Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias sexta, 11 de dezembro de 2020

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Carlos Drummond de Andrade

 

Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fudamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.

 


Poemas e Poesias quinta, 10 de dezembro de 2020

SONETO 043 - COMO QUANDO DO MAR TEMPESTUOSO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

 

COMO QUANDO DO MAR TEMPESTUOSO

Soneto 043

Luís de Camões

 

 

 

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
de um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso,

e jura que, em que veja bonançoso
o violento mar e sossegado,
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

assi, Senhora, eu, que da tormenta
de vossa vista fujo, por salvar-me,
jurando de não mais em outra ver-me:

minha alma, que de vós nunca se ausenta,
dá-me por preço ver-vos, faz tornar-me
donde fugi tão perto de perder-me.

 


Poemas e Poesias quarta, 09 de dezembro de 2020

OUTRO SONETO AO FRANÇA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

OUTRO SONETO AO FRANÇA

Bocage

 

Rapada, amarelenta, cabeleira,

Vesgos olhos, que o chá, e o doce engoda,

Boca, que à parte esquerda se acomoda,

(Uns afirmam que fede, outros que cheira):

 

Japona, que da ladra andou na feira;

Ferrugento faim, que já foi moda

No tempo em que Albuquerque fez a poda

Ao soberbo Hidalcão com mão guerreira:

 

Ruço calção, que esporra no joelho

Meia e sapato, com que ao lodo avança,

Vindo a encontrar-se c'o esburgalhado artelho:

 

Jarra, com apetites de criança;

Cara com semelhança de besbelho;

Eis o bedel do Pindo, o doutor França.


Poemas e Poesias terça, 08 de dezembro de 2020

O SONHO (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

O SONHO

Bárbara Heliodora

 

Oh que sonho! Oh! que sonho eu tive n'esta,

Feliz, ditosa e socegada sésta!

Eu vi o Pão de Assucar levantar-se

E no meio das ondas transformar-se

Na figura de um indio o mais gentil,

Representando só todo o Brazil.

Pendente ao tiracol de branco arminho

Concavo dente de animal marinho

As preciosas armas lhe guardava;

Era thesoiro e juntamente aljava.

De pontas de diamante eram as setas,

As hásteas d'oiro, mas as pennas pretas;

Que o indio valeroso altivo e forte

Não manda seta, em que não mande a morte,

Zona de pennas de vistosas côres

Guarnecida de barbaros lavores,

De folhetas e perolas pendentes,

Finos chrystaes, topazios transparentes,

Em recamadas pelles de sahiras,

Rubins, e diamantes e saphiras,

Em campo de esmeralda escurecia

A linda estrella, que nos traz o dia.

No cocar... oh que assombro! oh que riqueza!

Vi tudo quanto póde a natureza.

No peito em grandes letras de diamante

O nome da augustissima imperante.

De inteiriço coral novo instrumento

As mãos lhe occupa, em quanto ao doce accento

Das saudosas palhetas, que afinava,

Pindaro americano assim cantava.

 

Sou vassallo e sou leal,

Como tal,

Fiel constante,

Sirvo á glória da imperante,

Sirvo á grandeza real.

Aos elysios descerei

Fiel sempre a Portugal,

Ao famoso vice-rei,

Ao illustre general,

Ás bandeiras, que jurei,

Insultando o fado e a sorte,

E a fortuna desigual,

Qu'a quem morrer sabe, a morte

Nem é morte, nem é mal.


Poemas e Poesias segunda, 07 de dezembro de 2020

RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ

Augusto dos Anjos

 

 
 
A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Suscetibilidades de menina:
"- Não, não fora ela! -" E maldizia a sua sina,
Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

Poemas e Poesias domingo, 06 de dezembro de 2020

POEMAS MINUTO (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

POEMAS MINUTO

Ascenso Ferreira

 

Filosofia

 

     Hora de comer, —comer!

     Hora de dormir, — dormir!

     Hora de vadiar, — vadiar!

     Hora de trabalhar?

     — pernas pro ar que ninguém é de ferro!

 

Sucessão de São Pedro

 

     — Seu vigário!

     Está aqui esta galinha gorda

     que eu trouxe pro mártir São Sebastião!

     — Está falando com ele!

     — Está falando com ele!


Poemas e Poesias sexta, 04 de dezembro de 2020

DÍSTICO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

DÍSTICO

Ariano Suassuna

 

Sob o Sol deste Pasto Incendiado,
montado para sempre num Cavalo
que a Morte lhe arreou,
vê-se, aqui, quem, na vida, bravo, ardente
e indeciso, sonhou.

Pelas cordas-de-prata da Viola,
os cantares-de-sangue e o doido riso
de seu Povo cantou.
Foi dono da Palavra de seu tempo,
Cavaleiro da gesta sertaneja,
Vaqueiro e caçador.

Se morreu moço e em sangue, teve tempo
de governar seus pastos e rebanhos,
e a feiosa velhice
jamais o degradou.

Glória, portanto, à Morte e a suas garras,
pois, ao sagrá-lo, assim, da vida ao meio,
do Desprezo o salvou:
poupou-lhe a Cinza triste, a Decadência,
gravou sua grandeza em pedra e fogo,
e assim a conservou.


Poemas e Poesias quinta, 03 de dezembro de 2020

DESALENTO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

DESALENTO

Álvares de Azevedo

 

Feliz daquele que no livro d'alma
Não tem folhas escritas
E nem saudade amarga, arrependida,
Nem lágrimas malditas!
 
Feliz daquele que de um anjo as tranças
Não respirou sequer
E nem bebeu eflúvios descorando
Numa voz de mulher...
 
E não sentiu-lhe a mão cheirosa e branca
Perdida em seus cabelos,

Nem resvalou do sonho deleitoso
A reais pesadelos...
 
Quem nunca te beijou, flor dos amores,
Flor do meu coração,
E não pediu frescor, febril e insano
Da noite à viração!
 
Ah! feliz quem dormiu no colo ardente
Da huri dos amores,
Que sôfrego bebeu o orvalho santo
Das perfumadas flores...
 
E pôde vê-la morta ou esquecida
Dos longos beijos seus,
Sem blasfemar das ilusões mais puras
E sem rir-se de Deus!
 
Mas, nesse doloroso sofrimento
Do pobre peito meu,
Sentir no coração que à dor da vida
A esperança morreu!...
 
Que me resta, meu Deus? aos meus suspiros
Nem geme a viração...
E dentro, no deserto do meu peito,
Não dorme o coração!


Poemas e Poesias quarta, 02 de dezembro de 2020

AMADA FILHA, É JÁ CHEGADO O DIA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

AMADA FILHA, É JÁ CHEGADO O DIA

Alvarenga Peixoto

 

Amada filha, é já chegado o dia,
em que a luz da razão, qual tocha acesa
vem conduzir a simples natureza,
é hoje que o teu mundo principia.

A mão que te gerou teus passos guia,
despreza ofertas de uma vã beleza,
e sacrifica as honras e a riqueza
às santas leis do filho de Maria.

Estampa na tua alma a caridade,
que amar a Deus, amar aos semelhantes,
são eternos preceitos da verdade.

Tudo o mais são idéias delirantes;
procura ser feliz na eternidade,
que o mundo são brevíssimos instantes.

 


Poemas e Poesias terça, 01 de dezembro de 2020

COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE

Alphonsus Guimaraens

 

 

Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto…


Poemas e Poesias segunda, 30 de novembro de 2020

A TEMPESTADE (1828) - (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

A TEMPESTADE (1828)

Almeida Garrett

 

Virgílio,
Coeco carpitur igni
I

Sobre um rochedo
Que o mar batia,
Triste gemia
Um desgraçado,
Terno amador.
Já nem lhe caem
Dos olhos lágrimas,
Suspiros férvidos
Apenas contam
Seu triste amor.

II

Ondas, clamava o mísero,
Ondas que assim bramais,
Ouvi meus tristes ais!
Horrível tempestade,
Medonho furacão,
Não é mais agitado
Do que o meu coração,
O vosso despregado,
Horrisonoo bramar!
Ancia que atropela
Meu lânguido peito,
É mais violenta
Que o tempo desfeito,
Que a onda encapela,
Que a agita a tormenta
No seio do mar.

III

Mas, ah! se o negrume
O sol dissipara
Calmara
Seu nume,
O horror do tufão.
Assim à minha alma
A calma
Daria
De Armia
Um sorriso:
Um raio de esprança
Do paraíso
Traria
A bonança
Ao meu coração.


Poemas e Poesias domingo, 29 de novembro de 2020

À MINHA FILHA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

À MINHA FILHA

Alberto de Oliveira

 

Vejo em ti repetida,
A anos de distância,
A minha própria vida,
A minha própria infância.

É tal a semelhança,
É tal a identidade,
Que é só em ti, criança,
Que entendo a eternidade.

Todo o meu ser se exala,
Se reproduz no teu:
É minha a tua fala,
Quem vive em ti, sou eu.

Sorris como eu sorria,
Cismas do meu cismar,
O teu olhar copia,
Espelha o meu olhar.

És como a emanação,
Como o prolongamento,
Quer do meu coração,
Quer do meu pensamento.

Encarnas de tal modo
Minha alma fugitiva,
Que eu não morri de todo
Enquanto sejas viva!

Por que mistério imenso
Se fez a transmissão
De quanto sinto e penso
Para esse coração?

Foi como se eu andasse
Noutra alma a semear
Meu peito, minha face,
Meu riso, meu olhar...

Meus íntimos desejos,
Meus sonhos mais doirados,
Florindo com meus beijos
Os campos semeados.

Bendita é a colheita,
Deus confiou em nós...
Colhi-te, flor perfeita,
Eco da minha voz!

Foi o amor, foi o amor,
Ó filha idolatrada,
O sopro criador
Que te tirou do nada!

Deus bendito e louvado,
Ó filha estremecida,
Por te cá ter mandado
A reviver-me a vida!


Poemas e Poesias sábado, 28 de novembro de 2020

ARTE FINAL (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

ARTE FINAL

Affonso Romano de Sant'Anna

 

Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.


Poemas e Poesias sexta, 27 de novembro de 2020

DIA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

DIA

Adélia Prado

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.


Poemas e Poesias quinta, 26 de novembro de 2020

DO FIM AO PRINCÍPIO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

DO FIM AO PRINCÍPIO

Adalgisa Nery

 

 

Nada mais acontecerá

Porque tudo Já aconteceu.

Amanhã é ontem e ontem é hoje.

Meu nascimento, minha vida,

Minha morte e meu julgamento

Já chegaram dentro de mim

Antes de chegar para todos.

Sei que ninguém mais nascerá,

Se alguém nasceu foi um instante

E os que vivem foram abafados

Antes de acabar como cosmos, como universo.

Em tudo e para tudo o mundo já começou por acabar dentro de

                                                                     [mim mesma.

Espero o princípio, porque o fim

Já está comigo desde a minha formação.


Poemas e Poesias quarta, 25 de novembro de 2020

AMOR (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

AMOR

Virgínia Victorino

 

O amor! O amor! Ninguém o definiu.
É sempre o mesmo. Acaba onde começa.
Quem mais o sente menos o confessa,
e quem melhor o diz nunca o sentiu.

Conhece a todos mas ninguém o viu.
Se o procuramos, foge-nos depressa.
Se o desprezamos, todo se interessa,
só está presente quando já fugiu.

É homem feito sendo criança.
E quanto mais se quer menos se alcança,
ninguém o encontra, e em toda parte mora.

Mata a quem dele vive. É sempre assim.
Só principia quando chega o fim,
morreu há muito e nasce a cada hora.


Poemas e Poesias terça, 24 de novembro de 2020

A ESPOSA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

 

A ESPOSA

Vinícius de Moraes

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha — e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.
Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...

Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.


Poemas e Poesias segunda, 23 de novembro de 2020

CARTA A V. S. (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

CARTA A V. S.

Vicente de Carvalho

 

Artista, amigo, irmão, sê generoso e pio,
Perdoa a um pescador seus pecados mortais!
Eu, alma em turbilhão, corpo em cacos expio
Com remorsos cruéis e cólicas fatais
—Faltas em que reincido, erros em que porfio.

Ai, no fundo, não sou mais do que um bugre, eis tudo.
Corre abundante em mim sangue de guaianás.
Veste-me a pele branca o espírito desnudo,
Simples, rudimentar, insubmisso, incapaz,
Que porventura herdei de algum avô beiçudo.

Imagina que sou neto de algum cacique
Cuja vida feliz de nômade sem lar
Tinha a alegre feição de um grande piquenique;
E em cuja fronte altiva as plumas de um cocar
Eram como a expressão ritual do último chic.

Algum bugre feroz, cujo corpo bronzeado
Mantinha a liberdade inata da nudez;
Que dormia tranquilo um sonho descuidado
—Passivo, indiferente, enfarado talvez—
Sob o mistério azul do céu todo estrelado.

Ignorando o pavor da vida extra-terrena,
Tinha para o Futuro um olhar de imbecil;
E, passando na Terra, inútil, em pequena
Viagem através da natureza hostil,
Vivia sem cuidado e morria sem pena.

Vegetava feliz, sem lei, sem rei nem roque.
Sua única ambição era a fome vivaz,
Sua única riqueza, uma flecha e um bodoque;
E abria-se num riso eterno e contumaz
O seu lábio — fendido ao peso do batoque.

Imagina tu, pois, a alma do avô selvagem
Comprimida, esmagada, atônita, infeliz,
Metida numa vasta e complexa engrenagem
De deveres morais e tramoias sutis,
De apuros de dinheiro e apuros de linguagem;

Imagina esse filho inculto da floresta,
Que ama o céu porque é belo, e ama o sol porque luz,
—Perdido na cidade ignóbil e funesta,
Cheia de sombra e pó, caiada e desonesta,
Velha Aspásia, garrida, e a desfazer-se em pus;

Vê se esse humilde e tosco espírito imaginas,
Ao sabor de uma turba em grita e em confusão,
Pela prédica e o livro, os jornais e as mofinas,
Arrastado em tropel — disputado em leilão
Em nome de três mil Sistemas e Doutrinas;

Imagina cativa, entregue, submetida
Aos caprichos da Moda e à exigência das Leis,
Entre o encanto do Mal e a ideia da Outra Vida,
Entre o culto de Deus e o culto do Mil-réis,
Entre o padre e vendeiro, entre o Verso e a Comida;

Ai, imagina assim a alma do bugre bravo,
Meu avô — que, no mato, era dono feliz
Do seu tempo vazio e do seu gosto ignavo,
Que era, em suma, o senhor do seu próprio nariz...
—Alma livre que em mim reviveu num escravo!

Alma apenas capaz de adejar, fugidiça,
Em voos leves de uma asa de beija-flor;
E obrigada a pairar nas regiões da Justiça
Como um corvo que sobe ao céu todo esplendor
Para, do alto, melhor lobrigar a carniça...

Ai, a alma do tupi, bem mal domesticada
À macaqueação cabocla do europeu,
Conserva, forte e viva, a angustia de exilada,
A saudade fiel de tudo que perdeu,
Da floresta nativa, ausente e devastada.

Assim, de quando em quando assalta-me a cachola
Um furioso desejo — ou do mato, ou do mar,
Das vastas solidões onde ninguém me amola...
E, pássaro cativo, eu fujo, a me escapar
Da Civilização — como de uma gaiola.

Fujo, escapo, disparo através das vielas
Plenas de agitação, de atritos e de pó;
Salvo-me, aos esbarrões, dando cebo às canelas,
A ouvir a voz de algum descendente de Jó
Que apregoa Moral — coberto de mazelas.

Liberto, a salvo enfim, penetro na floresta
Como num templo augusto habitado por Deus;
E ante o vasto esplendor da natureza em festa,
Sob a auréola em que a cinge a abóbada dos céus
—Rendo-lhe a adoração que o meu olhar lhe presta.

Nem padres, nem altar, nem liturgia... Um coro
De aves canta a alegria ingênua de viver;
De longe em longe reza e resmunga um besouro,
E sobe, como incenso, o perfume, a se erguer
Da sombra em flor do chão que o sol polvilha de ouro.

E, por um dia ou dois, eis-me entregue, alma antiga
De bugre ressurreto, o olhar vago, os pés nus,
À doce Religião da Natureza amiga...
Erro à toa; o primeiro atalho me conduz,
Ver o céu me contenta; uma árvore me abriga.

Estendo-me na relva; e, na delícia absorto
De sentir a alma leve, ôca, vazia... assim
Gozo a beatitude inteira do conforto
De me deixar levar pelo tempo sem fim
Como um toco sem vida a boiar num mar morto.

Não pensar, não querer... A ambição e a saudade
Adormecidas; morta essa ilusão pueril
De fazer intervir no Destino a Vontade...
Ignorar o Minuto, inseto odioso e vil
Que rói a vida e vai tecendo a eternidade...

Na solidão do mato, esqueço, ignoro, em suma:
Sou feliz. Do sueto a esta alma de aluguel
Que vive, de auto em auto, a desfazer-se em espuma;
E, livre do canudo atroz de bacharel,
Passo orgulhosamente a ser coisa nenhuma.

E o mar então... O mar, o velho confidente
De sonhos que a mim mesmo hesito em confessar,
Atrai-me; a sua voz chama-me docemente,
Dá-me uma embriaguez como feita de luar...
O mar é para mim como o Céu para um crente.

Vê tu lá, Valdomiro, o bugre apenas manso
Que eu sou. Sob o verniz que me disfarça, está
O tapuia boçal, bravio como um ganso,
Devoto da Preguiça, amigo do descanso,
—Um neto do remoto avô Tibiriçá.

Ímpetos de voltar, fugido, para o mato,
De me fazer ao mar numa casca de noz:
Eis o vício do bugre, eis o meu vício inato,
Eis o que eu em remorso e em cólicas resgato,
Eis o crime de ser neto dos meus avós.

E agora, conhecendo a verdade inteiriça,
Perdoa a um pescador seus pecados mortais,
Perdoa a um preguiçoso os crimes da Preguiça,
E a um bugre como eu sou, não ter na alma insubmissa
O culto da Visita e dos Cartões Postais!

Falando agora a sério — e envergonhado o digo:
Não, desculpa, não há que ouse em prosa valer
Às mil faltas em que eu estou para contigo.
O verso diz... o que não há para dizer:
Pague, pois, o poeta as dívidas do amigo.

Paga-as; paga-as à vista, em rima numerosa;
Paga-as de rosto alegre e coração feliz,
Porque, na mesma estrofe exata e afetuosa,
Pôde, na mesma voz que o mesmo verso diz,
Saudar a um tempo o amigo e o príncipe da prosa.

Lida a defesa, que é tão extensa e tão crua,
Outorga ao réu confesso num perdão liberal...
Pai do céu! ainda aqui fiz uma falcatrua:
Sendo a defesa assim tão comprida — afinal
Os pecados são meus — e a penitência é tua...


Poemas e Poesias domingo, 22 de novembro de 2020

A RUA (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

A RUA

Torquato Neto

 

Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba
De uma rua, de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo, ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(Oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas
Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
Rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus Lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua
Ê, São João, é, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Ê, Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão
De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão
Ê, minha rua, meu povo
Ê, gente que mal nasceu
Das Dores, que morreu cedo
Luzia, que se perdeu
Macapreto, Zê Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu

Ê, Pacatuba
Meu tempo de brincar já foi-se embora
Ê, Parnaíba
Passando pela rua até agora
Agora por aqui estou com vontade
E eu volto pra matar esta saudade
Ê, São João, é, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão.


Poemas e Poesias sábado, 21 de novembro de 2020

A HORA CINZENTA (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

A HORA CINZENTA

Raul de Leôni

 

Desce um longo poente de elegia
Sobre as mansas paisagens resignadas;
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distancias desoladas…

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas,
Na penumbra nostálgica, macia…

Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência
Pela tarde sonâmbula, imprecisa…

Os sentidos se esfumam, a alma é essência
E entre fugas de sombras transcendentes,
O pensamento se volatiliza…


Poemas e Poesias sexta, 20 de novembro de 2020

COPACABANA 1945 (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

COPACABANA  1945

Paulo Mendes Campos

 

I

As fichas finais do jogo
foram recolhidas; fecha-se
o cassino; abre-se em fogo

o coração que devora.
Vejo em vez de eternidade
no relógio minha hora.

E se quiser vejo a tua.
Às cinco tinhas encontro
num cotovelo de rua.

As cigarras do verão
tiniam quando sugavas
teu uísque com sifão.

Às onze no Wunder Bar
por meio acaso encontravas
a mulher que anda no ar.

Às três em Copacabana
uma torpeza uterina
pestana contra pestana.

As quatro e pouco saías,
comias um boi às cinco,
às seis e meia morrias.

Às duas ressuscitavas,
às cinco tinhas encontro,
às sete continuavas.


II

A mensagem abortada

de Copacabana perde-se
na viração: não é nada.

Morre um homem na polícia.
Tantos casos. Não é nada:
os jornais dão a notícia.

Uma criança que come
restos na lata de lixo
não é nada: mata a fome.

Não é nada. A favela
pega fogo. Não é nada:
faz-se um samba para ela.

Um moço mata a família
e se mata. Não é nada:
poupa o drama à tua filha.

Uma menina estuprada.
Uma virgem cai do céu.
Nada. Copacabanada.


VI

Copacabana, golfão
sexual: soma dois corpos
mas divide solidão.


VII

Pelas piscinas suspensas,
pelas gargantas dos galos,
pelas navalhas intensas,

pelas tardes comovidas,
pelos tamborins noturnos,
pelas pensões abatidas,


eu vou por onde vou; vou
pelas esquinas da treva:
Copacabana acabou.


Poemas e Poesias quinta, 19 de novembro de 2020

VISTA IGNOTA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

VISTA IGNOTA

Quintino Cunha

 

Há um ruído infernal, dentro do leito

Do rio. A lontra rosna. A capivara

Espavorida esconde-se no estreito

De um paraná, que a enchente ali formara.

 

O jacaré, levando tudo de eito,

Foge, estrugindo horrivelmente; e, para

Mais aumentar o grande ruído feito,

O rio inteiro se convulsionara...

 

E, enquanto em medo tudo se alvorota,

Nesta paisagem visualmente ignota,

Mas facilmente do índio percebida,

 

Uma anta firme, calma que arrebata,

Corta o fundo das águas, distraída,

Como se fosse andando pela mata!...


Poemas e Poesias quarta, 18 de novembro de 2020

A DOUTOR DO AIVÃO (POEMA DE PATATIVA DO ASSARÉ) DECLAMAÇÃO


Poemas e Poesias terça, 17 de novembro de 2020

NOITE DE NÚPCIAS (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

NOITE DE NÚPCIAS

Padre Antônio Tomás

 

Noite de gozo, noite de delícias,
Aquela em que a noiva carinhosa,
Vai do seu noivo receber carícias
No leito sobre a colcha cor de rosa.

Sonha acordada coisa fictícias,
Volvendo-se sobre o leito voluptuosa,
E o anjo de amor e de carícias
Fecha a cortina tênue e vaporosa.

Ouvem-se beijos tímidos, ardentes,
Por baixo da cortina assim velada,
Em suspiros tristes e dolentes.

Se fitássemos a noiva agora exangue,
Vê-la-íamos bem triste e descorada
E o leito nupcial banhado em sangue.


Poemas e Poesias segunda, 16 de novembro de 2020

BALADAS ROMÂNTICAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

BALADAS ROMÂNTICAS

Olavo Bilac

 

I

 

Branca...

 

Vi-te pequena: ias rezando

Para a primeira comunhão:

Toda de branco, murmurando,

Na fronte o véu, rosas na mão.

Não ias só: grande era o bando...

Mas entre todas te escolhi:

Minh’alma foi te acompanhando,

A vez primeira em que te vi.

 

Tão branca e moça! o olhar tão brando!

Tão inocente o coração!

Toda de branco, fulgurando,

Mulher em flor! flor em botão!

Inda, ao lembrá-lo, a mágoa abrando,

Esqueço o mal que vem de ti,

E, o meu ranços estrangulando,

Bendigo o dia em que te vi!

Rosas na mão, brancas... E, quando

Te vi passar, branca visão,

Vi, com espanto, palpitando

Dentro de mim, esta paixão...

O coração pus ao teu mando...

E, porque escrevo me rendi,

Ando gemendo, aos gritos ando,

— Porque te amei! porque te vi!

 

Depois fugiste... E, inda te amando,

Nem te odiei, nem te esqueci:

— Toda de branco... Ias rezando...

Maldito o dia em que te vi!

 

II

 

Azul...

 

Lembra-te bem! Azul-celeste

Era essa alcova em que amei.

O último beijo que me deste

Foi nessa alcova que o tomei!

É o firmamento que a reveste

Toda de um cálido fulgor:

— Um firmamento, em que puseste

Como uma estrela, o teu amor.

 

Lembras-te? Um dia me disseste:

"Tudo acabou!" E eu exclamei:

"Se vais partir, por que vieste?"

E às tuas plantas me arrastei...

Beijei a fímbria à tua veste,

Gritei de espanto, uivei de dor:

"Quem há que te ame e te requeste

Com febre igual ao meu amor?"

 

Por todo o mal que me fizeste,

Por todo o pranto que chorei,

— Como uma casa em que entra a peste,

Fecha essa casa em que fui rei!

Que nada mais perdure e reste

Desse passado embriagador:

E cubra a sombra de um cipreste

A sepultura deste amor!

 

Desbote-a o inverno! o estio a creste!

Abale-a o vento com fragor!

— Desabe a igreja azul-celeste

Em que oficiava o meu amor!

 

III

 

Verde...

 

Como era verde este caminho!

Que calmo o céu! que verde o mar!

E, entre festões, de ninho em ninho,

A Primavera a gorjear!...

Inda me exalta, como um vinho,

Esta fatal recordação!

Secou a flor, ficou o espinho...

Como me pesa a solidão!

 

Órfão de amor e de carinho,

Órfão da luz do teu olhar,

— Verde também, verde-marinho,

Que eu nunca mais hei de olvidar!

Sob a camisa, alva de linho,

Ta palpitava o coração...

Ai! coração! peno e definho,

Longe de ti, na solidão!

 

Oh! tu, mais branca do que o arminho,

Mais pálida do que o luar!

— Da sepultura me avizinho,

Sempre que volto a este lugar...

E digo a cada passarinho:

"Não cantes mais! que essa canção

Vem me lembrar que estou sozinho,

No exílio desta solidão!"

 

No teu jardim, que desalinho!

Que falta faz a tua mão!

Como inda é verde este caminho...

Mas como o afeia a solidão!

 

IV

 

Negra...

 

Possas chorar, arrependida,

Vendo a saudade que aqui vai!

Vê que linda, negro, da ferida

Aos borbotões o sangue cai...

Que a nossa história, assim relida,

O nosso amor, lembrado assim,

Possam fazer-te, comovida,

Inda uma vez pensar em mim!

 

Minh’alma pobre e desvalida,

Órfã de mãe, órfã de pai,

Na escuridão vaga perdida,

De queda em queda e de ai em ai!

E ando a buscar-te. E a minha lida

Não tem descanso, não tem fim:

Quanto mais longe andas fugida,

Mais te vejo eu perto de mim!

 

Louco! e que lúgubre a descida

Para a loucura que me atrai!

— Terríveis páginas da vida,

Escuras páginas, — cantai!

Vim, ermitão, da minha ermida,

Morto, do meu sepulcro vim,

Erguer a lápida caída

Sobre a esperança que houve em mim!

 

Revivo a mágoa já vivida

E as velhas lágrimas... a fim

De que chorando, arrependida,

Possas lembrar-te inda de mim!


Poemas e Poesias domingo, 15 de novembro de 2020

GERMINAL I (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

GERMINAL I

Menotti Del Picchia

 

Nuvens voam pelo ar como bandos de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro apruma-se a bandeira
de S. João desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.

Vem na tarde que expira e na voz de um curiango
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.

Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.

No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e num magote escuro a manada se abisma
na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.


Poemas e Poesias sábado, 14 de novembro de 2020

DOMADORES (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

DOMADORES 

Medeiros e Albuquerqe

 

Há quem pasme dos fortes domadores.
Cujo esforço valente e decidido
faz que se curve, de pavor transido,
dorso de fera má, de olhos traidores. 

E, contudo, dominam-se os furores
e impõe seu jugo o braço destemido
com qualquer ferro em brasa enrubescido
e artifícios banais e enganadores.

Outros há, todavia, mais valentes,
que a populaça rude não conhece:
são os que domam, vultos imponentes,

esta fera: - a Palavra, que carece
para acalmar seus ímpetos insanos
- seiva e sangue de cérebros humanos.


Poemas e Poesias sexta, 13 de novembro de 2020

DAS UTOPIAS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DAS UTOPIAS

Mário Quintana

 

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.

Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!


Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...


Poemas e Poesias quinta, 12 de novembro de 2020

EMBORA EU GOSTE (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS, NA VOZ DE SOCORRO LIRA)

EMBORA EU GOSTE

Maria Firmina dos Reis 

 

Interpretação musical de Socorro Lira

 

 


Poemas e Poesias quarta, 11 de novembro de 2020

BELO BELO - I (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BELO BELO - I

Manuel Bandeira

 

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


Poemas e Poesias terça, 10 de novembro de 2020

EXPERIMENTANDO A MANHÃ DOS GALOS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

EXPERIMENTANDO A MANHÃ DOS GALOS

Manoel de Barros

... poesias, a poesia é

- é como a boca
dos ventos
na harpa

nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite

raíz entrando
em orvalhos...

os silêncios sem poro

floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca

cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém

o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros

- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...


Poemas e Poesias segunda, 09 de novembro de 2020

SONETO DE NATAL (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SONETO DE NATAL

Machado de Assis

 

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"


Poemas e Poesias domingo, 08 de novembro de 2020

DESILUSÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

DESILUSÃO

Luís Turiba

 

Quando tirou a roupa
Caiu tudo

Poemas e Poesias sábado, 07 de novembro de 2020

A CABREIRA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

A CABREIRA

Júlio Dinis

 

Andava a pobre cabreira

O seu rebanho a guardar

Desde que rompia o dia

Até a noite fechar.

De pequenina nos montes

Não tivera outro brincar.

Nas canseiras do trabalho

Seus dias vira passar.

Sentada no alto da serra
Pôs-se a cabreira a chorar.
Porque chorava a cabreira
Ides agora escutar:

«Ai! que triste a sina minha,

Ai! que triste o meu penar,

Que não sei d e pai nem mãe

Nem de irmãos a quem amar,

«De pequenina nos montes

Nunca tive outro brincar.

Nas canseiras do trabalho

Meus dias vejo passar.»

Mas, ao desviar seus olhos

Viu coisa que a fez pasmar:

Uma cabra toda branca
Se lhe fora aos pés deitar

Branca toda, como a neve,

Que nem se deixa fitar,

Coberta de finas sedas
Que era coisa singular!

Nunca a tinha visto antes
No seu rebanho a pastar,
E foi a fazer-lhe festa…
E foi para a afagar…

Eis vai a cabra fugindo

Pelos vales sem parar ;

Ia a cabreira atrás dela
Mas não a pôde alcançar.

E andaram assim três dias
E três noites, sempre a andar!
Até que às portas de uns paços
Afinal foram parar.

Chorava o’ rei e a rainha

Há dez anos, sem cessar,

Que lhe roubaram a filha

Numa noite de luar.

E dez anos são passados
Sem mais dela ouvir falar;
Eis chega a cabreira à porta
À porta se foi sentar.

«Ai que bonita cabreira
Que lá em baixo vejo estar!
E uma cabra toda branca
Que nem se deixa fitar.

«Meus criados e escudeiros,

Ide a cabreira buscar.»
Isto dizia a rainha,
Este foi o seu mandar.

Foram buscar a cabreira
E a cabra de a acompanhar
Até às salas do paço
Onde o rei a viu chegar.

«Pela minha c’roa de ouro

Eu quero agora apostar,

Que é esta a filha roubada

Numa noite de luar.»

Milagre! quem tal diria!

Quem tal pudera contar!

A cabrinha toda branca

Ali se pôs a falar:

«Esta é a filha roubada
Numa noite de luar,
Andou dez anos no monte
Quem nasceu para reinar!»

Que alegrias vão nos paços!

E que festas sem cessar!
A filha há tanto perdida
No trono os pais vão sentar.

E vêm damas pra vesti-la
E vêm damas pra calçar;
E as mais prendadas de todas
Para as trancas lhe enfeitar.

Vão procurar a cabrinha…

Ninguém a pôde encontrar;

Mas um anjo de asas brancas

Viram aos Céus a voar.


Poemas e Poesias sexta, 06 de novembro de 2020

CONVERSA DE CANOEIRO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

CONVERSA DE CANOEIRO

José Sarney

 

- Nestes mares, Mestre João?
- Sim, cá e code.
- Por amor de quê?
- Para sofrer menos.
- Sofrer de menos ou sofrer de mais?
- Tanto faz.
- Andando que rumos donde?
- Caminhos do Norte.
- Do Norte ou da morte?
- Tanto faz.
- Norte de que?
- Das águas, compadre.
- Das águas de mais ou das águas de menos?
- Tanto faz.
- Águas ou éguas?
- Tanto faz.
- Êta Maranhão grande aberto sem porteira ...


Poemas e Poesias quinta, 05 de novembro de 2020

INVERNO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

 

INVERNO

Jorge de Lima

Zefa, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar, tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno
Covas bem fundas
pra enterrar cana:
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa...
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha dágua,
café, cigarro,
cachaça, Zefa...
...rede gemendo...
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!


Poemas e Poesias quarta, 04 de novembro de 2020

IMITAÇÃO DAS ÁGUAS (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

IMITAÇÃO DAS ÁGUAS

João Cabral de Melo Neto

 

De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.

Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.

Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.

Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista

e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.

Uma onda que guardasse
na pária cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,

e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas

mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.


Poemas e Poesias terça, 03 de novembro de 2020

AMOR... E MORTE (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

AMOR... E MORTE

J.G. de Araújo Jorge

 

O amor
é como a morte
ato banal de todo dia...

Emoção forte
de tristeza ou de alegria,
ele sempre nos surpreende, e a ele nunca nos acostumamos
talvez...

O amor é como a morte:
quando amamos
é sempre a primeira vez.

 


Poemas e Poesias segunda, 02 de novembro de 2020

2 - DO DESEJO - VERT-TE. TOCAR-TE. QUE FULGOR DE MÁSCARAS. (POEMA DE PAULISTA HILDA HILST)

II - VERT-TE. TOCAR-TE. QUE FULGOR DE MÁSCARAS.

Hilda Hilst

 

II
Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.


Poemas e Poesias domingo, 01 de novembro de 2020

A MINHA FILHA (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

A MINHA FILHA

Guerra Junqueiro

 

 

Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d'alvorada
Dentro dum botão de rosa!

E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila,
Da estrela a sair da flor!

Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve...

E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar— de mãos postas!
De te abençoar — ajoelhado!


Poemas e Poesias sábado, 31 de outubro de 2020

AMOR O QUIS ASSIM (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

AMOR O QUIS ASSIM

Gil Vicente

 

 

 

Agravos de Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.

Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.

Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.

Não sei se sei o que digo,
que cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo.
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.

Já não ouso de cuidar,
nem posso estar sem cuidado;
mato-me por me matar,

onde estou não posso estar
sem estar desesperado.
Parece-me quanto vejo
Tudo triste com rezão:
cousas que não vem nem vão
essas são as que desejo,
e tôdas pena me dão.

Eu remédio não no espero,
porque aquela, em que me fundo,
pera mi, que tanto a quero,
tem o coração de Nero
pera me tirar do mundo.


Poemas e Poesias sexta, 30 de outubro de 2020

A TUA VOZ NA PRIMAVERA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A TUA VOZ NA PRIMAVERA

Florbela Espanca

 

Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!


Poemas e Poesias quinta, 29 de outubro de 2020

UMA VOZ (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

UMA VOZ

Ferreira Gullar

 

 

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando
 

Poemas e Poesias quarta, 28 de outubro de 2020

CANÇÃO TRISTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CANÇÃO TRISTE

Fernando Pessoa

 

Sol, que dá nas ruas, não dá

        No meu carinho.

A felicidade quando virá?

        Por que caminho?

 

Horas e horas por fim são meses

        De ansiado bem.

Eu penso em ti indecisas vezes,

        E tu ninguém!

Não tenho barco para a outra margem,

        Nem sei do rio

Ah! E envelheceu já tua imagem

        E eu sinto frio.

 

Não me resigno, não me decido,

        Choro querer...

Sempre eu! Ó sorte, dá-me o olvido

        De pertencer!

 

Enterrei hoje outra vez meu sonho

        Amanhã virá

Tornar-me triste por ser risonho,

        E não ser já.


Poemas e Poesias terça, 27 de outubro de 2020

DÉCIMA ELEGIA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

DÉCIMA ELEGIA

Fabrício Carpinejar

 

Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.

O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.

Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

Só na velhice o pó atravessa a parede da brasa,
o riso atravessa o osso.
Deciframos a descendência do vinho.

Os segredos não são contados
porque ninguém quer ouvi-los.
O lume raso do aposento é apanhado pela ave
a pousar o bule das penas na estante do mar.

Só na velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco.
O suspiro é mais audível que o clamor.

Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.

Só na velhice os músculos são armas engatilhadas.
O nome passa a me carregar.

É penoso subir os andares da voz,
nos abrigamos no térreo de um assobio.
Pedimos desculpa às cadeiras e licença ao pão.

O ódio esquece sua vingança.
Amamos o que não temos.

Só na velhice digo bom-dia e recebo
a resposta de noite.
Convém dispor da cautela e se despedir aos poucos.

Só na velhice quantos sofrem à toa
para narrar em detalhes seu sofrimento.

O pesadelo impõe dois turnos de trabalho.
Investigo-me a ponto de ser meu inimigo.

Sustentamos o atrito com o céu, plagiando
com as pálpebras o voo anzolado, céreo, das borboletas.

Só na velhice há o receio em folhear edições raras
e rasgar uma página gasta do manuseio.
Embalo a espuma como um neto.

Confundimos a ordem do sinal da cruz.
O luto não é trégua e descanso, mas a pior luta.

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.

O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.


Poemas e Poesias segunda, 26 de outubro de 2020

A CRUZ DA ESTRADA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

A CRUZ DA ESTRADA

Euclides da Cunha

 

A meu amigo E. Jary Monteiro
 

 

Se vagares um dia nos sertões,
Como hei vagado – pálido, dolente,
Em procura de Deus – da fé ardente

 


 
Em meio das soidões…
Se fores, como eu fui, lá onde a flor
Tem do perfume a alma inebriante,
Lá onde brilha mais que o diamante
A lágrima da dor…
Se sondares da selva e entranha fria
Aonde dos cipós na relva extensa
Noss’alma embala a crença.
Se nos sertões vagares algum dia…
Companheiro! Hás de vê-la.
Hás de sentir a dor que ela derrama
Tendo um mistério, aos pés, de um negro drama,
Tendo na fronte o raio de uma estrela!…
Que vezes a encontrei!… Medrando calma
A Deus, entre os espaços
No desgraçado, ali tombado, a alma
Que tirita, quem sabe?, entre os seus braços.
Se a onça vê, lhe oculta a asp'ra, ferrenha
Garra, estremece, para, fita-a, roja-se,
Recua trêmula, e fascinada arroja-se,
Entre as sombras da brenha!…
E a noite, a treva, quando aos céus ascende
E acorda lá a luz,
Sobre os seus braços frios, frios, nus,
– Tecido de astros em brial estende…
Nos gélidos lugares
Em que ela se ergue, nunca o raio estala,
Nem pragueja o tufão… Hás de encontrá-la
Se acaso um dia nos sertões vagares…


Poemas e Poesias domingo, 25 de outubro de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 06 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

TROVA HUMORÍSTICA - 06

Eno Teodoro Wanke

 

Barulho na copa. A moça

Com modos nada serenos:

– Que foi, Maria? Mais louça?
– Qual o quê, patroa! Menos!

 


Poemas e Poesias sábado, 24 de outubro de 2020

AS HORAS (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

AS HORAS

Da Costa e Silva

 

As Horas cismam no ar parado:
— Passado.

As Horas bailam no ar fremente:
— Presente.

As Horas sonham no ar obscuro:
— Futuro.


Publicado no livro Verônica (1927). Poema integrante da série Imagens da Vida e do Sonho.


Poemas e Poesias sexta, 23 de outubro de 2020

CAMPONESA, CAMPONESA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CAMPONESA, CAMPONESA

Cruz e Sousa

 

Camponesa, camponesa,
Ah! quem contigo vivesse
Dia e noite e amanhecesse
Ao sol da tua beleza.

Quem livre, na natureza,
Pelos campos se perdesse
E apenas em ti só cresse
E em nada mais, camponesa.

Quem contigo andasse à toa
Nas margens duma lagoa,
Por vergéis e por desertos,

Beijando-te o corpo airoso,
Tão fresco e tão perfumoso,
Cheirando a figos abertos.


Poemas e Poesias quinta, 22 de outubro de 2020

MÃE (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MÃE

Cora Coralina

 

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.


Poemas e Poesias quarta, 21 de outubro de 2020

SONETO XIII (SONETOS) NISE, NISE, ONDE ESTÁS, AONDE ESPERA (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

XIII (SONETOS) [NISE? NISE? ONDE ESTÁS? AONDE ESPERA

Cláudio Manuel da Costa


Nise? Nise? onde estás? Aonde espera
Achar-te uma alma, que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar-te desespera!

Ah se ao menos teu nome ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.

Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai-me a sua formosura.

Nem ao menos o eco me responde!
Ah como é certa a minha desventura!
Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?

 


Poemas e Poesias terça, 20 de outubro de 2020

NÃO TE AMO MAIS (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

 

NÃO TE AMO MAIS

Clarice Lispector

Não te amo mais.

Estarei mentindo dizendo que

Ainda te quero como sempre quis.

Tenho certeza que

Nada foi em vão.

Sinto dentro de mim que

Você não significa nada.

Não poderia dizer jamais que

Alimento um grande amor.

Sinto cada vez mais que

Já te esqueci!

E jamais usarei a frase

EU TE AMO!

Sinto, mas tenho que dizer a verdade

É tarde demais...

 


Poemas e Poesias segunda, 19 de outubro de 2020

ESTE É O LENÇO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

ESTE É O LENÇO

Cecília Meireles

 

Este é o lenço de Marília,
pelas suas mãos lavrado,
nem a ouro nem a prata,
somente a ponto cruzado.
Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Em cada ponta, um raminho,
preso num laço encarnado;
no meio, um cesto de flores,
por dois pombos transportado.
Não flores de amor-perfeito,
mas de malogrado!

Este é o lenço de Marília:
bem vereis que está manchado:
será do tempo perdido?
será do tempo passado?
Pela ferrugem das horas?
ou por molhado
em águas de algum arroio
singularmente salgado?

Finos azuis e vermelhos
do largo lenço quadrado,
- quem pintou nuvens tão negras
neste pano delicado,
sem dó de flores e de asas
nem do seu recado?

Este é o lenço de Marília,
por vento de amor mandado.
Para viver de suspiros
foi pela sorte fadado:
breves suspiros de amante,
- longos, de degredado!

Este é o lenço de Marília
nele vereis retratado
o destino dos amores
por um lenço atravessado:
que o lenço para os adeuses
e o pranto foi inventado.

Olhai os ramos de flores
de cada lado!
E os tristes pombos, no meio,
com o seu cestinho parado
sobre o tempo, sobre as nuvens
do mau fado!

Onde está Marília, a bela?
E Dirceu, com a lira e o gado?
As altas montanhas duras,
letra a letra, têm contado
sua história aos ternos rios,
que em ouro a têm soletrado...

E as fontes de longe miram
as janelas do sobrado.

Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Eis o que resta dos sonhos:
um lenço deixado.

Pombos e flores, presentes.
Mas o resto, arrebatado.

Caiu a folha das árvores,
muita chuva tem gastado
pedras onde houvera lágrimas.
Tudo está mudado.

Este é o lenço de Marília
como foi bordado.
Só nuvens, só muitas nuvens
vêm pousando, têm pousado
entre os desenhos tão finos
de azul e encarnado.
Conta já século e meio
de guardado.

Que amores como este lenço
têm durado,
se este mesmo está durando?
mais que o amor representado?


Poemas e Poesias domingo, 18 de outubro de 2020

UM RAIO DE LUAR (30ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DE CASTRO ALVES)

 

UM RAIO DE LUAR

Castro Alves

(Do poema a Cachoeira de Paulo Afonso)

ALTA NOITE ele ergueu-se. Hirto, solene.
Pegou na mão da moça. Olhou-a fito...
Que fundo olhar!
Ela estava gelada, como a garça
Que a tormenta ensopou longe do ninho,
No largo mar.

Tomou-a no regaço... assim no manto
Apanha a mãe a criancinha loura,
Tenra a dormir.
Apartou-lhe os cabelos sobre a testa...
Pálida e fria... Era talvez a morte...
Mas a sorrir.

Pendeu-lhe sobre os lábios. Como treme
No sono asa de pombo, assim tremia-lhe
O ressonar.
E como o beija-flor dentro do ovo,
Ia-lhe o coração no níveo seio
A titilar.

Morta não era! Enquanto um rir convulso
Contraíra as feições do homem silente
— Riso fatal.
Dir-se-ia que antes a quisera rija,
Inteiriçada pela mão da noite
Hirta, glacial!

Um momento de bruços sobre o abismo,
Ele, embalando-a, sobre o rio negro
Mais sinclinou...
Nesse instante o luar bateu-lhe em cheio,
E um riso à flor dos lábios da criança
À flux boiou!

Qual o murzelo do penhasco à borda
Empina-se e cravando as ferraduras
Morde o escarcéu;
Um calafrio percorreu-lhe os músculos...
O vulto recuou!... A noite em meio
Ia no céu!


Poemas e Poesias sábado, 17 de outubro de 2020

SONHOS DE VIRGEM (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

SONHOS DE VIRGEM

Casimiro de Abreu

 

A M.***

I
Que sonhas, virgem, nos sonhos
Que à mente te vem risonhos
Na primavera inda em flor?
No celeste devaneio,
No doce bater do seio,
Que sonhas virgem? - amor?

Que céus, que jardins, que flores,
Que longos cantos de amores
Nos lindos sonhos te vem?
E quando a mente delira,
E quando o peito suspira,
Suspira o peito - por quem?

Sonhando mesmo acordada,
Pendida a fronte adorada
Num cismar vago e sem fim;
Do olhar o fogo tão vivo,
A voz, o riso lascivo,
O pensamento é - por mim?!

II
Quando tu dormes tranqüila,
Cerrada a negra pupila
E o lábio doce a sorrir;
Então o sonho dourado
Nas dobras do cortinado
Vem esmaltar teu dormir!

Oh! sonha! - Feliz a idade
Das rosas da virgindade,
Dos sonhos do coração!
- Puro vergel de açucenas
Ou lago d'águas serenas
Que estremece à viração!

Feliz! Feliz quem pudera
Colher-te na primavera
De galas rica e louçã!
Feliz oh! flor dos amores,
Quem te beber os odores
Nos orvalhos da manhã!


Poemas e Poesias sexta, 16 de outubro de 2020

MARINHA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

MARINHA

Carlos Pena Filho

 

Tu nasceste no mundo do sargaço
da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
dormem peixes de prata em teu regaço.

Descobri tua origem, teu espaço,
pelas canções marinhas que semeias.
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso teu olhar é triste e baço.

Mas teu segredo é meu, ó, não me digas
onde é tua pousada, onde é teu porto,
e onde moram sereias tão amigas.

Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
pois não entenderá essas cantigas
que trouxeste do fundo do mar morto


Poemas e Poesias quarta, 14 de outubro de 2020

AINDA QUE MAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AINDA QUE MAL

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

 


Poemas e Poesias terça, 13 de outubro de 2020

SONETO 071 - COMO FIZESTE, PÓRCIA, TAL FERIDA? (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

COMO FIZESTE, PÓRCIA, TAL FERIDA?

Soneto 071

Luís de Camões

 

(Grafia original)

 

Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
-Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

-E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
-Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

-Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?-Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
-Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.


Poemas e Poesias segunda, 12 de outubro de 2020

SONETO DRAMÁTICO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DRAMÁTICO

Bocage

 

Na cena em quadra trágico-invernosa

Zaida se impingiu (fradesco drama!)

Apareceu depois, com sede à fama,

Tragédia mais igual, mais lastimosa:

 

O autor pranteia em frase aparatosa

Esfaqueado arrais, pimpão d'Alfama;

Corno o protagonista, e puta a dama,

O machão é Simeão, e a mula é Rosa:

 

Espicha o rabo (eu tremo ao proferi-lo)

Espicha o rabo ali o herói na rua,

Qual Muratão nos areais do Nilo!

 

Elmiro na tarefa contínua,

Já todos pela escolha, e pelo estilo

Rosnam que a nova peça é obra sua.


Poemas e Poesias domingo, 11 de outubro de 2020

CONSELHOS A MEUS FILHOS - 2 (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

CONSELHOS A MEUS FILHOS - 2 

Bárbara Heliodora

 

 

VII.

Se é tempo de professar
De taful o quarto voto,
Procurai capote roto,
Pé de banco de um bilhar,
Que seja sábio piloto
Nas regras de calcular.

VIII.

Se vos mandarem chamar
Para ver uma função,
Respondei sempre que não,
Que tendes em que cuidar;
Assim se entende o rifão:
Quem está bem deixa-se estar.

IX.

Deveis-vos acautelar,
Em jogos de paro e topo
Prontos em passar o copo
Nas angolinhas do azar;
Tais as fábulas de Esopo,
Que vós deveis estudar.

X.

Quem fala, escreve no ar,
Sem pôr vírgulas nos pontos,
E pode quem conta os contos,
Mil pontos acrescentar:
Fica um rebanho de tontos
Sem nenhum adivinhar.

XI.

Com Deus e o rei não brincar,
É servir e obedecer,
Amar por muito temer,
Mas temer por muito amar,
Santo temor de ofender
A quem se deve adorar!

XII.

Até aqui pode bastar,
Mais havia o que dizer;
Mas eu tenho que fazer,
Não me posso demorar
E quem sabe discorrer,
Pode o resto adivinhar.


Poemas e Poesias sábado, 10 de outubro de 2020

DECADÊNCIA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

DECADÊNCIA 

Augusto dos Anjos

 

 

Iguais ás linhas perpendiculares
Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!

A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!

Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,

Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o ultimo dente
E a armação funerária das clavículas!


Poemas e Poesias sexta, 09 de outubro de 2020

A DÉLIA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

A DÉLIA

Almeida Garrett

 

 

Cuidas tu que a rosa chora,
Que é tamanha a sua dor,
Quando, já passada a aurora,
O Sol, ardente de amor,
Com seus beijos a devora?
- Feche virgíneo pudor
O que inda é botão agora
E amanhã há-de ser flor;
Mas ela é rosa nesta hora,
Rosa no aroma e na cor.

- Para amanhã o prazer
Deixe o que amanhã viver.
Hoje, Délia, é nossa a vida;
Amanhã... o que há-de ser?
A hora de amor perdida
Quem sabe se há-de volver?
Não desperdices, querida,
A duvidar e a sofrer
O que é mal gasto da vida
Quando o não gasta o prazer.


Poemas e Poesias quinta, 08 de outubro de 2020

OROPA, FRANÇA E BAHIA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

 

OROPA, FRANÇA E BAHIA

Ascenso Ferreira

OROPA, FRANÇA E BAHIA

       

 

      (Romance)

 
                Para os 3 Manuéis:
                    Manuel Bandeira
                    Manuel de Sousa Barros
                    Manuel Gomes Maranhão
  

Num sobrado arruinado,
tristonho, mal assombrado,
que dava pros fundos da terra.
("Pra ver marujos,
Tirulilluliu!
quando vão pra guerra...")
E dava fundos pro mar.
("Pra ver marujos,
Tiruliluliu!
ao desembarcar").
 
          ...Morava Manuel Furtado
          português apatacado,
          com Maria de Alencar!
 
Maria era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar...
 
         A vida de Manuel,
         que louco alguém o dizia,
         era vigiar das janelas
         toda a noite e todo o dia,
         as naus que ao longe passavam,
         de "Oropa, França e Bahia"!
 
— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota, Maria.
Essas naus foram vintena
que eu herdei de minha tia!
por todo o ouro do mundo
eu jamais as trocaria!
 
          Dou-te tudo o que quiseres:
          Dou-te xale de Tonquim!
          Dou-te uma saia bordada!
          Dou-te leques de marfim!
          Queijos da Serra da Estrela,
          perfumes de benjoim...
 
Nada.
A mulata só queria
que Seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a amais pichititinha,
pra ela ir ver essas terras
de "Oropa, França e Bahia"...
 
           — Ó Maria, hoje nós temos
          vinhos da Quinta do Aguirre,
          umas queijadas de Sintra,
          só pra tu te distraíre
          desse pensamento ruim...
          — Seu Manuel, isso é besteira!
          Eu prefiro macaxeira
          com galinha de oxinxim!
 
"Ó lua que alumiais
esse mundo do meu Deus
alumia a mim também
que ando fora dos meus..."
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.
 
             "Eu sou mulata dengosa,
             linda, faceira, mimosa,
             qual outras brancas não são"...
             Cantava forte Maria,
             pisando fubá de milho,
             lentamente no pilão...
 
Uma noite de luar
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul...
— Ah, Seu Manuel, isto chega...
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.
 
            — "Onde vais mulhé?"
            — "Vou me daná no carrossé!
            — "Tu não vais, mulhé,
            mulhé, você não vai lá..."
 
Maria atirou-se n'água,
Seu Manuel seguiu atrás...
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido de minha tia!
Vêm dos confins do mundo...
De "Oropa, França e Bahia"!
 
             Nadavam de mar em fora...
             (Manuel atrás de Maria!)
             Passou-se uma hora, outra hora,
             e as naus nenhum atingia...
             Fez-se um silêncio nas águas,
             cadê Manuel e Maria?!
 
De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia...
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!
 
           E as naus de Manuel Furtado,
           herança de sua tia?
 
— Continuam mar em fora,
navegando noite e dia...
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!
 
          — As eternas Naus do Sonho,
          de "Oropa, França e Bahia"...

 


Poemas e Poesias terça, 06 de outubro de 2020

AVE, MUSA INCANDESCENTE (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

AVE, MUSA INCANDESCENTE

Ariano Suassuna

 

 

Ave, Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!

Nobres Damas e Senhores
ouçam meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!


Poemas e Poesias segunda, 05 de outubro de 2020

CISMAR (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CISMAR

Álvares de Azevedo

 

Fala-me, anjo de luz! és glorioso
À minha vista na janela à noite,
Como divino alado mensageiro
Ao ebrioso olhar dos froixos olhos
Do homem que se ajoelha para vê-lo,
Quando resvala em preguiçosas nuvens
Ou navega no seio do ar da noite.
Romeu

Ai! Quando de noite, sozinha à janela,
Co’a face na mão te vejo ao luar,
Por que, suspirando, tu sonhas donzela?
A noite vai bela,
E a vista desmaia
Ao longe na praia
Do mar!

Por quem essa lágrima orvalha-te os dedos,
Como água da chuva cheiroso jasmim?
Na cisma que anjinho te conta segredos?
Que pálidos medos?
Suave morena,
Acaso tens pena
De mim?

Donzela sombria, na brisa não sentes
A dor que um suspiro em meus lábios tremeu?
E a noite, que inspira no seio dos entes
Os sonhos ardentes,
Não diz-te que a voz
Que fala-te a sós
Sou eu?

Acorda! Não durmas da cisma no véu!
Amemos, vivamos, que amor é sonhar!
Um beijo, donzela! Não ouves? No céu
A brisa gemeu...
As vagas murmuram...
As folhas sussurram:
Amar!


Poemas e Poesias domingo, 04 de outubro de 2020

A SAUDADE (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

A SAUDADE

Alvarenta Peixoto

(Grafia original)

 

Não me afflige do potro a viva quina;
Da ferrea maça o golpe não me offende;
Sobre as chammas a mão se não estende;
Não soffro do agulhete a ponta fina.

Grilhão pesado os passos não domina;
Curel arroxo a teste me não fende;
À força a perna ou braço se não rende;
Longa cadêa o collo não me inclina.

Água e pomo faminto não procuro;
Grossa pedra não cansa a humanidade;
O pássaro voraz eu não aturo.

Estes males não sinto; é bem verdade;
Porém sinto outro mal inda mais duro:
— Sinto da esposa e filhos a saudade!


Poemas e Poesias sábado, 03 de outubro de 2020

HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS

Alphonsus Guimaraens

 

 

 

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.


As estrelas dirão: – “Ai! nada somos,
Pois ela se morreu, silente e fria… ”
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.


A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.


Os meus sonhos de amor serão defuntos…
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: – “Por que não vieram juntos?


Poemas e Poesias sexta, 02 de outubro de 2020

A JANELA E O SOL (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

 A JANELA E O SOL

Alberto de Oliveira

 

“Deixa-me entrar, - dizia o sol - suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”

E, fechando-se mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: “Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abrir-me!

E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!”


Poemas e Poesias quinta, 01 de outubro de 2020

AMOR E MEDO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

AMOR E MEDO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.


Poemas e Poesias quarta, 30 de setembro de 2020

CONFEITO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

CONFEITO

Adélia Prado

 

Quero comer bolo de noiva, 

puro açúcar, puro amor carnal 

disfarçado de corações e sininhos: 

um branco, outro cor-de-rosa, 

um branco, outro cor-de-rosa.


Poemas e Poesias terça, 29 de setembro de 2020

CEMITÉRIO ADALGISA (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

CEMITÉRIO ADALGISA

Adalgisa Nery

 

Moram em mim
Fundos de mares, estrelas-d'alva,
Ilhas, esqueletos de animais,
Nuvens que não couberam no céu,
Razões mortas, perdões, condenações,
Gestos de amparo incompleto,
O desejo do meu sexo
E a vontade de atingir a perfeição.
Adolescências cortadas, velhices demoradas,
Os braços de Abel e as pernas de Caim.
Sinto que não moro.
Sou morada pelas coisas como a terra das
                                        [ sepulturas
É habitada pelos corpos.
Moram em mim
Gerações, alegrias em embrião,
Vagos pensamentos de perdão.
Como na terra das sepulturas
Mora em mim o fruto podre,
Que a semente fecunda repetindo a vida
No sereno ritmo da Origem.
Vida e morte,
Terra e céu,
Podridão, germinação,
Destruição e criação.


Poemas e Poesias segunda, 28 de setembro de 2020

A ESPANTOSA ODE A SÃO FRANCISCO DE ASSIS (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A ESPANTOSA ODE A SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Vinícius de Moraes

 

1

Meu são Francisco de Assis, Francisco de Assim, poverello, ou como te chame a sabedoria dos povos e dos homens 
Este é Vinicius de Moraes, de quem se podia dizer - o poeta - se jamais alguém o pudesse ser depois de ti. 


2

Este é o impuro, o inconstante, o trágico, o leproso e possivelmente o morto 
Que vem a ti o fiel, o calmo, o humano, o constante. 


3

Este é o que sacrifica a vida pelo prazer da hora, e se desgraça 
Que vem a ti que sacrificaste a vida pela eternidade e pela graça. 


4

Este é o homem da mulher, o homem da carne, o homem da terra 
E que te ama santo da Mulher, santo da Carne, santo da Terra. 


5

Este é o que peca e não se arrepende, o supliciador e o criador do espasmo 
E que te exalta irmão humilde e louco, confidente, e inventor do êxtase. 


6

Este é o mágico do desespero, o inquisidor e o sedutor, o poeta triste 
Que te proclama o rei, entre todos, amante sem mácula. 


7

Meu são Francisco de Assis! acolhe teu amigo e teu criado 
Que partiu para sempre e se perdeu, e nunca mais foi encontrado. 


8

Tenho um mistério a te dizer, mas quem sabe não o ouvirias 
Vendo-me criança - se é que eu fui criança um dia! 


9

Ó dá-me teu sorriso, são Francisco, e me purifica 
E liberta-me da vã palavra de sonho que me impurifica! 


10

Eis que converti meu demônio a mim e meu anjo a mim 
E me sinto demais em mim mesmo e quisera me despedaçar em ti. 


11

Porque me sinto covarde de não poder dormir e precisar fechar a porta 
Ao vento frio ou ao chamado sombrio da pureza morta. 


12

És tu um dom da minha miséria e serias o mesmo 
Se eu fosse como tu mesmo? - e te proclamaria? 


13

E [...] porque amo a miséria em mim que me deposita em ti 
Porque não fosse eu sombra não serias sol nem pensarias em mim. 


14

E [ ... ] porque aceito minha depravação e faço a minha queixa sem piedade 
E de todos tenho piedade menos de mim - e não há salvação para minha piedade 


15

Sou digno como o animal nobre que morre em silêncio e sem lágrimas 
E não tem limbo ou purgatório, céu ou inferno para a sua alma. 


16

Mas sou impuro como a terra que recebe a consumação da carne 
E astuto como o fogo e plástico como a água. 


17

Meu são Francisco, ouve o meu voto e compreende o meu vazio 
E me aquece do frio, e me protege do sonho sombrio. 


18

Tu és a Palavra - a palavra inexistente - a poesia 
Que eu busco sem tréguas, que busco de noite e que busco de dia. 


19

Não creio em Deus mas creio em ti - Deus é minha melancolia 
Tu és minha poesia - ou quando não seja o amor que ela se deseja 


20

Tenho o lar e tenho o mar, e nada tenho 
Tenho a emoção - tenho-a? - nem pranto mais blues. 


21

Na verdade muitas coisas eu tenho, e muita razão de ser feliz 
Se não existisses talvez - mas exististe, São Francisco de Assis! 


22

És a infância não vivida, és a mocidade não merecida 
És tudo de justo feito injusto pela catástrofe da vida. 


23

Ninguém o sabe senão tu - nem mesmo eu sei! nesse momento 
Meu pensamento é tédio mas amanhã pode ser contentamento. 


24

Porque há em mim uma fonte pura de mal que me embriaga 
De bem, mas que subitamente me estanca o que me falta. 


25

É a mulher, essa que me suporta e que me acaricia 
E a quem acaricio, e a quem eu rio e que se ri. 


26

Não fosse ela, e eu estaria como Jó te mentindo, 
Porque o poeta é a semente da mentira se, no desespero, só. 


27

Dou-te meu voto além da mulher! é a criança que te fala 
Quando subitamente se conheceu menino no grande silêncio de uma sala. 


28

Quando brincando com o próprio sexo o surpreendeu sensível 
E o viu inteligente e emocionado e não compreendeu. 


29

E que criou sozinho a primeira forma nua para o prazer contemplativo E que se deu a ela desvairado do mistério de se saber vivo. 


30

E que a transportou na memória em amor e que foi traído 
Pelo toque de outra mão menos pura e mais desmerecida. 


31

E que foi seviciado antes do sêmen pela desventura 
Feito mulher, e a perdoou, e a amou, e a fez sua criatura. 


32

E que foi iniciado nos prazeres da carne como o inocente aprendiz 
A quem a mulher diz - Faz! e ele faz, tal como eu fiz. 


33

Antes do sêmen! e não morri - e bela fiz minha criatura    
Eis por que não há salvação e eu amo a minha degradação e impostura. 


34

Porque eu sou o sedutor, se seduzido, e o erótico, se seviciado 
E o amante, se querido, e o perdido, se privilegiado. 


35

Porque fazemos um - eu e a mulher - e não há dois arrependimentos 
Para um só corpo - nem duas salvações para um só sentimento. 


36

E se alguém não vem comigo eu não quero ir, porque não sou sozinho 
E se eu fosse sozinho não estava nesse momento clamando de ti 


37

Meu são Francisco de Assis! ouve tu ao menos a minha inefável miséria 
Sem perdão e sem consolação e sem fim nos caminhos da Terra. 


38

Ouve o apelo mais íntimo, o que não está nas minhas palavras 
E que está no meu ser infeliz e no ser infeliz que eu crio à minha passagem. 


39

O santo, o herói e o poeta - três penitências do mundo 
Tu, santo, herói e poeta - uma penitência em mim. 


40

Nunca te verei no céu, nem nunca me verás no inferno 
Mas hei de te escutar no estio, e tu me escutarás no inverno. 


41

Não me verás no céu porque não há paixão para a serenidade 
Nem no inferno porque não há castigo para a fatalidade. 


42

Mas eu te escutarei aqui na Terra, entre as grandes árvores 
A cabeça no seio da amiga, e a quem eu falo como ao pássaro. 


43

Um dia deixarei a cidade da minha angústia e sua torre 
E irei a Assis entre colinas me abandonar à tua saudade. 


44

E dá-me nesse dia de chorar todas as lágrimas contidas 
E de me perder em mim o pranto e de me ajoelhar no teu sepulcro. 


45

Ó grande santo louco, meu irmão, taumaturgo em minha alma 
Taumaturgo - palavra que contém silêncio e que me acalma! 


46

Just now I have been in a [ ... ] party in the Magdalen's cloister 
And there was an Armenian [ ... ] all the others. 


47

Good inocent peopte [ ... ] some liquor in their rooms 
But was a bloody phantom between them, so help me God! 


48

Eu sou o conhecimento perfeito das coisas e dos homens 
Linchai-me! eu sei todos os segredos, e eu me abandono. 


49

Nunca criatura criada foi tão pagã como eu, so help me God! 
Arrastando meu ser à execração e à contemplação quieta da morte. 


50

Em vão te direi - ou não? - porque não vens beber meu vinho 
Na minha mesa, e poderíamos falar com mais carinho. 


51

São Francisco de Assis! meu irmão, meu único inimigo 
No céu, eu te maldigo, eu te bendigo. Eu me persigno! 


52

Tive uma jetatura: a mulher; uma aventura: a poesia 
Uma desventura: a delicadeza. Sou delicado, não peço, mendigo! 


53

Mendigo: mendigo o pão de meus pais, o amor de meus amigos 
Mas só a mulher me persegue e só à mulher eu persigo. 


54

Santo! tenho gana de te dizer: foge de mim! evita o meu contato escuro 
Porque eu sou puro na maldade e puro na sinceridade e impuro. 


55

Quatro livros escrevi - e sou tão moço! e nada compreendo de mim 
Senão que sou cruel com a mulher, e que minha angústia não tem fim. 


56

Fui buscado, também. Buscou-me a sociedade, o anfitrião 
E eu fui mendigo em meu salão e me desprezei e disse não. 


57

E me mandaram a Oxford, e eu disse não, e vi jovens viscondes 
Que temeram meu pudor, e eu disse não, e me persigno! 


58

Tudo é magia! Lembras-te? o silêncio fantástico das noites 
E a alma bêbada de emoção? e nenhum pouso. 


59

Ah, que a vida não tem solução. Muitos o disseram em vão 
E o direi em vão, e morrerei, e os que me virem, sorrirão.


Poemas e Poesias domingo, 27 de setembro de 2020

CANTIGAS PRAIANAS (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

CANTIGAS PRAIANAS

Vicente de Carvalho

 

Ouves acaso quando entardece
Vago murmúrio que vem do mar,
Vago murmúrio que mais parece
Voz de uma prece
Morrendo no ar?

Beijando a areia, batendo as fráguas,
Choram as ondas; choram em vão:
O inútil choro das tristes águas
Enche de mágoas
A solidão...

Duvidas que haja clamor no mundo
Mais vão, mais triste que esse clamor?
Ouve que vozes de moribundo
Sobem do fundo
Do meu amor.


Poemas e Poesias sábado, 26 de setembro de 2020

CANTIGA PARA DJANIRA (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

CANTIGA PARA DJANIRA

Paulo Mendes Campos

 

O vento é o aprendiz das horas lentas,
traz suas invisíveis ferramentas,
suas lixas, seus pentes finos,
cinzela seus cabelos pequeninos,
onde não cabem gigantes contrafeitos,
e, sem emendar jamais os seus defeitos,
já rosna descontente e guaia
de aflição e dispara à outra praia,
onde talvez enfim possa assentar
seu momento de areia — e descansar.


Poemas e Poesias sexta, 25 de setembro de 2020

VAZANTE (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

VAZANTE

Quintino Cunha

 

O mês de julho mostra um tempo novo

Em tudo: à margem pousa alegre bando

De borboletas, cor de gema de ovo,

O declive das águas anunciando.

 

Da floresta central, de lá de ignotas

Matas, voltam, da imensa arribação,

Os maguaris, as garças e as gaivotas,

- A beleza das praias no verão!

 

E o uirapajé cantando, e a saracura

Cantando, em fim o plácido barulho

Das aves todas, dá-nos a envoltura

Dessas manhãs esplêndidas de julho.

 

A própria vida mais amor exalta,

Nesses dias magníficos, sem-par,

Quando mais se ouve o canto da pernalta,

No alegre anseio de nidificar.


Poemas e Poesias quinta, 24 de setembro de 2020

LUÍS DE CAMÕES, POEMA DE PATATIVA DO ASSARÉ - DECLAMAÇÃO DE LUCILENE SIMÕES


Poemas e Poesias quarta, 23 de setembro de 2020

INVICTUS (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

INVICTUS

Padre Antônio Tomás

 

Mensageiros do Arcanjo revoltoso,
Homens descridos — vão em fero bando
Há dezenove séculos tentando

Roubar-te, ó Cristo, o cetro glorioso.


Mas sempre forte e sempre poderoso,
Tu vais a todos eles suplantando,
E com o teu suave jugo, doce e brando,

Curva-se o mundo humilde e respeitoso.

Tens apesar da guerra a ti movida
Por essas almas fracas e pequenas,
A terra toda ao teu poder jungida.

E ainda hoje a um teu gesto apenas
Voltam de novo os Lázaros à vida
E vão beijar-te os pés as Madalenas.


Poemas e Poesias terça, 22 de setembro de 2020

EM UMA TARDE DE OUTONO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

EM UMA TARDE DE OUTONO

Olavo Bilac

 

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!

E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol...


Poemas e Poesias segunda, 21 de setembro de 2020

FASCINAÇÃO - 1 (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

FASCINAÇÃO - 1

Menotti Del Picchia 

 

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo
tudo ama! tudo ama!

Há amor na alucinada
fascinação do abismo,
amor paradoxal humano e forte
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.

Por isso quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço,
atenazando-o para estrangulá-lo!

É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos...
Nesse furor que o invade,
tem a volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento!

É por isso que sempre vês, por tudo,
uma luta de morte, um desespero mudo:
a insídia da raiz que mina a terra e esgota,
o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria dor ignota
no torturante amor do mais puro e mais alto!


Poemas e Poesias domingo, 20 de setembro de 2020

DEZESSETE DE NOVEMBRO (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

DEZESSETE DE NOVEMBRO

Medeiros e Albuquerque

 

(Por ocasião da partida de D. Pedro II)]

Pobre rei a morrer, da velha raça
dos Braganças perjuros e assassinos,
hoje que o sopro frio da desgraça
leva os teus dias, leva os teus destinos
do duro exílio para o longe abrigo,
hoje, tu que mataste Pedro Ivo,
Nunes Machado e tantos mais valentes,
hoje, a bordo da nau, onde, cativo,
segues, deixando o trono hoje tu sentes
que enfim soou a hora do castigo!

Pobre rei a morrer, - de Sul a Norte,
a valorosa espada de Caxias
com quanta dor e quanta nobre morte
da nossa história não encheu os dias,
de sangue as suas páginas banhando!
Digam-no dos Farrapos as legendas!
Digam-no os bravos de 48!
Falem ainda as almas estupendas
de 17 e 24, afoito
grupo de heróis, que sucumbiu lutando.

Alma podre de rei, que, não podendo
ganhar amigos pelo teu heroísmo,
as outras almas ias corrompendo
pela baixeza, pelo servilismo,
por tudo quanto a consciência abate,
- alma podre de rei, procura em volta
do teu ruído trono desabado
que amigo te ficou, onde a revolta
possa encontrar indômito soldado
que lhe venha por ti dar-nos combate.

De tanta infâmia e tanta covardia -
só covardia e infâmia, eis o que resta!
A matilha, a teu mando, que investia
contra nós, - nesta hora tão funesta,
volta-se contra teu poder passado!
Rei, não se ilude a consciência humana...
Quem traidores buscou - acha traidores!
Os vendidos da fé republicana,
os desertores de ontem - desertores,
hoje voltam do teu pra o nosso lado!

Vai! Que as ondas te levem mansamente...
Por esse mar, que vais singrar agora,
- arrancado a um cadáver ainda quente -
anos há que partiu, oceano a fora,
o coração do heróico Ratcliff.
A mesma vaga que, ao levá-lo, entoava
do livre mar eterno o livre canto,
como o não redirá, sublime e brava,
ao ver que passa no seu largo manto,
da monarquia o lutuoso esquife!


Poemas e Poesias sábado, 19 de setembro de 2020

DA OBSERVAÇÃO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA OBSERVAÇÃO

Mário Quintana

 

Não te irrites, por mais que te fizerem
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio.


Poemas e Poesias sexta, 18 de setembro de 2020

ELA (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

ELA

Maria Firmina dos Reis

 

(A pedido)

 

Ela! Quanto é bela, essa donzela,

A quem tenho rendido o coração!

A quem votei minh’alma, a quem meu peito

Num êxtase de amor vive sujeito…

Seu nome!… não ─ meus lábios não dirão!

Ela! minha estrela, viva e bela,

Que ameiga meu sofrer, minha aflição;

Que transmuda meu pranto em mago riso.

Que da terra me eleva ao paraíso…

Seu nome!… Oh! meus lábios não dirão!

Ela! virgem bela, tão singela

Como os anjos de Deus. Ela… oh! não,

Jamais o saberá na terra alguém,

De meus lábios, o nome que ela tem…

Que esse nome meus lábios não dirão.


Poemas e Poesias quinta, 17 de setembro de 2020

BALÕEZINHOS (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BALÕEZINHOS

Manuel Bandeira

 

Na feira do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.

No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas pobres,
E as criadas das burguesinhas ricas,
E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.

Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças
O tostão é regateado com acrimônia.

Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.

Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor
são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.

O vendedor infatigável apregoa:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem
um círculo inamovível de desejo e espanto.


Poemas e Poesias quarta, 16 de setembro de 2020

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ

Manoel de Barros

 

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.


Poemas e Poesias terça, 15 de setembro de 2020

RUÍNAS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

RUÍNAS

Machado de Assis

 

 

Cobrem plantas sem flor crestados muros;
Range a porta anciã; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
                              Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
          Pendem-lhe as tranças soltas
          Por sobre as roxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos;
— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,
Íntima e funda; — e dos cerrados cílios
                     Se uma discreta muda
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
                     Nos serros do poente,
                     As rosas do crepúsculo.
“Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
— Raio quebrado e frio; — o vento agita
Tímido e frouxo as tuas longas tranças.
Conhecem-te estas pedras; das ruínas
Alma errante pareces condenada
A contemplar teus insepultos ossos.
Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo
Sinto não sei que vaga e amortecida
                     Lembrança de teu rosto.”

                     Desceu de todo a noite,
Pelo espaço arrastando o manto escuro
Que a loura Vésper nos seus ombros castos,
Como um diamante, prende. Longas horas
Silenciosas correram. No outro dia,
Quando as vermelhas rosas do oriente
Ao já próximo sol a estrada ornavam
Das ruínas saíam lentamente
                     Duas pálidas sombras:
                     O poeta e a saudade.

 

Poemas e Poesias segunda, 14 de setembro de 2020

DESESTRESSEIO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

DESESTRESSEIO

Luís Turiba

 

Stress é um aperreio
Nasce nos pés
Vem sem freio
Cresce no bigo
Corre nos veio
Inté chegar
No último fio
Dos penteio

Para domá-lo
Pare! Pense!
Puxe os arreio
Vá ao esvazeio!

Seio ou não seio?
Tudo é uma questão
De filosofeio


Poemas e Poesias domingo, 13 de setembro de 2020

CARTA DO ANTI-SANTO (POEMA DO MARANHENSE JOSE SARNEY)

CARTA DO ANTI-SANTO JOSÉ AOS SEUS TRISTES

José Sarney

 

 


EU, de nome José,
rasguei os olhos da vida
em cinza manhã de abril.
Chorei e o campo chovia
onde a cidade pedia
tempos, clemência e amor.
BENDITO sejais chão Pinheiro
com o canto dos bois
e os patos selvagens
que deixam as nuvens
e os ventos gigantes
que lhe guiaram as asas
cruzando oceanos
e pousaram
à beira dos Defuntos
onde sacodem a viagem
e fazem ninhos
na folha das plantas aquáticas
que flutuam como anjos deitados
na mansidão dos lagos.

IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo abandono dessa sombra
que prometeu entregar-me o corpo
de pelúcias de carne para que eu o amasse
com a força de todas as tempestades
e eu nunca o amei.

NÃO me julgueis por haver
começado o meu caminho
naquela canoa de toldos
e ramos que cantavam,
"bendito é o santo nome".

EU fui ferido pelos vampiros gigantes
que esmagaram a sunga de chita colegial
feita de flores pequenas e alças de rendas
onde ficou sepultado para sempre
o seu sexo pequenino
e o meu primeiro olhar
que eu carregava nas mãos
como o cálice
daquele vinho
do corpo de Deus que eu não bebi
para embriagar-me
na fome de amar a pronta carne,
o pão, o fruto, a vida e
os peixes que habitavam os lagos desse campo
que me abriu os olhos numa manhã de abril.

IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo que fui
e jamais fui e sempre serei,
pois de não ser vou sendo
esta noite que não teve pôr de sol.

EU juro que a cadela que latia
junto de tuas mãos e eu dizia que era raiva
devia ter morrido
para que hoje eu não a lembrasse
para matar o meu ódio e ressuscitar o meu nojo
de pensar que eu fui capaz de amar
e os ventos da minha vida
não têm mais velas a empurrar
nem barcos para sair do Rio Pericumã e chegar
ao mar alto da Ponta de Itacolomi
e ali afundar
como afundaram
nas pedras eternas de moluscos
tantas navegações e tantos monstros.

IRMÃOS:
Eu habitei a Rua da Madre de Deus
onde os teares funcionavam dia e noite, no número 127.
Dona Sérgia! eu te beijo cerzideira
que me carregou de amor quando os outros me cuspiam
e as estátuas de porcelana branca que vieram de Portugal
guardavam vigilantes as cumeeiras largas do casario da Fábrica
onde batiam algodão branco e doce
da velha indústria Santa Amélia
e as operárias furtavam
os casulos
para higiene do ciclo menstrual
naquele mundo de louças
fusos, caldeiras e fardos.

A Fonte das Pedras
que de pedras tinha a água que escorria como sangue
das carrancas que jamais aceitaram o suor dos escravos
que Dona Ana Jansen fazia atirar nos poços de lanças
para serem espetados e se transformarem em fantasmas que
enchiam de gemidos todos os becos desta cidade que
nasceu para ser possuída em coitos de agonia e pecado
e em virgindades com cheiro de alfazema
entre o amor e as picadas de arraia.

IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo bonde de minha infância que matei
porque eu o amava e o matei,
como se não mata o amor, mas
pelo indesejo da morte.

ELE não corre e foram minhas mãos
que o trucidaram e trucidaram com ele
as moças todas que estavam na janela
e eu desejava casar para fazer filhos que
de novo pegassem o bonde
e fossem até o fim dos caminhos
e de novo fizessem outros filhos e outros mais
para que o bonde fosse o trilho eterno
e não o fim do filho.

..............................................

IRMÃOS:
NÃO me julguei por não haver fugido
com a trapezista do circo mambembe,
com que todos os meninos
das cidades de cavalos e cabeças-de-cuia
pensam fugir para viver em
acrobacias e picadeiros.
Eu a reencontrei em Brooklin, num janeiro de neve
nessa cidade de Nova Iorque que eu também amei
como se ama a prostituta pintada
que nos acena com uma noite de orgia.

O táxi amarelo parou. De repente ao meu lado
a trapezista que eu tinha amado
e ali repousava de sandálias e tranças.
Ao meu espanto apenas disse:
José!
De repente o mundo voltou ao princípio e eu senti
que os passarinhos podem cantar em Manhatan como
na mangueira velha do quintal da casa do velho José Costa,
meu avô,
que me disse um dia:
Guarda a tua alma e o teu corpo em vinha-dalho,
porque a vida é feita de postas azedas
em que os figos e as melancias não têm nem gosto nem cor.

IRMÃOS:
EU, José,
vos digo que a vida é um bando de itãs
que gritam histéricas
na beira do lago de Viana à espera
da terra parar de repente
e de repente a canarana ter flores eternas
as mangueiras terem galhos de meia légua e
debaixo de sua sombra
os índios pedirem amor com os anjos,
plantando rosas de capim de marreca
e o homem Senhor do destino
possa descansar os seus lábios vermelhos
nos seios das deusas jovens,
adormecidas nas aguadas de ventos,
novilhas de todos os mundos.

IRMÃOS:
PERDOAI-ME de dizer a Deus
que ele não pode pisar meus caminhos
com os pés de cardos
que romperam de sangue a coroa fria e sem glória
desses dias que ele me deu e eu esmaguei.

IRMÃOS:
perdoai-me.
o sonho da morte é uma nuvem
que não cobre as eternas noites da vida.


Poemas e Poesias sábado, 12 de setembro de 2020

INVENÇÕES DE ORFEU (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

INVENÇÕES DE ORFEU

Jorge de Lima

 

CANTO III

POEMAS RELATIVOS

I

Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.

Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.

O sono está.
E um homem dorme.

II

Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?
Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.

Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:
folha e flor. Tu - haste,
elas reais, mas réstias.

III

qualquer voz alou-se
muito desejada.
Branco fosse o espaço
e ela ardente cor.

Quis o espaço a voz
a voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse
propriamente voz...

Vamos nós supô-los:
dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmo
dois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmos
na voz recebida.

E o espaço esvaziado
povoá-lo de vez.

Amá-los tão sem
amada presença,
só com o coração
sem correspondência,
só com a vocação
do verso feliz.

IV

Numas noites chegamos à janela,
e as mandíbulas do ar tanto nos roem,
que os leitos rotos logo deliqüescem
com os nossos corpos complacentemente.

Certos dias olhamos o sol claro;
e a boca hiante das cores nos devora
carnes e sangues, poeiras de costelas,
que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,
vigiando dia e noite nossas vidas
um minuto no espaço, menos que ai
de chumbo soluçado nos silêncios,
ou cal de fome longa, revelada,
na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem senso
sorriso nos ares,
minha alma perdida,
os vales lá embaixo
de minhas lonjuras
de não existido,
parado nos antes,
nem sei de pecados,
nem sei de mim mesmo,
eu mesmo não sou
nem nada me vê;
ausentes palavras
não soam no vácuo
dos antes das coisas,
das coisas sem nexo,
nem fluidos. Só o Verbo
chorando por mim.

VI

Agora, escutai-me
que eu falo de mim;
ouvi que sou eu,
sou eu, eu em mim;
tocai esses cravos
já feitos pra mim,
suores de sangue,
pressuados sem poros
verônica herdada.
sem face do ser.

Embora; escutai-me,
que eu falo com a voz
inata que diz
que a voz não é essa
que fala por mim,
talvez minha fala
saída de ti.

VII

Alegria achareis neste poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se
conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doente,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;
ou como sente os ombros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,
reencontrados países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.

VIII

Se falta alguém nesses versos
pele vento interminável,
pelas arenas de estátuas,
sucedam-lhe os cegos olhos
sacudidos pelos medos,
mãos de chuvas lhe inteiricem
o corpo com algas remissas
e com matérias tranqüilas
tão soturna como os poços,
exasperados invernos,
ombros de escova comida,
as asas secas caídas,
ante seus netos calados;
e incorporem-se a esse alvitre
esse sabor de cortiça,
essas esponjas morridas,
essas marés estanhadas,
essas escunas de espáduas
estritamente fechadas
como casas de abandono,
restringem-se os conciliábulos,
certos sigilos de pez,
certas coisas enlutadas,
refúgios, dramas ocultos,
pois as rosas são de trapos
e os fios menos que teias,
menos que finos agora,
e as camisas sem os pêlos
enterrados nas ilhargas,
vestem enganos e punhos
e crimes em vez de adegas,
mas tudo em vão, mesmo as plumas,
mesmo os ausentes e as vozes
aderidas a fragmentos
aí moram degredadas,
listrando as grades, de faces
que não conhecem espelhos

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos
E flores despenteadas, flores largas e a barbárie
e inconfidentes quase abominadas dos corpos.
por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade
do espírito
Lírios eram pilares de cristal sob o cerco
subindo para as aves; então dardos da matéria.
desceram sobre os mais amados colos
cantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu
sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.
Tudo contém pequenas doces máscaras.
Mas da selva selvagem desce o pranto
dos que mastigam suas próprias fomes,
sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.
E esse amor é amaríssimo e adstringente
com a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhos
os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Clodoveu ou Clodovigo?
Éreis vós por acaso eles?
Éreis vós aqueles nomes,
estes, e os demais já mortos,
os mortos tão renovados
nós mesmos sempre chamados
Lútero, Lotário, otário,
sim otário tão singelo,
tão puro de todo o mal,
relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Dizei-me se acaso vós
éreis eles ou voz sou
de algum avo tão otário,
tão eu mesmo como voz,
como poema de outros vários.

XII

O simples ar
de uma só corda
em curta raia,
mão de menino,
punhado escasso,
ar perfumado,
sem o alvoroço
dos vendavais;
anjo acolhido
em róseo céu
abrigo instante,
pranto lavado,
chorar em ti
de arrependido,
subir teus vales,
amar teu pólen,
nunca escapar-me
de tuas pétalas
cair com elas.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O contro era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluíCANTO III

POEMAS RELATIVOS

I

Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.

Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.

O sono está.
E um homem dorme.

II

Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?
Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.

Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:
folha e flor. Tu - haste,
elas reais, mas réstias.

III

qualquer voz alou-se
muito desejada.
Branco fosse o espaço
e ela ardente cor.

Quis o espaço a voz
a voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse
propriamente voz...

Vamos nós supô-los:
dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmo
dois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmos
na voz recebida.

E o espaço esvaziado
povoá-lo de vez.

Amá-los tão sem
amada presença,
só com o coração
sem correspondência,
só com a vocação
do verso feliz.

IV

Numas noites chegamos à janela,
e as mandíbulas do ar tanto nos roem,
que os leitos rotos logo deliqüescem
com os nossos corpos complacentemente.

Certos dias olhamos o sol claro;
e a boca hiante das cores nos devora
carnes e sangues, poeiras de costelas,
que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,
vigiando dia e noite nossas vidas
um minuto no espaço, menos que ai
de chumbo soluçado nos silêncios,
ou cal de fome longa, revelada,
na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem senso
sorriso nos ares,
minha alma perdida,
os vales lá embaixo
de minhas lonjuras
de não existido,
parado nos antes,
nem sei de pecados,
nem sei de mim mesmo,
eu mesmo não sou
nem nada me vê;
ausentes palavras
não soam no vácuo
dos antes das coisas,
das coisas sem nexo,
nem fluidos. Só o Verbo
chorando por mim.

VI

Agora, escutai-me
que eu falo de mim;
ouvi que sou eu,
sou eu, eu em mim;
tocai esses cravos
já feitos pra mim,
suores de sangue,
pressuados sem poros
verônica herdada.
sem face do ser.

Embora; escutai-me,
que eu falo com a voz
inata que diz
que a voz não é essa
que fala por mim,
talvez minha fala
saída de ti.

VII

Alegria achareis neste poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se
conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doente,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;
ou como sente os ombros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,
reencontrados países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.

VIII

Se falta alguém nesses versos
pele vento interminável,
pelas arenas de estátuas,
sucedam-lhe os cegos olhos
sacudidos pelos medos,
mãos de chuvas lhe inteiricem
o corpo com algas remissas
e com matérias tranqüilas
tão soturna como os poços,
exasperados invernos,
ombros de escova comida,
as asas secas caídas,
ante seus netos calados;
e incorporem-se a esse alvitre
esse sabor de cortiça,
essas esponjas morridas,
essas marés estanhadas,
essas escunas de espáduas
estritamente fechadas
como casas de abandono,
restringem-se os conciliábulos,
certos sigilos de pez,
certas coisas enlutadas,
refúgios, dramas ocultos,
pois as rosas são de trapos
e os fios menos que teias,
menos que finos agora,
e as camisas sem os pêlos
enterrados nas ilhargas,
vestem enganos e punhos
e crimes em vez de adegas,
mas tudo em vão, mesmo as plumas,
mesmo os ausentes e as vozes
aderidas a fragmentos
aí moram degredadas,
listrando as grades, de faces
que não conhecem espelhos

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos
E flores despenteadas, flores largas e a barbárie
e inconfidentes quase abominadas dos corpos.
por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade
do espírito
Lírios eram pilares de cristal sob o cerco
subindo para as aves; então dardos da matéria.
desceram sobre os mais amados colos
cantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu
sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.
Tudo contém pequenas doces máscaras.
Mas da selva selvagem desce o pranto
dos que mastigam suas próprias fomes,
sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.
E esse amor é amaríssimo e adstringente
com a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhos
os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Clodoveu ou Clodovigo?
Éreis vós por acaso eles?
Éreis vós aqueles nomes,
estes, e os demais já mortos,
os mortos tão renovados
nós mesmos sempre chamados
Lútero, Lotário, otário,
sim otário tão singelo,
tão puro de todo o mal,
relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Dizei-me se acaso vós
éreis eles ou voz sou
de algum avo tão otário,
tão eu mesmo como voz,
como poema de outros vários.

XII

O simples ar
de uma só corda
em curta raia,
mão de menino,
punhado escasso,
ar perfumado,
sem o alvoroço
dos vendavais;
anjo acolhido
em róseo céu
abrigo instante,
pranto lavado,
chorar em ti
de arrependido,
subir teus vales,
amar teu pólen,
nunca escapar-me
de tuas pétalas
cair com elas.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O contro era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluísse


Poemas e Poesias sexta, 11 de setembro de 2020

HOMENAGEM A PICASSO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

HOMENAGEM A PICASSO

João Cabral de Melo Neto

 

 

O esquadro disfarça o eclipse
que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
nos violinos fechados.
Apenas os recortes dos jornais diários
acenam para mim como o juízo final.


Poemas e Poesias quinta, 10 de setembro de 2020

AMOR DE MENTIRAS (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

AMOR DE MENTIRAS

J. G. de Araújo Jorge

 

Eram beijos de fogo..eram de larvas,
E sabiam a sonhos e ambrosias..
Como pensar que  a boca com que os davas
Era a mesma, afinal, com que mentias ?!
 
 
Se eras a mais humilde das escravas,
Em dádivas, anseios, alegrias..
Como prever que o amor que me juravas
seria mais uma das tuas heresias ?!
 
 
Como supor ser tudo um falso jogo?
E crer que se extinguisse aquele fogo..
que acendia em teus olhos duas piras ?!
 
 
E descobrir.. no instante em que me amavas..
Que em tua boca ansiosa misturavas
Ao mesmo tempo beijos e mentiras ?!
 
 
Eram brancas as mãos..brancas e puras..
Mãos de lã..de pelúcia..mãos amadas..
Como prever..vendo-as fazer ternuras,
Que nas unhas traziam emboscadas ?!
 
 
Era tão doce o olhar..em conjeturas
felizes..e em promessas impensadas...
Como enxergar,  portanto, as amarguras..
E as frias traições nele guardadas ?!
 
 
Como pensar em duas, se somente
uma eu tinha em meus braços..e adorava..
E a outra.. uma impostora..se mantinha ausente..
 
 
E, afinal, como ver, nessa alegria..
Que o amor que tanta vida me ofertava..
Seria o mesmo que me mataria ?!

Poemas e Poesias quarta, 09 de setembro de 2020

1 - DO DESEJO - PORQUE HÁ DESEJO EM MIM, É TUDO CINTILANTE (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DO DESEJO - 1

PORQUE HÁ DESEJO EM MIM, É TUDO CINTILANTE

Hilda Hilst

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Poemas e Poesias terça, 08 de setembro de 2020

ALMA HUMANA FORMADA DE COISA NENHUMA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

ALMA HUMANA FORMADA DE COISA NENHUMA

Gil Vicente

(Grafia original)

 

Alma humana formada

De nenhuma cousa, feita

Mui preciosa,

De corrupção separada,

E esmaltada

Naquella frágoa perfeita

Gloriosa;

Planta neste valle posta

Pera dar celestes flores

Olorosas,

E pera serdes tresposta

Em a alta costa

Onde se crião primores

Mais que rosas;

Planta sois e caminheira,

Que ainda que estais, vos is

Donde viestes.

Vossa pátria verdadeira

He ser verdadeira

Da glória que conseguis:

Andae prestes”.


Poemas e Poesias segunda, 07 de setembro de 2020

A NOSSA CASA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

Florbela Espanca

A NOSSA CASA

Florbela Espanca

 

 

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onte está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Costrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jadim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...


Poemas e Poesias domingo, 06 de setembro de 2020

PELA RUA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

PELA RUA

Ferreira Gullar 

 

 

Sem qualquer esperança
Detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
Na avenida nossa senhora de copacabana, domingo,
Enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
Te espero.
Na multidão que vai e vem
Entra e sai dos bares e cinemas
Surge teu rosto e some
Num vislumbre
E o coração dispara.
Te vejo no restaurante
Na fila do cinema, de azul
Diriges um automóvel, a pé
Cruzas a rua
Miragem
Que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
E se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
Tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
Talvez na rua ao lado, talvez na praia
Talvez converses num bar distante
Ou no terraço desse edifício em frente,
Talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
Misturada às pessoas que vejo ao longo da avenida.
Mas que esperança! tenho
Uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
Disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
Nas constelações da avenida.
Sem qualquer esperança
Continuo
E meu coração vai repetindo teu nome
Abafado pelo barulho dos motores
Solto ao fumo da gasolina queimada.


Poemas e Poesias sábado, 05 de setembro de 2020

CANÇÃO TRIASTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CANÇÃO TRISTE

Fernando Pessoa

 

Sol, que dá nas ruas, não dá

        No meu carinho.

A felicidade quando virá?

        Por que caminho?

 

Horas e horas por fim são meses

        De ansiado bem.

Eu penso em ti indecisas vezes,

        E tu ninguém!

Não tenho barco para a outra margem,

        Nem sei do rio

Ah! E envelheceu já tua imagem

        E eu sinto frio.

 

Não me resigno, não me decido,

        Choro querer...

Sempre eu! Ó sorte, dá-me o olvido

        De pertencer!

 

Enterrei hoje outra vez meu sonho

        Amanhã virá

Tornar-me triste por ser risonho,

        E não ser já.


Poemas e Poesias sexta, 04 de setembro de 2020

AS ROCHAS ENCONTRAM ASAS NA ESPUMA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

AS ROCHAS ENCONTRAM ASAS NA ESPUMA

Fabrício Carpinejar

 

As rochas encontram

asas na espuma.

Nenhuma despedida recompensa

 

a fidelidade da casa.

Como tua memória devolverá

as ruas emprestadas

 

para atalhar a infância?

Qual o eclipse, o calendário,

que vai emborcar

 

a nostalgia do futuro?

Quem inventará o fogo

sem as feições do Criador?


Poemas e Poesias quinta, 03 de setembro de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 05 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 05

Eno Teodoro Wanke

 

Em Hollywood, a uma artista

Jamais será permitido

Em duas festas ser vista

Usando o mesmo... marido

 

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 02 de setembro de 2020

AO VER-TE, ROSEIRA TRISTA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

AO VER-TE, ROSEIRA TRISTE

Da Costa e Silva

 

Roseira cheia de espinhos
Crestada ao frio de junho,
São iguais nossos destinos,
Temos o mesmo infortúnio.

A nossa sorte é a mesma; 
Contrariá-la é debalde,
Pois secaste de tristeza
E eu sucumbo de saudade.

Ao ver-te, roseira triste,
Com os teus desfolhados ramos,
Fico a pensar como evite
O mal que sofremos ambos.

E como não têm meus olhos 
Mais pranto para regar-te,
Tecerei com os teus despojos
Minha coroa de mártir.


Poemas e Poesias terça, 01 de setembro de 2020

FLORIPES (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

FLORIPES 

Cruz e Sousa

 

Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.


Poemas e Poesias segunda, 31 de agosto de 2020

LUA-LUAR (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

LUA-LUAR

Cora Coralina

 

Escuto leve batida.
Levanto descalça, abro a janela
devagarinho.
Alguém bateu?
É a lua-luar que quer entrar.

Entra lua poesia
antes dos astronautas:
Gagarin da terra azul,
Apolo XI que primeiro passeou solo lunar.

Lua que comanda os mares,
a fúria dos vagalhões
que vem morrer na praia.
O banzeiro das pororocas.

Lua dos namorados,
das intrigas de amor,
dos encontros clandestinos.
Lua-luar que entra e sai.

Lua nova, incompleta no seu meio arco.
Lua crescente, velha enorme, fecunda.
Lua de todos os povos
de todos os quadrantes.

Lua que enfurece o mar e em chumbo,
acovarda barcos pesqueiros.
O barqueiro se recolhe.

O pescado volta às redes.
O jangadeiro trava amarras.
Gaivotas fogem dos rochedos.

Lua cúmplice.
Lésbica lua nascente,
andrógina — lua-luar.
Lua dos becos tristes
das esquinas buliçosas.
Luar dos velhos.
Das velhas plantas sentenciadas.
Do sopro morto
dos bordões, rimas, violinos.

Lua que manda
na semeadura dos campos,
na germinação das sementes,
na abundância das colheitas.

Lua boa.
Lua ruim.
Lua de chuva.
Lua de sol.

Lua das gestações do amor.
Do acaso, do passatempo
Irresistível,
responsável, irresponsável.

Lua grande. Lua genésica
que marca a fertilidade da fêmea
e traz o macho para a semeadura.
O fruto aceito —
mal aceito: repudiado, abandonado,
A semente morta
lançada no esgoto.
A semente viva palpitante
deixada em porta alheia.


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