Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias sábado, 26 de fevereiro de 2022

EMOTIVIDADE DA COR (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

EMOTIVIDADE DA COR

Gilka Machado

 

 

A Dolores Marques Caplonch
e a Miguel Caplonch


Sete cores — sete notas erradias,
sete notas da música do olhar,
sete notas de etéreas melodias,
de sons encantadores
que se compõem entre si,
formando outras tantas cores,
do cinzento que cisma ao jade que sorri.

Há momentos
em que a cor nos modifica os sentimentos,
ora fazendo bem, ora fazendo mal;
em tons calmos ou violentos,
a cor é sempre comunicativa,
amortece, reaviva,
tal a sua expressão emocional.

Lançai olhares investigadores
para a mancha dos poentes:
há cores que são ecos de outras cores,
cores sem vibrações, cores esfalecentes,
melodias que o olhar somente escuta,
na quietude absoluta,
ao Sol se pôr...
Quem há que inda não tenha percebido
o subjetivo ruído
da harmonia da cor?

(...)

— A Cor é o aroma em corpo e embriaga pelo olhar.
Cor é soluço, cor é gargalhada,
cor é lamento, é suspiro,
e grito de alma desesperada!
Muitas vezes a cor ao som prefiro
porque a minha emoção é igual à sua:
— parada, estatelada
dizendo tudo, sem que diga nada,
no prazer ou na dor.

Olhar a cor
é ouvi-la,
numa expressão tranquila,
falar de todas as sensações
caladas, dos corações;
no entanto, a cor tem brados,
mas brados estrangulados,
mágoas contidas,
mudo querer,
ânsia, fervor, emotividade
de desconhecidas
vidas,
que se ficaram na vontade,
que não conseguiram ser...

Cores são vagas, sugestivas toadas...

Cores são emoções paralisadas...

(...)

 


Poemas e Poesias sexta, 25 de fevereiro de 2022

SENHORA, EU ME CONTENTO (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

SENHORA, EU ME CONTENTO

Gil Vicente

 

 

 

Senhora, eu me contento
Receber vos como estais:
Se vós vos não contentais,
O vosso contentamento
Pode falecer no mais.

LATÃO (Como fala!
VIDAL E ela como se cala!
Tem atento o ouvido...
Este há-de ser seu marido,
Segundo a coisa s'abala.)
ESCUDEIRO Eu não tenho mais de meu,
Somente ser comprador
Do Marichal meu senhor
E são escudeiro seu.
Sei bem ler
E muito bem escrever
E bom jogador de bola,
E quanto a tanger viola,
Logo me vereis tanger
Moço, que estais lá olhando?
MOÇO Que manda Vossa Mercê?
ESCUDEIRO Que venhais cá.
MOÇO Pera quê?
ESCUDEIRO Por que faças o que eu mando!
MOÇO Logo vou.
(O Diabo me tomou:
Sair me de João Montês
Por servir um tavanês
Mor doudo que Deus criou!)
ESCUDEIRO Fui despedir um rapaz
Que valia Perpinhão,
Por tomar este ladrão.
Moço!

MOÇO Que vos praz?
ESCUDEIRO A viola.
MOÇO (Oh! como ficará tola
Se não fosse casar ante
Co mais sáfio bargante
Que coma pão e cebola!).
Ei-la aqui bem temperada,
Não tendes que temperar
ESCUDEIRO Faria bem de ta quebrar
Na cabeça bem migada!
MOÇO E se ela é emprestada,
Quem na havia de pagar?
Meu amo, eu quero m'ir.
ESCUDEIRO E quando queres partir?
MOÇO Ante que venha o Inverno,
Porque vós não dais governo
Pera vos ninguém servir

ESCUDEIRO Não dormes tu que te farte?
MOÇO No chão, e o telhado por manta...
E çarra-se m'a garganta
Com fome.
ESCUDEIRO Isso tem arte...
MOÇO Vós sempre zombais assi.
ESCUDEIRO Oh que boas vozes tem
Esta viola aqui!
Leixa-me casar a mi,
Depois eu te farei bem.

MÃE Agora vos digo eu
Que Inês está no Paraíso!
INÊS Que tendes de ver co isso?
Todo o mal há-de ser meu.
MÃE Quanta doudice!
INÊS Oh! como é seca a velhice!
Leixai-me ouvir e folgar,
Que não me hei-de contentar
De casar com parvoíce.
Pode ser maior riqueza
Que um homem avisado?
MÃE Muitas vezes, mal pecado,
é milhor boa simpreza.
LATÃO Ora oivi, e oivireis.
Escudeiro, cantareis
Alguma boa cantadela.
Namorai esta donzela
E esta cantiga direis:

Canta o Judeu

«Canas do amor, canas,
canas do amor
Polo longo dum rio
Canaval vi florido,
Canas do amo.»

 


Poemas e Poesias quinta, 24 de fevereiro de 2022

A UM ARTISTA, POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA

A UM ARTISTA

Francisca Júlia

 

 

 

Mergulha o teu olhar de fino colarista

 

No azul: medita um pouco, e escreve; um nada quase:

 

Um trecho só de prosa, uma estrofe, uma frase

 

Que patenteie a mão de um requintado artista.

 

 

Escreve! Molha a pena, o leve estilo enrista!

 

Pinta um canto do céu, uma nuvem de gaze

 

Solta, brilhante ao sol; e que a alma se te vaze

 

Na cópia dessa luz que nos deslumbra a vista.

 

 

Escreve!... Um céu ostenta o matiz da celagem

 

Onde erra o sol, moroso, entre vapores brancos,

 

Irisando, ao de leve, o verde da paisagem...

 

 

Uma ave banha ao sol o esplêndido plumacho...

 

Num recanto de bosque, a lamber os barrancos,

 

Espumeja em cachões uma cachoeira embaixo...


Poemas e Poesias quarta, 23 de fevereiro de 2022

ANGÚSTIA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

ANGÚSTIA

Florbela Espanca

 

 

 

Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!

Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Q’rer apagar no Céu – Ó sonho atroz! –
O brilho duma estrela, como o vento!...

Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: “O que te resta?...”


Poemas e Poesias terça, 22 de fevereiro de 2022

ANTICONSUMO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

ANTICONSUMO

Ferreira Gullar

 

 

 

Como vai longe o dia, Maninho,
em que a gente podia ser comum

Entre ervas burras, folhas molhadas de mamona
e salsa
a gente podia ser
simplesmente
nossas mãos nossos pés nossos cabelos
e o que queimava dentro
no escuro

Como vai longe o tempo como as águas
batendo na amurada
                               alegremente
como os peixes
vivendo no seu músculo
o mistério do mundo


Poemas e Poesias segunda, 21 de fevereiro de 2022

CHOVE? NENHUMA CHUVA CAI (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CHOVE? NENHUMA CHUVA CAI

Fernando Pessoa

 

 

 

Chove? Nenhuma chuva cai…
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu…

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento…

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro… E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim…

Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…

No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância…


Poemas e Poesias domingo, 20 de fevereiro de 2022

O RIACHO É UM CAVALO LÍQUIDO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

O RIACHO É UM CAVALO LÍQUIDO

Fabrício Carpinejar

 

 

 

O riacho é um cavalo líquido,
a pedra é um cavalo preso.
As borboletas são flores com abelhas dentro.
Liberdade é apenas mudar a forma,
o que não diminui a solidão
do nascimento.


Poemas e Poesias sábado, 19 de fevereiro de 2022

DEDICATÓRIA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA )

DEDICATÓRIA

Euclides da Cunha

 

 

 

Se acaso uma alma se fotografasse

de sorte que, nos mesmos negativos,

A mesma luz pusesse em traços vivos

O nosso coração e a nossa face;

 

E os nossos ideais, e os mais cativos

De nossos sonhos... Se a emoção que nasce

Em nós, também nas chapas se gravasse

Mesmo em ligeiros traços fugitivos;

 

Amigo! tu terias com certeza

A mais completa e insólita surpresa

Notando - deste grupo bem no meio -

 

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente

Destes sujeitos é precisamente

O mais triste, o mais pálido, o mais feio.


Poemas e Poesias sexta, 18 de fevereiro de 2022

TROVAS HUMORÍSTICAS - 12 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 12

Eno Teodoro Wanke

 

Se queres um bom conselho

Darei um e irei embora

Nunca sigas um conselho

Inslusive o dado agora

 


Poemas e Poesias quinta, 17 de fevereiro de 2022

NA MORTE DO MEU SEGUNDO FILHO (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II) - DECLAMAÇÃO - VÍDEO


Poemas e Poesias quarta, 16 de fevereiro de 2022

ÊXTASE (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)

ÊXTASE

Dagmar Destêrro

 

 

Amor,
bem sabes tu como te quis...
No afeto que minha alma te ofertou,
dei-te tudo... Ilusão... Dei-te carinho...
uma alma vibrante,
— essa taça de vinho
que sorveste feliz,
o vinho delirante
que tua vida embriagou.

Amor,
bem sabes tu como te quis.
Na volúpia de querer a tua vida,
Tua alma na minha alma confundida,
retratei-me toda inteira nos meus versos
Meus segredos disperses!

Amor,
bem sabes tu quanto te quis.
No momento supremo, iluminado,
que ainda agora o coração bendiz,
nos encontramos,
e nos amamos
o meu olhar no teu continuado.

Meu ser estremeceu,
vibrou minha alma, num lampejo.
Senti, na terra, o céu.
Tive em mim a volúpia de um desejo.

Tudo, agora, porém, é solidão.
Já não voltas, não podes mais voltar.
A minha alma lamenta em triste pranto,
nunca mais te encontrar.
Lamenta este meu coração
não haver gozado,
não haver te dado,
carinhos que me deste e eu não aceitei,
os beijos que pediste e não te dei...


Poemas e Poesias terça, 15 de fevereiro de 2022

LITANIA DAS HORAS MORTAS

LITANIA DAS HORAS MORTAS

Da Costa e Silva

 

 

 

Por estas horas de silêncio e solidão, 
Eu gosto de ficar só com o meu coração.
É nestas horas de prazer quase divino 
Que eu me sinto feliz com o meu próprio destino.

Por estas horas é que a cisma me conduz 
Por estradas de treva e caminhos de luz.

É nestas horas, quando em êxtase medito, 
Que sinto em mim a nostalgia do infinito.

Por estas horas, quando a sombra estende os véus, 
A fé me leva além dos mais remotos céus.

É nestas horas de tristeza e de saudade 
Que desperta em meu ser a ânsia da Eternidade.

Por estas horas, minhas naus ousam partir 
Para Istambul, para Golconda, para Ofir...

É nestas horas, Noite amiga, em teu regaço, 
Que eu me difundo pelo Tempo e pelo Espaço.

Por estas horas eu somente aspiro ao Bem, 
Que em vida se tornou minha Jerusalém.

É nestas horas, quando o espírito descansa, 
Que me depões na fronte o teu beijo, Esperança!

Por estas horas é que eu sinto florescer, 
Como os astros no céu, o jardim do meu ser,

É nestas horas de quietude que deponho, 
Ó Noite! em teu altar, minha lâmpada — o Sonho.

Por estas horas é que eu gosto de sonhar, 
Para ter ilusões brancas como o luar.

É nestas horas de mistério e beatitude 
Que a Glória me fascina e a Poesia me ilude.

Por estas horas de tranqüila e doce paz, 
Quanta serenidade o espírito me traz!

É nestas horas, quando a treva se constela, 
Que ouço o teu canto nas estrelas, Filomela!

Por estas horas, a minh'alma anseia por 
Teu encanto, Ventura! e teu engano, Amor!

É nestas horas de tristeza e esquecimento 
Que eu gosto de ficar só com o meu pensamento.

Por estas horas eu me julgo Parsifal 
Para ir pela renúncia à conquista do Graal.

É nestas horas que, como um eco profundo, 
Repercute no meu o coração do mundo.

Por estas horas transitórias e imortais 
Se desvanecem minhas dúvidas fatais.

É nestas horas de harmonia indefinida 
Que eu tento decifrar o teu enigma, Vida!

Por estas horas, meu instinto morre, com 
A intenção de ser justo, o anseio de ser bom.

É nestas horas de fantástico transporte 
Que eu busco interrogar a tua esfinge, Morte!

Por estas horas, eu me enlevo assim, porque 
Vela no lodo humano a luz que tudo vê...

Por tuas horas silenciosas, benfazejas, 
Deusa da Solidão, Noite! bendita sejas!


Poemas e Poesias segunda, 14 de fevereiro de 2022

BESOUROS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

BESOUROS

Cruz e Sousa

 

 

 

Marche, marche, marche a verve!
Bandeiras, clarins, tambores,
Marchar!

A poncheira ideal, que ferve,
Sons, aromas, chamas, cores!
Cantar!

Que este diabo vem, saudoso,
Das profundezas do arcano,
Viver!

O vinho maravilhoso
Da forma raro e renano,
Beber!

Vem beber o vinho iriado,
O Falerno, claro e quente,
Haurir!

Num paladar requintado,
Todo inflamado e fremente
Sentir!

Que o sangue da verve vibre
Raja, raja, raja, raja,
Taful!

E a alma do sol se equilibre
Para que mais sonhos haja
No azul!...

Mas este diabo tão fino,
Que de tudo dá o acorde
Genial!

Este capróide genuíno,
Verde, verde, morde, morde,
Fatal.


Poemas e Poesias domingo, 13 de fevereiro de 2022

O CÂNTICO DA TERRA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

O CÂNTICO DA TERRA

Cora Coralina

 

 

 

Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.


Poemas e Poesias sábado, 12 de fevereiro de 2022

SONETO 1 (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANOEL DA COSTA)

SONETO 1

Cláudio Manoel da Costa

 

 

 

Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.


Poemas e Poesias sexta, 11 de fevereiro de 2022

SOU... (POEMA DA UCRANIANA BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

SOU...

Clarice Lispector

 

 

 

Sou os brinquedos que brinquei, as gírias que usei, os nervosos e felicidades que já passei.

 Sou minha praia preferida, Garopaba, Maresias, Ipanema, sou os amores que vivi, as conversas sérias que tive com meu pai:

Eu sou o que me faz lembrar!!!

Sou a saudade que sinto, sou um sonho desfeito ao acaso, sou a infância que vivi, sou a dor de não ter dado certo, sou o sorriso por tudo que conquistei, sou a emoção de um trecho de livro, da cena de filme que me arrancou lágrimas: Eu sou o que me faz chorar!!!

Sou a raiva de não ter alcançado, sou a impotência diante das injustiças que não posso mudar, sou o desprezo pelo que os outros mentem, sou o desapontamento com o governo, o ódio que isso tudo dá.

Sou o que eu remo, sou o que eu não desisto, sou o que eu luto, sou a indignação com o lixo jogado do carro, a ardência da revolta ao ver um animal abandonado: Eu sou o que me corrói!!!

Eu sou o que eu luto, o que consigo gerar através de minhas verdades, sou os direitos que tenho e os deveres a que me obrigo, sou a estrada por onde corro, sou o que ensino e, sobretudo, o que aprendo:

Eu sou o que eu pleiteio!!! Eu não sou da forma como me visto, não sou da forma como me comporto, não sou o que eu como, muito menos o que eu bebo.

Não sou o que aparento ser: EU SOU O QUE NINGUÉM VÊ!!!


Poemas e Poesias quinta, 10 de fevereiro de 2022

CANTO PRIMEIRO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

CANTO PRIMEIRO

Sousândrade

 

 

 

Eia, imaginação divina!
Os Andes
Vulcânicos elevam cumes calvos,
Circundados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando — que espetac'los grandes!

Lá, onde o ponto do condor negreja,
Cintilando no espaço como brilhos
D'olhos, e cai a prumo sobre os filhos
Do lhama descuidado; onde lampeja

Da tempestade o raio; onde deserto,
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
Coração vivo em céu profundo aberto!

.............................................

"Nos áureos tempos, nos jardins da América
Infante adoração dobrando a crença
Ante o belo sinal, nuvem ibérica
Em sua noite a envolveu ruidosa e densa.

"Cândidos Incas! Quando já campeiam
Os heróis vencedores do inocente
Índio nu; quando os templos s'incendeiam,
Já sem virgens, sem ouro reluzente,

"Sem as sombras dos reis filhos de Manco,
Viu-se... (que tinham feito? e pouco havia
A fazer-se...) num leito puro e branco
A corrupção, que os braços estendia!

"E da existência meiga, afortunada,
O róseo fio nesse albor ameno
Foi destruído. Como ensanguentada
A terra fez sorrir ao céu sereno!

"Foi tal a maldição dos que caídos
Morderam dessa mãe querida o seio,
A contrair-se aos beijos, denegridos,
O desespero se imprimi-los veio, —

"Que ressentiu-se, verdejante e válido,
O floripôndio em flor; e quando o vento
Mugindo estorce-o doloroso, pálido,
Gemidos se ouvem no amplo firmamento!

"E o Sol, que resplandece na montanha
As noivas não encontra, não se abraçam
No puro amor; e os fanfarrões d'Espanha,
Em sangue edêneo os pés lavando, passam.

"Caiu a noite da nação formosa;
Cervais romperam por nevado armento,
Quando com a ave a corte deliciosa
Festejava o purpúreo nascimento."

Assim volvia o olhar o Guesa Errante
Às meneadas cimas qual altares
Do gênio pátrio, que a ficar distante
S`eleva a alma beijando-o além dos ares.

E enfraquecido coração, perdoa
Pungentes males que lhe estão dos seus —
Talvez feridas setas abençoa
Na hora saudosa, murmurando adeus.


Poemas e Poesias quarta, 09 de fevereiro de 2022

TREZE HORAS (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ CHAGAS)

TREZE HORAS

José Chagas

 

 

 

Aqui onde um gato conclui
seu abandono, cria-se a tarde
e o seu vento. O sol
ilumina o secreto ofício
das cousas, o mar está longe
mas seu existir nos banha. E naves
de silêncio iniciam viagens para trás
para dentro de mim e do tempo.
A paisagem se cumpre sobre
velhas casas que sustentam
séculos no ar.

 


Poemas e Poesias terça, 08 de fevereiro de 2022

CORRIDA (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)

CORRIDA

Dagmar Destêrro

 

 

 

No avanço do tempo corre a vida,
mas nesse tempo há pedras espalhadas,
pedras agudas, carnes esfarrapadas,
sangue jorrando de cada ferida.

o tempo açoita a vida noite e dia
e ele chora, tropeça, levanta e continua.
Só e esperança anima a travessia;
e a alma corre, descabelada e nua.

E a vida não tem tempo, ao tempo, em meio,
de ver o belo existente no caminho;
não perder na corrida é o seu anseio;
sua atenção conserva em desalinho.

No embrião da vida, no tempo, avanço.
Subidas e descidas — tantas conheço:
e na vertigem do correr me canso.
Procuro, em vão, meu horizonte do começo.


Poemas e Poesias segunda, 07 de fevereiro de 2022

E, ENORME, NESTA MASSA IRREGULAR (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

E, ENORME, NESTA MASSA IRREGULAR

Cesário Verde

 

 

 

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!


Poemas e Poesias domingo, 06 de fevereiro de 2022

MARCHA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

MARCHA

Cecília Meireles

 

 

 

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebraram as formas do sono
com a idéia do movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
-- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga,
é tudo que tenho,
entre o sol e o vento:
meu vestido, minha musica,
meu sonho, meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lagrima nem grito:
apenas consentimento.


Poemas e Poesias sexta, 04 de fevereiro de 2022

AHASVERUS E O GÊNIO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

AHASVERUS E O GÊNIO

Castro Alves

 

 

 

ao poeta e amigo J. Felizardo Júnior

Sabes quem foi Ahasverus?...— o precito,
O mísero Judeu, que tinha escrito
Na fronte o selo atroz!
Eterno viajor de eterna senda...
Espantado a fugir de tenda em tenda,
Fugindo embalde à vingadora voz!

Misérrimo! Correu o mundo inteiro,
E no mundo tão grande... o forasteiro
Não teve onde... pousar.
Coa mão vazia — viu a terra cheia.
O deserto negou-lhe — o grão de areia,
A gota dágua — rejeitou-lhe o mar.

DÁsia as florestas — lhe negaram sombra
A savana sem fim — negou-lhe alfombra.
O chão negou-lhe o pó!...
Tabas, serralhos, tendas e solares...
Ninguém lhe abriu a porta de seus lares
E o triste seguiu só.

Viu povos de mil climas, viu mil raças,
E não pôde entre tantas populaças
Beijar uma só mão ...
Desde a virgem do Norte à de Sevilhas,
Desde a inglesa à crioula das Antilhas
Não teve um coração! ...

E caminhou!... E as tribos se afastavam
E as mulheres tremendo murmuravam
Com respeito e pavor.
Ai! Fazia tremer do vale à serra...
Ele que só pedia sobre a terra
— Silêncio, paz e amor! —

No entanto à noite, se o Hebreu passava,
Um murmúrio de inveja se elevava,
Desde a flor da campina ao colibri.
"Ele não morre", a multidão dizia...
E o precito consigo respondia:
— "Ai! mas nunca vivi!" —

O Gênio é como Ahasverus... solitário
A marchar, a marchar no itinerário
Sem termo do existir.
Invejado! a invejar os invejosos.
Vendo a sombra dos álamos frondosos...
E sempre a caminhar... sempre a seguir...

Pede ua mão de amigo — dão-lhe palmas:
Pede um beijo de amor — e as outras almas
Fogem pasmas de si.
E o mísero de glória em glória corre...
Mas quando a terra diz: — "Ele não morre"
Responde o desgraçado: — "Eu não vivi!..."


Poemas e Poesias quinta, 03 de fevereiro de 2022

QUEIXUMES (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

QUEIXUMES

Casimiro de Abreu

 

 

Olho e vejo... tudo é gala,
Tudo canta e tudo fala,
Só minh'alma
Não se acalma,
Muda e triste não se ri!
Minha mente já delira,
E meu peito só suspira
Por ti! Por ti!

Ai! quem me dera essa vida
Tão bela e doce vivida
Nos meus lares
Sem pesares
No sossego só dali!
Não tinha-te visto as tranças,
Nem rasgado as esperanças
Por ti! Por ti!

Perdi as flores da idade,
E na flor da mocidade
É meu canto
- Todo pranto -
Qual a voz da juriti!
No teu sorriso embebido
Deixei meu sonho querido
Por ti! Por ti!

Ai! se eu pudesse, formosa,
Roçar-te os lábios de rosa
Como às flores
- Seus amores -
Faz o louco colibri;
Esta minh'alma nos hinos
Erguera cantos divinos
Por ti! Por ti!

Ai! assim viver não posso!
Morrerei, meu Deus, bem moço,
- Qual n'aurora
Que descora,
Desfolhado bogari;
Mas lá da campa na beira
Será a voz derradeira
Por ti! Por ti!

Ai! não m'esqueças já morto!
À minh'alma dá conforto,
Diz na lousa:
- "Ele repousa,
"Coitado! descansa aqui!" -
Ai! não t'esqueças, senhora,
Da flor pendida n'aurora
Por ti! Por ti!...


Poemas e Poesias quarta, 02 de fevereiro de 2022

OLINDA, DO ALTO DO MOSTEIRO (POEM DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

OLINDA, DO ALTO DO MOSTEIRO

Carlos Pena Filho

 

 

 

De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.

As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.

As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência.

Limpeza tal só imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.

Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.

Quando a luz é muito intensa
É quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé

 


Poemas e Poesias terça, 01 de fevereiro de 2022

AMOR E SEU TEMPO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AMOR E SEU TEMPO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. amor começa tarde.


Poemas e Poesias segunda, 31 de janeiro de 2022

SONETO 152 - DEPOIS QUE VIU CIBELE O CORPO HUMANO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

DEPOIS QUE VIU CIBELE O CORPO HUMANO

Soneto 152

Luís de Camões

 

 

 

Despois que vio Cibele o corpo humano
Do formoso Atys seu verde pinheiro,
Em piedade o vão furor primeiro
Convertido, chorava o grave dano.

E, á sua dor fazendo illustre engano,
A Jupiter pedio, que o verdadeiro
Preço da nobre palma e do loureiro
Ao seu pinheiro désse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
Que, crescendo, as estrellas tocar possa,
Vendo os segredos lá do ceo superno.

Oh ditoso pinheiro! oh mais ditoso
Quem se vir coroar da rama vossa,
Cantando á vossa sombra verso eterno!


Poemas e Poesias domingo, 30 de janeiro de 2022

SONETO DA DAMA CAGANDO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSAS DU BOCAGE)

SONETO DA DAMA CAGANDO

Bocage

 

 

 

Cagando estava a dama mais formosa,

E nunca se viu cu de tanta alvura;

Porém o ver cagar a formosura

Mete nojo à vontade mais gulosa!

 

Ela a massa expulsou fedentinosa

Com algum custo, porque estava dura;

Uma carta d'amores de alimpadura

Serviu àquela parte malcheirosa:

 

Ora mandem à moça mais bonita

Um escrito d'amor que lisonjeiro

Afetos move, corações incita:

 

Para o ir ver servir de reposteiro

À porta, onde o fedor, e a trampa habita,

Do sombrio palácio do alcatreiro!


Poemas e Poesias sábado, 29 de janeiro de 2022

CEM TROVAS - 002 (POEMA DE BELMIRO BRAGA)

 

CEM TROVAS

Belmiro Braga

 

TROVA 002

 

Em ti, minha mãe, se encerra

Todo o meu maior troféu:

Guardas num corpo de terra

Uma alma feita de céu


Poemas e Poesias sexta, 28 de janeiro de 2022

SONETOS (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS) DECLAMAÇÃO

SONETOS

Augusto dos Anjos

(Declamação)

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 26 de janeiro de 2022

SONETO DE BABILÔNIA E SERTÃO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

SONETO DE BABILÔNIA E SERTÃO

Ariano Suassuna

 

 

 

Com tema de Tupan-Sete
Aqui, o Corvo azul da Suspeição
apodrece nas frutas violetas,
e a Febre-escusa, a Rosa-da-infecção,
canta aos Tigres de verde e malhas-pretas.
Lá, no pêlo de cobre do Alazão,
o Bilro-de-ouro fia a Lã-vermelha.
Um Pio-de-metal é o Gaviãoe
são mansas as Cabras e as Ovelhas.
Aqui, o lodo mancha o Gato-Pardo:
a Lua esverdeada sai do Manguee
apodrece, no Medo, o Desbarato.
Lá, é fogo e limalha a Estrela-esparsa:
o Sol-da-morte luz no sol do Sangue,
mas cresce a Solidão e sonha a Garça.

 


Poemas e Poesias terça, 25 de janeiro de 2022

ESPERANÇAS (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

 

ESPERANÇAS

Álvares de Azevedo

 

 

 

Se a ilusão de minh'alma foi mentida
E, leviana, da árvore da vida,
As flores desbotei...
Se por sonhos do amor de uma donzela
Imolei meu porvir e o ser por ela
Em prantos esgotei...

Se a alma consumi na dor que mata
E banhei de uma lágrima insensata
A última esperança,
Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda,
Como dos mares pela noite infinda
A estrela da bonança!

Como nas folhas do Missal do templo
Os mistérios de Deus em ti contemplo
E na tu'alma os sinto!
Às vezes, delirante, se eu maldigo
As esperanças que sonhei contigo,
Perdoa-me, que minto!

Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda,
Como do peito a aspiração infinda
Que me influi o viver...
E como a nuvem de azulado incenso...
Como eu amo esse afeto único, imenso
Que me fará morrer!


Rompeste a alva túnica luzente
Que eu doirava por ti de amor demente
E aromei de abusões...
Deste-me em troco lágrimas aspérrimas...
Ah! que morreram a sangrar misérrimas
As minhas ilusões!

Nos encantos das fadas da ventura
Podes dormir ao sol da formosura
Sempre bela e feliz!
Irmã dos anjos, sonharei contigo:
A alma a quem negaste o último abrigo
Chora... não te maldiz!

Chora e sonha e espera: a negra sina
Talvez no céu se apague em purpurina
Alvorada de amor...
E eu acorde no céu num teu abraço
E repouse tremendo em teu regaço
Teu pobre sonhador!

 


Poemas e Poesias segunda, 24 de janeiro de 2022

SONHO POÉTICO (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

SONHO POÉTICO

Alvarenga Peixoto

 

 

 

Oh, que sonho, oh, que sonho eu tive nesta
feliz, ditosa, sossegada sesta!
Eu vi o Pão d'Açúcar levantar-se,
e no meio das ondas transformar-se
na figura do Índio mais gentil,
representando só todo o Brasil.
Pendente a tiracol de branco arminho,
côncavo dente de animal marinho
as preciosas armas lhe guardava:
era tesouro e juntamente aljava.
De pontas de diamante eram as setas,
as hásteas de ouro, mas as penas pretas;
que o Índio valeroso, ativo e forte,
não manda seta em que não mande a morte.
Zona de penas de vistosas cores,
guarnecida de bárbaros lavores,
de folhetas e pérolas pendentes,
finos cristais, topázios transparentes,
em recamadas peles de saíras,
rubins, e diamantes e safiras,
em campo de esmeralda escurecia
a linda estrela que nos traz o dia.
No cocar... oh! que assombro, oh! que riqueza!
Vi tudo quanto pode a natureza:
no peito, em grandes letras de diamante,
o nome da Augustíssima Imperante.
De inteiriço coral novo instrumento
as mãos lhe ocupa, enquanto ao doce acento
das saudosas palhetas, que afinava,
Píndaro Americano assim cantava:
"Sou vassalo, sou leal;
como tal,
fiel constante,
sirvo à glória da imperante,
sirvo à grandeza real.
Aos Elísios descerei,
fiel sempre a Portugal,
ao famoso vice-rei,
ao ilustre general,
às bandeiras que jurei.
Insultando o fado e a sorte
e a fortuna desigual,
a quem morrer sabe, a morte
nem é morte nem é mal."

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de janeiro de 2022

BARCA BELA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

BARCA BELA

Almeida Garrett

 

 

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!


Poemas e Poesias sábado, 22 de janeiro de 2022

CÍTARA (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

CÍTARA

Alceu Wamosy

 

 

 

Firo-te as cordas, cítara dormente,
Velha cítara poenta, abandonada,
Que um régio artista fez vibrar, pulsada
Pela divina mão, antigamente.

E assim, por um instante despertada,
Na mesma vibração profunda e ardente
De outrora freme, cítara dolente,
Toda a tua alma, trêmula, acordada.

Nessa maviosa música embebido,
Escuto as notas, múrmuras, chegando
Como um coro celeste, ao meu ouvido.

E eu julgo, então, sentir, no derradeiro,
No último som que morre, a alma, chorando,
Desse que as cordas te tangeu primeiro.


Poemas e Poesias sexta, 21 de janeiro de 2022

CEU FLUMINENSE (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

CÉU FLUMINENSE

Alberto de Oliveira

 

 

 

Chamas-me a ver os céus de outros países,

Também claros, azuis ou de ígneas cores,

Mas não violentos, não abrasadores

Como este, bárbaro e implacável – dizes.

 

O céu que ofendes e de que maldizes,

Basta-me no entanto; amo-o com os seus fulgores,

Amam-no poetas, amam-no pintores,

Os que vivem do sonho, e os infelizes.

 

Desde a infância, as mãos postas, ajoelhado,

Rezando ao pé de minha mãe, que o vejo.

Segue-me sempre… E ora da vida ao fim,

 

Em vindo o último sono, é o meu desejo

Tê-lo sereno assim, todo estrelado,

Ou todo sol, aberto sobre mim.


Poemas e Poesias quinta, 20 de janeiro de 2022

CONFLUÊNCIA (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

CONFLUÊNCIA

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Ter-te amado, a fantasia exata se cumprindo
sem distância.
Ter-te amado convertendo em mel
o que era ânsia.
Ter-te amado a boca, o tato, o cheiro:
intumescente encontro de reentrâncias.
Ter-te amado
fez-me sentir:

no corpo teu, o meu desejo
– é ancorada errância.


Poemas e Poesias quarta, 19 de janeiro de 2022

FOTOGRAFIA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

FOTOGRAFIA

Adélia Prado

 

 

 

Quando a minha mãe posou
para este que foi seu único retrato,
mal consentiu em ter as têmporas curvas.
Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto
que uma doutrina dura fez contido.
A boca é conspícua,
mas as orelhas se mostram.
O vestido é preto e fechado.
O temor de Deus circunda seu semblante,
como cadeia. Luminosa. Mas cadeia.
Seria um retrato triste
se não visse em seus olhos um jardim.
Não daqui. Mas jardim.


Poemas e Poesias terça, 18 de janeiro de 2022

MISTÉRIO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

MISTÉRIO

Adalgisa Nery

 

 

 

Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.

Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.

Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.

Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência...
na ânsia de saber quem grita.


Poemas e Poesias segunda, 17 de janeiro de 2022

ÊXTASE (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

ÊXTASE

Virgínia Victorino

 

 

Não sofras mais, amor, não digas nada!

Vem comigo; eu te levo. A noite é densa

e agora a voz do mar ficou suspensa,

dolorida, vibrante, apaixonada!

 

Não tarda muito a luz da madrugada...

Vem comigo! Não penses! Não se pensa!

Vem à conquista da aventura imensa,

vê, como eu vou, feliz e deslumbrada!

 

Um grande sonho me enlouquece e invade!

Vem procurar comigo a Eternidade

esse país tão vago, tão distante...

 

Vem, que eu busco o palácio da quimera,

lá, onde seja eterna a primavera,

e a voz divina das estrelas cante!


Poemas e Poesias domingo, 16 de janeiro de 2022

A FRUTA ABERTA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

A FRUTA ABERTA

Thiago de Mello

 

 

 

Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com a tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.

Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

 


Poemas e Poesias sábado, 15 de janeiro de 2022

A HORA ÍNTIMA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A HORA ÍNTIMA

Vinícius de Moraes

 

 

 

Quem pagará o enterro e as flores 
Se eu me morrer de amores? 
Quem, dentre amigos, tão amigo 
Para estar no caixão comigo? 
Quem, em meio ao funeral 
Dirá de mim: - Nunca fez mal... 
Quem, bêbedo, chorará em voz alta 
De não me ter trazido nada? 
Quem virá despetalar pétalas 
No meu túmulo de poeta? 
Quem jogará timidamente 
Na terra um grão de semente? 
Quem elevará o olhar covarde 
Até a estrela da tarde? 
Quem me dirá palavras mágicas 
Capazes de empalidecer o mármore? 
Quem, oculta em véus escuros 
Se crucificará nos muros? 
Quem, macerada de desgosto 
Sorrirá: - Rei morto, rei posto... 
Quantas, debruçadas sobre o báratro 
Sentirão as dores do parto? 
Qual a que, branca de receio 
Tocará o botão do seio? 
Quem, louca, se jogará de bruços 
A soluçar tantos soluços 
Que há de despertar receios? 
Quantos, os maxilares contraídos 
O sangue a pulsar nas cicatrizes 
Dirão: - Foi um doido amigo... 
Quem, criança, olhando a terra 
Ao ver movimentar-se um verme 
Observará um ar de critério? 
Quem, em circunstância oficial 
Há de propor meu pedestal? 
Quais os que, vindos da montanha 
Terão circunspecção tamanha 
Que eu hei de rir branco de cal? 
Qual a que, o rosto sulcado de vento 
Lançará um punhado de sal 
Na minha cova de cimento? 
Quem cantará canções de amigo 
No dia do meu funeral? 
Qual a que não estará presente 
Por motivo circunstancial? 
Quem cravará no seio duro 
Uma lâmina enferrujada? 
Quem, em seu verbo inconsútil 
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda. 
Qual o amigo que a sós consigo 
Pensará: - Não há de ser nada... 
Quem será a estranha figura 
A um tronco de árvore encostada 
Com um olhar frio e um ar de dúvida? 
Quem se abraçará comigo 
Que terá de ser arrancada? 

Quem vai pagar o enterro e as flores 
Se eu me morrer de amores?


Poemas e Poesias sexta, 14 de janeiro de 2022

HORAS DE AMOR (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

HORAS DE AMOR

Vicente de Carvalho

 

 

 

Só vivo as horas que passo
    Junto de ti, meu amor,
    Tua cintura em meu braço,
Meu beijo em tua bocca em flor...

    Só assim vivo, querida,
    Pois tudo mais não é vida.




    Ventura que mal gotteja,
    Triste do amor que se esconde,
    E só acha de onde em onde
    Um acaso que o proteja;

 

    Só alcanço o teu carinho
    Nesta sombra de folhagem,
    Onde, como ave selvagem,
    Nosso amor tem o seu ninho.

    Por entre as moitas vagueio,
    Caminho, paro, indeciso...
    Virás ou não? E agoniso
    Entre a esperança e o receio.

    Por toda a floresta, cheia
    De um rumor vago e perdido,
    Cuido escutar o ruido
    Dos teus pésinhos na areia.

    Volto-me sobresaltado
    Só porque uma ave deteve
    O vôo, e um ramo, de leve,
    Estremeceu ao meu lado.

    E emquanto na sombra curto
    Essa impaciencia hesitante
    Por ternuras de um instante,
    Por beijos dados a furto,

 

    Cheio de inveja reparo
    Nas borboletas que em bando
    Passam felizes, amando
    Na plena luz do sol claro...

    Ventura que mal gotteja,
    Triste do amor que se esconde,
    E só acha de onde em onde
    Um acaso que o proteja.

    Amor que a sombra encarcera,
    E foge ao sol e ás estradas...
    Fossemos nós de mãos dadas
    Pela vida e a primavera!

    De subito, ouço teus passos:
    D’entre folhagens de arbusto
    Olhas, tremula de susto,
    Caes palpitante em meus braços.

    E como a cançada abelha
    Que suga a flor, e adormece,
    Meu beijo poisa, e se esquece
    Em tua bocca vermelha...



 

 

    Logro só de espaço a espaço
    Algum momento de amor,
    Tua cintura em meu braço,
Meu beijo em tua bocca em flor.

    Ai, eu só vivo, querida,
    Pedaços da minha vida...


Poemas e Poesias quinta, 13 de janeiro de 2022

GO BACK (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

GO BACK

Torquato Neto

 

 

 

Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou, passou
Daqui pra melhor, foi
Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder

 


Poemas e Poesias quarta, 12 de janeiro de 2022

A TAÇA D*ÁGUA (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

A TAÇA D'ÁGUUA

Ricardo Lima

 

 

 

A taça d’água

 

Como pode o amor em água?

-- a taça d’água.

Que desagua, a água...

 

A taça d’água...

 


Poemas e Poesias terça, 11 de janeiro de 2022

CIGANOS (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

CIGANOS

Raul de Leôni

 

 

 

Lá vêm os saltimbancos, às dezenas
Levantando a poeira das estradas.
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.

Vêm num rancho faminto e libertino,
Almas estranhas, seres erradios,
Que tem na vida um único destino,
O Destino das aves e dos rios.

Ir mundo a mundo é o único programa,
A disciplina única do bando;
O cigano não crê, erra, não ama,
Se sofre, a sua dor chora cantando.

Nunca pararam desde que nasceram.
São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?
Eles mesmos não sabem; esqueceram
A sua antiga pátria originária...

Quando passam, aldeias, vilarinhos
Maldizem suas almas indefesas,
E a alegria que espalham nos caminhos
É talvez um excesso de tristezas...

Quando acampam de noite, é no relento,
Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;
Seu teto é o vácuo azul do Firmamento,
Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.

Às vezes, em vigílias ambulantes,
A noite em fora, entre canções dalmatas,
Vão seguindo ao luar, vão delirantes,
Alados no langor das serenatas.

Gemem guzlas e vibram castanholas,
E este rumor de errantes cavatinas
Lembra coisas das terras espanholas,
Nas saudades das terras levantinas.

E, então, seus vultos tredos envolvidos
Em vestes rotas, sórdidas, imundas.
Vão passando por ermos esquecidos,
Como um grupo de sombras vagabundas.

Lá vem os saltimbancos, às dezenas,
Levantando a poeira das estradas,
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.

Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!
Todos o temem como horrível gente,
Mas ele na existência aventureira,
Ri-se do medo alheio, indiferente.

E, livres como o Vento e a Luz volante,
Sob a aparência de Infelicidade,
Realizam, na sua vida errante,
O poema da eterna Liberdade.


Poemas e Poesias segunda, 10 de janeiro de 2022

PARA UM MENINO FELINO (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

PARA UM MENINO FELINO

Paulo Mendes Campos

 

 

 

O gato pensa um bocado!
Pensa de frente e de lado!
Esticado ou enrolado!
Satisfeito ou chateado!
Brincalhão ou preocupado!
Sem jantar ou já jantado!
Com saúde ou constipado!
O gato pensa um bocado!
Pensa no império chinês!...
Pensa no irmão siamês!...
Mas um gato sem talento
só tem um pensamento:
CAMUNDONGO! CAMUNDONGO!
Se te pego, te viro assim: OGNODNUMAC!...


Poemas e Poesias domingo, 09 de janeiro de 2022

MINHA VIOLA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

MINHA VIOLA

Patativa do Assaré

 

 

 

Minha viola querida,

Certa vez, na minha vida,

De alma triste e dolorida

Resolvi te abandonar.

Porém, sem as notas belas

De tuas cordas singelas,

Vi meu fardo de mazelas

Cada vez mais aumentar.

 

Vaguei sem achar encosto,

Correu-me o pranto no rosto,

O pesadelo, o desgosto,

E outros martírios sem fim

Me faziam, com surpresa,

Ingratidão, aspereza,

E o fantasma da tristeza

Chorava junto de mim.

 

Voltei desapercebido,

Sem ilusão, sem sentido,

Humilhado e arrependido,

Para te pedir perdão,

Pois tu és a joia santa

Que me prende,  que me encanta

E aplaca a dor que quebranta

O trovador do sertão.

 

Sei que, com tua harmonia,

Não componho a fantasia

Da profunda poesia

Do poeta literato,

Porém, o verso na mente

Me brota constantemente,

Como as águas da nascente

Do pé da serra do Crato.

 

Viola, minha viola,

Minha verdadeira escola,

Que me ensina e me consola,

Neste mundo de meu Deus.

Se és a estrela do meu norte,

E o prazer da minha sorte,

Na hora da minha morte,

Como será nosso adeus?

 

Meu predileto instrumento,

Será grande o sofrimento,

Quando chegar o momento

De tudo se esvaecer,

Inspiração, verso e rima.

Irei viver lá em cima,

Tu ficas com tua prima,

Cá na terra, a padecer.

 

Porém, se na eternidade,

A gente tem liberdade

De também sentir saudade,

Será grande a minha dor,

Por saber que, nesta vida,

Minha viola querida

Há de passar constrangida

Às mãos de outro cantor.


Poemas e Poesias sábado, 08 de janeiro de 2022

A PRIMEIRA ESTRELA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

A PRIMEIRA ESTRELA

Olegário Mariano

 

 

Pus-me na sombra para surpreendê-la :

Era a primeira estrela que surgia

Na minha noite e da amplidão dizia

Frases sábias.. . Quem era aquela estrela ?

 

Quem era aquela que me aparecia

Quando em penas penava por não vê-la ?

Era a felicidade que eu pedia

Em troca do que fiz por merecê-la.

 

Tenho-a afinal comigo e para tê-la

Fiz todo bem no mundo que podia.

Deu-me a vida o condão de compreendê-la

E ela me deu, bendita aquela estrela !

Coragem calma e indiferença fria

De alcançar a ventura e de perdê-la

Sem saber se a alcançava ou se a perdia.


Poemas e Poesias sexta, 07 de janeiro de 2022

MALDIÇÃO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

MALDIÇÃO

Olavo Bilac

 

 

 

Se por vinte anos, nesta furna escura, 
Deixei dormir a minha maldição, 
– Hoje, velha e cansada da amargura, 
Minh’alma se abrirá como um vulcão. 

E, em torrentes de cólera e loucura, 
Sobre a tua cabeça ferverão 
Vinte anos de silêncio e de tortura, 
Vinte anos de agonia e solidão… 

Maldita sejas pelo Ideal perdido! 
Pelo mal que fizeste sem querer! 
Pelo amor que morreu sem ter nascido! 

Pelas horas vividas sem prazer! 
Pela tristeza do que eu tenho sido! 
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!… 


Poemas e Poesias quinta, 06 de janeiro de 2022

O BECO (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

O BECO

Menotti Del Picchia 

 

 

 

O BECO ao crepúsculo é uma paisagem de limbo
um carvão de Steinlein.

Mulheres endomingadas atravancam as calçadas
onde homens sisudos de braços peludos fumam cachimbo.

 

Um rancho infantil o silêncio desmancha
e a canção se desata:

—Senhora D. Sancha

coberta de ouro e prata ...

 

Salta de uma janela um gramofone rouco
que rasca range ri parece louco.

 

Brusco cessa. O silêncio desce pelas
almas. Nos céus ardem constelações.

 

Passa o acendedor de lampiões

como um mágico doido que andasse a semear estrelas


Poemas e Poesias quarta, 05 de janeiro de 2022

O ESPELHO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

O ESPELHO

(Mário Quintana)

 

 

 

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse

Que me olha e é tão mais velho do que eu?

Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...

Meu Deus, Meu Deus...Parece

Meu velho pai - que já morreu!

Como pude ficarmos assim?

Nosso olhar - duro - interroga:

"O que fizeste de mim?!"

Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,

Lentamente, ruga a ruga...Que importa? Eu sou, ainda,

Aquele mesmo menino teimoso de sempre

E os teus planos enfim lá se foram por terra.

Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!-

Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...


Poemas e Poesias terça, 04 de janeiro de 2022

O PEDIDO (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

O PEDIDO

Maria Firmina dos Reis

 

 

 

Oh! dessas flores que te adornam

virgem, Embora esposa de um momento,

atende! Uma somente, eu te suplico

dá ─ m’a; Dos seios dela meu sossego pende.

 

 Assim dizia adolescente belo,

Cuja afeição o conduzia a ela,

E com uma rosa perfumada, e leda

Brincava a jovem, festival donzela.

 

Ela fitou-o com um sorriso mago,

Cheio de encanto, de afeição singela,

E deu-lhe grata ─ desfolhando a rosa,

As meigas pétalas dessa flor tão bela!

 

Não sei, se a jovem estremeceu beijando-a;

Sei que guardou-as: ─ fraternal abraço!

Era essa rosa desfolhada ─ as notas

Últimas d’harpa, que se esvai no espaço


Poemas e Poesias segunda, 03 de janeiro de 2022

CANTIGA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CANTIGA

Manuel Bandeira

 

 

 

Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d’alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.


Poemas e Poesias domingo, 02 de janeiro de 2022

MUNDO PEQUENO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

MUNDO PEQUENO

Manoel de Barros

 

 

 

 

O mundo meu é pequeno, Senhor.

Tem um rio e um pouco de árvores.

Nossa casa foi feita de costas para o rio.

Formigas recortam roseiras da avó.

Nos fundos do quintal há um menino e suas latas

maravilhosas.

Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas

com aves.

Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os

besouros pensam que estão no incêndio.

Quando o rio está começando um peixe,

Ele me coisa

Ele me rã

Ele me árvore.

De tarde um velho tocará sua flauta para inverter

os ocasos.


Poemas e Poesias sábado, 01 de janeiro de 2022

GRITO DE GUERRA DO CLUBE (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

GRITO DE GUERRA DO CLUBE

Luís Turiba

 

 

 

Sete e sete são catorze

Três vez sete, vinte e um

Tive sete sonhos eróticos

Mas não gozei em nenhum

 

Zum zum zum

Parara tim pum

 

Ócio

          Ócio

                      Ócio


Poemas e Poesias sexta, 31 de dezembro de 2021

NESTA VIDA DE ÁSPEROS CAMINHOS (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

NESTA VIDA DE ÁSPEROS CAMINHOS

Luís Edmundo

 

 

 

Nesta vida de ásperos caminhos,

A Ventura, querida, é como a rosa:

Nasce cercada de cruéis espinhos.

E é por isso que a vida é tormentosa.

 

Punhais agudos, ríspidos, daninhos,

Servem de escudo à nossa mão nervosa.

Ventura, tu que embriagas como os vinhos,

Por que és, assim, tal falsa e caprichosa?

 

Meu amor, tu que a buscas, tem cuidado;

Que o teu gesto não seja desastrado

A erguer, assim, a tua mão formosa.

 

Não imaginas como sofreria,

Se te visse chorar, descrente, um dia!

A Ventura, querida, é como rosa...


Poemas e Poesias quinta, 30 de dezembro de 2021

A NOIVA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

A NOIVA

Júlio Dinis

(Grafia original)

 

 

Mal as regiões do oriente
A luz da manhã tingia,
Já ao cristalino espelho
A linda noiva sorria,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

A noite passara à vela
E que noiva a dormiria?
E ao desmaiar das estrelas,
Alvoroçada se erguia.
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Depois, ligeira, impaciente, Chegava-se à gelosia
A ver se o sol já dourava
Os cimos da serrania,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

De quando em quando chorava… E o que chorar a fazia?
Saudades do que passara? Terrores do que viria?
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Mas são lágrimas de noiva, Um só beijo as secaria,
São como gotas de orvalho
Quando o Sol as alumia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Que longo porvir d’amores, Que futuro de poesia,
Que palácios encantados
Lhe pintava a fantasia,
Quando a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia!

E ao casto leito de virgem
Dentro da alcova sombria,
A noiva, de quando em quando,
Inquieta os olhos volvia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Por entre o rosai florido, Que o balcão lhe entretecia As avezinhas
cantavam
Com festiva melodia.
E ela a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Alto ia o Sol, resplendente
Na manhã daquele dia,
Cuja noite… Esta lembrança
Da noiva as faces tingia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia

A mãe, vendo-a tão formosa, Julgava um sonho o que via, Que
o vestido de noivado
As graças lhe encarecia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Vêm as irmãs, que a contemplam
Com inveja, eu juraria: Ela baixa os olhos, cora,
O que mais bela a fazia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Junto delas, perturbada, Quase nem falar podia;
So as mães bem compreendem O que a noiva então sentia, Quando
a flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

As horas passam tão lentas! E o coração lhe batia,
A mãe chorava, coitada, Com saudades o fazia;
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

A sala já estava cheia; A noiva achava-a vazia,
Que entre tantos convidados
Ainda o noivo se não via;
E a alva flor da laranjeira
Há muito do véu pendia!

Passa a manhã, e não chega! Não chega, e é já
meio-dia! Nas varandas, nos eirados,
Se dispersa a companhia; E a alva flor da laranjeira Há tanto do véu
pendia!

O rosto da bela noiva
Cada vez mais se anuvia,
Não sei que voz misteriosa
Desgraças lhe pressagia;
E a alva flor da laranjeira
Inda do véu pendia.

Fenece a tarde. Eis a noite, Hora de melancolia.
No rosto dos convidados
Desassossego se lia,
E a alva flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.

Tudo é silêncio. A coitada
Uma estátua parecia…
Tão pálida como mármore,
Como ele imóvel, fria;
Só a flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.

Abrem-se as portas. «É ele!» Disse toda a companhia:
Porém ilusória esperança! Um pajem só aparecia:
E a alva flor da laranjeira
Do véu da noiva caía.

Tristes novas traz o pajem, Que triste o rosto trazia;
Fêz-se um silêncio profundo
Entanto que ele as dizia,
E a alva flor da laranjeira
Inda por terra jazia.

Dispam-se as galas da festa, Calem-se os sons da alegria, Que morto em cruel
combate O noivo… Um grito se ouvia, Junto à flor da laranjeira,
A noiva no chão caía..

Cercam-na todos… debalde, O seio já não batia;
Aquela mimosa planta
Sem alentos sucumbia,
Como a flor da laranjeira,
Derrubada ali jazia.

Mal sabia a pobre noiva Pra que bodas se vestia! Mal sonhava a desposada
Que a morte esposar devia! Quando a flor da laranjeira Ao véu da neve
prendia.

Com as vestes do noivado Para o sepulcro ela se ia; Em vez do rubor da noiva
A palidez da agonia
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Tantos sonhos que sonhara!… Tanta esp’rança que nutria!… Por
esposo tinha a morte,
Por tálamo, a lousa fria, E a flor da laranjeira
Com ela à campa descia.


Poemas e Poesias quarta, 29 de dezembro de 2021

O RELÓGIO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

O RELÓGIO

Jorge de Lima

 

 

 

Relógio, meu amigo, és a Vida em Segundos…
Consulto-te: um segundo! E quem sabe se agora,
Como eu próprio, a pensar, pensará doutros mundos
Alma que filosofa e investiga e labora?

Há de a morte ceifar somas de moribundos.
O relógio trabalha… E um sorri e outro chora,
Nas cavernas, no mar ou nos antros profundos
Ou no abismo que assombra e que assusta e apavora…

Relógio, meu amigo, és o meu companheiro,
Que aos vencidos, aos réus, aos párias e ao morfético
Tem posturas de algoz e gestos de coveiro…

Relógio, meu amigo, as blasfêmias e a prece,
Tudo encerra o segundo, insólito – sintético:
A volúpia do beijo e a mágoa que enlouquece!


Poemas e Poesias terça, 28 de dezembro de 2021

O FIM DO MUNDO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

 

O FIM DO MUNDO

João Cabral de Melo Neto

 

 

No fim de um mundo melancólico os homens leem
jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas que ardem como o sol.
Me deram uma maça para lembrar a morte.
Sei que cidades telegrafam pedindo querosene.
O véu que olhei voar caiu no deserto. O poema final ninguém
escreverá desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim
me preocupa o sonho final.


Poemas e Poesias segunda, 27 de dezembro de 2021

CANTO RESIGNADO (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

CANTO RESIGNADO

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Sou um poeta
dionisíaco,
visionário,
resignado em seu destino
sedentário.

Sonho, como os pássaros
que se vão a cada alvorada
e adormecem, à música da aragem,
com seus violinos
na folhagem.

Envelheço
diante dos mesmos horizontes,
braços estendidos a abrigar
o cansaço dos viajantes
invejando-lhes o destino
sem coragem de ver
seus passaportes.

Um poeta
cumprindo sua missão: desabrochar
versos (como flores)
e encher de sons o espaço
como as ramagens
ao arco do vento.


Poemas e Poesias domingo, 26 de dezembro de 2021

DESPEDIDA (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DESPEDIDA

Hilda Hilst

 

 

 

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.


Poemas e Poesias sábado, 25 de dezembro de 2021

A PULGA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

A PULGA

Hermes Fontes

 

 

 

Um sinalzinho preto em teu colo de neve:
Examino se é próprio, ou fingido a nanquim…
Mas o pontinho escuro anima-se; e, ágil, breve,
Salta aqui, salta ali e vem pousar em mim.

Sinto-o no corpo: o inseto, a mais e mais se atreve.
Põe-me um ardor de urtiga em cada poro, e, assim,
Fervo e salto, eu também… Ao seu contacto, leve,
A epiderme é um incêndio, o sangue é um torvelim.

É uma pulga! Tirou-me o bom humor e o agrado!
– Serena perfeição em que a gente se julga,
Morre num sopro: é grão de pó, miga qualquer…

Quanto orgulho se tem despido e desmanchado,
Por um nada, um nadinha, uma pulga!? É que a pulga
Em astúcia é igual à raposa e à mulher…


Poemas e Poesias sexta, 24 de dezembro de 2021

CANÇÃO DO EXPEDICIONÁRIO (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

CANÇÃO DO EXPEDICIONÁRIO

Guilherme de Almeida

 

 

 

Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
das selvas, dos cafezais,
da choupana onde um é pouco,
dois é bom, três é demais.

Venho das praias sedosas,
das montanhas alterosas,
do pampa, do seringal,
das margens crespas dos rios,
dos verdes mares bravios,
de minha terra natal.

Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra
sem que eu volte para lá
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:

Nossa Vitória final,
que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil!

Eu venho da minha terra,
da casa branca da serra
e do luar do sertão;
venho da minha Maria
cujo nome principia
na palma da minha mão.

Braços mornos de Moema,
lábios de mel de Iracema
estendidos para mim!
Ó minha terra querida
da Senhora Aparecida
e do Senhor do Bonfim!

Você sabe de onde eu venho?
É de uma pátria que eu tenho
no bojo do meu violão;
que de viver em meu peito
foi até tomando um jeito
de um enorme coração.

Deixei lá atrás meu terreiro
meu limão meu limoeiro,
meu pé de jacarandá,
minha casa pequenina
lá no alto da colina
onde canta o sabiá.

Venho de além desse monte
que ainda azula no horizonte,
onde o nosso amor nasceu;
do rancho que tinha ao lado
um coqueiro que, coitado,
de saudade já morreu.

Venho do verde mais belo,
do mais dourado amarelo,
do azul mais cheio de luz,
cheio de estrelas prateadas
que se ajoelham, deslumbradas,

fazendo o sinal da cruz


Poemas e Poesias quinta, 23 de dezembro de 2021

CARTA (A UM AMIGO QUE ME PEDIU VERSOS) - POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO

CARTA (A UM AMIGO QUE ME PEDIU VERSOS)

Guerra Junqueiro

 

 

 

Como hei-de ser um Petrarca,
Cantar como um rouxinol,
Se o meu termómetro marca
Quarenta e dois graus ao sol!

Da lira bárbara e tosca
Nem saem trovas d'Alfama.
Enxota o Pégaso a mosca,
E eu durmo a sesta na cama.

A hipocondria maciça
Conduzo-a, não há remédio,
Na jumenta da preguiça
Pelas charnecas do tédio.

Eu trago a inspiração oca,
Ando abatido, ando mono;
Meus versos abrem a boca,
Como os porteiros com sono.

Não tenho a rima imprevista,
Os guizos d'oiro ou de opala,
Que à asa da estrofe o artista
Sublime prende ao largá-la.

P'ra lapidar à vontade
Um belo verso radiante,
Falta-me a tenacidade,
Que é como o pó do diamante.

A musa foi-se-me embora;
Para onde foi nem me lembro;
Só a torno a ver agora
Lá para os fins de Setembro.

Anda talvez nas florestas
Fazendo orgias pagãs,
Entre os aromas das giestas
E os braços dos Egipãs.

Deixá-la andar lá dois meses
Colhendo imagens e flores,
Para espanto dos burgueses
E ruína dos editores.

Enfim, o calor achata-nos.
Vamos aos bosques pacíficos
Onde os guarda-sóis — os plátanos —
Têm forros novos, magníficos!


Poemas e Poesias quarta, 22 de dezembro de 2021

POIS CASEI MÁ HORA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

POIS CASEI MÁ HORA

Gil Vicente

(Grafia original)

 

 

 

Pois casei má hora, e nela,
e com tal marido, prima...
Comprarei cá üa gamela,
par'ò ter debaixo dela,
e um grão penedo em cima.
Porque vai-se-me às figueiras,
e come verde e maduro;
e quantas uvas penduro
jeita nas gorgomeleiras:
parece negro monturo.

Vai-se-me às ameixieiras,
antes que sejam maduras.
Ele quebra as cereijeiras,
ele vendima as parreiras,
e não sei que faz das uvas.
Ele não vai à lavrada,
ele todo o dia come,
ele toda a noite dorme,
ele não faz nunca nada,
e sempre me diz que há fome!

Jesu! Jesu! Posso-te dizer,
e jurar e tresjurar,
e provar e reprovar,
e andar e revolver,
que é milhor pera beber,
que não pera maridar.
O demo que o fez marido!
Que assi seco como é
beberá a torre da Sé:
então arma um arruído
assi debaixo do pé!...


Poemas e Poesias terça, 21 de dezembro de 2021

CHUVA DE CINZAS (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

CHUVA DE CINZAS

Gilka Machado

 

 

 

Chuva de cinzas...Cai a tarde lá por fora
na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.

Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.

Hora crepuscular - concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;

hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.


Poemas e Poesias segunda, 20 de dezembro de 2021

A ONDINA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

A ONDINA

Francisca Júlia

 

 

 

Rente ao mar que soluça e lambe a praia, a Ondina,
Solto, ás brizas da noite, o aureo cabello, núa,
Pela praia passeia. A opalica neblina
Tem reflexos de prata á refracção da lua.

Uma velha goleta encalhada, a bolina
Rôta, pompeia no ar a vela, que fluctua.
E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se espumante, á praia vem, recúa... 

E, surdindo da treva, um monstro negro, fito
O olhar na Ondina, avança, embargando-lhe o passo...
Ella tenta fugir, suffoca o choro, o grito...

Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma,
Roja-se aos pés da Ondina e esconde-a no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.


Poemas e Poesias domingo, 19 de dezembro de 2021

AMIGA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

AMIGA

Florbela Espanca

 

 

 

Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho ...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho ...

Beija-mas bem! ... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos
Os beijos que sonhei prà minha boca! ...


Poemas e Poesias sábado, 18 de dezembro de 2021

NOTÍCIA DA MORTE DE ALBERTO SILVA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NOTÍCIA DA MORTE DE ALBERTO SILVA

Ferreira Gullar

 

 

 

Eis aqui o morto
chegado a bom porto

Eis aqui o morto
como um rei deposto

Eis aqui o morto
com seu terno curto

Eis aqui o morto
com seu corpo duro

Eis aqui o morto
enfim no seguro

II

De barba feita, cabelo penteado
jamais esteve tão bem arrumado

De camisa nova, gravata borboleta
parece até que vai para uma festa

No rosto calmo, um leve sorriso
nem parece aquele mais-morto-que-vivo

Imóvel e rijo assim como o vês
parece que nunca esteve tão feliz

III

Morava no Méier desde menino
Seu grande sonho era tocar violino

Fez o curso primário numa escola pública
quanto ao secundário resta muita dúvida

Aos treze anos já estava empregado
num escritório da rua do Senado

Quando o pai morreu criou os irmãos
Sempre foi um homem de bom coração

Começou contínuo e acabou funcionário
Sempre eficiente e cumpridor do horário

Gostou de Nezinha, de cabelos longos,
que um dia sumiu com um tal de Raimundo

Gostou de Esmeralda uma de olhos pretos
Ela nunca soube desse amor secreto

Endoidou de fato por Laura Marlene
que dormiu com todos menos com ele

Casou com Luísa, que morava longe,
não tinha olhos pretos nem cabelos longos

Apesar de tudo, foi bom pai de família
sua casa tinha uma boa mobília

Conversava pouco mas foi bom marido
Comprou televisão e um rádio transístor

Não foi carinhoso com a mulher e a filha
mas deixou para elas um seguro de vida

Morreu de repente ao chegar em casa
ainda com o terno puído que usava

Não saiu notícia em jornal algum
Foi apenas a morte de um homem comum

E porque ninguém noticiou o fato
Fazemos aqui este breve relato

IV

Não foi nada de mais, claro, o que aconteceu:
apenas um homem, igual aos outros, que morreu

Que nos importa agora se quando menino
O seu grande sonho foi tocar violino?

Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?

Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?

Que nos importa agora se algum dia ele quis
Conhecer Nova York, Londres ou Paris?

Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?

Agora está completo, já nada lhe falta:
nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda

V

Mas é preciso dizer que ele foi como um fio
d’água que não chegou a ser rio

Refletiu no seu curso o laranjal dourado
sem que nada desse ouro lhe fosse dado

Refletiu na sua pele o céu azul de outubro
e as esplendentes ruínas do crepúsculo

E agora, quando se vai perder no mar imenso,
tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio:

toda palavra dita, toda palavra ouvida
todo riso adiado ou esperança escondida

toda fúria guardada, todo gesto detido
o orgulho humilhado, o carinho contido

o violino sonhado, as nuvens, a espuma
das nebulosas, a bomba nuclear
agora nele são coisa alguma

VI

Mas no fim do relato é preciso dizer
que esse morto não teve tempo de viver

Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão:
vendeu sua vida aos seus irmãos

Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo:
vendeu-a à vista, ou melhor, deu-a adiantado

Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro:
vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram

VII

Enfim este é o morto
agora homem completo:
só carne e esqueleto

Enfim este é o morto
totalmente presente:
unha, cabelo, dente

Enfim este é o morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade.


Poemas e Poesias sexta, 17 de dezembro de 2021

CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA

Fernando Pessoa

 

 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...


Poemas e Poesias quinta, 16 de dezembro de 2021

O MUNDO APARECE POR DEMAIS EXPLICADO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

O MUNDO APARECE DEMASIADO EXPLICADO

Fabrício Carpinejar

 

 

 

O mundo aparece demasiado explicado.

Teu jeito calado indica esperança,

mas quem diz que não é remorso?

 

Sou fiel aos hábitos; tu, aos mistérios.

Não coincidimos nossa lealdade.

Suporto, sobrevives.

 

O que adianta transbordar

se não dás conta do mínimo?

O que adianta me retrair

se não percebo o invisível?

 

 

 

             *   *   *

 

Não ter sido compreendido

condenou-me a assumir verdades

que desconhecia, filhos que

não eram de minha boca,

compromissos que não quis ir.

 

Ao longo da fala,

abri correspondências alheias.

A ausência de clareza

me perturbou a viver de favor

em meu corpo.

 

 

        *   *   *

 

 

Não me inquieto

quando não recebo as respostas

das perguntas que não fiz.

Eu me conformei

em reservar alguma coisa

de ti para saber depois.

Um pouco de nosso amor

será póstumo.

É recomendável

não descobrir todos os segredos.

 

 

          *   *   *

 

 

Para a morte, sofre de um problema.

Não estou todo em um único lugar.

 

 

      *   *   *

 

Os dias no verão

são cadeiras

para fora da casa.

Armar o ar,

desempalhar

a luz e deslizar

na esponja noturna da grama.

 

Ponha esse sol de janeiro

em minha conta.

 

 

       *   *   *

 

Alguém dentro de mim

mente para me proteger.

Não sei quem tem razão

sobre meus desastres.

Se permaneci em excesso

e não varei a outra margem.

Se me deixei fora por muito tempo

e esqueci o endereço.

 

Quando estamos próximos de dizer

é que não estamos mais aqui.

 

 

         *   *   *

 

Não conto meus pesadelos ao acordar.

Não termino mais uma frase inteira.

 

O começo de uma conversa é difícil

Depois mais difícil se toma

quando ela aconteceu

sem começar.  


Poemas e Poesias quarta, 15 de dezembro de 2021

DOM QUIXOTE (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

DOM QUIXOTE

Euclides da Cunha

 

 

 

Assim à aldeia volta o da triste figura
Ao tardo caminhar do Rocinante lento;
No arcabouço dobrado um grande desalento,
No entristecido olhar uns laivos de loucura.
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura,
Do ideal e da fé, tudo isto num momento,
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre risos boçais do bacharel e o cura.

Mas certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente,
Contigo a sorte ao pôr neste teu cérebro oco,
O brilho da ilusão do espírito doente;

Porque há cousa pior: é o ir-se pouco a pouco
Perdendo qual perdeste um ideal ardente
E ardentes ilusões e não se ficar louco.


Poemas e Poesias terça, 14 de dezembro de 2021

TROVAS HUMORÍSTICAS - 11 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 11

Eno Teodoro Wanke

 

A dívida é aborrecida

Pois, seja pequena ou grande

Quando mais é contraída

Tanto mais ela se expande

 


Poemas e Poesias segunda, 13 de dezembro de 2021

ASPIRAÇÃO (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

ASPIRAÇÃO

Dom Pedro II

 

 

 

       Deus, que os orbes regulas, esplendentes,
       Em número e medida poderados,
       Neles abrigo dás aos desterrados
       Que se vão suspirosos e plangentes.

       Assim, dos céus às vastidões silentes
       Ergo os meus pobre olhos fatigados,
       Indagando em que mundos apartados
       Lenitivo à saudade nos consentes.

       Breve, Senhor, do cárcere da argila
       Hei de evolar-me, murmurando ansioso
       Tímida prece; digna-te a ouví-la!

       Põe-me ao pé do Cruzeiro majestoso
       Que ao antártico céu vivo cintila,
       Fitando sempre o meu Brasil saudoso!


Poemas e Poesias domingo, 12 de dezembro de 2021

EU SOU TAL QUAL O PARNAÍBA: EXISTE... (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

EU SOU TAL QUAL O PARNAÍBA: EXISTE...

Da Costa e Silva

 

 

 

Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata…

O seu destino em retratar consiste;
Porém o ri todo que retrata,
Alegre que era, vai tornando triste
No fluído espelho móvel de ouro e prata…

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou dessa maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.
Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio…


Poemas e Poesias sábado, 11 de dezembro de 2021

ABELHAS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ABELHAS

Cruz e Sousa

 

 

 

Gotas de luz e perfume,
Leves, tênues, delicadas,
Acesas no doce lume
De purpúreas alvoradas.

Pingos de ouro cristalinos
Alados na esfera, ondeando,
Dispersos por entre os hinos,
Da natureza vibrando.

Sorrisos aéreos, soltos,
Flavas asas radiantes,
Que levam consigo envoltos
Da aurora os sóis fecundantes.

Da aurora que a primavera
Faz cantar, brota no peito
E floresce em folhas de hera
O coração satisfeito.

Essa aurora produtiva
Do amor soberano e eterno,
Que é nas almas força viva
E nas abelhas falerno.

Nas doudejantes abelhas
Que dentre flores volitam
E do sol entre as centelhas
Resplendem, fulgem, palpitam.

Zumbem, fervem nas colméias
E rumorejam no enxame
Pelas flóridas aléias
Onde um prado se derrame.

Assim mesmo pequeninas
E quase invisíveis, quase,
Com as suas asitas finas,
De etérea de fluida gaze.

Ah! quanto são adoráveis
Os favos que elas fabricam!
Com que graças inefáveis
Se geram, se multiplicam.

Nos afãs industriosos
Que enlevo, que encanto vê-las
Com seus corpos luminosos
D'iriante brilho d'estrelas.

E nas ondas murmurosas
Dos peregrinos adejos
Vão dar ao lábio das rosas
O mel doirado dos beijos.


Poemas e Poesias sexta, 10 de dezembro de 2021

MULHER DA VIDA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MULHHER DA VIDA

Cora Coralina

 

 

 

Mulher
da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida, minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por
aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.
Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.
Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.
O Justo falou então a palavra de eqüidade:
Ninguém te condenou, mulher...
nem eu te condeno.
A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.
Mulher da Vida, minha irmã.
No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.
E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco em
novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.
Mulher da Vida, minha irmã.
Declarou-lhe Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem
no Reino de Deus.
Evangelho de São Mateus 21, ver.31.


Poemas e Poesias quinta, 09 de dezembro de 2021

I (SONETOS) PARA CANTAR DE AMOR TENROS CUIDADOS (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

I (SONETOS) PRA CANTAR DE AMOR TENROS CUIDADOS

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 

Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino;

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.


Poemas e Poesias quarta, 08 de dezembro de 2021

SONHE (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

SONHE

Clarice Lispector

 

 

Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas.


Poemas e Poesias terça, 07 de dezembro de 2021

DESLUMBRAMENTOS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

DESLUMBRAMENTOS

Cesário Verde

 

 

Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!


Poemas e Poesias segunda, 06 de dezembro de 2021

MÁQUINA BREVE (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

MÁQUINA BREVE

Cecília Meireles

 

 

 

O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.

Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.


Poemas e Poesias sábado, 04 de dezembro de 2021

O LAÇO DE FITA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)
                                                  
O LAÇO DE FITA
Casto Alves





 

Não sabes, criança? ′stou louco de amores...
Prendi meus affectos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas nevoas?!
Não rias, prendi-me
                  N′um laço de fita.

Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabellos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu′enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se
                  O laço de fita.

Meu ser que voava nas luzes da festa,
Qual passaro bravo, que os ares agita,

Eu vi de repente captivo, submisso
Rolar prisioneiro
                  N′um laço de fita.

E agora enleiada na tenue cadêa
Debalde minh′alma se embate, se irrita...
O braço que rompe cadêas de ferro,
Não quebra teus élos,
                  Ó laço de fita!

Meu Deus! As phalenas têm azas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas pennas brilhantes...
Mas tu... tens por azas
                  Um laço de fita!

Ha pouco voaras na célere walsa,
Na walsa que anceia, que estúa e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus labios...
Beijava-te apenas...
                  Teu laço de fita.

Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N′alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadêa libertes as tranças,
Mas eu... fico preso
                  No laço de fita.

 

Pois bem! Quando um dia, na sombra do valle
Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c′ròa...
                  Teu laço de fita.

 


Poemas e Poesias sexta, 03 de dezembro de 2021

VISÃO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU

VISÃO

Casimiro de Abreu

 

 

 

Uma noite, meu Deus, que noite aquela!
Por entre as galas, no fervor da dança,
Vi passar, qual num sonho vaporoso,
O rosto virginal duma criança.

Sorri-me - era o sonho de minh'alma
Esse riso infantil que o lábio tinha:
- Talvez que essa alma dos amores puros
Pudesse um dia conversar co'a minha!

Eu olhei, ela olhou... doce mistério!
Minh'alma despertou-se à luz da vida,
E as vozes duma lira e dum piano
Juntas se uniram na canção querida.

Depois eu indolente descuidei-me
Da planta nova dos gentis amores,
E a criança, correndo pela vida,
Foi colher nos jardins mais lindas flores.

Não voltou; - talvez ela adormecesse
Junto à fonte, deitada na verdura,
E - sonhando - a criança se recorde
Do moço que ela viu e que a procura!

Corri pelas campinas noite e dia
Atrás do berço d'ouro dessa fada;
Rasguei-me nos espinhos do caminho...
Cansei-me a procurar e não vi nada!

Agora como um louco eu fito as turbas
Sempre a ver se descubro a face linda...
- Os outros a sorrir passam cantando,
Só eu a suspirar procuro ainda!...

Onde foste, visão dos meus amores!
Minh'alma sem te ver louca suspira!
- Nunca mais unirás, sombra encantada,
O som do teu piano à voz da lira?!...


Poemas e Poesias quinta, 02 de dezembro de 2021

OLINDA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

OLINDA

Carlos Pena Filho

 

 

 

De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.

As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.

As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência.

Limpeza tal só imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.

Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.

Quando a luz é muito intensa
é quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé.

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 01 de dezembro de 2021

AMOR É BICHO INSTRUÍDO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

 

AMOR É BICHO INSTRUÍDO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.


Poemas e Poesias terça, 30 de novembro de 2021

SONETO 150 - DEPOIS QUE QUIS AMOR QUE EU SÓ PASSASSE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

DEPOIS QUE QUIS AMOR QUE QUE EU SÓ PASSASE

Soneto 150

Luís de Camões

 

 

 

Despois que quiz Amor que eu só passasse
Quanto mal ja por muitos repartio,
Entregou-me á Fortuna, porque vio
Que não tinha mais mal que em mi mostrasse.

Ella, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que elle só me reduzio,
O que para ninguem se consentio,
Para mim consentio que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando.
Copioso exemplario para a gente
Que destes dous tyrannos he sujeita;

Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!


Poemas e Poesias segunda, 29 de novembro de 2021

SONETO DA ESMOLA DESVIRTUADA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA ESMOLA DESVIRTUADA

Bocage

 

 

Padre Frei Cosme, vossa reverencia
Se enganna, ou engannar-nos talvez tenta:
Quem as riquezas dá, quem nos sustenta,
Não é de Deus a summa providencia?

Pois logo com que cara ou consciencia
Esmola pede, e arrepanhar intenta
Para o Senhor da Paz, ou da Tormenta?
Tem Deus do homem acaso dependencia?

Tire a mascara pois, largue a saccola,
E deixe o povo, a quem impunemente
Em nome do Senhor escorcha, e exfolla:

À viuva deixe a esmola, e ao indigente;
E não queira, hypocrita farsola
Foder à custa da devota gente.

Poemas e Poesias domingo, 28 de novembro de 2021

CEM TROVAS - 001 (POEMA DE BELMIRO BRAGA)

CEM TROVAS

Belmiro Braga

 

TROVA 001

 

 

 

As almas de muita gente                     
são como o rio profundo:                          
-a face tão transparente,   
e quanto lodo no fundo!.


Poemas e Poesias sábado, 27 de novembro de 2021

VERSOS DE AMOR (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

VERSOS DE AMOR

Augusto dos Anjos

 

 

 

A um poeta erótico

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a . . ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
E Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal faze-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!

 


Poemas e Poesias quinta, 25 de novembro de 2021

O SOL DE DEUS (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

O SOL DE DEUS

Ariano Suassuna

 

 

 

 

Mas eu enfrentarei o Sol divino,

o Olhar sagrado em que a Pantera arde.

Saberei porque a teia do Destino

não houve quem cortasse ou desatasse.

 

Não serei orgulhoso nem covarde,

que o sangue se rebela ao som do Sino.

Verei o Jaguapardo e a luz da Tarde,

Pedra do Sonho e cetro do Divino.

 

Ela virá-Mulher- aflando as asas,

com o mosto da Romã, o sono, a Casa,

e há de sagrar-me a vista o Gavião.

 

Mas sei, também, que só assim verei

a coroa da Chama e Deus, meu Rei,

assentado em seu trono do Sertão.


Poemas e Poesias quarta, 24 de novembro de 2021

EPITÁFIO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

EPITÁFIO

Álvares de Azevedo

 

 

 

Perdão, meu Deus, se a túnica da vida...
Insano profanei-a nos amores!
Se da c'roa dos sonhos perfumados
Eu próprio desfolhei as róseas flores!
 
No vaso impuro corrompeu-se o néctar,
A argila da existência desbotou-me...
O sol de tua gloria abriu-me as pálpebras,
Da nódoa das paixões purificou-me!


E quantos sonhos na ilusão da vida!
Quanta esperança no futuro ainda!
Tudo calou-se pela noite eterna...
E eu vago errante e só na treva infinda...
 
Alma em fogo, sedenta de infinito,
Num mundo de visões o vôo abrindo,
Como o vento do mar no céu noturno
Entre as nuvens de Deus passei dormindo!
 
A vida é noite! o sol tem véu de sangue...
Tateia a sombra a geração descrida!...
Acorda-te, mortal! é no sepulcro
Que a larva humana se desperta à vida!
 
Quando as harpas do peito a morte estala,
Um treno de pavor soluça e voa...
E a nota divinal que rompe as fibras
Nas dulias angélicas ecoa!


Poemas e Poesias terça, 23 de novembro de 2021

LIRAS (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

LIRAS

Alvarenga Peixoto

 

 

(A Bárbara Heleodora, sua esposa, remetidas
do cárcere da Ilha das Cobras)

Bárbara bela,
Do norte estrela,
Que o meu destino
Sabes guiar,
De ti ausente,
Triste, somente
As horas passo
A suspirar.

Por entre as penhas
De incultas brenhas,
Cansa-me a vista
De te buscar;
Porém não vejo
Mais que o desejo
Sem esperança
De te encontrar.

Eu bem queria
A noite e o dia
Sempre contigo
Poder passar;
Mas orgulhosa
Sorte invejosa
Desta fortuna
Me quer privar.

Tu, entre os braços,
Ternos abraços
Da filha amada
Podes gozar;
Priva-me a estrela
De ti e dela,
Busca dois modos
De me matar!


Poemas e Poesias segunda, 22 de novembro de 2021

CANTEM OUTROS A CLARA COR VIRENTE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

CANTEM OUTROS A CLARA COR VIRENTE

Alphonsus Guimaraens 

 

 

 

Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.

Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.

Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...

Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte..


Poemas e Poesias domingo, 21 de novembro de 2021

AS MINHAS ASAS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

AS MINHAS ASAS

Almeida Garrett

 

 

Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

— Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
— Veio a ambição, coas grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
— Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

— Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.


Poemas e Poesias sábado, 20 de novembro de 2021

CARNES (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

CARNES

Alceu Wamosy

 

 

 

Pulcras liriais, bizarramente claras,
Carnes divinas, virginais e puras,
Na ostentação de correções preclaras
E de preclaras pompas e brancuras...

 

 

Carnes que sois as sacrossantas aras,
De vagas e de ignotas formosuras...
Ó carnes esquisitas carnes, carnes raras,
De esquisitas e raras contexturas!...

 

Carnes dadas, sem mancha, em holocausto
Ao amor, e do amor florindo ao fausto,
Virgens da tentação, salvas do vício!

 

Carnes extraordinárias e perfeitas,
Eleitas para um alto gozo — eleitas
Para o prazer e para o sacrifício!...


Poemas e Poesias sexta, 19 de novembro de 2021

BEIJA-FLORES (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

BEIJA-FLORES

Alberto de Oliveira

 

 

 

Os beija-flores, em festa,
Com o sol, com a luz, com os rumores,
Saem da verde floresta,
Como um punhado de flores.

E abrindo as asas formosas,
As asas aurifulgentes,
Feitas de opalas ardentes
Com coloridos de rosas,

Os beija-flores, em bando,
Boêmios enfeitiçados,
Vão como beijos voando
Por sobre os virentes prados;

Sobem às altas colinas,
Descem aos vales formosos,
E espraiam-se após ruidosos
Pela extensão das campinas.

Depois, sussurrando a flux
Dos cactos ensanguentados,
Bailam nos prismas da luz,
De solto pólen dourados.

Ah! como a orquídea estremece
Ao ver que um deles, mais vivo,
Até seu gérmen lascivo
Mergulha, interna-se, desce...

E não haver uma rosa
De tantas, uma açucena,
Uma violeta piedosa,
Que quando a morte sem pena

Um destes seres fulmina,
Abra-se em férvido enleio,
Como a alma de uma menina,
Para guardá-lo no seio!


Poemas e Poesias quinta, 18 de novembro de 2021

CHEGANDO EM CASA (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

CHEGANDO EM CASA

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia :

-hoje, 22 de agosto de 1994
Meu marido perdeu, deste terraço :

Mais um pôr do sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.


Poemas e Poesias quarta, 17 de novembro de 2021

EXAUSTO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO

EXAUSTO

Adélai Prado

 

 

 

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.


Poemas e Poesias terça, 16 de novembro de 2021

INSTANTE (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

INSTANTE

Adalgisa Nery

 

 

 

O espanto abriu meu pensamento
Com idioma vindo do delírio,
Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão oferecido sem razão.
O espanto abriu meu pensamento
Na noite carregada de lamentos
Em linguagem universal
Fluindo do eco perdido
Com passos de presságio amanhecendo.
Corpos florindo na pele da terra
Acendendo vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando a potência do limo,
Preparando a primavera nos campos,
Ventres irrigando secas raízes,
Cogumelos róseos crescendo
Na umidade das faces.
Coagulação de prantos na semente
Das constelações adivinhadas.
E no faminto inconsciente, o tempo
Sorvendo com fúria o seu sustento
No insondável silêncio de mim mesma.

 


Poemas e Poesias segunda, 15 de novembro de 2021

ETERNO AMOR (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

ETERNO AMOR

Virgínia Victorino

 

 

 

Pedro, o grande amoroso, o eterno amante,

Aos pés d’ Inês, sozinho e triste diz:

Fez-me Cruel o muito que te quis,

e acho ainda que não te quis bastante.

 

Não me viste morrer. Partiste adiante

nem me viste chorar; foste feliz.

Subiste ao céu – formosa flor de liz,

sempre tão perto, embora tão distante!

 

O leito que te dei não te merece.

Devia tê-lo feito de uma prece,

De saudades, de rendas, ou luar...

 

Vai-me esperando. – A expiação redime. –

tenho na vida a expiação dum crime.

– O Santíssimo crime de te amar.


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