O AMOR
Guerra Junqueiro
I
Eu nunca naveguei, pieguíssimo argonauta
Dans les fleuves du tendre, onde há naufrágios bons,
Conduzindo Florian na tolda a tocar frauta,
E cupidinhos d'oiro a tasquinhar bombons.
Nunca ninguém me viu de capa à trovador,
Às horas em que está já Menelau deitado,
A tanger o arrabil sob os balcões em flor
Dos castelos feudais de papelão doirado.
Não canto de Anfitrite as vaporosas fraldas,
(Eu não quero com isto, ó Vénus, descompor-te)
Nem costumo almoçar c'roado de grinaldas,
Nem nunca pastoreei enfim, vestido à corte,
De bordão de cristal e punhos de Alençon,
Borreguinhos de neve a tosar esmeraldas
Num lameiro qualquer de qualquer Trianon.
Eu não bebo ambrósia em taças cristalinas,
Bebo um vinho qualquer do Douro ou de Bucelas,
Nem vou interrogar as folhas das boninas,
Para saber o amor, o tal amor das Elas.
Não visto da poesia a túnica inconsútil,
Pela simples razão, sob o pretexto fútil
De ter visto passar na rua uns pés bonitos;
Nem do meu coração eu fiz um paliteiro,
Onde venha o amor cravar os seus palitos.
Sou selvagem talvez, e sou talvez grosseiro,
Mas as cousas que sinto eu digo-as francamente:
Não quebro da friura a água de Castália,
Nem a bebo panada assim como um doente.
Detesto o lamurear dum realejo de Itália,
Detesto um maçador, detesto uma maçada,
Um discurso comprido, uma bota apertada,
E uma unha raspando a cal duma parede;
Detesto o pedantismo, a hidrofobia, e crede
Que detesto também com infinita zanga
As paisagens, horror! bordadas a missanga,
Que a província fabrica, e que Lisboa admira;
Detesto duma letra o prazo, quando expira,
Detesto intimamente a carta de conselho,
Detesto o calembour, como um toiro o vermelho,
E detesto da morte os pálidos umbrais;
Detesto os folhetins que escrevo nos jornais,
Detesto Tito Lívio e detesto os venenos,
Mas detesto tudo isso ainda muito menos
Do que a sensiblerie, a doce musa antiga,
Que passou de ser musa a ser uma lombriga.
Eu não subo, é verdade, a calçada do Combro,
De bengala na mão e de madeiro ao ombro,
Como um Cristo-Romeu, como um Jesus-Manfredo;
Não me chamo Lindor, nem Artur, nem Alfredo,
E nem recito ao piano, o que parece incrível;
Mas enfim eu não sou um cofre incombustível,
Eu sou um homem também, eu também sinto e vivo,
Tenho o meu coração no lugar respectivo,
Admiro um corpo airoso e fino e delicado,
Sou como toda a gente um bacharel formado,
E posso dar por isso a minha opinião
Sobre o amor — essa eterna, essa imortal canção.
II
O amor feito petisco e brisa e filomela,
Ao próprio coração pondo uma manivela
De realejo, e passando uma existência falsa
A traduzir em polca, em hino, em guincho, em valsa
As guerras do alecrim e mais da manjerona,
Moídas como café nessa imortal sanfona;
O amor sem a paixão fremente, esplendorosa,
O amor literatice, o amor licor de rosa,
Lacoonte de biscuit, torcendo-se aos corcovos
Nas doces espirais duma lampreia d'ovos;
O amor açucarado, o amor amor-perfeito,
De tristeza na fronte e de vulcão ao peito,
A rouxinolizar um berimbau d'alquime;
O amor de barba intensa, o velho amor sublime
Dos precitos, aos quais a desventura alquebra,
Mussets de botequim que vão beber genebra
Sobre o cairel do abismo às horas do sol pôr;
O amor que se derrete, o florianesco amor,
De conceitos gentis, subtis, que eu não destrinço,
— Um amor sustentado a beijos e a painço,
Que suspira e soluça e chora e gargareja
À noite na varanda e de manhã na igreja;
O amor que passa a vida a celebrar as bodas
Co'a Ela que contém em si as elas todas;
O amor com a tristeza aérea dum arcanjo,
Mas arrastando sempre, insípido marmanjo,
Das asas de flanela a franja inocentíssima;
O amor bijutaria, o amor pomada alvíssima,
Enfim, o terno amor, o puro amor ideal,
O amor sem sentimento — o amor sentimental,—
Oh, esse amor detesto-o, e entrego-o com delícia
Às bengalas dos pais e às unhas da polícia.
III
Mas quando o amor se torna em paixão verdadeira,
Puro como uma hóstia erguida sobre o altar,
Quando um amor domina uma existência inteira
Como a Lua domina os vagalhões do mar;
Quando é o amor radiante, esplêndido, que arvora
Em nossos corações um pavilhão d'aurora
Desdobrado no azul, quando é o amor profundo,
Um amor que nos veste uma rija armadura
Para se atravessar a batalha do mundo,
Como um leão atravessa uma floresta escura;
Então adoro o amor, de joelhos, como adora
No topo da montanha um índio o Sol doirado,
Porque um amor candente é uma hóstia d'aurora,
E o peito que o encerra é um sacrário estrelado!
GUERRA DE CENTAURAS
Francisca Júlia
Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.
A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.
Empalidece o luar, a noite cai, madruga...
A dança hípica pára e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:
É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece...
LÉPIDA E LEVE
Gilka Machado
Lépida e leve
em teu labor que, de expressões à míngua,
o verso não descreve...
Lépida e leve,
guardas, ó língua, em teu labor,
gostos de afago e afagos de sabor.
És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesma acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo,
o vocábulo, ao teu contacto de veludo.
Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
és o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa.
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.
Sol dos ouvidos, sabiá do tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!
– Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
– Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de
alucinação, és o elatério da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
– Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...
Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me vestes quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
ou surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...
Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inferia e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...
CANTIGAS LEVA-AS O VENTO
Florbela Espanca
A lembrança dos teus beijos
Inda na minh’alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar’cido
Revive numa saudade!
DOIS POEMAS CHILENOS
Ferreira Gullar
I
Cuando llegué a Santiago
el otoño arrancaba por las alamedas
como un ladrón
Latifundios con nombres de personas, familias
con nombres de empresas
también arrancaban
con dólares y dolores
en el corazón
Cuando llegué a Santiago en mayo
en plena revolución
II
Allende, en tu ciudad
oigo cantar esta mañana a los pájaros
de la primavera que llega.
Pero tu, amigo, ya puedes escucharlos
En mi puerta los fascistas
pintaron una cruz de advertencia
Pero tú, amigo, ya no la puedes borrar
En el horizonte repican
esta mañana las metralletas
de la tiranía que llega
para matarnos
Y tu, amigo,
ya ni siquiera las puedes escuchar.
CONTEMPLO O QUE NÃO VEJO
Fernando Pessoa
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro,
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou
Não sinto, não sou triste,
Mas triste é o que estou.
ONDAS
Euclides da Cunha
Correi, rolai, correi _ ondas sonoras
Que à luz primeira, dum futuro incerto,
Erguestes-vos assim _ trêmulas, canoras,
Sobre o meu peito, um pélago deserto!
Correi... rolai _ que, audaz, por entre a treva
Do desânimo atroz _ enorme e densa _
Minh'alma um raio arroja e altiva eleva
Uma senda de luz que diz-se _ Crença!
Ide pois _ não importa que ilusória
Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...
_ Escalai o penhasco ásp'ro da Glória...
Rolai, rolai _ às plagas do Porvir!
TROVA HUMORÍSTICA 19
Eno Teodoro Wanke
Meu caro Poeta: o Universo
Espero atenda meu rogo:
Ou pões mais fogo no verso
Ou pões os versos no fogo.
NOTURNO
Da Costa e Silva
Estava a sonhar contigo, Mas acordo de repente... Ouço bater ao postigo Lentamente...longamente... Penso que és tu, morta ausente, Corro, impaciente, à janela. E eu pergunto às sombras: — E Ela? O chão de folhas se junca O CORVO de Poe se ceva, — Ai! que saudade! — Maldigo Bate o vento no postigo... |
ANGELUS
Cruz e Sousa
Ah! lilazes de Ângelus harmoniosos,
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas gementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares...
Serenidades etereais d'incensos,
De salmos evangélicos, sagrados,
Saltérios, harpas dos Azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.
Ângelus fluidos, de luar dormente,
Diafaneidades e melancolias...
Silêncio vago, bíblico, pungente
De todas as profundas liturgias.
É nas horas dos Ângelus, nas horas
Do claro-escuro emocional aéreo,
Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras
Ondulações e brumas do Mistério.
Surges, talvez, do fundo de umas eras
De doloroso e turvo labirinto,
Quando se esgota o vinho das Quimeras
E os venenos românticos do absinto.
Apareces por sonhos neblinantes
Com requintes de graça e nervosismos,
Fulgores flavos de festins flamantes,
Como a Estrela Polar dos Simbolismos.
Num enlevo supremo eu sinto, absorto,
Os teus maravilhosos e esquisitos
Tons siderais de um astro rubro e morto,
Apagado nos brilhos infinitos.
O teu perfil todo o meu ser esmalta
Numa auréola imortal de formosuras
E parece que rútilo ressalta
De góticos missais de iluminuras.
Ressalta com a dolência das Imagens,
Sem a forma vital, a forma viva,
Com os segredos da Lua nas paisagens
E a mesma palidez meditativa.
Nos êxtases dos místicos os braços
Abro, tentado de carnal beleza...
E cuido ver, na bruma dos espaços,
De mãos postas, a orar, Santa Teresa!...
SONETO III
Cláudio Manoel da Costa
Pastores, que levais ao monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:
Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;
E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.
Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:
Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
LÚBRICA
Cesário Verde
Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.
Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:
Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.
Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.
As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...
Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!
OU ISTO OU AQUILO
Cecília Meireles
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
AS TRÊS IRMÃS DO POETA
Castro Alves
É Noite! as sombras correm nebulosas.
Vão três pálidas virgens silenciosas
Através da procela irrequieta.
Vão três pálidas virgens... vão sombrias
Rindo colar num beijo as bocas frias...
Na fronte cismadora do Poeta:
"Saúde, irmão! Eu sou a Indiferença.
Sou eu quem te sepulta a idéia imensa,
Quem no teu nome a escuridão projeta...
Fui eu que te vesti do meu sudário...
Que vais fazer tão triste e solitário?..."
- "Eu lutarei!" - responde-lhe o Poeta.
"Saúde, meu irmão! Eu sou a Fome.
Sou eu quem o teu negro pão consome...
O teu mísero pão, mísero atleta!
Hoje, amanhã, depois... depois (qu'importa?)
Virei sempre sentar-me à tua porta..."
-"Eu sofrerei"-responde-lhe o Poeta.
"Saúde, meu irmão! Eu sou a Morte.
Suspende em meio o hino augusto e forte.
Marquei-te a fronte, mísero profeta!
Volve ao nada! Não sentes neste enleio
Teu cântico gelar-se no meu seio?!"
-"Eu cantarei no céu" - diz-lhe o Poeta!
ILUSÃO
Casimiro de Abreu
Quando o astro do dia desmaia
Só brilhando com pálido lume,
E que a onda que brinca na praia
No murmúrio soletra um queixume;
Quando a brisa da tarde respira
O perfume das rosas do prado,
E que a fonte do vale suspira
Como o nauta da pátria afastado;
Quando o bronze da torre da aldeia
Seus gemidos aos ecos envia,
E que o peito que em mágoas anseia
Bebe louco essa grave harmonia;
Quando a terra, da vida cansada,
Adormece num leito de flores
Qual donzela formosa embalada
Pelos cantos dos seus trovadores;
Eu de pé sobre as rochas erguidas
Sinto o pranto que manso desliza
E repito essas queixas sentidas
Que murmuram as ondas co'a brisa.
É então que a minha alma dormente
Duma vaga tristeza se inunda,
E que um rosto formoso, inocente,
Me desperta saudade profunda.
Julgo ver sobre o mar sossegado
Um navio nas sombras fugindo,
E na popa esse rosto adorado
Entre prantos p'ra mim se sorrindo!
Compreendo esse amargo sorriso,
Sobre as ondas correr eu quisera...
E de pé sobre a rocha, indeciso,
Eu lhe brado: - não fujas, - espera!
Mas o vento já leva ligeiro
Esse sonho querido dum dia,
Essa virgem de rosto fagueiro,
Esse rosto de tanta poesia!...
E depois... quando a lua ilumina
O horizonte com luz prateada,
Julgo ver essa fronte divina
Sobre as vagas cismando, inclinada!
E depois... vejo uns olhos ardentes
Em delírio nos meus se fitando,
E uma voz em acentos plangentes
Vem de longe um - adeus - soluçando!
Ilusão!... que a minha alma, coitada,
De ilusões hoje em dia é que vive;
É chorando uma gloria passada,
É carpindo uns amores que eu tive!
SEGUNDO POEMA VAZIO
Carlos Pena Filho
Este vento que chegou
talvez da costa irlandesa
e entrando pela janela
debruçou-se em minha mesa,
e fez agora esse gesto
da entre alegria e surpresa,
é o mesmo que há muitos anos
lavou teu rosto, Teresa,
e te deixou sob a pele
essa invisível tristeza
de quem descobre o que existe
de mágoa, atrás da beleza
e por isso se aremessa,
água solta da represa,
e embora deixando os olhos
nos objetos da mesa
perde o pensamento e a sombra
na fria costa irlandesa.
CAMPO DE FLORES
Carlos Drummond de Andrade
Deus me deu um amor no tempo de madureza
Quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme
Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro
E a um e outro agradeço, pois que tenho um amor
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
E outros acrescento aos que amor já criou
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
E talhado em penumbra sou e não sou, mas sou
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
E cansado de mim julgava que era o mundo
Um vácuo atormentado, um sistema de erros
Amanhecem de novo as antigas manhãs
Que não vivi jamais, pois jamais me sorriram
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
Imensa e contraída como letra no muro
E só hoje presente
Deus me deu um amor porque o mereci
De tantos que já tive ou tiveram em mim
O sumo se espremeu para fazer vinho
Ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo
E o tempo que levou uma rosa indecisa
A tirar sua cor dessas chamas extintas
Era o tempo mais justo. Era tempo de terra
Onde não há jardim, as flores nascem de um
Secreto investimento em formas improváveis
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
Para arrecadar as alfaias de muitos
Amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes
E ao vê-los amorosos e transidos em torno
O sagrado terror converto em jubilação
Seu grão de angústia amor já me oferece
Na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
Os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
E o mistério que além faz os seres preciosos
À visão extasiada
Mas, porque me tocou um amor crepuscular
Há que amar diferente. De uma grave paciência
Ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
Tenha dilacerado a melhor doação
Há que amar e calar
Para fora do tempo arrasto meus despojos
E estou vivo na luz que baixa e me confunde
DIZEI-ME, SENHORA, DA BELEZA IDEIA
Soneto 122
Luís de Camões
(Grafia original)
Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
Para fazerdes esse áureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De que escondida mina ou de que veia?
Dos vossos olhos essa luz febeia,
Esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medeia?
De que escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas orientais
Que, falando, mostrais no doce riso?
Pois vos formastes tal como quisestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais;
Fugi das fontes: lembre-vos Narciso.
SONETO DA SUPOSTA SANTA
Bocage
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura;
Conheço agora já quão vã figura,
Em prosa e verso fez meu louco intento:
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura.
Eu me arrependo; a língua quasi fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... a santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!.
TROVA 009
Belmiro Braga
Só mesmo Nossa Senhora
pode dar paz e conforto
à desgraçada que chora
a ausência de um filho morto.
VANDALISMO
Augusto dos Anjos
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas,
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a Imagem dos meus próprios sonhos!
LÉLIA
Álvares de Azevedo
Passou talvez ao alvejar da lua,
Como incerta visão na praia fria...
Mas o vento do mar não escutou-lhe
Uma voz a seu Deus!...ela não cria!
Uma noite, aos murmúrios do piano
Pálida misturou um canto aéreo...
Parecia de amor tremer-lhe a vida
Revelando nos lábios um mistério!
Porém, quando expirou a voz nos lábios,
Ergueu sem pranto a fronte descorada,
Pousou a fria mão no seio imóvel,
Sentou-se no divã... sempre gelada!
Passou talvez do cemitério à sombra
Mas nunca numa cruz deixou seu ramo,
Ninguém se lembra de lhe ter ouvido
Numa febre de amor dizer: "eu amo!"
Não chora por ninguém... e quando, à noite,
Lhe beija o sono as pálpebras sombrias
Não procura seu anjo à cabeceira
E não tem orações, mas ironias!
Nunca na terra uma alma de poeta,
Chorosa, palpitante e gemebunda
Achou nessa mulher um hino d’alma
E uma flor para a fronte moribunda.
Lira sem cordas não vibrou d’enlevo,
As notas puras da paixão ignora,
Não teve nunca n’alma adormecida
O fogo que inebria e que devora!
Descrê. Derrama fel em cada riso,
Alma estéril não sonha uma utopia...
Anjo maldito salpicou veneno
Nos lábios que tressuam de ironia.
É formosa contudo. Há dessa imagem
No silêncio da estátua alabastrina
Como um anjo perdido que ressumbra
Nos olhos negros da mulher divina.
Há nesse ardente olhar que gela e vibra,
Na voz que faz tremer e que apaixona
O gênio de Satã que transverbera,
E o langor pensativo da Madona!
É formosa, meu Deus! Desde que a vi
Na minh’alma suspira a sombra dela...
E sinto que podia nesta vida
Num seu lânguido olhar morrer por ela.
GOZO E DOR
Almeida Garrett
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
- Não. Ai!, não; falta-me a vida,
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.
Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou,
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida - ou a razão.
IDEALIZANDO A MORTE
Alceu Wamosy
Morrer por uma tarde assim como esta tarde,
fim de dia outonal, tristonho e doloroso,
quando o lago adormece e o vento está em repouso,
e a lâmpada do sol no altar do céu não arde.
Morrer ouvindo a voz de minha mãe e a tua
rezando a mesma prece, ao pé do mesmo santo,
vós ambas tendo o olhar estrelado de pranto,
e no rosto e nas mãos palidezes de lua.
Morrer com a placidez de uma flor que se corte,
com a mansidão de um sol que desce no horizonte,
sentindo a unção do vosso beijo ungir-me a fronte
— beijo de noiva e mãe, irmanados na morte.
E morrer... e levar com a vida que se trunca,
tudo que de doçura e amargor teve a vida:
o sonho enfermo, a glória obscura, a fé perdida,
e o segredo de amor, que não te disse, nunca!
FETICHISMO
Alberto de Oiveira
Homem, da vida as sombras inclementes
Interrogas em vão: — Que céus habita
Deus? Onde essa região de luz bendita,
Paraíso dos justos e dos crentes?...
Em vão tateiam tuas mãos trementes
As entranhas da noite erma, infinita,
Onde a dúvida atroz blasfema e grita,
E onde há só queixas e ranger de dentes...
A essa abóbada escura, em vão elevas
Os braços para o Deus sonhado, e lutas
Por abarcá-lo; é tudo em torno trevas...
Somente o vácuo estreitas em teus braços;
E apenas, pávido, um ruído escutas
Que é o ruído dos teus próprios passos!...
ERRANDO NO MUSEU PICASSO
Affonso Romano de Sant'Anna
Picasso
erra
quando pinta
e erra
quando ama.
Mas quando erra
erra
violenta e
generosamente,
erra
com exuberante
arrogância,
erra
como o touro erra
seu papel de vítima,
sangrando
quem, por muito amar, fere
e sai ovacionado
com banderilhas na carne.
Pintor do excesso
e exuberância,
Picasso
é extravagância.
Ele erra,
mas nele,
o erro
mais que erro
- é errância.
O VESTIDO
Adélia Prado
No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, e volatiliza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.
POEMA NATURAL
Adalgisa Nery
Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
QUANDO TE VI
Virgínia Victorino
A manhã era clara, refulgente.
Uma manhã dourada. Tu passaste.
Abriu mais uma flor em cada haste.
Teve mais brilho o sol, fez-se mais quente.
E eu inundei-me dessa luz ardente.
Depois não sei mais nada. Olhei... Olhaste...
E nunca mais te vi. . . - Raro contraste! –
A madrugada transformou-se em poente.
Luz que nasceu e apenas cintilou!
Deixou-me triste assim que se apagou,
às vezes fecho os olhos; vejo-a ainda...
E há tanto sol dourando esses trigais!
Olhaste, olhei, fugiste... Ai, nunca mais,
nunca mais tive outra manhã tão linda!
A MIRAGEM
Vinícius de Moraes
Não direi que a tua visão desapareceu dos meus olhos sem vida
Nem que a tua presença se diluiu na névoa que veio.
Busquei inutilmente acorrentar-te a um passado de dores
Inutilmente.
Vieste - tua sombra sem carne me acompanha
Como o tédio da última volúpia.
Vieste - e contigo um vago desejo de uma volta inútil
E contigo uma vaga saudade…
És qualquer coisa que ficará na minha vida sem termo
Como uma aflição para todas as minhas alegrias.
Tu és a agonia de todas as posses
És o frio de toda a nudez
E vã será toda a tentativa de me libertar da tua lembrança.
Mas quando cessar em mim todo o desejo de vida
E quando eu não for mais que o cansaço da minha caminhada pela areia
Eu sinto que me terás como me tinhas no passado -
Sinto que me virás oferecer a água mentirosa
Da miragem.
Talvez num ímpeto eu prefira colar a boca à areia estéril
Num desejo de aniquilamento.
Mas não. Embora sabendo que nunca alcançarei a tua imagem
Que estará suspensa e me prometerá água
Embora sabendo que tu és a que foge
Eu me arrastarei para os teus braços.
PRIMEIRA SOMBRA
Vicente de Carvalho
— Mal me quer... bem me quer...
— Será preciso
Que uma flor assegure o que digo e tu vês ?
O meu olhar, poisando em teu sorriso,
Mostra-te que és amada e adivinha que o crés.
— Mal me quer... bem me quer...
— E, commovida,
Tremes, como esperando uma sentença atroz...
Suppões que espalhe a noite em nossa vida
A sombra de uma flor perpassando entre nós?
— Mal me quer... Mal me quer... Desde, hontem quando
Faltaste, adivinhei tudo que a flor me diz.
Tenho-te junto a mim e fito-te chorando;
Beijas-me ainda, e já não sou feliz.,
Sinto que és meu, aperto-te em meus braços,
E, no pavor de um sonho angustiado e sem fim,
Ouço como um rumor fugitivo de passos
Que te afastam de mim.
Dize que estou sonhando, que estou louca!
Jura que sou feliz, que os teus dias são meus,
E que o beijo que ainda orvalha minha bocca
Não é tua alma que me diz adeus.
A amorosa doçura do teu verso
Echoou em minha alma; em teu verso aprendi
A soletrar o amor, o Amor — esse universo
Radioso, immenso, e resumido em ti.
A tua voz chamou-me ; eu escutei-a
E segui-a, ditosa, a sorrir e a sonhar...
Fala-me ainda de amor ! Não te cales, sereia
Que me attrahiste para o azul do mar!
Minha alma, envolta em trapos de mendiga,
Vai seguindo, no chão, do teu passo o rumor.
Não me deixes! Serei a sombra que te siga,
Sem indagar onde me leva o amor.
Não me abandones! Ama-me! A risonha
Aurora inunda o céu todo afogado em luz...
Sou formosa, sou moça, amo-te... Ama-me! Sonha,
Poisada a fronte nos meus seios nús!
Que alegre madrugada cor de rosa,
Ser amada por ti, claro sol que tu és!
Eu dei-te a minha vida. E’ tua. Esbanja-a, gosa
Toda esta primavera estendida a teus pés.
Bem amado que, como um passaro num ramo,
Vieste acaso poisar o vôo no meu seio,
Não me deixes! Eu quero ouvir ainda o gorgeio
Em que teu beijo é que dizia: «Eu te amo!»
O POETA É A MÃE DAS ARMAS
Torquato Neto
O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral -
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
Alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.
O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.
A poesia é o pai da ar
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira ////////// =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.a
r: em primeiríssimo, o lugar
poetemos pois
CANÇÃO DO AMOR ARMADO
Thiago de Mello
Vinha a manhã no vento do verão,
e de repente aconteceu.
Melhor
é não contar quem foi nem como foi,
porque outra história vem, que vai ficar.
Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria,
onde o voto, secreto como o beijo
no começo do amor, e universal
como o pássaro voando — sempre o voto
era um direito e era um dever sagrado.
De repente deixou de ser sagrado,
de repente deixou de ser direito,
de repente deixou de ser, o voto.
Deixou de ser completamente tudo.
Deixou de ser encontro e ser caminho,
deixou de ser dever e de ser cívico,
deixou de ser apaixonado e belo
e deixou de ser arma — de ser a arma,
porque o voto deixou de ser do povo.
Deixou de ser do povo e não sucede,
e não sucedeu nada, porém nada?
De repente não sucede.
Ninguém sabe nunca o tempo
que o povo tem de cantar.
Mas canta mesmo é no fim.
Só porque não tem mais voto,
o povo não é por isso
que vai deixar de cantar,
nem vai deixar de ser povo.
Pode ter perdido o voto,
que era sua arma e poder.
Mas não perdeu seu dever
nem seu direito de povo,
que é o de ter sempre sua arma,
sempre ao alcance da mão.
De canto e de paz é o povo,
quando tem arma que guarda
a alegria do seu pão.
Se não é mais a do voto,
que foi tirada à traição,
outra há de ser, e qual seja
não custa o povo a saber,
ninguém nunca sabe o tempo
que o povo tem de chegar.
O povo sabe, eu não sei.
Sei somente que é um dever,
somente sei que é um direito.
Agora sim que é sagrado:
cada qual tenha sua arma
para quando a vez chegar
de defender, mais que a vida,
a canção dentro da vida,
para defender a chama
de liberdade acendida
no fundo do coração.
Cada qual que tenha a sua,
qualquer arma, nem que seja
algo assim leve e inocente
como este poema em que canta
voz de povo — um simples canto
de amor.
Mas de amor armado.
Que é o mesmo amor. Só que agora
que não tem voto, amor canta
no tom que seja preciso
sempre que for na defesa
do seu direito de amar.
O povo, não é por isso
que vai deixar de cantar.
ELOGIO DO ALEXANDRINO
Sousândrade
Asclepiádeo verso: à evolução do poema
Das sestas, cadenciar daltas antigüidades,
já porque bipartido em fúlgidas metades
Reata em conjunção opostos de um dilema,
E já por ser de gala a forma do matiz
Heleno na escultura e lácio na linguagem
Reacesda, de Alexandre, em fogos de Paris:
Paris o tom da moda, o bom gosto, a roupagem;
Que desperta aos tocsins, galo às estrelas dalva,
Que faz revoluções de Filadélfia às salvas
E o verso-luz, fardeur das formas, de grandeza,
o verso-formosura, adornos, lauta mesa
Ond tokay, champanh, flor, copos cristal-diamantes
Sobrelevam roast-beef e os queijos e o pudding.
Porém, mens divinior, poesia é o férreo guante:
Ao das delícias tempo, o fácil verso ovante,
o verso cor de rosa, o de oiro, o de carmim,
Dos raios que o astro veste em dia azul-celeste;
E para os que têm fome e sede de justiça,
O verso condor, chama, alárum, de carniça,
Dharpas dÉsquilus, de Hugo, a dor, a tempestade:
Que, embora contra um deus "Figaro" impiedade
Vesgo olhinho a piscar diga tambour-major,
Restruge alto acordando os cândidos espíritos
Às glórias do oceano e percutindo os gritos
Réus. Ao belo trovoar do magno Trovador
Ouve-se afinação no mundo brasileiro,
Acorde tão formoso, hodierno, hospitaleiro,
Flamívomo social, encantador. Fulgura
Luz de dia primeiro, a nota formosura,
Que ao jeová-grande-abrir faz novo Éden luzir.
PROFUNDIDADE
Ricardo Lima
De dentro, emerge!
Profundas, densas, calmas, alma.
Profundidade, raza... acalma.
Ama, alma... profundidade.
INGRATIDÃO
Raul de Leôni
Nunca mais me esqueci!… Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.
Era a mais rútila e íntima esperança…
Cresceu… cresceu… e aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança…
Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,
Como aquela magnífica amendoeira,
E florescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio…
FLORES MURCHAS
Patativa do Assaré
Depois do nosso desejado enlace
Ela dizia, cheia de carinho,
Toda ternura a segredar baixinho:
— Deixa, querido, que eu te beije a face!
Ah! se esta vida nunca mais passasse!
Só vejo rosas, sem um só espinho;
Que bela aurora surge em nosso ninho!
Que lindo sonho no meu peito nasce!
E hoje, a coitada, sem falar de amor,
Em vez daquele natural vigor,
Sofre do tempo o mais cruel carimbo.
E assim vivendo, de mazelas cheia,
Em vez de beijo, sempre me aperreia
Pedindo fumo para o seu cachimbo.
CONFISSÕES SILENCIOSAS
Olegário Mariano
Amo os crepúsculos cinzentos
Caindo sobre as águas estagnadas . . .
Os pinheiros sonolentos
Humanizando a calma das estradas . . .
O infinito, as estrelas longínquas,
O poema que há na dor silenciosa
Dos que querem falar e que se calam :
Amo os teus olhos, amor dos outros,
Porque os teus olhos nunca falam!
ISRAEL
Olavo Bilac
Caminhar! caminhar!… O deserto primeiro,
O mar depois… Areia e fogo… Foragida,
A tua raça corre os desastres da vida,
Insultada na pátria e odiada no estrangeiro!
Onde o leite, onde o mel da Terra Prometida?
– A guerra! a ira de Deus! o êxodo! o cativeiro!
E, molhada de pranto, a oscilar de um salgueiro,
A tua harpa, Israel, a tua harpa esquecida!
Sem templo, sem altar, vagas perpetuamente…
E, em torno de Sião, do Líbano ao Mar Morto,
Fulge, de monte em monte, o escárnio do Crescente:
E, impassível, Jeová te vê, do céu profundo,
Náufrago amaldiçoado a errar de porto em porto,
Entre as imprecações e os ultrajes do mundo!
TORRE DE BABEL
Menotti Del Picchia
Eles ergueram a torre de Babel
bem na Praça Antônio Prado.
O esqueleto de aço cobriu-se de carne de cimento
e as vigas e guindastes
eram braços agarrando estrelas
para industrializá-las em anúncios comerciais.
Italianos joviais,
húngaros de olhos de leopardo,
caboclos de Tietê arrastando o caipira,
bolchevistas da Ucrânia,
polacos de Wrangel,
nipões jaldes como gnomos nanicos talhados em âmbar
entre as pragas dos contramestres,
os rangidos das tábuas do andaime,
o estridor metálico
das vigas de aço e dos martelos sonoros,
no céu libérrimo de S. Paulo,
fizeram a confusão das línguas,
sem perturbar a geometria rigorosa
do ciclópico arranha-céu!
Lá do alto, o paulista,
bandeirante das nuvens,
mirou o prodígio da Cidade alucinada:
uma casa de três andares
pôs-se a crescer bruscamente
como nos romances de Wells;
outra apontou a cabeça arrepelada de caibros
acima do viaduto do Chá;
e começou a desabalada carreira
do páreo do azul.
O formidável arranha-céu
com a cabeça nas nuvens
abrigou no seu ventre de concreto
o drama da nova civilização.
Onde estás meu seráfico Anchieta,
erguendo com o barro de Piratininga,
pelo milagre da tua persuasão,
as paredes rasteiras do Colégio?
AUTORRETRATO
Mário Quintana
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!
DESENCANTO
Manuel Bandeira
Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.
O LIVRO SOBRE NADA
Manoel de Barros
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
A inércia é o meu ato principal.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Por pudor sou impuro.
Não preciso do fim para chegar.
De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra – Como um lápis numa península.
Do lugar onde estou já fui embora.
TERRORISMO
Luís Turiba
Explosões: fim de mundo
no amor há vermelho
a cor do Sol: narciso
como um céu: espelho
FALSOS AMIGOS
Júlio Dinis
Como a sombra, amigos temos,
Que nos segue em claro dia;
Mas que da vista perdemos
Assim que o Sol se anuvia.
Outra versão:
Vós sois a minha sombra
Se o Sol me luz brilhante..
Atrás, ao lado, adiante,
Encontro-a junto a mim !
Porém se nuvem negra
A luz do Sol me tira,
A sombra se retira…
Vós sois também assim
SEI TEU GRITO PROFUNDO
Jorge de Lima
Sei teu grito profundo, e não me animo
a cortar a raiz que a Ti me embasa.
Em mão mais primitiva não me arrimo
devo-Te tudo, origem, patas e asas.
Permite que eu revele história e limo
sem desobedecer a Tua casa.
Nazareno dos lagos, lume primo,
atende à pobre enguia de águas rasas.
Se desses versos outro lume alar-se
misturado com os Teus em joio e trigo,
sete vezes por sete me perdoa.
Ó Desnudado, é meu todo o disfarce
em revelar os tempos que persigo
- na vazante maré com inversa proa.
PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
João Cabral de Melo Neto
1.
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.
Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;
talvez, como a camisa
vazia, que despi.
2.
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;
como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.
3.
Neste papel
pode teu sal
virar cinza;
pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.
(Teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera.)
Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.
(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera.)
4.
O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; rompendo
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.
(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça.)
5.
Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.
Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esses lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)
que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido
contra o açúcar do podre.
6.
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;
não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,
aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.
7.
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.
ESTRELA CADENTE
J. G. de Araújo Jorge
Ela que foi um canto de alegria
a Musa do que escrevo em seu louvor,
que pos um véu azul de fantasia
sobre o sonho impossível desse amor…
Que foi luz, que foi som, beleza e cor
no meu mundo fugaz de cada dia,
que foi tudo afinal: perfume e flor
numa vida monótona e vazia…
Que está presente no meu pensamento
como uma onde em vai-vem na praia, ou
uma estrela a luzir no firmamento…
Foi estrela-cadente… Cintilou
no alto dos céus, num ráoido momento
e… nas sombras da noite se apagou!
ODES MAIORES DO PAI - V
Hilda Hilst
Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto.
Vi pela primeira vez a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído
Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido
Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto.
E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raro
Como um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos!
Que amor se fez em mim, multiforme e calado!
Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo!
Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiro
Calcinado. Em mim, o grane limbo de lamento, de dor, e o medo de esquecer-te
De soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua ressonância.
Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa
E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma.
HUMILDADE
Hermes Fontes
Rolar… girar… O Mundo rola e gira
constantemente, em torno de seu eixo.
Rolam astros e tempos… Eu me deixo
rolar, também, sem ambição nem mira.
Cantem outros de amor ou rujam de ira.
Eu não canto, nem rujo… nem me queixo…
e vou, mágoas a fora, como um seixo
vai, rio abaixo, na água, que suspira.
Vai, rio abaixo, na água: e a água o converte
em gota, seixo líquido… E, antes isso
do que ser pedra grande – bruta e inerte!
Antes ser livre seixo, à correnteza,
que ser bloco de mármore… ao serviço
de Sua Majestade ou Sua Alteza…
EU DEVIA
Guilherme de Almeida
Não
Porque não posso
Porque não sei
Não consigo
Não devo
Respiro
Penso
Tento
Não consigo
Não devo
Paro
Engulo
Abro os olhos
Mas eu nao consigo
Nao devo
Então eu me afundo
Me derramo
Perco
E no silêncio
Eu percebo
Eu poderia
Eu sabia
Eu conseguiria
Eu devia
Então volto a respirar
Volto a ver
Volto a pensar
E as coisas são claras agora
A vida
Nada mais é que uma grande aposta
Em que um grande homem diz que você pode
Mas você vive dizendo que não
E acaba ganhando a aposta
Por medo de estar errado.
MORENA
Guerra Junqueiro
Não negues, confessa
Que tens certa pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena.
Pois eu não gostava,
Parece-me a mim,
De ver o teu rosto
Da cor do jasmim.
Eu não... mas enfim
É fraca a razão,
Pois pouco te importa
Que eu goste ou que não.
Mas olha as violetas
Que, sendo umas pretas,
O cheiro que têm!
Vê lá que seria,
Se Deus as fizesse
Morenas também!
Tu és a mais rara
De todas as rosas;
E as coisas mais raras
São mais preciosas.
Há rosas dobradas
E há-as singelas;
Mas são todas elas
Azuis, amarelas,
De cor de açucenas,
De muita outra cor;
Mas rosas morenas,
Só tu, linda flor.
E olha que foram
Morenas e bem
As moças mais lindas
De Jerusalém.
E a Virgem Maria
Não sei... mas seria
Morena também.
Moreno era Cristo.
Vê lá depois disto
Se ainda tens pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena!
LEMBRANÇAS
Gilka Machado
Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.
Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.
Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.
CREPÚSCULO
Francisca Júlia
Todas as cousas têm o aspecto vago e mudo
Como se as envolvesse uma bruma de incenso;
No alto, uma nuvem, só, num nastro largo e extenso,
Precinta do céu calmo a cariz de veludo.
Tudo: o campo, a montanha, o alto rochedo agudo
Se esfuma numa suave água-tinta... e, suspenso,
Espalhando-se no ar, como um nevoeiro denso,
Um tom neutro de cinza empoeirando tudo.
Nest′hora, muita vez, sinto um mole cansaço,
Como que o ar me falta e a força se me esgota...
Som de Ângelus, moroso, a rolar pelo espaço...
Neste letargo que, pouco a pouco, me invade,
Avulta, cresce dentro em mim essa remota
Sombra da minha Dor e da minha Saudade.
CANÇÃO GRATA
Florbela Espanca
Por tudo o que me deste
inquietação cuidado
um pouco de ternura
é certo mas tão pouca
Noites de insónia
Pelas ruas como louca
Obrigada, obrigada
Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão
Que bem que me faz agora
o mal que me fizeste
Mais forte e mais serena
E livre e descuidada
Sem ironia amor obrigada
Obrigada por tudo o que me deste
Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão
A POESIA
Ferreira Gullar
Onde está
a poesia? indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.
Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.
Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
meu poema é puro, flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
é de papel.
CONTEMPLO O LAGO MUDO
Fernando Pessoa
Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz.
Não sinto a brisa mexê-lo.
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.
Trémulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?
O PARAÍSO DOS MEDÍOCRES
Euclides da Cunha
(Uma página que Dante destruiu)
Perto do inferno existe uma paragem
Onde cai monótona e ressoa
Uma torrente enregelada e dura
Sulcando a pedra na erosão eterna.
Fomos por ela em fora, lento e lento
Vacilantes subindo. Mas no alto
Precisamente quando a minha vista
Divisava dos céus tão anelados
Um fragmento longínquo, vi-me só.
Inopinadamente se evadira
O bucólico guia que me dera
O clarão de sua alma incomparável,
Entre as sombras dos giros infernais.
Então alucinado, o peito opresso,
A fronte em fogo, onde batiam ríspidas
As lufadas friíssimas do abismo,
Atirei entre os ecos apagados
Das vozes do demônio uma súplica:
Virgílio. E estas três sílabas belíssimas
Rolaram longamente no silêncio
Como se no silêncio desabasse
Uma falange de cristais partidos.
Mas não as repeti: de uma vereda
À esquerda, junto ao círculo Judas,
Vi que surgiu uma figura estranha,
Homem ou gênio, e todo desgracioso
Lembrava um sambenito: a fronte nua
Escampada e brunida completava
A face cheia e lisa sem refegos,
Sem um só desses vincos, dessas rugas
Que são os golpes do buril do espírito
Sobre os blocos de músculos e nervos.
Sorria e eu vi seus dentes magníficos
Numa expressão alvar. Aproximou-se.
Disse-lhe então: Quem sois? Por que acudistes?
Quando eu chamei por outro tão diverso?
Teme um momo adorável, agitou
Num gesto longo de elegância altiva
A véstia e o porte erecto e o olhar fulgente
E o rosto novamente derramando-se
Num riso imbecil e triunfante
Volveu pondo-me ao ombro a mão cuidada:
"Sou Marcellus Pompônio, 'o purista'
O guia que me trouxe, esse Virgílio,
Esta ama-seca que apelidas tanto
Não me suportaria; eu sou capaz
De mostrar solecismos nas "Geórgicas"...
Fez bem: fugiu. E tu certo conheces
O gênio prodigioso que venceu
Certa causa notável, apontando
Um erro de gramática nos autos:
Sou eu. Sou imortal... Tu és feliz,
Lucraste com a troca. Folga, ri,
Agradece ao teu Deus e dá-me o braço.
Eu vou mostrar o que outrem não faria.
Já viste o inferno, vou levar-te agora
Ao purgatório e ao céu. Mas antes deles
Há uma terra ideal onde domina
A santa mediania de virtude
E se chama o 'Paraíso dos Medíocres' ".
"É ali", disse. E depois me foi levando
Por um trilho escarpado. a breve trecho,
Vingando um cerro abrupto, tive em frente
O mais belo país que eu inda vira
Que terra encantadora. O meu olhar
Desatou-se folgando na amplitude
Dos horizontes vastos onde eternos
Fulgores de uma primavera eterna
Se revezam co'as noites estreladas.
TROVA HUMORÍSTICA 18
Eno Teodoro Wanke
Inimigo de mulher
Sou, ferrenho... Mas, que digo?
– Se Jesus assim requer
Amemos ao inimigo!
NESSUN MAGGIOR DOLORE
Da Costa e Silva
Tenho-te sempre a imagem na memória,
Nestes dias de dúvida em que vivo
Com a minha grande dor sem lenitivo,
Meu amor, minha vida, minha glória.
É uma visão nostálgica e ilusória,
Que me ficou, talvez, como exclusivo
E vão conforto ao curso fugitivo
Desta existência incerta e transitória.
Seja, embora, uma sombra imaginária,
A mêmore ilusão que é o meu enlevo,
Já se me vai tornando necessária,
Pois que te pondo em místico relevo,
Evoca, em minha vida solitária,
A efêmera ventura que te devo.
ALDA
Cruz e Sousa
Alva, do alvôr das limpidas geleiras,
Desta resumbra candidez de arômas...
Parece andar em nichos e redômas
De Virgens medievaes que fôram freiras.
Alta, feita no talhe das palmeiras,
A côma de ouro, com o setim das Cômas,
Branco esplendor de faces e de pômas,
Lembra ter azas e azas condoreiras.
Passaros, astros, canticos, incensos
Fórmam-lhe auréolas, sóes, nimbos immensos
Em torno á carne virginal e rara.
Alda faz meditar nas monjas alvas,
Salvas do Vicio e do Peccado salvas,
Amortalhadas na pureza clara.
TODAS AS VIDAS
Cora Coralina
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
— Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida —
a vida mera das obscuras.
LOIRA
Cesário Verde
Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.
O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.
E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.
Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.
Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.
E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.
E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.
Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Cada vez caminhava mais atento.
Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho,
A ti que és nobre e rica, que és alguém,
Eu que de nada valho e nada tenho.
Correu-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Este olhar resignado do vadio
Que fita a exposição de um confeiteiro.
Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo de ouro que faz mal;
Não achei essa rima que buscava,
Mas compus este quadro natural.
O ECO
Cecília Meireles
O menino pergunta ao eco
Onde é que ele se esconde.
Mas o eco só responde: Onde? Onde?
O menino também lhe pede:
Eco, vem passear comigo!
Mas não sabe se o eco é amigo
ou inimigo.
Pois só lhe ouve dizer: Migo!
SUB TEGMINE FAGI
Castro Alves
Dieu parle dans le calme plus haut que dans la tempête.
(Mickiewicz).
Deus nobis hæc otia fecit.
(Virgilio).
Amigo! O campo é o ninho do poeta...
Deus falla, quando a turba está quieta,
As campinas em flor.
— Noivo — Elle espera que os convivas saiam.
E n′alcova onde as lampadas desmaiam
Então murmura. — Amor!
Vem commmigo scismar risonho e grave...
A poesia — é uma luz... e alma — uma ave...
Querem trevas e ar.
A andorinha, que é a alma — pede o campo,
A poesia quer sombra — é o pyrilampo...
P′ra voar... p′ra brilhar.
Meu Deus! Quanta belleza nessas trilhas...
Que perfume nas doces maravilhas,
Onde o vento gemeu!...
Que flores d′ouro pelas veigas bellas!
Foi um anjo co′a mão cheia de estrellas
Que na terra as perdeu.
Aqui o ether puro se adelgaça...
Não sobe esta blasphemia de fumaça
Das cidades p′ra o céo.
E a Terra é como o insecto friorento
Dentro da flor azul do firmamento,
Cujo calix pendeu!...
Qual no fluxo e refluxo, o mar em vagas
Leva a concha dourada... e traz das plagas
Coraes em turbilhão,
A mente leva a prece a Deus — por perolas,
E traz, volvendo após das praias cerulas,
— Um brilhante — o perdão!
A alma fica melhor no descampado...
O pensamonto indomito, arrojado
Galopa no sertão.
Qual nos steppes o corsel fogoso
Relincha e parte turbulento, estoso,
Sólta a crina ao tufão.
Vem! Nós iremos na floresta densa,
Onde na arcada gothica e suspensa
Reza o vento feral.
Enorme sombra cae da enorme rama...
É o Pagode fantastico de Brahma
Ou velha cathedral.
Irei comtigo pelos ermos — lento,
Scismando, ao pôr do sol, n′um pensamento
Do nosso velho Hugo.
— Mestre do mundo! Sol da eternidade!...
Para ter por planeta a humanidade,
Deus n′um cerro o fixou.
Ao longe, na quebrada da collina,
Enlaça a trepadeira purpurina
O negro mangueiral...
Como no Dante a pallida Francesca,
Mostra o sorriso rubro e a face fresca
Na estrophe sepulchral.
O povo das formosas Amaryllis
Embala-se nas balsas, como as Willis
Que o Norte imaginou.
O antro — falla... o ninho s′estremece...
A Dryade entre as folhas apparece...
Pan na flauta soprou!...
Mundo estranho e bizarro da chimera,
A fantasia desvairada gera
Um paganismo aqui.
Melhor eu comprehendo então Virgilio...
E vendo os Faunos lhe dansar no idylio
Murmuro crente: — eu vi! —
Quando penetro na floresta trisie,
Qual pela ogiva gothica o anthiste
Que procura o Senhor,
Como bebem as aves peregrinas
Nas amphoras de orvalho das boninas,
Eu bebo crença e amor!...
E á tarde, quando o sol — condor sangrento,
No occidente se aninha somnolento,
Como a abelha na flor...
E a luz da estrella tremula se irmana
Co′a fogueira nocturna da cabana,
Que ascendéra o pastor,
A lua — traz um raio para os mares...
A abelha — traz o mel... um threno aos lares
Traz a rola a carpir....
Tambem deixa o poeta a selva escura
E traz alguma estrophe, que fulgura,
P′ra legar ao porvir!...
Vem! Do mundo leremos o problema
Nas folhas da floresta ou do poema,
Nas trevas ou na luz...
Não vês?... Do céo a cupola azulada,
Como uma taça sobre nós voltada,
Lança a poesia á flux!...
TRÊS CANTOS
Casimiro de Abreu
Quando se brinca contente
Ao despontar da existência
Nos folguedos de inocência,
Nos delírios de criança;
A alma, que desabrocha
Alegre, cândida e pura —
Nesta contínua ventura
E' toda um hino: — esperança!
Depois... na quadra ditosa,
Nos dias da juventude,
Quando o peito é um alaúde,
E que a fronte tem calor:
A alma que então se expande
Ardente, fogosa e bela —
Idolatrando a donzela
Soletra em trovas: — amor!
Mas quando a crença se esgota
Na taça dos desenganos,
E o lento correr dos anos
Envenena a mocidade;
Então a alma cansada
Dos belos sonhos despida,
Chorando a passada vida —
Só tem um canto: — saudade!
SECOS E MOLHADOS
Carlos Pena Filho
Ainda existe muita coisa
de bom e ruim pra contar,
mas como sou conhecido
por discreto no falar,
irei, agora, evitar.
Mas não sem antes passar
pelos armazéns de estiva,
mar dos nossos tubarões,
de brasileiros sabidos
e portugueses sabidões
que na vida leram menos
que o olho cego de Camões,
mas que em patacas possuem
muito mais que Ali Babá
e os seus quarenta ladrões.
É por isto que aos domingos,
cada qual na sua Igreja,
reza, assim, as orações:
Naquele mastro real,
vê se descobres um meio
de aumentar meu capital.
Vendendo carne de charque,
importando bacalhau,
dizendo que prata é ouro
e latão é bom metal.
É assim que vivemos desde
Pedro Álvares Cabral.
Pois o Papa já nos pôs,
no Trato das Tordesilhas,
além do bem e do mal.
BOCA
Carlos Drummond de Andrade
Boca: nunca te beijarei.
Boca de outro, que ris de mim,
no milímetro que nos separa,
cabem todos os abismos.
Boca: se meu desejo
é impotente para fechar-te,
bem sabes disto, zombas
de minha raiva inútil.
Boca amarga pois impossível,
doce boca (não provarei),
ris sem beijo para mim,
beijas outro com seriedade.
DIVERSOS DÕES REPARTE O CÉU BENINO
Soneto 056
Luís de Camões
(Grafia original)
Diversos dões reparte o Céu benino,
e quer que cada üa um só possua;
assi, ornou de casto peito a Lüa,
ornamento do assento cristalino.
De graça, a Mãe fermosa do Minino,
que nessa vista tem perdido a sua;
Palas, de discrição, que imite a tua;
do valor, Juno, só de império dino.
Mas junto agora o mesmo Céu derrama
em ti o mais que tinha, e foi o menos,
em respeito do Autor da natureza;
que, a seu pesar, te dão, fermosa Dama,
Diana, honestidade, e graça, Vénus,
Palas o aviso seu, Juno a nobreza.
SONETO DO FALSO MILAGRE
Bocage
De c′rôa virginal a fronte ornada,
Em lugubres mortalhas envolvida
A beata fatal jaz estendida,
De assistentes contrictos rodeada:
Um se tem por já salvo em ter chegada
Ao lindo pé a bocca commovida:
Outro protesta reformar a vida:
Porém ella respira, e está córada!
Que é santa, e que morreu, com juramentos
Affirma audaz o façanhudo frade,
E que prodigios são seus movimentos:
O devoto auditorio se persuade:
Renovam-se os protestos, e os lamentos:
Triste religião! Pobre cidade!
TROVA 008
Belmiro Braga
Casa em março Ester Macedo
e em julho é mãe… Ora, o alarde!
O filho não veio cedo,
o esposo é que veio tarde…
ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR
Augusto dos Anjos
Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o tellurico recórte,
Na diuturna discordia, a equorea cohorte
Atordoadoramente ribombava!
Eu, ególatra scéptico, scismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquella mathematica da Morte
Com os seus numeros negros, me assombrava!
Mas a alga usufructuaria dos oceanos
E os malacopterygios subrachianos
Que um castigo de especie emmudeceu,
No eterno horror das convulsões maritimas
Pareciam tambem corpos de victimas
Condemnadas á Morte, assim como eu!
LÁGRIMA DE SANGUE
Álvares de Azevedo
Ao pé das aras no clarão dos círios
Eu te devera consagrar meus dias;
Perdão, meu Deus! perdão
Se neguei meu Senhor nos meus delírios
E um canto de enganosas melodias
Levou meu coração!
Só tu, só tu podias o meu peito
Fartar de imenso amor e luz infinda
E uma Saudade calma;
Ao sol de tua fé doirar meu leito
E de fulgores inundar ainda
A aurora na minh'alma.
Pela treva do espírito lancei-me,
Das esperanças suicidei-me rindo...
Sufoquei-as sem dó.
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.
Indolente Vestal, deixei no templo
A pira se apagar — na noite escura
O meu gênio descreu.
Voltei-me para a vida... só contemplo
A cinza da ilusão que ali murmura:
Morre! — tudo morreu!
Cinzas, cinzas... Meu Deus! só tu podias
À alma que se perdeu bradar de novo:
Ressurge-te ao amor!
Malicento, da minhas agonias
Eu deixaria as multidões do povo
Para amar o Senhor!
Do leito aonde o vício acalentou-me
O meu primeiro amor fugiu chorando.
Pobre virgem de Deus!
Um vendaval sem norte arrebatou-me,
Acordei-me na treva... profanando
Os puros sonhos meus!
Oh! se eu pudesse amar!... — É impossível!
Mão fatal escreveu na minha vida;
A dor me envelheceu.
O desespero pálido, impassível
Agoirou minha aurora entristecida,
De meu astro descreu.
Oh! se eu pudesse amar! Mas não:
agora Que a dor emurcheceu meus breves dias,
Quero na cruz sangrenta
Derramá-los na lágrima que implora,
Que mendiga perdão pela agonia
Da noite lutulenta!
Quero na solidão — nas ermas grutas
A tua sombra procurar chorando
Com meu olhar incerto:
As pálpebras doridas nunca enxutas
Queimarei... teus fantasmas invocando
No vento do deserto.
De meus dias a lâmpada se apaga:
Roeram meu viver mortais venenos;
Curvo-me ao vento forte.
Teu fúnebre clarão que a noite alaga,
Como a estrela oriental me guie ao menos
Té o vale da morte!
No mar dos vivos o cadáver bóia
— A lua é descorada como um crânio,
Este sol não reluz:
Quando na morte a pálpebra se engóia,
O anjo se acorda em nós — e subitâneo
Voa ao mundo da luz!
Do val de Josafá pelas gargantas
Uiva na treva o temporal sem norte
E os fantasmas murmuram...
Irei deitar-me nessas trevas santas,
Banhar-me na frieza lustral da morte
Onde as almas se apuram!
Mordendo as clinas do corcel da sombra,
Sufocando, arquejante passarei
Na noite do infinito.
Ouvirei essa voz que a treva assombra,
Dos lábios de minh'alma entornarei
O meu cântico aflito!
Flores cheias de aroma e de alegria,
Por que na primavera abrir cheirosas
E orvalhar-vos abrindo?
As torrentes da morte vêm sombrias,
Hão de amanhã nas águas tenebrosas
Vos rebentar bramindo.
Morrer! morrer! É voz das sepulturas!
Como a lua nas salas festivais
A morte em nós se estampa!
E os pobres sonhadores de venturas
Roxeiam amanhã nos funerais
E vão rolar na campa!
Que vale a glória, a saudação que enleva
Dos hinos triunfais na ardente nota,
E as turbas devaneia?
Tudo isso é vão, e cala-se na treva
— Tudo é vão, como em lábios de idiota
Cantiga sem idéia.
Que importa? quando a morte se descarna,
A esperança do céu flutua e brilha
Do túmulo no leito:
O sepulcro é o ventre onde se encama
Um verbo divinal que Deus perfilha
E abisma no seu peito!
Não chorem! que essa lágrima profunda
Ao cadáver sem luz não dá conforto...
Não o acorda um momento!
Quando a treva medonha o peito inunda,
Derrama-se nas pálpebras do morto
Luar de esquecimento!
Caminha no deserto a caravana,
Numa noite sem lua arqueja e chora...
O termo... é um sigilo!
O meu peito cansou da vida insana;
Da cruz à sombra, junto aos meus, agora
Eu dormirei tranqüilo!
Dorme ali muito amor... muitas amantes,
Donzelas puras que eu sonhei chorando
E vi adormecer.
Ouço da terra cânticos errantes,
E as almas saudosas suspirando,
Que falam em morrer...
Aqui dormem sagradas esperanças,
Almas sublimes que o amor erguia...
E gelaram tão cedo!
Meu pobre sonhador! aí descansas,
Coração que a existência consumia
E roeu um segredo! ...
Quando o trovão romper as sepulturas,
Os crânios confundidos acordando
No lodo tremerão.
No lodo pelas tênebras impuras
Os ossos estalados tiritando
Dos vales surgirão!
Como rugindo a chama encarcerada
Dos negros flancos do vulcão rebenta
Goltejando nos céus,
Entre nuvem ardente e trovejada
Minh'alma se erguerá, fria, sangrenta,
Ao trono de meu Deus...
Perdoa, meu Senhor! O errante crente
Nos desesperos em que a mente abrasas
Não o arrojes p'lo crime!
Se eu fui um anjo que descreu demente
E no oceano do mal rompeu as asas,
Perdão! arrependi-me!
ESTES SÍTIOS!
Almeida Garrett
Olha bem estes sítios queridos,
Vê-os bem neste olhar derradeiro...
Ai!, o negro dos montes erguidos,
Ai!, o verde do triste pinheiro!
Que saudades que deles teremos ...
Que saudade!, ai, amor, que saudade!
Pois não sentes, neste ar que bebemos,
No acre cheiro da agreste ramagem,
Estar-se alma a tragar liberdade
E a crescer de inocência e vigor!
Oh!, aqui, aqui só se engrinalda
Da pureza da rosa selvagem,
E contente aqui só vive Amor.
O ar queimado das salas lhe escalda
De suas asas o níveo candor,
E na frente arrugada lhe cresta
A inocência infantil do pudor.
E oh!, deixar tais delícias como esta!
E trocar este céu de ventura
Pelo inferno da escrava cidade!
Vender alma e razão à impostura,
Ir saudar a mentira em sua corte,
Ajoelhar em seu trono à vaidade,
Ter de rir nas angústias da morte,
Chamar vida ao terror da verdade...
Ai!, não, não... nossa vida acabou,
Nossa vida aqui toda ficou.
Diz-lhe adeus neste olhar derradeiro,
Dize à sombra dos montes erguidos,
Dize-o ao verde do triste pinheiro,
Dize-o a todos os sítios queridos
Desta ruda, feroz soledade,
Paraíso onde livres vivemos...
Oh!, saudades que dele teremos,
Que saudade!, ai, amor, que saudade!
ETERNA TARDE
Alceu Wamosy
A tarde vai morrer, calma como uma santa,
num êxtase de luz infinito e divino.
Há nas luzes do céu qualquer coisa que canta,
com músicas de cor, a tristeza de um hino.
Tudo, em torno de nós, se esbate e se quebranta.
Em nossos corações, como um dobre de sino,
e esperança agoniza; e a alma, triste, levanta
suas trêmulas mãos para o altar do destino.
Não é somente a tarde, a eterna moribunda,
que vai morrer, e espalha esta mágoa profunda
no nosso olhar, nas nossas mãos, na nossa voz...
É uma outra tarde — que nunca há de ser aurora
como a do céu será amanhã — que morre agora,
triste, dentro de nós...
FANTÁSTICA
Alberto de Oliveira
Erguido em negro mármor luzidio,
Portas fechadas, num mistério enorme,
Numa terra de reis, mudo e sombrio,
Sono de lendas um palácio dorme.
Torvo, imoto em seu leito, um rio o cinge,
E, à luz dos plenilúnios argentados,
Vê-se em bronze uma antiga e bronca esfinge,
E lamentam-se arbustos encantados.
Dentro, assombro e mudez! quedas figuras
De reis e de rainhas; penduradas
Pelo muro panóplias, armaduras,
Dardos, elmos, punhais, piques, espadas.
E inda ornada de gemas e vestida
De tiros de matiz de ardentes cores,
Uma bela princesa está sem vida
Sobre um toro fantástico de flores.
Traz o colo estrelado de diamantes,
Colo mais claro do que a espuma jônia.
E rolam-lhe os cabelos abundantes
Sobre peles nevadas de Issedônia.
Entre o frio esplendor dos artefactos,
Em seu régio vestíbulo de assombros.
Há uma guarda de anões estupefactos,
Com trombetas de ébano nos ombros.
E o silêncio por tudo! nem de um passo
Dão sinal os extensos corredores;
Só a lua, alta noite, um raio baço
Põe da morta no tálamo de flores.
EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX
Affonso Romano de Sant'Anna
1. Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.
2. Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.
3. Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
— nux-vômica.
4. Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
5. Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.
6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
7.Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
8. Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
9. Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passsado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
— já vai tarde.
O INTENSO BRILHO
Adélia Prado
É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado
adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
Aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia,
quero ouvir tua alma,
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome,
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semiescuridão.
POEMA DA AMANTE
Adalgisa Nery
Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
OUTRORA
Virgínia Victorino
E tudo está na mesma, tudo igual.
Tudo fala de ti a cada passo.
— Caminhos que eu andei pelo teu braço,
andorinhas a rir sobre o beiral...
O que eu gostei de ti? Era um cristal
a minh´alma. Depois um embaraço.
Amargura mudada num cansaço,
e o nosso amor findou, triste e banal.
Faz-me saudades tudo o que dissemos.
É sempre bom aquilo em que nós cremos.
Eu cri numa mentira. Sou mulher...
Ai o que nós dissemos! Que ansiedades!
Mas sobretudo, amor, tantas saudades
do que nunca chegamos a dizer!
A MEDIDA DO ABISMO
Vinícius de Moraes
Não é o grito
A medida do abismo?
Por isso eu grito
Sempre que cismo
Sobre tua vida
Tão louca e errada...
- Que grito inútil!
- Que imenso nada!
PEQUENINO MORTO
Vicente de Carvalho
Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino, levam-te dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro...
Pequenino, acorda!
Como o sono apaga o teu olhar inerte
Sob a luz da tarde tão macia e grata!
Pequenino, é pena que não possas ver-te...
Como vais bonito, de vestido novo
Todo azul celeste com debruns de prata!
Pequenino, acorda! E gostarás de ver-te
De vestido novo.
(...)
Que caminho triste, e que viagem! Alas
De ciprestes negros a gemer no vento;
Tanta boca aberta de famintas valas
A pedir que as fartem, a esperar que as encham...
Pequenino, acorda! Recupera o alento,
Foge da cobiça dessas fundas valas
A pedir que as encham.
Vai chegando a hora, vai chegando a hora
Em que a mãe ao seio chama o filho... A espaços,
Badalando, o sino diz adeus, e chora
Na melancolia do cair da noute;
Por aqui, só cruzes com seus magros braços
Que jamais se fecham, hirtos sempre... É a hora
Do cair da noute...
(...)
Por que estacam todos dessa cova à beira?
Que é que diz o padre numa língua estranha?
Por que assim te entregam a essa mão grosseira
Que te agarra e leva para a cova funda?
Por que assim cada homem um punhado apanha
De caliça, e espalha-a, debruçado à beira
Dessa cova funda?
Vais ficar sozinho no caixão fechado...
Não será bastante para que te guarde?
Para que essa terra que jazia ao lado
Pouco a pouco rola, vai desmoronando?
Pequenino, acorda! — Pequenino!... É tarde...
Sobre ti cai todo esse montão que ao lado
Vai desmoronando...
Eis fechada a cova. Lá ficaste... A enorme
Noute sem aurora todo amortalhou-te.
Nem caminho deixam para quem lá dorme,
Para quem lá fica e que não volta nunca...
Tão sozinho sempre por tamanha noute!...
Pequenino, dorme! Pequenino, dorme...
Nem acordes nunca!
MARGINÁLIA II
Torquato Neto
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti
Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
BOTÃO DE ROSA
Thiago de Mello
Nos recôncavos da vida
jaz a morte.
Germinando
no silêncio.
Floresce
como um girassol no escuro.
De repente vai se abrir.
No meio da vida, a morte
jaz profundamente viva.
CANTO DÉCIMO II
Sousândrade
(...)
(Comissários em Filadélfia expondo a CARIOCA
de PEDRO AMÉRICO, QUAKERS admirados:)
— Antedilúvio 'plesiosaurus,'
Indústria nossa na Exposição...
— Oh Ponza! que coxas!
Que trouxas!
De azul vidro é o sol patagão!
(...)
ANGUSTIAR
Ricardo Lima
Razões sem sentido, elevam a dor.
Marcas duras.
Gruda n’alma, sem saber...
Ser o ser!
Gruda n’alma, angustia, sem ser.
Angustiar? O mar, a imensidão fluida.
Angustiar, doar...
Veneza de lágrimas recônditas, avareza, impureza.
Angustiar, amar-angustiar.
HISTÓRIA ANTIGA
Raul de Leôni
No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi… um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era… Não sabia…
Desde então, transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para frente…
Nunca mais nos falamos… vai distante…
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,
E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…
O RÁDIO ABC
Patativa do Assaré
Vejo que o nosso Nordeste
Ê mesmo a terra da fome,
Onde o matuto não veste,
Onde o matuto não come.
A agricurtura é sentença
E sem havê assistença
O jeito é se escangaiá.
Parece mesmo um pagode!
Seu doto, como é que pode
Este Brasi miorá?
Carsando dura apragata
O nosso pobre caboco
Se soca dentro da mata,
Pisando inriba de toco,
Bota um alarme de broca,
Depois nela fogo toca.
Depois da mesma queima
Ainda lhe dá cansêra,
Porque tem a garranchêra
Que é preciso incoivará.
Ele, naquele vexame,
Logo o terreno incoivará
Mas porém, não tem arame,
Precisa cerca de vara.
Depois da roça cercada,
De ferramenta pesada
Segue no mesmo rojão,
Pois com nada se aquebranta
E na terra seca pranta
O caroço de argodão.
Pranta com munto prazê,
Com munta sastifação,
Proque no rádio ABC
Que comprou de prestação
Todo momento que liga,
Além de munta cantiga,
Escuta uma voz falá,
Uma voz dizendo: «prante,
Que o governo garante».
E o seu desejo é prantá.
Pranta no seco a semente
E depois de tê chuvido
Ele diz munto contente:
Meu argodão tá nascido
E vai a limpa fazê
Mode o mato não cresce
Pois, pra pode dá de conta,
É preciso que se arranje,
Puxando um forte frejoge
Com uma inxada na ponta.
Vendo o prantio na linha,
Sempre de bom a mió,
Agarra demenhãsinha
Até chega o pôr do só.
A sua manutenção
Meidia é sempre fejão
E de noite muncunzá,
Mas nada de esmorece,
Uvindo o rádio ABC,
Sempre mandando prantá.
Esta roça tá firmada
Porém, tem a capoêra,
Esta aqui limpa de inxada
E aquela de roçadêra.
O seu argodão do roço
Tá se tornando um colosso,
A roça tá munto boa,
De fulo toda amarela,
Pode a gente chama ela
Um bordado de açafroa.
E ele o trabaio fazendo,
Sempre agüentando o ripuxo,
Aqui e ali já tá vendo
Dasabrochando um capuxo,
E o caboco não descansa,
Cheio de fé e esperança
Por vê o argodão abri,
Diz, alegre e munto esperto:
Já tá chegando bem perto
Do gunverno garanti!
A roça no mês de agosto
Tá bem arva de argodão,
Tá mesmo de fazê gosto,
Tá mesmo um manapulão;
Quem de longe repara
Sabendo bem compara,
Logo em sua mente toca
Que aquilo é bem parecido
Com um lenço estendido,
Coberto de tapioca.
E o nosso honesto matuto
Sempre da roça pra casa,
Achando que o seu produto
Vai dá lucro e não atrasa.
De noite, perto da mesa,
Com a lamparina acesa,
Todo cheio de inlusão
Destranca o rádio ABC,
Proque deseja sabe
Que preço tem argodão.
Com os seus dedo grocêro
Passa ali hora e mais hora
Mexendo com o pontêro,
Em toda estação demora.
Porém seu rádio ABC
Desta vez não qué sabe
De negoço de argodão,
Derne o Sú inté o Norte
Só tá falando de esporte,
Pele, Garrincha e Tostão.
Bota o pontêro pra lá 10
é sempre uma coisa só,
Puxa o pontêro pra cá
E é o mesmo Futibó
E aquele nosso caboco
Já quage com ar de loco
Vai ficando meio brabo
E diz, bastante raivoso:
Este rádio é mentiroso!
Eu só vendendo este diabo!
Cheio de raiva e quisila,
Já de esperança perdida,
Tranca o seu rádio de pila
E fica a pensa na vida,
Dizendo a sua senhora:
É uma grande caipora
Vende argodão barato!
Perdi todo o meu serviço,
Trabaieí com sacrifico,
Pra botá tudo no mato!
Na vida de agricurtô
Não há pobre que se saia,
Pra todo lado que vou
Tem um bicho de tocaia;
É grande a desiguardade
Do campo para a cidade!
Você repare, muié,
Que grande escuiambação:
Quinze quilo de argodão
Não compra três de café!
E toca lá pra cidade
Quatro carga de argodão,
Mas, porém, mais da metade
Já tá devendo ao patrão.
Com a sobra do dinhêro,
O sobejo dos cruzêro,
Que é bem pequena quantia,
Faz uma fraca merenda,
Depois vai compra fazenda
Mode vesti a famia.
Depois que de brim barato
Compra carsa pra José,
Chico Migue, Furtunato
E uma saia pra muié
E seis vestido de chita
Pra Joana, Tereza, Rita,
Josefa, Antônia e Sinhá,
Fica coçando o bigode.
Seu doto, como é que pode
Este Brasi miorá?
Veja que negoço chato,
O que foi que aconteceu,
Vendeu o argodão barato,
Que tanto trabaio deu!
Aquele bom camponês,
Com as comprinhas que fez,
Nem um centavo sobrou,
Ficou de bôrsa vazia,
Pensando na garantia
Que o rádio tanto falou.
Sem tê no borso um tostão
Vorta o caboco da praça
Pensando em seu argodão
E incabulado, sem graça,
Quando chega na paioça,
Vai derruba nova roça
Pra ôtra safra fazê,
Bem sisudo, resmungando,
Chingando e desconjurando
Aquele rádio ABC.
CIGARRA
Olegário Mariano
Figurinha de outono!
Teu vulto é leve, é sensitivo,
Um misto de andorinha e bogari.
Num triste acento de abandono,
A tua voz lembra o motivo
De uma canção que um dia ouvi.
Quando te expões ao sol, o sol te impele
Para o rumor, para o bulício e tu, sorrindo,
Vibras como uma corda de guitarra...
É que o sol, quando queima a tua pele,
Dá-te o grande desejo boêmio e lindo
De ser flor, de ser pássaro ou cigarra
Cigarra cor de mel. Extraordinária!
Cigarra! Quem me dera
Que eu fosse um velho cedro adusto e bronco,
E tu, nessa alegria tumultuária,
Viesses pousar sobre o meu tronco
Ainda tonta do sol da primavera.
Terias glórias vegetais sendo vivente.
Mas um dia de lívidos palores,
Tu, cigarra, que vieste não sei donde,
Morrerias de fome lentamente
No teu leito de liquens e de flores
No aconchego sutil da minha fronde.
E eu, na dor de perder-te, no abandono,
Sem ter roubado dessa mocidade,
Do teu corpo de flor um perfume sequer,
Morreria de tédio e de saudade...
Figurinha de Outono!
Cigarra que o destino fez mulher!
OS FENÍCIOS
Olavo Bilac
Ávida gente, ousada e moça! Ávida gente!
Desse estéril torno, desse areal maninho
Entre o Líbano e o mar da Síria, - que caminho
Busca, turvo de febre, o vosso olhar ardente?
Tiro, do vivo azul do pélago marinho;
Branca, nadando em luz, surge resplandecente...
Na água, aberta em clarões, chocam-se de repente
Os remos. Rangem no ar os velames de linho.
Hiram, com o cetro negro em que ardem pedrarias,
Conta as barcas de cedro, atupidas de fardos
De ouro, púrpura, ônix, sedas e especiarias.
Sus! Ao largo! Melcarte abençoe a partida
Dos que vão de Sídon, de Gebel e de Antardus
Dilatar o comércio e propagar a Vida!
TARDE FAZENDEIRA
Menotti Del Picchia
Tarde cabocla
com banzo de pretos nas sombras,
carícias de escravas mulatas
nas palmas dos longos coqueiros.
Um rouco ribombo de bombo
nos ecos; um trilo de estrídulos grilos
nas moitas; tarde cabocla
com um sol de miçangas, de gangas vermelhas
nos flancos das serras,
com um hálito fresco de folhas pisadas, de verdes pomares
pejados de frutas-de-conde, de mangas maduras,
com aros de lua nascente nos céus e nas águas,
tarde cabocla
com vagas preguiças de redes nas ramas,
com longos bocejos de luz nas encostas,
foi numa tarde como esta
que vieram ao mundo
os mestiços da raça...
MÚSICA
Mário Quntana
Eu ouço música
como quem apanha chuva:
resignado
e triste
de saber que existe um mundo
do Outro Mundo...
Eu ouço música como
quem está morto
e sente
já um profundo
desconforto
de me verem
ainda neste mundo de cá...
Perdoai,
maestros,
meu estranho ar!
Eu ouço música
como um anjo doente
que não pode voar.
VAI-TE
Maria Firmina dos Reis
Entre tu, ─ que és tão sensível,
E eu, que te adoro tanto,
Colocou a sorte ─ o pranto,
Marcou Deus, ─ o impossível!
Ouviste! Deus! não intentes
Frustrar os decretos seus!
Sufoca as dores que sentes,
Esquece os transportes meus.
Vai longe, longe olvidar
Nossos protestos de amor!
Vai teu fado obedecer;
Vai… não voltes… trovador.
Sofre, embora, cruas dores,
Sinta eu lenta agonia;
Embora mil dissabores
Me envenene a noite, e o dia,
Vai-te! vai-te… Deus nos diz:
Impossível! Oh! que dor…
Vai-te… deixa-me infeliz.
DEBUSSY
Manuel Bandeira
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma crianç
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
— Psiu... —
Para cá, para lá...
Para cá e...
— O novelozinho caiu.
O FOTÓGRAFO
Manoel de Barros
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada minha aldeia estava morta
não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era o carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia
de braços com Maiakovski — seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.
UM VOTO
Maciel Monteiro
Enfin, pauvre feuille envolée,
Je viendrais, au gré dês mês voeux,
Me poser sur son froiit, mêlée
Aux boucles de sés noirs cheveux.
VICTOR HUGO. Orienlales.
Se eu fora a flor querida, a flor mais bela
De quantas brilham no matiz, na gala;
Se o meu perfume fora mais suave
Que êase que a rosa no Oriente exala;
Se em volta a mim os zéfiros traidores
Sussurrando viessem bafejar-me,
E com moles blandícias, brandos mimos
Tentassem de minh'haste arrebatar-me;
Se o vário beija-flor tão feiticeiro,
Desprezando uma a uma as demais flores,
Em meu virgíneo, delicado seio
Depusesse seus beijos, seus amores;
Num vaso de esmeralda eu não quisera
Os aposentos decorar brilhantes
Do soberbo Nababo de Golconda,
Que pisa em per'las, topa nos diamantes.
Tão pouco eu cubiçara ornar o seio
Dessa jovem britânica princesa;
Em quem o brilho do diadema augusto
Luz menos que os encantos da beleza.
Pousar, senhora, fora o meu desejo
Em vossa fronte tão serena e bela,
E fazer que cm seu voo o tempo rápido
A asa impura não ouse roçar nela.
Como um raio da vossa formosura
Refletiria em mim seu fogo santo
Como a fragrância dos cabelos vossos
Dera a minha fragrância novo encanto!
Aí como vaidosa eu ostentara
Todo o meu esplendor. E qual rainha
Num trono de ouro ousara disputar-me
Minh'alta condição c a glória minha?
Mas já que a flor não sou apetecida
(Que o não consentem fados meus adversos)
Não recuseis, senhor, a flor silvestre
Que o bardo vos of´rece nestes versos.
SONETO DA GULA CÓSMICA
Luís Turiba
A lua noiva se encheu de gula cósmica
Dos Baixos Gáveas aos Altos Paraísos
Floresta tua mística pulsa polvorosa
De tantos pius uivos silvos ais gemidos
Havia algo a mais no céu além da noite
Pra lá dos discos voadores e das mandalas
O sol engolido em seco e o bicho solto
E eu ouvindo estrelas em tuas sandálias
Tua aninha se aninhou em meu aninhante
Nhô nô sabia um quatro e não mais sozinho
Olhos de milho que brilham em voz arfante
Goya goiana ioga flora, meu araçacinho
Brinco de água, bacupari, ingá. Avante!!
As tuas trilhas trilharam meus caminhos
EXALTAÇÃO
Júlio Dinis
Vida! quero viver! quero em prazeres
Sequioso saciar-me!
Deste frio letargo em que hei vivido,
Quero, enfim, libertar-me!
Pra longe o manto da indiferença! Aos gozos!
Eia! aos festins da vida!
Os mais convivas se sentaram há muito.
Dai-me a parte devida.
Pra longe pensamentos de tristeza,
Gelado desalento!
Vou embriagar-me nas ardentes taças
Beber nelas o alento.
Mundo, dá-me o prazer que aos mais concedes!
Da isolação estou farto. Adeus, ó solidão, adeus
repouso.
Adeus… pra sempre eu partoI
Os rumores da turba escuto ao longe
No seio dos folgares;
E só eu, frio, cruzarei os braços,
Não buscarei seus lares?
Oh! não; é tempo, as alegrias chamam-me.
Antes de exausta a taça
Corramos a bebe r nela, que o gozo
Co’a juventude passa. Amigos, esperai, eu já vos sigo.
Louco do que se isola?
Nem se torna melhor, nem suas penas
Na solidão consola.
Vamos ao menos no rumor das festas
Sufocar este grito
Que nos brada : — Padece, que de lágrimas
Foi teu destino escrito.
Vamos… ao menos no fulgor dos bailes
Fascinemos a vista.
Talvez aí se encontre o esquecimento,
Talvez o gozo exista. Quebremos esta lápide marmórea
Que nos cingia em vida. Ressuscitemos! Eia, ó alma acorda
Desta feral jazida.
Vamos!… às festas, ao prazer, aos cantos,
Às flores e harmonias.
Taças a trasbordar, luzes fulgentes,
Delirantes orgias!
E, então, no meio do delírio férvido,
Perdido, embriagado,
Talvez encontre a paz que em balde tenho
Na solidão buscado,
Abril de 1860
Esta exaltação, como quase todas, terminou em nada. Não cheguei a incomodar
os convivas dos festins da vida para me darem lugar, e espero que nunca os
incomodarei. Meu caminho é outro. Divirtam-se em paz
REINO MINERAL
Jorge de Lima
Quem te fez assim soturno
quieto reino mineral,
escondido chão noturno?
Que bico rói o teu mal?
Quem antes dos sete dias
te argamassou em seu gral?
Quem te apontou pra onde irias?
Quem te confiou morte e guerra?
Quem te deu ouro e agonias?
Quem em teu seio de terra
infundiu a destruição?
Quem com lavas em ti berra?
Quem te fez do céu o chão
Quieto reino mineral?
Quem te pôs tão taciturno?
Que gênio fez por seu turno
antes do mundo nascer:
a criação do metal,
a danação do poder?
PEQUENA ODE MINERAL
João Cabral de Melo Neto