FOLHA NEGRA
Casimiro de Abreu
SONETO OCO
Carlos Pena Filho
Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.
De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.
Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.
Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO
Carlos Drummond de Andrade
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
SONETO 072 - EM FERMOSA LETEIA SE CONFIA (SONETO DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
SONETO 072
Luís de Camões
Em fermosa Leteia se confia,
por onde vaïdade tanta alcança,
que, tornada em soberba a confiança,
com os deuses celestes competia.
Porque não fosse avante esta ousadia
(que nascem muitos erros da tardança),
que tamanha doudice merecia.
Mas Oleno, perdido por Leteia,
não lhe sofrendo Amor que suportasse
castigo duro tanta fermosura,
quis padecer em si a pena alheia;
mas, porque a morte Amor não apartasse,
Como eu queria rever
Aquela terrinha amada
Correr nos campos floridos
Acordar de madrugada
Para exalar os primores
Do cheiro vindo das flores,
Deleitar-me nesse escol!
Vendo o sol rasgar o manto
Intocável, sacrossanto,
Eclodindo no arrebol.
Como eu queria voltar
Pra casa velha alpendrada
Caminhar no seu terreiro
Sentar naquela calçada
Contemplando a linda serra,
Retornar a minha terra
Reaver minha raiz
Matando aquela saudade
Da doce infantilidade
Aonde eu fui tão feliz.
Como eu queria outra vez
Divagar pela devesa
Escutar os passarinhos,
Livres pela natureza,
Ouvir o som das cigarras,
Ver periquitos, gangarras,
Revoar pelas campinas,
E um lençol de brancas neves
Com suas camadas leves
Se estender sobre as colinas.
Como eu queria sentir
O frescor da brisa fria,
No crepúsculo vespertino
Quando a noite se inicia,
Olhar para os horizontes
Quando montanhas e montes
Envoltos pelos negrumes
Ficam na opacidade
Para a luminosidade
Afluir dos vagalumes.
Como eu queria entender
Porque é que o tempo passa
Tão depressa como fosse
A cortina de fumaça
Que o vento vem e dispersa,
Numa suave conversa
Que nem dá pra perceber
Que ela ao trazer a velhice
Leva embora a meninice
E jamais irá devolver.
Como eu queria poder
Por ali rever meus pais
Que foram pra eternidade
E não voltam nunca mais,
A sequidão que devora
Botou-me de lá pra fora
E hoje vivo pesaroso.
Porém enquanto eu viver
Jamais irei esquecer
Do meu Sítio Frutuoso!ah
TROVA 016
Belmiro Braga
A vida, pelo que vejo
Hoje é vale e amanhã cimo
A quantos pobres invejo
E a quantos ricos lastimo
INSÔNIA
Augusto dos Anjos
Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...
Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sustenido
Rola impetuosa por meu peito adentro?!
- Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Súbito surge como um catafalco
Uma cidade ou mapa-múndi estranha.
A dispersão dos sonhos vagos reúno.
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Mártires da Terra
Desde os Cristãos até Giordano Bruno!
Vejo diante de mim Santa Francisca
Que com o cilício as tentações suplanta,
E invejo o sofrimento desta Santa,
Em cujo olhar o Vicio não faísca!
Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho,
Sair da vida puro como o arminho
Que os cabelos dos velhos embranquece!
Por que cumpri o universal ditame?!
Pois se eu sabia onde morava o Vício,
Por que não evitei o precipício
Estrangulando minha carne infame?!
Até que dia o intoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sairei desta Sodoma?!
À proporção que a minha insônia aumenta
Hierógafos e esfinges interrogo...
Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo
Toda a alvorada esplêndida se ostenta.
Vagueio pela Noite decaída...
No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus
Vai projetando sobre os campos largos
O derradeiro fósforo da Vida.
O Sol, equilibrando-se na esfera,
Restitui-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorfose
Nas minhas arcas cerebrais se opera.
O odor da margarida e da begônia
Subitamente me penetra o olfato...
Aqui, neste silêncio e neste mato,
Respira com vontade a alma campônia!
Grita a satisfação na alma dos bichos.
Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As árvores, as flores, os corimbos,
Recordam santos nos seus próprios nichos.
Com o olhar a verde periferia abarco.
Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas árvores, contemplo
As maravilhas reais do meu Pau d'Arco!
Cedo virá, porém, o funerário,
Atro dragão da escura noite, hedionda,
Em que o Tédio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extraordinário.
Outra vez serei pábulo do susto
E terei outra vez de, em mágoa imerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!
NAMORO A CAVALO
Álvares de Azevedo
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia — em casamento.
Ontem tinha chovido... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...
Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...
ROSA SEM ESPINHOS
Almeida Garrett
Para todos tens carinhos,
A ninguém mostras rigor!
Que rosa és tu sem espinhos?
Ai, que não te entendo, flor!
Se a borboleta vaidosa
A desdém te vai beijar,
O mais que lhe fazes, rosa,
É sorrir e é corar.
E quando a sonsa da abelha,
Tão modesta em seu zumbir,
Te diz: — «Ó rosa vermelha,
«Bem me podes acudir:
«Deixa do cálix divino
«Uma gota só libar…
«Deixa, é néctar peregrino,
«Mel que eu não sei fabricar…»
Tu de lástima rendida,
De maldita compaixão,
Tu à súplica atrevida
Sabes tu dizer que não?
Tanta lástima e carinhos,
Tanto dó, nenhum rigor!
És rosa e não tens espinhos!
Ai! que não te entendo, flor.
MÃES DE PORTUGAL
Alberto de Oliveira
Ó Mães de Portugal comovedoras,
Com Meninos Jesus de encontro ao peito,
Iguais na devoção e amor perfeito
Aos painéis onde estão Nossas Senhoras!
Ó Virgem Mãe, qual se tu própria foras,
Surgem de cada lado, quase a eito,
As Mães e os Filhos em abraço estreito,
Dolorosas, felizes, povoadoras...
São presépios as casas onde moram:
E o riso casto, as lágrimas que choram,
O anseio que lhes enche o coração,
Gesto, candura, olhar — tudo é divino,
Tudo ensinado pelo Deus Menino,
Tudo é da Mãe Celeste inspiração!
MISTÉRIO
Affonso Romano de Sant'Anna
O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.
SAUDAÇÃO
Adélia Prado
Ave, Maria!
Ave, carne florescida em Jesus.
Ave, silêncio radioso,
Urdidura de paciência
Onde Deus fez seu amor inteligível!
A MULHER QUE PASSA
Vinícius de Moraes
(Grafia original)
eu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontravas se te perdias?
Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!
Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como cortiça
E tem raízes como a fumaça.
UMA IMPRESSÃO DE DON JUAN
Vicente de Carvalho
NOTÍCIA DE AMANHÃ
Thiago de Mello
Para Milu e Ângelo
Eu sei que todos a viram
e jamais a esquecerão.
Mas é possível que alguém,
denso de noite, estivesse
profundamente dormindo.
E aos dormidos — e também
aos que estavam muito longe
e não puderam chegar,
aos que estavam perto e perto
permaneceram sem vê-la;
aos moribundos nos catres
e aos cegos de coração —
a todos que não a viram
contarei desta manhã
— manhã é céu derramado
é cristal de claridão —
que reinou, de leste a oeste,
de morro a mar — na cidade.
Pois dentro desta manhã
vou caminhando. E me vou
tão feliz como a criança
que me leva pela mão.
Não tenho nem faço rumo:
vou no rumo da manhã,
levado pelo menino
(ele conhece caminhos
e mundos, melhor do que eu).
(...)
Por verdadeira, a manhã
vai chamando outras manhãs
sempre radiosas que existem
(e às vezes tarde despontam
ou não despontam jamais)
dentro dos homens, das coisas:
na roupa estendida à corda,
nos navios chegando,
na torre das igrejas,
nos pregões dos peixeiros,
na serra circular dos operários,
nos olhos da moça que passa, tão bonitos!
(...)
A beleza mensageira
desta radiosa manhã
não se resguardou no céu
nem ficou apenas no espaço,
feita de sol e de vento,
sobrepairando a cidade
Não: a manhã se deu ao povo.
A manhã é geral.
As árvores da rua,
a réstia do mar,
as janelas abertas,
o pão esquecido no degrau,
as mulheres voltando da feira,
os vestidos coloridos,
o casal de velhos rindo na calçada,
o homem que passa com cara de sono,
a provisão de hortaliças,
o negro na bicicleta,
o barulho do bonde,
os passarinhos namorando
— ah! pois todas essas coisas
que minha ternura encontra
num pedacinho de rua,
dão eterno testemunho
da amada manhã que avança
e de passagem derrama
aqui uma alegria,
ali entrega uma frase
(como o dia está bonito!)
à mulher que abre a janela,
além deixa uma esperança
mais além uma coragem,
e além, aqui e ali
pelo campo e pela serra,
aos mendigos e aos sovinas,
aos marinheiros, aos tímidos,
aos desgraçados, aos prósperos,
aos solitários, aos mansos,
às velhas virgens, às puras
e às doidivanas também,
a manhã vai derramando
uma alegria de viver,
vai derramando um perdão,
vai derramando uma vontade de cantar.
E de repente a manhã
— manhã é céu derramado,
é claridão, claridão —
foi transformando a cidade
numa praça imensa praça,
e dentro da praça o povo
o povo inteiro cantando,
dentro do povo o menino
me levando pela mão.
SAUDADES DO PORVIR
Sousândrade
Eu vou com a noite
Pálida e fria
Na penedia
Me debruçar:
O promontório
De negro dorso,
Qual nau de corso
Se alonga ao mar.
Dormem as horas,
A flor somente
Respira e sente
Na solidão;
A flor das rochas,
Franzina e leve,
Ao sopro breve
Da viração.
Cantando o nauta
Desdobra as velas
Argênteas, belas
Asas do mar;
Branqueia a proa
Partindo as vagas,
Que n’outras plagas
Se vão quebrar.
Eu ponho os olhos
No firmamento:
Que isolamento,
Oh, minha irmã!
Apenas o astro
Que a luz duvida,
Promete a vida
Para amanhã.
Naquela nuvem
Te vejo morta;
Meu peito corta
Cruel sentir
Da lua o túmulo
Na onda ondula,
E o mar modula
Como um porvir…
PUDOR
Raul de Leôni
Quando fores sentindo que o fulgor
Do teu Ser se corrompe e a adolecência
Do teu gênio desmaia e perde a cor,
Entre penumbras e deliquescência,
Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!
Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver
E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer...
AUTOBIOGRAFIA
Patativa do Assaré
Mas porém como a leitura
É a maió diciprina
E veve na treva iscura
Quem seu nome não assina,
Mesmo na lida pesada,
Para uma escola atrasada
Tinha uma parte do dia,
Onde estudei argum mês
Com um veio camponês
Que quase nada sabia.
Meu professô era fogo
Na base do português,
Catálogo, era catalôgo,
Mas grande favô me fez.
O mesmo nunca esqueci,
Foi com ele que aprendi
Minhas premêra lição,
Muito a ele tô devendo,
Saí escrevendo e lendo
Mesmo sem pontuação.
Depois só fiz meus estudo,
Mas não nos livro escola
Eu gostava de lê tudo,
Revista, livro e jorná.
Com mais uns tempo pra frente,
Mesmo vagarosamente,
Não errava nenhum nome.
Lia no claro da luz
As pregação de Jesus
E as injustiça dos home.
MIGALHAS DE VENTURA
Olegário Mariano
Tirem-me a luz que os olhos me alumia,
O ar que me enche os pulmões e o céu que adoro;
Tirem-me esses momentos de alegria,
Tirem-me a voz de pássaro canoro;
Tirem-me a paz do espírito, a harmonia
Da vida, e o mar que canta, quando eu choro
Tirem-me a noite e, ao luar da noite fria,
O sonoro esplendor do céu sonoro;
Tirem-me a glória de viver, o encanto,
A lágrima, o sorriso, a mocidade
Que faz com que eu na vida engane tanto!
Tirem-me o manto, deixem-me desnudo,
Mas não me tirem da alma esta saudade,
Que é meu sangue, meu ser, meu pão, meu tudo!
O POLO
Olavo Bilac
(Grafia original)
"Pára, conquistador intimorato e forte!
Pára! que buscas mais que te enobreça e eleve?
E tão alegre o sol! a existência é tão breve!
E é tão fria essa tumba entre os gelos do norte!
Dorme o céu. Numa ronda esquálida, de leve,
Erram fantasmas. Reina um silêncio de morte.
Focas de vulto informe, ursos de estranho porte
Morosamente vão de rastros sobre a neve..."
Em vão!... E o gelo cresce, e espedaça o navio.
E ele, subjugador do perigo e do medo,
Sem um gemido cai, morto de fome e frio.
E o Mistério se fecha aos seus olhos serenos...
Que importa? Outros virão devassar-lhe o segredo!
Um cadáver de mais... um sonhador de menos...
OS POEMAS
Mário Quintana
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante
em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…
OBRAR
Manoel de Barros
EVOCAÇÃO DO RECIFE
Manuel Bandeira
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.
AS ESTRELAS
Luís Guimarães Júnior
Boas amigas, imortais estrelas,
Eu vos comparo, oh níveas criaturas,
Ao ver-vos caminhar n'essas Alturas,
A um rebanho de lúcidas gazelas.
Bem se assemelha o vosso olhar ao delas,
Ninho de amor e ternas amarguras,
Mas sois mais puras que as gazelas puras,
Boas amigas, imortais estrelas!
As vezes, levo as noites, fielmente,
A vos seguir aí nas nebulosas
Planícies como um cão triste e dormente...
Mas vós fugis de mim!—silenciosas
Mergulhais no Infinito, de repente,
Como um bando de letras luminosas.
O BOM REITOR
Júlio Dinis
Sabem a história triste
Do bom reitor?
Mísero, toda a vida
Levou com dor.
Fez quanto bem podia, Mas… afinal
Morre, e na pobre campa
Nem um sinal.
Nem uma cruz ao menos
Se ergue no chão!
Geme-lhe só no túmulo
A viração.
Vedes, além, na relva
Junto ao rosai,
Flores que há desfolhado
O vendaval?
Cobrem-lhe a lousa humilde; A criação
Paga-lhe assim a dívida
De compaixão.
Pobres, que amava tanto, Nunca, ao passar,
Choram, curvando a fronte
Para rezar.
Nunca, ao romper do dia, O lavrador
Pára e lamenta a sorte
Do bom reitor.
As criancinhas nuas
Que estremeceu,
Já nem sequer se lembram
Do nome seu.
No salgueiral vizinho, Ao pôr do Sol,
Vai carpir-lhe saudades
O rouxinol.
Lágrimas… pobre campal
Ai, não as tem;
Só da manhã o orvalho
Rociá-la vem.
Da solitária Lua
A triste luz
Grava-lhe em vagas sombras,
Estranha cruz.
E ele repousa, dorme, Vive no Céu.
Dorme, esquecido e humilde, Como viveu.
Há nesta vida amarga
Sortes assim:
Vive-se num martírio,
Morre-se enfim.
Sem que memória fique
Para contar
Às gerações que passam,
Nosso penar.
Quem me escutar, se um dia
Ao prado for,
Ore pelo descanso
Do bom reitor.
MANHÃ PARA SER FELIZ
J. G. de Araújo Jorge
Esta é uma manhã para ser feliz
em um lugar, de algum modo,
é uma manhã para ser feliz...
Esta é uma manhã para dois, para dois juntos
abraçados e tontos, num remoinho
não como nós, eu aqui, diante do sol, das árvores,
de tudo envergonhado porque estou sozinho...
Esta é uma manhã que me fala de ti, nas nuvens,
na transparência do ar,
neste azul do céu, imaculado,
na beleza das coisas tocadas de sonho
e imaturidade...
Uma manhã de festa
para ser feliz de verdade!
Esta é uma manhã
para te Ter ao meu lado...
Quando Deus fez uma manhã como esta
estava com certeza apaixonado...
RIOS DE RUMOR
Hilda Hilst
Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo veem aquela.
POUCO ACIMA DAQUELA ALVÍSSIMA COLUNA
Hermes Fontes
Pouco acima daquela alvíssima coluna
que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal
que, vendo-a, ou, vendo-a, sem, na realidade, a ver,
de espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna
de beijos — uns, sutis, em diáfano cristal
lapidados na oficina do meu Ser;
outros — hóstias ideais dos meus anseios,
e t o d o s cheios, t o d o s cheios
do meu infinito amor . . .
Taça
que encerra
por
suma graça
tudo que a terra
de bom
produz!
Boca!
o dom
possuis
de pores
louca
a minha boca
Taça
de astros e flores,
na qual
esvoaça
meu ideal!
Taça cuja embriaguez
na via-láctea do Sonho ao céu conduz!
Que me enlouqueças mais... e, a mais e mais, me dês
o teu delírio... a tua chama... a tua luz...
LONGE DA VISTA
Guilherme de Almeida
Vou partir, vais ficar. “Longe da vista,
Longe do coração” – diz o ditado.
Basta, porém, que o nosso amor exista,
Para que eu parta e fiques sem cuidado.
Dentro em mim mesmo, o coração egoísta,
Quanto mais longe, mais te quer ao lado;
Tanto mais te ama, quanto mais te avista
E, antes de ver-te, já te havia amado.
Vou partir. Para longe? Para perto?
– Não sei: longe de ti tudo é deserto
E todas as distâncias são iguais.
Como eu quisera que, na despedida,
Quando se unissem nossas mãos, querida,
Nunca pudessem desunir-se mais!
NATUREZA
Francisca Júlia
Um contínuo voejar de moscas e de abelhas Agita os ares de um rumor de asas medrosas; A Natureza ri pelas bocas vermelhas Tanto das flores más como das boas rosas. Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas O grito dos chacais e o pranto das ovelhas, Brados de desespero e frases amorosas Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas... Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias, Na longa sucessão das noites e dos dias, Tanto aborto, que se transforma e se renova, Quando meu pobre corpo estiver sepultado, Mãe! transforma-o também num chorão recurvado Para dar sombra fresca à minha própria cova.
PARTICULARIDADES - 1
Gilka Machado
Na plena solidão de um amplo descampado,
penso em ti e que tu pensas em mim suponho;
tenho toda afeição de um arbusto isolado,
abstrato o olhar, entregue à delícia de um sonho.
O Vento, sob o céu de brumas carregado,
passa, ora langoroso, ora forte, medonho!
e tanto penso em ti, ó meu ausente amado!
que te sinto no Vento e a ele, feliz, me exponho.
Com carícias brutais e com carícias mansas,
cuido que tu me vens, julgo-me toda nua...
– sou árvore a oscilar, meus cabelos são franças...
E não podes saber do meu gozo violento,
quando me fico assim, neste ermo, toda nua,
completa-te exposta à Volúpia do Vento!
ESCREVE-ME
Florbela Espanca
Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!
Escreve-me!Há tanto,há tanto tempo
Que te não vejo, amor!Meu coração
Morreu já,e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração!
"Amo-te!"Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade!
Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então...brandas...serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...
HOMEM SENTADO
Ferreira Gullar
Neste divã recostado
à tarde
num canto do sistema solar
em Buenos Aires
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelão da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro mistura
de nervos e ossos
vivendo
à temperatura de 36 graus e meio
lembrando plantas verdes
que já morreram
DIZEM QUE FINJO OU MINTO
Fernando Pessoa
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sou ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
SAINT-JUST
Euclides da Cunha
Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo,
– Ao forte impulso das paixões audazes
Ardente o lábio de terríveis frases
E a luz do gênio em seu olhar fulgindo,
A tirania estremeceu nas bases,
De um rei na fronte ressumou, pungindo,
Um suor de morte e um terror infindo
Gelou o seio aos cortesãos sequazes –
Uma alma nova ergueu-se em cada peito,
Brotou em cada peito uma esperança,
De um sono acordou, firme, o Direito –
E a Europa – o mundo – mais que o mundo, a França –
Sentiu numa hora sob o verbo seu
As comoções que em séculos não sofreu!
TROVA HUMORÍSTICA 25
Eno Teodoro Wanke
Só porque está resfriada
Me recusa meu beijinho?...
Vá, não seja tão malvada
Me transmita um microbinho.
SELVA SELVAGGIA
Da Costa e Silva
... Vi-me, sem o saber, perdido e errante
Por uma selva escura e misteriosa,
Como aquela floresta fabulosa,
Por onde errava o espírito do Dante.
Atônito e indeciso eu fiquei, diante
Do dédalo de sombras, de alma ansiosa
Como se dentro de uma nebulosa
Visse a livre amplidão do azul distante...
Andei às tontas, como que à procura,
Pelo instinto profético e divino,
De incerta luz na pávida espessura...
E, só conjeturava em desatino:
Que seria esta selva estranha e escura?
— Eu pensei que era a Vida... — Era o Destino.
CARNAL E MÍSTICO
Cruz e Sousa
Pelas regiões tenuíssimas da bruma
vagam as Virgens e as Estrelas raras...
Como que o leve aroma das searas
todo o horizonte em derredor perfuma.
Numa evaporação de branca espuma
vão diluindo as perspectivas claras...
Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras
as Estrelas apagam-se uma a uma.
E então, na treva, em místicas dormências,
desfila, com sidéreas latescências,
das Virgens o sonâmbulo cortejo...
Ó Formas vagas, nebulosidades!
Essência das eternas virgindades!
Ó intensas quimeras do Desejo...
O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL - II - NOITE FECHADA
Cesário Verde
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de <<dom>>!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
RETRATO
Cecília Meireles
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio tão amargo.
Eu não tinha estas mãos tão sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou retida
a minha face?
BOA NOITE
Castro Alves
Boa noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio...
Boa noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.
Boa noite!... E tu dizes – Boa noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não me digas descobrindo o peito,
– Mar de amor onde vagam meus desejos.
Julieta do céu! Ouve.. a calhandra
já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...
...Quem cantou foi teu hálito, divina!
Se a estrela-d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
"É noite ainda em teu cabelo preto..."
É noite ainda! Brilha na cambraia
– Desmanchado o roupão, a espádua nua –
o globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...
É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
– São as asas do arcanjo dos amores.
A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.
Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!
Ai! Canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...
Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
– Boa noite! –, formosa Consuelo...
PALAVRAS A ALGUÉM
Casimiro de Abreu
Tu folgas travessa e louca
Sem ouvires meu lamento,
Sonhas jardins d’esmeralda
Nesse virgem pensamento,
Mas olha que essa grinalda
Bem pode murchá-la o vento!
Ai que louca! abriste o livro
Da minh’alma, livro santo,
Escrito em noites d’angústia,
Regado com muito pranto,
E... quase rasgaste as folhas
Sem entenderes o canto!
Agora corres nos charcos
Em vez das alvas areias!...
Deleita-te a voz fingida
Dessas formosas sereias...
Mas eu te falo e te aviso:
- “olha que tu te enlameias!” -
Tu és a pomba inocente,
Eu sou teu anjo-da-guarda,
Devo dizer-te baixinho:
- “Olha que a morte não tarda!
“Mariposa dos amores,
“Deixa a luz, embora arda.
“A chama seduz e brilha
- “Qual diamante entre gazas -
“E tu no fogo maldito
“Tão descuidosa te abrasas!
“Mariposa, mariposa,
“Tu vais queimar tuas asas!”
Conchinha das lisas praias,
Nasceste em alvas areias,
Não corras tu para os charcos
Arrebatada nas cheias!...
- Os teus vestidos são brancos...
Olha que tu te enlameias!...
SONETO DO DESMANTELO AZUL
Carlos Pena Filho
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO
Carlos Drummond de Andrade
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
El vaso reluciente y cristalino,
de Ángeles agua clara y olorosa,
de blanca seda ornado y fresca rosa,
ligado con cabellos de oro fino,
bien claro parecía el don divino
labrado por la mano artificiosa
de aquella blanca Ninfa, graciosa
más que el rubio lucero matutino.
Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,
raxado de los blancos miembros bellos,
y en el agua vuestra ánima pura.
La seda es la blancura, y los cabellos
son las prisiones y la ligadura
con que mi libertad fue asida dellos.
TROVA 015
Belmiro Braga
Eu morro por Filomena,
QUEIXAS NOTURNAS
Augusto dos Anjos
Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!
Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.
O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!
Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!
Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!
E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!
Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.
E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!
É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.
Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!
Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.
Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!
Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!
Que dentro de minh'alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!
Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!
Melancolia! Estende-me a tu'asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!
Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.
O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!
Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!
Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!
E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!
Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.
E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!
É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.
Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!
Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.
Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!
Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!
Que dentro de minh'alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!
Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!
Melancolia! Estende-me a tu'asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!
MINHA DESGRAÇA
Álvares de Azevedo
Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco...
E, meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...
Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
cujo sol (quem mo dera) é o dinheiro...
Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que meu peito assim blasfema,
É ter por escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.
QUANDO EU SONHAVA
Almeida Garrett
Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar...
Para quê? – Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava – mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia ...
LUVA ABANDONADA
Alberto de Oliveira
Uma só vez calçar-vos me foi dado,
Dedos claros! A escura sorte minha,
O meu destino, como um vento irado,
Levou-vos longe e me deixou sozinha!
Sobre este cofre, desta cama ao lado,
Murcho, como uma flor, triste e mesquinha,
Bebendo ávida o cheiro delicado
Que aquela mão de dedos claros tinha.
Cálix que a alma de um lírio teve um dia
Em si guardada, antes que ao chão pendesse,
Breve me hei de esfazer em poeira, em nada…
Oh! em que chaga viva tocaria
Quem nesta vida compreender pudesse
A saudade da luva abandonada!
LIMITES DO AMOR
Affonso Romano de Sant'Anna
Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.
O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, sem empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:
PRANTO PARA COMOVER JONATHAN
Adélia Prado
Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.
A MULHER DA NOITE
Vinícius de Moraes
Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.
A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas — vinhas andando e eu não te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus olhos.
Eu estava imóvel — tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam sobre os meus lábios.
Eu queria me levantar porque grandes reses me lambiam o rosto
E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas.
Uma angústia de morte começou a se apossar do meu ser
As formigas iam e vinham, os insetos procriavam e zumbiam do meu desespero
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.
Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe
E não havia mais vida na minha frente.
ÚLTIMA CONFIDÊNCIA
Vicente de Carvalho
- E se acaso voltar? Que hei de dizer-lhe quando
Me perguntar por ti?
- Dize-lhe que me viste uma tarde chorando...
Nessa tarde parti.
- Se arrependido e ansioso ele indagar: Para onde?
Por onde a buscarei?
- Dize-lhe: "Para além... Para longe..." Responde
Como eu mesma: "Não sei".
Ai, é tão vasta a noite! A meia luz do ocaso
Desmaia... anoiteceu...
Onde vou? Nem eu sei... Irei seguindo o acaso
Até achar o céu...
Eu cheguei a supor que possível me fosse
Ser amada - e viver.
É tão fácil a morte... Ai, seria tão doce
Ser amada... e morrer!...
Ouve: conta-lhe tu que eu chorava, partindo,
As lágrimas que vês...
Só conheci do amor, que imaginei tão lindo,
O mal que ele me fez.
Narra-lhe transe a transe a dor que me consome...
Nem houve nunca igual!
Conta-lhe que eu morri murmurando o seu nome
No soluço final!
Dize-lhe que o seu nome ensangüentava a boca
Que o seu beijo não quis:
Golfa-me em sangue vês? E eu murmurando-o, louca!
Sinto-me tão feliz!
Nada lhe contes, não... Poupa-o... Eu quase o odeio,
Oculta-lho! Senhor,
Eu morro!... Amava-o tanto... Amei-o sempre... Amei-o
Até morrer... de amor.
NINGUÉM ME HABITA
Thiago de Mello
Ninguém me habita. A não ser
o milagre da matéria
que me faz capaz de amor,
e o mistério da memória
que urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa me rever no outrora.
Ninguém me habita. Sozinho
resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiúras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.
RECORDAÇÕES
Sousândrade
Astros gentis da bela mocidade,
Vésper meiga, crescente feiticeiro,
Que lembranças trazeis e que saudade
Dos tempos da concórdia e o verde oiteiro!
Vos adorei dos campos e à cheirosa
Brisa que das estrelas recendia,
Vos adorei à luz de santa-rosa
Quando aos nove anos Beatriz sorria:
Mas, para que volver às doces eras,
Do coração aos cândidos martírios,
Se onde eternal renascem primaveras
Não finda amor porque não findam lírios?
Depois, que importa essa ilusão fagueira
Dos mentirosos céus, quando o tormento,
Quando a dor d'alma, a sempre-verdadeira
Aí fica? – astros gentis do firmamento,
Que importa, se das flores que se amaram,
Que redolentes foram, novas flores
Cada dia o bom Deus manda aos amores,
Porque s'esqueçam tristes que murcharam!
PRUDÊNCIA
Raul de Leôni
Não aprofundes nunca, nem pesquises
O segredo das almas que procuras:
Elas guardam surpresas infelizes
A quem lhes desce às convulsões obscuras.
Contenta-te com amá-las, se as bendizes,
Se te parecem límpidas e puras,
Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras,
Há sempre um gosto amargo nas raízes…
Trata-se assim, como se fossem rosas,
Mas não despertes o sabor selvagem
Que lhes dorme nas pétalas tranquilas,
Lembra-te dessas flores venenosas!
As abelhas cortejam de passagem,
Mas não ousam prová-las nem feri-las…
A MELANCOLIA DAS RUAS
Olegário Mariano
Choveu o dia todo… Era chuva de vento.
O dínamo da Vida amiudando os instantes,
Acelerava em continuado movimento,
Os automóveis, as carroças, os viandantes.
–
As casas de comércio, portas largas,
Fechadas, sonolentas e pesadas…
Os caminhões deitando cargas
Sobre a chapa polida das calçadas…
–
Tudo a rua sentiu embriagada e felina.
De quando em quando, no alto, lá bem no alto,
Um pássaro sonoro esgarçava a neblina
E o rumor do motor vinha morrer no asfalto…
–
Depois a rua adormeceu… Veio descendo
A noite… Foram desaparecendo
As vozes todas… Para que retê-las?
–
Agora as poças d’água estão sorrindo,
Monótonas, humildes, refletindo
O céu… Tão longe o céu cheio de estrelas!
O VOADOR
Olavo Bilac
"Padre Bartolomeu Lourenço de
Gusmão, inventor do aeróstato,
morreu miseravelmente num
convento, em Toledo, sem
ter quem lhe velasse a agonia."
Em Toledo. Lá fora, a vida tumultua
E canta. A multidão em festa se atropela...
E o pobre, que o suor da agonia enregela,
Cuida o seu nome ouvir na aclamação da rua.
Agoniza o Voador. Piedosamente, a lua
Vem velar-lhe a agonia, através da janela.
A Febre, o Sonho, a Glória enchem a escura cela,
E entre as névoas da morte uma visão flutua:
"Voar! varrer o céu com as asas poderosas,
Sobre as nuvens! correr o mar das nebulosas,
Os continentes de ouro e fogo da amplidão!..."
E o pranto do luar cai sobre o catre imundo...
E em farrapos, sozinho, arqueja moribundo
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão...
OS DEGRAUS
Mário Quintana
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
O SOLITÁRIO
Manoel de Barros
Os muros enflorados caminhavam ao lado de um
homem solitário
Que olhava fixo para certa música estranha
Que um menino extraía do coração de um sapo.
Naquela manhã dominical eu tinha vontade de sofrer
Mas sob as árvores as crianças eram tão comunicativas
Que me faziam esquecer de tudo
Olhando os barcos sobre as ondas…
No entanto o homem passava ladeado de muros!
E eu não pude descobrir em seu olhar de morto
O mais pequeno sinal de que estivesse esperando alguma dádiva!
Seu corpo fazia uma curva diante das flores.
EU VI UMA ROSA
Manuel Bandeira
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.
Sozinha no mundo.
Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.
Tudo isso era excesso.A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.
Sozinha no tempo.
Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe na glória,
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.
A VOZ DE MOEMA
Luís Guimarães Júnior
"Ah Diogo cruel!" disse com mágoa,
E sem mais vista ser sorveu-se n'água.
DURÃO — Caramuru.
Gemem as ondas mansamente; — a quilha
Do barco ondeia, ao som da vaga clara;
Cai do farol a luz longínqua e rara,
E a Lua cheia sobre as ondas brilha...
Do mar na ardente e luminosa trilha
Nem um batel por estas horas pára:
Sonha a Bahia, ao longe, — a altiva e cara
Filha dos deuses, de Colombo filha.
Tudo silente dorme. O bardo, entanto,
Que tudo vê e em tudo colhe o tema
Que amor produz no flácido quebranto,
Ouve pairar nos ares sons d'um Poema...
Ai! é a voz, — a voz, rouca de pranto,
A triste voz da pálida Moema!
O ANJO DA GUARDA DA INFÂNCIA
Júlio Dinis
Desci dor celestes coros, Por Deus mandada escutar
Da infância as queixas e os choros, Para lhos ir confiar.
Desci. Na terra, nos mares
Tanta miséria encontrei,
Que os meus magoados olhares
De terra e mar desviei.
Desci. E tantos gemidos, Tão dolorosos ouvil
Que, turbados os sentidos, Quis recuar… mas desci.
Nesta colheita de dores Pelo mundo todo andei, No pranto dos pecadores As
minhas vestes molhei.
Vagueando dias e dias
Chegara à Judeia enfim,
Quando um clamor de agonias
Veio de longe até mim.
O Sol, o Sol inflamado Destas terras orientais Tinha no disco afogueado
Não sei que estranhos sinais.
Soavam menos distantes
Sinistros brados de dor
Choros de mães e de infantes
Cantos de morte e terror.
Vi anjos de asas nevadas
Em bandos subir ao Céu,
Quais pombas amedrontadas
Fugindo à voz de escarcéu.
«Onde ides? Quem vos persegue ? A que tormentos fugis?»
Um que triste o bando segue, Estas palavras me diz:
Somos as almas de infantes Mortos em guerra feroz; Inda das mães
delirantes Nos chama a sentida voz.
« Só a materna saudade
Nossa carreira detém,
Embora no Céu, quem há-de
Esquecer o amor de mãe?»
Disse e o semblante formoso
Com as asas encobriu,
E ao bando silencioso
Silencioso se uniu.
Eu segui. Na ampla cidade
Aterrada penetrei…
Ai, da fera humanidade
Os meus olhos desviei!
Que cena! Corre nas praças
Sanguinária multidão
Como nuvem de desgraças
Semeando a desolação.
Caem por terra, sem vida, Tenras crianças às mil,
E uma turba enfurecida
Corre à matança, febril.
As mães pálidas, chorosas, Suplicam, pedem em vão!
Nessas feras sanguinosas Não palpita um coração.
Outros tentam, em delírio, Os seus filhos disputar
E com eles no martírio
Gostosas se vão juntar.
Sobre a terra ensangüentada
Eu soluçando, ajoelhei,
E de intensa dor magoada,
A Deus piedade implorei.
Findava a prece, e uma estrela
No horizonte despontou,
Pura, cintilante, ela
O caminho me traçou.
À humilde e escondida estância
Da venturosa Belém
Cheguei; vi um Deus na infância
Nos ternos braços da mãe.
Minha colheita de dores
Naquele berço depus,
Da humanidade aos rigores
Pedi remédio a Jesus.
No olhar do divino infante
Raiou luz e fulgor,
Foi a aurora radiante
Que anuncia um redentor
LIBERDADE
J. G. de Araújo Jorge
A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
como os caminhos soltos pela terra,
como os pássaros livres pelos céus.
Ela é o sol dos caminhos ! Ela é o ar
que os enche os pulmões, é o movimento,
traz num corpo irrequieto como o mar
uma alma errante e boêmia como o vento.
Minha crença, meu Deus, minha bandeira,
razão mesma de ser do meu destino,
há de ser a palavra derradeira
que há de aflorar-me aos lábios como um hino.
Liberdade: Alavanca de montanhas!
Aureolada de louros ou de espinhos
há de cingir-me a fronte nas campanhas,
há de ferir-me os pés pelos caminhos.
Sinto-a viva em meu sangue palpitando
seja utopia ou seja ideal, - que importa?
Quero viver por esse ideal lutando,
quero morrer se essa utopia é morta!
QUE ESTE AMOR NÃO ME CEGUE
Hilda Hilst
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
PERFEIÇÃO
Hemes Fontes
Tanto esforço perdido em ser perfeito!
Em ser superno, tanto esforço vão!
Sonho efêmero; acordo e, junto ao leito,
a mesma inércia, a mesma escuridão.
Vejo, através das sombras, um defeito
em cada cousa, e as cousas todas são,
para os meus olhos rútilos de eleito,
prodígios de impureza e imperfeição!
Fico-me, noite a dentro, insone e mudo,
pensando em ti, que dormes, esquecida
do teu amargurado sonhador...
Ah, Mas, se ao menos, imperfeito é tudo
salve-se, às mil imperfeições da vida,
a humilde perfeição do meu amor!
INFÂNCIA
Guilherme de Almeida
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
VENDO-A SORRIR
Guerra Junqueiro
A minha filha
Filha, quando sorris, iluminas a casa
Dum celeste esplendor.
A alegria é na infância o que na ave é asa
E perfume na flor.
Ó doirada alegria, ó virgindade santa
Do sorriso infantil!
Quando o teu lábio ri, filha, a minha alma canta
Todo o poema de Abril.
Ao ver esse sorriso, ó filha, se concentro
Em ti o meu olhar,
Engolfa-se-me o céu azul pela alma dentro
Com pombas a voar.
Sou o Sol que agoniza, e tu, meu anjo loiro,
És o Sol que se eleva.
Inunda-me de luz, sorri, polvilha de oiro
O meu manto de treva!
MUSA IMPASSÍVEL
Francisca Júlia
I
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
II
Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.
Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.
Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,
E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
PARTICULARIDADES
Gilka Machado
Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... Os pêlos...
Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.
Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica...
O meu tato se estende a todos os sentidos;
DESEJOS VÃOS
Florbela Espanca
Eu q’ria ser o mar d’altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu q’ria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
Eu q’ria ser o sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu q’ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
LIÇÕES DE ARQUITETURA
Ferreira Gullar
Para
Oscar Niemeyer
No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou
para sempre
uma ave uma flor
(ele não faz de pedra
nossas casas:
faz de asa)
No coração de Argel sofrida
fez aterrizar uma tarde
uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com matéria dura:
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura
nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve
DITOSOS A QUEM ACENA
Fernando Pessoa
MARINHA
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes : têm pena…
Eu sofro sem pena a vida.
Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar…
E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
ROBESPIERRE
Eulides da Cunha
Alma inquebrável – bravo sonhador
De um fim brilhante, de um poder ingente,
De seu cérebro audaz, a luz ardente
É que gerava a treva do Terror!
Embuçado num lívido fulgor
Su’alma colossal, cruel, potente,
Rompe as idades, lúgubre, fremente,
Cheia de glórias, maldições e dor!
Há muito que, soberba, essa’alma ardida
Afogou-se cruenta e destemida
Num dilúvio de luz: Noventa e três...
Há muito já que emudeceu na história
Mas ainda hoje a sua atroz memória
É o pesadelo mais cruel dos reis!...
TROVA HUMORÍSTICA 24
Eno Teodoro Wanke
Eva: a primeira poesia
Escrita do prório punho
Por Deus, no sétimo dia,
Adão serviu de rascunho
SAUDADE
Da Costa e Silva
Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio…
Saudade! Amor da minha terra… O rio
Cantigas de águas claras soluçando.
Noites de junho… O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando…
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.
Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento…
As mortalhas de névoa sobre a serra…
Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando… E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra…
CANÇÃO DA FORMOSURA
Cruz e Sousa
Vinho de sol ideal canta e cintila
Nos teus olhos, cintila e aos lábios desce,
Desce a boca cheirosa e a empurpurece,
Cintila e canta após dentre a pupila.
Sobe, cantando, a limpidez tranqüila
Da tu'alma estrelada e resplandece,
Canta de novo e na doirada messe
Do teu amor, se perpetua e trila...
Canta e te alaga e se derrama e alaga...
Num rio de ouro, iriante, se propaga
Na tua carne alabastrina e pura.
Cintila e canta na canção das cores,
Na harmonia dos astros sonhadores,
A Canção imortal da Formosura!
SENTIMENTO DUM OCIDENTAL - HORAS MORTAS
Cesário Verde
O tecto fundo de oxigénio, de ar, Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva-me a quimera azul de transmigrar. Por baixo, que portões! Que arruamentos! Um parafuso cai nas lajes, às escuras: Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. E eu sigo, como as linhas de uma pauta A dupla correnteza augusta das fachadas; Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, As notas pastoris de uma longínqua flauta. Se eu não morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! Esqueço-me a prever castíssimas esposas, Que aninhem em mansões de vidro transparente! Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis, Pousando, vos trarão a nitidez às vidas! Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, Numas habitações translúcidas e frágeis. Ah! Como a raça ruiva do porvir, E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, Nós vamos explorar todos os continentes E pelas vastidões aquáticas seguir! Mas se vivemos, os emparedados, Sem árvores, no vale escuro das muralhas!... Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. E nestes nebulosos corredores Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores. Eu não receio, todavia, os roubos; Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes; E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, Amareladamente, os cães parecem lobos. E os guardas, que revistam as escadas, Caminham de lanterna e servem de chaveiros; Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros, Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas. E, enorme, nesta massa irregular De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, A Dor humana busca os amplos horizontes, E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
REINVENÇÃO
Cecília Meireles
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
OITAVAS A NAPOLEÃO
Castro Alves
Águia das solidões!... Ninho atrevido
Foram-te as borrascosas tempestades,
Flamígero cometa suspendido
Sobre o céu infinito das idades.
Tu que, no lago intérmino do olvido,
Lançaste tuas régias claridades...
Deus caído do trono dos mais deuses
Quem recebeu teus últimos adeuses?
Não foram as Pirâmides, que ouviram
De teus passos o som e se inclinaram...
Nem as águas do Nilo, que te viram,
E coas ondas teu nome murmuraram...
Não foram as cidades, que brandiram
As torres como facho... te aclararam...
Quem foi? Silêncio!.. trêmulo de medo
Vejo apenas — um mar... vejo — um rochedo...
A terra, o mar, os céus... espaço estreito
Eram pra tua planta de gigante,
Para tecto dos paços teus foi feito
O firmamento colossal, flutuante
Como diadema — os sóis... E como leito
O antártico pólo de diamante...
Teu féretro qual foi?... Titão do Sena,
O penhasco fatal de Santa Helena...
Assassina do Encélado da guerra
Só tu foste, Albion... do mar senhora...
Por quê? Porque um pedaço aí de terra
Foi pedir-te o gigante em negra hora...
E lhe deste um penhasco... Oh! Lá sencerra
Tua lenda mais hórrida... Traidora!
Lá seu espectro envolto, na mortalha
Aos quatro céus a maldição espalha...
Ao leão, que temias, enjaulaste;
E de longe escutando seu rugido,
Tu, senhora do mar... tu desmaiaste!
Pelo punhal traidor ele ferido
Caiu-te aos pés... Então tu respiraste,
Cobarde vencedora do vencido...
Nem mesmo todo o oceano poderia
Lavar este padrão de covardia...
Tu não és tão culpada!... Aonde estava
A França tão potente e tão temida?...
Oh! por que o não salvou?... se o contemplava
Lá dos gelos dos Alpes — soerguida!?...
E ele que a fez tão grande?... Ela folgava!...
Enquanto ao longe do colosso a vida,
Como um vulcão antigo e moribundo
Lento expirava nesse mar profundo.
ASSIM!
Casimiro de Abreu
Viste o lírio da campina?
Lá s'inclina
E murcho no hastil pendeu!
- Viste o lírio da campina?
Pois, divina,
Como o lírio assim sou eu!
Nunca ouviste a voz da flauta,
A dor do nauta
Suspirando no alto mar?
- Nunca ouviste a voz da flauta?
Como o nauta
É tão triste o meu cantar!
Não viste a rola sem ninho
No caminho
Gemendo, se a noite vem?
- Não viste a rola sem ninho?
Pois, anjinho,
Assim eu gemo, também!
Não viste a barca perdida,
Sacudida
Nas asas dalgum tufão?
- Não viste a barca fendida?
Pois querida
Assim vai meu coração!
SONETO DAS METAMORFOSES
Carlos Pena Filho
A Edmundo Morais
Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.
Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.
E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.
Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.
CERTAS PALAVRAS
Carlos Drummond de Andrade
Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples:
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.
E tudo é proibido. Então, falamos.
DOS ILUSTRES ANTIGOS QUE DEXARAM
Soneto 154
Luís de Camões
Dos antigos Illustres, que deixárão
Hum nome digno de immortal memoria,
Ficou por luz do tempo a larga historia
Dos feitos em que mais se avantajárão.
Se com suas acções se cotejárão
Mil vossas, cada huma tão notoria,
Vencêra a menor dellas a mor gloria
Que elles em tantos annos alcançárão.
A gloria sua foi: ninguem lha tome:
Seguindo cada qual varios caminhos
Estatuas mereceo no heroico Templo.
Vós honra Portugueza e dos Coutinhos,
Clarissimo Dom João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.
TROVA 014
Belmiro Braga
Não devo guardar ressábios
ETERNA MÁGOA
Augusto dos Anjos
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
MEU SONHO
Álvares de Azevedo
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?
Cavaleiro, quem és? — O remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?
Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?
Cavaleiro, quem és? que mistério...
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?
Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...
PERFUME DA ROSA
Almeida Garrett
Quem bebe, rosa, o perfume
Que de teu seio respira?
Um anjo, um silfo? Ou que nume
Com esse aroma delira?
Qual é o deus que, namorado,
De seu trono te ajoelha,
E esse néctar encantado
Bebe oculto, humilde abelha?
— Ninguém? — Mentiste: essa frente
Em languidez inclinada,
Quem ta pôs assim pendente?
Dize, rosa namorada.
E a cor de púrpura viva
Como assim te desmaiou?
E essa palidez lasciva
Nas folhas quem ta pintou?
Os espinhos que tão duros
Tinhas na rama lustrosa,
Com que magos esconjuros
Tos desarmaram, ó rosa?
E porquê, na hástia sentida
Tremes tanto ao pôr do sol?
Porque escutas tão rendida
O canto do rouxinol?
Que eu não ouvi um suspiro
Sussurrar-te na folhagem?
Nas águas desse retiro
Não espreitei a tua imagem?
Não a vi aflita, ansiada…
— Era de prazer ou dor? —
Mentiste, rosa, és amada,
E tu também tu amas, flor.
Mas ai! se não for um nume
O que em teu seio delira,
Há-de matá-lo o perfume
Que nesse aroma respira.
VIA CRUCIS
Alceu Wamosy
Ó calvário do Verso! Ó Gólgota da Rima!
Como eu já trago as mãos e os tristes pés sangrentos,
De te escalar, assim, nesta ânsia que me anima,
Neste ardor que me impele aos grandes sofrimentos…
Esta mágoa, esta dor, nada existe que exprima!
Sinto curvar-me o joelho a todos os momentos!
E quanto falta, Deus, para chegar lá em cima,
Onde o pranto termina e cessam os tormentos…
Mas é preciso! Sim! É preciso que eu carpa,
Que eu soluce, que eu gema e que ensanguente a escarpa,
Para esse fim chegar, onde meus olhos ponho!
Hei de ascender, subir, levando sobre os ombros,
Entre pragas, blasfêmias, gemidos e assombros,
A eterna Cruz pesada e negra do meu Sonho!
LISBOA
Alberto de Oliveira
Ó Cidade da Luz! Perpétua fonte
De tão nítida e virgem claridade,
Que parece ilusão, sendo verdade,
Que o sol aqui feneça e não desponte...
Embandeira-se em chamas o horizonte:
Um fulgor áureo e róseo tudo invade:
São mil os panoramas da Cidade,
Surge um novo mirante em cada monte.
Ó Luz ocidental, mais que a do Oriente
Leve, esmaltada, pura e transparente,
Claro azulejo, madrugada infinda!
E és, ao sol que te exalta e te coroa,
— Loira, morena, multicor Lisboa! —
Tão pagã, tão cristã, tão moira ainda...
LETRA: FERIDA EXPOSTA AO TEMPO
Affonso Romano de Sant'Anna
É forçoso dizer que me faz falta
o poema que existe e nunca li,
como se alhures
brotassem coisas que não vi
e que distantes,
carentes,
dependessem de mim.
Algo como se o intocado fosse a sinfonia
inacabada, mais:rasgada
como o quadro nunca esboçado, perdido
na abatida mão do artista.
O ausente
é uma planta
que na distância se arvora
e é tão presente
quando o passado que aflora.
E a literatura, mais que avenida ou praça
por onde cavalga a glória, é um monumento,
sim, de dúbia estória: granito e rima,
alegoria ao vento, lugar onde carentes
e arrogantes
cravamos nosso nome de turista:
-estive aqui, desamado,
riscando a pedra e o tempo
expondo meu sangue e nome
com o coração trespassado.
POEMA COMEÇADO DO FIM
Adélia Prado
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
A MORTE EM MIM
Vinícius de Moraes
A morte em mim. Alguém (o medo) desce
Uma rua noturna, e de repente
Vê, soturna, no céu, a Lua, e sente
O horror da Lua, e súbito enlouquece.
A morte em cada ser. E alguém (a mágoa)
Que por insone chega-se à janela
Possui a mesma Lua dentro dela
Que em sua carne se transforma em água.
A Poesia em tudo.
E a doçura de não ser mais. Ficará
Sentado, na vertente, junto ao rio
Vendo umas nuvens brancas, vendo o rio.
SUGESTÕES DO CREPÚSCULO
Vicente de Carvalho
Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.
Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.
Tudo amortece; a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto...
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.
Domada então por um instante
Da singular melancolia
De em torno- apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.
Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?
-II-
Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz;
Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;
Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura,
Tanto beijar como morder...
Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É todo fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.
Sonha a nudez: brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.
Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde — e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito:
No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.
E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...
-III-
Mais formidável se revela,
E mais ameaça, e mais assombra
A uivar, a uivar, dentro da sombra
Nas fundas noites de procela.
Tremendo e próximo se escuta
Varrendo a noite, enchendo o ar,
Como o fragor de uma disputa
Entreo tufão, o céu e o mar.
Em cada ríspida rajada
O vento agride o mar sanhudo:
Roça-lhe a face, com o agudo
Sibilo de uma chicotada.
De entre a celeuma, um estampido
Avulta e estoura, alto e maior,
Quando, tirano enfurecido,
Troveja o céu ameaçador.
De quando em quando, um tênue risco
De chama vem, da sombra em meio...
E o mar recebe em pleno seio
A cutilada de um corisco.
Mas a batalha é sua, vence-a:
Cansa-se o vento, afrouxa... e assim
Como uma vaga sonolência
O luar invade o céu sem fim...
Donas do campo, as ondas rugem;
E o monstro impando de ousadia,
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem.
-IV-
A alma raivosa e libertina
Desse tenaz batalhador
Que faz do escombro e da ruína
Como os troféus do seu amor;
A alma rebelde e mal composta
Desse pagão e desse ateu
Que retalia e dá respostas
À mesma cólera do céu;
A alma arrogante, a alma bravia
Do mar, que vive a combater,
Comove-se à melancolia
Conventual do entardecer...
No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral.
E pelas praias aonde descem
Do firmamento - a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;
Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador.
Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar...
NARCISO CEGO
Thiago de Mello
Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio — não me frequento.
Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distiguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.
Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.
Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo — pânico mudo —
entre o sonho e o sonhador.
HARPA XXXIV - VISÕES
Sousândrade
(...) Eu despertava em meu delírio
Ante a realidade! a virgem morta,
Pálida e fria a reconheço, eu rujo!
E de homem ver-me, comecei chorar.
— Quis seu corpo aquecer sobre o meu corpo;
Uni sua boca à minha, a voz lhe dando,
Que o túmulo não guarda. Em verdes folhas
Nua deitei-a, as mãos postas, e as tranças
Escorreram-lhe em torno. Dias, dias
Preso a seus pés levei a contemplá-la!
Grandes e abertos sobre mim ficaram
Seus olhos fixos e vidrados, longos
Como a meditação de uma sentença!
(...)
Eu vi! — seu corpo transparente inchando;
Perderem-se os seus olhos nas suas faces;
Humor fétido escoa-se da carne,
Tão pura e fresca, tão cheirosa inda ontem,
Que ela amou apertar em mim, d'insonte
Frenética de amor, nervosa e trêmula!
Formosa ondulação das castas ancas,
Dos seios virginais, da alva cintura
Bela voluptuosa... disformou-se
Em repugnante, (quem a vira e amara!)
Em nojenta, esverdeada, monstruosa
Onda de podridão! Zumbiam moscas,
Famintos corvos sobre mim se atiram,
Recurvas unhas regaçando e abrindo
Negras asas e o bico, triunfantes
Soltando agouros! Eu a defendia
Da ave e do inseto, que irritados vêem-me.
(...)
(...) Eu quis limpá-la
Desses monstros horríveis, que a comiam
Diante mim! porém, tudo era imundícia,
Oh! quantas vezes me lancei sobre ela,
Julgando tudo amores, tudo encantos
Dela emanando em límpidos arroios!
Fujo de nojo... de piedade eu volto...
Depois, como as enchentes pluviais
Escoando, que os troncos já se amostram,
Seus ossos vão ficando descobertos.
Oh! mirrado eu fiquei do sofrimento,
De tanta dor curtir! E tu, ó Deus,
Que tudo acabas, sofrerás também?
Porque tão miseráveis nos fizeste,
Deus d'escárnio? teus filhos nós não somos...
Que sorte de alimento ou de deleite
Encontras na desgraça desumana?
Belo horror da existência — formosura,
Filha da natureza engrandecida
No seu pecado e morte, meteoro
Enganoso da noite, flor vermelha
Em veneno banhada, mulher bela!
— Tudo ali 'stá! — ó mundo! mundo... mundo...
(...)
Embalde interroguei mudo cadáver,
E os ossos amarelos nem respondem!
Mas, aqui a mulher não é perjura:
Só lembrança de amor santo evapora —
A beleza se forma ao pensamento,
À saudade suas véstias se derramam.
(...)
CERTEZA
Ricardo Lima
Firmeza, certeza.
Certeza, firmeza.
Abalo, badalo, ralo.
Certeza, deseja, firmeza.