Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quinta, 20 de junho de 2024

TESTAMENTO LÍRICO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

TESTAMENTO LÍRICO

Hilda Hilst

 

 

 

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras doiradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.
E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.
Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.

Poemas e Poesias quarta, 19 de junho de 2024

SUAVE AMARGOR (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

SUAVE AMARGOR

Hermes Fontes

 

 

 

Sofrer é o menos, minha suave Amiga;
todos têm sua cruz ou seu cajado
— cruz de dor, ou cajado de dever...

Este é sereno; aquele se afadiga:
um, só pelo desejo contrariado,
outro, por esperar, sem nunca obter.

Tudo muda, dirás... Mas, certamente,
não muda a luz: — vem sempre do Nascente
para o mesmo calvário de Sol-Pôr!

Sofrer é o menos... A dificuldade
é sofrer sem protesto e sem rancor;
é morrer sem tristeza e sem saudade:

Morrer, de olhos em Deus, devagarzinho,
ciciando uma palavra de carinho
aos que vivem sem fé e sem amor...


Poemas e Poesias terça, 18 de junho de 2024

NÓS (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

NÓS

Guilherme de Almeida

 

 

Fico - deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.

E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
- "Que é feito dela?" - indagarão - coitados!
E os amigos dirão: - "Que é feito dela?"

Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus;

irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!


Poemas e Poesias segunda, 17 de junho de 2024

OUTRA VIDA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

OUTRA VIDA

Francisca Júlia

 

 

 

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
de sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
lei que me condenou à tortura constante;
porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
na minha solidão a sua voz escuto,
e sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio...


Poemas e Poesias domingo, 16 de junho de 2024

REFLEXÃO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

REFLEXÃO

Gilka Machado

 

 

 

Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.

Em seu vôo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detem-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.

Ela, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento...

Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
- o amor de néctar,
- o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!...


Poemas e Poesias sábado, 15 de junho de 2024

EXALTAÇÃO (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

EXALTAÇÃO

Florbela Espanca

 

 

 

Viver! Beber o vento e o sol! Erguer
Ao céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!

A chama, sempre rubra, ao alto a arder!
Asas sempre perdidas a pairar!
Mais alto até estrelas desprender!
A glória! A fama! Orgulho de criar!

Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos estáticos, pagãos!

Trago na boca o coração dos cravos!
Boêmios, vagabundos, e poetas,
Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!


Poemas e Poesias sexta, 14 de junho de 2024

IMPROVISO ORDINÁRIO SOBRE A CIDADE MARAVILHOSA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

IMPROVISO ORDINÁRIO SOBRE A CIDADE MARAVILHOSA

Ferreira Gullar

(Grafia original)

 

 

 

Comove-me pensar
que nas porcelanas e cristais da Casa Maillet
na Rua dos Ourives
num dia qualquer do ano de 1847, nesta cidade do Rio de Janeiro,
(na borda de um cálice)
cintilava a uma luz da tarde
e lá fora
onde a tarde nada tinha do bom-tom parisiense
entre carroças puxadas a burro e homens suados
negros no ganho
o vento levantava a poeira do dia e do século
(entranhado na carne das pessoas
e que com elas
haveria de morrer).

Sem sacanagem,
me comove pensar na tranquilidade da loja
fundada em 1843
com suas estantes de vidro
cheias de preciosidades
- vasos, taças, jarros -
que tocaram o coração de algumas poucas
senhoras cariocas
de gosto requintado e vida vã.

E se penso na loja penso na cidade
desdobrando-se em ruelas, becos e ladeiras,
em sobrados e igrejas,
fervilhando no mercado da Rua do Valongo
onde se leiloavam escravos
enquanto no porto
os navios rangiam o madeirame
sobre as águas dessa mesma baía que ora vemos
atual e azul.
E que
ainda mais azul já a tinham visto
outros olhos humanos
que se apagaram
antes muito antes que houvesse este cais
entre igrejas e praças
o pelourinho
o Mosteiro de São Bento
muito antes que alguma voz de branco ecoasse neste cenário
onde tudo são serranias e rochedos espantosos
com a baía dançando na atualidade do paraíso.

Possivelmente de luvas
(que já então se usavam luvas
na cidade de pouco asseio
e muitas putas)
madame aponta
para uma porcelana de Sévres
e lhe pergunta o preço.

A tarde é quente
na cidade de S.Sebastião do Rio de Janeiro
com suas cadeias apinhadas de presos
respirando o fedor de seus próprios dejetos
arrastando correntes
para ir mendigar no meio da rua,
que o governo não alimenta criminosos.
O governo alimenta nobres
e ladrões finos
ministros, ouvidores, provedores
que empoam a cabeleira
e se cumprimentam com trejeitos importados
se se cruzam nas ruas, no Fórum, nos salões.

Já ninguém anda nu neste cenário
que os brancos
há séculos nos trouxeram a moral e os bons costumes
além da sífilis.
Não obstante, àquela altura
já a cidade transbordava de bastardos e amásias
amores noturnos
que aconteciam por todas as partes
e especialmente nos conventos.
De nada (ou muito?) valeu
a recomendação de Manuel Nóbrega, pedindo ao Rei
que à nova terra mandasse meretrizes
para evitar pecados e aumentar a população a serviço de Deus.
E a população cresceu
a serviço de Deus e de tantos outros
senhores de tez clara
donos de escravos e de terras
que se foram sucedendo
a serviço de Deus e das empresas
agora multinacionais.

Sem sacanagem,
na cidade onde havia mais leprosos que cães vagando pelas ruas,
comove-me saber que
em 1788
estava na moda o guarda-sol branco
em 1789
o verde
e que em 1904 o desbunde eram
os guarda-sóis azuis
de sarja ou tafetá.

Ah, cidade maliciosa
de olhos de ressaca
que das índias guardou a vontade de andar nua
e que, apesar do Toque do Aragão,
do Recolhimento do Parto
e do Prefeito Amaro Cavalcanti
- impondo em 1917 a moralidade rigorosa
nos banhos de mar -
despe-se novamente hoje nas areias de Ipanema.

De pouco valeu manter analfabetas
as mulheres da cidade,
proibi-las de ir à rua,
dopá-las com emulsões de castidade.
Não houve jeito senão criar a Roda
e mais tarde
os hotéis de alta rotatividade.
A população cresceu.
Cresceu talvez não bem como o queriam
o padre Cepeda
e o poeta Bilac.

Cresceu festiva e arruaceira,
mais chegada ao batuque que à novena,
convencida de que só vale a pena
viver se é
pra assistir ao Fla-Flu e arriscar na centena.
Sem falar, claro está, no seu "bacano"
que só pensa na Bolsa e no carro do ano.

Uma cidade é
um amontoado de gente sem terra.
Antes não, nem tanto, antes
havia quintal e no Campo de Santana
as negras lavadeiras
estendiam na grama a roupa enxaguada.
Ah, que saudade de ver roupas na grama!
Já não,
já não que a lira tenho desatinada
e a voz enrouquecida
e não do canto
mas de ver que venho
falar de uma cidade endurecida,
falar de uma cidade poluída
falar de uma cidade
onde a vida é
cada dia menos do que a vida:
asfalto asfalto asfalto
e mais assalto
na Tijuca, na Penha, na Avenida
Nossa Senhora de Copacabana
em pleno dia.
Uma cidade
é um amontoado de gente que não planta
e que come o que compra
e pra comprar se vende.
Uma cidade, como a nossa, é
um labirinto de arranha-céus e transações financeiras,
um mercado de brancos
(de negros, de mulatos,
de malucos)
uma multiplicada Rua do Valongo.
Vendem-se frutas, carnes congeladas,
vendem-se couves, conas, inspiradas
canções de amor, poemas, vendem-se jornadas
inteiras de vida,
noites de sono,
vende-se até o futuro
e a morte
às companhias de seguro.

A tarde se apagou.
As porcelanas
não brilham mais na Rua dos Ourives.
A Casa Maillet fechou as portas
e seu dono fechou o paletó.
De paletó fechado, de camisa
ou sem camisa,
ricos e negros, brancos e pobres,
mulatos, mamelucos,
todos os que passavam pela rua
àquela hora
(quando a mulher de luvas perguntou
pelo preço do vaso)
se foram
com o sol, o pó e os guarda-sóis da época.
A noite
que ardeu nos lampiões de óleo
(depois de gás)
aquela noite e as muitas outras noites
passaram recendendo a carbureto e esperma
voando lentas sobre o Mangue
os nas asas dos aviões
que descem de entre as constelações do céu.
E vem a manhã.
A cidade dá curso à sua história
(de féretros verões e diarréias)
em frente ao mar.
Carregados de dívidas, CPF, relógio de pulso,
entre desastres ecológicos, sob os temporais
de janeiro,
viajamos com ela
pelos espaços estelares,
velozmente.

Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens.


Poemas e Poesias quarta, 12 de junho de 2024

DORME ENQUANTO EU VELO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DORME ENQUANTO EU VELO

Fernando Pessoa

 

 

 

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.

 

A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.

 

Dorme, dorme, dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir.


Poemas e Poesias segunda, 10 de junho de 2024

ÚLTIMO CANTO (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

ÚLTIMO CANTO

Euclides da Cunha

 

 

 

Amigo! estas canções estas filhas selvagens
Das montanhas, da luz, dos céus e das miragens
Sem arte e sem fulgor são um sonoro caos
De lágrimas e luz de plectros bons e maus…
Que ruge no meu peito e no meu peito chora
Sem um fiat de amor sem a divina aurora
De um olhar de mulher…
…perfeitamente o vês
Não sei metrificar, medir, separar pés…
— Pois — um beijo tem leis? — a um canto um núm’ro guia
Pode moldar-se uma alma às leis da geometria?

Não tenho ainda vinte anos.
E sou um velho poeta… a dor e os desenganos
Sagraram-me mui cedo, a minha juventude
É como uma manhã de Londres — fria e rude…

Filho lá dos sertões nas múrmuras florestas
Nesses berços de luz, de aromas de giestas –
Onde a poesia dorme ao canto das cachoeiras
Eu me embrenhava só… as auras forasteiras
Me segredavam baixo os cantos do mistério
E a floresta sombria era como um saltério
Em cujas vibrações minh’alma — ébria — bebia
Esse licor de luz e cantos — a Poesia…

Mui cedo como um elo atroz de luz e pó
Um sepulcro ligara a Deus minh’alma… só
Selvagem, triste e altivo eu enfrentei o mundo
Fitei-o então senti de meu cér’bro no fundo
Rolar iluminando a alma e o coração
C’o a lágrima primeira a primeira canção…
Cantei — porque sofria — e, amigo, no entretanto
Sofro hoje — porque canto…
Já vês, portanto, em mim esta arte de cantar
É um modo de sofrer , é um meio de gozar…
Quem há que meça aí de uma lágrima o brilho
Pois erra-se sofrendo?…
Eu nunca li Castilho.
Detesto francamente esses mestres cruéis
Que esmagam uma ideia sob quebrados pés…
Que vestem c’um soneto esplêndido, sem erro
Um pensamento torto, encarquilhado e perro
Como um correto frac no dorso de um corcunda
Oh sim! quando a paixão o nosso ser inunda
E ferve-nos na artéria, e canta-nos no peito
Como dos ribeirões, o borbulhoso leito
Parar — é sublevar
Medir — é deformar!
Por isso amo a Musset e jamais li Boileau

— 2 —

Esse arquiteto audaz do pensamento — Hugo
Jamais sói refrear o seu verso, terrível
Veloce como a luz, como o raio incoercível!…
Se a lima o toca, ardente, audaz como um corcel
Às esporas revel
Na página palpita e ferve e freme e estoura
Como um raio a vibrar no seio de uma aurora…

Que lime-se num verso uma cadência má!
Que p’los dedos se contem as sílabas — vá lá!
Mas que um tipão qualquer — como muitos que eu vejo —
Espiche, estique e encolha a tod’hora sem pejo
Um desgraçado verso e após tanto medir
Torcer, brunir, sovar, limar, polir… polir
No-lo venha a trazer às pobres das orelhas
Monótono, sem cor, cheio de regras velhas,
Como um casto bijou, feito de sons e luz,
Isto revolta e amola…

Mas, veja ao que conduz
O vago rabiscar de uma pena sem norte
Falava-te de Deus, de mim, da estranha sorte
Que aniila a poesia e acaba num jogral…
Num lorpa, num boçal
Que nos recebe — a pés — e faz do amor uma arte
Deixemo-lo de parte…

— 3 —

Escuta-me, eu teria um imenso prazer
Se podendo domar, curvar, forçar, vencer
O cér’bro e o coração fosse este último canto
O fim de meu sonhar, de meu cantar porquanto


Poemas e Poesias domingo, 09 de junho de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 28 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
 
 

TROVA HUMORÍSTICA 28

Eno Teodoro Wanke

 

Quando um bêbado nos fala

Arrastado, tartamudo

Se não entendemos nada

Ao menos cheiramos tudo

 


Poemas e Poesias sábado, 08 de junho de 2024

SOB O RITMO DO TEMPO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

SOB O SIGNO DO TEMPO

Da Costa e Silva

 

 

A areia, grão a grão, escoa na ampulheta...
Sob o ritmo do tempo, em silêncio medito:
Ai de quem, a sofrer, passou pelo planeta
Sem realizar o seu instante de infinito!

A água cai, gota a gota, a oscilar na clepsidra...
Atento ao seu rumor, penso inquieto e tristonho:
Ai de quem não arou com pranto a terra anidra,
Para atirar ao mundo a semente de um sonho!

A sombra leve azula a pedra do quadrante...
Cismo, absorto, a seguir-lhe o tardo movimento: 
Ai de quem, a viver como uma sombra errante,
Não roçou pelo céu a asa de um pensamento!


Poemas e Poesias sexta, 07 de junho de 2024

CRISTO DE BRONZE (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CRISTO DE BRONZE

Cruz e Sousa

 

 

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensangüentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injurias...

Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!..


Poemas e Poesias quinta, 06 de junho de 2024

VAIDOSA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

VAIDOSA

Cesário Verde

 

 

 

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
a déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito "amor próprio".

 


Poemas e Poesias quarta, 05 de junho de 2024

ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA (TRECHO DO POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELE)

ROMANCE  XIV  OU  DA CHICA  DA  SILVA

Cecília Meireles

 

 

Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!

Cara cor da noite
olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.

(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça rapada
e até dizem que era feia.)

Vestida de tisso,
de raso e de holanda
– é a Chica da Silva:
– é a Chica-que-manda!

Escravas, mordomos
seguem, como um rio,
a dona do dono
do Serro do Frio.

(Doze negras em redor,
– como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)

Um rio que, altiva,
dirige e comanda
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda.

Esplendem as pedras
por todos os lados:
são flechas em selvas
de leões marchetados.

(Diamantes eram, sem jaça,
por mais que muitos quisessem
dizer que eram pedras falsas.)

Mil luzeiros chispam,
à flexão mais branda
da Chica da Silva
da Chica-que-manda!

E curvam-se, humildes,
fidalgos farfantes,
à luz dessa incrível
festa de diamantes.

(Olhava para os reinóis
e chamava-os “marotinhos”!
Que viu desprezo maior?)

Gira a noite gira,
dourada ciranda
da Chica da Silva,
da Chica-que-manda!

E em tanque de assombro
veleja o navio
da dona do dono
do Serro do Frio.

(Dez homens o tripulavam,
para que a negra entendesse
como andam barcos nas águas.)

Aonde o leva a brisa
sobre a vela panda?
– A Chica da Silva:
à Chica-que-manda.

A Vênus que afaga,
soberba e risonha
as luzentes vagas
do Jequitinhonha.

(À Rainha de Sabá,
num vinhedo de diamantes
poder-se-ia comparar.)

Nem Santa Ifigênia,
toda em festa acesa,
brilha mais que a negra,
na sua riqueza.

Contemplai, branquinhas,
na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!

(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)

 

Poemas e Poesias segunda, 03 de junho de 2024

POESIA E MENDICIDADE (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

POESIA E MENDICIDADE

Castro Alves

I

Senhora! A Poesia outrora era a Estrangeira,
Pálida, aventureira, errante a viajar,
Batendo em duas portas — ao grito das procelas —
Ao céu — pedindo estrelas, à terra — um pobre lar!

Visão-de áureos lauréis-porém de manto esquálido,
Mulher-de lábio pálido-e olhar-cheio de luz.
Seus passos nos espinhos em sangue se assinalam...
E os astros lhe resvalam-à flor dos ombros nus...

II

Olhai! O sol descamba... A tarde harmoniosa
Envolve luminosa a Grécia em frouxo véu.
Na estrada ao som da vaga, ao suspirar do vento,
De um marco poeirento um velho então se ergueu.

Ergueu-se tateando... é cego... o cego anseia...
Porém o que tateia aquela augusta mão?...
Talvez busca pegar o sol, que lento expira!...
Fado cruel... mentira!... Homero pede pão!

III

Mas ai! volvei, Senhora, os vossos belos olhos
Daquele mar de abrolhos, a um novo quadro! olhai!
Do vasto salão gótico eu ergo o reposteiro...
O lar é hospitaleiro... Entrai, Senhora, entrei!

Estamos na média idade. Arnês, gládio, armadura
Servem de compostura à sala vasta e chã.
A um lado um galgo esvelto ameiga e acaricia
A mão suave, esguia — à loura castelã.
Vai o banquete em meio... O bardo se alevanta
Pega da lira... canta... uma canção de amor...

Ouvi-o! Para ouvi-lo a estrela pensativa
Alonga pela ogiva um raio de languor!
Dos ramos do carvalho a brisa se debruça...
Na sala alguém soluça... (amor, ou languidez?)
Súbito a nota extrema anseia, treme, rola...
Alguém pede uma esmola... Senhora, não olheis!...

Assim nos tempos idos a musa canta e pede...
Gênio e mendigo... vede... o abismo de irrisões!
Tasso implora um olhar! Vai Ossian mendicante...
Caminha roto o Dante! e pede pão Camões.

IV

Bem sei, Senhora, que ao talento agora
Surgiu a aurora de uma luz amena.
Hoje há salário p'ra qualquer trabalho
Cinzel, ou malho, ferramenta ou penal
Melhor que o Rei sabe pagar o pobre

Melhor que o nobre —protetor verdugo—
Foi surdo um trono... à maior glória vossa.
Abre-se a choça aos Miseráveis de Hugo.
Porém não sei se é por costume antigo,
Que inda é mendigo do cantor o gênio.
Mudem-se os panos do cenário a esmo

O vulto é o mesmo... num melhor proscênio...

V

Hoje o Poeta — caminheiro errante,
Que tem saudade de um país melhor
Pede uma pérola — à maré montante,

Do seio às vagas-pede-um outro amor.
Alma sedenta de ideal na terra
Busca apagar aquela sede atroz!
Pede a harmonia divinal, que encerra
Do ninho o chilro... da tormenta a voz!
E o rir da folha, o sussurrar da fala,

Trenos da estrela no amoroso estio.
Voz que dos poros o Universo exala
Do céu, da gruta, do alcantil, do rio!
Pede aos pequenos, desde o verme ao tojo,
Ao fraco, ao forte... preces, gritos, uivos...
Pede das águias o possante arrojo,

Para encontrar os meteoros ruivos.
Pede à mulher que seja boa e linda
Vestal de um tipo que o ideal revela...
Pois ser formosa é ser melhor ainda...
Se és boa-és luz... mas se és formosa-estrela...
E pede à sombra p'ra aljofrar de orvalhos

A fronte azul da solidão noturna.
E pede às auras p'ra afagar os galhos
E pede ao lírio p'ra enfeitar a fuma.
Pede ao olhar a maciez suave
 
Que tem o arminho e o edredom macio,
O aveludado da penugem d'ave,
Que afaga as plumas no palmar sombrio.
E quando encontra sobre a terra ingrata
Um reverbero do clarão celeste,
— Alma formada de uma essência grata,
Que a lua — doura, e que um perfume veste;

Um rir, que nasce como o broto em maio;
Mostrando seivas de bondade infinda,
Fronte que guarda— a claridade e o raio,
— Virtude e graça — o ser bondosa e linda...

Então, Senhora, sob tanto encanto
Pede o Poeta (que não tem renome)
— Versos - à brisa p'ra vos dar um canto...
Raios ao sol — p'ra vos traçar o nome!...


Poemas e Poesias domingo, 02 de junho de 2024

A UMA PLATEIA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

A UMA PLATEIA

Casimiro de Abreu

 

 

O cedro foi planta um dia,
Viço e força o arbusto cria,
Da vergôntea nasce o galho;
E a flor p’ra ter mais vida,
Para ser – rosa querida –
Carece as gotas de orvalho.

 

Com o talento é o mesmo
Quando tímido ele adeja
– Qual ave que se espaneja –
Como a flor, também precisa
Em vez do sopro da brisa
O sopro da simpatia
Que lhe adoce os amargores,
Para em horas de cansaço
Na estrada que vai trilhando
Encontrar de quando em quando
Por entre os espinhos – flores.

E vós que acabais de ouvi-lo
A suspirar nesse trilo
No seu gorjeio primeiro;
Vós, que viste o seu começo.
Dai-lhe essas palmas de apreço
Que é artista e… brasileiro!


Poemas e Poesias sábado, 01 de junho de 2024

SONETO SUPERFICIAL E ESGUIO COMO MADAME (POEMA DO PEDRNAMBUCANO CARLOS PENS FILHO)

SONETO SUPERFICIAL E ESGUIO COMO MADAME 

Carlos Pena Filho

 

 

 

Madame, em vosso claro olhar, e leve,
navegam coloridas geografias,
azul de litoral, paredes frias,
vontade de fazer o que não deve

ser feito, por ser coisa de outros dias
vivida num instante muito breve,
quando extraímos sal, areia e neve
de vossas mãos, singularmente esguias.

Que eternos somos, dúvida não tenho,
nem posso abandonar minha planície
sem saber se em vós há o que em vós venho

buscar. E embora em nós tudo nos chame,
jamais navegarei a superfície
de vosso claro e leve olhar, Madame.

Poemas e Poesias sexta, 31 de maio de 2024

CONSTRUÇÃO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CONSTRUÇÃO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Um grito pula no ar como foguete.
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
O sorveteiro corta a rua.

E o vento brinca nos bigodes do construtor.

 


Poemas e Poesias quinta, 30 de maio de 2024

SONETO 085 - EM PRISÕES BAIXAS FUI UM TEMPO ATADO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

 

SONETO 085 - EM PRISÕES BAIXAS FUI UM TEMPO ATADO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES) 
 
SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
Luís de Camões
 
 
SONETO 085 - EM PRISÕES BAIXAS FUI UM TEMPO ATADO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES) Grafia original
 
 
 
 
 

Em prisões baixas fui hum tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pezar, tẽe ja quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi miserias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizerão de gostos haver medo.

 

Poemas e Poesias quarta, 29 de maio de 2024

CEM TROVAS - 018 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

 

TROVA 018

Belmiro Braga

 

Teu coração é morada

Que não atrai, felizmente:

– Quem nele arranja pousada

Encontra a cama ainda quente 

 

 


Poemas e Poesias terça, 28 de maio de 2024

TRISTEZAS DE UM QUARTO-MINGUANTE (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

TRISTEZAS DE UM QUARTO-MINGUANTE

Augusto dos Anjos

(Grafia original)

 

 

 

Quarto-Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste.
Nos engenhos da vrázea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um parallelipipedo quebrado!

O somno esmaga o encéphalo do povo.
Tenho 3OO kilos no epigastro.
Dóe-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta oppressão desappareça
Vou amarrar um panno na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.

 

Augmentam-se-me então os grandes medos.
O hemispherio lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando á acção mechanica dos dedos;

Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquelle semi-circulo medonho!

Mas tudo isto é illusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6ª-feira, 3 de Maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lampada a estirar linguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psychopatha
Eis-me a contar o numero das telhas!

— Uma, duas, tres, quatro. E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em summa,
A conta recomeço, em ancias: — Uma.
Mas novamente eis-me a perder a conta!

Succede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta extranha
Responde a Vida — aquella grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura! —

A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as phases de um eclypse.
Começo a ver coisas de Apocalypse
No triangulo escaleno do ladrilho!

 

Deito-me emfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóes balançam numa corda,
Mas aquillo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençòes desmancho.

Vêm-me á imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa.
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roidos me assombraram.
— «Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram».

Figuras espectraes de boccas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro.
Chóro e quero beber a agua do chôro
Com as mãos dispostas á feição de conchas.

Tal uma planta aquatica submersa,
Ante-gozando as ultimas delicias
Mergulho as mãos — vis raizes adventicias —
No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rólo no tapete.
Subito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cahe sobre o meu estomago vasio
Como se fosse um cópo de sorvete!

A alta frialdade me insensibilisa;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha familia ainda està dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!

 

Abro a janella. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulchral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratorios tenues tubos
Dos póros vegetaes, no acto da entréga
Do matto verde, a terra resfolèga
Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Concavo, o ceu, radiante e estriado, observa
A universal creação. Broncos e feios,
Varios reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da humida herva.

Babujada por baixos beiços brutos,
No humus feraz, hieratica, se ostenta
A monarchia da arvore opulenta
Que dá aos homens o obolo dos fructos.

De mim diverso, rigido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diametro, o sólo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funeraes de Hamleto!

Ah! Minha ruina é peor do que a de Thebas!
Quizera ser, numa ultima cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!

 

Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a soffrer me exhortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!


Poemas e Poesias segunda, 27 de maio de 2024

OH! PÁGINAS DA VIDA QUE EU AMAVA

OH! PÁGINAS DA VIDA QUE EU AMAVA

Álvares de Azevedo

 

 

 

Oh! Páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado! ...
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!

E que doudo que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!

Embora — é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda
Pressinto a morte na fatal doença!

A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença
Perdoa minha mãe - eu te amo ainda!


Poemas e Poesias domingo, 26 de maio de 2024

VÍBORA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

 

 

VÍBORA

Almeida Garrett

 

Como a víbora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que à nascença o espedaçou.

Para ele nascer morri;
E em meu cadáver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.


Poemas e Poesias sábado, 25 de maio de 2024

O ÍDOLO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

O ÍDOLO

Alberto de Oliveira

 

 

 

Sobre um trono de mármore sombrio,
Em templo escuro, há muito abandonado,
Em seu grande silêncio, austero e frio
Um ídolo de gesso está sentado.

E como à estranha mão, a paz silente
Quebrando em torno às funerárias urnas,
Ressoa um órgão compassadamente
Pelas amplas abóbadas soturnas.

Cai fora a noite - mar que se retrata
Em outro mar - dois pélagos azuis;
Num as ondas - alcíones de prata,
No outro os astros - alcíones de luz.

E de seu negro mármore no trono
O ídolo de gesso está sentado.
Assim um coração repousa em sono...
Assim meu coração vive fechado.


Poemas e Poesias sexta, 24 de maio de 2024

VALE VERDE (POEMA LEITOR BALSENSE CAPITÃO CARLOS PEREIRA DA COSTA FILHO)

VALE VERDE

Carlos Pereira da Costa Filho

 

 

Vale Verde da minha vida,

Em ano de felação recíproca

A esmo cheguei a ti.

 

Tanta coisa aprendi

Na inocência de menino,

Lá no Faca só dá librina,

De isope não me banhei.

 

Busquei o balde cheio de sede

Mas do teu seio nada faltou.

Da Esmeralda professora

Pus a fronte pra sangrar,

Bola de gude cortou vento

Tudo para me vingar.

 

Espalhei o leite dos neófitos,

Tão nervoso fiquei lá,

Minha tenda desarmou

Foi preciso apanhar.

 

Em outra cisma do meu pai,

Indo embora levei saudades.

As lágrimas verteram forte

Inda hoje sinto saudade.

 

Vale Verde, minha vida,

É por ti uma esperança.

Tenho fé que um dia

Naquela mesma casinha

Que o aconchego me cedeu,

Terás a mim de volta

Vou ficar aí para sempre,

E quem promete sou eu. 

 


Poemas e Poesias sexta, 24 de maio de 2024

A COSTUREIRA (POSTAGEM DA COLUNISTA MADRE SUPERIORA VIOLANTE PIMENTEL)

A COSTUREIRA

 

Pode ser arte de 1 pessoa e ferro de passar roupa

 

  · 
A COSTUREIRA
 
Ela ouve o tecido, ela pousa
o ouvido, ela ouve com os olhos.
À fibra e ao feixe interroga
sobre o que se entrelaçara,
distinguindo a linha, o intervalo,
o vão, o entreato, atenta
para o que na fala geométrica
e repetida dos fios é um outro
vazio: o de antes da trama, ato
anterior ao enredo; óculos
postos para a escuta, a escuta
desfia-se no vento, o olho
flutua, folha, flor, agulha;
fecha os olhos; ouve
com as pontas dos dedos;
indaga do tecido o modo,
os limites, a função, a oficina,
a forma que ele quer ter,
a coisa, a casa que ele quer ser;
e costura como quem à mão
e à máquina descosturasse
o dicionário, rasgando em moles
móbiles seus hábitos, o vinco
de sua farda.
Velha costureira
Companheira como está?
Não levante da cadeira
Só vim perguntar
Se um peito rasgado
Você pode costurar
Com agulhas da alegria
E os fios de raios de luar
Quero um sol bordado
No meu coração
Pra aquecer no peito
Uma grande paixão
E eu lhe pago assim que puder
Com a nova canção
Que eu fizer.
 
Eucanaã Ferraz🖊️

 


Poemas e Poesias quinta, 23 de maio de 2024

O DUPLO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

O DUPLO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

“Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza…
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.”


Poemas e Poesias quinta, 23 de maio de 2024

A QUIXABEIRA (POEMA DO COLUNISTA CARLOS AIRES)

 

 

 

 

A QUIXABEIRA
Carlos Aires
 
 

 

Velha amiga quixabeira
São tantas recordações
Que ao longo da vida inteira
Não contive as emoções.
Já que as lembranças infindas
Vêm me apontar coisas lindas
De um passado tão feliz
Vou remexer a memória
Para narrar tua história
Relatando os teus perfis.

A tua fronde aprazível
Dona de farta ramagem
Estava bem compatível
Com a tua bela paisagem.
Eras sempre aconchegante
Que quem chegasse ofegante
Vencido pelo cansaço
Logo se revigorava
Depois que ali se abrigava
Acolhido em teu regaço.

Estavas bem situada
Ao lado do casarão
Na cerca localizada
Bem pertinho do oitão.
Onde belos passarinhos
Vinham construir seus ninhos
E trinar seus belos cantos
Eu ficava inebriado,
Absorto, extasiado,
Escutando esses encantos.

Vinha o gado e ali ficava
Na hora do sol a pino
Já que a sombra assegurava
Um agasalho divino.
No conforto se deitavam
Bem tranquilos ruminavam
Nesse abrigo acolhedor,
E tu no mais doce enleio
Abrigava-os no teu seio
Com carinho e muito amor.

Em ti eu guardei os sonhos
Da minha infantilidade
E em momentos tristonhos
Recorro a minha saudade
Pra que me leve outra vez
Com a maior rapidez
Quem sabe assim eu consiga,
Matar minha nostalgia
Refazendo a alegria
Junto a quixabeira amiga.

Em momentos de retiro
Na doce alucinação
Dou um profundo suspiro
E na rememoração
Com muito orgulho me ufano
Ao rever eu e meu mano
Brincando ali novamente
Essas lembranças castigam
Provocam e até instigam
Para a tristeza plangente.

O ser humano é terrível
Pois só pensa em depredar
Com seu instinto insensível
Decidiu por não poupar
A quixabeira querida
Onde iniciei a vida
Na doce recreação
Nada mais dela hoje existe,
Só a saudade persiste
Dentro do meu coração.

Essa quixabeira bela
Já não subsiste mais
Para não me esquecer dela
Vou arquivar nos anais
Essa minha narrativa
Pra que permaneça viva
Mesmo em forma de saudade
E ao evocar tempos idos
Lembrar momentos vividos
Com muita felicidade.

 


Poemas e Poesias quarta, 22 de maio de 2024

SIMPLESMENTE AMOR (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

SIMPLESMENTE AMOR 

Adélia Prado

 

 

 

Amor é a coisa mais alegre

Amor é a coisa mais triste

Amor é a coisa que mais quero

Por causa dele falo palavras como lanças

Amor é a coisa mais alegre

Amor é a coisa mais triste

Amor é a coisa que mais quero

Por causa dele podem entalhar-me:

Sou de pedra sabão.

Alegre ou triste

Amor é a coisa que mais quero.


Poemas e Poesias terça, 21 de maio de 2024

A NOITE GARGALHA... E OS GRILOS... (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A NOITE GARGALHA... E OS GRILOS...

Vinícius de Moraes

 

A noite gargalha... os grilos 

Trilam, trepidando as águas 

As águas correm nos trilos 

Em preces cheias de mágoas 

 

Na solidão desse pranto 

Cheio de pressentimento 

Meu tédio morre de espanto 

Para ouvir cantar o vento 

 

E o vento desce profundo 

Misterioso, gelado 

O vento vem de outro mundo 

Como uma voz do passado 

 

 


Poemas e Poesias segunda, 20 de maio de 2024

VELHO TEMA DE AMOR II (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

VELHO TEMA DE AMOR II

Vicente de Carvalho

 

 

 

Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente
— Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: — risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.


Poemas e Poesias domingo, 19 de maio de 2024

O PÃO DE CADA DIA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO MELLO)

O PÃO DE CADA DIA

Thiago Mello

 

 

 

 

Que o pão encontre na boca

o abraço de uma canção

construída no trabalho.

Não a fome fatigada

de um suor que corre em vão.

Que o pão do dia não chegue

sabendo a travo de luta

e a troféu de humilhação.

Que seja a bênção da flor

festivamente colhida

por quem deu ajuda ao chão.

Mais do que flor, seja fruto

que maduro se oferece,

sempre ao alcance da mão.

Da minha e da tua mão.


Poemas e Poesias terça, 07 de maio de 2024

TRANSUBSTANCIAÇÃO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

TRANSUBSTANCIAÇÃO

Raul de Leôni

 

 

 

Esta chance em que existo há de tornar-se um dia,
Em húmus germinal, em seiva fecundante,
Decompondo-se em Pó, há de ser a energia
De vidas que sobre ela hão de viver adiante…

Será fonte, Princípio, a tábida apatia
De um movimento novo intérmino e constante,
Sua ruína será a feraz embriogenia
De outros tipos de Vida, instante para instante.

Há de um horto florir por sobre o seu passado.
Borboletas iriais e anêmonas olentes,
Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado…

E, assim, irei buscando a Perfeição perdida,
Vivendo na Emoção de seres diferentes
Que a Morte é a transição da Vida para a Vida…


Poemas e Poesias segunda, 06 de maio de 2024

NOITE SONORA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

NOITES SONORAS

Olegário Mariano

 

 

 

Anoiteceu. Pelas montanhas veio
Lentamente o crepúsculo caindo …
O céu, redondo e claro como um seio,
Ficou, de lindo que era, inda mais lindo.

O vale abriu-se em pirilampos cheio,
Luzindo aqui, e ali tremeluzindo …
No regaço da treva, úmido e feio,
A natureza adormeceu sorrindo …

As cigarras, na sombra, se calaram:
As árvores no bosque farfalharam
Na esperança de ouvi-las e de vê-las.

Caiu de todo a noite quieta … Agora,
O céu parece uma árvore sonora
De cigarras cantando nas estrelas …


Poemas e Poesias domingo, 05 de maio de 2024

O PUXADÔ DE RODA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ, COM O AUTOR) VÍDEO


Poemas e Poesias sábado, 04 de maio de 2024

A MISSÃO DE PURNA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A MISSÃO DE PURNA

Olavo Bilac

 

Ora Buda, que, em prol da nova fé, levanta
Na Índia antiga o clamor de uma cruzada santa
Contra a religião dos brâmanes, – medita.

Imensa, em torno ao sábio, a multidão se agita:
E há nessa multidão, que enche a planície vasta,
Homens de toda a espécie, árias de toda a casta.

 

Todos os que (a princípio, enchia Brahma o espaço)
Da cabeça, do pé, da coxa ou do antebraço
Do deus vieram à luz para povoar a terra:
– Xátrias, de braço forte armado para a guerra;
Saquias, filhos de reis; leprosos perseguidos
Como cães, como cães de lar em lar corridos;
Os que vivem no mal e os que amam a virtude;
Os ricos de beleza e os pobres de saúde;
Mulheres fortes, mães ou prostitutas, cheio
De tentações o olhar ou de alvo leite o seio;

Guardadores de bois; robustos lavradores,
A cujo arado a terra abre em frutos e flores;
Crianças; anciãos; sacerdotes de Brahma;
Párias, sudras servis rastejando na lama;
– Todos acham amor dentro da alma de Buda,
E tudo nesse amor se eterniza e transmuda.
Porque o sábio, envolvendo a tudo, em seu caminho
Na mesma caridade e no mesmo carinho,
Sem distinção promete a toda a raça humana
A bem-aventurança eterna do Nirvana.

Ora, Buda medita.
À maneira do orvalho,
Que, na calma da noite, anda de galho em galho
Dando vida e umidade às árvores crestadas,
– Aos corações sem fé e às almas desgraçadas
Concede o novo credo a esperança do sono:
Mas… as almas que estão, no horrível abandono
Dos desertos, de par com os animais ferozes,
Longe de humano olhar, longe de humanas vozes,
A rolar, a rolar de pecado em pecado?.

Ergue-se Buda:
“Purna!”
O discípulo amado Chega:

“Purna! é mister que a palavra divina
Da água do mar de Omã à água do mar da China,
Longe do Indus natal e das margens do Ganges,
Semeies, através de dardos, e de alfanjes,
E de torturas!”

Purna ouve sorrindo, e cala.
No silêncio em que está, um sonho doce o embala.
No profundo clarão do seu olhar profundo
Brilham a ânsia da morte e o desprezo do mundo.
O corpo, que O rigor das privações consome,
Esquelético, nu, comido pela fome,
Treme, quase a cair como um bambu com o vento;
E erra-lhe à flor da boca a luz do firmamento
Presa a um sorriso de anjo.

 

E ajoelha junto ao Santo:
Beija-lhe o pó dos pés, beija-lhe o pó do manto.
“Filho amado! – diz Buda – essas bárbaras gentes
São grosseiras e vis, são rudes e inclementes;
Se os homens (que, em geral, são maus os homens todos)
Te insultarem a crença, e a cobrirem de apodos,
Que dirás, que farás contra essa gente inculta?”

“Mestre! direi que é boa a gente que me insulta,
Pois, podendo ferir-me, apenas me injuria…”
“Filho amado! e se a injúria abandonando, um dia
Um homem te espancar, vendo-te fraco e inerme,
E sem piedade aos pés te pisar, como a um verme?”

“Mestre! direi que é bom o homem que me magoa,
Pois, podendo ferir-me, apenas me esbordoa…”
“Filho amado! e se alguém, vendo-te agonizante,
Te furar com um punhal a carne palpitante?”

“Mestre! direi que é bom quem minha carne fura,
Pois, podendo matar-me, apenas me tortura…”
“Filho amado! e se, enfim, sedentos de mais sangue,
Te arrancarem ao corpo enfraquecido e exangue
O último alento, o sopro último da existência,
Que dirás, ao morrer, contra tanta inclemência?”

“Mestre! direi que é bom quem me livra da vida.
Mestre! direi que adoro a mão boa e querida,
Que, com tão pouca dor, minha carne cansada
Entrega ao sumo bem e à suma paz do Nada!”

“Filho amado! – diz Buda – a palavra divina,
Da água do mar de Omã à água do mar da China,
Longe do Indus natal e dos vales do Ganges,
Vai levar, através de dardos e de alfanjes!
Purna! ao fim da Renúncia e ao fim da Caridade
Chegaste, estrangulando a tua humanidade!
Tu, sim! podes partir, apóstolo perfeito,
Que o Nirvana já tens dentro do próprio peito,
E és digno de ir pregar a toda raça humana
A bem-aventurança eterna do Nirvana!”


Poemas e Poesias sexta, 03 de maio de 2024

POEMINHA SENTIMENTAL (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

POEMINHA SENTIMENTAL

Mário Quintana

 

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

 


Poemas e Poesias quinta, 02 de maio de 2024

LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA

Manuel Bandeira

 

 

 

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!


Poemas e Poesias quinta, 02 de maio de 2024

PERALTAGEM (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

PERALTAGEM

Manoel de Barros

 

 

 

O canto distante da sariema encompridava a tarde.
E porque a tarde ficasse mais comprida a gente sumia dentro dela.
E quando o grito da mãe nos alcançava a gente já estava do outro lado do rio.
O pai nos chamou pelo berrante.
Na volta fomos encostando pelas paredes da casa pé ante pé.
Com receio de um carão do pai.
Logo a tosse do vô acordou o silêncio da casa.
Mas não apanhamos nem.
E nem levamos carão nem.
A mãe só que falou que eu iria viver leso fazendo só essas coisas.
O pai completou: ele precisava de ver outras
coisas além de ficar ouvindo só o canto dos pássaros.
E a mãe disse mais: esse menino vai passar a vida enfiando água no espeto!
Foi quase.


Poemas e Poesias quarta, 01 de maio de 2024

LONDRES (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

LONDRES

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

Como um gigante suarento, dorme
Nos pardos mantos d'uma névoa estranha,
A Cidade opulenta em cuja entranha
Rasteja a fome como um verme enorme.

Dos lampeões à dúbia claridade,
Passam, repassam vultos cautelosos:
Este procura no mistério os gozos,
Procura aquele um pão, na realidade.

Contra o cais solitário o rio escuro
Geme convulso e espuma,—e novamente
Volta a gemer, de encontro ao velho muro;

Retine o oiro:—vela a Indústria ingente,
Cresce a miséria, e aumenta o vício impuro...
Oh milionária Londres indigente!


Poemas e Poesias terça, 30 de abril de 2024

O DESPERTAR DA VIRGEM (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O DESPERTAR DA VIRGEM

Júlio Dinis

 

 

 

Que é isto? que sentimento
Me faz palpitar o seio?
Meu Deus, meu Deus, porque anseio?
A que aspira o coração?
Que me revela este fogo,
Esta vaga inquietação?

Da vida a clara corrente Porque é que se perturba? Porque, fugindo
da turba,
Eu só folgo ao ver-me a sós, Escutando ignotas falas
De não sei que estranha voz?

Inda há pouco me apraziam
Da alegre infância os folguedos;
Hoje não sei que segredos
O coração me prediz.
Enfadam-me as alegrias
Desses tempos infantis.

Às horas do fim do dia, Quando o Sol no mar declina E d’áurea
luz ilumina
Todo o horizonte ao redor, Porque me sinto enleada Num indizível langor?

De manhã, quando nas selvas
O dia desperta as aves,
E mil aromas suaves
Sobem dos campos ao céu,
Porque sinto ante meus olhos
Estender-se húmido véu?

E esta imagem resplendente, Que sorrir-me em sonhos vejo, Ai, tão
bela que desejo
Sempre mais tempo sonhar!
Quem é que em tão mago enleio
Me faz, sem querer, sonhar?

Este ansiar incessante,
Esta esp’rança inda tão ‘vaga
De gozos, que a mente alaga,
Mal lhe sabendo o valor,
Este ignoto sentimento…
Deus do Céu, será o amor?

Amor! que palavra é esta, Que ela só me sobressalta E mil
sensações exalta Desconhecidas pra mim…
Que poder mágico encerra
Para me agitar assim?

É o amor o sentimento Que me faz arfar o seio? Este gozo por que
anseio
E a que aspira o coração? É pois amor este fogo,
Esta vaga inquietação?

Nota do Autor. – Não sou por certo eu o melhor juiz da verdade desta poesia,
crevi-a de palpite. Julgue-a quem pode .


Poemas e Poesias segunda, 29 de abril de 2024

NÃO DESPERDICES A VIDA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

 

NÃO DESPERDICES A VIDA

J. G. de Araújo Jorge

 

 

Não te esqueças que a vida é um momento que voa
um efêmero instante de beleza e alento;
vive pois sem temor e com desprendimento
o que ela te ofertar, sem maldize-la à-toa!

E' uma nuvem que muda aos caprichos do vento!
Se hoje a perdes... O tempo nunca te perdoa!
Vida! Repara bem como a palavra soa!
Não temas pronunciá-la com deslumbramento!

Há alguém, não sei quem é, mas disto estou seguro,
que nos há de intimar num remoto futuro
a dar contas da vida que um dia ganhamos...

E após tal julgamento estranho, com certeza
havemos de sofrer e pagar, se em defesa
não der-mos as razões porque a desperdiçamos...


Poemas e Poesias domingo, 28 de abril de 2024

TENTA-ME DE NOVO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

 

 

 

E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.


Poemas e Poesias sábado, 27 de abril de 2024

ROSA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

ROSA

Hermes Fontes

 

 

 

Rosa do meu Jardim, que ardes na minha Jarra,
filha do meu afã, mártir do meu amor!
Minha grande paixão egoísta te desgarra
as pétalas, te aspira o segredo interior.

Pois que estamos a sós — eu volúvel cigarra,
tu, borboleta rubra estacionada em flor —
deveras ter comigo uma folha de parra,
a fim de preservar-te a beleza e o pudor...

Pois que! tão nua assim, tão fresca e tão punícea,
rosa da Tentação, rosa da Impudicícia,
és o próprio Pecado: e há virtude em pecar...

— Pecar morrendo em ti, sangrando em teus espinhos,
remindo num Desejo os desejos mesquinhos,
gozando pelo Olfato e amando pelo Olhar...


Poemas e Poesias sexta, 26 de abril de 2024

NAUREZA-MORTA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

NATUREZA MORTA

Guilherme de Almeida

 

 

 

Na sala fechada ao sol seco do meio-dia
sobre a ingenuidade da faiança portuguesa
os frutos cheiram violentamente e a toalha é fria
e alva na mesa.

Há um gosto áspero de ananases e um brilho fosco
de uvaias flácidas
e um aroma adstringente de cajus, de pálidas
carambolas de âmbar desbotado e um estalo oco
de jaboticabas de polpa esticada e um fogo
bravo de tangerinas.

E sobre esse jogo
de cores, gostos e perfumes a sala toma
a transparência abafada de uma redoma.


Poemas e Poesias quinta, 25 de abril de 2024

OS AZRGONAUTAS (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

OS ARGONAUTAS

Francisca Júlia

 

 

 

Mar fora, ei-los que vão, cheios de ardor insano;

Os astros e o luar — amigos sentinelas —

Lançam bênçãos de cima às largas caravelas

Que rasgam fortemente a vastidão do oceano.

 

Ei-los que vão buscar noutras paragens belas

Infindos cabedais de algum tesouro arcano...

E o vento austral que passa, em cóleras, ufano,

Faz palpitar o bojo às retesadas velas.

 

Novos céus querem ver, miríficas belezas,

Querem também possuir tesouros e riquezas

Como essas naus, que têm galhardetes e mastros...

 

Ateiam-lhes a febre essas minas supostas...

E, olhos fitos no vácuo, imploram, de mãos postas,

A áurea bênção dos céus e a proteção dos astros...


Poemas e Poesias quarta, 24 de abril de 2024

PELO TELEFONE (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

PELO TELEFONE

Gilka Machado

 

 

 

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás;
amo-te pelo enigma pertinaz
que em ti me atrai e me intimida,
por essa música mendaz
de tua voz
que alvoroçou minha audição
e me vem desviando a vida
de seu destino de solidão.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás...
Fala-me sempre,
mente mais;
não te posso exprimir o pavor que me invade,
as aflições que me consomem,
ao meditar na triste realidade
de que deve ser feita
essa tua alma de homem.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás,
audaz
desconhecido;
tua palavra mente ao meu ouvido,
mas não mente essa voz que me treslouca!
— Ela é o amor que me chama por tua boca,
num apelo tristonho,
de saudade;
é a exortação do sonho
à minha rara sensibilidade.
Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás:
amo a ilusão que tua voz me traz.
a falsidade em que procuro crer.

Fala-me sempre, mente mais,
que de mim só mereces tanto apreço,
ó nebuloso, porque desconheço
as humanas misérias de teu ser!

Mas nesta solidão a que me imponho,
quando quedo em silêncio
a te aguardar a voz,
como se torna teu enigma atroz,
que ânsia de estrangular este formoso sonho,
de transpor os espaços,
de bem te conhecer,
de me atirar depressa,
inteira,
nos teus braços,
de te possuir só para te esquecer!...



Poemas e Poesias terça, 23 de abril de 2024

EU (POEMA DA PORTGUESA FLORBELA ESPANCA)

EU

Florbela Espanca

 

 

 

Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida

Sombra de névoa ténue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê
Sou a que chamam triste sem o ser
Sou a que chora sem saber porquê

Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Poemas e Poesias segunda, 22 de abril de 2024

O POÇO DOS MEDEIROS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

O POÇO DOS MEDEIROS

Ferreira Gullar

 

 

Não quero a poesia, o capricho

do poema: quero

reaver a manhã que virou lixo

 

           quero a voz

a tua a minha

aberta no ar como fruta na casa

fora da casa

                  a voz

dizendo coisas banais

entre risos e ralhos

na vertigem do dia;

                            não a poesia

o poema o discurso limpo

onde a morte não grita

 

 

                                    A mentira

 

não me alimenta:

 

                           alimentam-me

 

as águas

             ainda que sujas e rasas

             afogadas

             do velho poço

             hoje entulhado

             onde outrora sorrimos


Poemas e Poesias domingo, 21 de abril de 2024

DOBRE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DOBRE

Fernando Pessoa

 

 

Peguei no meu coração

E pu‑lo na minha mão,

 

Olhei‑o como quem olha

Grãos de areia ou uma folha.

 

Olhei‑o pávido e absorto

Como quem sabe estar morto;

 

Com a alma só comovida

Do sonho e pouco da vida.


Poemas e Poesias sábado, 20 de abril de 2024

TRISTEZA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

TRISTEZA

Euclides da Cunha

 

 

 

Ai! quanta vez – pendida a fronte fria
– Coberta cedo do cismar p'los rastros –
Deixo minh'alma, na asa da poesia,
Erguer-se ardente em divinal magia
À luminosa solidão dos astros!…
Infeliz mártir de fatais amores
Se ergue – sublime – em colossal anseio,
Do alto infinito aos siderais fulgores
E vai chorar de terra atroz as dores
Lá das estrelas no rosado seio!


É nessa hora, companheiro, bela,
Que ela a tremer – no seio da soedade
– Fugindo à noite que a meu seio gela –
Bebe uma estrofe ardente em cada estrela,
Soluça em cada estrela uma saudade…

É nessa hora, a deslizar, cansado,
Preso nas sombras de um presente escuro
E sem sequer um riso em lábio amado _
Que eu choro – triste – os risos do passado,
Que eu adivinho os prantos do futuro!…


Poemas e Poesias sexta, 19 de abril de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 27 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

 

TROVA HUMORÍSTICA 27

Eno Teodoro Wanke

 

Certa vez, um camarada

Tão magrinho, (ai, quão magrinho)

Indo tomas Lamoanda

Caiu pelo canudinho

 


Poemas e Poesias quinta, 18 de abril de 2024

SÍNTESE (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

 

 

 

Tornei-me espelho do mundo,
Desde que o meu pensamento
Ficou límpido e profundo
Como o azul do firmamento.


Poemas e Poesias quinta, 18 de abril de 2024

CRISTAIS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CRISTAIS

Cruz e Sousa

 

 

Mais claro e fino do que as finas pratas
o som da tua voz deliciava...
Na dolência velada das sonatas
como um perfume a tudo perfumava.

Era um som feito luz, eram volatas
em lânguida espiral que iluminava,
brancas sonoridades de cascatas...
Tanta harmonia melancolizava.

Filtros sutis de melodias, de ondas
de cantos volutuosos como rondas
de silfos leves, sensuais, lascivos...

Como que anseios invisíveis, mudos,
da brancura das sedas e veludos,
das virgindades, dos pudores vivos.


Poemas e Poesias quarta, 17 de abril de 2024

ROMANCE XXI DAS IDEIAS (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

 

 

 

ROMANCE XXI DAS IDEIAS

Cecília Meireles

(Grafia original)

 

A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocrafes e gamelas.

Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as idéias.

Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos da alcovas,
histerias de donzelas.
Lamparinas, oratórios,
bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias, salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as idéias.

E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
Dom José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes . . .
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as idéias.

As esposas preguiçosas
na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre imbaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíase; partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas . . .
Candombeiros. Feiticeiros.
Ungüentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos. Angolas. Benguelas.
Ó imenso tumulto humano!
E as idéias.

Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se Dom José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson. Franklin.
(Palpita a noite, repleta
de fantasmas, de presságios . . .)
E as idéias.

Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
— entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam . . .
Anarda. Nise. Marília . . .
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as idéias.

 


Poemas e Poesias terça, 16 de abril de 2024

ÉLIO FERNANDES (IN MEMORIAM) - POSTAGEM DO ESCRITOR TERESINENSE JANCLERQUES MARINHO)

 

Élio Ferreira (In Memórian)

 

 

Por - Dr. Irapuá 

Elio Ferreira de Sousa,

Ou como preferir,

Professor Elio

Poeta Elio 

Elio 

Ou simplesmente “Seu Elio”

Filho mais novo de Aluísio e Inês Ferreira, 

Ferreiro

Capoeirista 

Professor 

Poeta 

Pai

O pai do Irapuá, da Egbara, do Ricarte;

Mas também, o pai/figura paterna de muitos parentes, sobrinhos, alunos e amigos;

Tantos papéis o senhor exerceu de forma ímpar. 

O senhor sempre tinha a palavra certa e se despediu nos dando aula. Em mais de 4 anos de doença, nunca vi uma expressão de raiva. Sempre a mesma paz, calma e serenidade. Uma positividade, espiritualidade e fé inabaláveis. Algo sobrenatural, eu diria. Não à toa, vários amigos incrédulos vieram perguntar ontem: “O Élio estava doente?”

O senhor foi uma referência e  inspiração a várias gerações. Um exemplo de ética e dono de uma dedicação inigualável, algo sobre-humano. O seu exemplo mudou a  minha vida e de muitos. 

Nada representa mais o senhor do que essa cena. Poucas horas antes de ir para UTI, com febre, disfunção renal e falta de ar,  participou de uma banca de doutorado na Universidade de Coimbra. Ao final, deitou - se e riu como se tivesse cumprido mais uma missão. Um amigo que o ajudou, estupefato com tamanha resiliência, disse que não sabia de onde tirava tanta forças.

Tudo me faz lembrar o senhor, mas algumas nunca saem da minha mente:

Por onde passou deixou amigos. Fazia amizade até durante um vôo de poucas horas.

Andava sempre com um livro na mão. Tivesse que parar por alguns minutos, já poderia produzir, como dizia. 

A sua empatia, generosidade e humanidade eram marcantes. A igualdade racial e social foram as lutas da sua vida. Lembro a primeira vez que fui aos EUA estudar e o senhor ao telefone me disse que deveria  ajudar os mendigos perto da minha casa: “Meu filho, todo mendigo é universal. Você tem que ajudar.”

Meu coração está dilacerado de dor, pois perdi uma parte do meu ser. Ao mesmo tempo, uma PAZ e GRATIDÃO estão dentro de mim por Deus, pelo Universo e Olorum terem permitido vir a esse mundo como seu filho. O senhor cumpriu sua missão. A passagem foi breve mas o suficiente para deixar sua marca por onde passou. A sua obra e legado o eternizarão.

“Abracadaba.Abra.Abracadabra”

 


Poemas e Poesias domingo, 14 de abril de 2024

JESUÍTAS (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

JESUÍTAS

Castro Alves

 

 

 

(século XIII)

Ó mês frères, je viens vous apporter mon Dieu,
Je viens vous apporter ma tête!
V. Hugo
(Châtiments)

Quando o vento da Fé soprava Europa,
Como o tufão, que impele ao ar a tropa
Das águias, que pousavam no alcantil;
Do zimbório de Roma — a ventania
O bando dos Apostlos sacudia
Aos cerros do Brasil.

Tempos idos! Extintos luzimentos!
O pó da catequese aos quatro ventos
Revoava nos céus...
Floria após na India, ou na Tartária,
No Mississipi, no Peru, na Arábia
Uma palmeira — Deus! —

O navio maltês, do Lácio a vela,
A lusa nau, as quinas de Castela,
Do Holandês a galé
Levava sem saber ao mundo inteiro
Os vândalos sublimes do cordeiro,
Os átilas da fé.

Onde ia aquela nau? — Ao Oriente.
A outra? — Ao pólo. A outra? — Ao ocidente.
Outra? — Ao norte. Outra? — Ao sul.
E o que buscava? A foca além no pólo;
O âmbar, o cravo no indiano solo,
Mulheres em Stambul.

Ouro — na Austrália; pedras — em Misora!. .
"Mentira!" respondia em voz canora
O filho de Jesus...
"Pescadores!... nós vamos no mar fundo
"Pescar almas pra o Cristo em todo mundo,
"Com um anzol — a cruz —!"

Homens de ferro! Mal na vaga fria
Colombo ou Gama um trilho descobria
Do mar nos escarcéus,
Um padre atravessava os equadores,
Dizendo: "Gênios!... sois os batedores
Da matilha de Deus."

Depois as solidões surpresas viam
Esses homens inermes, que surgiam
Pela primeira vez.
E a onça recuando sesgueirava
Julgando o crucifixo... alguma clava
Invencível talvez!

O martírio, o deserto, o cardo, o espinho,
A pedra, a serpe do sertão maninho,
A fome, o frio, a dor,
Os insetos, os rios, as lianas,
Chuvas, miasmas, setas e savanas,
Horror e mais horror ...

Nada turbava aquelas frontes calmas,
Nada curvava aquelas grandes almas
Voltadas pra amplidão...
No entanto eles só tinham na jornada
Por couraça — a sotaina esfarrapada...
E uma cruz — por bordão.

Um dia a taba do Tupi selvagem
Tocava alarma... embaixo da folhagem
Rangera estranho pé...
O caboclo da rede ao chão saltava,
A seta ervada o arco recurvava...
Estrugia o boré.

E o tacape brandindo, a tribo fera
De um tigre ou de um jaguar ficava à espera
Com gesto ameaçador...
Surgia então no meio do terreiro
O padre calmo, santo, sobranceiro,
O Piaga do amor.

Quantas vezes então sobre a fogueira,
Aos estalos sombrios da madeira,
Entre o fumo e a luz...
A voz do mártir murmurava ungida
"Irmãos! Eu vim trazer-vos — minha vida...
Vim trazer-vos — Jesus!"

Grandes homens! Apóstolos heróicos!...
Eles diziam mais do que os estóicos:
"Dor, — tu és um prazer!
"Grelha, — és um leito! Brasa, — és uma gema!
Cravo, — és um cetro! Chama, — um diadema
Ó morte, — és o viver!"

Outras vezes no eterno itinerário
O sol, que vira um dia no Calvário
Do Cristo a santa cruz,
Enfiava de vir achar nos Andes
A mesma cruz, abrindo os braços grandes
Aos índios rubros, nus.

Eram eles que o verbo do Messias
Pregavam desde o vale às serranias,
Do pólo ao Equador...
E o Niagara ia contar aos mares...
E o Chimborazo arremessava aos ares
O nome do Senhor!...


Poemas e Poesias sábado, 13 de abril de 2024

BERÇO E TÚMULO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

BERÇO E TÚMULO

Casimiro de Abreu

(Grafia origina)

 

 

 

Trago-te flores no meu canto amigo
— Pobre grinalda com prazer tecida —
E — todos amores — desponta num beijo
Na fronte pura em que desponta a vida.

E cedo ainda! — quando moça fores
E percorreres deste livro os cantos,
Talvez que eu durma solitário e mudo
— Lírio pendido a quem ninguém deu prantos!.

Então, meu anjo, compassiva e meiga
Despõe-me um goivo sobre a cruz singela,
E nesse ramo que o sepulcro implora
Paga-me as rosas desta infância bela!

 


Poemas e Poesias sexta, 12 de abril de 2024

SONETO PARA GRETA GARBO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO PARA GRETA GARBO

Carlos Pena Filho

 

 

 

Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já não sabe por que chora

Perdido o encanto de esperar agora 
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio por que sabe
que o silêncio se oculta e se evapora

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria

Mas vê nascer da sombra outra alegria 
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.

 


Poemas e Poesias quinta, 11 de abril de 2024

STAND-UP COM POESIA (POEMAS DO COLUNISTA FRANCISCO ITAERÇO)

STAND-UP COM POESIA
Francisco Itaerço
 

NADA A VER NEM HAVER

Moço, não tem nada a ver
Juro, o cu com as calças
Se a cueca está no meio.
Assim como não tem haver
Na minha conta bancária
A dita está no vermelho.

* * *

QUEM SOMOS

Todos somos
Como somos
Cromossomos
Mal nascemos
Somos sonhos
Mal andamos
Tropeçamos
E caímos
Levantamos
E seguimos
Mal crescemos
Envelhecemos
E nada somos
Mas já fomos

* * *

BONS LADRÕES

Quando nos encontramos
Bebemos e fumamos
O cachimbo da paz.

Pecado eu não vejo
Te roubo um beijo
Aproveito o ensejo
Pra te roubar algo mais

Você, por sua vez
Me rouba um abraço,
Um carinho, um amasso…
To nem aí, tanto faz.

Se pecamos os dois
É pra não pecarmos só
Peco eu e você
Pecamos nós.


Poemas e Poesias quarta, 10 de abril de 2024

CONSOLO DA PRAIA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CONSOLO NA PRAIA

Caros Drummond de Andrade

 

 

 

Vamos, não chores
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu

O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua

Perdeste o melhor amigo
Não tentaste qualquer viagem
Não possuis carro, navio, terra
Mas tens um cão

Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam
Nunca, nunca cicatrizam
Mas e o humor?

A injustiça não se resolve
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido
Mas virão outros

Tudo somado
Devias precipitar-te, de vez, nas águas
Estás nu na areia, no vento
Dorme, meu filho

 
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não chores
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu

O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua

Perdeste o melhor amigo
Não tentaste qualquer viagem
Não possuis carro, navio, terra
Mas tens um cão

Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam
Nunca, nunca cicatrizam
Mas e o humor?

A injustiça não se resolve
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido
Mas virão outros

Tudo somado
Devias precipitar-te, de vez, nas águas
Estás nu na areia, no vento
Dorme, meu filho

 

Poemas e Poesias terça, 09 de abril de 2024

SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
Luís de Camões
 
 
SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
Grafia original
 
 
Em flor vos arrancou, de então crescida,
(Ah Senhor Dom Antonio!) a dura sorte
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antiguos esquecida.

Huma só razão tenho conhecida
Com que tamanha mágoa se conforte:
Que se no Mundo havia honrada morte,
Não podieis vós ter mais larga vida

Se meus humildes versos podem tanto
Que co'o desejo meu se iguale a arte,
Especial materia me sereis

E celebrado em triste e longo canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memoria das gentes vivireis.
 
 
 
 

 

 

 

Poemas e Poesias segunda, 08 de abril de 2024

CEM TROVAS - 017 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

 

 

TROVA 017

Belmiro Braga

 

Vivo, encheu (a História o prova)
com suas glórias o mundo,
e, morto, não enche a cova
de quatro palmos de fundo.


Poemas e Poesias domingo, 07 de abril de 2024

BARCAROLA (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

BARCAROLA

Augusto dos Anjos

 

 

 

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofír
Imita a curva de um arco.

A Lua - globo de louça -
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?!
Será uma História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.

É como um réquiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.

Fecha-te nesse medonho
Reduto de Maldição,
Viajeiro da Extrema-Unção,
Sonhador do último sonho!

Numa redoma ilusória
Cercou-te a glória falaz,
Mas nunca mais, nunca mais
Há de cercar-te essa glória!

Nunca mais! Sê, porém, forte.
O poeta é como Jesus!
Abraça-te à tua Cruz
E morre, poeta da Morte! -

E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!


Poemas e Poesias sábado, 06 de abril de 2024

O FANTASMA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

O FANTASMA

Álvares de Azevedo

 

 

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...
O CÔNEGO FILIPE

O cônego Filipe! Ó nome eterno!
Cinzas ilustres que da terra escura,
Fazeis rir nos ciprestes as corujas!
Por que tão pobre lira o céu doou-me
Que não consinta meu inglório gênio
Em vasto e heróico poema decantar-te?

Voltemos ao assunto. A minha musa,
Como um falado imperador romano,
Distrai-se, às vezes, apanhando moscas.
Por estradas mais longas ando sempre:
Com o cônego ilustre me pareço,
Quando ele já sentia vir o sono,
Para poupar caminho até a vela,
Sobre a vela atirava a carapuça.
Então, no escuro, em camisola branca,
Ia apalpando procurar na sala -
Para o queijo flamengo da careca
Dos defluxos guardar - o negro saco.

À ordem, Musa! Canta agora como
O poeta Ali-Moon no harém entrando,
Como um poeta que enamora a lua,
Ou que beija uma estátua de alabastro,
Suando de calor... de sol e amores...
Cantava no alaúde enamorado!
E como ele saiu-se do namoro...
Assunto bem moral, digno de prêmio,
E interessante como um catecismo...
Que tem ares até de ladainha!

Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela suave natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?

Principio no harém. Não é tão novo...
Mas esta vida é sempre deleitosa.
As almas d'homem ao harém se voltam...
Ser um dia sultão quem não deseja?

Quem não quisera das sombrias folhas
Nas horas do calor, junto do lago,
As odaliscas espreitar no banho
E mais bela a sultana entre as formosas?

Mas ah! o plágio nem perdão merece!
Digam - pega ladrão! Confesso o crime:
Não é Ovídio só que imito e sonho,
Quando pinta Acteon fitando os olhos
Nas formas nuas de Diana virgem!
Não! embora eu aqui não fale em ninfas,
Essa idéia é do cônego Filipe!
 

Poemas e Poesias quinta, 04 de abril de 2024

SEUS OLHOS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

SEUS OLHOS

Almeida Garrett 

 

 

Seus olhos – que eu sei pintar 
O que os meus olhos cegou – 
Não tinham luz de brilhar, 
Era chama de queimar; 
E o fogo que a ateou 
Vivaz, eterno, divino, 
Como facho do Destino. 

Divino, eterno! – e suave 
Ao mesmo tempo: mas grave 
E de tão fatal poder, 
Que, um só momento que a vi, 
Queimar toda a alma senti… 
Nem ficou mais de meu ser, 
Senão a cinza em que ardi. 


Poemas e Poesias quarta, 03 de abril de 2024

NO PENEDO DA MEDITAÇÃO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

NO PENEDO DA MEDITAÇÃO

Alberto de Oliveira

 

 

 

Aprende-se até morrer...
Mas eu fui mais refractário:
Morrerei sem aprender,
Vida, o teu abecedário!

Nem a Dor, nem o Prazer,
No seu vaivém arbitrário,
Souberam dar ao meu ser
As regras do seu fadário.

O céu trasborda de estrelas,
Mas é cifrado e secreto
Para mim, que não sei lê-las.

Cego, surdo, analfabeto,
De nada entendo o motivo,
Nem quem sou, nem porque vivo...


Poemas e Poesias terça, 02 de abril de 2024

O AMOR E O OUTRO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

O AMOR E O OUTRO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

Não amo
melhor
nem pior
do que ninguém.

Do meu jeito amo
Ora esquisito, ora fogoso,
às vezes aflito
ou ensandecido de gozo.
Já amei
até com nojo.

Coisas fabulosas
acontecem-me no leito. Nem sempre
de mim dependem, confesso.
O corpo do outro
é que é sempre surpreendente.


Poemas e Poesias segunda, 01 de abril de 2024

SEDUÇÃO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

SEDUÇÃO

Adélia Prado 

 

 

 

 

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.


Poemas e Poesias domingo, 31 de março de 2024

A MÚSICA DAS ALMAS (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MÚSICA DAS ALMAS

Vinícius de Moraes

 

 

 

Na manhã infinita as nuvens surgiram como a loucura numa alma
E o vento como o instinto desceu os braços das árvores que estrangularam a terra...

Depois veio a claridade, o grande céu, a paz dos campos...
Mas nos caminhos todos choravam com os rostos levados para o alto
Porque a vida tinha misteriosamente passado na tormenta.


Poemas e Poesias sábado, 30 de março de 2024

VELHO TEMA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

VELHO TEMA

Vicente de Carvalho

 

 

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.


Poemas e Poesias sexta, 29 de março de 2024

O CAJUEIRO ENSINADO (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

O CAJUEIRO ENSINADO

Thiago de Mello

 

 

Por medo de perder pouco,
acabaste te perdendo.
Não quiseste te dar todo
e terminaste sem nada.

Não sentiste o ferrão feio
cavando devagarinho
o fundo verde do peito.
( Por que era verdade. Tu sabes. )
Nem sequer te perguntaste
porque as janelas se foram
fechando no teu olhar.

Ainda podes caminhar,
quando anoitece demais,
debaixo dos cajueiros.
Mas as suas flores tenras
não te reconhecem mais.

Suas folhas orvalhadas
se esqueceram do teu nome
e mal relembram o teu riso
que era uma festa de infância.

Sem embargo, falas forte,
te vestes de opaca azul,
atravessas a avenida,
ris alto e muito: animal
balofo e só, meu irmão.


Poemas e Poesias quinta, 28 de março de 2024

SEMPRE BEATRIZ (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

SEMPRE BEATRIZ

Sousândrade

 

 

 

Quando nos teus nove anos

Brincavas na existência,

Os anjos do teu rosto

Rindo-se de prazer;

Que eram as manhãs puras

E os hinos d'inocência

Cantavam róseos mundos,

Terras a florescer –

Foste desta alma a palma,

O onipotente ser!

Quando, musa d'infância,

Dos puros céus os astros

Teus olhos silenciosos

Olhavam-me a amar;

Que havias a fragrância

Das cândidas boninas,

Da alva todos rumores

E toda a luz do lar –

Foste a bonança-esp'rança

E a glória a s'elevar!


Poemas e Poesias quarta, 27 de março de 2024

SEI DE TUDO (POEMA DO FLUMINENSE RAIOL DE LEÔNI)

SEI DE TUDO

Raul de Leôni 

 

Sei de tudo o que existe pelo mundo.
A forma, o modo, o espírito e os destinos.
Sei da vida das almas e aprofundo
O mistério dos seres pequeninos.

Sei da ciência do Espaço, sei o fundo
Da terra e os grandes mundos submarinos,
Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo
Que há entre os passos humanos e os divinos.

Sei de todas as cousas, a teoria
Do Universo e as longínquas perspectivas
Que emergem da expressão das cousas vivas.

Sei de tudo e - oh! tristíssima ironia! -
Pelo caminho eterno por que vou,
Eu, que sei tudo, só não sei quem sou...


Poemas e Poesias terça, 26 de março de 2024

O POETA DA ROÇA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O POETA DA ROÇA

Patativa do Assaré

 

 

 

Sou fio das mata, cantô da mão grossa
Trabaio na roça, de inverno e de estio
A minha chupana é taipa de barro
Só fumo cigarro de paia de mio

Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestrê, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola
Cantando, pachola, à percura de amô

Não tenho sabença, pois nunca estudei
Apenas eu sei o meu nome assiná
Meu pai, coitadinho! Vivia sem cobre
E o fio do pobre não pode estudá

Meu verso rastero, singelo e sem graça
Não entra na praça, no rico salão
Meu verso só entra no campo, na roça
Na pobre paióça, da serra ao sertão

Só canto o buliço da vida apertada
Da lida pesada, das roça e dos e dos eito
E às veiz, recordando feliz mocidade
Canto uma sodade que mora em meu peito

Eu canto o cabôco com suas cassada
Nas noite assombrada que tudo apavora
Por dentro das mata, com tanta corage
Topando as visage chamada caipóra

Eu canto o vaquêro vestido de côro
Brigando com o tôro no mato fechado
Que pega na ponta do brabo novio
Ganhando logio do dono do gado

Eu canto o mendigo de sujo farrapo
Coberto de trapo e mochila na mão
Que chora pedindo socorro dos home
E tomba de fome sem casa e sem pão

E assim, sem cobiça dos cofre luzente
Eu vivo contente e feliz com a sorte
Morando no campo, sem vê a cidade
Cantando as verdade das coisa do norte

 
 
 

Poemas e Poesias segunda, 25 de março de 2024

NAS RUÍNAS DA CASA-GRANDE (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

NAS RUÍNAS DA CASA-GRANDE

Olegário Mariano

 

 

 

A casa-grande é um espelho do passado:
Corroeu-lhe o tempo a pedra do batente
E do que foi solar da minha gente
Resta apenas um escudo brasonado. 

Mas, através do paredão gretado,
Ouvem-se ainda na aflição do poente,
Ressonância de vozes e o frequente
Bater das velhas portas do sobrado. 

Em cada telha há um gesto de abandono.
A voz que vem de longe das herdades
É a mesma voz que me embalava o sono. 

E agora, em plena noite que se expande,
Piam as andorinhas. . . São Saudades
Que dormem no beiral da casa-grande. 

 


Poemas e Poesias domingo, 24 de março de 2024

A MORTE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A MORTE

Olavo Bilac

 

 

Oh! a jornada negra! A alma se despedaça...

Tremem as mãos... O olhar, molhado e ansioso, espia,

E vê fugir, fugir a ribanceira fria,

Por onde a procissão dos dias mortos passa.

 


No céu gelado expira o derradeiro dia,

Na última região que o teu olhar devassa!

E só, trevoso e largo, o mar estardalhaça

No indizível horror de uma noite vazia...

 


Pobre! por que, a sofrer, a leste e a oeste, ao norte

E ao sul, desperdiçaste a força de tua alma?

Tinhas tão perto o Bem, tendo tão perto a Morte!

 

Paz à tua ambição! paz à tua loucura!

A conquista melhor é a conquista da Calma:

- Conquistaste o país do Sono e da Ventura!


Poemas e Poesias sábado, 23 de março de 2024

POEMA DA GARE DE ASTAPOVO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

POEMA DA GARE DE ASTAPOVO

Mário Quintana

(Grafia original)

 

 

 

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

 


Poemas e Poesias sexta, 22 de março de 2024

IRENE NO CÉU (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

IRENE NO CÉU

Manuel Bandeira

 

 

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.


Poemas e Poesias quinta, 21 de março de 2024

OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARRO9S)

OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH

 Manoel de Barros

 

 

 

Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas

Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.

E, como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.


Poemas e Poesias quarta, 20 de março de 2024

JOSÉ DE ALENCAR (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

JOSÉ DE ALENCAR

Luís Guimarães Júnior

 

 

No teu regaço, oh Pátria angustiosa,
Oh grande Mãe! oh Niobe! consente
Que caia minha lágrima pungente
E suspire minha alma dolorosa;

Tua serena fronte majestosa
Curva-se a terra — lívida e plangente:
Perdeste a nívea corda, a fibra algente
De tua agreste Lira luminosa.

Quem cantará agora esse obscuro
Idílio da floresta, — ingênuo tema
Que ele criou — tão mavioso e puro?

Quem guiará as asas do Poema
Com mais doçura? Oh Bardos do futuro,
Eu vos pergunto em nome de Iracema!


Poemas e Poesias terça, 19 de março de 2024

O CASTIGO DE DEUS (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O CASTIGO DE DEUS

Júlio Dinis

(Grafia original)

 

 

 

Terminara a peleja. Ensangüentado Jaz o campo da atroz carnificina: Um
sinistro clarão avermelhado
Do exército ao longe a marcha ensina.

O incêndio, a ruina e a feroz matança
São as relíquias da já finda guerra.
Ai dos vencidos! Gritos de vingança,
Perseguem os fugidos pela serra.

Ai dos vencidos! A furiosa plebe
Erra nos campos com medonha grita;
Não dá quartel, piedade não concebe;
Um cruento furor a move e agita.

Corre em tropel, corre ébria de vitória, Arrastando os cadáveres
despidos. Maculando os lauréis da sua glória
Na lama, envolta em sangue dos vencidos

Num vale retirado, umbroso, oculto, Estorcia-se um velho agonizante.
Ouve em delírio, um hórrido tumulto, Qual de demônios
infernal descante.

Com o rosto alterado, o olhar extinto, Pálida a fronte, sem vigor, já
fria.
«Ai, que sede cruel esta que sinto!
Água, dai-me água!» diz. Ninguém o ouvia.

«Água, dai-me água!» brada com voz rouca, Que se lhe
prende na árida garganta.
Ao longe, a turba, numa orgia louca, Hinos blasfemos, implacável, canta.

No delírio violento, que alucina,
Julga-se às vezes de um regato à borda ;
Bem-diz, chorando, protecção divina,
Mas ai, que cedo deste sonho acorda.

Acorda, e vê-se à beira de um abismo; Queimam-lhe os lábios
qual ardente frágua, E a custo, em terrível paroxismo,
Sufocado repete : «Água, dai-me água!»

Como se Deus escutasse
O grito do agonizante,
Surge do velho diante
Uma angélica visão;
Com as lágrimas em fio
Pelas faces cor de neve
Caminha com passo leve
Para o prostrado ancião.

Na brandura do semblante,
No olhar magoado e aflito
Lê-se um poema inteiro escrito
De caridade e de amor.
Corre ansiada e pressurosa
E toda cheia de graça
Em socorro da desgraça
Com piedoso fervor.

Junto do velho ajoelhada Ergue-o com meigo desvelo; E as trancas do seu cabelo
Às cãs se vão misturar. Aproxima-lhe dos lábios
A água que ele pedia;
E ao vê-lo bebe r sorria… Sorria… mas a chorar.

E uma lágrima fervente, Gentil pérola preciosa, Caiu na fronte
rugosa
Do velho, que estremeceu.
E só então, como em sonhos,
Foi que o triste moribundo
Fitou um olhar profundo
Neste enviado do Céu.

Ela sorrindo-lhe meiga, Ao vê-lo assim admirado
Lhe disse : «Velho soldado, Bebei, coitado, bebei.
Há dez anos, nestes sítios, Como vós, velho, ferido,
O meu pai estremecido, Após a guerra encontrei.

«Como o vi, meu Deus! Já frio, Já co’a vista embaciada,
A fronte roxa, gelada,
Os lábios em fogo, a arder.
«— Água! — bradava convulso;
— Água! — que de sede morro I »
A fonte vizinha corro…
Cheguei… para o ver morrer.

«Era então criança ainda; Mas esta cena de morte Impressionou-me
de sorte Que nunca mais a esqueci.
Sempre, sempre aquela imagem
Muda, pálida, cruenta,
Nos meus sonhos se apresenta;
Vejo-a ainda como a vi.

«Curvei-me sobre o cadáver
A aquecê-lo com meus beijos;
Ai, baldados meus desejos!
Que esse frio era mortal.
Jurei então, pela Virgem,
No fervor da minha mágoa,
De correr sempre com água
Pelas tendas do arraial.

«Quantas vezes à blasfêmia,
Que o delírio ao peito arranca,
Esta água, que a sede estanca,
Bendita por Deus, pôs fim!…
Quantos nobres cavaleiros,
Quantos moços, quantos velhos,
Eu vi cair de joelhos,
Soluçando ao pé de mim!

«A cada sede que estanco, A cada dor que mitigo, Pareca-me que consigo
Matar a sede a meu pai, Àquele velho soldado
Que há dez anos, nesta selva, Sobre uma cama de relva Exalou o extremo
ai.»

O velho, ouvindo-a, estremece.
«Nestes sítios ! Há dez anos!
Impenetráveis arcanos!
Dedo invisível de Deus!
E és tu quem me socorres ?!
Luz fatal se me revela.
Vingaste teu pai, donzela,
Cumpriste as ordens do Céu!»

E a fronte lívida, exausta Por extremado cansaço, Deixou pender
no regaço
Da pobre órfã que a sustem. Um supremo olhar de angústia
Nela por momentos fita;
Nela, que o encara aflita
Como carinhosa mãe,

«Morre em paz, velho soldado, Por mim meu pai te perdoa,
Se a hora extrema já te soa, Podes alegre partir.
Que seja esta gota d’água
A que te lave do crime;
Possa esta dor, que te oprime
As tuas culpas remir I»

E ao longe a turba infrene tripudiava Sobre o cruento campo da matança;
Dos homens a vingança ali reinava. Reinava aqui de Deus só a
vingança.


Poemas e Poesias segunda, 18 de março de 2024

DOIS SONETOS (POEMAS DA COLUNISTA VERÔNICA SOBRAL)

DOIS SONETOS

Verônica Sobral

 

 

No mote de Maciel Correia

“A Saudade passou jogando flores
No velório do amor que assassinamos”,

retratando um amor sofrido, o fim de um relacionamento doloroso, eu disse:

O fim do nosso amor

Quantos beijos de amor silenciaram
Nossas brigas, por vezes, tão pequenas.
De tornar nossas noites mais serenas
Os desejos também se encarregaram.

As estrelas do céu, em noite plenas,
Tantos planos e sonhos registraram…
No entanto, esses sonhos se acabaram
Num silêncio feroz de um “não” apenas.

Numa noite tristonha… só de dores
A saudade passou jogando flores
No dilúvio das lágrimas que choramos.

Nosso peito infeliz, dilacerado
Percebeu que havia terminado
O velório do amor que assassinamos!

* * *

E ainda na temática amor, mas com uma visão universal, sem sofrimento, eu disse:

Destino Traçado

Num cenário de amor… puro, encantado,
Sobre o brilho da lua incandescente
Nossas almas, concomitantemente,
Se olharam! O destino foi traçado!

Nossos olhos, silenciosamente,
Entenderam um olhar apaixonado…
E o silêncio do beijo desejado
Foi um filme perfeito em nossa mente!

E a sede do amor que nós sentimos
Envolveu nossa vida… E nós pedimos
Que o destino, com muita lealdade,

Permitisse que tudo, por Deus feito,
Fosse a prova do nosso amor perfeito
E o encontro da nossa outra metade!

 


Poemas e Poesias domingo, 17 de março de 2024

MEU CORAÇÃO (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

MEU CORAÇÃO

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Eu tenho um coração um século atrasado
ainda vive a sonhar... ainda sonha, a sofrer...
acredita que o mundo é um castelo encantado
e, criança, vive a rir, batendo de prazer...

Eu tenho um coração - um mísero coitado
que um dia há de por fim, o mundo compreender...
- é um poeta, um sonhador, um pobre esperançado
que habita no meu peito e enche de sons meu ser...

Quando tudo é matéria e é sombra - ele é uma luz
ainda crê na ilusão, no amor, na fantasia
sabe todos de cor os versos que compus...

Deus pôs-me um coração com certeza enganado:
- e é por isso talvez, que ainda faço poesia
lembrando um sonhador do século passado


Poemas e Poesias sexta, 15 de março de 2024

TATEIO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

TATEIO

Hilda Hilst

 

 

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.


Poemas e Poesias quinta, 14 de março de 2024

RIO (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

RIO

Hermes Fontes

 

 

 

- Bojuda serpe, dócil crocodilo -
coleia o rio... Atrás, uma montanha
figura um cavaleiro a persegui-lo
de longe... E, distanciando-se, o acompanha.

Adiante, o bosque todo se emaranha
para deter-lhe o curso e constringi-lo:
o rio, surdo e cego à ameaça estranha,
vai correndo, monótono e tranqüilo...

Abre-se o abismo ali para tragá-lo:
e o rio, dorso ondeante ao beijo eóleo,
salta, a crina a flutuar... régio cavalo!

E ancho, e triunfante, como um rei no sólio,
avança para o Mar, quer dominá-lo...
E o Mar, que o espera, num bocejo, engole-o...


Poemas e Poesias quarta, 13 de março de 2024

MAXIXE (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

MAXIXE

Guilherme de Almeida

 

 

 

O chocalho dos sapos coaxa
como um caracaxá rachado. Tudo mexe.
Um vento frouxo enlaga uma nuvem baixa
fofa. E desce com ela, desce.
E não a deixa e puxa-a como uma faixa
e espicha-se e enrolam-se. E o feixe rola
e rebola como uma bola
na luz roxa
da tarde oca

boba

chocha.


Poemas e Poesias terça, 12 de março de 2024

NOTURNO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

NOTURNO

Francisca Júlia

 

 

 

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.


Poemas e Poesias segunda, 11 de março de 2024

PARTICULARIDADES 2 (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

PARTICULARIDADES 2

Gilka Machado

 

 

 

 

Tudo quanto é macio os meus ímpetos doma,
e flexuosa me torna e me torna felina.
Amo do pessegueiro a pubescente poma,
porque afagos de velo oferece e propina.

O intrínseco sabor lhe ignoro, se ela assoma,
no rubor da sazão, sonho-a doce, divina!
gozo-a pela maciez cariciante, de coma,
e o meu senso em mantê-la incólume se obstina...

Toco-a, palpo-a, acarinho o seu carnal contorno,
saboreio-a num beijo, evitando um ressábio,
como num lento olhar te osculo o lábio morno.

E que prazer o meu! que prazer insensato!
– pela vista comer-te o pêssego do lábio,
e o pêssego comer apenas pelo tato.


Poemas e Poesias domingo, 10 de março de 2024

ESPERA... (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

ESPERA...

Florbela Espanca

 

 

 

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera... espera... ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!...


Poemas e Poesias sábado, 09 de março de 2024

MORTE DE CLARICE LISPECTOR (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

MORTE DE CLARICE LISPECTOR

Ferreira Gullar

 

 

 

Poema de Ferreira Gullar, por ocasião da morte de Clarice Lispector:

 

Enquanto te enterravam no cemitério judeu

de São Francisco Xavier

(e o clarão de teu olhar soterrado

resistindo ainda)

o táxi corria comigo à borda da Lagoa

na direção de Botafogo

as pedras e as nuvens e as árvores

no vento

mostravam alegremente

que não dependem de nós.


Poemas e Poesias sexta, 08 de março de 2024

DIZEM? (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESOA)

DIZEM?

Fernando Pessoa

 

 

 

Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por que
Esperar?
– Tudo é
Sonhar.


Poemas e Poesias quinta, 07 de março de 2024

SONETO - DEDICADO A ANNA DA CUNHA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

 

SONETO
Dedicado a Anna da Cunha
 
 
"Ontem, quanto, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão, louca, suprema,
E no teu lábio, essa rosa da algema,
A minha vida, gélida prendias...
 
Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
— Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias...
 
Hoje, que vives desse amor ansioso
E és minha, só minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste, sendo tão ditoso!
 
E tremo e choro, pressentindo, forte
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida, que é a morte..."

 


Poemas e Poesias quarta, 06 de março de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 26 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
 

 

 

TROVA HUMORÍSTICA 26

Eno Teodoro Wanke

 

 Eu ontem me declarei

Nunca mais farei assim

Ah, sim? Ela disse não?

Oh, não! Ela disse sim!

 


Poemas e Poesias terça, 05 de março de 2024

SEI DE NADA (POEMA DO COLUNISTA FRANMCISCO ITAERÇO)

SEI DE NADA

Francisco Itaerço

 

Pouco sei
Do porvir
Do passado
Já esqueci
Do presente
Nada sei
Sei de nada
Dessa gente
Se pecador
Ou inocente
“Eu só sei
Que nada sei”

* * *

SEM SAÍDA

Eu nado, nado e nada
Não encontro a saída.
Pra liberdade, pra vida
Se eu corro eu canso
Se ando não alcanço
Ajo mais por instinto
Não quero, não consinto
E nesta vida de contos
Vou sentar-me e pronto
E esperar que a saída
Venha ao meu encontro.

* * *
LUA

Oh Lua!
Qual é a tua?
Desfilando nua
Outra vez.
Cruzou com o Sol
E se deu mal
Não fez pré-natal
Foi pro hospital
E pariu um raio.
Hoje anda distante
Triste, minguante
Pedindo pensão.
Não vem que não tem
Não te dou um vintém
Comigo não
Procure outro alguém.

* * *

SÓ DEUS

Quando te vejo
De frente, de costa…
Pergunto a você:
Como se pode fazer
Um ser tão perfeito
Com uma costela torta

Só Deus mesmo.


Poemas e Poesias segunda, 04 de março de 2024

SELVA SELVAGGIA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

SELVA SELVAGGIA

Da Costa e Silva

 

 

 

... Vi-me, sem o saber, perdido e errante
Por uma selva escura e misteriosa,
Como aquela floresta fabulosa,
Por onde errava o espírito do Dante.

Atônito e indeciso eu fiquei, diante
Do dédalo de sombras, de alma ansiosa
Como se dentro de uma nebulosa
Visse a livre amplidão do azul distante...

Andei às tontas, como que à procura,
Pelo instinto profético e divino,
De incerta luz na pávida espessura...

E, só conjeturava em desatino:
Que seria esta selva estranha e escura?
— Eu pensei que era a Vida... — Era o Destino.

 


Poemas e Poesias domingo, 03 de março de 2024

CLAMANDO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CLAMANDO

Cruz e Sousa

 

 

 

Barbaros vãos, dementes e terriveis
Bonzos tremendos de ferrenho aspecto,
Ah! deste ser todo o clarão secréto
Jamais ponde infiammar-vos, Impassiveis!

Tantas guerras bizarras e incoerciveis
No tempo e tanto, tanto immenso affecto,
São para vós menos que um verme e insecto
Na corrente vital pouco sensiveis.


No entanto nessas guerras mais bizarras
De sol, clarins e rútilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras...

As minhas carnes se dilaceraram
E vão, das Illusões que flammejaram,
Com o proprio sangue fecundando as terras...


Poemas e Poesias sábado, 02 de março de 2024

SARDENTA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

SARDENTA

Cesário Verde

 

Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada!
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.

 


Poemas e Poesias sexta, 01 de março de 2024

ROMANCE XXI DAS IDEIAS (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

ROMANCE XXI DAS IDEIAS

Cecília Meireles 

 

 

 

A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocrafes e gamelas.

Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as ideias.

Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos da alcovas,
histerias de donzelas.
Lamparinas, oratórios,
bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias, salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as idéias.

E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
Dom José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes . . .
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as ideias.

As esposas preguiçosas
na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre imbaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíase; partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas . . .
Candombeiros. Feiticeiros.
Ungüentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos. Angolas. Benguelas.
Ó imenso tumulto humano!
E as ideias.

Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se Dom José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson. Franklin.
(Palpita a noite, repleta
de fantasmas, de presságios . . .)
E as idieias.

Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
— entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam . . .
Anarda. Nise. Marília . . .
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as ideias.


Poemas e Poesias quarta, 28 de fevereiro de 2024

ADORMECIDA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

ADORMECIDA

Castro Alves

 

 

Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
 
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte
Via-se a noite plácida e divina.
 
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! tu és a flor da minha vida!..."


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