Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias sexta, 04 de agosto de 2023

POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO

Hilda Hilst

 

 

 

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.

***********

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.


Poemas e Poesias quinta, 03 de agosto de 2023

MÃE (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

MÃE

Hermes Fontes

 

 

 

Para dizer quem foi a minha mãe, não acho
Uma palavra própria, um pensamento bom
Diógenes — busco-o em vão; falta-me a luz de um facho
— Se acho som, falta a luz; se acho luz, falta o som!


Teu nome — ó minha mãe — tem o sabor de um cacho
De uvas diáfanas, cor de ouro e pérola, com
Polpa de beijos de anjo... ouvi-lo é ouvir um sacho
Merencóreo, a rezar, no seu eterno tom. ..


Minha mãe! Minha mãe! Eu não fui qual devera.
Morreste e eu não bebi nos teus lábios de cera
A doçura que as mães, ainda mortas, contêm...


Ao pé de nossas mães — todos nós somos crentes...
Um filho que tem mãe — tem todos os parentes...
— E eu não tenho por mim, ó minha mãe, ninguém!

 


Poemas e Poesias terça, 01 de agosto de 2023

HARMONIA VELHA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

HARMONIA VELHA

Guilherme de Almeida

 

 

 

O teu beijo resume
Todas as sensações dos meus sentidos
A cor, o gosto, o tato, a música, o perfume
Dos teus lábios acesos e estendidos
Fazem a escala ardente com que acordas o fauno encantador
Que, na lira sensual de cinco cordas,
Tange a canção do amor!

E o tato mais vibrante,
O sabor mais sutil, a cor mais louca,
O perfume mais doido, o som mais provocante
Moram na flor triunfal da tua boca!
Flor que se olha, e ouve, e toca, e prova, e aspira;
Flor de alma, que é também
Um acorde em minha lira,
Que é meu mal e é meu bem...

Se uma emoção estranha
o gosto de uma fruta, a luz de um poente -
chega a mim, não sei de onde, e bruscamente ganha
qualquer sentido meu, é a ti somente
que ouço, ou aspiro, ou provo, ou toco, ou vejo...
E acabo de pensar
Que qualquer emoção vem de teu beijo
Que anda disperso no ar...


Poemas e Poesias segunda, 31 de julho de 2023

O TEU ANIVERSÁRIO (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

O TEU ANIVERSÁRIO

Guerra Junqueiro

 

 

 

Pediste-me sorrindo, ó minha flor gentil,
Uns versos às tuas vinte alvoradas de Abril.
Vinte anos já!... não creio, estás equivocada...
Enganas-te. Eu irei perguntar à alvorada
Quantas vezes pousou em êxtase, ao de leve,
A sua boca de rosa em tua fronte de neve.
Vinte anos! Podes crer, pomba que eu idolatro,
Que se o corpo fez vinte, a alma, não: fez quatro.
A tua alma nasceu inefável, divina,
Para ser sempre grande e sempre pequenina.
É como a estrela d'alva; enche o seu esplendor
O Mundo, e ela não enche o cálix duma flor!...


Poemas e Poesias domingo, 30 de julho de 2023

EGITO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

EGITO

Francisca Júlia

 

 

 

No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito;
Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno;
Um velho ibe somente arranca um raro piorno
Que cresce pelos vãos das lájeas de granito.

A aura branda, que vem do deserto infinito,
Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno.
Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno
Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.

Destacando na luz, agora o vulto absorto
De um adelo que passa, em caminho da feira,
Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.

Bate na areia o sol. E, num sonho tranqüilo,
Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira,
A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.


Poemas e Poesias sábado, 29 de julho de 2023

O RETRATO FIEL (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

O RETRATO FIEL

Gilka Machado

 

 

 

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!


Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.


Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;


naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.


Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.


Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.


Poemas e Poesias sexta, 28 de julho de 2023

COTO DD FADAS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

CONTO DE FADAS

Florbela Espanca

 

 

 

Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.

Os meus gestos são ondas de Sorrento...
Trago no nome as letras duma flor...
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento...

Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é de oiro, a onda que palpita.

Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez!
Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A princesa de conto: "Era uma vez..."


Poemas e Poesias quinta, 27 de julho de 2023

A VOZ DO POETA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A VOZ DO POETA

Ferreira Gullar

 

 

 

Não é voz de passarinho
flauta do mato
viola

Não é voz de violão
clarinete pianola

É voz de gente
(na varanda? na janela?
na saudade? na prisão?)

é voz de gente - poema:
fogo logro solidão.

 


Poemas e Poesias quarta, 26 de julho de 2023

DA MINHA IDEIA DO MUNDO (POEMA DO PORTUGUÊS FERANNDO PESSOA)

DA MINHA IDEIA DO MUNDO

Fernando Pessoa

 

 

 

Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além do profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...


Poemas e Poesias terça, 25 de julho de 2023

PÁGINA VAZIA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

PÁGINA VAZIA

Euclides da Cunha

 

 

 

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora.

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De nossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?”


Poemas e Poesias segunda, 24 de julho de 2023

TROVAS HUMORÍSTICAS - 21 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 21

Eno Teodoro Wanke

 

Esbrajava um caipora:

– Dormiu com minha mulher?

E o outro, antes de ir-se embora:

– Nem um minuto sequer!

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de julho de 2023

O ETERNO MISTÉRIO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

O ETERNO  MISTÉRIO

Da Costa e Silva

 

 

 

Desde a tarde violácea em que partiste
Para tão longe, para não sei onde, 
Eu vivo a interrogar, calado e triste,
A natureza que me não responde.

Falo à estrela no espaço, à flor na fronde,
A perguntar em vão se o céu existe;
E tudo que a luz mostra e a treva esconde
À voz da minha súplica resiste.

Se há um mundo divino, além do humano,
Indago; e o vento, as águas, o arvoredo,
Têm o mesmo mistério soberano...

A vida não revela esse segredo,
Que a morte oculta num sombrio arcano,
Que enche os homens de dúvida e de medo.

 


Poemas e Poesias sábado, 22 de julho de 2023

APARIÇÃO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ SOUSA)

APARIÇÃO

Cruz e Sousa

 

 

 

Por uma estrada de astros e perfumes
A Santa Virgem veio ter comigo:
Doiravam-lhe o cabelo claros lumes
Do sacrossanto resplendor amigo.

Dos olhos divinais no doce abrigo
Não tinha laivos de Paixões e ciúmes:
Domadora do Mal e do perigo
Da montanha da Fe galgara os cumes.

Vestida na alva excelsa dos Profetas
Falou na ideal resignação de Ascetas,
Que a febre dos desejos aquebranta.

No entanto os olhos dela vacilavam,
Pelo mistério, pela dor flutuavam,
Vagos e tristes, apesar de Santa!


Poemas e Poesias sexta, 21 de julho de 2023

NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER

Cesário Verde

 

 

 

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


Poemas e Poesias quinta, 20 de julho de 2023

PRIMEIRO MOTIVO DA ROSA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

PRIMEIRO MOTIVO DA ROSA

Cecília Meireles

 

 

 

Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.


Poemas e Poesias terça, 18 de julho de 2023

O *ADEUS* DE TERESA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

O "ADEUS" DE TERESA

Castro Alves

 

 

 

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"


Poemas e Poesias segunda, 17 de julho de 2023

LEMBRANÇA - NUM ALBUM (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

LEMBRANÇA - NUM ÁLBUM

Casimiro de Abreu

 

 

 

NUM ÁLBUM.

Como o triste marinheiro
Deixa em terra uma lembrança,
Levando n'alma a esperança
E a saudade que consome,
Assim nas folhas do álbum
Eu deixo meu pobre nome.

E se nas ondas da vida
Minha barca for fendida
E meu corpo espedaçado,
Ao ler o canto sentido
Do pobre nauta perdido
Teus lábios dirão: - coitado!


Poemas e Poesias domingo, 16 de julho de 2023

AO RECANTO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO

POEMA AO RECANTO

Carlos Pena Filho

 

 

 

Num recanto sem data e sem ternura,
e mais, sem pretensão a ser recanto,
descobri em teu corpo o amargo canto
de quem despenca para a desventura.

Há nos recantos sempre uma segura
desvantagem de unir o desencanto
e é por isto talvez que não me espanto
de ali perder teu corpo e a ventura

de viver entre atento e descuidado,
mirando o pardo tédio que descansa
nos subúrbios do amor desmantelado.

E só para ganhar mais espessura
eu resolvi fazer esta lembrança
de um recanto sem data e sem ternura.

Poemas e Poesias sábado, 15 de julho de 2023

CANÇÃO FINAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRMMOND DE ANDRADE)

CANÇÃO FINAL

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.


Poemas e Poesias sexta, 14 de julho de 2023

SONETO 123 - DOCE SONHO, SUAVE E SOBERANO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

DOCE SONHO, SUAVE E SOBERANO

Soneto 123

Luís de Camões

 

 

Doce sonho, suave e soberano,
se por mais longo tempo me durara!
Ah! quem de sonho tal nunca acordara,
pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano,
se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara,
de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,
dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
pois sempre nas verdades fui mofino.


Poemas e Poesias quinta, 13 de julho de 2023

SONETO TO GOZADOR CAÇAOR (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DO GOZADOA CAÇADOR

Bocage

(Grafia original)

 

 

"Apre! não mettas todo... Eu mais não posso..."
Assim Marcia formosa me dizia;
— Não sou barbaro (à moça eu respondia)
Brandamente verás como te coço!

"Ai! por Deus, não... não mais, que é grande! e grosso!"
Quem resistir ao seu fallar podia?
Meigamente o conninho lhe battia;
Ella diz "Ah meu bem! meu peito é vosso!"

O rebolar do cu (ah!) não te esqueça
Como és bella, meu bem! (então lhe digo)
Ella em suspiros mil a ardencia expressa.

Por te unir fazer muito ao meu umbigo;
Assim, assim... menina, mais depressa!...
Eu me venho... ai Jesus!... vem-te commigo!

 


Poemas e Poesias quarta, 12 de julho de 2023

CEM TROVAS - 011 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

 

TROVA 011

Belmiro Braga

 

 Eu não lamento o revés
do morto que se fez pó;
do vivo, que espera a vez,
desse sim, eu tenho dó.

 


Poemas e Poesias terça, 11 de julho de 2023

A ILHA DE CYPANGO (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

A ILHA DE CYPANGO

Augusto dos Anjos

 

 

 

Estou sósinho! A estrada se desdobra
Como uma immensa e rutilante cobra
De epiderme finissima de areia
E por essa finissima epiderme
Eis-me passeiando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!

A agonia do sol vae ter começo
Caio de joelhos, tremulo... Offereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Occaso que nas aguas se retrata
Nitidamente reproduz, exacta,
A saudade interior que ha no meu peito...

Tenho allucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lazaro não sente,
Em negras nuanças lugubres e aziagas
Vejo terribilissimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.

 

Os olhos volvo para o ceu divino
E observo-me pygmeu e pequenino
Atravez de minusculos espelhos.
Assim, quem deante duma cordilheira,
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cahir de joelhos!

Sôa o rumor fatidico dos ventos,
Annunciando desmoronamentos
De mil lagedos sobre mil lagedos...
E ao longe sôam tragicos fracassos
De heroes, partindo e fracturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cypango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpetua, brilha
A arvore da perpetua maravilha,
Á cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cypango,
Verde, affectando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extincto
E como succedeu a Affonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O genio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iriamos a um paiz de eternas pazes
Onde em cada deserto ha mil oasis
E em cada rocha um crystallino veio.

 

Gozei numa hora seculos de affagos,
Banhei-me na agua de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o panno da mortalha,
Que estou cozendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo trio
Anesthesiou-me a sensibilidade
E a grande golpes arrancou as raizes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!

Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve zigzags tortos
Enviando á terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dous realejos
Estão chorando meus amores mortos!

E a treva occupa toda a estrada longa...
O Firmamento é unia caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-lactea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!


Poemas e Poesias segunda, 10 de julho de 2023

O LENÇO DELA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

O LENÇO DELA

Álvares de Azevedo

 

 

 

Quando, a primeira vez, da minha terra
Deixei as noites de amoroso encanto,
A minha doce amante suspirando
Volveu-me os olhos úmidos de pranto.
 
Um romance cantou de despedida,
Mas a saudade amortecia o canto!
Lágrimas enxugou nos olhos belos...
E deu-me o lenço que molhava o pranto.
 
Quantos anos, contudo, já passaram!
Não

olvido porém amor tão santo!
Guardo ainda num cofre perfumado
O lenço dela que molhava o pranto...
 
Nunca mais a encontrei na minha vida,
Eu contudo, meu Deus, amava-a tanto!
Oh! quando eu morra estendam no meu rosto
O lenço que eu banhei também de pranto!


Poemas e Poesias domingo, 09 de julho de 2023

NÃO ÉS TU (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

NÃO ÉS TU

Almeida Garrett

 

 

 

Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume ,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu... ai!, não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.


Poemas e Poesias sábado, 08 de julho de 2023

O GRANDE SONHO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

O GRANDE SONHO

Alceu Wamosy

 

 

 

 

... e eu sonho que hás de vir. Sonho que um dia
mais ardente e mais bela do que eras,
virás encher de graça e de harmonia
meu jardim de tristíssimas quimeras.

Sonho que hás de trazer toda a alegria,
todo o encanto das tuas primaveras,
ou que em um reino antigo de poesia,
o meu amor, entre rosais, esperas.

E fico na ilusão de que tu vieste
E nesse sonho de ouro mergulhado,
o teu vulto alvoral surgindo vejo
sobre as próprias feridas que fizeste...

E fico na ilusão de que tu vieste
o bálsamo estendendo do teu beijo,
sobre as próprias feridas que fizeste...


Poemas e Poesias sexta, 07 de julho de 2023

FONTE OCULTA (POEMA DO FLUMNENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

 

FONTE OCULTA

Alberto de Oliveira

 

 

 

Entre umas pedras metida,

Rolando clara e modesta,

No coração da floresta

Vive uma fonte escondida.

 

Receosa de ser ouvida,

Talvez abafando um ai,

Quase sem queixa ou murmúrio

Fluindo vai;

 

E de ser vista receosa,

O vivo fio adelgaça;

E assim ignorada passa,

Passa ligeira e medrosa.

 

Tal em alma desditosa

Que já não ama nem crê,

Se escoa um fio de lagrimas

Que ninguém vê...


Poemas e Poesias quinta, 06 de julho de 2023

FASCÍNIO (POMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA

FASCÍNIO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis.
Não deveria, dizem.
Me esforço. Aliás,
já nem me esforço.
Abertamente me ponho a admirá-las.
Não estou traindo ninguém, advirto.
Como pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me permito.


Poemas e Poesias quarta, 05 de julho de 2023

PAIXÃO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

PAIXÃO

Adélia Prado

 

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,
não é a bola bonita caminhando
solta no espaço.


Poemas e Poesias segunda, 03 de julho de 2023

REPOUSO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

REPOUSO

Adalgicsa Nery

 

 

 

Dá-me tua mão

E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas

Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos,

Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas.

Dá-me tua mão

E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido,

Te darei por leito a terra amiga

E repousarei tua cabeça envelhecida

Na relva silenciosa dos campos.

Nada te perguntarei,

Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes

E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada.


Poemas e Poesias domingo, 02 de julho de 2023

A MORTE DE MADRUGADA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MORTE DE MADRUGADA

Vinícius de Moraes

 

 

 

Muerto cayó Federico. 
Antonio Machado 

Uma certa madrugada 
Eu por um caminho andava 
Não sei bem se estava bêbado 
Ou se tinha a morte n'alma 
Não sei também se o caminho 
Me perdia ou encaminhava 
Só sei que a sede queimava-me 
A boca desidratada. 
Era uma terra estrangeira 
Que me recordava algo 
Com sua argila cor de sangue 
E seu ar desesperado. 
Lembro que havia uma estrela 
Morrendo no céu vazio 
De uma outra coisa me lembro: 
... Un horizonte de perros 
Ladra muy lejos del río... 

De repente reconheço: 
Eram campos de Granada! 
Estava em terras de Espanha 
Em sua terra ensangüentada 
Por que estranha providência 
Não sei... não sabia nada... 
Só sei da nuvem de pó 
Caminhando sobre a estrada 
E um duro passo de marcha 
Que em meu sentido avançava. 

Como uma mancha de sangue 
Abria-se a madrugada 
Enquanto a estrela morria 
Numa tremura de lágrima 
Sobre as colinas vermelhas 
Os galhos também choravam 
Aumentando a fria angústia 
Que de mim transverberava. 

Era um grupo de soldados 
Que pela estrada marchava 
Trazendo fuzis ao ombro 
E impiedade na cara 
Entre eles andava um moço 
De face morena e cálida 
Cabelos soltos ao vento 
Camisa desabotoada. 
Diante de um velho muro 
O tenente gritou: Alto! 
E à frente conduz o moço 
De fisionomia pálida. 
Sem ser visto me aproximo 
Daquela cena macabra 
Ao tempo em que o pelotão 
Se dispunha horizontal. 

Súbito um raio de sol 
Ao moço ilumina a face 
E eu à boca levo as mãos 
Para evitar que gritasse. 
Era ele, era Federico 
O poeta meu muito amado 
A um muro de pedra seca 
Colado, como um fantasma. 
Chamei-o: Garcia Lorca! 
Mas já não ouvia nada 
O horror da morte imatura 
Sobre a expressão estampada... 
Mas que me via, me via 
Porque em seus olhos havia 
Uma luz mal-disfarçada. 
Com o peito de dor rompido 
Me quedei, paralisado 
Enquanto os soldados miram 
A cabeça delicada. 

Assim vi a Federico 
Entre dois canos de arma 
A fitar-me estranhamente 
Como querendo falar-me. 
Hoje sei que teve medo 
Diante do inesperado 
E foi maior seu martírio 
Do que a tortura da carne. 
Hoje sei que teve medo 
Mas sei que não foi covarde 
Pela curiosa maneira 
Com que de longe me olhava 
Como quem me diz: a morte 
É sempre desagradável 
Mas antes morrer ciente 
Do que viver enganado. 

Atiraram-lhe na cara 
Os vendilhões de sua pátria 
Nos seus olhos andaluzes 
Em sua boca de palavras. 
Muerto cayó Federico 
Sobre a terra de Granada 
La tierra del inocente 
No la tierra del culpable. 
Nos olhos que tinha abertos 
Numa infinita mirada 
Em meio a flores de sangue 
A expressão se conservava 
Como a segredar-me: - A morte 
É simples, de madrugada...


Poemas e Poesias sábado, 01 de julho de 2023

SERENATA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

SERENATA

Vicente de Carvalho

 

 

Pela vasta noite indolente
          Voga um perfume estranho.
Eu sonho... E aspiro o vago aroma ausente
          Do teu cabello castanho.

        Pela vasta noite tranquilla
          Pairam, longe, as estrellas.
Eu sonho... O teu olhar tambem scintilla
          Assim, tão longe como ellas.

        Pela vasta noite povoada
          De rumores e arquejos
Eu sonho... E’ tua voz, entrecortada
          De suspiros e de beijos.

 

        Pela vasta noite sem termo,
          Que deserto sombrio!
Eu sonho... Inda é mais triste, inda é mais ermo
          O nosso leito vasio.

        Pela vasta noite que finda
          Sóbe o dia risonho...
E eu cerro os olhos para ver-te ainda,
          Ainda e sempre, em meu sonho.

 

 


Poemas e Poesias sexta, 30 de junho de 2023

QUANDO O SANTO GUERREIRO ENTREGA AS PONTAS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

QUANDO O SANTO GUERREIRO ENTGREGA AS PONTAS

Torquato Neto

 

 

 

nada de mais:
o muro pintado de verde
e ninguém que precise dizer-me
que esse verde que não quero verde
lírico
mais planos e mais planos
se desfaz:
nada demais:
aqui de dentro eu pego e furo a fogo
e luz
(é movimento)
vosso sistema protetor de incêndios
e pinto a tela o muro diferente
porque uso como quero minhas lentes
e filmo o verde,
que eu não temo o verde,
de outra cor:
diariamente encaro bem de perto
e escarro sobre o muro:
nada demais

a fruta não está verde nem madura
é dura
e dura
e dura o tempo
contratempo
de escolher
o enquadramento melhor — ver do outro lado
com olhos livres
(nem deus nem diabo), projetar
lado de dentro — a luz mais pura
embora a sala do cinema seja escura:
nada demais:
planos gerais sobre a paisagem
sobre o muro da passagem proibida
enquanto procuramos (encontramos)
infinitas brechas escondidas.
cuidado madame.
nada de mais: cadê o câncer
daquela tarde alucinante?
ai de mim, copacabana, desvairada, mon amour.
nada de mais
na tela do cinema oficial:
já não estamos nos formando com o tal,
o general da banda do cinema que deserta:
a arqueologia é na cinemateca. esquece.
e tudo começou de novo e já acontece
(sentença de deus)
e o resto aconteceu: the end.
fim.
não falem mais dessa mulher perto de mim.
depois da fruta podreverde que apodrece — a tela livre
de quem só tem memória
a aí só conta história,
o muro iluminado de outra cor
e outra glória
pois quem não morre não deserta nem se entrega
desprega o comovido verde lírico
e apronta e inventa e acontece com o perigo
(poesia)
a imagem nova — o arco tenso
os nove fora
(tema: cinema: lema)
a prova.


Poemas e Poesias quinta, 29 de junho de 2023

FIO DE VIDA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

FIO DE VIDA

Thiago de Mello

 

 

 

Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração

no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.


Poemas e Poesias quarta, 28 de junho de 2023

FRAGMENTOS DO MAR (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

FRAGMENTOS DO MAR

Sousândrade

 

 

 

Meneia a larga cauda e as barbatanas
Limoso leviatã cheio de conchas
Com dorso de rochedo que ondas cercam;
Cristalinos pendões planta nas ventas,
De brilhantes vapores, que em bandeiras
Íris enrolam de formosa sombra.
Negra fragata lá circula as asas
Sobre a nuvem dos peixes voadores.
Agora rompe a nau lençóis infindos
Que o mar tépido choca, e vindo a aurora
Já salta a criação d'escamas belas.


Poemas e Poesias terça, 27 de junho de 2023

COMPLETUDE (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

COMPLETUDE

Ricardo Lima

 

 

 

A profundidade humana que lamenta, adentra 

Sensatez insensata, imediata 

Nó e pauta, desata, ata. 

A completude humana, emana, insensata, mata.

 


Poemas e Poesias segunda, 26 de junho de 2023

LEGENDA DOS DIAS (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

LEGENDA DOS DIAS

Rau de Leôni

 

 

 

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida,
Volta pensando: "Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá na outra jornada “...

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera...

E a Vida passa... efêmera e vazia;
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...


Poemas e Poesias domingo, 25 de junho de 2023

SOU CABRA DA PESTE (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

SOU CABRA DA PESTE

Patativa do Assaré

 

 

 

Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas nunca esmorece, procura vencê,
Da terra adorada, que a bela caboca
De riso na boca zomba no sofrê.

Não nego meu sangue, não nego meu nome,
Olho para fome e pergunto: o que há?
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Tem munta beleza minha boa terra,
Derne o vale à serra, da serra ao sertão.
Por ela eu me acabo, dou a própria vida,
É terra querida do meu coração.

Meu berço adorado tem bravo vaquêro
E tem jangadêro que domina o má.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ceará valente que foi munto franco
Ao guerrêro branco Soare Moreno,
Terra estremecida, terra predileta
Do grande poeta Juvená Galeno.

Sou dos verde mare da cô da esperança,
Que as água balança pra lá e pra cá.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ninguém me desmente, pois, é com certeza,
Quem qué vê beleza vem ao Cariri,
Minha terra amada pissui mais ainda,
A muié mais linda que tem o Brasí.

Terra da jandaia, berço de Iracema,
Dona do poema de Zé de Alencá.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.


Poemas e Poesias sábado, 24 de junho de 2023

DE PAPO PRO AR (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

DE PAPO PRO AR

Olegário Mariano

 

 

 

Eu não quero outra vida
Pescando no rio de Jereré
Tenho peixe bom
Tem siri patola 
Que dá com o pé

Quando no terreiro
Faz noite de luar
E vem a saudade me atormentar
Eu me vingo dela
Tocando viola de papo pro ar

Se compro na feira
Feijão, rapadura
Pra que trabalhar
Sou filho do homem
E o homem não deve
Se apoquentar

Poemas e Poesias sexta, 23 de junho de 2023

CÉSAR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

CÉSAR

Olavo Bilac

 

 

 

Na ilha de Seine. O mar brame na costa bruta.

Gemem os bardos. Triste, o olhar por céus em fora

Uma druidisa alonga, e os astros mira, e chora

De pé, no limiar de tenebrosa gruta.

Abandonou-te o deus que a tua raça adora,

Pobre filha de Teut! César aí vem! Escuta

O passo das legiões! ouve o fragor da luta

E o alto e crebro clangor da bucina sonora!

Dos Alpes, sacudindo as asas de ouro ao vento,

As grandes águias sobre os domínios gauleses

Descem, escurecendo o azul do firmamento...

E já, do Interno mar ao mar Armoricano,

Retumba o entrechocar dos rútilos paveses

Que carregam a glória o imperador romano.


Poemas e Poesias quinta, 22 de junho de 2023

O MAPA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

O MAPA

Mário Quintana

 

 

 

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo…


(É nem que fosse o meu corpo!)


Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei…


Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei…)


Quando eu for, um dia desses,

Poeira ou folha levada

No vento da madrugada,

Serei um pouco do nada

Invisível, delicioso


Que faz com que o teu ar

Pareça mais um olhar,

Suave mistério amoroso,

Cidade de meu andar

(Deste já tão longo andar!)


E talvez de meu repouso…


Poemas e Poesias quarta, 21 de junho de 2023

ENQUANTO A CHUVA CAI (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

ENQUANTO A CHUVA CAI

Manuel Bandeira

 

 

 

A chuva cai. O ar fica mole . . .
Indistinto . . . ambarino . . . gris . . .
E no monótono matiz
Da névoa enovelada bole
A folhagem como o bailar.

Torvelinhai, torrentes do ar!

Cantai, ó bátega chorosa,
As velhas árias funerais.
Minh’alma sofre e sonha e goza
À cantilena dos beirais.

Meu coração está sedento
De tão ardido pelo pranto.
Dai um brando acompanhamento
À canção do meu desencanto.

Volúpia dos abandonados . . .
Dos sós . . . — ouvir a água escorrer,
Lavando o tédio dos telhados
Que se sentem envelhecer . . .

Ó caro ruído embalador,
Terno como a canção das amas!
Canta as baladas que mais amas,
Para embalar a minha dor!

A chuva cai. A chuva aumenta.
Cai, benfazeja, a bom cair!
Contenta as árvores! Contenta
As sementes que vão abrir!

Eu te bendigo, água que inundas!
Ó água amiga das raízes,
Que na mudez das terras fundas
Às vezes são tão infelizes!

E eu te amo! Quer quando fustigas
Ao sopro mau dos vendavais
As grandes árvores antigas,
Quer quando mansamente cais.

É que na tua voz selvagem,
Voz de cortante, álgida mágoa,
Aprendi na cidade a ouvir
Como um eco que vem na aragem
A estrugir, rugir e mugir,
O lamento das quedas-d’água!

 


Poemas e Poesias terça, 20 de junho de 2023

O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA

Manoel de Barros

 

 

 

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!


Poemas e Poesias segunda, 19 de junho de 2023

HISTÓRIA DE UNS BEIJOS (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

HISTÓRIA DE UNS BEIJOS

Júlio Dinis

 

 

 

Ouvi gabar os beijos
Dizer deles tanto bem
Que me nasceram desejos
De provar alguns também.
 
Esta fruta não é rara
Mas nem toda tem valor
A melhor é muito cara
E a barata é sem sabor.
 
Colhi-os dos mais mimosos
Provei três; mas por meu mal,
Ao princípio saborosos
Amargaram-me afinal.
 
Um colhi eu de uma bela
Que era Rosa, sem ser flor,
Se tinha espinhos como ela,
Dela também tinha a cor.
 
Vi-a a dormir e furtei-lhe
Um beijo que a acordou.
Eu gostei, porém causei-lhe
Tal susto que desmaiou.
 
Logo que a vi sem sentidos
Fugi sem outro lhe dar,
Dois beijos sem ser pedidos
Não são coisa para brincar.
 
Porém deste beijo ainda
Pouco tive que dizer,
Pois a tal Rosa, era linda
E tornou a reviver.

Poemas e Poesias domingo, 18 de junho de 2023

VELHO TEMA - A SAUDADE (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

VELHO TEMA - A SAUDADE

Jorge de Lima

 

 

 

 

Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?

— Chama que já passou mas que assim mesmo é chama...

A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.

Que de longe me acena e me fascina e chama...

 

Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:

Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama...

..Um segredo de amor que se desfaz e mente...

Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?

 

Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,

Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente

Te ficaste gozando uma saudade boa?

 

Se vês que em teu passado uma saudade adeja,

— Faze que uma saudade a ti seja o presente!

— Faze que tua morte uma saudade seja!


Poemas e Poesias sábado, 17 de junho de 2023

SEVILHA EM CASA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

SEVILHA EM CASA

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

 

Tenho Sevilha em minha casa.
Não sou eu que está chez Sevilha.
É Sevilha em mim, minha sala.
Sevilha e tudo o que ela afia.

Sevilha veio a Pernambuco
porque Aloísio lhe dizia
que o Capibaribe e o Guadalquivir
são de uma só maçonaria.

Eis que agora Sevilha cobra
onde a irmandade que haveria:
faço vir as pressas ao Porto
Sevilhana além de Sevilha.

Sevilhana que além do Atlântico
vivia o trópico na sombra
fugindo os sóis Copacabana
traz grossas cortinas de lona.

 


Poemas e Poesias sexta, 16 de junho de 2023

FALTA DE AR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

FALTA DE AR

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

 

Há dias que posso passar sem sol, sem luz,
sem pão,
sem tudo enfim...

( Tenho até a impressão de que não preciso de nada...
... nem mesmo de mim...)

Mas há dias, amor... ( e parece mentira)
- nem eu sei explicar o porquê
de tão grande aflição -

em que não posso passar sem Você
um segundo que seja!
- de repente preciso encontrá-la, é preciso que a veja -

- Você é o ar com que respira
meu coração !


Poemas e Poesias quinta, 15 de junho de 2023

PASSEIO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST

PASSEIO

Hilda Hilst

 

 

 

De um exílio passado entre a montanha e a ilha
Vendo o não ser da rocha e a extensão da praia.
De um esperar contínuo de navios e quilhas
Revendo a morte e o nascimento de umas vagas.
De assim tocar as coisas minuciosa e lenta
E nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.
De saber o cavalo na montanha. E reclusa
Traduzir a dimensão aérea do seu flanco.
De amar como quem morre o que se fez poeta
E entender tão pouco seu corpo sob a pedra.
E de ter visto um dia uma criança velha
Cantando uma canção, desesperando,
É que não sei de mim. Corpo de terra.

 


Poemas e Poesias quarta, 14 de junho de 2023

LUAR DE PAQUETÁ (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

LUAR DE PAQUETÁ

Hermes Fontes

 

 

 

Nessas noites olorosas,
quando o mar, desfeito em rosas
se desfolha a lua cheia,
lembra a Ilha um ninho oculto,
onde o Amor celebra, em culto,
todo encanto que a rodeia.
Nos canteiros ondulantes,
as Nereidas, incessantes,
abrem lírios ao luar…
A água, em prece, burburinha,
e, em redor da capelinha,
vai rezando o verbo amar.
.
Pensamento de quem ama,
hóstia azul, fervendo em chama,
entre lábios separados…
Pensamento de quem ama,
leva o meu radiograma
ao jardim dos namorados!
Onde é esse paraíso,
o caminho que idealizo,
na ascensão para esse altar?
Paquetá é um céu profundo
que começa nesse mundo,
mas não sabe onde acabar…
.
Sobre o mar de azul rendado,
que é toalha de um noivado,
surge a Ilha-taça erguida:
E o luar-vinho doirado –
enche a taça do Passado
que embriaga a nossa vida!
Ai! que filtro milagroso,
para a mágoa e para o gozo,
para a eterna Inspiração:
o Luar, na mocidade,
abre as rosas da saudade
dentro em nosso coração.

Estribilho:
Jardim de afetos,
pombal de amores
Humildes tetos
de pescadores…
Se a lua brilha,
que bem nos dá
Amar na Ilha
de Paquetá


Poemas e Poesias terça, 13 de junho de 2023

HAICAIS DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA

HAICAIS

Guilherme de Almeida

 

 

 

O PENSAMENTO

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.





HORA DE TER SAUDADE

Houve aquele tempo...
(E agora, que a chuva chora,
ouve aquele tempo!)





INFÂNCIA

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".





CIGARRA

Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.





CONSOLO

A noite chorou
a bolha em que, sobre a folha,
o sol despertou.





CHUVA DE PRIMAVERA

Vê como se atraem
nos fios os pingos frios!
E juntam-se. E caem.





NOTURNO

Na cidade, a lua:
a jóia branca que bóia
na lama da rua.





OS ANDAIMES

Na gaiola cheia
(pedreiros e carpinteiros)
o dia gorjeia.





TRISTEZA

Por que estás assim,
violeta? Que borboleta
morreu no jardim?





PESCARIA

Cochilo. Na linha
eu ponho a isca de um sonho.
Pesco uma estrelinha.





JANEIRO

Jasmineiro em flor.
Ciranda o luar na varanda.
Cheiro de calor.





DE NOITE

Uma árvore nua
aponta o céu. Numa ponta
brota um fruto. A lua?





FRIO

Neblina? ou vidraça
que o quente alento da gente,
que olha a rua, embaça?





FESTA MÓVEL

Nós dois? - Não me lembro.
Quando era que a primavera
caía em setembro?





ROMANCE

E cruzam-se as linhas
no fino tear do destino.
Tuas mãos nas minhas.


Poemas e Poesias segunda, 12 de junho de 2023

O PRIMEIRO FILHO (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

 

O PRIMEIRO FILHO

Guerra Junqueiro

 

 

(Carta ao amigo Bernardo Pindela)

Entre tanta miséria e tantas coisas vis
          Deste vil grão de areia,
Ainda tenho o condão de me sentir feliz
          Com a ventura alheia.

À minha noite triste, à noite tormentosa,
          Onde busco a verdade,
Chegou com asas d'oiro a canção cor-de-rosa
          Da tua felicidade.

És pai, viste nascer um fragmento d'aurora
          Da tua alma, de ti...
Oh, momento divino em que o sorriso chora,
          E em que o pranto sorri!

Que ventura radiante! oh que ventura infinda!
          Olímpicos amores
Ter frutos em Abril com o vergel ainda
          Carregado de flores!

Deslumbramento!... ver num berço o teu futuro
          Sorrindo ao teu presente!...
Ter a mulher e a mãe: juntar o beijo puro
          Com o beijo inocente!...

Eu que vou, javali de flanco ensanguentado,
          Pelos rudes caminhos
Ajoelho quando escuto à beira dum valado
          Os murmúrios dos ninhos!

Em tudo que alvorece há um sorriso d'esperança,
          Candura imaculada!...
E quer seja na flor, quer seja na criança
          Sente-se a madrugada.

Quando, como um aroma, o hálito da infância
          Passa nos lábios meus
Vejo distintamente encurtar-se a distância
          Entre a minh'alma e Deus.

A mão para apontar o azul, mão cor-de-rosa
          Que aconselha e domina,
Será tanto mais forte e tanto mais bondosa
          Quanto mais pequenina.


Poemas e Poesias domingo, 11 de junho de 2023

DESEJO INÚTIL (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

DESEJO INÚTIL

Francisca Júlia

 

 

 

[Ao querido mestre e amigo

                  Vicente de Carvalho]

 

Qualquer cousa afinal de belo escolher devo

Para em verso plasmar no esforço da obra prima:

Flor que viceja á sombra, aza que paira em cima,

Aroma de um pomar ou de um campo de trevo.

 

Aroma, ou asa, ou flor... Tudo o que diga e exprima

Perde, ao moldar-se em verso, o seu próprio relevo,

Porque sinto, mau grado a gloria com que escrevo,

Presa a imaginação no limite da rima.

 

Não vai pois provocar, e sem que isto te praza,

Minh alma, e por amor d arte que se não doma,

A mágoa que te dói e a febre que te abrasa:

 

O aroma, sente! Est’asa, admira! esta flor, toma!

Mas deixa continuar inexprimidas a asa,

A beleza da flor e a frescura do aroma.


Poemas e Poesias sábado, 10 de junho de 2023

NESTA AUSÊNCIA (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

NESTA AUSÊNCIA

Gilka Machado

 

 

 

Nesta ausência que me excita,
tenho-te, à minha vontade,
numa vontade infinita...
Distância, sejas bendita!
Bendita sejas, saudade!

Teu nome lindo...Ao dizê-lo
queimo os lábios, meu amor!
- O teu nome é um setestrelo
na noite da minha dor.

Nunca digas com firmeza
que a mágoa apenas crucia:
a saudade é uma tristeza,
que nos dá tanta alegria!

Passo horas calada e queda,
a rever, a relembrar
as duas asas de seda
do teu langoroso olhar.

Se a mágoa nos não conforta,
por que é que a felicidade
tem mais sabor quando morta,
depois que se faz saudade?


Poemas e Poesias sexta, 09 de junho de 2023

CASTELÃ DA TRISTEZA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

CASTELÃ DA TRISTEZA

Florbela Espanca

 

 

 

 

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor ...
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês? ... A quem? ...
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr ...
Chora o silêncio ... nada ... ninguém vem ...

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais? ...

À noite, debruçada, plas ameias,
Porque rezas baixinho? ... Porque anseias? ...
Que sonho afagam tuas mãos reais? ...


Poemas e Poesias quinta, 08 de junho de 2023

A ALEGRIA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A ALEGRIA

Ferreira Gullar

 

 

 

O sofrimento não tem
nenhum valor
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos

espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.


Poemas e Poesias quarta, 07 de junho de 2023

DÁ A SURPRESA DE SER (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DÁ A SURPRESA DE SER

Fernando Pessoa

 

 

 

Dá a surpresa de ser

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

 

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

 

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

 

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?


Poemas e Poesias terça, 06 de junho de 2023

OS LÊMURES (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

OS LÊMURES

Euclides da Cunha

 

 

Ó minha musa — imaculada e santa!
Deixa um momento os sonhos teus benditos
Despe os teus véus de noiva do ideal
Deixa-os, despe-os e canta
Sobre as ruínas trágicas do mal
As almas arruinadas dos malditos!…


Poemas e Poesias segunda, 05 de junho de 2023

TROVAS HUMORÍSTICAS - 20 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 20

Eno Teodoro Wanke

 

O mesmo vento que agita

As saias e expõe, trocista

Alguma perna bonita

Nos joga areia na vista

 


Poemas e Poesias domingo, 04 de junho de 2023

O BEATA SOLITUDO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

O BEATA SOLITUDO

Da Costa e Silva

 

 

 

Amada solidão, silêncio amigo,
Vosso convívio me é tão grato e ameno
Que, voluntariamente, me condeno
A viver só, para vos ter comigo.

Alheio ao mundo, como um poeta antigo,
Noto, isolado, que ao mais leve aceno,
Me vêm, em ronda, ao espírito sereno
As idéias e imagens que persigo...

Solidão! vem de ti o êxtase infindo
Em que sinto, em constantes primaveras,
Meu ser a natureza refletindo...

Silêncio! enchendo o espaço onde me esperas,
Sonho, como Pitágoras, ouvindo
A harmonia divina das esferas.


Poemas e Poesias sábado, 03 de junho de 2023

ANTÍFONA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ANTÍFONA

Cruz e Sousa

 

 

 

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

5Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,
10Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
15Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
20Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

25Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
30De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões álacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
35Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
40Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...


Poemas e Poesias sexta, 02 de junho de 2023

SONETO IV (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANOEL DA COSTA)

SONETO IV

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 

Sou pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;

Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.

Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;

Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

 


Poemas e Poesias quinta, 01 de junho de 2023

MANIAS! (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

MANIAS!

Cesário Verde

 

 

 

O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, -- hoje uma ossada, --
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!


Poemas e Poesias quarta, 31 de maio de 2023

PARA IR À LUA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

PARA IR À LUA

Cecília Meireles

 

 

 

 

Enquanto não têm foguetes
para ir à Lua
os meninos deslizam de patinete
pelas calçadas da rua.

Vão cegos de velocidade:
mesmo que quebrem o nariz,
que grande felicidade!
Ser veloz é ser feliz.

Ah! se pudessem ser anjos
de longas asas!
Mas são apenas marmanjos.


Poemas e Poesias segunda, 29 de maio de 2023

O VOO DO GÊNIO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

 

O VOO DO GÊNIO

Castro Alves 

 

À ATRIZ EUGÊNIA CÂMARA


Um dia, em que na terra a sós vagava
Pela estrada sombria da existência,
Sem rosas — nos vergéis da adolescência,
Sem luz destrela — pelo céu do amor;
Senti as asas de um arcanjo errante
Roçar-me brandamente pela fronte,
Como o cisne, que adeja sobre a fonte,
As vezes toca a solitária flor.

E disse então: "Quem és, pálido arcanjo!
Tu, que o poeta vens erguer do pego?
Eras acaso tu, que Milton cego
Ouvia em sua noite erma de sol?
Quem és tu? Quem és tu?" — "Eu sou o gênio",
Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo,
Quero contigo me arrojar no espaço,
Onde tenho por croas o arrebol".

"Onde me levas, pois?.. . " — "Longe te levo
Ao país do ideal, terra das flores,
Onde a brisa do céu tem mais amores
E a fantasia — lagos mais azuis. . . "
E fui... e fui... ergui-me no infinito,
Lá onde o vôo dáguia não se eleva...
Abaixo — via a terra — abismo em treva!
Acima — o firmamento — abismo em luz!

"Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!"
— "Não, poeta, é o vedado paraíso,
Onde os lírios mimosos do sorriso
Eu abro em todo o seio, que chorou,
Onde a loura comédia canta alegre,
Onde eu tenho o condão de um gênio infindo,
Que a sombra de Molière vem sorrindo
Beijar na fronte, que o Senhor beijou. . . "

"Onde me levas mais, anjo divino?"
— "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas,
O canto das esferas namoradas,
Quando eu encho de amor o azul dos céus.
Quero levar-te das paixões nos mares.
Quero levar-te a dédalos profundos,
Onde refervem sóis... e céus... e mundos...
Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é rneu...

"Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia:
A brisa morna, a sombra do arvoredo,
A linfa clara, que murmura a medo,
A luz que abraça a flor e o céu ao mar.
Ó princesa, a razão já se me perde,
És a sereia da encantada Sila.
Anjo, que transformaste-te em Dalila,
Sansão de novo te quisera amar!

"Porém não paras neste vôo errante!
A que outros mundos elevar-me tentas?
Já não sinto o soprar de auras sedentas,
Nem bebo a taça de um fogoso amor.
Sinto que rolo em báratros profundos...
Já não tens asas, águia da Tessália,
Maldições sobre ti... tu és Onfália,
Ninguém te ergue das trevas e do horror.

"Porém silêncio! No maldito abismo,
Onde caí contigo criminosa,
Canta uma voz, sentida e maviosa,
Que arrependida sobe a Jeová!
Perdão! Perdão! Senhor, pra quem soluça,
Talvez seja algum anjo peregrino...
... Mas não! inda eras tu, gênio divino,
Também sabes chorar, como Eloá!

"Não mais, ó serafim! suspende as asas!
Que, através das estrelas arrastado,
Meu ser arqueja louco, deslumbrado,
Sobre as constelações e os céus azuis.
Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo
Mergulhei das paixões nas vagas cérulas...
Mas nos meus dedos — já não cabem — pérolas —
Mas na minhalma — já não cabe — luz!...

 


Poemas e Poesias domingo, 28 de maio de 2023

SONHANDO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

SONHANDO

Casimiro de Abreu

 

 

 

Um dia, oh linda, embalada
Ao canto do gondoleiro,
Adormeceste inocente
No teu delírio primeiro,
- Por leito o berço das ondas,
Meu colo por travesseiro!

Eu, pensativo, cismava
Nalgum remoto desgosto,
Avivado na tristeza
Que a tarde tem, ao sol-posto,
E ora mirava as nuvens,
Ora fitava teu rosto.

Sonhavas então, querida,
E presa de vago anseio
Debaixo das roupas brancas
Senti bater o teu seio,
E meu nome num soluço
À flor dos lábios te veio!

Tremeste como a tulipa
Batida do vento frio...
Suspiraste como a folha
Da brisa ao doce cicio...
E abriste os olhos sorrindo
Às águas quietas do rio!

Depois - uma vez - sentados
Sob a copa do arvoredo,
Falei-te desse soluço
Que os lábios abriu-te a medo...
- Mas tu, fugindo, guardaste
Daquele sonho o segredo!...

 


Poemas e Poesias sábado, 27 de maio de 2023

SONETO (POEMA DO PENRAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO

Carlos Pena Filho

 

 

 

O quanto perco em luz conquisto em sombra.
E é de recusa ao sol que me sustento.
Às estrelas, prefiro o que se esconde
Nos crepúsculos graves dos conventos.

Humildemente envolvo-me na sombra
que veste, à noite, os cegos monumentos
isolados nas praças esquecidas
e vazios de luz e movimento.

Não sei se entendes: em teus olhos nasce
a noite côncava e profunda, enquanto
clara manhã revive em tua face.

Daí amar teus olhos mais que o corpo
com esse escuro e amargo desespero
com que haverei de amar depois de morto.


Poemas e Poesias sexta, 26 de maio de 2023

CANÇÃO AMIGA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CANÇÃO AMIGA

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos

Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não me veem, eu vejo
E saúdo velhos amigos

Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram

Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas

Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças


Poemas e Poesias quinta, 25 de maio de 2023

SONETO 22 - DOCE CONTENTAMENTO JÁ PASSADO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

DOCE CONTENTAMENTO JÁ PASSASO

Soneto 122

Luís de Camões

 

Doce contentamento já passado,
em que todo o meu bem já consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi cruel e dura
aquela, que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhüa criatura,
que não pode nenhum impedimento
fugir do que ordena sua estrela.


Poemas e Poesias quarta, 24 de maio de 2023

SONETO DAS GLÓRIAS CARNAIS (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DAS GLÓRIAS CARNAIS

Bocage

 

 

 

Soneto localizado em um caderno onde poemas de Bocage e de Pedro José Constâncio

estavam misturados, não tendo se chegado em nenhuma conclusão definitiva sobre a

autoria do mesmo.

 

Cante a guerra quem for arrenegado,

Que eu nem palavra gastarei com ele;

Minha Musa será sem par canela

Co'um felpudo coninho abraseado:

 

Aqui descreverei com arreitado

N'um mar de bimbas navegando à vela,

Cheguei, propício o vento, à doce, àquela

Enseada d'Amor, rei coroado:

 

Direi também os beijos sussurrantes,

Os intrincados nós das línguas ternas,

E o aturado fungar de dois amantes :

 

Estas glórias serão na fama eternas;

Às minhas cinzas me farão descantes

Fêmeos vindouros, alargando as pernas.


Poemas e Poesias terça, 23 de maio de 2023

CEM TROVAS - 010 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 

TROVA 010

Belmiro Braga

 

Muitas vezes imagino
Nos meus dias desolados
Que o meu coração é um sino
Dobrando sempre a finados


Poemas e Poesias segunda, 22 de maio de 2023

VENCEDOR (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

V

 

V

VENCEDOR

Augusto dos Anjos

 

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração – estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem…
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!


Poemas e Poesias domingo, 21 de maio de 2023

LEMBRANÇAS DE MORRER (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

LEMBRANÇAS DE MORRER

Álvares de Azevedo

 

 

 

No more! O never more!
SHELLEY

Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro…
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro…

Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia,
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — e dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas…
E de ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que por minhas tristezas te definhas!

De meu pai… de meus únicos amigos,
Poucos, — bem poucos! e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoidecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei!… que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Ó tu, que à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores…
Se vivi… foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo…
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu! eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz! e escrevam nela:
— Foi poeta, sonhou e amou na vida. —

Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protejei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe um canto!

Mas quando preludia ave d’aurora
E quando, à meia-noite, o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri as ramas…
Deixai a lua pratear-me a lousa!

 


Poemas e Poesias sábado, 20 de maio de 2023

NÃO TE AMO (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

NÃO TE AMO

Almeida Garrett

 

 

 

Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
      E eu n’alma - tenho a calma,
      A calma - do jazigo.
      Ai! não te amo, não.
Não te amo, quero-te: o amor é vida.
      E a vida - nem sentida
      A trago eu já comigo.
      Ai, não te amo, não!
Ai! não te amo, não; e só te quero
      De um querer bruto e fero
      Que o sangue me devora,
      Não chega ao coração.
Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
      Quem ama a aziaga estrela
      Que lhe luz na má hora
      Da sua perdição?
E quero-te, e não te amo, que é forçado,
      De mau, feitiço azado
      Este indigno furor.
      Mas oh! não te amo, não.
E infame sou, porque te quero; e tanto
      Que de mim tenho espanto,
      De ti medo e terror...
      Mas amar!... não te amo, não.


Poemas e Poesias sexta, 19 de maio de 2023

NOTURNO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

NOTURNO

Alceu Wamosy

 

 

 

Tu pensarás em mim, por esta noite imensa
e erma, em que tudo é um frio e um silêncio profundo?
Tu pensarás em mim? Por esta noite, enfermo,
tendo os olhos em febre e a voz cheia de sustos,
eu penso em ti, no teu amor e na promessa
muda que o teu olhar me fez e que eu espero.

(Que dor de não saber se tu pensas em mim!)

Sob a tenda da noite estrelada de outono,
que eu contemplo através os cristais da janela,
junto ao manso tepor da lâmpada que escuta
— antiga confidente — os meus sonhos e as minhas
vigílias de tormento, eu penso em ti, divina.

(E tu talvez nem te recordes deste ausente!)

Penso em ti. Penso e evoco o teu vulto adorado.
Penso nas tuas mãos — um lis de cinco pétalas —
que, em vez de sangue, têm luar dentro das veias;
nos teus olhos, que são Noturnos de Chopin
agonizando à luz de uma tarde de sonho;
na tua voz, que lembra um beijo que se esfolha.
Penso.

(E nem sei se tu também pensas em mim!)

Talvez não. No tranquilo altar da tua alcova,
onde se extingue a luz de um velho candelabro
como uma lâmpada votiva, tu adormeces
sorrindo ao Anjo fiel que as tuas pálpebras fecha
para que tu não tenhas sonhos maus.

E eu penso
em ti, sem sono, a sós, angustiado e febril,
em ti, que nem eu sei se te lembras de mim...


Poemas e Poesias quinta, 18 de maio de 2023

FLOR DE CAVERNA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

FLOR DE CAVERNA

Alberto de Oliveira

 

 

 

Fica às vezes em nós um verso a que a ventura
Não é dada jamais de ver a luz do dia;
Fragmento de expressão de idéia fugidia,
Do pélago interior bóia na vaga escura.

Sós o ouvimos conosco; à meia voz murmura,
Vindo-nos da consciência a flux, lá da sombria
Profundeza da mente, onde erra e se enfastia,
Cantando, a distrair os ócios da clausura.

Da alma, qual por janela aberta par e par,
Outros livre se vão, voejando cento e cento
Ao sol, à vida, à glória e aplausos. Este não.

Este aí jaz entaipado, este aí jaz a esperar
Morra, volvendo ao nada, — embrião de pensamento
Abafado em si mesmo e em sua escuridão.


Poemas e Poesias quarta, 17 de maio de 2023

ESTÃO SE ADIANTANDO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

ESTÃO SE ADIANTANDO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Eles estão se adiantando, os meus amigos.
Sei que é útil a morte alheia
para quem constrói seu fim.
Mas eles estão indo, apressados,
deixando filhos, obras, amores inacabados
e revoluções por terminar.
Não era isto o combinado.
 
Alguns se despedem heróicos,
outros serenos. Alguns se rebelam.
O bom seria partir pleno.
 
O que faço? Ainda agora
um apressou seu desenlaçe.
Sigo sem pressa. A morte
exige trabalho, trabalho lento
como quem nasce.

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Poemas e Poesias terça, 16 de maio de 2023

OBJETO DE AMOR (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

 

OBJETO DE AMOR

Adélia Prado

 

 

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.


Poemas e Poesias segunda, 15 de maio de 2023

POEMA SIMPLES (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

POEMA SIMPLES

Adalgisa Nery

 

 

 

Deixa-me recolher as rosas que estão morrendo nos jardins da noite,
Deixa-me recolher o fruto antes que este volva as raízes da terra,
Deixa-me recolher a estrela úmida
Antes que sua luz desapareça na madrugada,
Deixa-me recolher a tristeza da alma
Antes que a lágrima banhe a pálpebra
Do órfão abandonado e faminto,
Deixa-me recolher a ternura parada
No coração da mulher que desejou ser mãe.
Deixa-me recolher a esperança dos que acreditam,
Recolher o que ainda não passou
E mais do que tudo dá-me a recolher
A palavra de amor e de doçura para que reparta
Com os ouvidos que esperam como uma gota de mel
Caindo na alma e no coração,
Como a única luz dentro de tanta escuridão.


Poemas e Poesias domingo, 14 de maio de 2023

RENÚNCIA (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

RENÚNCIA

Virgínia Victorino

 

 

 

Fui nova, mas fui triste; só eu sei
como passou por mim a mocidade!
Cantar era o dever da minha idade…
Devia ter cantado, e não cantei!

Fui bela. Fui amada. E desprezei…
Não quis beber o filtro da ansiedade.
Amar era o destino, a claridade…
Devia ter amado, e não amei!

Ai de mim! Nem saudades, nem desejos;
nem cinzas mortas, nem calor de beijos…
— Eu nada soube, nada quis prender!

E o que me resta? Uma amargura infinda:
ver que é, para morrer, tão cedo ainda,
e que é tão tarde já para viver!


Poemas e Poesias sábado, 13 de maio de 2023

A MORTE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MORTE

Vinícius de Moraes

 

 

 

 

A morte vem de longe 
Do fundo dos céus 
Vem para os meus olhos 
Virá para os teus 
Desce das estrelas 
Das brancas estrelas 
As loucas estrelas 
Trânsfugas de Deus 
Chega impressentida 
Nunca inesperada 
Ela que é na vida 
A grande esperada! 
A desesperada 
Do amor fratricida 
Dos homens, ai! dos homens 
Que matam a morte 
Por medo da vida.


Poemas e Poesias sexta, 12 de maio de 2023

SAUDADE (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

SAUDADE

Vicente de Carvalho

 

 

 

Belos amores perdidos,
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos, sim: esquecer-vos
Fora demais, não o fiz.

Tudo se arranca do seio,
– Amor, desejo, esperança…
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.

Roseira cheia de rosas,
Roseira cheia de espinhos,
Que eu deixei pelos caminhos,
Aberta em flor, e parti:

Por me não perder, perdi-te:
Mas mal posso assegurar-me,
– Com te perder e ganhar-me,
Se ganhei, ou se perdi…

 

Poemas e Poesias quinta, 11 de maio de 2023

PRA DIZER ADEUS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

PRA DIZER ADEUS

Torquato Neto

 

 

 

 

adeus
vou pra não voltar
e onde quer que eu vá
sei que vou sozinho
tão sozinho amor
nem é bom pensar
que eu não volto mais
desse meu caminho

ah,
pena eu não saber
como te contar
que o amor foi tanto
e no entanto eu queria dizer
vem
eu só sei dizer
vem
nem que seja só
pra dizer adeus.

 


Poemas e Poesias quarta, 10 de maio de 2023

OS ESTATUTOS DO HOMEM (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

OS ESTATUTOS DO HOMEM

Thiago de Mello

 

 

 

Artigo I 
Fica decretado que agora vale a verdade. 
agora vale a vida, 
e de mãos dadas, 
marcharemos todos pela vida verdadeira. 
 
Artigo II 
Fica decretado que todos os dias da semana, 
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Artigo III  
Fica decretado que, a partir deste instante, 
haverá girassóis em todas as janelas, 
que os girassóis terão direito 
a abrir-se dentro da sombra; 
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
abertas para o verde onde cresce a esperança. 

Artigo IV   
Fica decretado que o homem 
não precisará nunca mais 
duvidar do homem. 
Que o homem confiará no homem 
como a palmeira confia no vento, 
como o vento confia no ar, 
como o ar confia no campo azul do céu. 

        Parágrafo único:  
        O homem, confiará no homem 
        como um menino confia em outro menino. 

Artigo V  
Fica decretado que os homens 
estão livres do jugo da mentira. 
Nunca mais será preciso usar 
a couraça do silêncio 
nem a armadura de palavras. 
O homem se sentará à mesa 
com seu olhar limpo 
porque a verdade passará a ser servida 
antes da sobremesa. 

Artigo VI  
Fica estabelecida, durante dez séculos, 
a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 

Artigo VII  
Por decreto irrevogável fica estabelecido  
o reinado permanente da justiça e da claridade,  
e a alegria será uma bandeira generosa  
para sempre desfraldada na alma do povo. 

Artigo VIII   
Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre 
não poder dar-se amor a quem se ama 
e saber que é a água 
que dá à planta o milagre da flor. 

Artigo IX   
Fica permitido que o pão de cada dia 
tenha no homem o sinal de seu suor.   
Mas que sobretudo tenha  
sempre o quente sabor da ternura. 

Artigo X  
Fica permitido a qualquer  pessoa, 
qualquer hora da vida, 
uso do traje branco. 

Artigo XI   
Fica decretado, por definição, 
que o homem é um animal que ama  
e que por isso é belo, 
muito mais belo que a estrela da manhã. 

Artigo XII   
Decreta-se que nada será obrigado  
nem proibido, 
tudo será permitido,  
inclusive brincar com os rinocerontes  
e caminhar pelas tardes  
com uma imensa begônia na lapela. 

        Parágrafo único:  
        Só uma coisa fica proibida: 
        amar sem amor. 

Artigo XIII   
Fica decretado que o dinheiro 
não poderá nunca mais comprar 
o sol das manhãs vindouras. 
Expulso do grande baú do medo, 
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal 
para defender o direito de cantar 
e a festa do dia que chegou. 

Artigo Final.   
Fica proibido o uso da palavra liberdade,  
a qual será suprimida dos dicionários  
e do pântano enganoso das bocas. 
A partir deste instante 
a liberdade será algo vivo e transparente 
como um fogo ou um rio, 
e a sua morada será sempre  
o coração do homem.


Poemas e Poesias terça, 09 de maio de 2023

FLORES LUXEMBURGUESAS (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

FLORES LUXEMBURGUESAS

Sousândrade

 

 

 

Não é, não é alegria,

Nem é tristeza sombria

Que sinto me atravessar.

Grato, grato sentimento

De um passado encantamento –

Por toda parte a lembrar!

Eram as roxas florestas,

As sagradas sombras mestas

Nossos berços da soidão:

Se deles tendes as flores, –

A saudade dos amores

Em vós reconheço estão.


Poemas e Poesias segunda, 08 de maio de 2023

AS LETRAS (POEM ADO BAIANO RICARDO LIMA)

AS LETRAS

Ricardo Lima

 

 

 

Juntas, poeiras.

Soltas, certezas.

Abraços, certos de palavras...

 

As letras...


Poemas e Poesias domingo, 07 de maio de 2023

IRONIA! (OEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

IRONIA!

Raul de Leôni

 

Ironia! Ironia!
Minha consolação! Minha filosofia!
Imponderável máscara discreta
Dessa infinita dúvida secreta,
Que é a tragédia recôndita do ser!
Muita gente não te há de compreender
E dirá que és renúncia e covardia!
Ironia! Ironia!
És a minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito, sorrindo!
O pudor da Razão diante da Vida!


Poemas e Poesias sábado, 06 de maio de 2023

O QUE É FOLCLORE? (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O QUE É O FOLCLORE?

Patativa do Assaré

 

 

 

Posso lhe afirmá também:
Folclore é superstição,
O medo que você tem
Do canto do corujão.
Folclore é aquele instrumento
Para o seu divertimento
Que chamamos berimbau;
E também a brincadeira
Ritmada e prazenteira
Chamada Maneiro-Pau.

Folclore, meu camarada,
Ouvimos a toda hora,
É históra de alma penada,
De lobisome e caipora.
Preste atenção e decore,
Pois, com certeza, folclore
Ainda posso dizer
Que é aquele búzio de osso
Que você põe no pescoço
Do filho pra não morrer.

É o aboio magoado
Do vaqueiro na amplidão.
É o festejo animado
Da debulha do feijão,
Carro de boi e gaiola
E desafio, à viola,
Do cantador popular
E também a toadinha
Da Ciranda-Cirandinha
Vamos todos cirandar.

Eu e você que vivemos
No nosso pobre sertão
Muitas coisas inda temos
Da popular tradição:
Além de outras, o girau
E a carrocinha de pau,
Em vez de bonito carro.
Que prazer, satisfação,
A gente comer pirão
Mexido em prato de barro!

E agora, prezado irmão,
Estes versos lhe dedico.
Lhe dei alguma noção
Do nosso folclore rico.
Não posso continuar,
Pois nada pude estudar,
De dentro do tema saio.
O resto lhe dirá tudo
Romão Filgueira Sampaio,
Mainá e Câmara Cascudo.

De conservar o folclore
Todos têm obrigação,
Para que nunca descore
A popular tradição.
Os homens de grande estudo,
Como Mainá e Cascudo,
Guardam sempre nos arquivo
Populares tradições,
Cantigas, superstições
E costumes primitivos.

Você, caboclo, que cresce,
Sem instrução nem saber,
Escuta, mas não conhece
Folclore o que quer dizer:
O folclore é um pilão,
É um bodoque, um pião,
Garanto que também é
Uma grosseira cangalha,
Aparelhada de palha
De palmeira ou catolé.


Poemas e Poesias quinta, 04 de maio de 2023

CONSELHO DE AMIGO (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

CONSELHO DE AMIGO

Olegário Mariano

 

 

 

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,
Gosto da tua frívola cantiga,
Mas vou dar-te um conselho, rapariga:
Trata de abastecer o teu celeiro.

Trabalha, segue o exemplo da formiga,
Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro,
E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,
Pedirás… e é bem triste ser mendiga!

E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava
(Quem dá conselhos sempre se consome…)
Continuava cantando… continuava…

Parece que no canto ela dizia:
– Se eu deixar de cantar morro de fome…
Que a cantiga é o meu pão de cada dia.


Poemas e Poesias quarta, 03 de maio de 2023

ALEXANDRE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

ALEXANDRE

Olavo Bilac

 

 

 

Quem te cantara um dia a ambição desmarcada,

Filho da heráclia estirpe! e o clamor infinito

Com que o povo da Emátia acorreu ao teu grito,

Voando, como um tufão, sobre a terra abrasada!

 

Do Adriático mar ao Índus, e do Egito

Ao Cáucaso, o fulgor do aceiro dessa espada

Prosternava, a tremer, sobre a lama da estrada,

Ídolos de ouro e bronze, e esfinges de granito.

 

Mar que regouga e estronda, espedaçando diques,

- Aos confins da Ásia rica as falanges corriam,

Encrespadas de fúria e erriçadas de piques.

 

E do sangue, do pó, dos destroços da guerra,

Aos teus pés, palpitando, as cidades nasciam,

E a Alma Grega, contigo, avassalava a Terra!

 


Poemas e Poesias terça, 02 de maio de 2023

O BATALHÃO DAS LETRAS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA) VÍDEO


Poemas e Poesias segunda, 01 de maio de 2023

DESESPERANÇA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

DESESPERANÇA

Manuel Bandeira

 

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado, a Terra
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...
— Ah, como dói viver quando falta a esperança!


Poemas e Poesias domingo, 30 de abril de 2023

O MENINO E O CÓRREGO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O MENINO E O CÓRREGO

Manoel de Barros

 

 

 

I
A água é madura.
Com penas de garça.
Na areia tem raiz
de peixes e de árvores.
Meu córrego é de sofrer
pedras Mas quem beijar seu corpo
é brisas…
II
O córrego tinha um cheiro
de estrelas
nos sarãs anoitecidos
O córrego tinha
suas frondes
distribuídas
aos pássaros
O córrego ficava à beira
de um menino…
III
No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas
A água escorria
por entre as pedras
um chão sabendo
a aroma de ninhos.
IV
Ai
que transparente
aos voos
está o córrego!
E usado
de murmúrios…
V
Com a boca escorrendo chão
o menino despetalava o córrego
de manhã todo no seu corpo.
A água do lábio relvou entre pedras…
Árvores com o rosto arreiado
de seus frutos
ainda cheiravam a verão
Durante borboletas com abril
esse córrego escorreu só pássaros…

Poemas e Poesias sábado, 29 de abril de 2023

VERSO MÍSSIL (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

VERSO MÍSSIL

Luís Turiba

 

 

 

Quisera fazer um verso
com a sublime arritmia do amor
um verso míssil
neurastênico e febril
ar do dia anterior à criação do universo

Um verso instantâneo e uno
momento raro
como em Let It Be
(um órgão clássico bachiano
entrelaça-se ao solo rock da guitarra de Harrison)
perfeita harmonia, divino encaixe

Ficam as lembranças
das perfeições carnais
como notas musicais

Ah, meu grande amor!
erguerei um dia tamanho verso
nanico faminto camundongo e sábio
como um menino de rua brasileiro

Um verso de trivela
transverso e subversivo
acorde de uma nuvem cor-de-rosa
cheiro da cor da maçã
o gosto do suor e dos raios de vida que transitam por nossos corpos

Um verso de fogo e batom
histórico histérico e erudito
alexandrino perfeito
tão alexandrino como teu nome de solteira
tão perfeito e feroz
como as garras de um tigre faminto
rasgando a alma de sua presa


Poemas e Poesias sexta, 28 de abril de 2023

HINO AO TABACO (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

HINO AO TABACO

Júlio Dinis

 

 

 

No centro dos círculos De nuvens de fumo, Um deus me presumo,
Um deus sobre o altar! Nem doutros turíbulos
Me apraz tanto o incenso Como o deste imenso Cachimbo exemplar!

Em divas esplêndidos, Cruzadas as pernas, Fuma, horas eternas.
O ardente sultão Subindo-lhe ao cérebro O mágico aroma, Esquece Mafoma,
Houris e Alcorão.

Longe, oh! longe o ópio, Que os sonhos deleita
Da mísera seita
Dos Theriakis!
Horror ao narcótico
Que vem das papoulas!
E ao que arde em caçoulas
No altar de Caciz!


Que a raça gentílica Das zonas ardentes Consuma as sementes Do arábio café.
Despejem-se as chávenas
Da atroz beberagem
Da cor do selvagem
Da adusta Guiné.

E a tal folha exótica, Delícias da China, Por nossa má sina Trazida de lá,
Servida em família
Num morno hidro-infuso?... Anátema ao uso
Das folhas do chá!

Nem tu, ó alcoólico Humor dos lagares, Terás meus cantares, Meus hinos terás, Embora das ânforas, Vazado nas taças,
Aos outros tu faças, A língua loquaz.

Cerveja britânica, De furor espuma? De coisa nenhuma Me podes servir.
Quando oiço do lúpulo
Gabarem proezas
Às boas inglesas,
Desato-me a rir.

Nem venha da cânfora
Pregar maravilhas
O das cigarrilhas
Famoso inventor.
Raspail é cismático
E eu sou ortodoxo
O seu paradoxo
Não me há-de ele impor.


Meu canto é da América, País do tabaco,
Perante o qual Baco
Seu ceptro partiu.
A Europa, Ásia e África
E a Terra hoje toda
Este herói da moda
De fumo cobriu.

Até na Lapónia
Da gente pequena,
Se fuma; e no Sena,
No Tibre e no Pó,
No Volga e no Vístula,
No Tejo e no Douro;
Que imenso tesouro
Se deve a Nicot!

Meus áridos lábios
Mais fumo inda aspirem;
Que os parvos suspirem
Por beijos aos mil.
Não quero outros ósculos,
Não quero outra amante..
Qual mais doudejante
Que o fumo subtil?

Tornadas Vesúvios, As bocas fumegam
De nuvens que cegam Vomitam montões. Fumar! Oh delícias! Prazer de nababo!
E leve o Diabo
Do mundo as paixões.


 


Poemas e Poesias quinta, 27 de abril de 2023

UM MONSTRO FLUI NESSE POEMA (POEMA DO ALAGOANO JORE DE LIMA)

UM MONSTRO FLUI DESSE POEMA

Jorge de Lima

 

 

 

Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.

A abóbada estreita mana
a loucura cotidiana.

Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.

O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.

Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?

Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.

E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.

Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.

Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.


Poemas e Poesias quarta, 26 de abril de 2023

RIOS SEM DISCURSO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

RIOS SEM DISCURSO

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

 


Poemas e Poesias terça, 25 de abril de 2023

EXALTAÇÃO DO AMOR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

EXALTAÇÃO DO AMOR

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Sofro, bem sei... Mas se preciso fôr
sofrer mais, mal maior, extraordinário, 
sofrerei tudo o quanto necessário
para a estrêla alcançar... colher a flor...

Que seja imenso o sofrimento, e vário!
Que eu tenha que lutar com força e ardor! 
Como um louco talvez, ou um visionário 
hei de alcançar o amor... com o meu Amor!

Nada me impedirá que seja meu
se é fogo que em meu peito se acendeu 
e lavra, e cresce, e me consome o Ser...

Deus o pôs... Ninguém mais há de dispor! 
Se esse amor não puder ser meu viver 
há de ser meu para eu morrer de amor!


Poemas e Poesias segunda, 24 de abril de 2023

PÁSSAROS (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST) - VÍDEO

PÁSSAROS

Hilda Hilst

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de abril de 2023

JOGOS E SOMBRAS (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

JOGOS E SOMBRAS

Hermes Fontes

 

 

 

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,
pois há pedaços do meu ser que andam dispersos
nas sombras do jardim,
nos silêncios da noite,
nas músicas do mar,
e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos
nesta serena unção crepuscular
que lhes prolonga o trágico tresnoite
da vigília sem fim,
abro meu coração, como um jardim,
e desfolho a corola dos meus versos,
faz-me lembrar a alma que esteve em mim,
e que, um dia, perdi e vivo a procurar
nos silêncios da noite,
nas sombras do jardim,
na música do mar...


Poemas e Poesias sábado, 22 de abril de 2023

FLOR DO SAFALDO (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

FLOR DO ASFALTO

Guilherme de Almeida

 

 

 

Flor do asfalto, encantada flor de seda,
sugestão de um crepúsculo de outono,
de uma folha que cai, tonta de sono,
riscando a solidão de uma alameda...

Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe
Qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um gume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade!


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