Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias domingo, 30 de agosto de 2020

SONETO XXVIII (SONETOS) FAZ A IMAGINAÇÃO DE UM BEM-AMADO (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

XXVIII (SONETOS) FAZ A IMAGINAÇÃO DE UM BEM-AMADO

Cláudio Manuel da Costa

 

Faz a imaginação de um bem-amado,
Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do meu cuidado.

Nesta doce loucura arrebatado
Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco, neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.

Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,
E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;

Como nas tristes lágrimas, que verto,
Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe dela estou, e estou tão perto.

 


Poemas e Poesias sábado, 29 de agosto de 2020

MINHA ALMA TEM O PESO DA LUZ (CLARICE LISPECTOR)

MINHA ALMA TEM O PESO DA LUZ 

Clarice Lispector

 

“Minha alma tem o peso da luz.

Tem o peso da música.

Tem o peso da palavra nunca

dita.

prestes quem sabe a ser dita.

Tem o peso de uma lembrança.

Tem o peso de uma saudade.

Tem o peso de um olhar.

Pesa como pesa uma ausência.

E a lágrima que não se chorou.

Tem o imaterial peso da solidão

No meio de outros.”

 


Poemas e Poesias sexta, 28 de agosto de 2020

EPIGRAMA NÚMERO 2 (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

EPIGRAMA NÚMERO 2

Cecília Meireles

 

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa:
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
Porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo despovoado e profundo, persiste.
Cecília Meireles
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Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar. Por que
havemos de ser unicamente
humanos, limitados em chorar?
Não encontro caminhos fáceis
de andar. Meu rosto vário
desorienta as firmes pedras
que não sabem de água e de ar.


Poemas e Poesias quarta, 26 de agosto de 2020

A CACHOEIRA (29ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

A CACHOEIRA

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Mas súbito da noite no arrepio
Um mugido soturno rompe as trevas...
Titubantes — no álveo do rio —
Tremem as lapas dos titães coevas!...
Que grito é este sepulcral, bravio,
Que espanta as sombras ululantes, sevas?
É o brado atroador da catadupa
Do penhasco batendo na garupa!...

Quando no lodo fértil das paragens
Onde o Paraguaçu rola profundo,
O vermelho novilho nas pastagens
Come os caniços do torrão fecundo;
Inquieto ele aspira nas bafagens
Da negra sucruiúba o cheiro imundo...
Mas já tarde silvando o monstro voa...
E o novilho preado os ares troa!

Então doido de dor, sânie babando,
Coa serpente no dorso parte o touro...
Aos bramidos os vales vão clamando,
Fogem as aves em sentido choro...
Mas súbito ela às águas o arrastando
Contrai-se para o negro sorvedouro...
E enrolando-lhe o corpo quente, exangue,
Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue.

Assim dir-se-ia que a caudal gigante
— Larga sucuruiúba do infinito —
Coas escamas das ondas coruscante
Ferrara o negro touro de granito!...
Hórrido, insano, triste, lacerante
Sobe do abismo um pavoroso grito...
E medonha a suar a rocha brava
As pontas negras na serpente crava!...

Dilacerado o rio espadanando
Chama as águas da extrema do deserto...
Atropela-se, empina, espuma o bando...
E em massa rui no precipício aberto...
Das grutas nas cavernas estourando
O coro dos trovões travam concerto...
E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas
Caem de horror no abismo estateladas...

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!
A briga colossal dos elementos!
As garras do Centauro em paroxismo
Raspando os flancos dos parcéis sangrentos.
Relutantes na dor do cataclismo
Os braços do gigante suarentos
Agüentando a ranger (espanto! assombro!)
O rio inteiro, que lhe cai do ombro.

Grupo enorme do fero Laocoonte
Viva a Grécia acolá e a luta estranha!...
Do sacerdote o punho e a roxa fronte...
E as serpentes de Tênedos em sanha!...
Por hidra — um rio! Por áugure — um monte!
Por aras de Minerva — uma montanha!
E em torno ao pedestal laçados, tredos,
Como filhos — chorando-lhe — os penedos!!!...


Poemas e Poesias terça, 25 de agosto de 2020

O QUÊ? (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

 

O QUÊ?

Casimiro de Abreu

Em que cismas, poeta? Que saudades

Te adormecem na mágica fragrância

Das rosas do passado já pendidas?

Nos sonhos d'alma que te lembra?

- A infância!

 

Que sombra, que fantasma vem banhado

No doce eflúvio dessa quadra linda?

E a mente a folhear os dias idos

Que nome te recorda agora?

- Arinda!

 

Mas se passa essa quadra, fugitiva,

Qual no horizonte solitária vela,

Por que cismar na vida e no passado?

E de quem são essas saudades?

- Dela!

 

E se a virgem viesse agora mesmo

Surgindo bela qual visão de amores,

Tu, p'ra saudá-la bem do imo d'alma

Diz-me, poeta - o que escolhias?

- Flores!

 

E se ela, farta dos aromas doces

Que tem achado nos jardins divinos,

Tão caprichosa machucasse as rosas...

Diz-me, meu louco, o que mais tinhas?

- Hinos!

 

E se, teimosa, rejeitando a lira,

A fronte virgem para ti pendida,

Dum beijo a paga te pedisse altiva...

O que lhe davas, meu poeta?

- A vida!


Poemas e Poesias segunda, 24 de agosto de 2020

MANOEL, JOÃO E JOAQUIM (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

MANOEL, JOÃO E JOAQUIM

Carlos Pena Filho

 

Desse tempo, é o que resta
para um discreto dizer,
pois quem cantou esse tempo
já não é do meu saber.
Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manoel, João e Joaquim.

No jardim Treze de Maio,
Manoel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do seu avô
e nem a rua da Aurora,
nem o que o tempo acabou,
nem o mar nem a sereia
e nem boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.
Desde a Velha, carcomida,
paisagem para detentos,
que é por onde sempre passa
esse povo marginal,
escuro e anfíbio que habita
o cais dito do Areal,
até à ponte mais nova
que tem o nome mais velho:
a ponte de Duarte Coelho.
Mas tudo o que for do rio,
água, lama, caranguejos,
os peixes e as baronesas
e qualquer embarcação,
está sempre e a todo instante
lembrando o poeta João
que leva o rio consigo
como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
que aqui no Recife estão,
já começaram areia e pedra
lá bem perto do sertão
e é por isso, talvez,
que escuras e tristes são.
Porém não foi só tristeza
sua peregrinação,
em seu trajeto tiveram
a farta satisfação
de dar de beber a secos
homens, cavalos e bois
e em seu incerto caminho
ainda viram depois
os sítios cheios de sombra,
onde dorme o sonho espesso
do poeta Joaquim que foi
fazer uma estação de águas
nos olhos do seu amor
e trouxe nos seus, acesos,
os cajueiros em flor.

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de agosto de 2020

ACORDAR, VIVER (POEMA DO MINEIRO CALOS DRUMMOND DE ANDRADE)

ACORDAR, VIVER

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.


Poemas e Poesias sábado, 22 de agosto de 2020

SONETO 159 - CHORAI, NINFAS OS FADOS PODEROSOS (SONETO DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

CHORAI, NINFAS, OS FADOS PODEROSOS

Soneto 159

Luís de Camões

 

 

Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana fermosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplendor na terra dura,
com tal rostro e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre cousa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era digno dela;
por isso mais na terra não esteve:
ao Céu subiu, que já se lhe devia.


Poemas e Poesias sexta, 21 de agosto de 2020

AUTORRETRATO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

AUTORRETRATO

Bocage

 

Magro, de olhos azuis, carão moreno,

Bem servido de pés, meão na altura,

Triste de facha, o mesmo de figura,

Nariz alto no meio, e não pequeno;

 

Incapaz de assistir num só terreno,

Mais propenso ao furor do que à ternura;

Bebendo em níveas mãos, por taça escura,

De zelos infernais letal veneno;

 

Devoto incensador de mil deidades

(Digo, de moças mil) num só momento,

E somente no altar amando os frades,

 

 

Eis Bocage em quem luz algum talento;

Saíram dele mesmo estas verdades,

Num dia em que se achou mais pachorrento.


Poemas e Poesias quinta, 20 de agosto de 2020

´CONSELHOS A MEUS FILHOS - 1 (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

CONSELHOS A MEUS FILHOS - 1

Bárbara Heliodora

 

 

I.

Meninos, eu vou ditar
As regras do bem viver;
Não basta somente ler,
É preciso ponderar,
Que a lição não faz saber,
Quem faz saber é o pensar.

II.

Neste tormentoso mar
De ondas de contradições,
Ninguém soletre feições
Que sempre se há de enganar,
De caras e corações
Há muitas léguas que andar.

III.

Aplicai, ao conversar,
Todos os cinco sentidos,
Que as paredes têm ouvidos
E também podem falar;
Há bichinhos escondidos
Que só vivem de escutar.

IV.

Quem quer males evitar,
Evite-lhe a ocasião,
Que os males por si virão,
Sem ninguém os procurar:
Antes que ronque o trovão
Manda a prudência ferrar.

V.

Não vos deixeis enganar
Por amigos, nem amigas,
Rapazes e raparigas
Não sabem mais que asnear;
As conversas e as intrigas
Servem de precipitar.

VI.

Sempre vos deveis guiar
Pelos antigos conselhos,
Que dizem que ratos velhos
Não há modos de os caçar;
Não batais ferros vermelhos,
Deixai um pouco esfriar.


Poemas e Poesias quarta, 19 de agosto de 2020

O MAR, A ESCADA E O HOMEM (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

O MAR, A ESCADA E O JOMEM

Augusto dos Anjos

 

 

“Olha agora, mamífero inferior,
“À luz da epicurista ataraxia,
“O fracasso de tua geografia
“E do teu escafandro esmiuçador”

“Ah! Jamais saberás ser superior,
“Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
“Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
“Voando ao vento o vastíssimo vapor.

“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”
E a verticalidade da Escada íngreme:
“Homem, já transpuseste os meus degraus?!”

E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio aterrador do Caos!


Poemas e Poesias terça, 18 de agosto de 2020

NOTURNO (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

NOTURNO 

Ascenso Ferreira

 

Sozinho, de noite,
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou ...
criança de novo
eu sinto que sou:

Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso?

O rio soturno
tremendo de frio,
com os dentes batendo
nas pedras do cais,
tomado de susto
sem poder falar...
o rio tem coisas
para me contar:

Corre, senão o Pai-do-Poço te pega, condenado!

Das casas fechadas
e mal-assombradas
com as caras tisnadas
que o incêndio queimou
pelas janelas esburacadas
eu sinto, tremendo,
que um olho de fogo
medonho me olhou:

Olha que o Papa-Figo te agarra, desgraçado!

Dos brutos guindastes
de vultos enormes
ainda maiores
nessa escuridão...
os braços de ferro,
pesados e longos,
parece quererem
suster-me do chão!

Ai! Eu tenho medo dos guindastes
por causa daquele bicão!

Sozinho, de noite,
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

- Larga de ser vagabundo, Ascenso!


Poemas e Poesias domingo, 16 de agosto de 2020

AQUI MORAVA UM REI (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

 

AQUI MORAVA UM REI

Ariano Suassuna

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.


Poemas e Poesias sábado, 15 de agosto de 2020

CANTO SEGUNDO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CANTO SEGUNDO

Álvares de Azevedo

 

 

And her head droo'd as when the lily lies
O'er charged with rain.
Don Juan.


I

Dorme! ao colo do amor, pálido amante,
Repousa, sonhador, nos lábios dela!
Qual em seio de mãe, febril infante!
No olhar, nos lábios da infantil donzela
Inebria teu seio palpitante!
O murmúrio do amor em forma bela
Tem doçuras que esmaiam no desejo
Dos sonhos ao vapor, na onda de um beijo!

II

Que importa a perdição manchasse um dia
A alvura virginal das roupas santas
E o mundo a esse corpo que tremia
Rompesse o véu que tímido alevantas?
E à noite lhe pousasse a fronte fria
Nesse leito em que trêmulo te encantas
E ao batejo venal murchasse flores,
Flores que abriam a infantis amores?

III

Que importa? se o amor teu rosto beija,
Se a beijas nua e sobre o peito dela
Teu peito juvenil ama e lateja!
Se tua langue palidez revela
Que tua alma febril sonha e deseja
Desmaiar-lhe de amor, gemer com ela,
Ébrio de vida, a soluçar d'enleio,
Pálido sonhador morrer-lhe ao seio!

IV

Que importa o mundo além? teu mundo é esse
Onde na vida o coração te alegra!
Teu mundo é o serafim que às noites desce
E que lava no amor a mancha negra!
É a névoa de luz onde não lê-se
Escrita à porta vil a infame regra
Que assinala o bordel à mão poluta
E diz nas letras fundas — prostituta!

V

A essa pobre mulher na fronte bela
Anátema, escreveu a turba fria!
Banhe o remorso o travesseiro dela,
Corram-lhe a mil da pálpebra sombria
Prantos do coração, não há erguê-la
A eterna maldição. E quem diria
A solitária dor, da noite ao manto
Que lavra o seio à cortesã em pranto?

VI

Ah! Madalenas míseras! ardentes
Quantos olhos azuis se não inundam
Nos transes do prazer em prantos quentes
Quando os seios febris em ais abundam,
Que o amante nos óculos trementes
Crê sonhos que do amor no mar se afundam!
Que suspiros no beijo que delira
Que são lágrimas só! que são mentira!

VII

E quantas vezes na cheirosa seda
Da longa trança desatada, solta,
Onde o moço de gozos embebeda
A fronte à febre juvenil revolta;
Quando a vida, o frescor, a imagem leda
De esp'rança que morreu ao leito volta;
As lágrimas na dor ferventes correm...
Como em céu de verão estrelas morrem?

(...)

IX

Amar uma perdida! que loucura!
Mas tão bela! que seio de Madona!
Nunca amara tão nívea criatura
Como aquela mulher que ali ressona!
(...)


Poemas e Poesias sexta, 14 de agosto de 2020

AO MUNDO ESCONDE O CÉU SEUS ESPLENDORES (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

AO MUNDO ESCONDE O CÉU SEUS ESPLENDORES

Alvarenga Peixoto

 

Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mão da Noite embrulha os horizontes;
não cantam aves, não murmuram fontes,
não fala Pã na boca dos pastores.

Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.

Vênus, Palas e as filhas da Memória,
deixando os grandes templos esquecidos,
não se lembram de altares nem de glória.

Andam os elementos confundidos:
ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
sempre o mais triste foi para os vencidos!


Poemas e Poesias quinta, 13 de agosto de 2020

VAGUEIAM SUAVEMENTE OS TEUS OLHARES (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

VAGUEIAM SUAVEMENTE OS TEUS OLHARES

Alphonsus Guimaraens

 

 

 
Vagueiam suavemente os teus olhares
Pelo amplo céu franjado em linho:
Comprazem-te as visões crepusculares...
Tu és uma ave que perdeu o ninho.

Em que nichos doirados, em que altares
Repoisas, anjo errante, de mansinho?
E penso, ao ver-te envolta em véus de luares,
Que vês no azul o teu caixão de pinho.

És a essência de tudo quanto desce
Do solar das celestes maravilhas...
Harpa dos crentes, cítola da prece...

Lua eterna que não tivesse fases,
Cintilas branca, imaculada brilhas,
E poeiras de astros nas sandálias trazes...

Poemas e Poesias quarta, 12 de agosto de 2020

AS CASA DA RUA ABÍLIO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

A CASA DA RUA ABÍLIO

Alberto de Oliveira

 

A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falarão,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.


Poemas e Poesias terça, 11 de agosto de 2020

AMAR A MORTE (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

AMAR A MORTE

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.

Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente.Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.


Poemas e Poesias segunda, 10 de agosto de 2020

COM LICENÇA POÉTICA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

COM LICENÇA POÉTICA

Adélia Prado

 

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Poemas e Poesias domingo, 09 de agosto de 2020

ASPIRAÇÃO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

ASPIRAÇÃO

Adalgisa Nery

 

 

Desejo de desmontar meu corpo

E atirá-lo aos quatro ventos do mundo,

De enfrentar a luz do sol

Até que seu calor pulverize meus ossos,

De atirar-me no oceano

Até que o batimento de suas águas

Transforme meus cabelos em algas perdidas,

De gritar contra as montanhas

Até que o eco se ausente de minha voz,

De matar a consciência de mim mesma

          Até que eu possa viver.


Poemas e Poesias sábado, 08 de agosto de 2020

O DIA DA CRIAÇÃO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

 

O DIA DA CRIAÇÃO

Vinícius de Moraes

 

Rio de Janeiro , 1946

Macho e fêmea os criou. 
Bíblia:
 Gênese, 1, 27 



I

Hoje é sábado, amanhã é domingo 
A vida vem em ondas, como o mar 
Os bondes andam em cima dos trilhos 
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar. 

Hoje é sábado, amanhã é domingo 
Não há nada como o tempo para passar 
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo 
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal. 

Hoje é sábado, amanhã é domingo 
Amanhã não gosta de ver ninguém bem 
Hoje é que é o dia do presente 
O dia é sábado. 

Impossível fugir a essa dura realidade 
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios 
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas 
Todos os maridos estão funcionando regularmente 
Todas as mulheres estão atentas 
Porque hoje é sábado. 


II

Neste momento há um casamento 
Porque hoje é sábado. 
Há um divórcio e um violamento 
Porque hoje é sábado. 
Há um homem rico que se mata 
Porque hoje é sábado. 
Há um incesto e uma regata 
Porque hoje é sábado. 
Há um espetáculo de gala 
Porque hoje é sábado. 
Há uma mulher que apanha e cala 
Porque hoje é sábado. 
Há um renovar-se de esperanças 
Porque hoje é sábado. 
Há uma profunda discordância 
Porque hoje é sábado. 
Há um sedutor que tomba morto 
Porque hoje é sábado. 
Há um grande espírito de porco 
Porque hoje é sábado. 
Há uma mulher que vira homem 
Porque hoje é sábado. 
Há criancinhas que não comem 
Porque hoje é sábado. 
Há um piquenique de políticos 
Porque hoje é sábado. 
Há um grande acréscimo de sífilis 
Porque hoje é sábado. 
Há um ariano e uma mulata 
Porque hoje é sábado. 
Há uma tensão inusitada 
Porque hoje é sábado. 
Há adolescências seminuas 
Porque hoje é sábado. 
Há um vampiro pelas ruas 
Porque hoje é sábado. 
Há um grande aumento no consumo 
Porque hoje é sábado. 
Há um noivo louco de ciúmes 
Porque hoje é sábado. 
Há um garden-party na cadeia 
Porque hoje é sábado. 
Há uma impassível lua cheia 
Porque hoje é sábado. 
Há damas de todas as classes 
Porque hoje é sábado. 
Umas difíceis, outras fáceis 
Porque hoje é sábado. 
Há um beber e um dar sem conta 
Porque hoje é sábado.
 
Há uma infeliz que vai de tonta 
Porque hoje é sábado. 
Há um padre passeando à paisana 
Porque hoje é sábado. 
Há um frenesi de dar banana 
Porque hoje é sábado. 
Há a sensação angustiante 
Porque hoje é sábado. 
De uma mulher dentro de um homem 
Porque hoje é sábado. 
Há a comemoração fantástica 
Porque hoje é sábado. 
Da primeira cirurgia plástica 
Porque hoje é sábado. 
E dando os trâmites por findos 
Porque hoje é sábado. 
Há a perspectiva do domingo 
Porque hoje é sábado. 


III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação. 
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas 
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra 
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra 
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. 
Na verdade, o homem não era necessário 
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão. 
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias 
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa 
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos 
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra. 
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes 
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia 
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo 
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia, 
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias 
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio 
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula. 
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos 
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas 
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade 
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo 
E para não ficar com as vastas mãos abanando 
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança 
Possivelmente, isto é, muito provavelmente 
Porque era sábado.

Poemas e Poesias sexta, 07 de agosto de 2020

CANTIGA (DEIXA QUE EU TE FALE, DEIXA) - POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO

CANTIGA (DEIXA QUE EU TE FALE, DEIXA)

Vicente de Carvalho

 

Deixa que eu te fale, deixa
Que o meu verso dolorido
Vá murmurar-te uma queixa
No ouvido.

Eu te amo tanto... Perdoa!
Por mais que a recalco e esmago-a,
Foge, abre as asas e voa
A mágoa

Já bastante me atormento
De amar e não ser amado;
E calar é sofrimento
Dobrado.

Os amores infelizes
— Tristes roseiras sem rosas —
São como aquelas raízes
Teimosas

Que um vaso estreito encarcera
E que, num sonho constante,
Aspiram à primavera
Distante:

Crescem, a terra solapam,
E, do vaso que partiram,
Por entre as frinchas escapam,
Respiram...

Assim o amor sem ventura
— Raiz na terra escondida —
Abafa, anseia, procura
Saída...

Sei que debalde te estendo
A mão, a mão de mendigo:
Ouves sorrindo o que eu digo
Gemendo;

Bem sei... E se em voz magoada
Assim te digo que te amo,
Eu que nada espero, e nada
Reclamo,

É que demais me atormento
De amar e não ser amado,
E calar é sofrimento
Dobrado.

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 05 de agosto de 2020

AS MÃOS QUE SE PROCURAM (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

AS MÃOS QUE SE PROCURAM

Paulo Mendes Campos

 

Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida

As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas

A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto o outro rosto desafia

A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.


Poemas e Poesias terça, 04 de agosto de 2020

SPES UNICA! (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

SPES UNICA!

Quitino Cunha 

 

Morto, dentro da fria sepultura,

Sem te poder falar?

E tu que me amas, boa criatura,

Indo me visitar...

 

Banhada de suspiros, de soluços,

Desmaiada, talvez...

Muita vez reclinada, até de bruços,

Na altura dos meus pés...

 

Pedindo a Deus o meu viver eterno

Junto das glórias suas;

Que me livre das penas do inferno,

E a chorar continuas,

 

Lembrando nossa vida, a todo instante,

Repassada de dor...

A lembrar-te que fui o teu amante

— O teu único amor!

 

Mal pensando na horrífica caveira,

Em que me transformei,

Exausto de fadiga, de canseira,

Imaginar não sei...

 

Para evitar essa hora amargurada,

Esse quadro de dor, tão verdadeiro,

Deus há de ser servido, minha amada,

Que tu morras primeiro!...


Poemas e Poesias segunda, 03 de agosto de 2020

SE EXISTE INFERNO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

SE EXISTE INFERNO

Patativa do Assaré

 

Se existe inferno, como diz a Briba,
Se lá de riba é que o castigo vem,
Se o esprito vai se derretê queimado,
Purgá os pecado que o sujeito tem,

Se os home escravo de ôro, prata e cobre,
A quem é pobre com rigor domina,
Fazendo tudo contra a baxa crasse,
Não vê a face da Visão Divina,

Se é grande crime pro dotô Juiz
Traí o país com a crué maliça,
Jurgando as causa só do lado oposto,
Cuspindo o rosto da fié justiça,

Se é pecado o poderoso rico
Fazê fuxico e começá questão,
Pra não pagá seu operáro forte,
Que enfrenta a morte pra ganhá o pão,

Se o cabra ruim quando morrê padece
E triste desce os inferná dregau,
Se os anjo preto lá nos tacho ardente
Dá banho quente castigando os mau,

Se geme as alma dos pió canaia
Nessas fornáia onde o Demônio tá,
Nas brasa acesa desse forno imundo,
O nosso mundo vai se escangaiá!


Poemas e Poesias domingo, 02 de agosto de 2020

FUNERAL (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

FUNERAL

Padre Antônio Tomás

 

Vão-na levando para a sepultura,
Amortalhada em brancos véus de linho,
Dentro de um leve esquife cor de arminho,
Ao fulgor da manhã serena e pura.

Carpindo-a segue o vento e, porventura,
Para incensá-la agita, de mansinho,
Ramos em flor, pendentes do caminho
Cheios de sombras e orlas de verdura.

No entanto o louro enxame das abelhas
Vai atirando pétalas vermelhas
Sobre o caixão franzino que a comporta.

Cai das folhas o orvalho como pranto,
E as meigas aves em piedoso canto
Rezam contritas sufragando a morta.


Poemas e Poesias sábado, 01 de agosto de 2020

A UM VIOLINISTA (POEMAS DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A UM VIOLINISTA

Olavo Bilac

I

Quando do teu violino, as asas entreabrindo
Mansamente no espaço, iam-se as notas quérulas,
Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo
Os seus cofres de pérolas,

- Minhas crenças de amor, esquecidas em calma
No fundo da memória, ouvindo-as recebiam
Novo alento, e outra vez do oceano de minh'alma,
Arquipélago verde, à tona apareciam.

E eu via rutilar o meu amor perdido,
Belo, de nova luz e novo encanto cheio,
E um corpo, que supunha há muito consumido,
Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.

Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista!
E minh'alma revia, alucinada e louca,
Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista,
Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.

Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto,
Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas
De um cemitério, vai achar vivas a um canto
As suas ilusões que acreditava mortas,

E ficava a pensar... como se não partia
Essa fraca madeira ao teu toque violento,
Quando com tanta febre a paixão se estorcia
Dentro do pequenino e frágil instrumento!

Porque, nesse instrumento, unidos num só peito,
Todos os corações da terra palpitavam;
E havia dentro dele, em lágrimas desfeito,
O amor universal de todos os que amavam,

Rio largo de sons, tapetado de flores,
A harmonia do céu jorrava ampla e sonora;
E, boiando e cantando, alegrias e dores
Iam corrente em fora...

A Primavera rindo esfolhava as capelas,
E entornava no chão as ânforas cheirosas:
E a canção acordava as rosas e as estrelas,
E enchia de desejo as estrelas e as rosas.

E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,
E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,
E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios,
Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:

- Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava!
O amor, caudal de fogo atropelada e acesa,
Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,
E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!

E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio,
O teu pobre violino, o teu amor primeiro:
E inda nas cordas há, como um leve arrepio,
A última vibração do arpejo derradeiro...

Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano,
Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis,
Pairam constelações virgens do olhar humano,
Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:

- Assim no teu violino, artista! adormecido
À espera do teu arco, em grupos vaporosos,
Dorme, como num céu que não alcança o ouvido,
Um mundo interior de sons misteriosos...

Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento!
Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa!
E ele se embeberá dos perfumes que o vento
Traz dos frescos desvios do vale e da floresta.

Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos!
As rosas se abrirão em suas cordas rotas!
E ele derramará sobre os verdes caminhos
Da antiga melodia as esquecidas notas!

Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores...
Os astros sorrirão de amor na imensa esfera...
E a terra acordará para os novos amores
De nova primavera!

II

Porque, como Terpandro acrescentou à lira,
Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,
Que é a corda onde a paixão desprezada suspira,
E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;

Também desse instrumento às quatro cordas de ouro,
O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade,
- Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro
Eterno e a eterna dor da corda da Saudade

É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca,
E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,
Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca
Do primitivo amor e da beleza antiga...

Para trás! para trás! Basta um simples arpejo,
Basta uma nota só... Todo o espaço estremece:
E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo
Quase morta de dor, Madalena aparece...

Ao luar de Verona, a amorosa cabeça
De Julieta desmaia entre os braços do amante:
Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça,
E na devesa em flor a cotovia cante...

Viúva triste, que à paz do claustro pede alivio,
Para a sua viuvez, para o seu luto imenso,
Branca, sob o livor do escapulário níveo,
Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...

E na suave espiral das melodias puras,
Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes,
Mostrando ao meu amor as suas amarguras,
Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.

Canta! o rio de sons que do seio te brota
E, entre os parcéis da dor, corre, cascateando,
E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em nota,
Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;

Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta,
Refrescando os rosais, e, em leve burburinho,
Um gracejo segreda a cada borboleta,
E segreda um queixume a cada passarinho;

Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento
Abre maternalmente o regaço das águas,
- É o rio perfumado e azul do Esquecimento,
Onde se vão banhar todas as minhas mágoas.


Poemas e Poesias sexta, 31 de julho de 2020

ESTÁTUAS PERDIDAS (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

ESTÁTUAS PERDIDAS

Menotti Del Picchia

 

Há formas irrealizadas de ti
no côncavo de minha mão
que poderiam fazer cem estátuas.
Instantes de felina beleza
movimentos bruscos de quem freme ou
ou foge às carícias,
detalhe do teu corpo esquivo
feitos de curvas plásticas e inéditas
que ficaram decalcadas na minha pelo,
no meu insatisfeito desejo
como se eu fosse um molde vivo
de obras-primas que esperam
ser fundidas
em bronze, em verso, em música.
Nessas estátuas perdidas
vai-se tua própria mocidade
porque forma teus instantes de amor
que tive em minhas mãos.


Poemas e Poesias quinta, 30 de julho de 2020

CÉREBRO E CORAÇÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

CÉREBRO E CORAÇÃO

Medeiros e Albuquerque

 

Eu tenho muita vez a estranha pretensão
de me fundir em bronze e aparecer nas praças
para poder ouvir da voz das populaças
    a sincera explosão;

senti-la, quando, em festa, as grandes multidões
aclamam doidamente os fortes vencedores,
e febris, pelo ar, espalham-se os clamores
    das nobres ovações;

senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor
nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte
e curva para o chão a entristecida fronte
    do povo sofredor;

poder sempre pairar solenemente em pé,
sobre as mágoas cruéis do miserando povo,
e ter sempre no rosto, eternamente novo,
    uma expressão de fé.

E, quando enfim cair do altivo pedestal,
à sacrílega mão do bárbaro estrangeiro,
meu braço descrever no gesto derradeiro
    a maldição final.


Poemas e Poesias quarta, 29 de julho de 2020

DA INQUIETA ESPERANÇA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA INQUIETA ESPERANÇA

Mário Quintana

 

Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele

Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.

Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele

Na inquietação feliz do Purgatório.


Poemas e Poesias segunda, 27 de julho de 2020

CONFISSÃO (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

CONFISSÃO

Maria Firmina dos Reis

 

Embalde, te juro, quisera fugir-te,
Negar-te os extremos de ardente paixão:
Embalde, quisera dizer-te: - não sinto
Prender-me à existência profunda afeição.

Embalde! é loucura. Se penso um momento,
Se juro ofendida meus ferros quebrar:
Rebelde meu peito, mais ama querer-te,
Meu peito mais ama de amor delirar.

E as longas vigílias, - e os negros fantasmas,
Que os sonhos povoam, se intento dormir,
Se ameigam aos encantos, que tu me despertas,
Se posso a teu lado venturas fruir.

E as dores no peito dormentes se acalmam.
E eu julgo teu riso credor de um favor:
E eu sinto minh'alma de novo exaltar-se,
Rendida aos sublimes mistérios do amor.

Não digas, é crime - que amar-te não sei,
Que fria te nego meus doces extremos...
Eu amo adorar-te melhor do que a vida,
melhor que a existência que tanto queremos.

Deixara eu de amar-te, quisera um momento,
Que a vida eu deixara também de gozar!
Delírio, ou loucura - sou cega em querer-te,
Sou louca... perdida, só sei te adorar.


Poemas e Poesias domingo, 26 de julho de 2020

BACANAL (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BACANAL 

Manuel Bandeira

 

Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada.
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
- Vinhos!... o vinho que é meu fracco!...
Evoé Baco!

O alfanje rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!...
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé Vênus!

 


Poemas e Poesias sábado, 25 de julho de 2020

ENTRADA (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

ENTRADA

Manuel de Barros

 

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa
morada estava tão perto do abandono que dava até
para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens
profundas com os sapos, com as águas e com as
árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza
avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia
está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol
põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me
empobrece. E o rio encosta as margens na minha
voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade
de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem.
Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então
comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me
dei bem. Perdoem-me os leitores desta entrada mas vou
copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para
este livro. Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles. Dou quatro exemplos:
1) É nos loucos que grassam luarais;
2) Eu queria crescer pra passarinho;
3) Sapo é um pedaço de chão que pula;
4) Poesia é a infância da língua. Sei que os
meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas
se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei.
Sobre o nada eu tenho profundidades.


Poemas e Poesias sexta, 24 de julho de 2020

RELÍQUIA ÍNTIMA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

RELÍQUIA ÍNTIMA

Machado de Assis

 

 

Ilustríssimo, caro e velho amigo,
Saberás que, por um motivo urgente,
Na quinta-feira, nove do corrente,
Preciso muito de falar contigo. 

E aproveitando o portador te digo,
Que nessa ocasião terás presente,
A esperada gravura de patente
Em que o Dante regressa do Inimigo. 

Manda-me pois dizer pelo bombeiro
Se às três e meia te acharás postado
Junto à porta do Garnier livreiro: 

Senão, escolhe outro lugar azado;
Mas dá logo a resposta ao mensageiro,
E continua a crer no teu Machado.


Poemas e Poesias quinta, 23 de julho de 2020

CERIMONIAL (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

CERIMONIAL

Luís Turiba

 

Coloquem Imagine na vitrola

retirem—lhe o coração em frangalhos

e enterrem—no enrolado

na bandeira do Flamengo

 

Quanto ao resto

corpo — subproduto da vida

qualquer cerimônia (simples) cabe


Afinal

a morte é sempre um gol de placa

aos 45 minutos

do segundo tempo da existência.

 

No mais: —foi bom ponta-de-lança

 

Comemorem pois

nada disso lhe pertence mais

 


Poemas e Poesias quarta, 22 de julho de 2020

BREJAL DOS GUAJAS (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

BREJAL DOS GUAJAS

José Sarney

 

Brejal, ai meu Brejal,
Brejal dos Guajajaras,
Morrer em ti, ai Deus,
Morrer em ti, ai Deus,
Tomara ...
Valsa de Zé Binga

Em pace, em pace,
em rua, em rua,
Ai meu Deus, padecendo
sem culpa nenhuma!
Incelência do Olho-d’Água Seco

Brejal, Brejal, terra querida,
Brejal, ai meu Brejal,
Motivo da minha vida,
Dizer adeus a ti, ai Deus,
Não digo tal ...
Valsa de Zé do Bule

 


Poemas e Poesias terça, 21 de julho de 2020

FOME (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

FOME

Jorge de Lima

 

Vinte séculos de revolução

e inda há fome do pão que é a poesia.

Quando tento saciá-la, tento em vão:

é meu ritmo perene, noite e dia.

 

Cristo, quero escutar Teu coração:

pendo a cabeça e escuto-o. Essa agonia

de fazer o poema, essa paixão,

na Última Ceia começou. Seria,

 

um de nós... um de nós era suspeito,

um de nós entre os doze Te trairia.

E sob o peso dessa suspeição,

 

repousei a cabeça no Teu peito.

E esse ritmo de vida que eu ouvia

era o ritmo de fome deste pão.


Poemas e Poesias segunda, 20 de julho de 2020

FÁBULA DE UM ARQUITETO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

FÁBULA DE UM ARQUITETO

João Cabral de Melo Neto

 

1.

A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.


Poemas e Poesias domingo, 19 de julho de 2020

AMOR DE FANTASIA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

AMOR DE FANTASIA

J. G. de Araújo Jorge

 

O pior, para mim, é ter que encontrar-te todo dia,
falar contigo como a uma estranha,
ver-te linda e distraída,
estender-te a mão, em cumprimentos banais,
quando tu és afinal (que importa se não sabes?)
- a minha Vida...

Em vão me confesso num olhar de ternura
que procura teus olhos, além,
onde ninguém pode chegar,
e o coração se alvoroça! e paro, e me contenho,
numa angústia apaixonada...
E linda, e distraída,
tu nem percebes nada...

Iludo o meu desejo, (esse Fauno em travesti
de velho Pierrot)
a imaginar mil coisas de poeta e de louco,
(Ah! se eu fosse o teu Senhor!)
- e te atiro palavras, como serpentinas
displicentes,
para distrair os outros, os intrusos, - presentes
a este singular carnaval
do meu amor...

Ah! se soubesses o quanto és minha,
nesses instantes proibidos
da imaginação,
mas profundamente verdadeiros,
- tu, linda e distraída,
boneca e criança,
talvez acendesses, na distancia dos teus olhos
para os meus olhos marinheiros
e para a minha vida,
alguma esperança.


Poemas e Poesias sábado, 18 de julho de 2020

DESDE SEMPRE EM MIM (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DESDE SEMPRE EM MIM

Hilda Hilst

 

Contente. Contente do instante
Da ressurreição, das insônias heróicas

Contente da assombrada canção
Que no meu peito agora se entrelaça.
Sabes? O fogo iluminou a casa.
E sobre a claridade do capim
Um expandir-se de asa, um trinado

Uma garganta aguda, vitoriosa.

Desde sempre em mim. Desde
Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo
Nas ermas biografias, neste adro solar
No meu mudo momento
Desde sempre, amor, redescoberto em mim.


Poemas e Poesias sexta, 17 de julho de 2020

AGRAVOS DE COLOPÊNDIO (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

AGRAVOS DE COLOPÊNDIO

Gil Vicente

 

 

Agravos de Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.

 

Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.

 

Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.

 

Não sei se sei o que digo,
que cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo.
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.

 

Já não ouso de cuidar,
nem posso estar sem cuidado;
mato-me por me matar,

 

onde estou não posso estar
sem estar desesperado.
Parece-me quanto vejo
Tudo triste com rezão:
cousas que não vem nem vão
essas são as que desejo,
e tôdas pena me dão.

 

Eu remédio não no espero,
porque aquela, em que me fundo,
pera mi, que tanto a quero,
tem o coração de Nero
pera me tirar do mundo.

 


Poemas e Poesias quinta, 16 de julho de 2020

A NOITE DESCE (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A NOITE DESCE

Florbela Espanca

 

 

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite voi descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minhalma
Beijnado nesta hora a minha boca!


Poemas e Poesias quarta, 15 de julho de 2020

VERÃO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

VERÃO

Ferreira Gullar

 

Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração

deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.

A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.

E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.

O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida

Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.

E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda em agonia
resiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
E essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.

Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração – resiste.


Poemas e Poesias terça, 14 de julho de 2020

BRILHA UMA VOZ NA NOUTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

BRILHA UMA VOZ NA NOUTE

Fernando Pessoa

 

Brilha uma voz na noute
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!

Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz:Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco demim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.


Poemas e Poesias segunda, 13 de julho de 2020

AS HORAS SÃO AMARGAS (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

AS HORAS SÃO AMARGAS

Fabrício Carpinejar

 

As horas são amargas,
derradeiras,
os anjos perderam

a escala dos teus ouvidos,
O destino nos assemelha
mais que o nascimento.

Tuas passadas são curtas,
o perfil, enviesado.
Há uma parelha sendo

levada nas costas.
Fermentas o funcho,
o fungo e o estrume.


Poemas e Poesias domingo, 12 de julho de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 04 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 04

Eno Teodoro Wanke

 

Se a formiga é atarefada

De fato, quero que explique:

Então, por que é que a danada

Nunca falta a um piquenique?


Poemas e Poesias sábado, 11 de julho de 2020

ANATHEMA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

ANATHEMA

Da Costa e Silva

Persigam-te as prisões fortes do meu ciúme
—Invisíveis grilhões de desejo e de zelo:
Prendam-te as mãos, os pés, as ondas do cabello,
O olhar, o hálito, a voz e o que em ti se resume.

Vibre o som desse andar, vague o doce perfume
Dessa carne pagã, causa do meu desvelo,
Mando que te acompanhe o eterno pesadelo
Deste amor que ainda mais temo em dor se avolume.

Ronda-te o meu olhar, como o olhar de um morcego
Varando o brumo véo de uma noite de crime,
Prescrutando, a seguir-te —onde chegas eu chego.

Foges? Em vão fugir —o ciúme priva a fuga…
E esse amor que te busca e te cerca e te opprime,
É o mesmo que me afflige, acobarda e subjuga.


Poemas e Poesias sexta, 10 de julho de 2020

COMO UM CISNE, EST,ALMA FRISA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

COMO UM CISNE, EST'ALMA FRISA

Cruz e Sousa

 

 

       
 

Como um cisne, est'alma frisa

O mar de luz de teus olhos,

   
  ó simpática Adalziza    
  como um cisne, est'alma frisa,    
  vagueia, paira, desliza  5  
  sem naufragar nos escolhos    
  como um cisne, est'alma frisa    
  o mar de luz de teus olhos.

Poemas e Poesias quinta, 09 de julho de 2020

HUMILDADE (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

HUMILDADE

Cora Coralina

 

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.


Poemas e Poesias quarta, 08 de julho de 2020

XCVIII (SONETOS) DESTES PENHASCOS FEZ A NATUREZA

XCVIII (SONETOS) DESTES PENHASCOS FEZ A NATUREZA

Cláudio Manuel da Costa

 


Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci: oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.

 


Poemas e Poesias terça, 07 de julho de 2020

MEU DEUS, ME DÊ A CORAGEM (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

MEU DEUS, ME DÊ A CORAGEM

Clarice Lispector

 

Meu Deus, me dê a coragem
De viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
Todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
Como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
Entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
Com este vazio tremendo
E receber como resposta
O amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
Sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
E mesmo assim me sentir
Como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
O meu pecado de pensar.


Poemas e Poesias segunda, 06 de julho de 2020

DISCURSO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

DISCURSO

Cecília Meireles

 

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?


Poemas e Poesias sábado, 04 de julho de 2020

O SÃO FRANCISCO (28ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, CO BAIANO CASTRO ALVES)

O RIO SÃO FRANCISCO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

LONGE, bem longe, dos cantões bravios,
Abrindo em alas os barrancos fundos;
Dourando o colo aos perenais estios,
Que o sol atira nos modernos mundos;
Por entre a grita dos ferais gentios,
Que acampam sob os palmeirais profundos;
Do São Francisco a soberana vaga
Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,
Ele vagia na vertente ainda,
— Linfa amorosa — coa nitente espuma
Orlava o seio da Mineira linda;
Ao meio-dia, quando o solo fuma
Ao bafo morto de lia calma infinda,
Viram-no aos beijos, delamber demente
As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo
O deleite da indígena lasciva...
Vem — à busca talvez de desafogo
Bater à porta da Baiana altiva.
Nas verdes canas o gemente rogo
Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...
E talvez por magia à luz da lua
Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas
Por isso descem lentas, peregrinas...
Adormeces ao pé das palmas curvas
Ao músico chorar das casuarinas!
Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —
De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,
As largas ipueiras alagando,
E das aves o coro alvissareiro
Vai nas balças teu hino modilhando!
Como pontes aéreas — do coqueiro
Os cipós escarlates se atirando,
De grinaldas em flor tecendo a arcada
São arcos triunfais de tua estrada!...


Poemas e Poesias sexta, 03 de julho de 2020

VIOLETA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

VIOLETA

Casimiro de Abreu

 

Sempre teu lábio severo
Me chama de borboleta!
- Se eu deixo as rosas do prado
É só por ti - violeta!

Tu és formosa e modesta,
As outras são tão vaidosas!
Embora vivas na sombra
Amo-te mais do que às rosas.

A borboleta travessa
Vive de sol e de flores.
- Eu quero o sol de teus olhos,
O néctar dos teus amores!

Cativo de teu perfume
Não mais serei borboleta;
- Deixa eu dormir no teu seio,
Dá-me o teu mel - violeta!


Poemas e Poesias quinta, 02 de julho de 2020

ELEGIA PARA A ADOLESCÊNCIA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO_

ELEGIA PARA A ADOLESCÊNCIA

Carlos Pena Filho

 

E enfim descansaremos sob a verde
resistência dos campos escondidos.
Nem pensaremos mais no que há-de ser de
nós que então seremos definidos.

No mar que nos chamou, no mar ausente,
simples e prolongado que supomos
seremos atirados de repente,
puros e inúteis como sempre fomos.

Veremos que as vogais e as consoantes
não são mais que ornamentos coloridos,
fruto de nossas bocas inconstantes.

E em silêncio seremos transformados,
quando formos, serenos e perdidos,
além das coisas vãs precipitados.


Poemas e Poesias quarta, 01 de julho de 2020

A UM AUSENTE (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A UM AUSENTE

Carlos Drummond de Andrade

 

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


Poemas e Poesias terça, 30 de junho de 2020

SONETO 086 - CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MÃO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMPÕES)

CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MÃO

Soneto 086

Luís de Camões

 

Cara minha inimiga, em cuja mão
Pôs meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina fermosura;
Mas, enquanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto
Que possam prometer-te longa história
Daquele amor tão puro e verdadeiro,

Celebrada serás sempre em meu canto;
Porque, enquanto no mundo houver memória,
Será a minha escritura o teu letreiro.


Poemas e Poesias segunda, 29 de junho de 2020

SONETO MAÇÔNICO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO MAÇÔNICO

Bocage

 

 

(Grafia original)

Turba esfaimada, multidão canina,
Corja, que tem por deus ou Momo, ou Baccho,
Reina, e decreta nos covis de Caco
Ignorancia daqui, dalli rapina:

Colhe de alto systema e lei divina
Imaginario jus, com que encha o sacco;
Textos gagueja em vão Doutor macaco
Por ouro, que promette alma sovina:

Circulo umbroso de venaes pedantes,
Com torpe astucia de maligna zorra
Usurpa nome excelso, e graus flammantes:

Ora mijei na sucia, inda que eu morra
Corno, arrocho, bambu nos elephantes,
Cujo vulto é de anões, a tromba é porra!

Poemas e Poesias domingo, 28 de junho de 2020

AMADA HIJA (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

AMADA HIJA

Bárbara Heliodora

 

Amada hija, ya es llegado el dia

En que la luz de la razón, como antorcha encendida,

Viene a conducir a la simple naturaleza;

Es hoy cuando tu mundo da principio.

 

La mano, que te ha formado, guía tus pasos,

Desprecia ofertas de belleza vana

Y sacrifica honras y riquezas

A las santas leyes del Hijo de María.

 

Imprime caridad en tu alma,

Que a amar a Dios y a nuestros semejantes

Son eternos preceptos de verdad.

 

Lo demás son ideas delirantes;

Procura ser feliz en lo eerno,

Que el mundo son brevísimos instantes.

 


Poemas e Poesias sábado, 27 de junho de 2020

DUAS ESTROFES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

DUAS ESTROFES

Augusto dos Anjos

 

 

A queda do teu lírico arrabil
De um sentimento português ignoto
Lembra Lisboa, bela como um brinco,
Que um dia no ano trágico de mil
E setecentos e cincoenta e cinco,
Foi abalada por um terremoto!

A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!


Poemas e Poesias sexta, 26 de junho de 2020

NANA, NANANA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

NANA, NANANA

Ascenso Ferreira

 

Sentes que a minha vida é um rio caudaloso,
tomado do delírio das enchentes,
correndo alucinado para o mar!
E te assombras, com medo dos abismos,
onde as águas nos seus loucos paroxismos
te possam arrastar...

 

No entanto, sobre a flor dessas águas tempestuosas,
leve com as espumas vaporosas,
hás de sempre boiar...

 

Sentindo a sensação deliciosa
de que as águas arrogantes, tumultuosas,
estão cantando para te ninar.

 


Poemas e Poesias quinta, 25 de junho de 2020

MISERÁVEL (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

MISERÁVEL

Arthur Azevedo

 

A Carvalho Junior.

O noivo, como noivo, é repugnante:
Materialão, estúpido, chorudo,
Arrotando, a propósito de tudo,
O ser comendador e negociante.

Tem a viuvinha, a noiva interessante,
Todo o arsenal de um poeta guedelhudo:
Alabastro, marfim, coral, veludo,
Azeviche, safira e tutti quanti.

Da misteriosa alcova a porta geme,
O noivo dorme n'um lençol envolto...
Entra a viuvinha, a noiva... Oh, céu, contém-me!

Ela deita-se... espera... Qual! Revolto,
O leito estala... Ela suspira... freme...,
E o miserável dorme a sono solto!..


Poemas e Poesias quarta, 24 de junho de 2020

ABERTURA SOB PEDE DE OVELHA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

ABERTURA SOB PELE DE OVELHA

Ariano Suassuna

 

Falso Profeta, insone, Extraviado,
vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila — inevitável,
meu Sangue traça a rota deste Fado.

Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a Pulsação do Ser, Fera indomável,
arde ao sol do meu Pasto — incendiado.

Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do Ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.

Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.


Poemas e Poesias terça, 23 de junho de 2020

CANTO PRIMEIRO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CANTO PRIMEIRO

Álvares de Azevedo

 

XIV
 


Escutai-me, leitor, a minha história,
E'fantasia sim, porém amei-a.
Sonhei-a em sua palidez marmórea
Como a ninfa que volve-se na areia
Co'os lindos seios nus... Não sonho glória;
Escrevi porque a alma tinha cheia
— Numa insônia que o spleen entristecia —
De vibrações convulsas de ironia!
 

 


XV
 


Mas não vos pedirei perdão contudo
Se não gostais desta canção sombria
Não penseis que me enterre longo estudo
Por vossa alma fartar de outra harmonia!
Se vario no verso e idéias mudo
E'que assim me desliza a fantasia...
Mas a crítica, não ... eu rio dela...
Prefiro a inspiração de noite bela!
 

 


XVI
 


A crítica é uma bela desgraçada
Que nada cria nem jamais criara;
Tem entranhas de areia regelada:
E'a esposa de Abrão, a pobre Sara
Que nunca foi por Anjo fecundada:
Qual a mãe que por ela assassinara
Por sua inveja e vil desesperança
Dos mais santos amores a criança!
 


(...)
 

 


XXIV
 


Meu herói é um moço preguiçoso
Que viveu e bebia porventura
Como vós, meu leitor... se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura.
Era pálido sim... mas não d'estudo:
No mais... era um devasso e disse tudo!
 

 


XXV
 


Dizer que era poeta — é cousa velha:
No século da luz assim é todo.
O que herói de novelas assemelha.
Vemos agora a poesia a rodo!
Nem há nos botequins face vermelha,
Amarelo caixeiro, alma de lodo,
Nem Bocage d'esquina, vate imundo,
Que não se creia um Dante vagabundo!
 

 


XXVI
 


O meu não era assim: não se imprimia,
Nem versos no teatro declamava!
Só quando o fogo do licor corria
Da fronte no palor que avermelhava,
Com as convulsas mãos a taça enchia.
Então a inspiração lhe afervorava
E do vinho no eflúvio e nos ressábios
Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!
 


(...)
 

 


XXXII
 


Olvidei a canção: só lembro dela
Que d'alma a languidez a estremecia:
Como um anjo num sonho de donzela
Sobre o peito a guitarra lhe gemia!
E quando à frouxa lua, da janela,
Cheia a face de lágrimas erguia,
Como as brisas do amor lhe palpitavam
Os lábios no palor que bafejavam!
 

 


XXXIII
 


Amar, beber, dormir, eis o que amava:
Perfumava de amor a vida inteira,
Como o cantor de Don Juan pensava
Que é da vida o melhor a bebedeira...
E a sua filosofia executava...
Com Alfredo Musset, a tanta asneira
Acrescento porém... juro o que digo!
Não se parece Jônatas comigo.
 

 


XXXIV
 


Prometi um poema, e nesse dia
Em que a tanto obriguei a minha idéia
Não prometi por certo a biografia
Do sublime cantor desta Epopéia
Consagro a outro fim minha harmonia...
Por favor cantarei nesta Odisséia
De Jônatas a glória não sabida...
Mas não quero contar a minha vida.
 

 


XXXV
 


Basta! foi longo o prólogo! confesso!
Mas é preciso à casa uma fachada,
À fronte da mulher um adereço,
No muro um lampião à torta escada!
E agora desse canto me despeço
Com a face de lágrimas banhada,
Qual o moço Don Juan no enjôo rola
Chorando sobre a carta da Espanhola.
 


Poemas e Poesias segunda, 22 de junho de 2020

A MARIA IFIGÊNIA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

A MARIA IFIGÊNIA

Alvarenga Peixoto

 

 

A MARIA IFIGÊNIA


Em 1786, quando completava sete anos.

Amada filha, é já chegado o dia,
Em que a luz da razão, qual tocha acesa,
Vem conduzir a simples natureza:
— É hoje que teu mundo principia.

A mão que te gerou, teus passos guia;
Despreza ofertas de uma vã beleza,
E sacrifica as honras e a riqueza
Às santas leis do Filho de Maria.

Estampa na tu alma a Caridade,
Que amar a Deus, amar aos semelhantes,
São eternos preceitos de verdade;

Tudo o mais são idéias delirantes;
Procura ser feliz na Eternidade,
Que o mundo são brevíssimos instantes.

Poemas e Poesias domingo, 21 de junho de 2020

SALDOS DA NOITE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

SALDOS DA NOITE

Alphonsus Guimaraens

 

Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Nos teus braços febris receber sobre a boca;
Minh'alma, que ao calor dos teus lábios se engelha
E morre, há de cantar perdidamente louca.

O peito, que a uma furna escura se assemelha,
De mágicos florões o teu olhar me touca;
Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha,
Dei toda a vida... e eterna ela seria pouca.

Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria...

— Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!


Poemas e Poesias sábado, 20 de junho de 2020

A CANCELA DA ESTRADA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

A CANCELA DA ESTRADA

Alberto de Oliveira

 

 

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Cavaleiro, à disparada,
Lá vai no cavalo ardente.
Cavaleiro em descuidada
Marcha, lá vem indolente.

Passa, ondeia levantada
A poeira, toldando o ambiente.

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Bate, e exaspera-se e brada
Ou chora contra o batente:
(Ninguém lhe ouve na arrastada,
Roufenha voz o que sente)

— "Minha vida desgraçada
Repouso não me consente;
Vivo a bater nesta estrada
Constantemente."

Moços, moças, de tornada
De alguma festa, em ridente
Chusma inquieta e alvoroçada,
Passaram ruidosamente.

Desta inda se ouve a risada,
Daquele o beijo... Plangente

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Agora, é noiva coroada
De capela alvinitente;
Segue o noivo a sua amada,
Um carro atrás, outro à frente.

Agora, é uma cruz alçada...
Um enterro. Quanta gente!

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Bate ao vir a madrugada,
Bate, ao ir-se o sol no poente;
(Das sombras pela calada
Seu bater é mais dolente)

Bate, se é noite enluarada,
Se escura é a noite e silente;

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Nossa vida é aquela estrada,
Com os que passam diariamente
E após si da caminhada
A poeira deixam somente.

Coração, como a cansada
Cancela de som gemente,

Bates a tua pancada
Constantemente.


Poemas e Poesias sexta, 19 de junho de 2020

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.


Poemas e Poesias quinta, 18 de junho de 2020

CASAMENTO (POEMA D AMINEIRA ADÉLIA PRADO)

CASAMENTO

Adélia Prado

 

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silencio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.


Poemas e Poesias quarta, 17 de junho de 2020

ABANDONO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

ABANDONO

Adalgisa Nery

 

A exaustão faminta
Procura elementos ainda vivos no meu ser
Talvez guardados em escuros vácuos
Que carrego sem saber.
Alimenta-se do sopro das imagens
Desenhadas pela minha imaginação
Pelo tato dos meus sentimentos,
Pelo pânico do desconhecido.
Aparece como febre constante dilatando as minhas carnes
Descoloridas e sem sabor de vida.
A exaustão sobre pelos meus pés,
Cobre os meus gestos incipientes,
Prende a minha língua,
Suga o meu cérebro, ninho de aranhas em fogo,
Pousa no meu cabelo como morcego.
Exaustão que funga o ar, que saqueia o meu silêncio,
Último repouso nos meus vácuos devassados.


Poemas e Poesias terça, 16 de junho de 2020

A CIDADE EM PROGRESSO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A CIDADE EM PROGRESSO

Vinícius de Moraes

 

A cidade mudou. Partiu para o futuro
Entre semoventes abstratos
Transpondo na manhã o imarcescível muro
Da manhã na asa dos DC-4s

Comeu colinas, comeu templos, comeu mar
Fez-se empreiteira de pombais
De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar
Pombas paraestatais.

Alargou os quadris na gravidez urbana
Teve desejos de cúmulos

A cidade mudou. Partiu para o futuro
Entre semoventes abstratos
Transpondo na manhã o imarcescível muro
Da manhã na asa dos DC-4s

Comeu colinas, comeu templos, comeu mar
Fez-se empreiteira de pombais
De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar
Pombas paraestatais.

Alargou os quadris na gravidez urbana
Teve desejos de cúmulos


Poemas e Poesias segunda, 15 de junho de 2020

CAIR DAS FOLHAS (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

CAIR DAS FOLHAS

Vicente de Carvalho

 

“Deixa-me, fonte”! Dizia
A flôr, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.

“Deixa-me, deixa-me, fonte!””
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte...
“Não me leves para o mar”.

E a fonte, rapida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flôr.

“Ai, balanços do meu galho,
“Balanços do berço meu;
“Ai, claras gotas de orvalho
“Caídas do azul do céu!...”

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

“Adeus, sombra das ramadas,
“Cantigas do rouxinol;
“Ai, festa das madrugadas,
“Doçuras do pôr do sol;

“Caricia das brizas leves
“Que abrem rasgões de luar...
“Fonte, fonte, não me leves,
“Não me leves para o mar!...”

                 *
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...


Poemas e Poesias domingo, 14 de junho de 2020

AMOR CONDUSSE NOI AD NADA (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

AMOR CONDUSSE NOI AD NADA

Paulo Mendes Campos

 

 

Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida

As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas

A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto a outro rosto desafia

A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.

 


Poemas e Poesias sábado, 13 de junho de 2020

SACRIFÍCIO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

SACRIFÍCIO

Quintino Cunha

 

 

Do alto andar de um arranha-céu fraqueja

E rui um andaime que se despedaça

Todo infortúnio por maior que ele seja

Não será pior que essa desgraça

 

E vê-se então: Oh, santa maravilha!

Dois operários presos deste modo:

Ambos seguros por um cabo de manilha

Fraco, ameaçando rebentar-se todo.

 

Um pelo menos salvar-se-ia à vinda

De um socorro qualquer nesse transporte

Mas o heroísmo não esqueceu ainda

Quem com amor e coragem enfrenta a morte.

 

E assim nesse dilema derradeiro

Onde só um podia salvar-se extraordinário...

João – pergunta, resoluto o companheiro

- Qual de nós dois será mais necessário?

 

Eu tenho quatro filhos é o que João murmura.

- Oh, camarada, então eu te consolo!

E deixou-se cair da imensa altura

Na aspereza sepulcral do solo.


Poemas e Poesias sexta, 12 de junho de 2020

O PAU D,ARCO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ) VÍDEO


Poemas e Poesias quarta, 10 de junho de 2020

SÓ (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

 

Olavo Bilac

 

Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
- Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem, há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!


Poemas e Poesias terça, 09 de junho de 2020

CHUVA DE PEDRA (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

CHUVA DE PEDRA

Menotti Del Picchia

 

O granizo salpica o chão como se as mãos das nuvens
quebrassem com estrondo um pedaço de gelo
para a salada de frutas do pomares…

O cafezal, numa carreira alucinada,
grimpa as lombas de ocre
apedrejada matilha de cães verdes…
fremem, gotejam eriçadas suas copas
como pelos de um animal todo molhado.

O céu é uma pedreira cor de zinco
onde estoura dinamite dos coriscos.
Rola de fraga em fraga a lasca retumbante
de um trovão.

Os riachos correm com seus pés invisíveis e líquidos
para o abrigo das furnas. No terreiro,
as roupas penduradas nos varais
dançam, funambulescas, com as pedradas,
numa fila macabra de enforcados!


Poemas e Poesias segunda, 08 de junho de 2020

ARTISTAS (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

ARTISTAS

Medeiros e Albuquerque

 

Senhora, eu não conheço a frase almiscarada
dos formosos galãs que vão aos teus salões
nem conheço também a trama complicada
que envolve, que seduz e prende os corações...

Sei que Talma dizia aos juvenis atores
que o Sentimento é mau, se é verdadeiro e são...
e quem menos sentir os ódios e os rancores
mais pode simular das almas a paixão.

E, por isto talvez, eu, que não sou artista,
nem nestes versos meus posso infundir calor,
desvio-me de ti, fujo de tua vista,
porque não sei dizer-te o meu imenso amor.


Poemas e Poesias domingo, 07 de junho de 2020

DA FELICIDADE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA FELICIDADE

Mário Quintana

 

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!


Poemas e Poesias sábado, 06 de junho de 2020

CISMAR (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

CISMAR

Maria Firmina dos Reis

 

À MINHA QUERIDA PRIMA ― BALDUÍNA N. B.

 

Quando meus olhos lanço sobre o mar,

Augusto ─ o seu império contemplando;

Quer tranquilo murmure ─ ou rebramando,

Expande-se meu peito extasiado.

Corre minh’alma pelo céu vagando,

Sobre seres criados ─ Deus buscando…

E fundo, e deleitoso é meu cismar.

Se ronca a tempestade enegrecida,

Pavoroso trovão rouqueja incerto;

As nuvens se constrangem, o céu aberto

Elétrico clarão vomita escuro:

Ao Deus da criação, ao rei da vida

Elevo o pensamento, e o coração…

Cresce, avulta, e aumenta a cerração

E em meu vago cismar só Deus procuro;

Se plácida no céu correndo vejo

─ A lua ─ o mar, as serras prateando,

Qual áureo diadema cintilando

Em casta fronte de pudica virgem,

Em meu grato cismar só Deus almejo…

Bendiz minh’alma seu poder imenso!

Bendiz o Criador do Orbe extenso,

Que os outros rege ─ que seu trono cingem.

E bendigo depois a minha dor,

Meu duro sofrimento, ─ o meu viver…

Porque pode apagar, fundo sofrer

As feias culpas do existir da terra.

Oh! sim minh’alma te bendiz Senhor.

Quando cismando se recolher triste…

Bendiz o eterno amor, que em ti existe,

O imenso poder que em ti se encerra!!…


Poemas e Poesias sexta, 05 de junho de 2020

AUTORRETRATO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

AUTORRETRATO

Manuel Bandeira

 

 

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

 


Poemas e Poesias quinta, 04 de junho de 2020

DIFÍCIL FOTOGRAFAR O SILÊNCIO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

DIFÍCIL FOTOGRAFAR O SILÊNCIO

MANOEL DE BARROS

 

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta.Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.


Poemas e Poesias quarta, 03 de junho de 2020

REFLEXO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

REFLEXO

Machado de Assis

Olha: vem sobre os olhos
Tua imagem contemplar,
Como as madonas do céu
Vão refletir-se no mar
Pelas noites de verão
Ao transparente luar!
 
Olha e crê que a mesma imagem
Com mais ardente expressão
Como as madonas no mar
Pelas noites de verão,
Vão refletir-se bem fundo,
Bem fundo — no coração!


Poemas e Poesias terça, 02 de junho de 2020

BORBOLETRAS, BORBOLETREM (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

BORBOLETRAS, BORBOLETREM

Luís Turiba

 

Quando você borboleta
Eu te aero o porto
Quando você bicicleta
Eu me arco e flecha
Quando você me poeta
Eu te arreio rimas
Quando você se planeta
Eu te arejo o cosmos
Quando você me soletra
Eu te armo pousos
Quando você se escopeta
Eu te arte em balas
Quando você biblioteca
Eu te aço as bíblias
Quando você m’encapeta
Eu te a eros gozos


Poemas e Poesias segunda, 01 de junho de 2020

AUTORRETRATO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

AUTORRETRATO

José Sarney

 

Bigode,
indevassável,
eterno,
ausente,
habita
intocável
o latifúndio de minha solidão.
Menino, moço e velho
superpostos,
me olho e não me vejo.


Poemas e Poesias domingo, 31 de maio de 2020

ESTE POEMA DE AMOR NÃO É LAMENTO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

ESTE POEMA DE  AMOR NÃO É LAMENTO

Jorge de Lima

 

Este poema de amor não é lamento
nem tristeza distante, nem saudade,
nem queixume traído nem o lento
perpassar da paixão ou pranto que há-de

transformar-se em dorido pensamento,
em tortura querida ou em piedade
ou simplesmente em mito, doce invento,
e exaltada visão da adversidade.

É a memória ondulante da mais pura
e doce face (intérmina e tranquila)
da eterna bem-amada que eu procuro;

mas tão real, tão presente criatura
que é preciso não vê-la nem possuí-la
mas procurá-la nesse vale obscuro.


Poemas e Poesias sábado, 30 de maio de 2020

DISCURSO DO CAPIBARIBE (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

DISCURSO DO CAPIBARIBE

Jõão Cabral de Melo Neto

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo).


Poemas e Poesias sexta, 29 de maio de 2020

AMO! (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE) - DECLAMAÇÃO


Poemas e Poesias quinta, 28 de maio de 2020

DE TANTO TE PENSAR, SEM NOME, ME VEIO A ILUSÃO. A MESMA ILUSÃO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DE TANTO TE PENSAR, SEM NOME, ME VEIO A ILUSÃO. A MESMA ILUSÃO.

Hilda Hilst

 


Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar 
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n’água”.


Poemas e Poesias quarta, 27 de maio de 2020

A MULHER - I (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A MULHER - I

Florbela Espanca

 

 

Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!

Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta: sê em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!

Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então vis: “Olhem, vejam
É aquela a infame!” e apedrejam
a pobrezita, a triste, a desgraçada!


Poemas e Poesias terça, 26 de maio de 2020

COISAS DA TERRA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR) VÍDEO


Poemas e Poesias segunda, 25 de maio de 2020

BATE A LUZ NO CIMO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

BATE A LUZ NO CIMO

Fernando Pessoa

 

 

Bate a luz no cimo

Da montanha, vê...

Sem querer, eu cismo

Mas não sei em quê...

 

Não sei que perdi

Ou que não achei...

Vida que vivi,

Que mal eu a amei!...

 

Hoje quero tanto

Que o não posso ter.

De manhã há o pranto

E ao anoitecer.

 

Tomara eu ter jeito

Para ser feliz...

Como o mundo é estreito,

E o pouco que eu quis!

 

Vai morrendo a luz

No alto da montanha...

Como um rio a flux

A minha alma banha.

 

Mas não me acarinha,

Não me acalma nada...

Pobre criancinha

Perdida na estrada!...


Poemas e Poesias domingo, 24 de maio de 2020

A CHUVA É A ÚNICA CHAMA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

A CHUVA É A ÚNICA CHAMA

Fabrício Carpineja

 

 

A chuva é a única chama
que caminha contra o vento.
Refaço seu lastro
com a insônia dos sapatos.

Enlouqueço de ternura,
indeciso entre o furor e o fulgor.
Desperto amarrado em alguma estrela,
servindo de referência
para o alinhamento das esferas.


Poemas e Poesias sábado, 23 de maio de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 03 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 03

Eno Teodoro Wanke

Para o cliente perplexo

Declara, enfim, o doutor:

"O senhor não tem compexo

Pois e mesmo inferior!"


Poemas e Poesias sexta, 22 de maio de 2020

ADEUS À VIDA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

ADEUS À VIDA

Da Costa e Silva

 

É, então, isso a vida: a nau perdida,
Sem bússola e sem leme, aos temporais?
A flórea escarpa, de íngreme subida, 
Da montanha dos risos e dos ais?

 

É, então, isso a vida: a flor colhida
Sobre abismos ocultos e fatais?
A quimera da Terra Prometida,
No êxodo eterno para o Nunca-Mais?

 

É, então, isso a vida: o sonho obscuro
Dos Ícaros, Jasões e Prometeus,
Perdido na celagem do futuro?

 

É, então, isso a vida? — Vida, adeus!
Não é esse o caminho que procuro...
Mas seja tudo pelo amor de Deus.

 

 


Poemas e Poesias quinta, 21 de maio de 2020

Ó ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUZA)

Ó ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA

Cruz e Sousa

 

Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente,
Resplandecente safira,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
As vibrações desta lira,
Acorda do sono ardente,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente.


Poemas e Poesias quarta, 20 de maio de 2020

MAS HÁ VIDA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

MAS HÁ VIDA

Clarice Lispector

 

 

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida, há o amor.

Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.


Poemas e Poesias terça, 19 de maio de 2020

DESPEDIDA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

DESPEDIDA

Cecília Meireles

 

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces ? – me perguntarão.
– Por não Ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras ? Tudo. Que desejas ? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação…
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !
Estandarte triste de uma estranha guerra…)
Quero solidão.

 

Poemas e Poesias domingo, 17 de maio de 2020

A CANOA FANTÁSTICA (27ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

A CANOA FANTÁSTICA

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Pelas sombras temerosas
Onde vai esta canoa?
Vai tripulada ou perdida?
Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante
De palmeira, que sescoa...
No dorso da correnteza,
Como bóia esta canoa! ...

Mas não branqueja-lhe a velar
Nágua o remo não ressoa!
Serão fantasmas que descem
Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio
Gelado, imóvel, na proa?
Dir-se-ia o gênio das sombras
Do inferno sobre a canoa! ...

Foi visão? Pobre criança!
À luz, que dos astros coa,
É teu, Maria, o cadáver,
Que desce nesta canoa?

Caída, pálida, branca!...
Não há quem dela se doa?!...
Vão-lhe os cabelos a rastos
Pela esteira da canoa!...

E as flores róseas dos golfos,
— Pobres flores da lagoa,
Enrolam-se em seus cabelos
E vão seguindo a canoa! ...

"


Poemas e Poesias sábado, 16 de maio de 2020

CANTO DE AMOR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

CANTO DE AMOR

Casimiro de Abreu

 

A M.***

I
Eu vi-a e minha alma antes de vê-la
Sonhara-a linda como agora a vi;
Nos puros olhos e na face bela,
Dos meus sonhos a virgem conheci.

Era a mesma expressão, o mesmo rosto,
Os mesmos olhos só nadando em luz,
E uns doces longes, como dum desgosto.
Toldando a fronte que de amor seduz!

E seu talhe era o mesmo, esbelto, airoso
Como a palmeira que se ergue ao ar,
Como a tulipa ao pôr-do-sol saudoso,
Mole vergando à viração do mar.

Era a mesma visão que eu dantes via,
Quando a minha alma transbordava em fé;
E nesta eu creio como na outra eu cria,
Porque é a mesma visão, bem sei que é!

No silêncio da noite a virgem vinha
Soltas as tranças junto a mim dormir;
E era bela, meu Deus, assim sozinha
No seu sono d'infante inda a sorrir!...

........................
.


II
Vi-a e não vi-a! Foi num só segundo,
Tal como a brisa ao perpassar na flor,
Mas nesse instante resumi um mundo
De sonhos de ouro e de encantado amor.

O seu olhar não me cobriu d'afago,
E minha imagem nem sequer guardou,
Qual se reflete sobre a flor dum lago
A branca nuvem que no céu passou.

A sua vista espairecendo vaga,
Quase indolente, não me viu, ai, não!
Mas eu que sinto tão profunda a chaga
Ainda a vejo como a vi então.

Que rosto d'anjo, qual estátua antiga
No altar erguida, já cabido o véu!
Que olhar de fogo, que a paixão instiga?
Que níveo colo prometendo um céu.

Vi-a e amei-a, que a minha alma ardente
Em longos sonhos a sonhara assim;
O ideal sublime, que eu criei na mente,
Que em vão buscava e que encontrei por fim!

III
P'ra ti, formosa, o meu sonhar de louco
E o dom fatal, que desde o berço é meu;
Mas se os cantos da lira achares pouco,
Pede-me a vida, porque tudo é teu.

Se queres culto - como um crente adoro,
Se preito queres - eu te caio aos pés,
Se rires - rio, se chorares - choro,
E bebo o pranto que banhar-te a tez.

Dá-me em teus lábios um sorrir fagueiro,
E desses olhos um volver, um só;
E verás que meu estro, hoje rasteiro,
Cantando amores s'erguerá do pó!

Vem reclinar-te, como a flor pendida,
Sobre este peito cuja voz calei:
Pede-me um beijo... e tu terás, querida,
Toda a paixão que para ti guardei.

Do morto peito vem turbar a calma,
Virgem, terás o que ninguém te dá;
Em delírios d'amor dou-te a minha alma,
Na terra, a vida, a eternidade - lá!

IV
Se tu, oh linda, em chama igual te abrasas,
Oh! não me tardes, não me tardes, - vem!
Da fantasia nas douradas asas
Nós viveremos noutro mundo - além!

De belos sonhos nosso amor povôo,
Vida bebendo nos olhares teus;
E como a garça que levanta o vôo,
Minha alma em hinos falará com Deus!

Juntas, unidas num estreito abraço,
As nossas almas uma só serão;
E a fronte enferma sobre o teu regaço
Criará poemas d'imortal paixão!

Oh! vem, formosa, meu amor é santo,
É grande e belo como é grande o mar,
E doce e triste como d'harpa um canto
Na corda extrema que já vai quebrar!

Oh! vem depressa, minha vida foge...
Sou como o lírio que já murcho cai!
Ampara o lírio que inda é tempo hoje!
Orvalha o lírio que morrendo vai!...


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