Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quinta, 09 de junho de 2022

POEMA À VIRGEM MARIA (POEMA OD ESPANHOL SÃO JOSÉ DE ANCHIETA, O *APÓSTOLO DO bRASIL*

Poema à Virgem Maria

São José de Anchieta

 

 

 comshalom
QUADRO DE BENEDITO CALIXTO RETRATA ANCHIETA ESCREVENDO POEMA (FOTO: DIVULGAÇÃO/MUSEU DE ANCHIETA)
 

São José de Anchieta, considerado o apóstolo do Brasil, canonizado pelo Papa Francisco em 3 de abril 2014. Enviado em missão para o Brasil antes de completar 20 anos, padre Anchieta é o maior expoente do grupo de jesuítas que deram a vida pela catequização dos índios e pela evangelização primordial do país.

Entre muitos episódios da vida dele, tornou-se conhecida sua prisão por cinco meses, quando esteve refém dos índios tamoios, em 1563. Durante esse período, escreveu nas areias da praia de Iperoig (hoje praia do Cruzeiro) um poema dedicado a Maria, com quase 5 mil versos.

Reze conosco o trecho do “Poema à Virgem Maria”, escrito por São José de Anchieta:

Ó doce chaga, que repara os corações feridos,
Abrindo larga estrada para o Coração de CRISTO.
Prova do novo amor que nos conduz a união! (Amai uns aos outros como EU vos amo)
Porto do mar que protege o barco de afundar!
Em TI todos se refugiam dos inimigos que ameaçam:
TU, SENHOR, és medicina presente a todo mal!
Quem se acabrunha em tristeza, em consolo se alegra:
A dor da tristeza coloca um fardo no coração!
Por Ti Mãe, o pecador está firme na esperança,
Caminhar para o Céu, lar da bem-aventurança!
Ó Morada de Paz! Canal de água sempre vivo,
Jorrando água para a vida eterna!
Esta ferida do peito, ó Mãe, é só Tua,
Somente Tu sofres com ela, só Tu a podes dar.
Dá-me acalentar neste peito aberto pela lança,
Para que possa viver no Coração do meu SENHOR!
Entrando no âmago amoroso da piedade Divina,
Este será meu repouso, a minha casa preferida.
No sangue jorrado redimi meus delitos,
E purifique com água a sujeira espiritual!
Embaixo deste teto (Céu) que é morada de todos,
Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.


Poemas e Poesias quarta, 08 de junho de 2022

SONETO ASCOROSO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO ASCOROSO

Bocage

 

 

 

Piolhos cria o cabelo mais dourado;
Branca remela o olho mais vistoso;
Pelo nariz do rosto mais formoso
O monco se divisa pendurado:
 
Pela boca do rosto mais corado
Hálito sai, às vezes bem ascoroso;
A mais nevada mão sempre é forçoso
Que de sua dona o cu tenha tocado:
 
Ao pé dele a melhor natura mora,
Que deitando no mês podre gordura,
Fétido mijo lança a qualquer hora.
 
Caga o cu mais alvo merda pura:
Pois se é isto o que tanto se namora,
Em ti, mijo, em ti cago, oh formosura!


Poemas e Poesias terça, 07 de junho de 2022

CEM TROVAS - 004 (POEMA DE BELMIRO BRAGA)

TROVA 004

Belmiro Braga

 

 

 

Quem, mesmo nas alegrias,
de lastimar não se furta
de ver tão longos os dias,
para uma vida tão curta?


Poemas e Poesias segunda, 06 de junho de 2022

A ÁRVORE DA SERRA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

 

A ÁRVORE DA SERRA

Augusto dos Anjos

 

 

 

As árvores, meu filho, não tem alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice mais calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra.

 


Poemas e Poesias sábado, 04 de junho de 2022

FANTASIA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

FANTASIA

Álvares de Azevedo

 

 

 

Quanti dolci pensier, quanto disio!
DANTE

C’est alors que ma voix
Murmure un nom tout bas... c’est alors que je vois
M’apparaître à demi, jeune, voluptueuse,
Sur ma couche penchée une femme amoureuse!
...........................................................................
Oh! toi que j’ai rêvée,
Femme à mes longs baisers si souvent enlevée,
Ne viendras-tu jamais? ......................................
CH. DOVALLE


À noite sonhei contigo...
E o sonho cruel maldigo
Que me deu tanta ventura.
Uma estrelinha que vaga
Em céu de inverno e se apaga
Faz a noite mais escura!

Eu sonhava que sentia
Tua voz que estremecia
Nos meus beijos se afogar!
Que teu rosto descorava
E teu seio palpitava
E eu te via a desmaiar!

Que eu te beijava tremendo,
Que teu rosto enfebrecendo
Desmaiava a palidez!
Tanto amor tua alma enchia
E tanto fogo morria
Dos olhos na languidez!

E depois... dos meus abraços,
Tu caíste, abrindo os braços,
Gélida, dos lábios meus...
Tu parecias dormir,
Mas debalde eu quis ouvir
O alento dos seios teus...

E uma voz, uma harmonia
No teu lábio que dormia
Desconhecida acordou,
Falava em tanta ventura,
Tantas notas de ternura
No meu peito derramou!

O soído harmonioso
Falava em noites de gozo
Como nunca eu as senti.
Tinha músicas suaves,
Como no canto das aves,
De manhã eu nunca ouvi!

Parecia que no peito
Nesse quebranto desfeito
Se esvaía o coração...
Que meu olhar se apagava,
Que minhas veias paravam
E eu morria de paixão...

E depois... num santuário
Junto do altar solitário
Perto de ti me senti,
Dormias junto de mim...
E um anjo nos disse assim:
"Pobres amantes, dormi!"

Tu eras inda mais bela...
O teu leito de donzela
Era coberto de flores...
Tua fronte empalecida,
Frouxa a pálpebra descida,
Meu Deus! que frio palor!...

Dei-te um beijo... despertaste,
Teus cabelos afastaste,
Fitando os olhos em mim...
Que doce olhar de ternura!
Eu só queria a ventura
De um olhar suave assim!

Eu dei-te um beijo, sorrindo
Tremeste os lábios abrindo,
Repousaste ao peito meu...
E senti nuvens cheirosas,
Ouvi liras suspirarem,
Rompeu-se a névoa... era o céu!

Caía chuva de flores
E luminosos vapores
Davam azulada luz...
E eu acordei... que delírio!
Eu sonho findo o martírio
E acordo pregado à cruz!


Poemas e Poesias sexta, 03 de junho de 2022

BELEZA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

BELEZA

Almeida Garrett

 

 

 

Vem do amor a Beleza,
Como a luz vem da chama.
É lei da natureza:
Queres ser bela? - ama.

Formas de encantar,
Na tela o pincel
As pode pintar;
No bronze o buril
As sabe gravar;
E estátua gentil
Fazer o cinzel
Da pedra mais dura...
Mas Beleza é isso? - Não; só formosura.

Sorrindo entre dores
Ao filho que adora
Inda antes de o ver
- Qual sorri a aurora
Chorando nas flores
Que estão por nascer –
A mãe é a mais bela das obras de Deus.
Se ela ama! - O mais puro do fogo dos céus
Lhe ateia essa chama de luz cristalina:

É a luz divina
Que nunca mudou,
É luz... é a Beleza
Em toda a pureza
Que Deus a criou.


Poemas e Poesias quinta, 02 de junho de 2022

DESILUDIDO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

DESILUDIDO

Alceu Wamosy

 

 

 

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
nova, que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
que se há de transformar em pranto, de repente...

A ventura completa, é céu que não se alcança,
mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
esse céu mentiroso, é um céu que foge e avança,
se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia,
hás de o teu coração, repleto de alegria,
para sempre fechar, como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
e que só se é feliz, dando-se o mesmo apreço
ao gozo que se goza, e à mágoa que se sofre!


Poemas e Poesias quarta, 01 de junho de 2022

CINDO SENTIDOS (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

 

CINCO SENTIDOS

Alberto de Oliveira

 

 

Cinco sentidos são os cinco dedos
Com que o homem tacteia a escuridão,
Rodeado de sombras e segredos
De que busca, e não acha, a solução.

Mas decerto haverá mundos mais ledos
Onde outros seres, de maior visão,
Rompendo brumas, dissipando medos,
A treva finalmente vencerão.

E sendo sete as cores, e outros tantos
Os sons da escala, mas com mil matizes
Que prolongam seu eco e seus encantos,

Talvez nos seja um dia transmitido,
Por esses mundos fortes e felizes,
Um novo sexto e sétimo sentido!


Poemas e Poesias terça, 31 de maio de 2022

DEFINIÇÃO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT8ANNA)

DEFINIÇÃO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

O corpo é onde
é carne:

o corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

o corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

o corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

o corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.


Poemas e Poesias segunda, 30 de maio de 2022

IMPRESSIONISTA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

IMPRESSIONISTA

Adélia Prado

 

 

 

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.


Poemas e Poesias domingo, 29 de maio de 2022

PATRIMÔIO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

PATRIMÔNIO

Adalgisa Nery

 

 

 

Pesam nos meus ossos
Os meus pensamentos,
Choram nos meus olhos
As visões neles crescidas,
Soluçam no torpor das minhas carnes
Ancestrais desalentos.

Sangram os meus pés
Na inútil andança
Da imaginação liberta,
Pulveriza o meu espírito
A solidão do suicida ignorado
E cresce assustadoramente dentro de mim
A calmaria que precede o fim.


Poemas e Poesias sábado, 28 de maio de 2022

A LEGIÃO DOS ÚRIAS (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUSDE MORAES)

 A LEGIÃO DOS ÚRIAS

Vinícius de Moraes

 

 

 

Quando a meia-noite surge nas estradas vertiginosas das montanhas
Uns após outros, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos
Passam olhos brilhantes de rostos invisíveis na noite
Que fixam o vento gelado sem estremecimento.

São os prisioneiros da Lua. Às vezes, se a tempestade
Apaga no céu a languidez imóvel da grande princesa
Dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
Dos Cavaleiros Úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.

São os escravos da Lua. Vieram também de ventres brancos e puros
Tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte...
Mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo
Em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.

E desde então nas noites claras eles aparecem
Sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
E das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes.

Aos olhos das velhas paralíticas murchadas que esperam a morte noturna
Eles descobrem solenemente as netas e as filhas deliquescentes
E com garras fortes arrancam do último pano os nervos flácidos e abertos
Que em suas unhas agudas vivem ainda longas palpitações de sangue.

Depois amontoam a presa sangrenta sob a luz pálida da deusa
E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas desconhecidas e fumos
Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes adormecidos
Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e convulsões mornas.

E então, após colherem as vibrações de leitos fremindo distantes
E os rinchos de animais seminando no solo endurecido
Eles erguem cantos à grande princesa crispada no alto
E voltam silenciosos para as regiões selvagens onde vagam.

Volta a Legião dos Úrias pelos caminhos enluarados
Uns após outros, somente os olhos, negros sobre cavalos lívidos
Deles foge o abutre que conhece todas as carniças
E a hiena que já provou de todos os cadáveres.

São eles que deixam dentro do espaço emocionado
O estranho fluido todo feito de plácidas lembranças
Que traz às donzelas imagens suaves de outras donzelas
E traz aos meninos figuras formosas de outros meninos.

São eles que fazem penetrar nos lares adormecidos
Onde o novilúnio tomba como um olhar desatinado
O incenso perturbador das rubras vísceras queimadas
Que traz à irmã o corpo mais forte da outra irmã.

São eles que abrem os olhos inexperientes e inquietos
Das crianças apenas lançadas no regaço do mundo
Para o sangue misterioso esquecido em panos amontoados
Onde ainda brilha o rubro olhar implacável da grande princesa.

Não há anátema para a Legião dos Cavaleiros Úrias
Passa o inevitável onde passam os Cavaleiros Úrias
Por que a fatalidade dos Cavaleiros Úrias?
Por que, por que os Cavaleiros Úrias?

Oh, se a tempestade boiasse eternamente no céu trágico
Oh, se fossem apagados os raios da louca estéril
Oh, se o sangue pingado do desespero dos Cavaleiros Úrias
Afogasse toda a região amaldiçoada!

Seria talvez belo — seria apenas o sofrimento do amor puro
Seria o pranto correndo dos olhos de todos os jovens
Mas a Legião dos Úrias está espiando a altura imóvel
Fechai as portas, fechai as janelas, fechai-vos, meninas!

Eles virão, uns após outros, os olhos brilhando no escuro
Fixando a lua gelada sem estremecimento
Chegarão os Úrias, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos
Quando a meia-noite surgir nas estradas vertiginosas das montanhas.


Poemas e Poesias sexta, 27 de maio de 2022

MARINHA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

MARINHA

Vicente de Carvalho

 

 

 

Eis o tempo feliz das pescarias — quando
Maio aponta a sorrir pela boca das flores.
Derramam-se na praia as gaivotas em bando...
Alerta, pescadores!

Crepusculeja ainda a aurora, mas quem pesca
Deve esperar o dia entre as ondas — enquanto
Sopra enfunando a vela a matutina fresca
E o sol não queima tanto.

Mulheres, fazei fogo! Ao alcance do braço,
Mesmo à porta do rancho a maré pôs a lenha.
Aprontai o café! Vibra já pelo espaço
A buzina roufenha.

Peixe na costa! O aviso erra de frágua em frágua,
Chama de rancho em rancho os pescadores. Eia!
As canoas estão ainda fora d'água
Encalhadas na areia:

Prestes, descei-as! Ide apanhar às estacas
A rede. Ide-a colhendo às pressas; colocai-a
Na canoa. Descendo agora nas ressacas,
Isso, fora da praia!

E é remar, é remar para o largo... As crianças
E as mulheres, em terra, esperam aguentando
O cabo que por sobre o azul das ondas mansas
A rede vai largando...


Poemas e Poesias quinta, 26 de maio de 2022

LET*S PLAY THAT (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

LET'S PLAY THAT

Torquato Neto

 

 

 

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that

 


Poemas e Poesias quarta, 25 de maio de 2022

A VIDA VERDADEIRA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

A VIDA VERDADEIRA

Thiago de Mello

 

 

 

Pois aqui está a minha vida.
Pronta para ser usada.
 
Vida que não se guarda
nem se esquiva, assustada.
Vida sempre a serviço da vida.
Para servir ao que vale
a pena e o preço do amor.
 
Ainda que o gesto me doa,
não encolho a mão: avanço
levando um ramo de sol.
Mesmo enrolada de pó,
dentro da noite mais fria,
a vida que vai comigo é fogo:
está sempre acesa.
 
Vem da terra dos barrancos
o jeito doce e violento
da minha vida: esse gosto
da água negra transparente.
A vida vai no meu peito,
mas é quem vai me levando:
tição ardente velando,
girassol na escuridão.
 
Carrego um grito que cresce
cada vez mais na garganta,
cravando seu travo triste
na verdade do meu canto.
 
Canto molhado e barrento
de menino do Amazonas
que viu a vida crescer
nos centros da terra firme.
Que sabe a vinda da chuva
pelo estremecer dos verdes
e sabe ler os recados
que chegam na asa do vento.
Mas sabe também o tempo
da febre e o gosto da fome.
 
Nas águas da minha infância
perdi o medo entre os rebojos.
Por isso avanço cantando.
 
Estou no centro do rio,
estou no meio da praça.
Piso firme no meu chão,
sei que estou no meu lugar,
como a panela no fogo
e a estrela na escuridão.
 
O que passou não conta?
indagarão as bocas desprovidas.
Não deixa de valer nunca.
O que passou ensina
com sua garra e seu mel.
Por isso é que agora vou assim
no meu caminho.
Publicamente andando.
 
Não, não tenho caminho novo.
O que tenho de novo
é o jeito de caminhar.
Aprendi (o caminho me ensinou)
a caminhar cantando
como convém a mim
e aos que vão comigo.
Pois já não vou mais sozinho.
 
Aqui tenho a minha vida:
feita à imagem do menino
que continua varando
os campos gerais
e que reparte o seu canto
como o seu avô
repartia o cacau
e fazia da colheita
uma ilha de bom socorro.
 
Feita à imagem do menino
mas à semelhança do homem:
com tudo que ele tem de primavera
de valente esperança e rebeldia.
 
Vida, casa encantada,
onde moro e mora em mim,
te quero assim verdadeira
cheirando a manga e jasmim.
Que me sejas deslumbrada
como ternura de moça
rolando sobre o capim.
 
Vida, toalha limpa,
vida posta na mesa,
vida brasa vigilante
vida pedra e espuma,
alçapão de amapolas,
o sol dentro do mar,
estrume e rosa do amor:
a vida.
 
Há que merecê-la.

Poemas e Poesias terça, 24 de maio de 2022

CANTO SEGUNDO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

 

CANTO SEGUNDO

Sousândrade

 

c

 

Opalescem os céus — clarões de prata —
Beatífica luz pelo ar mimoso
Dos nimbos d'alva exala-se, tão grata
Acariciando o coração gostoso!

Oh! doce enlevo! oh! bem-aventurança!
Paradíseas manhãs! riso dos céus!
Inocência do amor e da esperança
Da natureza estremecida em Deus!

Visão celeste! angélica encarnada
Co'a nitente umidez d'ombros de leite,
Onde encontra amor brando, almo deleite,
E da infância do tempo a hora foi nada!

A claridade aumenta, a onda desliza,
Cintila co'o mais puro luzimento;
De púrpura, de ouro, a c'roa se matiza
Do tropical formoso firmamento!

Qual um vaso de fina porcelana
Que de através o sol alumiasse,
Qual os relevos da pintura indiana
É o oriente do dia quando nasce.

Uma por uma todas se apagaram
As estrelas, tamanhas e tão vivas,
Qual os olhos que lânguidas cativas,
Mal nutridas de amores, abaixaram.

Aclaram-se as encostas viridantes,
A espreguiçar-se a palma soberana;
Remonta a Deus a vida, à origem d'antes,
Amiga e matinal, donde dimana.

Acorda a terra; as flores da alegria
Abrem, fazem do leito de seus ramos
Sua glória infantil; alcion em clamos
Passa cantando sobre o cedro ao dia

Lindas loas boiantes; o selvagem
Cala-se, evoca doutro tempo um sonho,
E curva a fronte... Deus, como é tristonho
Seu vulto sem porvir em pé na margem!

Talvez a amante, a filha haja descido,
Qual esse tronco, para sempre o rio —
Ele abana a cabeça co'o sombrio
Riso do íris da noite entristecido.

 


Poemas e Poesias segunda, 23 de maio de 2022

ESSÊNCIA HUMANA (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

ESSÊNCIA HUMANA

Ricardo Lima

 

 

 

O em-si não dialoga;

O para-si, o completa

Na subjetividade,

No complexo-todo, que é a essência humana.

 

A consciência do em-si será sempre o para-si.


Poemas e Poesias domingo, 22 de maio de 2022

CRISTIANISMO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEONI)

CRISTIANISMO

Raul de Leôni

 

 

 

Sonho um cristianismo singular
Cheio de amor divino e de prazer humano;
O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,
A beatitude com mais luz e com mais ar...

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,
Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano.
Num misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida e azul de um lago italiano...

Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos lírios.
Temperado na graça natural...

Cristianismo de bom humor, que não existe,
Onde a Tristeza fosse um pecado venial,
Onde a Virtude não precisasse ser triste...

 

 

 


Poemas e Poesias sábado, 21 de maio de 2022

SENTIMENTO DO TEMPO (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

SENTIMENTO DO TEMPO

Paulo Mendes Campos

 

 

 

"Os sapatos envelheceram depois de usados
mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce."


Poemas e Poesias sexta, 20 de maio de 2022

SURDINA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

SURDINA

Olavo Bilac

 

 

 

No ar sossegado um sino canta,
Um sino canta no ar sombrio...
Pálida, Vênus se levanta...
Que frio!

Um sino canta. O campanário
Longe, entre névoas, aparece...
Sino, que cantas solitário,
Que quer dizer a tua prece?

Que frio! embuçam-se as colinas;
Chora, correndo, a água do rio;
E o céu se cobre de neblinas.
Que frio!

Ninguém... A estrada, ampla e silente,
Sem caminhantes, adormece...
Sino, que cantas docemente,
Que quer dizer a tua prece?

Que medo pânico me aperta
O coração triste e vazio!
Que esperas mais, alma deserta?
Que frio!

Já tanto amei! já sofri tanto!
Olhos, por que inda estais molhados?
Por que é que choro, a ouvir-te o canto,
Sino que dobras a finados?

Trevas, caí! que o dia é morto!
Morre também, sonho erradio!
A morte é o último conforto...
Que frio!

Pobres amores, sem destino,
Soltos ao vento, e dizimados!
Inda vos choro... E, como um sino,
Meu coração dobra a finados.

E com que mágoa o sino canta,
No ar sossegado, no ar sombrio!
- Pálida, Vênus se levanta.
Que frio!


Poemas e Poesias quinta, 19 de maio de 2022

MAIÓ DECEPÇÃO - A HISTÓRIA DE UMA TRAPAÇA REVOLTANTE (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

 

 

 

MAIÓ DECEPÇÃO

Patativa do Assaré

(A história de uma trapaça revoltante.)

 

Seu moço, que é viajante,

Conhece o sertão e a praça,

Deve conhecê bastante

O que é bondade e desgraça.

Sei que o Senhô teve estudo,

Conhece um pôco de tudo,

Pois munta coisa aprendeu,

Quêra escutá com tenção

A maió decepção

Que comigo aconteceu.

 

O meu nome é Malaquia,

Sou honrado, honesto e sero,

Sou o maió da freguesia

Na bondade e no critero.

Seu moço, eu sou tão isato

Que, quando faço o meu trato,

Só chego inriba da hora,

Tanto que, por causa disto,

Não dou valô a registo,

Ricibo nem promissóra.

 

Meus papé resorvo tudo,

Mas divido eu sê assim,

Já levei munto canudo,

Jurgando os ôtro por mim.

Daqui a três légua e meia,

Fica a cidade de Areia,

Que é sede municipá.

Foi lá que passei, patrão,

A maió decepção

Que a gente pode passá.

 

Chegou ali um sujeito,

Há seis ou sete ano atrás,

Sem vergonha, sem respeito,

Ladrão, cabreiro e sagaz,

Chamado Mané José.

Tinha a fala de muié,

Que fazia aborrecê.

A fala do tal gaiato

Era o miado de um gato,

Quando pede dicumê.

 

Lá na cidade, o sujeito

Vevia meio introsado

Com escrivão e prefeito,

Com juiz e delegado.

E o cara lisa, sabido,

Adoladô, inxirido,

Divido alguém lhe informá,

Ficou sabendo que eu era

Uma pessoa sincera

E intendeu de me robá.

 

Eu tava, uma menhãzinha,

Mais Raqué, minha muié,

Lá no fugão da cozinha,

Tomando o nosso café,

Quando uvi uma voz fina,

Parecendo uma buzina:

“Ô de casa! Ô de casa!”

Seu moço, eu naquela hora,

Saí de dentro pra fora,

Pisando inriba de brasa.

 

E aquele marmanjo horrendo,

Da cara de intipatia,

Quando me viu, foi dizendo:

“Como vai, seu Malaquia?

Não lhe conheço de vista,

Porém, a gente benquista

Já me deu informação:

Na cidade, me dissero

Que o senhô é o mais sincero

Dos home deste sertão.

 

Sabendo desta verdade,

Fiquei munto satisfeito,

Eu gosto da honestidade,

Pois sou deste mesmo jeito.

Pra sê pontuá e honrado,

Eu já nasci inducado

E, mesmo sem tê estudo,

A minha fala segura

Tem o valô da iscritura,

Com selo, carimbo e tudo.

 

Se qué sabê se é ou não,

Vá preguntá na cidade.

Lá, eu tenho relação

Com todas oturidade.

E é por isso que hoje venho

Aqui, com bastante impenho,

Falá com seu Malaquia,

Pra me imprestá um dinhêro,

Quatrocento mil cruzêro,

A juro, por quinze dia.

 

Pode crê neste meu dito,

O meu trato é tiro e queda,

Pra fazê papé bonito,

Pôca gente me arremeda;

É tanto que eu sou um sóço

De uma casa de negoço

Que tem lá na capitá

E ganho mais um salaro,

Pruquê sou foncionáro

Do gunvêrno estaduá.

 

Nunca a ninguém inganei,

Provo e faço um juramento

E, mesmo fora da lei,

Eu lhe pago a dez por cento,

O lucro não esperdice,

Pois gente boa me disse

Que o dinhêro o sinhô tem,

Não injeite o risurtado,

Pruquê dinhêro guardado

Nunca deu lucro a ninguém.

 

Seu moço, eu sou verdadêro,

É certo o que tou dizendo.”

Eu intreguei o dinhêro

Com as duas mão tremendo

E ele, quando recebeu,

Fingindo me respondeu,

Dizendo: “Seu Malaquia,

Os pé que veio buscá,

Os mêrmo vêm lhe pagá,

Quando interá quinze dia”.

 

Na hora que foi saindo

O cabra Mané José,

Desconfiança sentindo,

A minha esposa Raqué,

Pra ele não precebê,

Veio logo me dizê,

Baixinho, com a voz fraca,

Como quem faz um cuchicho:

“Malaquia, aquele bicho

Talvez te passe na maca!”

 

O que a muié me dizia

Foi dito e feito, patrão!

Quando interou quinze dia,

O cabra não chegou, não,

Desonrou o trato que fez

E eu fui atrás do freguez,

Daquele peste ladrão.

Era mió não tê ido,

Pruquê não tinha sofrido

A maió decepção.

 

Andei atrás do imbruião,

Rua arriba, rua abaxo

Dizendo com os meu botão:

“Miserave, eu hoje te acho!”

Já tava perdendo a fé,

Quando vi Mané José

Na sala de um botequim,

Numa banca de bebida,

Com sua cara lambida

E o jeito de muié ruim.

 

Quando eu vi Mané José,

Foi me esquentando as urêia,

Da cabeça até nos pé,

Fugiu-me o sangue das vêia

E eu disse: “Seu voz de gato!

Você quebrou nosso trato,

Vagabundo sem futuro!

Me diga se já tá pronto

Os meu quatrocento conto,

Que você tomou, a juro!”

 

E o cabra me respostou:

“Tá doido, seu Malaquia?

Juro por Nosso Senhô

Não lhe devo esta quantia”.

E, depois de risingá,

Negá, negá e negá,

Dizendo que não devia,

Me chamou, na mesma hora,

Pra eu contá minha históra,

Dentro da delegacia.

 

Depois daquele chamado,

Eu tive grande alegria,

Pruquê o senhô delegado,

Há tempo, me conhecia,

Mas lá na repartição,

Ele não me deu tenção,

Do meu dito não deu fé,

Fez um papé muito preto,

Puxando brasa pro espeto

Do cabra Mané José.

 

Eu disse: seu delegado,

Seu Mané José, um dia,

Chegou alegre e vexado,

Lá na minha moradia,

E eu lhe imprestei um dinhêro,

Quatrocento mil cruzêro,

Toda minha inconomia.

O trato já se findou

E hoje aqui ele jurou

Que não deve esta quantia.

 

Pra juntá este dinhêro,

Que tem seu Mané José,

Eu passei um ano intêro

Mais Raqué, minha muié,

Trabaiando todo dia

E fazendo inconomia,

Com o maió sofrimento.

Com aquele capitá

O meu prano era comprá

Meia duza de jumento.

 

Sei que o senhô delegado

Conhece bem o meu tipo,

Eu sou munto acreditado,

Dentro deste municipo,

Nunca fiz um papé ruim.

E ele respondeu pra mim:

“ – Para provar a verdade,

Sem testemunha não presta,

Isto de palavra honesta

Foi coisa da antiguidade”.

 

Ali, o cabra safado

Falou com estupidez:

“ – Munto bem, seu delegado,

Gostei do seu português,

E o senhô, seu Malaquia,

Me cobrando esta quantia,

Tá manchando o meu conceito,

É um grande atrevimento;

Se quisé comprá jumento,

Vá precurá ôtro jeito.

 

Eu nunca dei prejuízo,

Sou um cidadão de bem

E pra vivê não preciso

De dinhêro de ninguém.

A sua falsa cobrança

Prova a sua inguinorança,

É um caso de prisão.

Eu devia processá

Porém, vou lhe perdoá,

Eu tenho um bom coração”.

 

Seu moço, basta que eu toque

Nisto que tou lhe falando

Pra muié sinti um choque.

Ói Raqué, ali, chorando!

“Não chore não, Raquézinha!

Vá lá pra sua cozinha

Se esqueça daquela praga,

Daquela infeliz desgraça.

Destá, que a sua trapaça,

Lá nos inferno ele paga!”

 

Meu senhô, vou lhe pedi

Não me chame inguinorante,

Mas, por favô, quêra uvi,

A históra inda vai adiante,

Pois o nosso ingrato mundo

Cria certos vagabundo

Da mais baxa natureza:

O senhô inda não viu

Até em que grau subiu

Aquela sem-vergonheza.

 

Depois que o Diabo tramou

Aquela feia injustiça,

Lá da cidade azulou,

Sem mais ninguém tê notiça.

E o tempo foi se passando

E foi gastando, gastando

Aquela negra impressão

Que eu tinha do condenado,

Eu já tava miorado

Da minha decepção.

 

Porém, o prope inocente

Não tem sossêgo compreto,

O Diabo, com seus argente,

Não dêxa ninguém tá queto.

Eu, certa vez, resorvi

E um dia saí daqui,

Fui batê na capitá;

Não fui visitá parente,

Fui à capitá, somente,

Vê as beleza do má.

 

Pois, mesmo sem tê estudo

Sei que o má de tudo tem:

Ele é brando, ele é sisudo

E tanto vai como vem,

Tem de tudo uma parcela;

É das beleza mais bela

Das obra do Criadô.

O má representa briga,

Prazê, tristeza, cantiga,

Gemido, sodade e amô.

 

Eu fui, com grande alegria,

Vê as beleza do má.

E naquele mêrmo dia

Que cheguei na capitá,

Indo armunçá num hoté,

Lá eu vi Mané José

Trabaiando de garçon.

Naquela hora, seu moço,

Eu senti tanto sobroço,

Que a fala mudou de tom.

 

Eu tinha pedido um prato,

Quando avistei o bandido.

Pensei que aquele gaiato

Não tinha me conhecido,

Mas tive sorte mesquinha.

Eu ainda bem não tinha

Nem começado a comê

Meu prato de refeição,

A cuié caiu da mão,

Quando uvi ele dizê:

 

“Como vai, seu Malaquia?

Se o senhô qué se hospedá,

Vai tê toda garantia,

Este é o hoté populá,

Onde a honestidade mora.

Tem de tudo, a toda hora,

É esta a pensão que agrada

A todo e quarqué freguez

E o quarto número 6

Tem cama desocupada”.

 

Senti medonha surpresa,

Fiquei danado da vida,

Fastei pro meio da mesa

O meu prato de comida,

Fiz depressa o pagamento

E, nesse mesmo momento,

Sem uma palavra dá,

Saí pra rua apressado,

Como quem tinha escutado

A mãe do Diabo rinchá.

 

Fiquei todo deferente,

Fiquei leso, fiquei tonto.

Veio logo em minha mente

Os meus quatrocento conto,

Que aquele cão deu sumiço.

Como a dô de um panariço,

Que se espreme o carnegão,

O meu coração doeu

E, de novo, apareceu

A minha decepção.

 

E hoje, até mêrmo drumindo,

Vejo, quando tou sonhando,

O Mané José mentindo

E o delegado apoiando.

Ôtras vez, mesmo acordado,

Fico meio amalucado,

Pruquê escuto, argum dia,

A voz daquele atrivido

Zuando nos meus uvido:

“Como vai, seu Malaquia?!” 

 


Poemas e Poesias quarta, 18 de maio de 2022

A VELHA MANGUEIRA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

A VELHA MANGUEIRA

Olegário Mariano

 

 

 

No pátio da senzala que a corrida
Do tempo mau de assombrações povoa,
Uma velha mangueira, comovida,
Deita no chão maldito a sombra boa.

Tinir de ferros, música dorida,
Vago maracatu no espaço ecoa...
Ela, presa às raízes, toda a vida,
Seu cativeiro, em flores, abençoa...

Rondam na noite espectros infelizes
Que lhe atiram, dos galhos às raízes,
Em blasfêmias de dor, golpes violentos.

E, quando os ventos rugem nos espaços,
Os seus galhos se torcem como braços
De escravos vergastados pelos ventos.


Poemas e Poesias terça, 17 de maio de 2022

I - PRAÇA DA REPÚBLICA (POEMA DO PAULISA MENOTTI DEL PICCHIA)

I - PRAÇA DA REPÚBLICA

Menotti Del Picchia

 

 

 

Os chorões lavaram seus cabelos verdes
nas piscinas de cimento
dentadas de rochedos feitos por marmoristas
e desenhados por Debugras

Há peixes dispépticos que só comem pão-de-ló
servidos pelos dedos lunares das Salomés-normalistas
que sabem de cor as façanhas de Tom-Mix e Tiradentes.

As astúrias cortaram suas tranças "à la garçonne"
e ouvem lições de geometria no espaço
de sábios buxos cubistas...

Praça da República cheia de mulheres públicas
de detritos humanos, como um porto cosmopolita onde os táxis atracam,
velhas catraias urbanas
que vogam nos canais de asfalto das alamedas.

Álvares de Azevedo, o último Romântico,
condenado às galés da imortalidade,
cospe na praça noturna,
do alto de sua herma,
o seu desdém de bronze.


Poemas e Poesias segunda, 16 de maio de 2022

EU ESCREVI UM POEMA TRISTE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

EU ESCREVI UM POEMA TRISTA

Mário Quintana

 

 

 

Eu escrevi um poema triste

E belo, apenas da sua tristeza.

Não vem de ti essa tristeza

Mas das mudanças do Tempo,

Que ora nos traz esperanças

Ora nos dá incerteza...

Nem importa, ao velho Tempo,

Que sejas fiel ou infiel...

Eu fico, junto à correnteza,

Olhando as horas tão breves...

E das cartas que me escreves

Faço barcos de papel!


Poemas e Poesias domingo, 15 de maio de 2022

SEU NOME (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS, NA VOZ DE SOCORRO LIRA) VÍDEO

 

 

 


Poemas e Poesias sábado, 14 de maio de 2022

CHAMA E FUMO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CHAMA E FUMO

Manuel Bandeira

 

 

 

Amor - chama e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gôzo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama e, depois, fumaça...

Tanto êle queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo êle é gôsto e graça.
Amor, fogueira linda a arder!
Amor - chama e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas, tem de ser...
Amor?... - chama e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...


Poemas e Poesias sexta, 13 de maio de 2022

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

Manoel de Barros

 

 

 

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Poemas e Poesias quinta, 12 de maio de 2022

FORMOSA (POEMA DO PERNAMBUCANO MACIEL MONTEIRO)

FORMOSA

Maciel Monteiro

 

 

 

Formosa, qual pincel em tela fina
Debuxar jamais pode ou nunca ousara;
Formosa, qual jamais desabrochara
Na primavera a rosa purpurina;

Formosa, qual se a própria mão divina
Lhe alinhara o contorno e a forma rara;
Formosa, qual jamais no céu brilhara
Astro gentil, estrela peregrina;

Formosa, qual se a natureza e a arte,
Dando as mãos em seus dons, em seus lavores
jamais soube imitar no todo ou parte;

Mulher celeste, oh! anjo de primores!
Quem pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem pode amar-te, sem morrer de amores?!


Poemas e Poesias quarta, 11 de maio de 2022

LÍNGUA À BRASILEIRA (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

LÍNGUA À BRASILEIRA

Luís Turiba

 

 

 

Ó órgão vernacular alongado
Hábil áspero ponteado
Móvel Nobel ágil tátil
Amálgama lusa malvada
Degusta deglute deflora
Mas qual flora antropofágica
Salva a pátria mal amada
 
Língua-de-trapo Língua solta
Língua ferina Língua douta
Língua cheia de saliva
Saravá Língua-de-fogo e fósforo
Viva & declinativa
Língua fônica apócrifa
Lusófona & arcaica
Crioula iorubáica
 
Língua-de-sogra Língua provecta
Língua morta & ressurecta
Língua tonal e viperina
Palmo de neolatina
Poema em linha reta
Lusíadas no fim do túnel
Caetano não fica mudo
Nem “Seo” Manoel lá da esquina
 
Por ti Guesa errante, afro-gueixa
O mar se abre o sol se deita
Por Mários de Sagarana
Por magos de Saramago
Viva os lábios!
Viva os livros!
Dos Rosas Campos & Netos
Os léxicos, Andrades, os êxtases
Toda a síntese da sintaxe
Dos erros milionários
Desses malandros otários
Descartáveis, de gorjetas.
 
Língua afiada a Machado
Afinal, cabeça afeita
Desafinada índia-preta
Por cruzas mil linguageiras
A coisa mais Língua que existe
É o beijos da impureza
Desta Língua que adeja
Toda a brisa brasileira
Por mim,
              Tupi,
                       Por tu Guesa

Poemas e Poesias terça, 10 de maio de 2022

OLHOS TRISTES (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

OLHOS TRISTES

Luís Edmundo

 

 

 

 

Olhos tristes, vós sois com dois sóis num poente,

Cansados de luzir, cansados de girar,

Olhos de quem andou na vida alegremente

Para depois sofrer, para depois chorar.

 

Andam neles agora a vagar lentamente,

Como as velas das naus sobre as águas do mar,

Todas as ilusões do vosso sonho ardente.

Olhos tristes, vós sois dois monges a rezar.

 

Ouço ao vos ver assim, tão cheios de humildade,

Marinheiros cantando a canção da saudade

Num coro de tristeza e de infinitos ais.

 

Olhos tristes, eu sei vossa história sombria

E sei quando chorais cheios de nostalgia,

O sonho que passou e que não torna mais.


Poemas e Poesias segunda, 09 de maio de 2022

AS MULHERES - RECORDAÇÕES DE UM VELHO (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

AS MULHERES
(RECORDAÇÕES DE UM VELHO)

Júlio Dinis

 

Tenho oitenta anos contados Dos meus cabelos nevados Bem poucos me restam
já;
Tem-me ido até agora a vida
D’amor pr’amor impelida,
Até quando… Deus dirá.

Tinha dez anos apenas, E já nas tardes serenas,
Ao declinar do calor,
Me agitava o pensamento
Como agita as flores o vento
Uma idéia só — amor.

Na aldeia em que eu residia
Defronte de mim vivia
Quem tal amor me inspirou.
Uma criança era ainda,
Porém nunca flor tão linda
Os olmedos enfeitou.

Uma manhã, como a visse
Junto de mim, eu lhe disse
Coisas que me lembram mal;
Ela, ao passo que me ouvia,
Baixava os olhos, sorria…
E deu-me um beijo, afinal

E desde então por diante
Fiquei sendo seu amante
E fui amado também.
À sombra dos arvoredos, Dizíamos mil segredos,
Que nunca entendemos bem.

Tempos assim decorreram, Felizes tempos que eram!
‘Té que pra cidade eu vim. Chorámos na despedida
Mas supondo-se esquecida, Ela esqueceu-se de mim.

Outra vida, outros amores
Da cidade entre os fulgores,
Tinha quinze anos, amei.
Era uma virgem trigueira
Olhos negros, prazenteira,
Doido por ela fiquei.

Os livros abandonava, Horas e horas passava Com ela, sem o sentir; Meu tio
franzia a testa, Porém, à hora da sesta, Costumava ele dormir.

Ia então pra junto dela, Chamava-lhe meiga, bela,
E o que é costume chamar. Ela ouvia-me, corava,
Na costura continuava
E deixava-me falar.

Duma vez, pedi-lhe um beijo, Ela mostrou algum pejo,
Mas enfim… sempre mo deu ; Atrás deste, outros vieram
E o bem que me eles souberam
Nunca depois me esqueceu.

Mas numa noite de festa, Para mim noite funesta,
Todo este amor se extinguiu; Toda esta nossa ternura,
Que eu julguei de tanta dura, A um capricho sucumbiu.

Todos no baile dançavam, E às valsas se entregavam Com furor;
faltava eu só. Como dançar não sabia, Para um canto me
metia, Triste que fazia dó ;

Ora, é coisa bem sabida, Que a dança cá nesta vida,
Não se dispensa a um rapaz; Adeus amores, se não dança…
Neste mundo mais alcança Quem mais cabriolas faz.

Por não dançar, fui deposto E, como após um Sol-posto,
Se levanta um novo Sol.
O que pr a par a tirara
Logo ali me arremessara
Dos esquecidos para o rol.

Fiquei livre; mas em brev e
A minha cabeça leve
Me envolveu noutra prisão.
Estava escrito em meu destino
Que havia de errar sem tino
De afeição em afeição.

Tinha vinte anos. Um dia Pra ver se me distraía Num teatro me meti;
Mal no palco os olhos prego Que perdi o meu sossego Desde logo conheci.

Estremeci de surpresa
Ao contemplar a beleza
Com que brilhava uma actriz!
Perdido fiquei a vê-la!
Nunca vi mulher tão bela!
Nem uns olhos tão gentis!

Cai o pano, as palmas soam
E por toda a parte ecoam
De poetas mil canções.
Tudo isso me revela
Que a muitos os olhos dela
Incendiaram os corações.

Abandono a sala, corro, Quero vê-la, senão morro, Quero ver
os olhos seus, Quero dizer-lhe que a adoro
E que em chamas me devoro, Contar-lhe os tormentos meus.

Entro no palco, perdido, Doido de todo… varrido, Vejo-a, lanço-me
a seus pés.
Disse amá-la como um louco, E, como achasse isto pouco, Repeti-lho
muita vez.

Ela olhou-me com um sorriso, Como nem no paraíso
Um sorriso assim se vê ;
— «Se tem um amor como o pinta,
Que o futuro o não desminta.» Me disse ela. — E tenha fe.

Voltei para casa exaltado Quase meio embriagado, Coisas que o amor produz.
Mas dormir debalde tento, Impede-me o pensamento, Toda a noite olho não
pus.

Já quarenta anos eu tinha Quando, por desgraça minha, Tornei
no engodo a cair;
Foi uma rica matrona
Que me meteu nesta fona
Donde me custou a sair.

Viúva de três maridos, Tinha intentos decididos
De ainda mais outro matar.
Se a pensar nisto me ponho,
Um destino tão medonho
Me faz hoje arrepiar!

Mas enfim o amor é cego
E amava-a, não o nego,
A razão não a sei eu.
Por isso talvez influísse
Pra cair nesta doidice
O que ela tinha de seu.

Fiz-lhe um dia três sonetos, Falei-lhe nos meus afectos, Ela ao lê-los
me sorriu.
E, respondendo-me em presa, Prometeu ser minha esposa
E um beijo me permitiu.

Com ela as tardes passava, Em sua casa merendava
Chá com leite e pão-de-ló. Jogava-se à noite o
quino
E aturava-lhe o menino
Com paciência de Job.

Nada mais apetecendo, Assim íamos vivendo
Um com outro em santa paz; Já se marcava o momento Para o nosso casamento…
Quando tudo se desfez.

Foi o caso que num dia
Chegou, vindo da Baía, E lhe lançou o anzol,
Um ricaço brasileiro,
Que cheirando-lhe a dinheiro,
Casou ele e pôs-me ao sol.

Causou-me um vivo desgosto
Ver-me assim, sem mais, deposto
Por este sensaborão…
Mas então? Tinha dinheiro,
Em brev e o vi Conselheiro
E pouco depois Barão.

Abandonar os amores
Que se pra os mais só tem flores
Eu por mim poucas lhe vi.
Jurei, mas quis meu fadário,
Que a cruz levasse ao Calvário,
Que remédio obedeci.

Já no inverno das idades Eu entrava, e as verdades, Que então
a vida nos diz,
Pra mim não se revelavam, Os cabelos me nevavam Quando eu outra asneira
fiz.

E desta vez o objecto Do meu sensível afecto E das minhas afeições
Era uma velha provecta E que já inha uma neta
Capaz de inspirar paixões.

Chamei-lhe rola, gazela, Comparei os olhos dela Com as estrelas dos céus.
Ela, como bem-criada,
Não só não ficou calada
Mas disse o mesmo dos meus

Uma noite, à luz da Lua Eu… beijei-lhe a face sua A sua enrugada
tez.
E ela a modo que gostava, Mostrou que não estranhava, Pois nem corada
se fez.

Tinha, sim, ela um defeito? Mas no mundo, amor perfeito Só em flor,
é que se vê.
É que, por mais que eu teimava,
Nunca ela se deixava
De me tratar por você!

Era destas formosuras
Que é melhor ver às escuras
Que na presença de luz.
Quantas mais trevas a cobrem
Mais dotes se lhe descobrem
E mais amor nos seduz.

Já o Verão principiava
E com ele começava
O tempo dos arraiais;
Quis que a uma acompanhasse
E como tal recusasse
Deixou-me pra nunca mais.

Se há caprichos nesta idade, Como é que havê-los não
há-de Na estação juvenil?
A mulher é caprichosa
Como é fragrante a rosa
E florido o mês de Abril.

Livre, fiquei com a rosa Livre, como a mariposa Como a rã pelos pauis;
Fiquei livre como os ventos
Que espalham nuvens aos centos
Pelos espaços azuis.

Já do que tendes ouvido. Podeis ver como Cupido Se fez comigo taful.
E, com um gênio assim feito, Para viver tinha jeito
Num serralho de Istambul.

E pr a que tudo vos conte Dir-vos-ei que aqui defronte Descobri esta manhã
Uma velhinha sem dentes
Muito rica e sem parentes 1
Vou requestá-la amanhã.

Porém eu cá já estou certo
Que, apesar dos cem bem perto,
Caprichos ela há-de ter.
Mas, embora, paciência,
Da mulher é essa a essência…
O que se lhe há-de fazer?

E mal pr a eles iria
Se lhes desse na mama
Seus caprichos desterrar.
Crede, meus alvos cabelos
Um dos seus dotes mais belos
É mesmo esse caprichar.


Poemas e Poesias domingo, 08 de maio de 2022

O APITO DO PASSADO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ CHAGAS)

O APITO DO PASSADO

José Chagas

 

 

 

O Mearim derrama na distância
uma água que em sonhos nos invade,
como fio invisível que se lance a
separar em duas a cidade.

E essa água vem banhar sem que se canse a
vida inteira que no rio nade,
porquanto água de amor que lava infância
lava também velhice e mocidade.

Mearim — rio velho e rio novo,
alegria e aflição de um mesmo povo —
um mar se afoga nos mistérios teus.

Mas preservas em ti, para Pedreiras,
vibrando no ar, o apito das primeiras
lanchas que nos deixaram seu adeus.

 


Poemas e Poesias sábado, 07 de maio de 2022

POEMA À PÁTRIA (POEMA ALAGOANO JORGE DE LIMA)

POEMA À PÁTRIA

Jorge de Lima

 

 

 

Ó grande
país
Tu aderiste também.
Teus urubus são inquietados
Nos teus ares altíssimos pelos aviões.
Nos teus céus os anjos já não podem solfejar,
Sufocados de fumaça, importunados pelo pessoal
Do Limbo.

Tu vais ficar irremediavelmente
Toda a América
Irremediavelmente gêmeo,
Irremediavelmente comum.


Poemas e Poesias sexta, 06 de maio de 2022

O RELÓGIO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O RELÓGIO

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

Ao redor da vida do homem

há certas caixas de vidro,

dentro das quais, como em jaula,

se ouve palpitar um bicho.

 

Se são jaulas não é certo;

mais perto estão das gaiolas

ao menos, pelo tamanho

e quadradiço de forma.

 

Uma vezes, tais gaiolas

vão penduradas nos muros;

outras vezes, mais privadas,

vão num bolso, num dos pulsos.

 

Mas onde esteja: a gaiola

será de pássaro ou pássara:

é alada a palpitação,

a saltação que ela guarda;

 

e de pássaro cantor,

não pássaro de plumagem:

pois delas se emite um canto

de uma tal continuidade

 

que continua cantando

se deixa de ouvi-lo a gente:

como a gente às vezes canta

para sentir-se existente.

 

O que eles cantam, se pássaros,

é diferente de todos:

cantam numa linha baixa,

com voz de pássaro rouco;

 

desconhecem as variantes

e o estilo numeroso

dos pássaros que sabemos,

estejam presos ou soltos;

 

têm sempre o mesmo compasso

horizontal e monótono,

e nunca, em nenhum momento,

variam de repertório:

 

dir-se-ia que não importa

a nenhum ser escutado.

Assim, que não são artistas

nem artesãos, mas operários

 

para quem tudo o que cantam

é simplesmente trabalho,

trabalho rotina, em série,

impessoal, não assinado,

 

de operário que executa

seu martelo regular

proibido (ou sem querer)

do mínimo variar.

 

A mão daquele martelo

nunca muda de compasso.

Mas tão igual sem fadiga,

mal deve ser de operário;

 

ela é por demais precisa

para não ser mão de máquina,

a máquina independente

de operação operária.

 

De máquina, mas movida

por uma força qualquer

que a move passando nela,

regular, sem decrescer:

 

quem sabe se algum monjolo

ou antiga roda de água

que vai rodando, passiva,

graçar a um fluido que a passa;

 

que fluido é ninguém vê:

da água não mostra os senões:

além de igual, é contínuo,

sem marés, sem estações.

 

E porque tampouco cabe,

por isso, pensar que é o vento,

há de ser um outro fluido

que a move: quem sabe, o tempo.

 

Quando por algum motivo

a roda de água se rompe,

outra máquina se escuta:

agora, de dentro do homem;

 

outra máquina de dentro,

imediata, a reveza,

soando nas veias, no fundo

de poça no corpo, imersa.

 

Então se sente que o som

da máquina, ora interior,

nada possui de passivo,

de roda de água: é motor;

 

se descobre nele o afogo

de quem, ao fazer, se esforça,

e que ele, dentro, afinal,

revela vontade própria,

 

incapaz, agora, dentro,

de ainda disfarçar que nasce

daquela bomba motor

(coração, noutra linguagem)

 

que, sem nenhum coração,

vive a esgotar, gota a gota,

o que o homem, de reserva,

possa ter na íntima poça.


Poemas e Poesias quinta, 05 de maio de 2022

CONFISSÃO INICIAL (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

CONFISSÃO INICIAL

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Às vezes, tenho a impressão
de que não devia publicar estas palavras
nascidas para viverem em surdina
ao teu ouvido.

Às vezes penso que deveria deixar no limbo
do coração
estas palavras de ti e para ti
e que tomaram imprevistamente
a forma de canção.

Estas palavras que te colhem toda
e te deixam nua,
e me dão a impressão de que também
tenho nu o coração, em plena rua.


Poemas e Poesias quarta, 04 de maio de 2022

DO AMOR CONTENTE E MUITO DESCONTENTE - 6 (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DO AMOR CONTENTE E MUITO DESCONTENTE - 6

Hilda Hilst

 

 

 

Tudo é triste. Triste como nós
Vivos ausentes, a cada dia esperando
O imutável presente.
Tudo é triste. Triste como eu
Antiga de carícias
De olhos e lamentos
Lenta no andar, lenta
Irmã
De algum canto de ave
De silêncio na nave, irmã.

Vamos partir, amor.
Subir e descer rios
Caminhar nos caminhos
Beijar
Amar como feras
Rir quando vier a tarde.
E no cansaço

Deitaremos imensos
Na planície vazia de memórias.


Poemas e Poesias terça, 03 de maio de 2022

ANOITECER NA PRAIA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

ANOITECER, NA PRAIA

Hermes Fontes

 

 

 

Junto ao mar, as crianças
são mais alegres; as mulheres são
mais harmoniosas,
mais naturais.
E, enquanto a ondulação
das águas marulhosas
arma, em seu ritmo, imprevistas danças
isócronas, mas sempre desiguais;
e a escumilha na praia arma frouxéis de rosas,
efêmeros, sutis, quase irreais;
e as crianças, à beira da água, armam castelos
na úmida areia,
sob os olhos da miss, ou da ama que as ladeia,
e o distraído encanto dos papais;
e os velhos, em seus trajos mais singelos,
sob os toldos velados,
repousados,
sorriem cachimbando,
recordando
coisas imemoriais, —
cada mulher que passa é atávica sereia;
é atávico tritão
cada atleta que emerge à ondulação
da correnteza rejuvenescente;
é atávico tritão
aquele nadador adolescente
ora a subordinar o mar fremente
que resfolega e ondeia,
ao ritmo do seu próprio coração...


Poemas e Poesias segunda, 02 de maio de 2022

CUBISMO(POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

CUBISMO

Guilherme de Almeida

 

 

Um Arlequim feito de cubos
equilibrados:
trinta losangos arranjados
sobre dois tubos.
— Ele talvez
jogue xadrez...

No halo, que a lâmpada tranquila
rasga, de cima,
esse Arlequim de pantomima
oscila, oscila,
e vem... e vai...
e quase cai...

Mas entra alguém: é uma silhueta
que espia e passa.
Seu riso é um fruto sob a graça
da mosca preta
— É uma mulher
como qualquer...

Um gesto só lânguido e doce:
e, num instante,
Dom Arlequim, o petulante,
esfarelou-se...
— Todo Arlequim
é mesmo assim...


Poemas e Poesias domingo, 01 de maio de 2022

ELEGIA (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

ELEGIA

Guerra Junqueiro

 

 

 

A alegria da vida, essa alegria d'oiro
A pouco e pouco em mim vai-se extinguindo, vai...
          Melros alegres de bico loiro,
          Ó melros negros, cantai, cantai!

Ando lívido, arrasto o pobre corpo exangue,
Que era feito da luz das claras madrugadas...
          Rosas vermelhas da cor do sangue,
          Rosas abri-vos às gargalhadas!

Limpidez virginal, graça d'Anacreonte,
Mimo, frescura, força, onde é que estais?... não sei!...
          Ó águas vivas, águas do monte,
          Ó águas puras, correi, correi!

Eu sinto-me prostrado em lânguido desmaio,
E a minha fronte verga exausta para o chão...
          Cedros altivos, sem medo ao raio,
          Cedros erguei-vos pela amplidão!


Poemas e Poesias sábado, 30 de abril de 2022

ENCANTAMENTO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

ENCANTAMENTO

Gilka Machado

 

 

A Francisco Alves
- O perfeito intérprete da canção brasileira

Canta,
que tua voz
ardente e moça
faz com que eu sinta a meiguice
das palavras que a vida não me disse.

Para te ouvir melhor
abro as janelas
e fico a sós
com tua voz
sonhando
que a noite está cantando
pelos lábios de fogo das estrelas.

Canta,
boca febril que não conheço,
que nunca me falaste e que me dizes tudo!...

Ave estranha
de garras de veludo,
entoa para mim
uma canção sem fim!

Canta,
que ao teu canto vejo
em tudo
quietude atroz
de insatisfeito desejo
Canta,
— em cada ouvido há um beijo
para tua linda voz.


Poemas e Poesias quinta, 28 de abril de 2022

SERRANILHA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

SERRANILHA

Gil Vicente

 

 

 

A serra é alta, fria e nevosa;
vi venir serrana gentil, graciosa.

Vi venir serrana, gentil, graciosa,
cheguei-me per'ela com grã cortesia.

Cheguei-me per'ela de grã cortesia,
disse-lhe: senhora, quereis companhia?

Disse-lhe: senhora, quereis companhia?
Disse-me: escudeiro, segui vossa via.


Poemas e Poesias quarta, 27 de abril de 2022

ADAMAH (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

ADAMAH

Francisca Júlia

 

 

 

Homem, sábio produto, epítome fecundo

Do supremo saber, forma recém-nascida,

Pelos mandos do céu, divinos, impelida,

Para povoar a terra e dominar o mundo;

 

Homem, filho de Deus, imagem foragida,

Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,

Da terrena substância, em que nasceu, oriundo,

Para ser o primeiro a conhecer a vida;

 

Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada

Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas

De pássaros saudando a primeira alvorada,

 

Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas

O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada

No primeiro silêncio e nas primeiras trevas...


Poemas e Poesias terça, 26 de abril de 2022

ANSEIOS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

ANSEIOS

Florbela Espanca

 

À minha Júlia

No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha que cais!

A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais,
Não valem o prazer duma saudade!

Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!...

Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar...


Poemas e Poesias segunda, 25 de abril de 2022

NO CORPO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NO CORPO

Ferreira Gullar

 

 

De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama.
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.


Poemas e Poesias domingo, 24 de abril de 2022

COMEÇA A IR SER DIA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

COMEÇA A IR SER DIA

Fernando Pessoa

 

 

 

Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.


Poemas e Poesias sábado, 23 de abril de 2022

OUVIDOS DE ORVALHO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

OUVIDOS DE ORVALHO

Fabrício Carpinejar

 

 

 

Na eternidade, ninguém se julga eterno.
Aqui, nesta estada, penso que vou durar
além dos meus anos, que terei
outra chance de reaver o que não fiz.
Se perdoar é esquecer, me espera o pior:
serei esquecido quando redimido.

Não me perdoes, Deus. Não me esqueças.
O esquecimento jamais devolve seus reféns.

A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.

O fogo é uma noz que não se quebra com as mãos.
A voz vem do fogo, que somente cresce se arremessado.
Não há como recuar depois de arder alto.
Fui lançado cedo demais às cinzas.

Somos reacionários no trajeto de volta.
Quando estava indo ao teu encontro,
arrisquei atalhos e travessas desconhecidas.
Acreditei que poderia sair pela entrada.
Ao retornar, não improviso.

Minha conversão é pelo medo,
orando de joelhos diante do revólver,
sem volver aos lados,
na dúvida se é de brinquedo ou de verdade.

O vento faz curva. Não mexo nos bolsos,
na pasta e na consciência,
nenhum gesto brusco de guitarra,
a ciência de uma mira
e o gatilho rodando próximo
do tambor dos dentes.

Derramado em Deus, junto meu desperdício.

Vou te extraviando no ato de nomear.
Melhor seria recuar no silêncio.

Cantamos em coro como animais da escureza.
Os cílios não germinaram.
Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas,
estampas e ervas no peito.
Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto,
compondo esquina com a noite.

Cantar não é desabafo,
mas puxar os sinos
além do nosso peso,
acordando a cúpula de pombas.

Somos fumaça e cera,
limo e telha,
névoa e leme.
O inverno nos inventou.

Não importa se te escuto
ou se explodes meus ouvidos de orvalho:
morre aquilo que não posso conversar?

Ficarei isolado e reduzido,
uma fotografia esvaziada de datas.
Os familiares tentarão decifrar quem fui
e o que prosperou do legado.
Haverei de ser um estranho no retrato
de olhos vivos em papel velho.

Escrevo para ser reescrito.
Ando no armazém da neblina, tenso,
sob ameaça do sol.
Masco folhas, provando o ar, a terra lavada.
Depois de morto, tudo pode ser lido.

Vejo degraus até no vôo.
Tua violência é a suavidade.
Não há queda mais funda
do que não ser o escolhido,
amargar o fim da fila,
ser o que fica para depois,
o que enumera os amigos
pelos obituários de jornal,
o que enterra e se retrai no desterro,
esfacela a rosa ao toque
na palidez das pétalas e velas,
vistoriando cada ruga
e infiltração de heras entre as veias,
nunca adulto para compreender.

Não há nada de natural na morte natural.
Divorciar-se do corpo, tremer ao segurar
as pernas, acomodar-se no finito
de uma cama e deitar com o tumulto
que vem de um túmulo vazio.


Poemas e Poesias sexta, 22 de abril de 2022

GONÇALVES DIAS - AO PÉ DO MAR (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

GONÇALVES DIAS - AO PÉ DO MAR

Euclides da Cunha

 

 

 

Seu eu pudesse cantar a grande história,
Que envolve ardente o teu viver brilhante!…
Filho dos trópicos que – audaz gigante –
Desceste ao túmulo subindo à Glória!…

Teu túmulo colossal – nest’hora eu fito –
Altivo, rugidor, sonoro, extenso –
O mar!… O mar!… Oh sim, teu crânio imenso –
Só podia conter-se – no infinito…

E eu – sou louco talvez – mas quando, forte,
Em seu dorso resvala – ardente – Norte,
E ele espumante estruge, brada, grita.

E em cada vaga uma canção estoura…
Eu – creio ser tu’alma que, sonora,
Em seu seio sem fim – brava – palpita!…


Poemas e Poesias quinta, 21 de abril de 2022

TROVAS HUMORÍSTICAS - 13 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 13

Eno Teodoro Wanke

 

Espartilhado, sofrendo

Estoicamente a tortura

O B é um D resolvido

A reduzir a cintura


Poemas e Poesias quarta, 20 de abril de 2022

INGRATOS (POEMA DO CARIOCA D. PEDRO II!

INGRATOS

Dom Pedro II

 

 

 

Não maldigo o rigor da iníqua sorte,
Por mais atroz que fosse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade,
Quando a dous passos só estou da morte.

Do jogo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta variedade,
Que hoje nos dá contínua f'licidade
E amanhã nem — um bem que nos conforte.

Mas a dor que excrucia e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata,

É ver na mão cuspir a extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela pôs — outrora.


Poemas e Poesias terça, 19 de abril de 2022

O QUE É A VERDADE (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)

O QUE É A VERDADE

Dagmar Destêrro

 

 

 

Lancei a minha semente

na terra que conquistei.

Com cuidado e água crescente

aquele meu chão reguei.

 

Esperei com esperança

esse dia que chegou.

Fiz sorriso de criança

quando a plantinha vingou.

 

Retirei pedras pequenas,

pedras feitas de maldade;

com agudas pontas-penas,

arestas de falsidade.

 

Adubei com meu amor

o meu pedaço de terra;

pedaço pequeno, sei,

grande, porém, no que encerra.

 

Arranquei ervas daninhas,

afastei gestos diversos.

De manhã cantei modinhas.

A noite, disse meus versos.

 

Meu próprio sangue eu usei

para dar à planta alento.

Em muitas noite fiquei

vigilante e ao relento.

 

No meu chão está plantada.

Lutou, cresceu, prometeu.

Por muitos foi sufocada,

mas reagiu e venceu.

 

Minha vida é aquele chão,

pedaço da humanidade.

E a semente, simples grão,

é minha própria verdade.


Poemas e Poesias segunda, 18 de abril de 2022

MATER ADMIRABILIS (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

MATER ADMIRABILIS

Da Costa e Silva

 

 

 

A vida amarga e triste é doce e linda,
Se temos mãe, e em sua imagem vemos
Os transportes sublimes e supremos
Do amor, que se transmite, mas não finda.

Mãe! se te quis com todos os extremos,
Hoje te quero muito mais ainda;
Pois amamos quanto mais sofremos
E a minha dor vai-se tornando infinda.

Se te amei, na ventura, na desgraça
As tuas mãos de lágrimas inundo,
Porque o afeto os limites ultrapassa.

É mais alto, mais vasto, mais profundo,
Desde que vi meus filhos sem a graça
Do melhor bem que se possui no mundo.


Poemas e Poesias domingo, 17 de abril de 2022

PAPOULAS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

PAPOULAS

Cruz e Sousa

 

 

Assim loura és mais formosa
Do que se fosses trigueira:
Corpo de eflúvios de rosa
Com esbeltez de palmeira.

Vestida de cor da aurora
Leve dos fluidos da graça,
És uma estrela sonora
Que, em sonhos, pelo éter passe.

Resplandece em teu cabelo
Um fulgor de sol dourado,
Que só de senti-lo e vê-lo
Fica tudo iluminado.

Do teu branco leque aberto
Que lembra uma asa de garça,
Aspiro um perfume incerto,
Talvez a tua alma esparsa.

Num resplendor de madona
E altivez de corça arisca
Surges da luz entre a zona
Com quebrantos de odalisca.

Que venha o duque normando
De castelos escoceses
Com seu ar bizarro e brando
Amar-te os olhos ingleses.

E entre aromas e frescores
E revoadas de abelhas,
Como num campo de flores
Que esse olhar vibre centelhas.

Que cantem na tua boca
As alegrias radiadas,
Numa ideal rajada louca
De vôos de passaradas.

Que como os astros no espaço,
Teu encanto resplandeça...
Com pelúcias no regaço
E asas de ave na cabeça.

E que os teus dois seios puros
Que o amor fecundando beija
Fiquem cheios e maduros
Com dois bicos de cereja.

 


Poemas e Poesias sábado, 16 de abril de 2022

O PASSADO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

 

 

O PASSADO

Cora Coralina

 

O
salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
"Clube Literário Goiano".
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.

Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.

D. Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.

O Passado...

Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do passado.


Poemas e Poesias sexta, 15 de abril de 2022

LXXXI (SONETOS) JUNTO DESTA JANELA CONTEMPLANDO (SONETO DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

LXXXI (SONETOS) JUNTO DESTA JANELA CONTEMPLANDO 

Cláudio Manuel da Costa

 

Junto desta corrente contemplando
Na triste falta estou de um bem que adoro;
Aqui entre estas lágrimas, que choro,
Vou a minha saudade alimentando.

Do fundo para ouvir-me vem chegando
Das claras hamadríades o coro;
E desta fonte ao murmurar sonoro,
Parece, que o meu mal estão chorando.

Mas que peito há de haver tão desabrido,
Que fuja à minha dor! que serra, ou monte
Deixará de abalar-se a meu gemido!

Igual caso não temo, que se conte;
Se até deste penhasco endurecido
O meu pranto brotar fez uma fonte.


Poemas e Poesias quinta, 14 de abril de 2022

ESPLÊNDIDA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

ESPLÊNDIDA

Cesário Verde

 

 

 

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores,
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicolores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu "landau" forrado de cetim;
E esses negros corcéis, que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon,
Se a vissem ficariam ofuscadas.
Tem a altivez magnética e o bom tom
Das cortes depravadas.

É clara como os "pós à marechala"
E as mãos, que o Jock Clube embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
Um amante, em Bengala.

É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar,
Atrai como a voragem!

Os lacaios vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés
De forma aprimorada.

E eu vou acaopanhando-a, corcovado.
No "trottoir", como um doido, em convulsões
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!

 


Poemas e Poesias quarta, 13 de abril de 2022

MOTIVO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

MOTIVO

Cecília Meireles

 

 

 

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


Poemas e Poesias segunda, 11 de abril de 2022

MOCIDADE E MORTE (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

MOCIDADE E MORTE

Castro Alves

 

 

 

E perto avisto o porto
Emmenso, nebuloso e sempre noite
Chamado — Eternidade.
   (Laurindo.)

Lasciate ogni speranza, voi ch′entrate
   (Dante.)



Oh! eu quero viver, beber perfumes
Na flôr silvestre que embalsama os ares;
Ver minh′alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n′amplidão dos mares.
No seio da mulher ha tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo ha tanta vida...
— Arabe errante, vou dormir á tarde
Á sombra fresca da palmeira erguida.

Mas uma voz responde-me sombria:
— Terás o somno sob a lagea fria.

Morrer... quando este mundo é um paraiso,
E a alma um cysne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar á tona das espumas.
Vem! formosa mulher — camelia pallida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh′alma é a borboleta que espaneja
O pó das azas lucidas, douradas...

E a mesma voz repete-me terrivel,
Com gargalhar sarcastico: — Impossivel!

Eu sinto em mim o borbulhar do genio;
Vejo além um futuro radiante:
Avante! — brada-me o talento n′alma
E o echo ao longe me repete — Avante!
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bençãos dorme a gloria!
Após — um nome do universo n′alma,
Um nome escripto no Pantheon da historia.

E a mesma voz repete funeraria:
— Teu Pantheon — a pedra mortuaria!

Morrer — é ver extincto dentre as nevoas
O phanal, que nos guia na tormenta:
Condemnado — escutar dobres de sino,
— Voz da morte, que a morte lhe lamenta.

Ai! morrer — é trocar astros por cirios,
Leito macio por esquife immundo,
Trocar os beijos da mulher — no visco
Da larva errante no sepulchro fundo.

Ver tudo findo... só na lousa um nome
Que o viandante a perpassar consome.

E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrivel me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cypreste, qu′inda mesmo flórido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo — que vaga sobre o chão da morte,
Morto — entre os vivos a vagar na terra.

Do sepulchro escutando triste grito
Sempre, sempre bradando-me: — Maldicto! —

E eu morro, ó Deus! na aurora da existencia,
Quando a sêde e o desejo em nós palpita...
Levei aos labios o dourado pomo,
Mordi no fructo podre do Asphaltita.
No triclinio da vida — novo Tantalo —
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda hebraica,
O stylete de Deus quebra-me a taça.

 

É que até minha sombra é inexoravel,
Morrer! morrer! soluça-me implacavel.

Adeus! pallida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, gloria! amor! anhelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pae nos teus cabellos.
Fôra louco esperar! fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro — a terra,
Por gloria — nada, por amor — a campa.

Adeus!... arrasta-me uma voz sombria,
Já me foge a razão na noite fria!...


Poemas e Poesias domingo, 10 de abril de 2022

AMOR E MEDO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

AMOR E MEDO

Casimiro de Abreu

 

 

 

 

Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"

Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair cias tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea — ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: — que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!

Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...

Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!...

Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...

Diz: — que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca — sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois... desperta no febril delírio,
— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...

Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...


Poemas e Poesias sábado, 09 de abril de 2022

ORADORES - DE GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECITE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

ORADORES

Carlos Pena Filho

 

 

 

Este ponto verde aqui,
feito de folhas e flores,
é o Jardim Treze de Maio,
onde os nossos oradores
vão um ao outro contar
como foi que conseguiram
a vida inteira passar
nas trevas da ignorância
sem nunca desconfiar.
Pois, cada qual sente um gênio
dentro de si borbulhar
e, coitadinhos, nem sabem,
que o que borbulha é a ameba
que não puderam tratar.


Poemas e Poesias sexta, 08 de abril de 2022

AMOR, POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AMOR, POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL

Carlos Drumonnd de Andrade

 

 

 

Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro de vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como activa abstracção que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, quais estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.


Poemas e Poesias quinta, 07 de abril de 2022

SONETO 153 - DE TÃO DIVINO ACENTO EM VOZ HUMANA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

DE TÃO DIVINO ACENTO EM VOZ HUMANA

Soneto 153

Luís de Camões

 

 

 

De tão divino accento em voz humana,
De elegancias que são tão peregrinas,
Sei bem que minhas obras não são dinas;
Que o rudo engenho meu me desengana.

Porém da vossa penna illustre mana
Licor que vence as águas Caballinas;
E comvosco do Tejo as flores finas
Farão inveja á cópia Mantuana.

E pois, a vós de si não sendo avaras,
As filhas de Mnemosine formosa
Partes dadas vos tẽe ao mundo claras;

A minha Musa, e a vossa tão famosa,
Ambas se podem nelle chamar raras,
A vossa de alta, a minha de invejosa.


Poemas e Poesias quarta, 06 de abril de 2022

SONETO DA PUTA NOVATA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA PUTA NOVATA

Bocage

 

 

 

Dizendo que a costura não dá nada,
Que não sabe servir quem foi senhora,
A impulsos da paixão fornicadora
Sobe d'alcoviteira a moça a escada.

Seus desejos lhe pinta a malfadada,
E a tabaquanta velha sedutora
Diz-lhe: "Veio menina, em bela hora,
Que essas, que aí tenho, já não ganham nada".

Matricula-se aqui a tal pateta,
Em punhetas e fodas se industria,
Enquanto a mestra lhe não rifa a greta:

Chega, por fim, o fornicário dia;
E em pouco a menina de muleta
Passeia do hospital na enfermaria.


Poemas e Poesias quarta, 06 de abril de 2022

CEM TGROVAS - 003 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

CEM TROVAS

Belmiro Braga

 

Trova 003

 

 

Fiz na vida o meu escudo
desta verdade sagrada –
o nada com Deus é tudo
e tudo sem Deus é nada.


Poemas e Poesias terça, 05 de abril de 2022

DEPOIS DA ORGIA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

DEPOIS DA ORGIA

Augusto dos anjos

 

 

 

O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!

Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.

Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,

Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!


Poemas e Poesias segunda, 04 de abril de 2022

ERA JÁ POSTO O SOL (POEMA DO PERNAMBUCANO MACIEL MONTEIRO)

ERA JÁ POSTO O SOL

Maciel Monteiro

 

 

 

Era já posto o sol. A natureza
Em ondas de perfume se banhava;
Aqui, pendia a rosa, além brilhava
Alguma flor de virginal pureza.

Nuvem sutil, de pálida tristeza,
Pelo cândido rosto lhe vagava.
Nas negras tranças do cabelo estava
Murcha e mais triste uma saudade presa.

Oh! pintor que a pintaste! Era mais bela
Que a lua deslumbrante de fulgores,
Surgindo dentre as sombras da procela!

Ao vê-la, aos meus olhos matadores,
Voou meu coração aos lábios dela,
Minh´alma ardente se banhou de amores.


Poemas e Poesias sábado, 02 de abril de 2022

EUTANÁSIA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

EUTANÁSIA

Álvares de Azevedo

 

 

 

"Ergue-te daí, velho! ergue essa fronte onde o passado afundou suas rugas como o vendaval no Oceano, onde a morte assombrou sua palidez como na face do cadáver, onde o simoun do tempo ressecou os anéis louros do mancebo nas cãs alvacentas de ancião!
"Por que tão lívido, ó monge taciturno, debruças a cabeça macilenta no peito que é murcho, onde mal bate o coração sobre a cogula negra do asceta?
"Escuta: a lua ergueu-se hoje mais prateada nos céus cor-de-rosa do verão, as montanhas se azulam no crepuscular da tarde e o mar cintila seu manto azul palhetado de aljôfares. A hora da tarde é bela, quem aí na vida lhe não sagrou uma lágrima de saudade?
"Tens os olhares turvos, luzem-te baços os olhos negros nas pálpebras roxas e o beijo frio da doença te azulou nos lábios a tinta do moribundo. E por que te abismas em fantasias profundas, sentado à borda de um fosso aberto, sentado na pedra de um túmulo?
"Por que pensá-la... a noite dos mortos, fria e trevosa como os ventos de inverno? Por que antes não banhas tua fronte nas virações da infância, nos sonhos de moço? Sob essa estamenha não arfa um coração que palpitara outrora por uns olhos gázeos de mulher?
"Sonha!... sonha antes no passado, no passado belo e doirado em seu dossel de escarlate, em seus mares azuis, em suas luas límpidas e suas estrelas românticas."
O velho ergueu a cabeça. Era uma fronte larga e calva, umas faces contraídas e amarelentas, uns lábios secos, gretados, em que sobreaguava amargo sorriso, uns olhares onde a febre tresnoitava suas insônias...
"E quem to disse — que a morte é a noite escura e fria, o leito de terra úmida, a podridão e o lodo? Quem to disse — que a morte não era mais bela que as flores sem cheiro da infância, que os perfumes peregrinos e sem flores da adolescência? Quem to disse — que a vida não é uma mentira? — que a morte não é o leito das trêmulas venturas?"

Poemas e Poesias sexta, 01 de abril de 2022

BELA D*AMOR (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

BELA D'AMOR

Almeida Garrett

 

 

 

Pois essa luz cintilante
Que brilha no teu semblante
Donde lhe vem o ‘splendor?
Não sentes no peito a chama
Que aos meus suspiros se inflama
E toda reluz de amor?

Pois a celeste fragrância
Que te sentes exalar,
Pois, dize, a ingénua elegância
Com que te vês ondular
Como se baloiça a flor
Na Primavera em verdor,
Dize, dize: a natureza
Pode dar tal gentileza?
Quem ta deu senão amor?

Vê-te a esse espelho, querida,
Ai!, vê-te por tua vida,
E diz se há no céu estrela,
Diz-me se há no prado flor
Que Deus fizesse tão bela
Como te faz meu amor.


Poemas e Poesias quinta, 31 de março de 2022

CLAUDE DEBUSSY (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

CLAUDE DEBUSSY

Slceu Wamosy

 

 

Maintenant tout est gris sur lande nocturne...
F. Viellé-Griffin.


Chove cinza do céu. Todo o rosal ajoelha,
balbuciando uma suave oração de perfume.
Não há, no firmamento, uma sombra vermelha:
— Tudo é ausente de cor — tudo é viúvo de lume.

A tristeza do instante em teus olhos se espelha,
minha estranha Quimera, ó sacrossanto Nume,
que acendeste em meu sonho a radiosa centelha
na qual todo o esplendor deste amor se resume...

Sob a chuva do espaço o jardim adormece.
E, sobre nós os dois, como um mistério, desce
a carícia da tarde, essa divina viúva.

Andam lábios errando, invisíveis, no ambiente;
e, morrendo de amor, dentro da luz morrente,
os nossos corações são Jardins sob a Chuva...


Poemas e Poesias quarta, 30 de março de 2022

CHEIRO DE ESPÁDUA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

CHEIRO DE ESPÁDUA

Alberto de Oliveira

 

 

 

“Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.

Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!

Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.

E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!”


Poemas e Poesias terça, 29 de março de 2022

CONJUGAÇÃO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

CONJUGAÇÃO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

"Eu falo
tu ouves
ele cala.
 
Eu procuro
tu indagas
ele esconde.

Eu planto
tu adubas
ele colhe.

 
Eu ajunto
tu conservas
ele rouba.

Eu defendo
tu combates
ele entrega.

Eu canto
tu calas
ele vaia.


Eu escrevo
tu me lês
ele apaga."

Poemas e Poesias segunda, 28 de março de 2022

HOMILIA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

HOMILIA

Adélia Prado

 

 

 

Quem dentre vós
dirá convictamente:
os alquimistas morreram
— aqueles simples —,
morreram os conquistadores,
os reis,
os tocadores de alaúde,
os mágicos.
Oh, engano!
A vida é eterna, irmãos,
aquietai-vos, pois, em vossas lidas,
louvai a Deus e reparti a côdea,
o boi, vosso marido e esposa
e sobretudo
e mais que tudo
a palavra sem fel.


Poemas e Poesias domingo, 27 de março de 2022

O LAMENTO ME PERSEGUE (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

O LAMENTO ME PERSEGUE

Adalgisa Nery

 

 

 

Lamento eterno das minhas carnes
Que inebria de sons o meu espirito
Que torna incertos os meus passos
E que invade de torpor os meus sentidos.
Lamento que se estica nos meus braços
Se volteia em meu pescoço
Se prende á minha língua
E se plasma no meu torso.
Lamento eterno que tem percorrido caminhos sem fim
Que tem atravessado mares revoltos
Desertos pestilentos,
Sempre atrás de mim.
Lamento eterno que vem separando a minha Unidade,
Dilatando o meu ser com imperceptíveis movimentos,
Que domina, que lambe os meus contornos
E que me afoga em caricias como um amante sedento. 


Poemas e Poesias sábado, 26 de março de 2022

HORAS (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

HORAS

Virgínia Victorino

 

 

 

Tem cada hora uma decifração.

As horas falam e têm gestos, côres.

Na hora da manhã - vê que esplendores! -

É diferente a sua vibração.

 

Repara bem na hora dos amores.

É um coração com outro coração.

Tem a hora maior palpitação.

Tem vida, movimentos e langores.

 

É cada hora um livro, e cada qual

da sua forma o lê: ou bem ou mal.

- Horas que vão e que não voltam mais!

 

Para mim há só duas. Males... bens...

É a hora dourada em que tu vens,

e a hora dolorosa em que te vais.


Poemas e Poesias sexta, 25 de março de 2022

A IMPOSSÍVEL PARTIDA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A IMPOSSÍVEL PARTIDA

Vinícius de Moraes

 

 

 

Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade
E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contato da carne indesejada?...
Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos
Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas
E se a minha inquietação iria temer a tua eloquência silenciosa?...
Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos
Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável
Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas...
...o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face...
Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério
Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos
Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?...
Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros
Luzes voando ao vento como folhas
Nuvens como vagas afogando luas adolescentes...
Sons... o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida...
O frêmito lúgubre dos corpos penados girando no espaço...
Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas...
As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma
Soprando de manso na boca vermelha dos astros...

Como poder abrir no teu seio, ó noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo
Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno
E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?...


Poemas e Poesias quinta, 24 de março de 2022

MANHÃ DE SOL (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

MANHÃ DE SOL

Vicente de Carvalho

(Grafia original)

 

 

 

Na sombra do murtal, cujas flores a leve
Aragem, desgrinalda em turbilhões de neve,
Ella vagueia a sós... E como vai formosa!
Tem como uma frescura orvalhada de rosa
Na face... Em seu sorriso amanhece. E’ tão brando
O seu pisar, que o chão o acolhe suspirando.
— Eis o sol! — canta uma ave ao fitar-lhe a retina...
E por onde ella passa a sombra se illumina.

Descuidada e feliz, entre as arvores ella
Erra á toa. Sorrindo, as aves interpella.
Corre de flor em flor, salta de moita em moita.
Ora entre a ramaria o olhar travesso afoita

 

E tenta surprehender o segredo de um ninho;
Ora scisma, fitando o vago desalinho
Em que toda palpita, em que se entrega toda,
A folhagem que o vento acaricia... Em roda,
Em tudo, vê um ar festivo de noivado.
Cada flor abre ao sol o calice orvalhado,
Humido como um labio em que poisasse um beijo...

E o seu passo é subtil, e erra como um adejo.

Surprehendo-a. Ella estaca, assustada, indecisa;
Mal com os pesinhos nús o chão musgoso pisa
Num ar de jurity prestes a abrir o vôo.
Tomo-lhe as mãos; baixinho, ao seu ouvido, entôo
A atrevida canção do amor que tudo pede,
Do amor que não é mais do que um furor de sede,
Que é o amor afinal...

                       Toda a sua alma escuta,
Todo o seu corpo treme. Amante e irresoluta,
Quer ceder, e resiste; abraza; e não se atreve...
E de subito, como a corça arisca e leve
Que sente o caçador e ouve silvar a bala,
Ella das minhas mãos bruscamente resvala,

 

Salta, foge-me...
           Em vão. Salto-lhe empós; não tomba
Mais faminto um abutre em cima de uma pomba.
Ella, sem rumo, vai e erra ao acaso, numa
Vaga trepidação, como ao vento uma pluma.
E o seu passo recorda o chão, que abaixa e alteia
Aqui um charco, adeante um cómoro de areia.

Aos poucos, a carreira afrouxa. Em cada passo
Mais e mais ella mostra a angustia do cansaço.
Arfa-lhe o seio; perde o folego; tropeça;
Pára...
       Alcança-a meu beijo. O noivado começa.


Poemas e Poesias quarta, 23 de março de 2022

HOJE TEM ESPETÁCULO (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

HOJE TEM ESPETÁCULO

Torquato Neto 

 

Vá ao cinema: presta?
Vá ao teatro: presta?
Esses filmes servem a quê?
Servem a quem?
Essas peças: servem? Pra quê?
Divirta-se: teu programa é esse,
bicho: vá ao cinema
vá ao teatro, vá ao concerto
disco é cultura, vá para o inferno:
o paraíso na tela no palco na boca
do som
e nas palavras todas
na ferrugem dos gestos e nas trancas
da porta da rua
no movimento das imagens: violência
e frescura: montagem.
Divirta-se. O inferno
é perto é longe, o paraíso
custa muito pouco.
Pra que serve este filme, serve a
quem?
Pra que serve esse tema, serve a
quem?
De churrasco em churrasco encha
o seu caco,
amizade. Cante seresta na churrascaria
e arrote filmes-teatros-marchas-ranchos
alegrias e tal: volte (como sempre)
atrás,
fique na sua
bons tempos são para sempre — jamais
bata no peito, bata no prato, é
assim que se faz
a festa. Reclame isso: esse filme
não presta
o diretor é fraco e essa história eu
conheço
esse papo é pesado demais pras
crianças na sala
é macio, é demais: serve a quem,
amizade?
Teu roteiro hoje é esse, meu bicho: cante
tudo na churrascaria
não saia nunca mais da frente fria
sirva, serve, bicho, criança, bonecão
sirva sirva sirva mais
churrasco churrasquinho churrascão.
Sirva um samba de Noel, uma ciranda
uma toada do Gonzaga (o pai),
aquele samba
aquela exaltação de um iê-iê-iê
romanticosuavespuma
bem macio
um filme de mocinho e de bandidos
uma peça qualquer com muito
drama:
encha o caco, amizade, tudo é
porta
e vá entrando à vontade, a casa
é sua, entre
pelos filmes em cartaz, pelas peças
sobre os palcos
vá entrando pelo papo, entrando
pelo cano
geral; coma churrasco, sirva, vá
entrando
e servindo (a quê a quem?)
encha o seu caco. Divirta-se, bata
no prato
e peça bis, reclame, cante o quanto
queira
afaste o lixo, nem pense:
teu programa é esse mesmo, bicho.

 

 


Poemas e Poesias terça, 22 de março de 2022

AS ROSA BRANCA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

A ROSA BRANCA

Thiago de Mello

 

 

 

Não me inquieta se o caminho
que me coube – por secreto
desígnio – jamais floresce.
Dentro de mim, sei que existe,
oculta, uma rosa branca.
Incólume rosa. E branca.

 

Não pude colhê-la: mal
nascera e logo perdi-me
nos labirintos do tempo,
onde desde então pervago
apenas entressonhando
aquilo que sou – e vive
no recôncavo da rosa.

Sem conhecer-me, padeço
o mistério de existir
em amargo desencontro
comigo mesmo. No entanto,
pesar tão largo se apaga
quando pressinto: na rosa,
mistério não há. Nenhum.
Sem medo de trair-me a face,
posso morrer amanhã.
Extinto o jugo do tempo,
olhos nem boca haverá
– para a queixa e para a lágrima –
se em vez de rosa, de pétala
cinza de pétala, apenas
existir a escuridão.
O vazio. Nada mais.


Poemas e Poesias segunda, 21 de março de 2022

CANTO SEGUNDO I (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

CANTO SEGUNDO - I

Sousândrade

 

 

 

Opalescem os céus — clarões de prata —
Beatífica luz pelo ar mimoso
Dos nimbos d'alva exala-se, tão grata
Acariciando o coração gostoso!

Oh! doce enlevo! oh! bem-aventurança!
Paradíseas manhãs! riso dos céus!
Inocência do amor e da esperança
Da natureza estremecida em Deus!

Visão celeste! angélica encarnada
Co'a nitente umidez d'ombros de leite,
Onde encontra amor brando, almo deleite,
E da infância do tempo a hora foi nada!

A claridade aumenta, a onda desliza,
Cintila co'o mais puro luzimento;
De púrpura, de ouro, a c'roa se matiza
Do tropical formoso firmamento!

Qual um vaso de fina porcelana
Que de através o sol alumiasse,
Qual os relevos da pintura indiana
É o oriente do dia quando nasce.

Uma por uma todas se apagaram
As estrelas, tamanhas e tão vivas,
Qual os olhos que lânguidas cativas,
Mal nutridas de amores, abaixaram.

Aclaram-se as encostas viridantes,
A espreguiçar-se a palma soberana;
Remonta a Deus a vida, à origem d'antes,
Amiga e matinal, donde dimana.

Acorda a terra; as flores da alegria
Abrem, fazem do leito de seus ramos
Sua glória infantil; alcion em clamos
Passa cantando sobre o cedro ao dia

Lindas loas boiantes; o selvagem
Cala-se, evoca doutro tempo um sonho,
E curva a fronte... Deus, como é tristonho
Seu vulto sem porvir em pé na margem!

Talvez a amante, a filha haja descido,
Qual esse tronco, para sempre o rio —
Ele abana a cabeça co'o sombrio
Riso do íris da noite entristecido.


Poemas e Poesias domingo, 20 de março de 2022

O PRETO DA MENTE: UMA HOMENAGEM AO CAFÉ (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

O PRETO DA MENTE: UMA HOMENAGEM AO CAFÉ

Ricardo Lima

 

 

 

 

O preto da mente, sente!

O ente, poente, preto da mente.

O que sente, mente!

Poente preto no gueto da mente.

A mente cura, escura!

O preto da mente, sente o quente.

O preto da mente!


Poemas e Poesias sábado, 19 de março de 2022

CREPUSCULAR (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

CREPUSCULAR

Raul de Leôni

 

 

 

Poente no meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção em que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencida de fadiga,
A alma ingénua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe...


Poemas e Poesias sexta, 18 de março de 2022

RELÓGIO DE SOL (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

RELÓGIO DE SOL

Paulo Mendes Campos

 

 

 

De todas as minhas façanhas

a que me dói mais lentamente

é sentir nas minhas entranhas

o meu coração arbitrário

girando em sentido contrário

à parábola do poente.


Poemas e Poesias quinta, 17 de março de 2022

COISAS DO MEU SERTÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

COISA DO MEU SERTÃO

Patativa do Assaré

 

 

 

Seu dotô, que é da cidade
Tem diproma e posição
E estudou derne minino
Sem perdê uma lição,
Conhece o nome dos rios,
Que corre inriba do chão,
Sabe o nome de estrela
Que forma constelação,
Conhece todas as coisa
Da historia da criação
E agora qué i na Lua
Causando admiração,
Vou fazê uma pergunta,
Me preste bem atenção:
Pruque não quis aprendê
As coisa do meu sertão?

Por favô, não negue não
Quero que o sinhô me diga
Pruquê não quis o roçado
Onde se sofre de fadiga,
Pisando inriba do toco,
Lacraia, cobra e formiga,
Cocerento de friêra,
Incalombado de urtiga,
Muntas vez inté duente,
Sofrendo dô de barriga,
Mas o jeito é trabaiá
Que a necessidade obriga.
(...)


Poemas e Poesias quarta, 16 de março de 2022

A TOADZ DA CHUVA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

A TOADA DA CHUVA

Olegário Mariano

 

 

 

Chove incessantemente . . . Uma garoa
Fina e sutil parece não ter fim.
No ar pardacento uma andorinha voa . . .
E a chuva bate como um tamborim.
Para os seres sem alma a vida é boa,
Para mim que sou triste a vida é ruim,
Pois me falta o calor de uma pessoa
Que é a própria vida boa para mim.
E a chuva continua à toa, à toa . . .
Chuva, por que vives caindo assim?
Será que uma outra força te magoa?
Por que teu choro d’água não tem fim?
Se eu tivesse o calor de uma pessoa,
Seria a vida um sonho para mim.


Poemas e Poesias terça, 15 de março de 2022

REQUIESCAT (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

REQUIESCAT

Olavo Bilac

(Grafia original)

 

 

Por que me vens, com o mesmo riso,
Por que me vens, com a mesma voz,
Lembrar aquele Paraíso,
Extinto para nós?

Por que levantas esta lousa?
Por que, entre as sombras funerais,
Vens acordar o que repousa,
O que não vive mais?

Ah! esqueçamos, esqueçamos
Que foste minha e que fui teu:
Não lembres mais que nos amamos,
Que o nosso amor morreu!

O amor é uma árvore ampla, e rica
De frutos de ouro, e de embriaguez:
Infelizmente, frutifica
Apenas uma vez...

Sob essas ramas perfumadas,
Teus beijos todos eram meus:
E as nossas almas abraçadas
Fugiam para Deus.

Mas os teus beijos esfriaram.
Lembra-te bem! lembra-te bem!
E as folhas pálidas murcharam,
E o nosso amor também.

Ah! frutos de ouro, que colhemos,
Frutos da cálida estação,
Com que delícia vos mordemos,
Com que sofreguidão!

Lembras-te? os frutos eram doces...
Se ainda os pudéssemos provar!
Se eu fosse teu... se minha fosses,
E eu te pudesse amar...

Em vão, porém, me beijas, louca!
Teu beijo, a palpitar e a arder,
Não achará, na minha boca,
Outro para o acolher.

Não há mais beijos, nem mais pranto!
Lembras-te? quando te perdi
Beijei-te tanto, chorei tanto,
Com tanto amor por ti,

Que os olhos, vês? já tenho enxutos,
E a minha boca se cansou:
A árvore já não tem mais frutos!
Adeus! tudo acabou!

Outras paixões, outras idades!
Sejam os nossos corações
Dois relicários de saudades
E de recordações.

Ah! esqueçamos, esqueçamos!
Durma tranqüilo o nosso amor
Na cova rasa onde o enterramos
Entre os rosais em flor...


Poemas e Poesias segunda, 14 de março de 2022

O VOO (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

O VOO

Menotti Del Picchia
(Grafia original)

 

 

 

Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento,
desabam no abismo.
Que sabes tu do fim?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o
de estrelas.
Conserva a ilusão de que teu vôo te leva sempre
para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão
se pressentires que amanhã estarás mudo
esgota, como um pássaro, as canções que tens
na garganta.
Canta. Canta para conservar a ilusão de festa e
de vitória.

Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste não és mais que um vôo no tempo.
Rumo do céu?
Que importa a rota.
Voa e canta enquanto resistirem as asas.


Poemas e Poesias domingo, 13 de março de 2022

ESPERANÇA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

ESPERANÇA

Mário Quintana

 

 

 

 

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


Poemas e Poesias sábado, 12 de março de 2022

O VOLÚVEL (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS, NA VOZ DE SOCORRO LIMA)

Maria Firmina dos Reis

 


Poemas e Poesias sexta, 11 de março de 2022

CARTAS DE MEU AVÔ (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CARTAS DE MEU AVÔ

Manuel Bandeira

 

 

 

A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.
Cartas de antes do noivado…

Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.
Temendo a cada momento

Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala…
A mão pálida tremia

Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.
A paixão, medrosa dantes,

Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.
Depois o espinho do ciúme…

A dor… a visão da morte…
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.
E eu bendigo, envergonhado,

esse amor, avô do meu…
Do meu – fruto sem cuidado
Que inda verde apodreceu.
O meu semblante está enxuto.

Mas a alma, em gotas mansas,
Chora, abismada no luto
Das minhas desesperanças…
E a noite vem, por demais

Erma, úmida e silente…
A chuva em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.


Poemas e Poesias quinta, 10 de março de 2022

MURMÚRIOS O RECITAM SOBRE A TARDE - II

MURMURIOS O RECITAM SOBRE A TARDE - II

Manoel de Barros

 

 

 

Em suas ruínas 
Homizia sapos 
Formigas carregam suas latas 
Devaneiam palavras

Poemas e Poesias quarta, 09 de março de 2022

JOIA DA COROA (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

JOIA DA COROA

Luís Turiba

 

 

 

diamantina é um extraordinário 
quebra-cabeça
do sonho lusitano em terras brasileiras
a jóia da coroa no arraial do tejuco
bem acima da vila rica do ouro bruto

dínamo dos diamantes
música para amantes

com quantas pedras foi construída?
quantas almas
sangues vidas
quantos escravos
homens mulheres
mandos desmanchos
grandezas detalhes
pepitas petardos?

praça das missões
rua da glória
rua da luz
macau de cima
caminho do escravo
macau de baixo
macau do meio
beco do tejuco

brasil é um beco do mota
romanceiro inconfidente
o som do clube de esquina
liberdade sol do oriente 


Poemas e Poesias terça, 08 de março de 2022

OLHOS ALEGRES (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

OLHOS ALEGRES

Luís Edmundo

 

 

Há uma lágrima, sempre, atenta em nossos olhos,

Uma lágrima branca, uma lágrima pura,

E assim como no mar os traiçoeiros escolhos,

Ela, escondida, a flor das pálpebras procura.

 

Aí fica parada; os íntimos refolhos

Da nossa alma reflete, e, quando uma ventura

Em riso nos entreabre os lábios, com doçura,

Ela, a lágrima fica a nos tremer nos olhos.

 

Tu, que és moço e que ris e não sabes da mágoa

Do mundo, tem cuidado, olha essa gota d’água,

Se não queres da vida achar-te entre os abrolhos;

 

Ri, mas ri devagar, que a lágrima traiçoeira,

Talvez, vendo-te rir assim dessa maneira,

Trema e caia afinal um dia dos teus olhos!


Poemas e Poesias segunda, 07 de março de 2022

A NOVIÇA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

 

A NOVIÇA
(NO ÁLBUM DA EX.MA SR.ª D. JÚLIA ALVES PASSOS)

Júlio Dinis

 

«Oh! vem, querida irmã, do santuário do templo, Já
desce a receber-te o celestial Esposo.
Vem ser da nossa fé sublime o vivo exemplo; Vem, deixa sem pesar do
mundo o falso gozo.

«Vem; dos círios à luz, ao som de alegres hinos, Cinge o
hábito escuro, emblema da humildade,
E, abrasada no ardor dos teus estos divinos,
Despe, ao entrar no claustro, as galas da vaidade,

«Esposa do Senhor, virgem cândida e pura, Do teu noviciado expiram
hoje os dias.
Não tremas ao fitar as portas da clausura; Também na estreita
cela há brandas alegrias.»

Assim das monjas soa o religioso canto: Juntas, em procissão pelas extensas
naves,
Espalham-se na igreja as vozes do hino santo, Melancólica voz de aprisionadas
aves.

Caído o longo véu por sobre a fronte airosa
Caminha lentamente a pálida noviça;
Nos olhos lhe fulgura uma aura misteriosa,
Um como cintilar de lâmpada mortiça.

Sobre os degraus do altar humilde se ajoelha
E ao culto fervorosa as trancas sacrifica.
«Recolhe-te ao redil, imaculada ovelha,
Teus tesouros d’amor nas aras santifica.»

E o coro ergue outra vez o ritual hosana,
Entre nuvens de incenso, à voz do órgão sagrado; Responde-lhe
o rezar da multidão profana,
Que transpôs curiosa o pórtico elevado.

A cerimônia é finda; a monja de joelhos
Permanece, inclinada a face sobre a terra;
Era no ocaso o Sol; e seus clarões vermelhos
Vinham tingir o altar, tingindo ao longe a serra.

Longo tempo ali esteve, as pálpebras descidas. Imóvel, silenciosa,
em êxtase absorta.
Ergueram-na afinal as monjas comovidas: Doloroso mistério… a pobre
estava morta!


Poemas e Poesias domingo, 06 de março de 2022

DE NOVOA PONTE INAUGURA (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ CHAGAS)

DE NOVO A PONTE INAUGURA

José Chagas

 

 

 

ponte pronta

ida e

vinda

VIDA

as ruas

o rio

 

os pés

o peso

 

as sementes

o cimento

 

os barcos

o arco

 

ponte ponte

fluvial pluvial

 

colunas colinas

abóbada abóbora

 

flor e cimento

ponte ponte ponto


Poemas e Poesias sábado, 05 de março de 2022

PELO SILÊNCIO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

PELO SILÊNCIO

Jorge de Lima

 

 

 

elo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:

pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;

pelos pequenos astros e satélites
formando nos cabelos um diadema
a iluminar o seu formoso manto,

vós que julgais extinta Mira-Celi
observai neste mapa o vivo poema
que é a vida oculta dessa eterna infanta.


Poemas e Poesias sexta, 04 de março de 2022

O MAR E O CANAVIAL (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O MAR E O CANAVIAL

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

O que o mar sim aprende do canavial:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.

*

O que o canavial sim aprende do mar:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.


Poemas e Poesias quinta, 03 de março de 2022

CARTA A UM AMOR IMPOSSÍVEL (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

CARTA A UM AMOR IMPOSSÍVEL

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Recebi tua carta, - e ainda sob o peso
da emoção que me trouxe, eu te escrevo, surpreso,
reavivando na minha lembrança esquecida
certos traços sem cor de uma história perdida:
- falo dos poucos dias que passamos juntos...

Tão longe agora estas Quantos belos assuntos,
a que eu não quis, nem soube mesmo dar valor,
relembras com um estranho e desvelado amor...
Tua carta é tão doce, e tão cheia de cores
que, dir-se-ia a escreveste com o mel que há nas flores,
sobre o azul de um papel tão azul, que o papel
faz a gente pensar num pedaço de céu!
Impregnado nas folhas chegou até mim,
um perfume sutil e agreste de jasmim
e um pouco do ar sadio e puro de montanha!

Estranha a tua carta, inesperada e estranha!

Deixas nas minhas mãos a tua alma confiante,
ante a revelação desse amor deslumbrante
e abres teu coração, num gesto de ansiedade,
sob a opressão cruel de uma imensa saudade.
Dizes que só por mim tu vives, - que a tristeza
é a companheira fiel que tens por toda parte,
e me falas assim com tamanha franqueza
que eu nem sei que dizer receando magoar-te!
Não compreendo esse amor que revelas por mim
nem mereço a ternura e o enlevo sem fim
de um só trecho sequer de tudo o que escreveste,
- por exemplo, - de um trecho belo e bom, como este:


"Teu olhar é o meu sol! Vivo da sua luz!
- e mesmo que esse amor seja como uma cruz
eu o levarei comigo em meu itinerário!
e o bendirei na dor ascendendo ao Calvário!
Sem ele não existo; e sem ti, meu destino
será vazio, assim como o bronze de um sino
que ficou mutilado e emudeceu seus sons
na orquestra matinal dos outros carrilhões!
Quero ser tua sombra até, - e quando tudo
te abandonar na vida, e o frio, e quedo, e mudo,
encerrarem teu corpo em paz sob um lajedo,
eu ficarei contigo ao teu lado, sem medo,
e sozinha e sem medo eu descerei contigo
oh! meu único amor! oh! meu querido amigo!
- para que os nossos corpos juntos, abraçados,
fiquem na mesma terra em terra transformados!"


Escreves tudo assim, - e eu nem sei que te diga
nesta amarga resposta, oh! minha pobre amiga!


Tarde, tarde demais... Bem me arrependo agora
do amor que te inspirei, daquele amor de outrora
que eu julgava um brinquedo a mais em minha vida
e a quem davas tua alma inteira e irrefletida...
Releio a tua carta, e confesso que sinto
o ter-te que falar sobre esse amor extinto,
um prelúdio de amor que ficou sem enredo
e que só tu tocaste em surdina, em segredo...


Dizes que o que eu mandar, farás... e que és tão minha
que mesmo que não te ame e que fiques sozinha
bastará para ti a lembrança feliz
dos dias de ilusão em que nunca te quis!
E escreves, continuando essa carta que eu leio
com uma vontade louca de parar no meio:


"Minha vontade é a tua! E meu destino enredo
no teu!... És o meu Deus! Teu desejo é o meu credo!
Creio na tua força e no teu pensamento,
e nem um só segundo e nem um só momento
deixarei de seguir-te aonde quer que tu fores,
seja a estrada coberta de espinhos ou flores,
te aureole a fronte a glória e te sirva a riqueza
ou vivas no abandono e sofras na pobreza!
Serei outra Eleonora Duse, e te amarei
com um amor infinito, sem razão nem lei.
Tu serás o meu Poeta imortal, - meu Senhor,
a quem entregarei minha alma e o meu amor!

Creio na tua força e no teu pensamento!
- faço dela um arrimo, e tenho nele o alento
da única razão que dirige meus atos;
- é a lógica fatal das cousas e dos fatos!
Orgulho-me de ser a matéria plasmável
onde o teu gênio inquieto, e nervoso, e insaciável,

há de esculpir uma obra à tua semelhanças!
Junto a ti sou feliz e me sinto criança
curiosa de te ouvir, fascinada e atraída
pela tua palavra alegre e colorida!
E se falas da vida ou se o mundo desvendas
os assuntos ressoam na alma como lendas
e tudo é novo e é belo, e tudo prende e atrai,
de um simples botão que se abre a um pingo d'água que caí.

Há em tudo uma alma nova! Há em tudo um novo encanto!
Tantas vezes te ouvi! E sempre o mesmo espanto
quando tu me dizias, que era tarde, era a hora
em que eu ia dormir em que te ias embora...
Muitas vezes, deitada, - eu rezava baixinho
uma prece que fiz só para o meu carinho:


com meus beijos de amor matarei tua sede,
com os meus cabelos tecerei a rede
onde adormecerás feliz, imaginado
que é a noite que te envolve e te embala cantando;
formarei com os meus braços o ninho amoroso
onde terás na volta o almejado repouso;

minhas mãos te darão o mais terno carinho
e julgarás que é o vento a soprar de mansinho
sussurrando canções e desfeito em desvelos
a desmanchar de leve os teus claros cabelos!
No meu seio, - que a uma onda talvez se pareça,
recostarei feliz, enfim, tua cabeça,
e nada, nenhum ruído há de te perturbar!
- meu próprio coração mais baixo há de pulsar...
Quando o sol castigar as frondes e as raízes
com o meu corpo farei a sombra que precises,
e se o inverno chegar, ou se sentires frio,
em mim hás de achar todo o calor do estio!

Não te rias, - bem sei que te digo tolices,
mas ah! se compreendesses tudo, ou se sentisses
a alegria que sinto ao te falar assim,
talvez que não te risses, meu amor, de mim...
Isto tudo, - é obra apenas da fatalidade,
- quando o amor é uma doença e é uma febre a saudade."

Tua carta é uma frase inteira de ternura,
como uma renda fina, cuja tessitura
trai a mão delicada e a alma de quem a fez
Ela é bem a expressão da mulher, que uma vez...
(mas não, não recordemos estas cousas mais,
- para o teu bem, deixemos o passado em paz
se o não posso trazer num augúrio feliz
para a prolongação de um sonho que eu desfiz...)

Tua carta é o reflexo da tua beleza,
e há no seu ofertório a singela pureza
desse amor que te empolga e te invade e domina!
(Uma alma de mulher num corpo de menina!)
Reli-a muito, a sós... - Mais adiante tu dizes,
com esse místico dom das criaturas felizes:


"Amo, para a alegria suprema e indizível
de humilhar-me aos teus pés tanto quanto possível,
e viverei feliz, como a poeira da estrada
se erguer-me ao teu passar, numa nuvem dourada
cheia de sol e luz, - nessa glória fugaz
de acompanhar-te os passos aonde quer que vás!
Não importa que eu role depois no caminho,
não importa que eu fique abandonada e só,
- quem nasceu para espinho há de ser sempre espinho!...
- quem nasceu para pó, há de sempre ser pó!"


Faz-me mal tua carta, muito mal... Receio
pelo amor infeliz que abrigaste em teu seio,
e uma angústia mortal me oprime e me castiga,
deixa que te confesse, oh! minha pobre amiga!


Não pensei... Não pensei que te afeiçoasses tanto,
nem desejava ver a tristeza do pranto
ensombrecer teus olhos... Quando tu partiste,
não compreendia bem por que ficaste triste
nem quis acreditar no que estavas sentindo...
Hoje, - hoje eu descubro que o teu sonho lindo
era mais do que um sonho, - era mesmo, em verdade
uma grande esperança de felicidade!

Me perdoarás no entanto... ah! não fosses tão boa!
E eu insisto de joelhos a teus pés: - perdoa!
Se eu soubesse, ou se ao menos eu adivinhasse
o que não pude ver além de tua face
e o que não soube ler velado em teu olhar,
não teria deixado esse amor te empolgar...

Perdoa o involuntário mal que te causei!
A carta que escreveste, e há bem pouco guardei,
um grande mal também causou-me sem querer:
- é bem rude e bem triste a gente perceber
que encontrou seu ideal, - o seu ideal mais belo,
- e o destruir, tal como eu, que agora o desmantelo!
É doloroso a gente em mil anos sonhá-lo
e inesperadamente ter que abandoná-lo!

Se algum amor eu quis, esse era igual ao teu
que tudo me ofertou e nada recebeu;
ingênuo e puro amor, simples, sem artifícios,
capaz como bem dizes "de mil sacrifícios,
e de mil concessões, chorando muito embora,
só para ver feliz o ente que quer e adora!"

E pensar que isso tudo que tu me ofereces:
-teu raro e imenso amor, teus beijos tuas preces,
a tua alma de criança ainda em primeiro anseio;
e o teu corpo, onde a forma ondulante do seio
não atingiu sequer seu máximo esplendor;
tua boca, ainda pura aos contatos do amor;
- e dizer que isso tudo, isso tudo afinal
que era o meu velho sonho e o meu maior ideal,
abandono, desprezo, renuncio e largo
com um gesto vil como este, indiferente e amargo!

Enfim, já estás vingada... E porque ainda és criança
há de este falso amor te ficar na lembrança
como uma experiência... (a primeira vencida
das muitas que talvez ainda encontres na vida... )

E um dia então... - quem sabe se não será breve?
- descobrirás na vida aquele amor que deve
transformar teu destino e realizar teu sonho...
Antevendo esse dia de festa, risonho,
comporei, como um véu de noiva, para as bodas,
a mais bela poesia, a mais bela de todas...
(... Recebendo-a, dirás, esquecida e contente:
- "quem teria enviado este estranho presente?")

Sé feliz, minha amiga ... eu me despeço aqui...
Lamento o meu destino, porque te perdi
e maldigo esta carta pelo que ela diz...
Não chores, - porque eu sei que ainda serás feliz...

E que as lágrimas de hoje, - enxuguem-se ao calor
de um verdadeiro, eterno e imorredouro amor!

P. S. - Sê feliz. Amanhã tudo isto será lenda ...
E pede a Deus, por mim, - que eu nunca me arrependa...


Poemas e Poesias quarta, 02 de março de 2022

DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO

Hilda Hilst 

 

Dez chamamentos ao amigo
(in Júbilo, memória, noviciado da paixão)

I
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem

Te olhei. E há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

II
Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que nosso tempo é ágora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

III
Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia

E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo

Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga

E amavio contente o amor teria sido

IV
Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.

Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.

Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.

Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página

Ilustrada da revista
Editorial, jornal
Teia cindida.

Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.

V
Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta

E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido

Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro

Desmemoriado, coincidido e ardente
NO meu tempo de vida tão maduro.

VI
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?

Ou é mesmo verdade

Que nunca me soubeste?

VII
Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda se lembras?

Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes

Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?

VIII
De lulas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura

Intocada meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.

Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar
Sem amargura. E que me deem

A enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando

— Fazedor de desgosto —
Que eu te esqueça.

IX
Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria da solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatas

Sobre-existindo apenas
Porque à noite retomo a minha verdade:
Teu contorno, teu rosto, álgido sim

E por isso, quem sabe, tão amado.

X
Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus

Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinquenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
De graça, da justeza do poema. É mais.
E porisso perdoa todo esse amor de mim

E me perdoa de ti a indiferença.


Poemas e Poesias terça, 01 de março de 2022

ÁGUIA FERIDA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES) DECLAMAÇÃO - VÍDEO


Poemas e Poesias segunda, 28 de fevereiro de 2022

CIGARRA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

 

CIGARRA

Guilherme de Almeida

 

 

 

Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.

 


Poemas e Poesias sábado, 26 de fevereiro de 2022

EMOTIVIDADE DA COR (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

EMOTIVIDADE DA COR

Gilka Machado

 

 

A Dolores Marques Caplonch
e a Miguel Caplonch


Sete cores — sete notas erradias,
sete notas da música do olhar,
sete notas de etéreas melodias,
de sons encantadores
que se compõem entre si,
formando outras tantas cores,
do cinzento que cisma ao jade que sorri.

Há momentos
em que a cor nos modifica os sentimentos,
ora fazendo bem, ora fazendo mal;
em tons calmos ou violentos,
a cor é sempre comunicativa,
amortece, reaviva,
tal a sua expressão emocional.

Lançai olhares investigadores
para a mancha dos poentes:
há cores que são ecos de outras cores,
cores sem vibrações, cores esfalecentes,
melodias que o olhar somente escuta,
na quietude absoluta,
ao Sol se pôr...
Quem há que inda não tenha percebido
o subjetivo ruído
da harmonia da cor?

(...)

— A Cor é o aroma em corpo e embriaga pelo olhar.
Cor é soluço, cor é gargalhada,
cor é lamento, é suspiro,
e grito de alma desesperada!
Muitas vezes a cor ao som prefiro
porque a minha emoção é igual à sua:
— parada, estatelada
dizendo tudo, sem que diga nada,
no prazer ou na dor.

Olhar a cor
é ouvi-la,
numa expressão tranquila,
falar de todas as sensações
caladas, dos corações;
no entanto, a cor tem brados,
mas brados estrangulados,
mágoas contidas,
mudo querer,
ânsia, fervor, emotividade
de desconhecidas
vidas,
que se ficaram na vontade,
que não conseguiram ser...

Cores são vagas, sugestivas toadas...

Cores são emoções paralisadas...

(...)

 


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