz.
Roseira cheia de rosas, Roseira cheia de espinhos, Que eu deixei pelos caminhos, Aberta em flor, e parti:
Por me não perder, perdi-te: Mas mal posso assegurar-me, – Com te perder e ganhar-me, Se ganhei, ou se perdi…
Poemas e Poesias quinta, 11 de maio de 2023
PRA DIZER ADEUS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)
PRA DIZER ADEUS
Torquato Neto
adeus vou pra não voltar e onde quer que eu vá sei que vou sozinho tão sozinho amor nem é bom pensar que eu não volto mais desse meu caminho
ah, pena eu não saber como te contar que o amor foi tanto e no entanto eu queria dizer vem eu só sei dizer vem nem que seja só pra dizer adeus.
Poemas e Poesias quarta, 10 de maio de 2023
OS ESTATUTOS DO HOMEM (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)
OS ESTATUTOS DO HOMEM
Thiago de Mello
Artigo I Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo V Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.
Artigo XI Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.
Poemas e Poesias terça, 09 de maio de 2023
FLORES LUXEMBURGUESAS (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)
FLORES LUXEMBURGUESAS
Sousândrade
Não é, não é alegria,
Nem é tristeza sombria
Que sinto me atravessar.
Grato, grato sentimento
De um passado encantamento –
Por toda parte a lembrar!
Eram as roxas florestas,
As sagradas sombras mestas
Nossos berços da soidão:
Se deles tendes as flores, –
A saudade dos amores
Em vós reconheço estão.
Poemas e Poesias segunda, 08 de maio de 2023
AS LETRAS (POEM ADO BAIANO RICARDO LIMA)
AS LETRAS
Ricardo Lima
Juntas, poeiras.
Soltas, certezas.
Abraços, certos de palavras...
As letras...
Poemas e Poesias domingo, 07 de maio de 2023
IRONIA! (OEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)
IRONIA!
Raul de Leôni
Ironia! Ironia! Minha consolação! Minha filosofia! Imponderável máscara discreta Dessa infinita dúvida secreta, Que é a tragédia recôndita do ser! Muita gente não te há de compreender E dirá que és renúncia e covardia! Ironia! Ironia! És a minha atitude comovida: O amor-próprio do Espírito, sorrindo! O pudor da Razão diante da Vida!
Poemas e Poesias sábado, 06 de maio de 2023
O QUE É FOLCLORE? (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)
O QUE É O FOLCLORE?
Patativa do Assaré
Posso lhe afirmá também: Folclore é superstição, O medo que você tem Do canto do corujão. Folclore é aquele instrumento Para o seu divertimento Que chamamos berimbau; E também a brincadeira Ritmada e prazenteira Chamada Maneiro-Pau.
Folclore, meu camarada, Ouvimos a toda hora, É históra de alma penada, De lobisome e caipora. Preste atenção e decore, Pois, com certeza, folclore Ainda posso dizer Que é aquele búzio de osso Que você põe no pescoço Do filho pra não morrer.
É o aboio magoado Do vaqueiro na amplidão. É o festejo animado Da debulha do feijão, Carro de boi e gaiola E desafio, à viola, Do cantador popular E também a toadinha Da Ciranda-Cirandinha Vamos todos cirandar.
Eu e você que vivemos No nosso pobre sertão Muitas coisas inda temos Da popular tradição: Além de outras, o girau E a carrocinha de pau, Em vez de bonito carro. Que prazer, satisfação, A gente comer pirão Mexido em prato de barro!
E agora, prezado irmão, Estes versos lhe dedico. Lhe dei alguma noção Do nosso folclore rico. Não posso continuar, Pois nada pude estudar, De dentro do tema saio. O resto lhe dirá tudo Romão Filgueira Sampaio, Mainá e Câmara Cascudo.
De conservar o folclore Todos têm obrigação, Para que nunca descore A popular tradição. Os homens de grande estudo, Como Mainá e Cascudo, Guardam sempre nos arquivo Populares tradições, Cantigas, superstições E costumes primitivos.
Você, caboclo, que cresce, Sem instrução nem saber, Escuta, mas não conhece Folclore o que quer dizer: O folclore é um pilão, É um bodoque, um pião, Garanto que também é Uma grosseira cangalha, Aparelhada de palha De palmeira ou catolé.
Poemas e Poesias quinta, 04 de maio de 2023
CONSELHO DE AMIGO (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)
CONSELHO DE AMIGO
Olegário Mariano
Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro, Gosto da tua frívola cantiga, Mas vou dar-te um conselho, rapariga: Trata de abastecer o teu celeiro.
Trabalha, segue o exemplo da formiga, Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro, E tu, não tendo um pouso hospitaleiro, Pedirás… e é bem triste ser mendiga!
E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava (Quem dá conselhos sempre se consome…) Continuava cantando… continuava…
Parece que no canto ela dizia: – Se eu deixar de cantar morro de fome… Que a cantiga é o meu pão de cada dia.
Poemas e Poesias quarta, 03 de maio de 2023
ALEXANDRE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)
ALEXANDRE
Olavo Bilac
Quem te cantara um dia a ambição desmarcada,
Filho da heráclia estirpe! e o clamor infinito
Com que o povo da Emátia acorreu ao teu grito,
Voando, como um tufão, sobre a terra abrasada!
Do Adriático mar ao Índus, e do Egito
Ao Cáucaso, o fulgor do aceiro dessa espada
Prosternava, a tremer, sobre a lama da estrada,
Ídolos de ouro e bronze, e esfinges de granito.
Mar que regouga e estronda, espedaçando diques,
- Aos confins da Ásia rica as falanges corriam,
Encrespadas de fúria e erriçadas de piques.
E do sangue, do pó, dos destroços da guerra,
Aos teus pés, palpitando, as cidades nasciam,
E a Alma Grega, contigo, avassalava a Terra!
Poemas e Poesias terça, 02 de maio de 2023
O BATALHÃO DAS LETRAS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA) VÍDEO
Poemas e Poesias segunda, 01 de maio de 2023
DESESPERANÇA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)
DESESPERANÇA
Manuel Bandeira
Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo. Como dói um pesar em cada pensamento! Ah, que penosa lassidão em cada músculo...
O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia... Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
Assim deverá ser a natureza um dia, Quando a vida acabar e, astro apagado, a Terra Rodar sobre si mesma estéril e vazia.
O demônio sutil das nevroses enterra A sua agulha de aço em meu crânio doído. Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...
Minha respiração se faz como um gemido. Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo, Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
Por onde alongue o meu olhar de moribundo, Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto: E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
Vejo nele a feição fria de um desafeto. Temo a monotonia e apreendo a mudança. Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto... — Ah, como dói viver quando falta a esperança!
Poemas e Poesias domingo, 30 de abril de 2023
O MENINO E O CÓRREGO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)
O MENINO E O CÓRREGO
Manoel de Barros
I
A água é madura.
Com penas de garça.
Na areia tem raiz
de peixes e de árvores.
Meu córrego é de sofrer
pedras Mas quem beijar seu corpo
é brisas…
II
O córrego tinha um cheiro
de estrelas
nos sarãs anoitecidos
O córrego tinha
suas frondes
distribuídas
aos pássaros
O córrego ficava à beira
de um menino…
III
No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas
A água escorria
por entre as pedras
um chão sabendo
a aroma de ninhos.
IV
Ai
que transparente
aos voos
está o córrego!
E usado
de murmúrios…
V
Com a boca escorrendo chão
o menino despetalava o córrego
de manhã todo no seu corpo.
A água do lábio relvou entre pedras…
Árvores com o rosto arreiado
de seus frutos
ainda cheiravam a verão
Durante borboletas com abril
esse córrego escorreu só pássaros…
Poemas e Poesias sábado, 29 de abril de 2023
VERSO MÍSSIL (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)
VERSO MÍSSIL
Luís Turiba
Quisera fazer um verso com a sublime arritmia do amor um verso míssil neurastênico e febril ar do dia anterior à criação do universo
Um verso instantâneo e uno momento raro como em Let It Be (um órgão clássico bachiano entrelaça-se ao solo rock da guitarra de Harrison) perfeita harmonia, divino encaixe
Ficam as lembranças das perfeições carnais como notas musicais
Ah, meu grande amor! erguerei um dia tamanho verso nanico faminto camundongo e sábio como um menino de rua brasileiro
Um verso de trivela transverso e subversivo acorde de uma nuvem cor-de-rosa cheiro da cor da maçã o gosto do suor e dos raios de vida que transitam por nossos corpos
Um verso de fogo e batom histórico histérico e erudito alexandrino perfeito tão alexandrino como teu nome de solteira tão perfeito e feroz como as garras de um tigre faminto rasgando a alma de sua presa
Poemas e Poesias sexta, 28 de abril de 2023
HINO AO TABACO (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)
HINO AO TABACO
Júlio Dinis
No centro dos círculos De nuvens de fumo, Um deus me presumo, Um deus sobre o altar! Nem doutros turíbulos Me apraz tanto o incenso Como o deste imenso Cachimbo exemplar!
Em divas esplêndidos, Cruzadas as pernas, Fuma, horas eternas. O ardente sultão Subindo-lhe ao cérebro O mágico aroma, Esquece Mafoma, Houris e Alcorão.
Longe, oh! longe o ópio, Que os sonhos deleita Da mísera seita Dos Theriakis! Horror ao narcótico Que vem das papoulas! E ao que arde em caçoulas No altar de Caciz!
Que a raça gentílica Das zonas ardentes Consuma as sementes Do arábio café. Despejem-se as chávenas Da atroz beberagem Da cor do selvagem Da adusta Guiné.
E a tal folha exótica, Delícias da China, Por nossa má sina Trazida de lá, Servida em família Num morno hidro-infuso?... Anátema ao uso Das folhas do chá!
Nem tu, ó alcoólico Humor dos lagares, Terás meus cantares, Meus hinos terás, Embora das ânforas, Vazado nas taças, Aos outros tu faças, A língua loquaz.
Cerveja britânica, De furor espuma? De coisa nenhuma Me podes servir. Quando oiço do lúpulo Gabarem proezas Às boas inglesas, Desato-me a rir.
Nem venha da cânfora Pregar maravilhas O das cigarrilhas Famoso inventor. Raspail é cismático E eu sou ortodoxo O seu paradoxo Não me há-de ele impor.
Meu canto é da América, País do tabaco, Perante o qual Baco Seu ceptro partiu. A Europa, Ásia e África E a Terra hoje toda Este herói da moda De fumo cobriu.
Até na Lapónia Da gente pequena, Se fuma; e no Sena, No Tibre e no Pó, No Volga e no Vístula, No Tejo e no Douro; Que imenso tesouro Se deve a Nicot!
Meus áridos lábios Mais fumo inda aspirem; Que os parvos suspirem Por beijos aos mil. Não quero outros ósculos, Não quero outra amante.. Qual mais doudejante Que o fumo subtil?
Tornadas Vesúvios, As bocas fumegam De nuvens que cegam Vomitam montões. Fumar! Oh delícias! Prazer de nababo! E leve o Diabo Do mundo as paixões.
Poemas e Poesias quinta, 27 de abril de 2023
UM MONSTRO FLUI NESSE POEMA (POEMA DO ALAGOANO JORE DE LIMA)
UM MONSTRO FLUI DESSE POEMA
Jorge de Lima
Um monstro flui nesse poema feito de úmido sal-gema.
A abóbada estreita mana a loucura cotidiana.
Pra me salvar da loucura como sal-gema. Eis a cura.
O ar imenso amadurece, a água nasce, a pedra cresce.
Mas desde quando esse rio corre no leito vazio?
Vede que arrasta cabeças, frontes sumidas, espessas.
E são minhas as medusas, cabeças de estranhas musas.
Mas nem tristeza e alegria cindem a noite, do dia.
Se vós não tendes sal-gema, não entreis nesse poema.
Poemas e Poesias quarta, 26 de abril de 2023
RIOS SEM DISCURSO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)
RIOS SEM DISCURSO
João Cabral de Melo Neto
Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água se quebra em pedaços, em poços de água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda, e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria.
Poemas e Poesias terça, 25 de abril de 2023
EXALTAÇÃO DO AMOR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)
EXALTAÇÃO DO AMOR
J. G. de Araújo Jorge
Sofro, bem sei... Mas se preciso fôr sofrer mais, mal maior, extraordinário, sofrerei tudo o quanto necessário para a estrêla alcançar... colher a flor...
Que seja imenso o sofrimento, e vário! Que eu tenha que lutar com força e ardor! Como um louco talvez, ou um visionário hei de alcançar o amor... com o meu Amor!
Nada me impedirá que seja meu se é fogo que em meu peito se acendeu e lavra, e cresce, e me consome o Ser...
Deus o pôs... Ninguém mais há de dispor! Se esse amor não puder ser meu viver há de ser meu para eu morrer de amor!
Poemas e Poesias segunda, 24 de abril de 2023
PÁSSAROS (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST) - VÍDEO
PÁSSAROS
Hilda Hilst
Poemas e Poesias domingo, 23 de abril de 2023
JOGOS E SOMBRAS (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)
JOGOS E SOMBRAS
Hermes Fontes
Sempre que me procuro e não me encontro em mim, pois há pedaços do meu ser que andam dispersos nas sombras do jardim, nos silêncios da noite, nas músicas do mar, e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos nesta serena unção crepuscular que lhes prolonga o trágico tresnoite da vigília sem fim, abro meu coração, como um jardim, e desfolho a corola dos meus versos, faz-me lembrar a alma que esteve em mim, e que, um dia, perdi e vivo a procurar nos silêncios da noite, nas sombras do jardim, na música do mar...
Poemas e Poesias sábado, 22 de abril de 2023
FLOR DO SAFALDO (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)
FLOR DO ASFALTO
Guilherme de Almeida
Flor do asfalto, encantada flor de seda, sugestão de um crepúsculo de outono, de uma folha que cai, tonta de sono, riscando a solidão de uma alameda...
Trazes nos olhos a melancolia das longas perspectivas paralelas, das avenidas outonais, daquelas ruas cheias de folhas amarelas sob um silêncio de tapeçaria...
Em tua voz nervosa tumultua essa voz de folhagens desbotadas, quando choram ao longo das calçadas, simétricas, iguais e abandonadas, as árvores tristíssimas da rua!
Flor da cidade, em teu perfume existe Qualquer coisa que lembra folhas mortas, sombras de pôr de sol, árvores tortas, pela rua calada em que recortas tua silhueta extravagante e triste...
Flor de volúpia, flor de mocidade, teu vulto, penetrante como um gume, passa e, passando, como que resume no olhar, na voz, no gesto e no perfume, a vida singular desta cidade!