Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo quinta, 14 de julho de 2022

A ÁGUA DE JANOS (CONTO DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)
A ÁGUA DE JANOS

Artur Azevedo 

 

                         O tenente de cavalaria Remígio Soares teve a infelicidade de ver uma noite dona Andréa num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

                        A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles belos olhos negros e rasgados.

                        Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão que se representava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

                        Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa distância o casal até o largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele –um bonde do Bispo, — sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andreia.

                        Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda — seria faltar à verdade que devo aos meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca rua Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

                         Ele ficou sabendo onde ela morava... 

II 

                        O tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

                        Mas — que contrariedade! — As janelas de Dona Andréa estavam fechadas...

                        O cavaleiro foi até a rua de santa Alexandrina e voltou — patati, patatá, patati, patatá! — E as janelas não se tinham aberto...

                        O passeio foi renovado à tarde, — o tenente passou, tornou a passar, — continuavam fechadas as janelas...

                        Malditas janelas!

                        Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

                        Mas ao quinto dia — oh, ventura! — Ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

                         Soube nessa ocasião que ela se chamava Andreia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento! Proibia expressamente a senhora de sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérberos: uma tia do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrão.

                        Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona Andreia uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta — digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada — a resposta não se fez esperar por muito tempo:

                        “Pede-me uma entrevista, e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?... Onde?... Quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós... Como há um Deus para os

que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

                        Na esperança que o grande dia chegasse, o tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andreia: procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar uma cartinha. 

III 

                        Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela. Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

                        Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas. 

IV 

                        Os leitores — e principalmente as leitoras — me desculparão de não pôr no final deste conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral não é sacrificada.

                        O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

                        Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

                        — Que tens tu?

                         — Ainda mo perguntas...

                        — Tem paciência: Jacob esperou quatorze anos.

                        — Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava de uma saúde de ferro... Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!...

                        — Isso é calor: a tua Andreia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um conselho? Mandas buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para aliviar a cabeça.

                        O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo da benemérita água.

                        Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andreia, anunciando-lhe uma carta.

                        Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

                        “A velha amanheceu hoje com febre e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico de confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

                        O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de dona Andreia! Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento: nenhum namorado faria confissões dessa ordem...

                        O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

                        “Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir... Quando algum dia haja certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza que me perdoarás.”

                        Dona Adélia não perdoou. O tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

                        Quando, no dia seguinte, ele contou a Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

                        — Vê tu que grande remédio é a água de Janos: um só copo bastou para aliviar três cabeças!

(Do livro Contos Fora da Moda)

 

 


Escreva seu comentário

Busca


Leitores on-line

Carregando

Arquivos


Colunistas e assuntos


Parceiros