Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

De Balsas Para o Mundo terça, 16 de agosto de 2022

TERESINA, MEU XODÓ : 16 AGOSTO DE 2022 - 170º ANIVERSÁRIO DE TERESINA
TERESINA, MEU XODÓ

Raimundo Floriano

 

 

Praça Pedro II: Theatro 4 de Setembro e Cine Rex 

            No dia 16 de fevereiro de 1950, uma sexta-feira, embarcaram-me em Floriano, no ônibus do Chicão, com destino a Teresina! Aos 13 anos de idade, eu estava diplomado em florianês!

 

            Seguia rumo ao progresso, à cultura, aos mistérios e aos encantos da Capital Piauiense, onde já se encontrava meu irmão José Albuquerque, o Carioquinha, funcionário do Banco do Brasil, que me iria custear os estudos e muito me ajudaria, não só naquela época, como em vários difíceis momentos por que passei na vida.

 

            José era solteiro e morava numa república de bancários. Não querendo me deixar solto no mundo, arranjou para que eu ficasse hospedado na casa de Donamaria Albuquerque, irmã do Padre Solon, prima de minha mãe e mulher do Comandante Luiz Barbosa, considerada pessoa durona, exigente, cobradora, sendo certo que na casa dela estudante havia de andar sempre dentro dos eixos. Que o dissesse o balsense José Bráulio Forentino, já com um ano de estágio naquele cortado!

 

            A casa, de Donamaria, alugada, ficava na Rua da Glória – atual Lisandro Nogueira –, nº 1797, parede-meia com a do proprietário, Dr. Bernardo Melo, Capitão Dentista da Polícia Militar.

            Falemos na viagem!

 

            Saímos de Floriano às 7 horas da manhã e viajamos o dia todo.

 

            Enquanto vencíamos vagarosamente o percurso, o refrão da marchinha Daqui Não Saio, de Paquito e Romeu Gentil, gravada pelos Vocalistas Tropicais para o Carnaval daquele ano, que começaria no sábado, dia 18, não me saía da cabeça.

 

            Eu o aprendera nos ensaios diários que o locutor Defala Attem realizava no salão do Politeama, velho e desativado cinema florianense: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.

 

            A estrada era piçarrada, de mau estado – ainda não havia asfalto por lá – e, perto de Amarante, apresentava temido obstáculo, que era a travessia do Rio Canindé em cima de um pontão precariamente construído com talos de buritis, troncos de bananeiras e outros materiais flutuantes. E a fila aguardando o embarque não acabava mais! Por isso, dormimos em Amarante, na Pensão do Gérson, estalajadeiro muito conhecido na região devido às mímicas que a todo instante fazia.

 

            No dia seguinte, bem cedinho, retomamos a viagem. Os obstáculos agora eram os riachos transbordantes devido ao intenso período chuvoso, fazendo com que esperássemos às margens de alguns até que as águas baixassem. Mais ou menos às 9 da noite, chegamos a Teresina. Dois dias de viagem!

 

            Meu irmão, naquele momento, encontrava-se dando aula num cursinho, motivo pelo qual pedira ao Antônio Iran, nosso primo, filho de Tia Antônia, que me fosse receber na Agência, que ficava na Praça Saraiva.

 

            Novamente, a cena de minha chegada a Floriano se repetiu: seguimos a pé, com um estivador chapeado carregando a mala e o saco de rede, e o Iran me mostrando e explicando cada detalhe da paisagem que surgia à medida que progredíamos na caminhada.

 

            Nosso destino ficava entre as Ruas Arlindo Nogueira e Area Leão, a quatro quarteirões do 25º BC. Um bom estirão!

 

            Iniciamos a subida! Tomamos o lado esquerdo da Praça Saraiva, correspondente à Rua Félix Pacheco, e seguimos. Naquela praça, o Iran me mostrou o Seminário, a Igreja de Nossa Senhora das Dores, o Colégio Diocesano e a Delegacia de Polícia Civil, após a qual, dobramos à esquerda, pegando a Rua 13 de Maio até chegarmos à Praça Pedro II, àquela hora já deserta.

 

            Cruzamos a praça e, ao fazê-lo, Iran me mostrou o Quartel da Polícia Militar, o Theatro 4 de Setembro e o Cine Rex, que ostentavam cartazes anunciando para breve os filmes O Ébrio e Carnaval no Fogo.

 

            Pegamos a Avenida Antonino Freire, onde o Iran me apontou a Agência dos Correios, o Palácio de Karnak, do Governador, a Igreja de São Benedito, tendo ao lado o Convento e, à esquerda, o Posto Kaiser e a Escola Industrial. Seguimos em frente, cruzamos a Rua Quintino Bocaiúva, após a qual atingimos a Avenida Frei Serafim.

 

            Ali, dobramos à esquerda, pegamos a Rua Arlindo Nogueira, cruzamos as Ruas Álvaro Mendes, Coelho Rodrigues, Eliseu Martins, do Amparo – atual Areolino de Abreu – e, enfim, dobramos à direita, na Rua da Glória. Ufa! Chegamos!

 

            Na sala de jantar, uma recepção me aguardava. A dona da casa e três lindas garotas, regulando a minha idade: Marilu, minha prima, filha de Donamaria; Auricélia, moradora da casa ao lado; e Leda, filha do Dr. Bernardo.

 

            Que decepção para elas, ao verem aquele matuto todo maltratado por dois dias de viagem, sem tomar banho, enfrentando lama e poeira! E que acanhamento o meu, bicho do mato, ao deparar com as meninas da Capital, eu que, naquele tempo, corria de medo quando me encontrava diante de qualquer uma delas!

 

            Para compensar, um garoto, dois anos mais novo, o Bernardo Melo Filho, primeiro menino que conheci em Teresina!

 

            Depois disso, logo me enturmei com outros, ao entrar para o Ateneu, onde fora matriculado na 2ª Série: Helcias Arcoverde, José Emílio Ommatti, Jorge Waquim, João Emílio Falcão Filho, Odolfo Tavares, Luiz Gonzaga Viana, Albano Freitas, Basílio Bezerra Filho, Firmino Silveira e Iaci Correia.

 

            Naquela noite, passado o meu vexame e vencido pelo cansaço, fui dormir. Enquanto não caía no sono, o refrão não me saía da cuca: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Apaguei! E só fui acordar quando outra bela melodia ao longe se fez!

 

            Um som que escutei todas as noites durante os sete anos em que vivi em Teresina e que me serviu, no início, para avisar que estava na hora de levantar e pegar a estrada rumo à Educação Física, no quintal do Professor Moacir Madeira Campos, um dos sócios do Ateneu, nas proximidades do bairro Vermelha: o apito do trem!

 

            Assim que pude, cuidei logo de conhecer essa grande novidade tecnológica, o trem de ferro e a estrada idem!

 

            Na etapa seguinte, participei da que foi a minha estreia em aventuras arriscadas: andei no elevador do IAPC!

 

            No meu primeiro ano em Teresina, fui, um dia, o menino mais rico da cidade. Vou lhes contar.

 

            Em março de 1950, a Casa Nova, grande loja de tecidos, lançara, na Rádio Difusora de Teresina, com prêmio de 500 cruzeiros para quem acertasse, estas perguntas: qual a primeira peça teatral escrita no Brasil? Por quem foi escrita? Em quantas línguas?

 

            Quinhentos cruzeiros, naquele tempo, davam para 250 entradas no cinema, ou 500 sorvetes, ou 1.000 picolés. Pequena fortuna para as quimeras da infância!

 

            O Professor Antilhon Ribeiro, que lecionava História no Ateneu, do qual era o outro sócio, ensinou as respostas para todos os seus alunos: a primeira peça teatral escrita no Brasil foi O Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, em Português e Tupi.

 

            Escrevi minha resposta num papel, atrapalhei-me na hora, fiz um borrão sobre ela, reescrevi-a, e depositei-a numa urna lá na Casa Nova.  E fiquei esperando!

 

            Todos os finais de semana, saía um automóvel na rua, com alto-falante no teto, mencionando o concurso e tocando o jingle da loja. De tanto repeti-lo, gravei-o na memória, cantava-o a todo instante, e agora aqui o reproduzo:

 

REFRÃO:

 

A Casa Nova, a Casa Nova

Vende barato

Quem quiser, que tire a prova

(Bis)

 

Faz poucos dias

Que cheguei nesta cidade

Procurando novidade

Bons tecidos pra comprar

Fui informado

Por enorme freguesia

Que tudo quando eu queria

Lá iria encontrar

 

REFRÃO

 

Tem casemira

Brim de linho, caroá

Carrapicho, tafetá

Seda, chita e gorgorão

Voile e crepe

Tem bramante e opaline

Tropical e tricoline

Panamá, gaze e fustão

 

REFRÃO

  

Agora eu quero

Avisar à freguesia

Que não há mercadoria

Que se possa comparar

Com os tecidos

Que a Casa Nova tem

Por isso não há ninguém

Que lá não queira comprar

 

            Só no segundo semestre, aconteceu a premiação. Durante toda a semana, no rádio e nas amplificadoras, era a notícia mais constante.

 

            Numa tarde domingueira de agosto, com o pequeno auditório da Rádio Difusora superlotado, o locutor Dennis Clark procedeu à apuração. Havia 14 respostas certas, que foram colocadas numa caixa. Dennis chamou uma garotinha que estava sentada no colo da mãe e lhe pediu que retirasse uma carta. Quando a menina ia entregando a carta ao locutor, já reconheci os meus borrões!

 

            Isso me fez famoso na Capital por algum tempo!

 

            Comparada ao esparrame de hoje, Teresina era um ovo em 1950. Podia-se ir a pé aos bairros mais famosos: Piçarra, Vermelha, Porenquanto, Mafuá.

 

            De dia, o movimento era na Praça Rio Branco, com as Casas Pernambucanas e Loja Rianil, o Bar Carvalho, onde se comprava o melhor bife a cavalo da cidade, o Café Avenida, o Hotel Piauí, em construção, em cuja última laje se via uma placa com a inscrição Aqui há Otis, a Farmácia da Dona Lili, a Igreja do Amparo, o coreto, onde as Bandas do 25º BC e da Polícia Militar, de vez em quando, realizavam retretas, e o Ponto de Táxi, com os minúsculos carros Perfect importados, que cobravam 5 cruzeiros pela corrida.

 

            À noite, a Praça Pedro II dominava, com o Quartel da Polícia, os dois cinemas, o Picolé Azas – com  mesmo – o Salão de Sinuca do Chico Doca, bares, restaurantes e o Ponto de Táxi, com carrões americanos como os do Walmor, e do Bianor, cuja corrida custava 10 cruzeiros.

 

            Uma pista carroçável transversal separava a Pedro II em dois níveis.

 

             No superior, onde ficava o Quartel da PM, reunia-se a assim chamada 2ª Sociedade, constituída de soldados da Polícia ou do Exército, empregadas domésticas e moçinhas de namoro fácil, conhecidas como “curicas”. Ali, namorados de ambas as classes sociais aproveitavam as sombras das figueiras para darem um amasso.

 

            No inferior, fronteiriço aos cinemas, a nata da Sociedade se reunia, com moças e rapazes desfilando em sentido contrário, trocando olhares para um futuro namoro, quem sabe no nível superior da praça, quem sabe nos escurinhos do 4 de Setembro ou do Cine Rex, pois ali, conforme o costume de então, os corpos não podiam se tocar. As meninas de fácil namoro da elite eram conhecidas pelo preconceituoso e despeitado apelido de “galinhas”!

 

            Aquela intensa vida social noturna se acabava, em ambos os níveis, como num passe de mágica, às 21h00, quando o Corneteiro do Quartel da PM soava o Toque de Revista do Recolher! Era a senha para que todos fossem pra casa dormir!

 

            Teresina só possuía um clube, o Clube dos Diários, que não era provido de piscina. Por esse motivo, a “croa” – pronúncia aferesada de coroa –, ilha que se formava no meio do Rio Parnaíba, entre Teresina e Timon, durante o período das secas, era o ponto de encontro, aos domingos, de todos, ricos ou pobres, que ali procuravam um pouco de refrigério diante do calor brabo que assolava a região.

 

            Um ponto alto da diversão noturna teresinense eram as quermesses. A de Nossa Senhora das Dores, na Praça Saraiva, onde pontuava o Padre Zé Luiz; a de São Benedito, promovida pelo Frei Conrado; e a de Nossa Senhora do Amparo, a cargo do Padre Chaves. E tome retreta, e tome comidas e bebidas típicas, e tome amplificadora oferecendo músicas de alguém para alguém, e tome correio elegante, no qual fui, por qualquer prenda, moleque de recado.

 

            Abstraindo-se a saudade que sentia da casa paterna, dos meus irmãos e dos amigos de Balsas, Teresina foi, durante sete anos, o meu quintal, a minha praia, o meu pasto!

 

            Igual a todo menino da minha laia, pintei e bordei! Fiz filme com o Manelão – ou Avião –, varei o Theatro – pulando o muro e entrando sem pagar –, gritei para a Lazarina “É homem! É homem!”, para que ela, no meio das moças, levantasse o vestido e mostrasse os possuídos, atazanei a vida de um homem que andava de cartola, fraque e bengala, cópia fiel do que ilustrava o rótulo do Elixir de Mururé. Com esse, bastava que se gritasse “Mururé! Mururé!”, para que ele brandisse a bengala e saísse em perseguição ao atrevido.

 

  

 

            Pesquei lambaris com garrafa no Rio Poti, onde tomava banho, atravessava-o a nado ou a vau, conforme o mês, andava no pontão e assistia ao bate-estaca, tocado a vapor, enfincar pilares na terra, construindo a ponte, obra que se arrastou por muitos anos.

 

            No Rio Parnaíba, capturei pitus nas locas, que eram vendidos na ZBM; pesquei sardinhas e mandis; pulei da Ponte Metálica; joguei futebol e bronzeei-me na croa; varejei na canoa que o Tio Joãozinho lá deixara para a diversão dos sobrinhos; e assisti à construção do cais.

 

            No Centenário de Teresina, ocorrido a 16 de agosto de 1952, as maiores festividades, que duraram por todo o mês, aconteciam na Praça João Luiz Ferreira. Muitos artistas famosos do Rio de Janeiro a abrilhantaram. Foi a maior festa a que já assisti. No seu transcurso, aprendi a dançar tambor! Como atração que perdurou por muitos anos, foi construído, na Praça Pedro II, ao lado esquerdo do Theatro 4 de Setembro, o Bar Carnaúba, usando-se em toda a sua estrutura apenas o material retirado daquela palmeira, que já foi a maior riqueza econômica piauiense.

 

            Pulei o muro do Estádio, ou assisti a jogos trepado nos altos galhos do pé de tamarindo, que ficava bem junto, esperando que, aos quinze minutos para acabar o jogo, abrissem os portões, na denominada “hora dos miseráveis”. Só assim, conheci o melhor time de Teresina, o River; o seu mais famoso jogador, o Sargento Diderot; o técnico do Artístico, o Arroz; e o craque do Artístico, sempre convocado para a Seleção Piauiense, o Luizinho Cavalo Velho.

 

            Havia, anualmente, o Campeonato Brasileiro, não de times, mas com as Seleções Estaduais. O Piauí sempre jogava com o Rio Grande do Norte ou com o Maranhão, todos logo desclassificados.

 

            Estudei em três colégios teresinenses: o Ateneu, o Diocesano, onde fui interno, e o Liceu Piauiense. Morei na Rua da Glória, na Teodoro Pacheco, na Barroso, na da Estrela e na Baixa da Égua. Frequentei a doce vida da Rua Paissandu e do Bar Quitandinha.

 

            Filei comida na casa de Fructuoso José da Silva, meu Tio Fructo, casado com Zoraide Benvindo, a Tia Zora; na casa de Tia Antônia, casada com o dentista e ourives Raimundo Lopes de Aguiar, onde morei por uns tempos; na casa de Benedito Vasconcelos, o Beni, meu primo, Gerente do Banco do Brasil e casado com Ezir, onde também morei; e na casa do primo Pedro Maranhense Costa, do BB, casado com Raimunda Pires, a Dica, o qual, vez por outra, me ajudava com uma dádiva monetária. Antônio Luiz do Monte Furtado, também do BB, primo solteiro e abonado, muito me escorou nos momentos de pindaíba.

 

            Privei do companheirismo dos primos Oswaldo, Pedro Del Pretes, Achiles Mussoline e Bernardino, o Benu, e gozei da amizade das primas Ana Maria, Maria Ester e Terezinha de Souza e Silva, todos filhos do Tio Fructo.

 

            Inspirado num filme com o caubói Roy Rogers, construí, no quintal de Tia Antônia, um casebre de paredes e cobertura de palha, em cuja entrada pendurei uma tabuleta com o letreiro indicativo a carvão: Rancho Preguiça, no qual eu cozinhava em latas velhas de manteiga e de goiabada. Meu baião-de-dois era muito apreciado pelas primas Maria de Nazareth e Maria do Amparo, além do primo José Ivan, de apenas dois anos, a quem ensinei o dificílimo contorcionismo de morder o dedão do seu próprio pé. As sobremesas eram os doces que minha mãe mandava de Balsas, ou as cocadas feitas por Tia Cristina Albuquerque, que possuía uma quitanda na Rua Félix Pacheco, onde morava, entre a João Cabral e a beira do rio, ou seja, na ZBM. Por causa disso, suas portas fechavam-se às 18h00, após o que não abriam nem por decreto.

 

            Em Teresina, conheci o primeiro amor e cometi o primeiro pecado. Fui menino rico por um dia, estudante pobre, cabo e soldado do Exército no 25º BC, ajudante de palhaço e mais um desempregado, como tantos por lá.

 

            No dia 17 de fevereiro de 1957, aniversário de meu pai, um domingo, exatamente sete anos após ter desembarcado ali pela primeira vez, eu tomava, na mesma Praça Saraiva, um ônibus de luxo para Fortaleza.

 

            Fora aprovado na seleção para a EsSA - Escola de Sargentos das Armas, sediada em Três Corações-MG, e seguia, com outros camaradas, em direção ao futuro, à independência financeira, à conquista do sul-maravilha!

 

            Ao embarcar, e em toda a viagem, que durou mais de dez dias, percorrendo a Rio-Bahia e a estrada de ferro do Rio de Janeiro para Cruzeiro-SP e de lá até o destino, o refrão daquela marchinha não continuava a retinir: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Porque parte do meu coração em Teresina ficou.

 

            E agora, é até razoável alguém me perguntar:

 

            – Mas o seu visgo não era com Floriano?

 

            E eu esclareço:

 

            – Floriano era paixão de garoto! Teresina foi amor de adolescente!

 

            Passaram-se 45 anos sem que eu voltasse à assim chamada Chapada do Corisco! Coração ingrato!

 

            Mas não era bem isso. Com meus pais residindo em Balsas, a 180 léguas de Teresina, sempre passava minhas férias por lá, mas a saudade, no fundo do peito, amargava que nem jiló!

 

            Em agosto de 2002, morando em Brasília, quando a Terra de Mafrense comemoraria o Sesquicentenário, com uma campanha publicitária cujo lema era “Teresina, Cidade Futuro”, chamei Veroni, minha mulher, e anunciei: – Vamos viajar de volta para o futuro!

 

            Mas queria participar do evento de modo a nada perder! Para tanto, entrei em contato com o Serviço de Relações Públicas da Prefeitura Teresinense, contei minha história e o meu amor pela cidade, o que muito pesou a meu favor, e solicitei-lhes convite para que eu e Veroni assistíssemos à solenidade principal de local privilegiado.

 

            Prestimosamente, enviaram-nos duas camisas alusivas ao Sesquicentenário, a serem usadas por todos no Palanque do Prefeito, bem como o convite a seguir. 

 

            Ao desembarcar do avião, no Aeroporto Senador Petrônio Portela, temperatura em volta de 30 graus, senti no rosto aquela baforada quente, tão conhecida dos velhos tempos. Começava a matar a saudade do querido Piauí.

 

            Hospedei-me no Rio Poty Hotel. Do meu apartamento, uma vista impressionante da cidade se descortinava no rumo do Ceará, mostrando o quanto Teresina crescera, limitando-se ali apenas com o horizonte.

 

            Em 1957, toda aquela área era mato. Lembrei-me dos tempos de outrora, quando o Dr. Bernardo Melo levava a meninada no seu Austin para tomar banho na SOCOPO, uma bica de água mineral no meio da floresta.

 

            O amplo palanque encontrava-se montado na Avenida Frei Serafim, em frente ao Colégio das Irmãs. Foram duas horas de desfile, com carros alegóricos contando a história da cidade, desde sua fundação até os dias atuais. A maior escola de samba do mundo não narraria melhor aquela saga! Impressionou-me deveras a quantidade de bandas de música, 14! Quando saíra de lá, só existiam duas, a do 25º BC e a da Polícia Militar.

 

            No dia anterior, sábado, assistimos à missa matinal na Igreja do Amparo, celebrada pelo Monsenhor Chaves, com quem conversei, relembrando os tempos em que ele fora meu professor de Francês no Colégio Diocesano. Lá, encontrei-me com Marion Couto Kyrieleison Soares, que cantava no Coral do Amparo, no início dos anos 50, juntamente com minhas primas Maria Zélia, Maria Célia e Maria Lélia Albuquerque Aguiar.

 

            Almoçamos na casa da família de nossa amiga Heloísa dos Santos Costa, moradora em Brasília, mas que, vitimada por doença terminal, preferiu passar seus últimos dias junto a seus entes queridos, no Parque Piauí.

 

            Depois do almoço, seu irmão Luiz Edson Santos Costa, médico, nos levou até à Vermelha, onde fizemos rápida visita ao dentista Benedito Ferreira Ramos, meu colega da EsSA, que há 45 anos não via.

 

            À noite, meu conterrâneo João Tourinho, amigo de infância, e a angicalense Rosária, sua mulher, receberam-nos em sua senhorial mansão, em São Cristóvão, quando aproveitamos para relembrar os belos tempos idos.

 

            Durante minha estada por lá, tive o apoio do meu primo Airton Coelho e Silva, médico, filho do Tio Joãozinho, de Lindalva, sua mulher, e de seu filho Jener. Ele me levou de carro a todos os pontos que marcaram minha vida teresinense. E começamos pela casa do Bernardo Melo Filho, industrial, casado com Rita de Cássia, ainda residente na Rua da Glória, por ter sido ele o primeiro menino teresinense que eu lá conhecera.

 

            Bernardo levou-nos para que eu revisse Seu João Souza, antigo vizinho, com quase 90 anos, a quem muito perturbara com minhas batidas num poste de ferro – espécie de alvorada para toda a vizinhança –, e sua filha Valderez, brotinho em 1950.

 

            Depois, seguimos para os pontos que eu queria fotografar. O Centro Histórico de Teresina em quase nada mudara naqueles 45 anos! Eu poderia até plagiar o cantor Ronnie Von ao dizer: a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim! E, pasmem, na Praça da Bandeira, o mesmo Mercado Municipal!

 

            No domingo, após o desfile, Airton levou-nos para almoçar num restaurante e, terminado este, conduziu-nos até uma chácara que possui à esquerda da estrada para União, onde aproveita para descontrair do estresse causado pela rotina médica.

 

            Vi todos os poucos parentes que ainda tenho em Teresina: Magnólia Carvalho, minha prima, casada com Raimundo Baptista de Carvalho, desembargador aposentado, residente no bairro São João, Suzane Coelho e Silva, minha prima, irmã do Airton, e Germano Coelho, seu filho.

 

            Na noite da véspera do nosso retorno, Conrado Nogueira Barros, dentista e meu companheiro dos tempos da caserna, casado com Elza, promoveu um forró em sua residência, no Planalto Itinga, no qual tive o prazer de matar a saudade das músicas regionais, assim como deleitar-me com os pratos que caracterizam a cozinha piauiense.

 

            Conheci o resto da família do Conrado, notadamente sua filha Lisa Minerva, que hoje faz parte de minha amizade no Orkut, e revi seu irmão Evandro Nogueira Barros, o Bela Aurora, como o chamávamos antigamente.

 

            Belizário Virtunis da Rocha, o Bili, dos tempos da pensão na Baixa da Égua e funcionário do Banco do Brasil, marcou um encontro com alguns amigos para as 10h00, do dia 19, segunda-feira, dia do nosso regresso, em frente ao Clube dos Diários. Compareceram, além do Bili, Fernando Martins da Rocha, funcionário público, Janclerques Marinho, escritor, e o João Tourinho.

            Terminada a reunião, João Tourinho nos levou ao local onde o Rio Poti desemboca no Rio Parnaíba, para que Veroni conhecesse o espetáculo do encontro das águas.

 

            Agenda social pra ninguém botar defeito!

 

            Agora, eu já sei como é que se faz!

 

            Quando a saudade novamente apertar, é só pegar um avião e, em duas horas, eu chego lá!

 

            Teresina, meu xodó, jamais te esquecerei!


De Balsas Para o Mundo domingo, 10 de julho de 2022

JACKSON NÃO MORREU (DO LIVRO DE BALSAS PARA O MUNDO)
JACKSON NÃO MORREU

Raimundo Floriano

(Publicado em 14.04.17)

 

 

Nosso ídolo

 

            Calmaí, minha gente!

 

             Não me refiro ao compositor, cantor e dançarino americano Michael Joseph Jackson (29.08.1958/26.06.2009), o Michael Jackson, o Rei do Pop, que presentemente todo o mundo chora. Reporto-me ao músico, compositor e cantor brasileiro e paraibano José Gomes Filho (31.08.1919/10.07.1982), o Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo, que ora o meu Nordeste canta.

 

            Jackson do Pandeiro, logo no início da carreira, chamou-nos a atenção pela forma peculiar de cantar seus forrós e dividir as sílabas de modo nunca antes ouvido no cenário forrozeiro deste país.

 

            Michael Jackson também assombrou as plateias ao dançar de um jeito novo. Dando passos à frente, mas andando pra trás, levou-nos até a supor que, para inventar essa coreografia, dum jeito que Fred Astaire, Gene Kelly e Elvis Presley jamais imaginaram, pode ter-se inspirado ao ouvir Jackson do Pandeiro cantando o rojão Sebastiana, de Rosil Cavalcanti, que diz: “ela veio com uma dança diferente”.

 

            Extasiou o Planeta Terra!

 

            Brincadeira à parte, o fato concreto é que ambos apresentaram notáveis coincidências no seu breve existir. Nosso Jackson viveu apenas 63 anos, e o Jackson americano, só 50. E mais: ambos eram negros, ambos nasceram sob o signo de Virgem, ambos se chamavam José, ambos sucumbiram vítimas de problemas cardíacos, ambos faleceram sob o signo de Câncer, ambos tiveram o apogeu de suas vidas em 1982.

 

            Naquele ano, Jackson do Pandeiro chegou ao ápice, ao deixar a vida terrena e transportar-se para o Mundo Racional, que ele tanto louvou nos rojões Alegria, Minha Gente, e A Luz do Saber, ambos de João Lemos. Michael Jackson, por seu turno, atingiu o cume de sua carreira artística no mesmo ano, ao lançar o álbum Thriller, que vendeu inacreditáveis 100 milhões de cópias!

 

            E as coincidências param por aqui!

 

            Com o incrível sucesso de Thriller, Michael Jackson firmou-se como o Rei do Pop, mas, em 1987, apenas cinco anos depois, as vendas do álbum Bad só atingiram a casa dos 30 milhões. Era a queda. Michael enfrentou obstáculos para acompanhar as novas tendências da música negra, como o rap e o hip hop, advindo disso as esquisitices em que mergulhou, do conhecimento de todos.

 

            Enquanto que o nosso Jackson, ah, o nosso Jackson!

 

            Em vida, teve de enfrentar fortíssimas inovações como o rock, a bossa nova, o iê-iê-iê, a jovem guarda, a nova MPB, o tropicalismo, os festivais com peças de laboratório. Depois de falecido, sua música suplantou a lambada, a axé-music, o pagode, o sertanejo, o brega e o forró plastificado.

 

            O ano de 2036 está longe! Bem distante! Faltam 27 longos anos para que se chegue lá! Será que as gerações existentes naquele longínquo futuro ainda reservarão para Michael Jackson o mesmo fervor, já não digo de quando do lançamento de Thriller, mas o de 2009, reacendido com o seu precoce desaparecimento?

 

            Faz 27 anos que Jackson do Pandeiro nos deixou, e sua música e o seu estilo estão mais presentes do que nunca. A grande Nação Nordestina ainda o mantém perene em sua criação forrozeira. Os exemplos a seguir dão uma ideia do enorme elenco dos grandes artistas que o têm como uma de suas referências musicais.

 

            Dentre os veteranos, ainda gloriosos na estrada, Elba Ramalho, Gilberto Gil, Trio Siridó, Dominguinhos, Zé Ramalho, Alceu Valença, Cecéu, Genival Lacerda, João Silva, Nando Cordel, Zenilton, Clemilda, Jorge de Altinho, Chiquinho Calixto, Terezinha do Acordeom, Severo.

 

            Na nova geração, a turma não para de crescer: Cezinha, Flávio Leandro, Bia Marinho, Hélio Donato, Anchieta Dali, Nena Queiroga, Josildo Sá, Rogério Rangel, Júnior do Bode, Cláudio Moreno, Ébano Nunes, Greg Marinho, Silvério Pessoa, Trio Virgulino, Trio Sabiá, Nádia Maia, O Bando de Maria, Trio Araripe, Adelmo Farias, Flávio José, Irah Caldeira, Kelly Rosa, Maciel Melo, Maria Dapaz, Mastruz com Leite, Novinho da Paraíba, Petrúcio Amorim, Cristina Amaral, Targino Gondim, Xico Bizerra, Santanna, o “Cantador”, Júnior Vieira, Eliezer Setton. São tantos!

 

            Hoje, 31 de agosto de 2009, quando lhes escrevo este capítulo, Jackson do Pandeiro, nosso eterno ídolo, completa 90 anos! E, ao ver a magnífica relação de artista acima citados e outros mais prestando-lhe justíssimo preito de homenagem e nele se inspirando, é com inexcedível entusiasmo que inflo o peito para proclamar:

 

            – Jackson do Pandeiro é imortal!

 

            Eu mesmo, do alto dos meus 73 anos, sem dotes artísticos e vocais para o canto, faço questão de propagar o nome de Jackson do Pandeiro por todo o lugar aonde vou. E foi o que aconteceu em 2003, na Praia da Pipa (RN), apoiado por excelente Trio Nordestino local, quando dei um grande espetáculo, cantando seus maiores sucessos, para a multidão de banhistas que me aplaudia.

 

             E pedia bis!

 

Para relembrarmos sua alegria de viver, ouçamos o Rei do Ritmo interpetando o rojão Sina de Cigarra:

 


De Balsas Para o Mundo sexta, 08 de julho de 2022

FLORIANO, PAIXÃO QUE SE NÃO LIMITA
FLORIANO, PAIXÃO QUE SE NÃO LIMITA

Raimundo Floriano

(Publicado em 2007)

 

 Floriano em 1949: Praça da Matriz 

            Não existe balsense mais florianense da gema do que eu. Desde o meu nascimento, a palavra Floriano soou-me como melodia vinda do céu. E não era para menos. Seu Rosa Ribeiro, meu saudoso pai, homenageando sua terra natal, nomeara-me Raimundo Floriano.

 

            Desde cedo, aprendi a orgulhar-me desse nome. Meus irmãos mais velhos, que estudavam em Floriano, vinham de férias falando nos mágicos encantos da cidade. Assim, eu ansiava pela chegada de minha vez de conhecê-la.

 

            No dia 5 de fevereiro de 1949, aos 12 anos de idade, embarquei no motor Pedro Ivo, rumo ao estudo, ao progresso e ao desconhecido. Logo em Uruçuí, onde o Rio Balsas desemboca no Parnaíba, aquele mar de água. E nele, uma amostra do que seria o porvir: o vapor Brasil – para mim, um navio –, sob o comando do florianense Seu Antônio Anísio, rebocando três imensas barcas, fazia manobras para aportar. No dia 8, desembarquei na rampa de Floriano.

 

            Aguardava-me um estivador chapeado previamente contratado por minha Tia Maria Isaura, moradora à Rua Fernando Marques, 698, para onde seguimos, ele com minha mala e o saco da rede, e eu com o meu assombro diante de tanta coisa nova que se descortinava ante meus olhos.

 

            Bem na rampa, uma frota de jumentos, pertencente a Dona Inês Angelim, carregada de ancoretas d’água para fornecimento à população, subia, em zigue-zague, íngreme ladeira, sabedoria asinina que logo seria transmitida a este matuto, grande admirador dos jegues. Mais adiante, a rua calçada, o meio-fio, a arborização, a casa de Seu Tiago Roque, a Praça da Matriz, a Avenida, os sobrados dos carcamanos, bicicleta com um menino em riba dela, as carroças de Seu Salomão Mazuad, o Riacho do Gato e o Riacho da Onça passando por dentro da metrópole.

 

            Daí pra frente, novos impactos: o Ginásio Santa Teresinha, a Escola Normal Regional, o Cine Natal e outros primores que se me apresentavam, tais como luz elétrica, sorvete, picolé, gelo em barra, gibi, e carro, muito carro, os caminhões de Seu Arudá Bucar, ônibus e jipes.

 

            Se eu pudesse determinar qual a Oitava Maravilha do Mundo, não titubearia em decretar que seria o serviço de alto-falantes, mais conhecido como amplificadora. Em Floriano, havia duas. A Amplificadora Florianense, “a voz líder e potente da cidade”, nas palavras do seu locutor, o Defala Attem, e a Amplificadora do Chico Reis, “a voz do comércio, a maior”, como apregoava o locutor Almir Reis, filho do dono.

 

            Cinema era pago, picolé era pago, sorvete era pago, gibi era pago, mas a amplificadora era diversão acessível a qualquer bolso, mesmo ao mais desprovido. Bastava ter ouvidos e atenção.  Uma saía do ar e, ato contínuo, a outra emendava, presenteando-nos com os mais belos sucessos musicais da moda. Essas duas amplificadoras foram, em parte, as responsáveis pelo amor que tomei pela Música Popular Brasileira, pela memória musical que hoje me proporciona meio de ocupar meu ocioso tempo de aposentado, fazendo-me, pelo Orkut, um internauta intensamente procurado por aficionados do mundo inteiro, que me consideram o mais completo, atualizado e atento colecionador, no âmbito da Música Militar, do Carnaval Antigo e do Forró.

 

            Indeléveis na minha memória são os prefixos das duas emissoras. A Amplificadora Florianense iniciava e encerrava seus trabalhos com o dobrado Batista de Melo, de Mathias de Almeida. A Amplificadora do Chico Reis, com o dobrado Antônio José de Almeida, de Horácio Casado.

 

            Quando comecei a ganhar dinheiro, muito tempo depois disso, e pude comprar meu primeiro som, cuidei logo de amealhar essas relíquias. Pena que, neste ano de 2007, ao completar 71, já não encontre pessoas daquela época para trocarmos ideias, tirarmos dúvidas, contarmos reminiscências, matarmos saudades, ouvirmos os sons que marcaram nossas adolescências. E fico telefonando a esmo, na vã esperança de lograr conexão com algum interlocutor contemporâneo, unzinho que seja.

 

            Sossega, coração!

 

            Morei lá apenas um ano. Em 1950, fui estudar em Teresina. Mas minha benquerença, renitente que é, recusou-se a partir.

 

            Agora, no seu 110º Aniversário, não titubeio ao afirmar, sem medo de erro:

 

Em 1949, Floriano, a minha querida xará, era assim!


De Balsas Para o Mundo quinta, 12 de maio de 2022

JACKSON NÃO MORREU (DO LIVRO DE BALSAS PARA O MUNDO)
JACKSON NÃO MORREU

Raimundo Floriano

(Publicado em 14.04.17)

 

 

Nosso ídolo

 

            Calmaí, minha gente!

 

             Não me refiro ao compositor, cantor e dançarino americano Michael Joseph Jackson (29.08.1958/26.06.2009), o Michael Jackson, o Rei do Pop, que presentemente todo o mundo chora. Reporto-me ao músico, compositor e cantor brasileiro e paraibano José Gomes Filho (31.08.1919/10.07.1982), o Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo, que ora o meu Nordeste canta.

 

            Jackson do Pandeiro, logo no início da carreira, chamou-nos a atenção pela forma peculiar de cantar seus forrós e dividir as sílabas de modo nunca antes ouvido no cenário forrozeiro deste país.

 

            Michael Jackson também assombrou as plateias ao dançar de um jeito novo. Dando passos à frente, mas andando pra trás, levou-nos até a supor que, para inventar essa coreografia, dum jeito que Fred Astaire, Gene Kelly e Elvis Presley jamais imaginaram, pode ter-se inspirado ao ouvir Jackson do Pandeiro cantando o rojão Sebastiana, de Rosil Cavalcanti, que diz: “ela veio com uma dança diferente”.

 

            Extasiou o Planeta Terra!

 

            Brincadeira à parte, o fato concreto é que ambos apresentaram notáveis coincidências no seu breve existir. Nosso Jackson viveu apenas 63 anos, e o Jackson americano, só 50. E mais: ambos eram negros, ambos nasceram sob o signo de Virgem, ambos se chamavam José, ambos sucumbiram vítimas de problemas cardíacos, ambos faleceram sob o signo de Câncer, ambos tiveram o apogeu de suas vidas em 1982.

 

            Naquele ano, Jackson do Pandeiro chegou ao ápice, ao deixar a vida terrena e transportar-se para o Mundo Racional, que ele tanto louvou nos rojões Alegria, Minha Gente, e A Luz do Saber, ambos de João Lemos. Michael Jackson, por seu turno, atingiu o cume de sua carreira artística no mesmo ano, ao lançar o álbum Thriller, que vendeu inacreditáveis 100 milhões de cópias!

 

            E as coincidências param por aqui!

 

            Com o incrível sucesso de Thriller, Michael Jackson firmou-se como o Rei do Pop, mas, em 1987, apenas cinco anos depois, as vendas do álbum Bad só atingiram a casa dos 30 milhões. Era a queda. Michael enfrentou obstáculos para acompanhar as novas tendências da música negra, como o rap e o hip hop, advindo disso as esquisitices em que mergulhou, do conhecimento de todos.

 

            Enquanto que o nosso Jackson, ah, o nosso Jackson!

 

            Em vida, teve de enfrentar fortíssimas inovações como o rock, a bossa nova, o iê-iê-iê, a jovem guarda, a nova MPB, o tropicalismo, os festivais com peças de laboratório. Depois de falecido, sua música suplantou a lambada, a axé-music, o pagode, o sertanejo, o brega e o forró plastificado.

 

            O ano de 2036 está longe! Bem distante! Faltam 27 longos anos para que se chegue lá! Será que as gerações existentes naquele longínquo futuro ainda reservarão para Michael Jackson o mesmo fervor, já não digo de quando do lançamento de Thriller, mas o de 2009, reacendido com o seu precoce desaparecimento?

 

            Faz 27 anos que Jackson do Pandeiro nos deixou, e sua música e o seu estilo estão mais presentes do que nunca. A grande Nação Nordestina ainda o mantém perene em sua criação forrozeira. Os exemplos a seguir dão uma ideia do enorme elenco dos grandes artistas que o têm como uma de suas referências musicais.

 

            Dentre os veteranos, ainda gloriosos na estrada, Elba Ramalho, Gilberto Gil, Trio Siridó, Dominguinhos, Zé Ramalho, Alceu Valença, Cecéu, Genival Lacerda, João Silva, Nando Cordel, Zenilton, Clemilda, Jorge de Altinho, Chiquinho Calixto, Terezinha do Acordeom, Severo.

 

            Na nova geração, a turma não para de crescer: Cezinha, Flávio Leandro, Bia Marinho, Hélio Donato, Anchieta Dali, Nena Queiroga, Josildo Sá, Rogério Rangel, Júnior do Bode, Cláudio Moreno, Ébano Nunes, Greg Marinho, Silvério Pessoa, Trio Virgulino, Trio Sabiá, Nádia Maia, O Bando de Maria, Trio Araripe, Adelmo Farias, Flávio José, Irah Caldeira, Kelly Rosa, Maciel Melo, Maria Dapaz, Mastruz com Leite, Novinho da Paraíba, Petrúcio Amorim, Cristina Amaral, Targino Gondim, Xico Bizerra, Santanna, o “Cantador”, Júnior Vieira, Eliezer Setton. São tantos!

 

            Hoje, 31 de agosto de 2009, quando lhes escrevo este capítulo, Jackson do Pandeiro, nosso eterno ídolo, completa 90 anos! E, ao ver a magnífica relação de artista acima citados e outros mais prestando-lhe justíssimo preito de homenagem e nele se inspirando, é com inexcedível entusiasmo que inflo o peito para proclamar:

 

            – Jackson do Pandeiro é imortal!

 

            Eu mesmo, do alto dos meus 73 anos, sem dotes artísticos e vocais para o canto, faço questão de propagar o nome de Jackson do Pandeiro por todo o lugar aonde vou. E foi o que aconteceu em 2003, na Praia da Pipa (RN), apoiado por excelente Trio Nordestino local, quando dei um grande espetáculo, cantando seus maiores sucessos, para a multidão de banhistas que me aplaudia.

 

             E pedia bis!

 


De Balsas Para o Mundo quarta, 06 de abril de 2022

MEIRA FILHO, A VOZ DO BRASIL
MEIRA FILHO, A VOZ DO BRASIL

Raimundo Floriano

(Publicado em 25.09.16)

 

 

Senador Meira Filho - Acervo Câmara dos Deputados

 

            Sempre fui amarrado num som, pouco ou nada representando para mim a imagem, especialmente a televisiva. Quer ver-me puto dendascalças, com cara de quem recebe presente de grego, amarelo de sem-jeitismo, então me oferte um DVD. Nem que seja de sacanagem, nem que seja de mulher pelada.

 

            Quando comecei a ganhar meu dinheirinho, isso no início de 1958, lá em Belo Horizonte, tratei logo de comprar uma radiola – mistura de rádio com vitrola – e iniciei a hoje respeitável e propalada coleção de registros sonoros. Ao chegar a Brasília, em dezembro de 1960, morando no alojamento do meu quartel, adquiri um radinho de pilha, do tamanho duma rapadura, da marca Hitachi, valente pra baralho, que pegava todas as estações locais de dia, e muitas do resto do país e do exterior à noite.

 

            E foi aí que conheci o Meira Filho.

 

            Ele tinha um programa na Rádio Nacional de Brasília, que ia das 5 às 9 horas da manhã, denominado O Dia Começa Com Música, cobrindo todo o território nacional e ouvido igualmente em diversas partes do mundo. Seu prefixo, que também entremeava sua fala e os comerciais, era um samba forrozado instrumental pra lá de arretado que, pelo fato de representar muito bem a Capital recém-nascida, foi batizado e consagrado pelo povo nordestino com o nome de Nacional Brasília. Guardo-o em meu acervo, na interpretação de Kariri e Seus Oito Baixos, sanfoneiro de Timom (MA).

 

            Diariamente, eu tinha duas oportunidades de ouvir o Meira: pela manhã, no seu programa campeão de audiência, e à noite, às 19 horas, no A Hora do Brasil, hoje A Voz do Brasil, da qual ele foi, durante 35 anos, um dos mais atuantes locutores, sendo também o locutor oficial da Presidência da República.

 

            O Dia Começa Com Música era, em sua essência, um programa de recados, funcionando como o telefone de que dispunham os nordestinos que vieram construir a Nova Capital e suas famílias distantes, para se comunicarem. Recebeu mais de seis milhões de cartas, a maioria das quais era respondida no ar. Houve até o caso de um fazendeiro abonado que, um dia, chegou de motorista particular à casa do Meira, lhe beijou as mãos e se ajoelhou aos seus pés, agradecendo-lhe por ter localizado sua filha que, desmemoriada, se achava perdida em Brasília.

 

            Até meados dos anos 60, Meira Filho animava as tardes de sábado candangas com um programa de auditório ao vivo, na TV Nacional, repleto de variedades, com imenso sucesso. Em escala menor – pelo menos em criatividade –, seria hoje o Domingão do Faustão. Tanto no rádio quanto na televisão, Meira foi o primeiro animador a fazer o emprego de uma buzina, no que foi imitado mais tarde pelo famoso Chacrinha.

 

            Quando comecei a sair pelas ruas com o meu trombone de vara, tocando para alegrar o povão, tive no Meira Filho um grande incentivador, que me colocava no ar onde quer que me encontrasse, e deixava que eu falasse à vontade nas entrevistas.

 

            Ele trabalhou em quase todas as emissoras de rádio da Capital. O Programa do Meira, na Rádio Planalto, já nos anos 80, detinha espetacular audiência. Severino, taxista amigo meu, falou-me que, certa vez, na fila do Aeroporto, contou pra mais de 30 táxis todos sintonizados nele.

 

            Por isso mesmo, Meira Filho foi o primeiro senador eleito pelo Distrito Federal, com votação esmagadora, sem fazer campanha e sem gastar um tostão sequer em propaganda eleitoral. Não sendo, porém, a política a sua praia, e dela desiludido, deixou de concorrer à reeleição – que lhe seria garantida – no final do mandato.

 

            João Assis Meira Filho nasceu em Teproá-PB, a 24.10.1922, e faleceu em Brasília-DF, a 08.06.2008.

 

            Deixou 5 filhos, 12 netos e 2 bisnetos. Compareci à sua Missa de Sétimo Dia, onde pude constatar que ele deixou, não apenas essa bela família, mas milhares de brasileiros anônimos, agradecidos por terem sido de alguma forma, em algum momento, por ele ajudados.

 

            Tendo ele dedicado todo o tempo profissional de sua vida à atividade radiofônica, posso afirmar, sem medo de errar, que o Rádio Brasileiro teve na pessoa de Meira Filho a sua perfeita tradução.


De Balsas Para o Mundo quarta, 13 de outubro de 2021

O PACIENTE FISIOTERÁPICO - HOMENAGEM AO DIA DO FISIOTERAPEUTA, 13 DE OUTUBRO

 

 
O PACIENTE FISIOTERÁPICO

O PACIENTE FISIOTERÁPICO

Raimundo Floriano

(Publicado em 21.04.17)

 

 

Símbolo da Fisioterapia

 

            Você tem uma ideia do que representa o trabalho dos fisioterapeutas para o bem da humanidade? Não? Pois não se desespere! Qualquer dia, talvez, você vai ter um em sua vida!

 

            Esses caras fazem mágica! Arrisco essa afirmação porque não usam, no cumprimento do seu mister, qualquer tipo de medicamento invasivo ao corpo do paciente!

 

            Quantos milhares de vezes eu passei ali pela esquina do Edifício Rolimam, na 513 Sul, onde se localiza a Orto-Sul, e não imaginava a natureza dos prodígios que lá se realizavam! Até que um dia!

 

            Fui operado dum cisto profundo na virilha esquerda, em 14.12.04, cirurgia delicada, lesiva ao nervo femoral, após a qual perdi completamente movimentos da perna.

 

            No dia 28.01.05, sarado o local da incisão, iniciei a fisioterapia, na Orto-Sul, três horas e meia diárias.

 

            E aí, comecei a conhecer e a avaliar a importância e a qualidade do trabalho daqueles abnegados profissionais.

 

            Repito, quem passa por aquela esquina, nem imagina que lá dentro, no mínimo, cinquenta pessoas, com lesões diversas, recebem, ao mesmo tempo, tratamento personalizado. São vários profissionais fixos, todos com curso superior, e muitos estagiários.

 

            Ao longo de mais de seis meses, ali convivi com uma boa companheirada de aposentados da Câmara: João Nerielle Filho, Wilma Bilibio, Antônio Neuber Ribas, Fernando Soares da Rocha, Terson Carvalho de Araújo, Clodoaldo Abreu da Silveira, esses com dodóis diversos.

 

            A 02.04.05, iniciei, na Academia BOCA, três vezes por semana, sessões de hidroterapia com a Dra. Karina Ribeiro, fisioterapeuta, com quem eu já fizera RPG - Reeducação Postural Global em problemas anteriores.

 

            A Academia BOCA, fundada em 1989, é assim conhecida pelo apelido do seu proprietário, Paulo Henrique Guimarães, o Professor Boca. Por ser completa, tornou-se, em pouco tempo, uma referência da atividade física em Brasília. Localizada na Quadra 906 Sul, é provida de vagas para cerca de 70 automóveis, no seu pátio, além do Estacionamento 10 do Parque da Cidade, nos fundos, que dela se separa apenas pela pista que o circunda.

 

            Sua piscina, coberta e aquecida, com 25 m de comprimento por 12,5 m de largura, permite que, simultaneamente, nela se realizem três tipos de atividades: natação, hidroginástica e hidroterapia.

 

            Na primeira sessão com a Dra. Karina, fui tomado de imensa confiança, isso porque não havia o perigo de queda nos diversos movimentos e alongamentos exigidos.

 

            Paralelamente à hidroterapia, uma hora por dia, três vezes por semana, continuava eu na Orto-Sul. Após 140 sessões diárias de fisioterapia, deixei aquela clínica, passando a receber tratamento personalizado, também com a Dra. Karina, no seu consultório.

 

            E aí, minha recuperação começou a se fazer notar! A cada sessão, um novo progresso! No dia 28 de junho de 2005, voltei a dirigir!

 

            Em agosto, fui encaminhado à Academia RECOR, onde já malhava há quase quatro anos, para retomar os exercícios aeróbicos – esteira, bicicleta sentado, bicicleta em pé e cross –, musculação, uma hora e meia por dia, com alongamentos antes e depois, continuando com a hidroterapia na Academia BOCA.

 

            Na RECOR, recebi, diariamente, atendimento quase que personalizado do Professor Jefferson Tobias, a quem só tenho palavras de gratidão por tudo o que fez para o meu completo restabelecimento físico.

 

            Assim ficou meu tempo ocupado: hidroterapia na BOCA, fisioterapia no consultório da Dra. Karina e ginástica na RECOR.

 

            Se todos os profissionais das áreas acima referidas devem ser altamente capacitados, do paciente também são exigidos certos predicados, como persistência, assiduidade e muita paciência!

 

            Para caminhar, me apoiava em duas muletas. Certo dia, a Dra. Karina me proibiu de entrar na BOCA com elas. Passei-me para a bengala, que, não demorou, foi-me também vetada pela doutora. Era sinal de que estava quase bom.

 

            E devo tal progresso ao seu desvelo, aos cuidados a mim dispensados durante todo o desencadear desse longo tratamento. Para deixar patenteado o quão sou-lhe grato, postei este depoimento em sua página no Orkut:

 

“Karina, a doutora, entrou em minha existência no começo de 2004. Desde então, entreguei-lhe preciosas porções de mim: coração, braços, peitos, glúteos – ‘encaixe o bumbum!’, comanda, na RPG –, coxas, energia – ‘pedale com força!’, dispara, na Hidro – e, por fim, a perna esquerda. Às vezes, nas sessões, sem que a gente lhe ‘pise nos calos’, ela se faz de durona, ao cometermos pequenos atrasos ou exercitarmos o saudável esporte da tagarelice. E fecha a cara, briga, bronqueia, o que retribuímos com igual ferocidade. Mas depois ficamos silentes, murchos, esperando que ela nos fuzile com um dos seus angelicais sorrisos, para que a paz se restabeleça. Pois todos sabemos que ali está a perfeccionista e também a garotona, a linda flor, empenhada em proporcionar-nos melhor qualidade de vida, a cura, enfim. Ao completar 100 apresentações sob sua batuta na piscina da BOCA, quero aqui registrar o meu elevado apreço e agradecer-lhe pelo tanto de bem que tem feito ao meu corpo, ao meu espírito, ao meu viver.”

 

 

Dra. Karina: devoção e eficácia

 

            Hoje, continuo nas duas academias, acho que para todo o tempo de vida que Deus ainda me conceder. Na malhação, por exigência do meu cardiologista, e na hidroterapia, porque, superado o problema na perna esquerda, surgiram-me outros, como artrose e osteoporose.

 

            Afortunadamente, houve maravilhosos progressos. Nos meus 70 anos, completados a 3 de julho de 2006, dancei forró com 25 damas.

 

            Encaro qualquer escada na subida, embora na descida tenha de tomar cuidado, pé ante pé. Essa descida seria facilitada se as escadas de Brasília, mercê da escola arquitetônica que caracterizou nossa cidade, não fossem quase todas uma o focinho da outra: sem corrimão!

 

            Queria ver como esses gênios que projetaram nossos edifícios se arranjariam numa delas, aos 100 anos de idade! No meu caso, a melhor posição para a descida é de lado. Quando dá pane no elevador, que sufoco a descida desde o 4º Andar onde moro!

 

            Ao enumerar os predicados que deve ter o paciente fisioterápico, esqueci-me de um: o bom humor! Todos os que se encontram dentro daquela piscina são possuidores de um sentimento em comum: a dor! Para suportá-la melhor, nada mais apropriado que a descontração, a sadia brincadeira. Por isso, quero mencionar aqui os nomes de alguns colegas que tornaram tantas horas de atividade fisioterápicas mais toleráveis e até divertidas.

 

            São ou foram eles: Ondina Melo, Marcos Chagas, Wanda Moraes, Carlos Gonçalves, Neuda Macedo, Israel Tavares, Leonor Gonçalves, Fernando Moura, Cléia Almeida, Valdemir Roggia, Maria Angélica, Ariday Emília, Paulo Furtado, Mariângela Junqueira, Maria do Carmo, Adelina Nardelli, Pedro Cunha, Solange Tavares, Lúcia Carrozzo, João Veloso, Vera Espíndola, Renato Dantas, Maria Rita e Moisés Werbert.

 

            Em setembro de 2007, a Dra. Karina se afastou, grávida de gêmeos, e não encontrou, até agora, um modo de conciliar a profissão com as atividades de nova mãe.

 

            Desde então, a fisioterapeuta Bárbara Priscila, que a substituiu, passou a cuidar de mim na hidroterapia. Como a Dra. Karina, era loura, eu a chamava de Feiticeira. E, sendo a Dra. Bárbara Priscila morena, pus-lhe o apelido de Tiazinha. A ela devo o muito de minha permanência nesse tratamento, devido à sua alegria contagiante, sempre com um sorriso para brindar seus pacientes logo nas primeiras horas das atividades, que começam às 7 da manhã, e no decorrer delas. Eficiência chegou ali e parou!

 

            Ah, ia-me esquecendo. Há mais ou menos um ano, foi admitida como auxiliar da Dra. Bárbara a chinesa Hoa Lim (pronuncia-se Roá), estagiária, mas já demonstrando grande pendor para essa bela profissão.

 

            Saindo um pouco do sério, vou repetir essa piada um tanto velha, mas que funciona com os fisioterapeutas recém-formados ou ainda estudantes. Pergunta-se a qualquer um deles:

 

            – Sabe por que o símbolo da Fisioterapia são duas cobras?

 

            O novato responderá:

 

            – Não! Isso não me foi ensinado na Faculdade!

 

            Aí, a gente explica:

 

            – É porque se o paciente ficar curado, o fisioterapeuta cobra; se não ficar, cobra também!


De Balsas Para o Mundo sexta, 05 de maio de 2017

AGRADECIMENTOS (DO LIVRO DE BALSAS PARA O MUNDO)

AGRADECIMENTOS

Raimundo Floriano

 

 

            Chegando ao final deste trabalho, quero expressar meu reconhecimento ao incentivo e à ajuda que recebi das mais diversas fontes, pessoas e entidades, para que me fosse possível alcançar o objetivo de lançar nova criação literária no cenário editorial.

 

            Tratando-se de um livro baseado todo ele em fatos históricos e flagrantes da vida real, muito me valeram os compêndios já existentes, os depoimentos de pessoas mais vividas e, consequentemente, mais experientes, algumas delas personagens aqui retratadas, e todas as formas de cooperação e interatividade, no intuito de que fosse atingida a meta desejada.

 

            Meus agradecimentos, portanto, a todos os que adiante são mencionados, em ordem alfabética:

 

            Batalhão da Guarda Presidencial - BGP - Laboratório Fotográfico – Forneceu-me a foto de sua Banda de Corneteiros.

 

Batalhão de Polícia do Exército de Brasília - Batalhão Brasília - BPEB - Laboratório Fotográfico – Forneceu-me a foto de sua Banda de Música.

 

            Bernardo Melo Filho - Meu amigo dos velhos tempos - Empresário teresinense – Ajudou-me a recompor meus primeiros passos ao chegar a Teresina, em 1950, assim como reavivou-me a memória quanto aos nomes das novas amizades ali construídas.

 

            Câmara dos Deputados - Centro de Documentação e Informação – Enviou-me a fotografia do Senador Meira Filho.

 

            Cesário Barbosa Bonfim, o Barbosinha - Bacharel em Direito, funcionário público e cearense radicado em Balsas desde a infância – Autorizou-me a utilizar seu texto sobre a balsa, sem a ajuda do qual me seria dificílimo discorrer acerca do tema.

 

            Cândida Corrêa Côrtes Carvalho - Jornalista mineira, irmã de Sebastião Corrêa Côrtes – Enviou-me a foto e dados biográficos do seu irmão.

 

            Delisa Pessoa La Noce - Filha do Comandante Félix Pessoa – Forneceu-me a fotografia e dados para ilustrar o perfil de seu pai.

 

            Elba Souza de Albuquerque e Silva - Minha filha - Bacharel em Direito e Letras - Tradução e Analista Judiciária do STF – Complementou o trabalho do revisor ortográfico do Word.

 

            Eloy Coelho Netto (In memoriam) - Jurista, professor, poeta, romancista e historiador balsense – Seu livro História do Sul do Maranhão foi a base para os fatos históricos referentes aos primórdios de Balsas, e seu romance Nova Época narrou, poeticamente, a chegada do primeiro vapor.

 

            Ernani Martins Barros - Uruçuiense, filho do mecânico e armador José Martins – Enviou-me a foto do motor Albatroz, pertencente a seu pai.

 

            Família Leite Pessoa - Prole do Comandante Félix Pessoa – Enviou-me as fotos do vapor-motor Rio Balsas.

 

            Geminiano Farias, o Gemi - Meu amigo de infância, músico – Muniu-me de informações várias sobre o ambiente musical balsense do passado.

 

            João Ribeiro da Silva Sobrinho - Meu primo - Funcionário público – Forneceu-me a foto de Tio Cazuza, seu pai, que ilustra o seu perfil.

 

            Jorge Rocha - Músico - Meu amigo e assessor em Brasília para assuntos diversos, especialmente no campo do som, da imagem e da computação gráfica – Encontrou soluções quase impossíveis, como obter a figura da barca Macapá, extraindo-a de uma fita VHS, e montar a foto frontal da Estante A de CDs, embutida em parede de estreito corredor.

 

            Jornal do Inatel - Sediado em Santa Rita do Sapucaí-MG – Forneceu-me o texto do capítulo O Telefonador e, gentilmente, deu-me aceitável retorno quanto às minhas ponderações.

 

            José Albuquerque e Silva, o Carioquinha - Meu irmão - Poeta e escritor – Concedeu-me permissão para utilizar o texto do seu livreto Comandante João Clímaco, forneceu-me vastas informações sobre os Comandantes Luiz Barbosa e Félix Pessoa e orientou-me durante todo o desencadear desta obra.

 

            José Rodrigues dos Santos, o Comandante Puçá - Meu amigo – Enviou-me sua foto e elaborou o texto que ilustra o seu perfil.

 

            Juarez Leite - Artista plástico, caricaturista – Além de suas ilustrações, demonstrou alto poder de imaginação ao desenhar embarcações e pessoas por ele desconhecidas.

 

            Lúzia Maria Alves Mendes - Funcionária pública – Forneceu-me valiosos dados biográficos sobre Martinho Mendes, seu pai.

 

            Maria de Lourdes Vilanova Silva Santos, a Lourdinha - Minha amiga e prima por afinidade – Reavivou-me a memória sobre fatos balsenses do passado e enviou-me dados sobre o último dia de Martinho Mendes.

 

            Maria do Socorro Ferreira Vieira - Minha amiga e assessora para assuntos diversos em Balsas – Acudiu-me a todo instante, localizando pessoas que pudessem me fornecer informações sobre vários dos temas aqui referidos e também me enviou a miniatura duma balsa e algumas fotos de buritizeiros, para orientação do meu desenhista.

 

            Maria Luísa Barbosa Coelho, a Marilu - Minha prima - Médica – Forneceu-me as fotos e os dados biográficos que ilustram o perfil do Comandante Luiz Barbosa, seu pai.

 

            Maria Violeta da Silva Kury - Minha prima – Forneceu-me dados complementares para a redação do perfil de Cazuza Ribeiro, seu pai.

 

            Noêmia Coelho da Silva - Viúva do Comandante João Clímaco, o Tio Joãozinho – disponibilizou as fotos que ilustram o seu perfil.

 

            Paulão do Varadero - Meu amigo - Funcionário público e compositor do Pacotão – Concedeu-me permissão para transcrever sua crônica Fideles Se Foi à Francesa.

 

            Paulo de Tarso Fonseca - Jurista, Procurador da Justiça Maranhense, professor – Sua carta-crônica sobre o músico Martinho Mendes é uma bela peça literária enriquecendo meu trabalho.

 

            Pedro Ivo de Sousa e Silva - Contador, meu primo – Seu texto com dados biográficos de Cazuza Ribeiro, seu pai, foi de capital importância, e seu esboço para o desenho da balsa serviu de base para que o meu ilustrador conseguisse a imagem final.

 

            Prefeitura Municipal de Balsas – O conteúdo de sua página na Internet foi-me de extrema valia, na confirmação de fatos e datas.

 

            Rafael da Fonseca Rocha (In memoriam) - Bancário e escritor piauiense – Seu livro Floriano de Tão Belas Recordações subsidiou-me com valiosas informações sobre o estaleiro do armador Afonso Nogueira.

 

            Silvana Maria Sócrates Teixeira - Professora da Escola de Música de Brasília – Elaborou a partitura do dobrado Padre Cícero.

 

            Teodoro Ferreira Sobral Neto - Empresário e escritor florianense – Disponibilizou-me todo o acervo de fotos do seu precioso museu náutico. Com seu livro Floriano de Hoje e de Ontem, muito me auxiliou na obtenção de indispensáveis dados.

 

            Valdice Pereira Correia da Silva - Digitadora – Teve a seu cargo a formatação técnica do meu texto.

 

            Wesley Souza Santos - Artista plástico, tatuador - Proprietário do estúdio Wesley Tattoo – Teve a seu cargo parte das ilustrações e caricaturas.

 

 

            Com a cooperação de todos os acima citados, e contando sempre com as bênçãos de Deus, venci o árduo caminho percorrido, ultrapassei os inúmeros obstáculos interpostos, testemunhei todo o desencadear da História e cheguei a bom termo. Por isso, nunca me canso de proclamar:

 

            – Deus é Pai!

 


De Balsas Para o Mundo segunda, 01 de maio de 2017

O LANÇAMENTO DO MEU JEGUE

O LANÇAMENTO DO MEU JEGUE

Raimundo Floriano

 

 

              Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro, diz a sabedoria popular, é o que todo e qualquer homem deve realizar no intuito de ter uma vida completa. Para cumprir inteiramente tal mandamento, faltava-me somente uma parte desse tripé: escrever um livro.

 

            Se bem que eu já andara batucando um pouco no setor. Era de minha autoria O Acordo PTB – PDS, coletânea de charges, lançada em 1981, edição esgotada. Escrevera Regras de Pontuação e Sinais de Revisão, manual editado pela Câmara dos Deputados para uso em suas dependências. Livro mesmo, esse estava faltando!

 

            As cobranças eram diárias. Não topava com um conhecido, parente, vizinho ou colega aposentado, que não ouvisse a pergunta fatal:

 

            – E o livro?

 

            Um dia, reuni tudo o que já publicara em diversos jornais e revistas, acrescentei mais umas coisinhas inéditas e me credenciei ao financiamento pelo Fundo da Arte e da Cultura - FAC, do Governo do Distrito Federal.

 

            O volume, com o título Do Jumento ao Parlamento, continha episódios reais por mim vividos desde a tenra infância, labutando com jumentos em Balsas, sertão sul-maranhense, até a aposentadoria como funcionário do Congresso Nacional, daí o nome.

 

            Para a minha surpresa e alegria, o FAC aprovou o projeto, financiando 1.000 exemplares. Aproveitando o fato de o material se encontrar na linha da produção da gráfica, a Editora Montreal, encomendei a tiragem adicional de 1.000, essa às minhas expensas. Assim, a primeira e única edição totalizou 2.000 volumes.

 

            No final de maio de 2003, a gráfica entregou-me os mil primeiros exemplares.

 

            Quase chorei quando vi o livro, pronto, acabado, bonitinho. Foi emoção quase incontida.

 

            Aquilo me dava a segurança para, dali em diante, prosseguir no mundo das letras, pois recebera o voto de confiança do GDF. Faltava-me a prova de fogo, o lançamento e, mais ainda, a venda do primeiro exemplar, que abriria as portas para que o meu trabalho ficasse conhecido pelo público leitor.

 

            Quem seria o primeiro a comprá-lo?

 

            Planejei dois lançamentos: o regional, em Balsas, em frente à Igreja Matriz de Santo Antônio, na noite de 12 de junho, durante o Festejo daquele que é o nosso Padroeiro; o nacional, em Brasília, em local e data ainda não escolhidos.

 

            Para a noite de autógrafos em Balsas, tive o incondicional apoio e preciosa ajuda de Isaura Fonseca, minha sobrinha, das Professoras Delzuíta Ramos e Marlene Garcez, e da agitadora cultural, Edilza Pereira, autora do Hino de Balsas.

 

            Com esse valioso suporte, viajei para Balsas em companhia de Veroni, minha mulher, ansioso quanto ao modo de como se daria essa minha estreia no mundo literário.

 

            No dia seguinte à minha chegada, as duas estações de televisão da cidade, TV Rio Balsas, afiliada à Globo, e TV Liberdade, afiliada ao SBT, entrevistaram-me, concedendo-me, cada uma, 10 minutos em seu horário nobre.

 

            Antecedendo essa minha debutação, Edilza promeveu magnífico show, reunindo 10 sanfoneiros do nosso sertão, cuja imagem faço questão de aqui registrar.

 

De pé: Marciano, Luiz Fininho, Pé de Ferro, Sebastião Lapa e Estevam 

Sentados: Raimundo Flores, Zé Baixinho, Mestre Riba, Pedro Baixinho e Evangelista

 

                     Logo após, Marlene Garcez me conduziu ao palco e procedeu à minha apresentação.

            Todo o espaço em frente e ao lado da Matriz estava tomado por imensa multidão que se acomodava de qualquer jeito, gente sentada ou em pé, naquela quermesse que ainda guarda um pouquinho das nossas raízes.

 

            Depois de proferir pequena saudação aos meus conterrâneos e aos romeiros, dirigi-me à mesa e dei início à sessão de autógrafos. Ao meu lado, apoiando-me, Edilza Pereira. Em outra mesa, Veroni, cuidando das vendas.

 

            O primeiro da fila, aquele tão ansiado, foi o meu amigo de infância Cosme Noleto, funcionário público em Brasília e que lá se encontrava, como todos os anos, para o Festejo.

 

Sentados: Cosme Noleto, Edilza e o autor. Ao fundo, as assistentes Bruna e Bianca

 

            Naquela noite, foram vendidos 49 exemplares. No dia seguinte, saíram mais 11. No nosso regresso, minha amiga Socorro Ferreira ofereceu-se para ficar com alguns volumes que, no decorrer do tempo, seriam procurados. Até agora, vendeu mais uns 100.

 

            Devo ressaltar aqui o apoio da família Fonseca Santos: todos os seis irmãos adquiriram seu exemplar, não se limitando a apenas um, para empréstimo aos demais após a leitura.

 

            O lançamento em Brasília ficou marcado para o dia 27 de agosto, no Salão Nobre da Camada dos Deputados, por deferência especial do seu Presidente.

 

 

            Foi uma noite de gala. Enviei convite para 500 pessoas e ofereci um coquetel aos presentes, com show musical paralelo estrelado por José Albuquerque, o Carioquinha, meu irmão, e o violonista Expedito Dantas, excelente amigo.

 

            O comparecimento foi extremamente satisfatório, com uma plateia eclética, na qual se encontravam deputados, senadores, meus familiares, amigos, colegas aposentados e funcionários da Casa e curiosos.

 

            Antônio Neuber Ribas, meu primeiro chefe na Câmara, fez a apresentação, seguida de minha saudação aos presentes. Prosseguindo, iniciou-se a sessão de autógrafos.

 

            O primeiro da fila foi Joaquim Nascimento, Procurador do Trabalho, meu amigo de longa data, marido da Inês, médica, e pai de Mariana e Daniel, meninos que cresceram junto com minhas filhas Elba e Mara, estudando todos no mesmo colégio, o Cor Jesu.

 

Joaquim Nascimento e o autor: sorte para o jumento

 

            Dessa vez, foram vendidas 180 unidades!

 

            Ana Alice da Costa e Silva, minha comadre e sobrinha, sócia da empresa A&C Eventos, graciosamente cuidou, com sua eficiente equipe, para que tudo resultasse no mais perfeito sucesso.

 

            Como declarei anteriormente, a edição total foi de apenas 2.000 exemplares. Para comercializá-los, coloquei-os em bancas de jornais e revistas espalhadas por todo o Distrito Federal e na Livraria Nobel, que se propôs a aceitá-los em consignação.

 

            Doei 150 exemplares para o próprio FAC, em contrapartida ao financiamento, e 300 para as diversas Unidades Militares onde tive a honra de servir.

 

            Também fiz questão de disponibilizar alguns volumes às principais bibliotecas do Distrito Federal, como a da Câmara dos Deputados, a do Senado Federal, a da Universidade de Brasília e à Biblioteca Demonstrativa de Brasília.

 

            Realizando noites de autógrafos em vários locais, como em João Pessoa-PB, na Associação dos Servidores Aposentados e Inativos da Câmara dos Deputados - ASA/CD, e em várias edições da Feira do Livro de Brasília, meu jegue teve, nesses 6 anos, sua edição esgotada.

 

            Assim, espero trilhar, a partir de 2010, com a publicação deste meu novo trabalho, a mesma gloriosa trajetória, inclusive com o lançamento em Balsas, sentindo, é claro, a ausência do Bispo Dom Franco Masserdotti, meu amigo e ilustre leitor, que prematuramente se foi.

 

            E sempre contando com a ajuda de Deus e as bênçãos de Santo Antônio.

 

Expedito e Carioquinha: show literomusical


De Balsas Para o Mundo sábado, 29 de abril de 2017

DESTRANCANDO A BOCA

DESTRANCANDO A BOCA

Raimundo Floriano

 

            Se eu fosse o Vili...

 

            É psicológico. É compulsão irresistível.

 

            Toda vez que embarco numa aeronave, este pensamento me assalta: “só não as aeromoças!” Se entro num bom restaurante, novamente a reflexão: “só não as garçonetes!” Mesmo ao visitar uma cozinha caseira, lá no meu sertão sul-maranhense, a ideia fixa se repete: “só não as empregadas!”

 

            Mas se eu fosse o Vili...

 

            O leitor deve estar estranhando o abuso dessas frases reticenciadas, mas eu me apresso em esclarecer, na forma adiante exposta.

 

            No jornal Voz Ativa, de outubro de 2003, meu amigo Vili Santo Andersen, colega aposentado da Câmara dos Deputados, inspiradíssimo poeta, escreveu interessante crônica sobre a longevidade dos varões de sua família, revelando a periodicidade – 11 anos, em ordem decrescente – com que seus antepassados partiram para o Além.

 

            Seu trisavô fizera a Grande Viagem aos 98 anos; seu bisavô, aos 87; seu avô, aos 76; seu pai, aos 65. Nessa sequência lógica, ele desencarnaria aos 54, ou seja, no dia 17 de junho de 1986.

Pois se eu fosse o Vili...

 

É isso mesmo, meus amigos, se eu fosse o Vili, se soubesse o dia exato em que se daria a minha defuncção – saída para a Eternidade –, naquela data, na condição de diabético e cardíaco, a quem tudo faz mal, lavaria a égua!

 

De início, tomaria um avião para o Nordeste e nele mandaria vir a outrora tão recusada bandeja. Bacon, queijo prato, ovo cozido, maionese e pão doce, tudo isso eu empurraria goela abaixo.

 

Ao desembarcar, procuraria almoçar num restaurante bem típico e pediria pitéus que há mais de duas décadas não ponho na boca: leitoa pururuca, paçoca, torresmo e goiabada com requeijão na sobremesa.

 

Falar em torresmo, meu amigo Zeiner Gontijo, viciado nesse petisco, vive me convidando para acompanhá-lo a um boteco que conhece no Venâncio 2000, onde se pode comê-lo desbragadamente, até que a banha escorra pelo beiço.

 

Já o meu fraterno Luiz Berto, Papa da Igreja Sertaneja, residente no Recife, esbalda-se, todos os sábados, no Mercado da Madalena, mandando pra dentro de si buchada de bode, rabada, dobradinha de porco e chouriço, tudo isso acompanhado de muita cerveja e pinga.

 

Mas voltemos ao assunto que acabo de interromper. É que não resisti ao impulso de mencionar esses dois grandes boca-destrancadores.

 

Na janta, como última refeição, comeria ovos fritos na manteiga, linguiça suína bem gordurosa e salgada, maria-isabel – arroz com carne seca, o carreteiro de minha terra – e, para rebater, um pedação de rapadura.

 

Se acaso lograsse me encontrar no meu Balsas Querido, acrescentaria ao pedido um frito bem azeitado de paca, tatu, cutia não!

 

 Nada disso, por mais daninho que pareça, pouco se me dava, pois não alteraria a implacável sina.

 

Então, saciado, repleto e refestelado, esperaria, feliz, o inexorável desfecho. Isento de pecado capital, entregaria a alma ao Criador, livre daquela terrível síndrome da culpa que atormenta todos os que caem na tentação de infringir sua dieta.

 

Não há arrependimento maior neste mundo do que o da pessoa que não se contém e se entrega aos prazeres do bucho, comendo além da conta, principalmente quando quebra um regime.

 

E se, depois de tão insana voracidade, lograsse, a exemplo do amigo Vili – ora futuro longevo, com expectativa de alcançar, no mínimo, os 98 do trisavô –, interromper o funesto ciclo, driblando a Ceifadeira, só me restaria exultar de tanto prazer e contentamento e agradecer aos céus pela benevolência do perdão por minha reprovável incontinência alimentar.

 

E jamais retornaria aos saudosos locais onde cometera tais transgressões bulímicas.

 

            Porque, meus prezados, para um cardiodiabético são proibidas, vetadas e interditas todas as comidas à disposição nos aviões, nos bons restaurantes e até nas cozinhas do meu sertão. Só não...

 

Comidas de restaurantes, aeronaves e cozinhas  caseiras: quase tudo vedado aos cardiodiabéticos


De Balsas Para o Mundo sexta, 28 de abril de 2017

O 46º ANIVERSÁRIO DO BPEB

O 46º ANIVERSÁRIO DO BPEB

Raimundo Floriano

 

Sargento Floriano – 1961

 

            O amigo Blum, que foi Brigada na valorosa PE, veio pegar-me na 215 Sul, de onde já saímos ouvindo marchas militares no toca-fitas do seu carro.

 

            Nossa chegada ao Portão das Armas marcou o início desse dia especial, quando comemoramos o 46º Aniversário do BPEB - Batalhão de Polícia do Exército de Brasília, o Batalhão Brasília, do qual sou um dos fundadores.

 

            Era 12 de maio de 2006. Embora 13 fosse a data oficial, a festividade aconteceu com um dia de antecedência, pelo fato de cair numa sexta-feira.

 

            Após recebermos os cumprimentos do Cerimonial, fomos nos deparando com velhos camaradas que disseram Ad sumus!   – Aqui estamos!

 

            O Soldado Alves se apresentou. Praça de 1962, hoje advogado de sucesso no DF, desde então não nos víamos. Empatia imediata. E o passado foi-se materializando: Geraldo Nascimento, vulgo Sepetiba, que doou o primeiro “camburão” para a Unidade, nos idos dos anos 60; Coronel Paulo Izaías, nosso Comandante de 1961 a 1963; Coronel Jannuzzi e Soldado Geraldo Branquinho, esses dois oriundos da 6ª Companhia de Guarda, pioneira do Verde-Oliva na Capital Federal; Sargento Abílio Teixeira, com o porte e a elegância de um parlamentar; Capitão Cunha, Júlio Mandacaru, Luciano e muitos outros, além deste Furriel que vos fala, 39 anos após sua baixa, em 1967, devido à aprovação em concurso público para a Câmara dos Deputados.

 

            Exatamente às 11h00, sob o Comando do Ten-Cel Negraes, teve início a solenidade. Em frente aos palanques, o pátio vazio.

 

            Súbito, no vão entre os pavilhões do PIC e do S/3, começou a surgir a Tropa. Primeiramente, a Banda, depois a Bandeira, o Estado-Maior e as Companhias, entoando a canção Fibra de Herói, de Guerra Peixe e Teófilo Barros Filho, secundada pela Canção da Infantaria, de Thiers Cardoso e Hildo Rangel.

 

            Arrepios! Arrebatamentos! A vibração começou a tomar conta de todos os presentes. Ênfase especial para o impecável adestramento daquele corpo de militares que se expunha ante nossos olhos!

 

            Seguiram-se os atos de preito ao Marechal Zenóbio da Costa, Patrono da PE, condecorações e a Fala do Comandante. Então, entoamos a Canção do BPEB, letra e música do General Paulo Roberto Yog de Miranda Uchoa, o que já acentuou em nosso peito incontido aperto de sentimentos cívicos.

 

            Logo em seguida, todos nós, os PEs da Velha Guarda, com o Capitão Araújo liderando nosso Pelotão como Porta-Símbolo, desfilamos em frente à Tropa e aos palanques, na cadência do dobrado Batista de Melo, de Mathias de Almeida, e haja coração para aguentar mais outro tranco de emoção!

 

Banda de Música do BPEB: dobrados inesquecíveis  - Acervo Laboratório Fotográfico do Bataslhão

 

            Dando continuidade, o Batalhão desfilou em continência ao Comandante, às autoridades e aos convidados, ao som do dobrado São Cipriano, de João Nascimento.

 

            Culminando a festividade no pátio, a Pirâmide Humana, com 30 homens sobre uma motocicleta, brindou-nos com seu magnífico show, que já faz parte do Guiness Book of Records, por ser único no mundo – 47 elementos!

 

            Um coquetel musical, no Pavilhão do Comando, deu o ponto final, o arremate na inesquecível confraternização.

 

            Ao nos despedirmos dos camaradas, e ao transpormos o Portão das Armas, eu e o meu amigo Blum parecíamos dois recrutas saindo para casa em dia de dispensa. Sim, porque nossa ausência é transitória, efêmera. Na próxima solenidade, responderemos novamente à chamada para, junto à mocidade do nosso Batalhão, com juvenil entusiasmo, cantarmos:

 

“No Planalto Central Brasileiro

A estrela da ordem já brilha

Pois surgiu com seu porte altaneiro

O soldado PE de Brasília!”

 

            O texto acima foi enviado, pela Internet, tão logo o redigi, para o Comandante do BBEB, que assim me deu o retorno:

 

“Tenente Raimundo Floriano,

Muito Obrigado pelo e-mail. São estes tipos de mensagens que demonstram que ainda existem pessoas com sentimento de civismo e amor pelas instituições. Hoje, 2ª feira, esta vossa mensagem foi lida durante a reunião dos oficiais do BTL, e posteriormente afixada uma cópia em cada celotex das SU. Lembre-se de que o BPEB continua sendo a extensão de vosso lar. Uma vez PE! Sempre PE! TC Negraes, CMT do BPEB.”

 

            No dia 13 de maio de 2010, o BPEB completa o seu Jubileu de Ouro. Já estamos nos organizando para formarmos a Grande Companhia da Saudade, com veteranos que virão de todas as partes do Brasil, para festejarmos juntos esse fato histórico.

 

            A verdade é esta: faz 42 anos que deixei a farda, mas a caserna não sai de mim!

 

            No ano de 1997, quando nossa Turma, a de 1957, da Escola de Sargentos das Armas - EsSA, sediada em Três Corações-MG, completou 40 anos, lá comparecemos, alunos e monitores, para uma grande festa, que durou três dias. O quadro relativo a esse encontro consta da Página 66 do meu livro Do Jumento ao Parlamento, edição esgotada.

 

            Em 2007, a festa se repetiu, na comemoração do Cinquentenário da Turma, cujo quadro lhes apresento a seguir.

 


De Balsas Para o Mundo quarta, 26 de abril de 2017

LARISSA OLIVEIRA, HEROÍNA DO BRASIL

LARISSA OLIVEIRA, HEROÍNA DO BRASIL

Raimundo Floriano

 

 

Quebrando tabus: mulher e nordestina

 

            Tem três programas na TV aos quais eu adoooooro assistir. Não os perco de jeito e maneira: A Praça É Nossa e Roda a Roda, ambos do SBT, e Soletrando, do Caldeirão do Huck, na Globo.

 

            A Praça, porque ainda preserva o humorismo escrachado da época dos circos sem cobertura de lona, em que cada ator é um palhaço, fazendo-me lembrar minha atuação circense como “escada” – comediante que prepara a piada para o palhaço, sempre levando a pior ao fim e ao cabo –, no Circo Cometa do Norte, lá em Teresina-PI.  Roda a Roda, porque me divirto a valer com os vacilos culturais do Silvio Santos, seu apresentador. Soletrando, porque aprendo muito em cada edição, ainda mais nessa última, a Terceira, quando foram explorados todos os aspectos das Novas Regras Ortográficas da Língua Portuguesa. Lamentavelmente, no dia 27 de junho de 2009, sábado, ocorreu sua finalíssima, e não se sabe quando outro se iniciará. É sobre ele que lhes quero falar.

 

            Desde o início, passei a observar a menina recifense Larissa Oliveira, que respondia a todas as perguntas com um largo sorriso, sem jamais se afobar ou demonstrar surpresa. Meu sangue mameluco-pernambucano-maranhense fez com que eu passasse a torcer por aquela moreninha.

 

            Nas cabines, três heróis brasileiros. Não aquele tipo de “heróis” do Big Brother Brasil, como o apresentador do programa os rotulou, mas heróis de verdade que, superando todos os percalços, a falta de recurso, estudando em escolas públicas, ultrapassaram as etapas estaduais, venceram mais 24 concorrentes nas semifinais, e ali estavam, ajudados apenas pelos esforços no estudo e pela queimação de pestana na consulta a dicionários. Para os “heróis”– derivação de “herotismo”? – do BBB, a disputa de um milhão de reais. Para os heróis do Talento e do Estudo, um premiozinho de cem mil.

 

            Eram eles, pela ordem das cabines: Bruno Roberto, 15 anos, do Rio de Janeiro, Pedro Henrique, 14 anos, do Ceará, e Larissa Oliveira, 15 anos, de Pernambuco.

 

            Todas as palavras propostas, enviadas por internautas de várias cidades, foram sorteadas no computador. Não houve proteção para qualquer dos concorrentes. Cada participante poderia perguntar o significado da palavra, sua aplicação na frase, essa parte a cargo do Professor Sérgio Nogueira e da cantora Sandy, que assessoravam o programa, e pedir ao apresentador que a repetisse, antes de dar sua resposta.

 

            Começa a batalha! Pauleira para todo lado! E a meninada firme, confiante, tirando de letra! Os obstáculos foram-se sucedendo: intransitável, nigérrimo, compreensível, abdução, desasado, energizar, neofascismo, explícito, hemiplegia, imensurável, excreção, extrato, hipersensível, megaevolução, inenarrável, celagem. E a turminha estraçalhando.

 

            No final da 6ª Rodada, a garota Larissa me extasiou, ao dar a grafia correta da palavra aportuguesada JIU-JÍTSU, demonstrando estar consciente, não só do emprego do hífen, como da regra para a acentuação das paroxítonas.

 

            Em qualquer jogo, todavia, para que haja um ganhador, é inevitável que alguém saia. E a primeira eliminação veio na 7ª Rodada, recaindo sobre os ombros de Bruno Roberto. Ao ser-lhe dada a palavra ESPAIRECER, ele bobeou, atrapalhou-se e soletrou ESPAERECER! Consternação geral, choro do menino, da professora, da mãe e de toda a sua torcida que se concentrava no Rio de Janeiro. Mas ainda havia uma esperança: se os outros dois também errassem, ele continuaria na disputa.

 

            Para sua desdita, isso não ocorreu. Pedro Henrique não titubeou ao soletrar HANTAVÍRUS. Coube à pernambuquinha soletrar EPIZEUXE! Barra pesada, meus amigos, principalmente para aquela faixa etária. Significa a figura pela qual se repete seguidamente a mesma palavra para amplificar, para exprimir compaixão ou para exortar. Larissa acertou em cheio!

 

            Pronto! Bruno Roberto estava fora! Restavam apenas o dois, Pedro Henrique e Larissa Oliveira, que iriam agora debater cara a cara, no gogó, na competência!

 

            Verdadeira batalha verbal e auditiva, tendo em vista a fanhosa dicção de Luciano Huck.

 

            Corte para o Ceará. A torcida de Pedro Henrique vibrava, ria, pulava, rezava. Corte para Pernambuco. A torcida de Larissa Oliveira rezava, pulava, ria. Um capitão do Exército, seu professor no Colégio Militar, arriscou este vaticínio:

 

            – Depois daquele jiu-jítsu, vai ser difícil qualquer palavra derrubar a Larissa!

 

            Até a Edição de 2009, nenhuma mulher vencera a competição! Nenhum nordestino fora campeão! O Nordeste, portanto, já era o laureado. Ceará e Pernambuco decidiriam a Copa do Saber! Coube a Pedro o pontapé inicial:

 

            Pedro Henrique - EXTRÍNSECO - Nenhum mistério para ele.

 

            Larissa Oliveira - HACHURADO - Outra palavrinha invulgar. É o raiado que, em desenho ou gravura, produz efeito de sombra ou meio-tom. Larissa despachou!

 

            Pedro Henrique - RERRATIFICAÇÃO - Nessa daí o menino demonstrou pleno conhecimento da Reforma Ortográfica. Antes, a palavra era escrita assim: re-ratificação. Hoje, suprime-se o hífen e dobra-se o R.

 

            Larissa Oliveira - GILVAZ - Mais uma pedreira para a menina! Significa golpe ou cicatriz no rosto. Gol de Larissa!

 

            Pedro Henrique - BUFÊ - Uma boa colher de chá para o garoto.

 

            Larissa Oliveira - HIALOGRÁFICO - Na pronúncia dessa, o Huck se atrapalhou, aliás, ele tem essa dificuldade nas proparoxítonas. Refere-se à Hialografia, arte de gravar sobre vidro. Mais um gol de Larissa!

 

            Pedro Henrique - PEDINCHICE - Que paulada no Pedro Henrique! É o ato de pedinchar, pedir com impertinência ou lamúria. Pedro Henrique amaciou no peito e mandou brasa!

 

            Larissa Oliveira - NÊUTRON - Essa foi mole para Larissa!

 

            Pedro Henrique - HANSENÍASE - Moleza também para ele!

 

            Larissa Oliveira - XERIFE - Pô, só dá moleza agora?

 

            Pedro Henrique - SELEIRO - Nessa daqui, o garoto poderia se atrapalhar. Dada a definição, fabricante ou vendedor de selas, ele acertou na mosca. Mas poderia ter errado, caso houvesse se afobado e entendido celeiro, que é depósito de provisões

 

            Larissa Oliveira - ABSCISSA - Para a menina, iniciada no estudo da Matemática, essa não apresentou dificuldade.

 

            Na 15ª Rodada, o desenlace!

 

            Caiu para Pedro Henrique o vocábulo PALIMPSESTO - Aprendi essa palavra quando li Os Sertões, de Euclides da Cunha. Não é corriqueira. Significa antigo material de escrita, principalmente pergaminho. Era natural que o garoto a desconhecesse. Mesmo assim, ele arriscou: PALIMPCESTO!

 

            Consternação geral! Tristeza na plateia, nas faces da mãe e da professora. Água fria na torcida lá no Ceará. Mas nem tudo estava perdido! Se Larissa também errasse, Pedro retornaria para o torneio.

 

                        Coube para Larissa Oliveira soletrar um vocábulo bem invulgar ESPECTRÓGRAFO - É o instrumento destinado a separar os componentes de uma radiação policromática e registrá-los em uma chapa fotográfica. Luciano Huck teve dificuldade para pronunciá-la – proparoxítona novamente. Socorrido pelos assessores, só na terceira tentativa a palavra saiu em sua fanhosa voz: ESPECTRÓGRAFO!

 

            Tempo decorrido até aquele momento: 30 minutos! 30 longos minutos de nervosismo e tensão, pelo menos para mim. Não para a menina!

 

            Larissa tinha do seu lado, a seu favor, aquele sorriso deslumbrante, seguro, que a caracterizou desde o início. Deu a resposta certa e, sorridente, esperou a apoteose!

 

            Quebrara-se o tabu! Nordestina e do sexo feminino, Larissa arrebatara o prêmio máximo de cem mil reais! E, ao receber o cheque simbólico, praticou um gesto de solidariedade típico do nordestino amigo e irmão: doou a cada um dos seus concorrentes, Bruno e Pedro, a quantia de cinco mil reais.

 

            Isso nestes nossos tempos em que o mais praticado é a doutrina do venha-a-nós!

 

            A Globo não pega em tudo quanto é biboca do Exterior? Pois então?

 

            Foi Pernambuco falando para o Mundo!

 


De Balsas Para o Mundo segunda, 24 de abril de 2017

PAULA PEQUENO, UMA VENCEDORA

PAULA PEQUENO, UMA VENCEDORA

Raimundo Floriano

 

 Paula: melhor jogadora de vôlei da Olimpíada de 2008

 

            No dia 23 de agosto de 2008, vibrei de emoção!

 

            Sou padrinho de casamento dos pais dessa menina, meus amigos Ayrton Pequeno e Gercione, e apenas por isso fiquei madrugadas grudado na televisão, durante a Olimpíada de Pequim, só para vê-la jogar e vencer. Até a partida final, sete jogos ganhos sem  sequer um set perdido!

 

            Ela é a alma, a garra e o sangue do voleibol feminino brasileiro!

 

            Paula Renata Pequeno nasceu em Brasília, no Guará, a 22 de janeiro de 1982.

 

            Dos quatro aos treze anos de idade, trabalhou como modelo, desfilando em grifes infanto-juvenis.

 

            Influenciada por sua mãe e seu irmão Cláudio, que eram jogadores, direcionou-se para o vôlei. Indo assistir a um jogo do irmão na ASBAC, recebeu proposta de fazer um teste, no qual foi aprovada com louvor. Com isso, largou as passarelas, dedicando-se integralmente à atividade esportiva. Em 1995, aos treze anos, transferiu-se para São Paulo, indo jogar no Nestlé, e logo mais assinando contrato com o Finasa/Osasco. Daí pra frente, sua carreira deslanchou.

 

            Em 2004, já convocada, deixou de participar da Olimpíada de Atenas devido a uma contusão no joelho, às vésperas de embarcar, que quase a eliminou das quadras. Deus foi maior.

 

            Aos 26 anos, com um futuro ainda brilhante no voleibol, conquistou, juntamente com suas maravilhosas colegas de equipe, a tão sonhada medalha dourada olímpica que muito nos enche de orgulho e nos proporciona, nesse retumbante fracasso brasileiro em que se constituiu a Olimpíada de Pequim, raro momento de alegria e o envaidecimento de podermos proclamar que somos patrícios seus, que somos do Brasil!

 

            A seguir, os créditos de sua carreira de vitórias:

 

PRINCIPAIS CONQUISTAS PELO FINASA/OSASCO:

Brasileiro Juvenil: 1995, 1996, 1997 e 1998

Campeonato Paulista: 1997, 2001, 2002, 2004, 2005 e 2006

Superliga: 2002/03, 2003/04 e 2004/06

Copa São Paulo de Vôlei: 2006

Salonpas Cup: 2005 e 2006

 

PRÊMIOS NO CLUBE:

Melhor Ataque na Superliga

Melhor do Jogo na Superliga: 2002 e 2003

Melhor Jogadora da Copa Brasil: 2008

Troféu Melhor do Vôlei: 2008

 

PRINCIPAIS CONQUISTAS NA SELEÇÃO BRASILEIRA:

Sul-americano Juvenil: 2000 - Ouro

Mundial Juvenil: 2001 - Ouro

Sul-americano: 2003 - Ouro

Copa do Mundo: 2003 - Prata

Grand Prix: 2005 - Ouro

Montreux Volley Masters: 2005 - Ouro

Torneio Courmayeur: 2005 - Ouro

Campeonato Mundial: 2006 - Prata

XV Jogos Pan-americano: 2007 - Prata

Sul-americano: 2008 - Ouro (Melhor jogadora)

Copa do Mundo: 2007 - Prata

Grand Prix: 2008 - Ouro

Olimpíada: 2008 - Ouro

 

PRÊMIOS NA SELEÇÃO BRASILEIRA:

Sul-americano Juvenil: 2000 - Melhor atacante

Copa do Mundo: 2003 - Jogadora mais impressionante

Grand Prix: 2005 - Melhor do Mundo

Sul-americano: 2007 - Melhor jogadora

Olimpíada: 2008 - Melhor jogadora

 


De Balsas Para o Mundo sábado, 22 de abril de 2017

FIDELES E O PACOTÃO

FIDELES E O PACOTÃO

Raimundo Floriano

 

Fideles e seu trombone

 

            Francisco Fideles da Silva, funcionário do Ministério das Minas e Energia, era um caboclo cearense baixinho, pele de índio, bigodinho à la Cantinflas, idade indefinida, maestro, clarinetista, trombonista, compositor e arranjador. O trombone era seu instrumento preferido.

 

            Conheci-o na noite de 24 de junho de 1972, na Festa dos Estados, quando, por acaso, se incorporou à Banda da Capital Federal, que eu acabara de fundar, sendo ele seu primeiro músico de sopro. Seis meses depois, eu também tocava trombone de vara.

 

            Dali em diante, estivemos sempre juntos, quer na Banda da Capital Federal, quer no Pacotão, bloco fundado por jornalistas, em 1978, quer em qualquer manifestação carnavalesca de rua.

 

            Fideles era um bamba para ajudar os compositores nas introduções que bolava e nos arranjos que criava para as músicas que acabavam de fazer, como no caso das competições no Pacotão, quando a turma inventava na hora qualquer marchinha para derrubar um adversário que se afigurava forte na disputa.

 

            Fizemos muitos carnavais desfilando pelas superquadras, passando por debaixo dos blocos e arrebatando multidões de homens, mulheres e crianças, até que reclamações junto à polícia acabassem com essa nossa curtição.

 

            Com a Banda da Capital Federal, comemoramos os 30 anos de sua fundação, o Tetra e o Pentacampeonato de Futebol.

 

            Na Copa de 1998, fizemos a festa nas ruas em todas as partidas jogadas pelo Brasil. Na semifinal, Brasil x Holanda, dia 7 de julho, uma terça-feira, como eu estava arrumando uma viagem para os Estados Unidos, resolvi que a Banda da Capital Federal não sairia.

 

            O jogo terminou empatado em 1 x 1 mas, na cobrança de pênaltis, o Brasil venceu por 4 x 2.

 

            Acabado esse jogo, meu amigo Humberto Pimentel, residente no Condomínio Jardim Botânico, eufórico com a nossa classificação, convidou-me para uma passeata nas ruas de lá. Disse-lhe que iria fazer o possível.

 

            Com o Fideles era assim, se ele me chamava, eu ia, se eu o chamava, ele vinha. Liguei para ele, que veio imediatamente, em que pese o fato de sua casa ficar em Sobradinho. Chegou de táxi, sozinho, pois os outros músicos não foram localizados.

 

            Naquela noite, pressenti que o Brasil iria perder a Final quando constatei a frieza dos moradores daquele bairro. Saímos a pé da casa do Humberto, com ele no repenique; Neuzinha, sua mulher, com o isopor de bebidas; Danielle, sua filha, no surdão; Fideles e eu nos trombones, além de Veroni, minha mulher, Elba e Mara, nossas filhas, e Tatiana Formiga, coleguinha da Elba, e rumamos para a quadra comercial um quilômetro adiante. Tocamos nos bares, e o povo sentado, tô nem aí! Retornamos à casa do Humberto tomados de certa tristeza, ao vermos que, no percurso de ida e de volta, ninguém nos acompanhara.

 

            Viajei na noite de sábado para domingo, dia 12, e assisti à Decisão em Orlando, num galpão alugado pela companhia de turismo que nos levara, junto a mais de mil brasileiros, todos uniformizados com a camisa amarelinha. Ainda bem que foi num local afastado do centro, sem outras testemunhas para gozarem da nossa cara! E o pior: depois dos 3 x 0 para a França, caiu uma chuva torrencial, daquelas típicas da Flórida, em que cada pingo mata um sapo.

 

            Na manhã seguinte, já nos parques da Disney, tivemos de suportar as piadinhas das caravanas argentinas, tirando sarro com a nossa cara.

 

            Na Copa de 2002, Fideles compôs minha banda, na grande comemoração que montei aqui na 215 Sul, começando às 08h00, muito antes de iniciar o jogo, pois tínhamos a certeza da vitória.

 

            No Carnaval de 2003, foi até engraçado. Fideles pegara um contrato para tocar com seu grupo no trio elétrico do bloco Nós Também Queremos, formado por trabalhadores ligados a um sindicato da área de pesquisa agropecuária. Ele me chamou, eu fui.

 

            Mas vejam o contraste. Na Banda da Capital Federal, não tratávamos de política. No Pacotão, onde ambos também tocávamos, o ambiente era de gozação e irreverência a tudo quanto é autoridade. Pois bem, no bloco Nós Também Queremos, todas as músicas cantadas, assim como as camisas dos seus componentes, teciam elogios ao petista recém-empossado como Presidente da República. Saia-justa era aquilo dali!

 

            Além do esmero dedicado a qualquer bloco em que saía, ele tocava, muitas vezes, apenas por uns trocados, umas cervejas e uns tira-gostos.  Minha presença ali, sem nada lhe cobrar, representava a economia do dinheirinho que teria de pagar a mais um trombonista.

 

            Destarte, estoicamente, vesti a camisa petista e compareci às duas saídas, no domingo e na terça-feira, ajudando o Fideles a ganhar o seu caraminguá. O que uma amizade não faz!

 

No bloco Nós Também Queremos: Raimundo Floriano, Fideles, Albino e Jean

 

            Essa foi a última vez em que tocamos juntos!

 

            O Maestro Celso Martins foi o primeiro líder da Banda do Pacotão. Depois dele, Fideles assumiu o posto.

 

            No dia 31 de janeiro de 2004, o Pacotão iria escolher a marcha-enredo para o Carnaval daquele ano. O concurso teria início às 12h00, no Clube da Imprensa, conforme anunciado na mídia. Sabendo como as coisas no Pacotão sempre foram muito bagunçadas, resolvi dar uma passada por lá às 14h00, apenas para dar um abraço no Fideles, saber qual seria a armação para o período momesco e também para conhecer a marchinha vencedora.

 

 

            Em lá chegando, encontrei no estacionamento o Valério Bernardo, o Carioca, do Sindilegis, todo nervoso, sobraçando um bolo de camisas identificadoras dos membros do júri. Ao ver-me, suspirou de alívio:

 

            – Raimundo, parece que foi Deus quem te mandou aqui! Lá dentro tá a maior balbúrdia e ninguém quer assumir a Presidência da Comissão Julgadora, com medo das ameaças. Será que tu podias quebrar esse galho pra nós? – Pimenta nos olhos dos outros...

 

            Respondi-lhe que não, pois teria de voltar logo para a festinha dos dois anos de minha neta, no início da noite. Mas, vendo a aflição do Carioca, e diante da sua insistência, resolvi aceitar o encargo. O que uma amizade não faz! Ato contínuo, ele me entregou uma das camisas, para que já entrasse lá uniformizado como autoridade. Tão logo penetrei no salão, atopetado de foliões e, principalmente, de compositores e as respectivas torcidas, o Carioca pegou o microfone e anunciou:

 

            – Pronto, o Presidente do Júri chegou! Vamos começar!

 

            Passei uma olhada em volta e não vi o Fideles. Perguntei por ele, informaram-me que naquele ano era outra a banda a contratada. Mal sinal!

 

            A Comissão era composta por jornalistas do Estadão, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, Correio Braziliense, radialistas, gente da TV, pesquisadores e sindicalistas de ambos os sexos. Todos foram afáveis para comigo e aceitaram minha chefia com satisfação.

 

            Dando início aos trabalhos, examinei as composições a nós submetidas, ficando pasmo com os motivos ultrapassados de algumas: FHC, Bill Clinton, Monica Levisnky, Saddam, tudo fósforo queimado. De comum acordo com a Comissão, resolvi dar uma peneirada e apenas aceitar músicas que versassem sobre temas atuais, notadamente sobre os governantes de plantão. Essa sempre fora a trilha do bloco. Ao anunciar a decisão, quase fui espancado.

 

            A massa se lançou furiosa em minha direção e só foi contida, a muito custo, pelo Carioca, que pegou o microfone e esclareceu a todos:

 

            – O Raimundo Floriano sabe o que faz! É trombonista, Mestre da Banda da Capital Federal, escritor, cordelista e um dos maiores colecionadores e pesquisadores da MPB e do Carnaval Brasileiro!

 

            Isso acalmou os ânimos, e a turma desclassificada tratou logo de criar novas composições, na hora, no peito e na raça. Naquele momento, a falta do Fideles se fez notar por demais. Se ele ali estivesse, auxiliaria todos, como sempre foi do seu feitio.

 

            Enquanto isso, os cantores e cantoras se revezavam, interpretando as marchinhas concorrentes, acompanhados pela excelente banda.

 

            Quando eu pensava que as coisas se encaminhavam para um final feliz, eis que surgiram do nada três sujeitos parrudões, barbudos, cabeleiras caindo por riba dos ombros, parecendo ter saído de algum filme do Asterix. Os três, desde que chegaram, não pararam de reclamar, de gritar, gesticular, ao mesmo tempo em que enchiam a cara de cerveja.

 

            Na boquinha da noite, chegou o momento tão esperado pela turba e temido pela Comissão: divulgar o resultado final!

 

            Dirigi-me para o centro do salão, peguei o microfone e anunciei:

 

            – Terceiro lugar: Charles, Meu Rei, de Rosa de Windsor e Joka Pavaroti!

 

            Gritos, impropérios, ameaças. Alguém gritou:

 

            – Não podemos aceitar esse resultado pra mais de duvidoso! O Presidente da Comissão foi comprado com bebida!

 

            O Carioca tomou o microfone e rebateu:

 

            – Como comprado, se ele só bebeu aqui um guaraná diet, pago do seu próprio bolso?

 

            Voltei a anunciar:

 

            – Segundo lugar: O Buraco É Mais Embaixo, de Joka Pavaroti, Dedé de Olinda, Cicinho e Amâncio do Teclado.

 

            Outra vez, corri perigo de bordoadas! Os três Asterix estrondavam que nem trovão! Depois de muito bate-boca, foi superado mais esse obstáculo!

 

            Fez-se silêncio sepulcral na hora de declarar a marchinha vencedora! A escolhida se referia, em tom jocoso, à metamorfose pela qual se dizia por aí ter passado o Presidente da República.

 

             Peguei novamente o microfone e, temendo o pior, firmemente bradei:

 

            – Primeiro lugar: O Homem da ALCA Atrás, de Paulão de Varadero!

 

            A onda de protestos e inconformismo só foi contida pelo Carioca, sempre o Carioca, que me tomou o microfone e vociferou:

 

            – Quero avisar a todos que o Presidente da Comissão é também Tenente da Reserva do Exército Brasileiro!

 

            Mal ele fechara a boca, o Asterix-mor levantou-se de sua mesa e se projetou célere em minha direção. Gelei! Ao chegar perto de mim, perguntou:

 

            – Você sabe quem tá falando?

 

            Naquele momento, agradeci aos céus pelo amor que tenho devotado à MPB e pela atenção dispensada a todos os seus intérpretes, famosos ou desconhecidos. Sem titubear, respondi:

 

            – Sei, sim, você é o Márcio, que toca gaita de boca e serviu comigo na CPP-1 do 12º Regimento de Infantaria, em Belo Horizonte!

 

            Aí, o Asterix-mor, cheio de cana, me abraçou, me beijou nas bochechas e gritou para os seus companheiros:

 

            – Eu não disse! Este aqui é o meu Tenente Floriano!

 

            Depois dessa, fiquei na maior moral e, terminada a festa, fui cumprimentado por todos, membros da Comissão Julgadora, vencedores e vencidos, porque, se existe um órgão onde tudo acaba em pizza, esse só pode ser o anárquico Pacotão.

 

            Prova disso é que, no Carnaval, a marchinha do Paulão foi cantada por todos, na maior empolgação e na contramão, como são todos os desfiles dos pacoteiros. Naquele ano, em 2005 e 2006, não pude sair no seu trio elétrico, devido a problemas ortopédicos, os quais até hoje persistem.

 

            Voltemos ao Fideles!

 

            Topava qualquer parada. Organizava sua bandinha para tocar em portas de lojas, bailes sociais, bloco de sujos, boteco de ponta de rua, feira de qualquer coisa. E vestia a camisa da hora, não importando o matiz, o credo, a classe social ou a opção sexual. Por isso, era muito requisitado, tinha sempre serviços a seu dispor.

 

            O exemplo que dele fica é o de um nordestino culto e, ao mesmo tempo, humilde, bom e valoroso.

 

            Na foto a seguir, uma atuação de Fideles e sua turma em campanha publicitária da Disney:

 

Pato Preto, Faustino, Sarampo, Fideles e Levy

 

            No Carnaval de 2006, Fideles saiu normalmente com o Pacotão, fazendo o que seria sua última tocata, no dia 28 de fevereiro, terça-feira. No dia 7 de março, exatamente uma semana depois, um infarto agudo o fulminou! Compareci com minha mulher à sua Missa de Sétimo Dia, e isso foi um consolo para sua família, por ver ali, orando por ele, um amigo que com ele viveu muitos momentos de alegria e felicidade.

 

            Até agora, falou aqui o amigo, o companheiro de muitas armações. Faltava a palavra de um membro do Pacotão.

 

             Deixo-a com o compositor Paulão do Varadero. Ele é um dos fundadores do bloco, jornalista, meu colega na Câmara dos Deputados e campeoníssimo de vários carnavais. Devidamente por ele autorizado, transcrevo a belíssima crônica que escreveu em homenagem a esse grande músico que perdemos, publicada no Correio Braziliense e em outros jornais e revistas.

 

            “FIDELES SE FOI À FRANCESA

 

            “Como se dizia antigamente, ele pegou o bonde andando. Não foi fundador do bloco mas, nos últimos sete anos, onde estivesse o pessoal lá estava ele com sua turma de músicos, metaleiros e percussionistas da ‘Banda Podre’ do Pacotão. Em qualquer ensaio ou apresentação, na rua ou nas prévias do Conic, na Avenida W-3, embaixo do viaduto entre as duas Asas (monumento apoteótico do carnaval brasiliense), sempre na contramão, como é a marca registrada da Sociedade Armorial Patafísica e Rusticana. O nosso maestro mambembe, figura mansa, meiga, que parecia zangado, mas era uma ternura, se agigantava com majestade regendo a sua orquestra brancaleônica de bloco de sujo ou soprando sonoras notas com seu trombone de vara, que dominava e fazia gemer.

 

            “Clave de fá ou de sol, bemóis e sustenidos, mínima e semínima, marcha-rancho, marcha-frevo, maracatus maxixes, mambos, o maestro navegava como um timoneiro que conhece muito bem e domina o mar e sabe que ‘quem é do mar não enjoa’. Fideles no Pacotão estava em sua praia. Na primeira ‘Picarecandanga’, que fizemos em setembro ou outubro, não sei precisar a data, o Fideles inovou e, em pleno ritmo de carnaval fora de época, jogou um Siboney no mais requintado estilo Perez Prado e, pra espanto de muitos, mandou ver vários boleros, rumbas e salsas, de deixar a massa de queixo caído.

 

            “Escrevo essa triste e melancólica nota ainda sob o impacto e susto da notícia de seu passamento. Terça-feira, 7 de março, justamente uma semana depois da terça-feira gorda em que ‘arrebentou’ na avenida, sentiu uma forte dor no peito às 11h00. Seu coração arrebentou. Ao meio-dia, o surdo do Pacotão estremecia, anunciando seu silêncio.

 

            “Fideles não soprará mais. Não vai reger mais a ‘Banda Podre’ do Pacotão, nem fará mais arranjos para Varadero, pra Joka Pavaroti, pra Cicinho Filisteu, pra Dedé de Olinda, pra Mestre Soares, pra Wilsinho Rastafári, nos concursos que já se tornaram célebres pra escolha da música-enredo do bloco. A acirrada pugna não contará mais com a presença do grande Fideles. 2006 foi seu último carnaval. Não vai assistir ao trigésimo aniversário do Pacotão, ano que vem. Eu, que também já não ando muito bem nos mais de seis quilômetros do percurso de desfile do bloco, se vivo estiver, vou sentir muito sua falta. Sinceramente, já estou sentindo.

 

            “Fideles saiu sem se despedir e nem disse, como os foliões do bloco carioca congênere do Pacotão: ‘Vou ali e volto já!’ Fideles subiu pra soprar seu trombone no céu. Silêncio rotundo e retumbante no Pacotão. Que saudade, meu velho! (a) Paulão de Varadero.”

 

Estandarte do Pacotão


De Balsas Para o Mundo sexta, 21 de abril de 2017

O PACIENTE FISIOTERÁPICO

O PACIENTE FISIOTERÁPICO

Raimundo Floriano

 

 

Símbolo da Fisioterapia

 

            Você tem uma ideia do que representa o trabalho dos fisioterapeutas para o bem da humanidade? Não? Pois não se desespere! Qualquer dia, talvez, você vai ter um em sua vida!

 

            Esses caras fazem mágica! Arrisco essa afirmação porque não usam, no cumprimento do seu mister, qualquer tipo de medicamento invasivo ao corpo do paciente!

 

            Quantos milhares de vezes eu passei ali pela esquina do Edifício Rolimam, na 513 Sul, onde se localiza a Orto-Sul, e não imaginava a natureza dos prodígios que lá se realizavam! Até que um dia!

 

            Fui operado dum cisto profundo na virilha esquerda, em 14.12.04, cirurgia delicada, lesiva ao nervo femoral, após a qual perdi completamente movimentos da perna.

 

            No dia 28.01.05, sarado o local da incisão, iniciei a fisioterapia, na Orto-Sul, três horas e meia diárias.

 

            E aí, comecei a conhecer e a avaliar a importância e a qualidade do trabalho daqueles abnegados profissionais.

 

            Repito, quem passa por aquela esquina, nem imagina que lá dentro, no mínimo, cinquenta pessoas, com lesões diversas, recebem, ao mesmo tempo, tratamento personalizado. São vários profissionais fixos, todos com curso superior, e muitos estagiários.

 

            Ao longo de mais de seis meses, ali convivi com uma boa companheirada de aposentados da Câmara: João Nerielle Filho, Wilma Bilibio, Antônio Neuber Ribas, Fernando Soares da Rocha, Terson Carvalho de Araújo, Clodoaldo Abreu da Silveira, esses com dodóis diversos.

 

            A 02.04.05, iniciei, na Academia BOCA, três vezes por semana, sessões de hidroterapia com a Dra. Karina Ribeiro, fisioterapeuta, com quem eu já fizera RPG - Reeducação Postural Global em problemas anteriores.

 

            A Academia BOCA, fundada em 1989, é assim conhecida pelo apelido do seu proprietário, Paulo Henrique Guimarães, o Professor Boca. Por ser completa, tornou-se, em pouco tempo, uma referência da atividade física em Brasília. Localizada na Quadra 906 Sul, é provida de vagas para cerca de 70 automóveis, no seu pátio, além do Estacionamento 10 do Parque da Cidade, nos fundos, que dela se separa apenas pela pista que o circunda.

 

            Sua piscina, coberta e aquecida, com 25 m de comprimento por 12,5 m de largura, permite que, simultaneamente, nela se realizem três tipos de atividades: natação, hidroginástica e hidroterapia.

 

            Na primeira sessão com a Dra. Karina, fui tomado de imensa confiança, isso porque não havia o perigo de queda nos diversos movimentos e alongamentos exigidos.

 

            Paralelamente à hidroterapia, uma hora por dia, três vezes por semana, continuava eu na Orto-Sul. Após 140 sessões diárias de fisioterapia, deixei aquela clínica, passando a receber tratamento personalizado, também com a Dra. Karina, no seu consultório.

 

            E aí, minha recuperação começou a se fazer notar! A cada sessão, um novo progresso! No dia 28 de junho de 2005, voltei a dirigir!

 

            Em agosto, fui encaminhado à Academia RECOR, onde já malhava há quase quatro anos, para retomar os exercícios aeróbicos – esteira, bicicleta sentado, bicicleta em pé e cross –, musculação, uma hora e meia por dia, com alongamentos antes e depois, continuando com a hidroterapia na Academia BOCA.

 

            Na RECOR, recebi, diariamente, atendimento quase que personalizado do Professor Jefferson Tobias, a quem só tenho palavras de gratidão por tudo o que fez para o meu completo restabelecimento físico.

 

            Assim ficou meu tempo ocupado: hidroterapia na BOCA, fisioterapia no consultório da Dra. Karina e ginástica na RECOR.

 

            Se todos os profissionais das áreas acima referidas devem ser altamente capacitados, do paciente também são exigidos certos predicados, como persistência, assiduidade e muita paciência!

 

            Para caminhar, me apoiava em duas muletas. Certo dia, a Dra. Karina me proibiu de entrar na BOCA com elas. Passei-me para a bengala, que, não demorou, foi-me também vetada pela doutora. Era sinal de que estava quase bom.

 

            E devo tal progresso ao seu desvelo, aos cuidados a mim dispensados durante todo o desencadear desse longo tratamento. Para deixar patenteado o quão sou-lhe grato, postei este depoimento em sua página no Orkut:

 

“Karina, a doutora, entrou em minha existência no começo de 2004. Desde então, entreguei-lhe preciosas porções de mim: coração, braços, peitos, glúteos – ‘encaixe o bumbum!’, comanda, na RPG –, coxas, energia – ‘pedale com força!’, dispara, na Hidro – e, por fim, a perna esquerda. Às vezes, nas sessões, sem que a gente lhe ‘pise nos calos’, ela se faz de durona, ao cometermos pequenos atrasos ou exercitarmos o saudável esporte da tagarelice. E fecha a cara, briga, bronqueia, o que retribuímos com igual ferocidade. Mas depois ficamos silentes, murchos, esperando que ela nos fuzile com um dos seus angelicais sorrisos, para que a paz se restabeleça. Pois todos sabemos que ali está a perfeccionista e também a garotona, a linda flor, empenhada em proporcionar-nos melhor qualidade de vida, a cura, enfim. Ao completar 100 apresentações sob sua batuta na piscina da BOCA, quero aqui registrar o meu elevado apreço e agradecer-lhe pelo tanto de bem que tem feito ao meu corpo, ao meu espírito, ao meu viver.”

 

 

Dra. Karina: devoção e eficácia

 

            Hoje, continuo nas duas academias, acho que para todo o tempo de vida que Deus ainda me conceder. Na malhação, por exigência do meu cardiologista, e na hidroterapia, porque, superado o problema na perna esquerda, surgiram-me outros, como artrose e osteoporose.

 

            Afortunadamente, houve maravilhosos progressos. Nos meus 70 anos, completados a 3 de julho de 2006, dancei forró com 25 damas.

 

            Encaro qualquer escada na subida, embora na descida tenha de tomar cuidado, pé ante pé. Essa descida seria facilitada se as escadas de Brasília, mercê da escola arquitetônica que caracterizou nossa cidade, não fossem quase todas uma o focinho da outra: sem corrimão!

 

            Queria ver como esses gênios que projetaram nossos edifícios se arranjariam numa delas, aos 100 anos de idade! No meu caso, a melhor posição para a descida é de lado. Quando dá pane no elevador, que sufoco a descida desde o 4º Andar onde moro!

 

            Ao enumerar os predicados que deve ter o paciente fisioterápico, esqueci-me de um: o bom humor! Todos os que se encontram dentro daquela piscina são possuidores de um sentimento em comum: a dor! Para suportá-la melhor, nada mais apropriado que a descontração, a sadia brincadeira. Por isso, quero mencionar aqui os nomes de alguns colegas que tornaram tantas horas de atividade fisioterápicas mais toleráveis e até divertidas.

 

            São ou foram eles: Ondina Melo, Marcos Chagas, Wanda Moraes, Carlos Gonçalves, Neuda Macedo, Israel Tavares, Leonor Gonçalves, Fernando Moura, Cléia Almeida, Valdemir Roggia, Maria Angélica, Ariday Emília, Paulo Furtado, Mariângela Junqueira, Maria do Carmo, Adelina Nardelli, Pedro Cunha, Solange Tavares, Lúcia Carrozzo, João Veloso, Vera Espíndola, Renato Dantas, Maria Rita e Moisés Werbert.

 

            Em setembro de 2007, a Dra. Karina se afastou, grávida de gêmeos, e não encontrou, até agora, um modo de conciliar a profissão com as atividades de nova mãe.

 

            Desde então, a fisioterapeuta Bárbara Priscila, que a substituiu, passou a cuidar de mim na hidroterapia. Como a Dra. Karina, era loura, eu a chamava de Feiticeira. E, sendo a Dra. Bárbara Priscila morena, pus-lhe o apelido de Tiazinha. A ela devo o muito de minha permanência nesse tratamento, devido à sua alegria contagiante, sempre com um sorriso para brindar seus pacientes logo nas primeiras horas das atividades, que começam às 7 da manhã, e no decorrer delas. Eficiência chegou ali e parou!

 

            Ah, ia-me esquecendo. Há mais ou menos um ano, foi admitida como auxiliar da Dra. Bárbara a chinesa Hoa Lim (pronuncia-se Roá), estagiária, mas já demonstrando grande pendor para essa bela profissão.

 

            Saindo um pouco do sério, vou repetir essa piada um tanto velha, mas que funciona com os fisioterapeutas recém-formados ou ainda estudantes. Pergunta-se a qualquer um deles:

 

            – Sabe por que o símbolo da Fisioterapia são duas cobras?

 

            O novato responderá:

 

            – Não! Isso não me foi ensinado na Faculdade!

 

            Aí, a gente explica:

 

            – É porque se o paciente ficar curado, o fisioterapeuta cobra; se não ficar, cobra também!


De Balsas Para o Mundo quinta, 20 de abril de 2017

MALHAÇÃO NA ACADEMIA RECOR

MALHAÇÃO

Raimundo Floriano

 

 Raimundo na Abdutora: nem a marretada

 

            Um ano após eu ter recebido duas pontes no coração, a coisa andava preta para o meu lado. Cansaço, preguiça e uma dorzinha que, vez em quando, fustigava aqui por riba dos peitos, além do excesso de peso.

 

            Um dia, a dorzinha se avolumou, o que me fez chamar Veroni, minha mulher, para irmos ao cardiologista, às carreiras, temendo o pior. Já escabreado com esses conhecidos sintomas, nem peguei meu carro, chamei logo um táxi, antevendo que, depois da consulta, iria direto para a UTI. Fora assim que tudo começara e culminara nas pontes em fevereiro de 2001.

 

            O Doutor Maurício Beze me atendeu no encaixe. Com o resultado do eletrocardiograma, e depois de consultar minha ficha no computador, deu-me o veredicto:

 

            – Seu Raimundo, o senhor é econômico!

            – Doutor, acho que não. Tudo o que eu ganho, gasto, não consigo ajuntar dinheiro!

            – Não é isso, seu Raimundo. O senhor é econômico no que come. Tudo aquilo que ingere não está sendo despendido, porque seu corpo vive no sedentarismo. Por isso, esse sobrepeso; por isso, essa preguiça; por isso, esse cansaço; por isso, essa dorzinha que, a qualquer hora, poderá ser problemática. O senhor precisa queimar o excesso de alimento que acumula dentro de si e não é absorvido.

 

            E, aí, o diagnóstico:

 

            – O senhor precisa é fazer ginástica!

            – Doutor, é o que eu faço todo santo dia, seja sábado, domingo ou feriado. Das 6 às 7 da manhã, quer chova ou faça sol, eu saio pra minha caminhada na quadra, levando comigo dois halteres de um quilo para exercitar os braços!

            – Não é o bastante. Vou encaminhar o senhor para a Doutora Cristina Calegaro, que tem uma academia lá no Edifício Venâncio 2000. Ela é especializada em reabilitação cardíaca.

 

            Eu ainda quis escorregar:

 

            – Doutor, assim como o senhor me passou uma dieta de 1.500 calorias, que eu venho cumprindo fielmente, será que não dava para também me indicar os exercícios necessários, para que eu os faça em casa? Esse negócio de academia, com aquele bando de atletas...

 

            O doutor compreendeu o meu vacilo:

 

            – Olhe, seu Raimundo, o senhor vai encontrar só pessoas de sua faixa etária, com problemas iguais ao seu. Posso lhe garantir que o senhor vai gostar de lá!

 

            E agora? Se eu tivesse comparecido àquela consulta desacompanhado, chegaria em casa e falaria que o doutor me recomendara fazer exercícios, etc. e tal, e continuaria naquela vidinha de sempre. Mas, tendo minha mulher como testemunha, não havia escapatória. O jeito era aparecer na tal academia. O doutor caiu no meu desagrado a partir daquele momento!

 

            No dia seguinte, 21 de fevereiro de 2002, lá estava eu. Olhei aquele mundo de aparelhos e senti calafrios. Será que eu iria aguentar o banzeiro? Os alunos que já se encontravam no batente até pareciam satisfeitos com o que faziam. A jovem Professora Elisa Lafetá me recebeu e me iniciou na atividade da malhação.

 

            A Academia RECOR é especializada em reabilitação cardíaca e pulmonar, além de condicionamento e atividade física, particularmente para idosos. Seu lema é: Aptidão física e saúde! Os poucos jovens que a frequentam, portam mais problemas que os veteranos. Cada sessão de ginástica, com duração de uma hora e meia, tem esse desdobramento básico:

 

            1- aferição da frequência cardíaca, compreendendo esta a pulsação, sístole e diálise;

            2 - alongamento, para que os músculos despertem e fiquem em condições de trabalhar;

            3 - exercícios aeróbicos, constando de 20 minutos na esteira e 20 na bicicleta;

            4 - musculação, nos diversos aparelhos; e

            5 - alongamento final.

 

            Periodicamente, durante as atividades, são anotados os batimentos cardíacos, que constarão de relatório individual a ser encaminhado ao cardiologista de cada paciente. Para isso, todos usam o frequencímetro, conjunto de cinta torácica e mostrador de pulso, mais conhecido como Polar.

 

            Professores altamente especializados, educadores físicos com curso superior, encarregam-se de ministrar os exercícios. Desde quando lá entrei, tenho passado pelas mãos de outros excelentes profissionais, como a já citada Cristina Calegaro, proprietária do estabelecimento, e os Professores Jefferson Arantes, Elisa, Hetty, Karla, Ricardo, Lídia, Lorena, João Paulo, Marcela, Janaína, Jefferson Cunha e Luís Leonardo. Há, ainda, os nutricionistas, psicólogos e fisioterapeutas, estes atuando nas áreas de RPG, acupuntura e massagens: Luana, Sílvia, Karina, Cláudia, Vladmir, Daniela Brito, Cris Lúcia e Gabriela. Nas equipes de secretaria e apoio, as funcionárias Andressa, Kelly, Melina, Michelle, Sônia, Walkíria, Camila, Elaine, Rozianne, Arnilda e Socorro.

 

Cristina Calegaro: rainha do pedaço

 

            Nesses quase oito anos, tive como colegas de malhação este elenco de amigos: Jorge, Deise – gaúcho macho, chê! –, Eduardo Kanan, Antônio, Sônia, Jorge Nova da Costa, Soraia, Eliete, Magalhães, Naiá, Rômulo, Juracy, Côrtes – orador oficial –, Laércio, Ney, Vargas, Celeste, Necy – outro macho pra caramba! –, Hiroko, Ione, Renato, Hipérides, Dione, José Sallé, Ordenato, Emmerson Deodato, Nilo, Maria Lúcia, Zeiner, Cândido, Mensório, Hércules, Juliana Luíza, Nêmora, Laurista, Rosemari, Coutinho, Japi, Viviane Hérica, Adlon, e os casais Paulo Maurício e Neuza, Hélio e Elce, Sindulfo e Natália, Arnold e Estela, Paulo Basílio e Sônia, Raimundo Menezes e Irismar, Edísio Gomes de Matos e Ethra, Octaviano e Margarida, Moacyr e Helena, e Luiz Arnaldo e Anália. Com sua amizade e alegria, me receberam e me apoiaram no meu estágio inicial e têm sido excelentes companheiros, fazendo com que, dentro de pouco tempo, eu passasse a gostar daquele ambiente e incorporasse a atividade física como parte integrante de minha existência. Hoje, já não imagino a minha vida entregue ao sedentarismo como outrora.

 

            A Doutora Cristina, talvez tomando em consideração que sou o mais sério de todos, me conferiu o título de Xerife da RECOR, cargo ao qual também fui alçado, em 1998, no navio norueguês Leeward, em cruzeiro pelos Mares do Caribe, levando-me a ostentar no peito a respectiva estrela e fazer trilar o meu apito todas as vezes que saio da Academia, ao término da atividade, assinalando esse momento de saudade para os que ainda por lá permanecem ralando.

 

            Desde que encarei a malhação como benefício e parte indispensável da minha rotina, os sintomas como cansaço, preguiça, sobrepeso e dor no peito, que para ali me levaram, sumiram completamente. Embora o peso permaneça praticamente o mesmo, a porcentagem da massa muscular vai vencendo a da massa gordurosa. E dor no peito, só mesmo quando meus times do coração, Vasco e Brasil, se veem em altos sofrimentos. Viva o Doutor Maurício que me mandou pra lá! E viva a Professora Elisa, que me fez gostar dessa bendita atividade.

 

            Como sempre acontece em toda coletividade, na RECOR havia um malhador que se sobressaía em bom humor, criatividade e simpatia com suas brincadeiras e gracejos que muito nos divertiam. Um dia, vinha com tênis de cores diferentes em cada pé; noutro, com dentes de coelho ou de vampiro; noutro, com sapatilha roxa. Era um pândego, um gaiato, um gozador. Não perdia a ocasião de fazer uma das suas. Era o Renato. Imaginação para alegrar nosso ambiente chegou ali e parou.

 

Renato: alegria e criatividade

 

            Certo dia, apresentou-se a uma jovem aluna adolescente, que acabara de chegar à Academia:

 

            – Meu nome é Renato, e o seu?

            – É Alice! Alice Oliva!

            – Então, agora você vai ser personagem de uma lindíssima história infantil.

            – Como assim?

            – Já assistiu ao desenho Alice no País das Maravilhas?

            – Claro que sim, muitas vezes!

 

            E o Renato, dando o seu arremate:

            – Como aqui só tem terceiridoso, você vai ser a Alice no País dos Maravelhos!

 

            Infalível era este procedimento quando ele saía de qualquer aparelho de musculação: deixar o pino regulado no maior peso, para que o colega que o sucedesse pensasse que perdera as forças.

 

            Uma vez, a Professora Karla, no questionário rotineiro, interrogou:

 

            – Seu Renato, como está o exercício? Leve, algo pesado, pesado?

            – Pesado, professora!

 

            A Karla anota na ficha.

 

            – E a frequência? – quer ela saber.

            – Duas vezes por mês! – responde ele.

            – Seu Renato, o que disse? Não ouvi bem!

            – Ah! A frequência – responde ele, consultando o Polar – é 120!

 

            Bastava que qualquer dos colegas faltasse, para ele vir com a mesma empulhação:

 

            – O Fulano hoje não pôde vir, viajou, mas mandou abraço pra todo mundo!

            – E pra onde ele foi? – pergunta a colega Dione.

            – Foi participar da Parada do Orgulho Gay lá em São Paulo.

 

            Ou então, variava com esta:

 

            O Ney hoje não pôde vir, teve que ser operado às pressas, mas mandou abraço pra todo mundo!

 

            – Operado de quê? – pergunta a Elce, preocupada.

            – Do perímetro!

 

            A Elce não escuta bem o que o Renato falou e retruca:

 

            – Renato, deixe de mentira, homem não tem períneo!

            – Eu falei perímetro!

            – E que doença é essa? – indaga a Hiroko.

            – O perímetro abdominal dele está muito avantajado, por isso, foi fazer uma lipoaspiração!

 

            Mas não é só o Renato quem faz suas brincadeiras. Todos participam e dão suas boas respostas quando se veem alvo de alguma gozação. É um ambiente sadio o que reina entre nós.

 

            De outra feita, quando a Doutora Cristina acabou de dar um pesado alongamento para os glúteos – bumbum, para quem não sabe –, ele começou a gemer. A doutora perguntou:

 

            – Doeu, Renato?

 

            E ele, com a maior cara de sofredor:

 

            – Doeu até nos óculos!

 

            Comigo aconteceu passagem hilariante, quando ainda era iniciado na atividade malhadora, que faço questão de registrar. Eu estava na Abdutora, aparelho que fortalece os músculos externos das coxas. Para iniciar o exercício, é necessário regular a carga de acordo com a capacidade de cada um. E isso tem que ser feito com os joelhos bem juntos, com o aparelho em repouso, para poder enfiar o pino no orifício correspondente a cada graduação de peso. Era o que eu estava tentando fazer, mas não conseguia, pois os joelhos estavam um tanto afastados, evitando que o pino se encaixasse. Aí chegou a Professora Hetty e falou:

 

            – Só entra se fechar as pernas!

 


De Balsas Para o Mundo quarta, 19 de abril de 2017

MEUS SETENTA ANOS

MEUS SETENTA ANOS

Raimundo Floriano

 

 

             Oh! Que saudades que eu tenho, da festa que eu vou fazer!

 

            É isso mesmo! O bom da festa é esperar por ela! Depois que começa, já está acabando. Assim, devemos aproveitar o máximo no seu decorrer, para guardarmos as melhores recordações e fazermos outras no futuro, com a ajuda de Deus!

 

            E nessa gostosa reminiscência de hoje, aproveito para contar-lhes como transcorreram os meus 70 anos.

 

            Uma festa com a minha cara! O aniversário, 3 de julho, cairia na segunda-feira, por isso, a comemoração fora antecipada para o domingo, dia 2.

 

            Aconteceu no Centro de Tradições Gaúchas Estância do Planalto, cujo espaço coberto, provido de palco, comporta 400 pessoas sentadas. Mandei colocar um toldo no pátio para receber mais 100.

 

            Na véspera, depois do jogo Brasil 0 x 1 França, fiquei temeroso de que a maioria dos meus 705 convidados não comparecesse, entristecida pela derrota. Mas que nada! Do pessoal confirmado, ninguém faltou! Arredondando, entre parentes e amigos, 500 pessoas!

 

             Veio gente dos quatro cantos do Brasil. Em todos, eu constatei um sentimento com relação ao fiasco de nossa Seleção: indiferença!

 

            O Cerimonial do meu Forrozão/70 ao contatar os convidados para confirmação da presença, informava que o presente seria 1 kg de alimento não perecível. Arrecadamos mais de meia tonelada, tudo doado às obras assistenciais de minha Paróquia. Foi uma forma de agradecer a Deus por tudo o que me deu nesses 70 anos, muito mais, até, do que eu mereci.

 

            Para alguém que, há um ano e meio, não caminhava, foi um milagre eu estar ali, dançando forró com minhas fisioterapeutas, hidroterapeutas, professoras de malhação, enfermeiras, um elenco de abnegadas que me ajudou, me incentivou, me aturou, me jogou para este alto onde agora me encontro. A vitória era também delas!

 

              Contratei o Forró Lunar, melhor conjunto brasiliense de forró pé-de-serra. A comida e a bebida ficaram a cargo da equipe de churrasqueiros do CTG. Boca-livre, claro!

 

            Às 12h30, como previsto, começou a função! Enquanto o forró pesado e a dança rolavam no salão, eu recebia os convidados na entrada principal.

 

            Nos homens, um forte abraço. Nas damas, um carinhoso beijo estalado no rosto. Essa recepção durou até às 13h30.

 

            Nesse momento, a música parou, subi ao palco e dei início à comemoração. Agradeci a Deus por ter-me concedido a bênção daquele momento, com tantos familiares e amigos, e pelo lar que me ajudou a construir. Em seguida, conclamei os balsenses a cantarem a música Balsas Querida, tida como hino oficial de minha cidade natal. Foi um estouro!

 

Forró Lunar: Heitor, flauta - Lico, sanfona - Thiago, violão e voz - Giovanni, zabumba

 Merê, baixo - Adler, triângulo

 

            Ato contínuo, chamei ao palco seu autor, o conterrâneo Augusto Braúna, médico e forrozeiro em Serrinha, interior baiano, que viera prestar sua homenagem à nossa amizade. Músico que é, executou alguns números com sua gaita de boca. Esse gesto de nobreza do Augusto, vindo lá da Bahia com Célia, sua mulher, e Iraciara sua filha, muito me emocionou. Correspondi à gentileza em dezembro de 2007, indo com Veroni, minha mulher, a Serrinha, para a festa dos seus 60 anos, evento que ficará para sempre marcado na história daquela cidade.

 

            Mas voltemos à narrativa que interrompi!

 

            Logo após o show do Augusto, meu saudoso amigo Sebastião Côrtes, colega aposentado da Câmara dos Deputados, decano da festa que, no passado, redigia discursos para o Presidente JK, pronunciou breve e linda peça oratória, na qual exaltou minhas qualidades, lá do modo como ele me via.

 

Raimundo Floriano e Veroni: declaração de amor

 

            Continuando, Veroni fez-me terna declaração de amor, na voz do violonista-cantor Expedito Dantas, com a canção Por Causa de Você, de Michael Sullivan e Paul Massadas, sucesso do KLB:

 

Só você não vê

Finge que não sabe

Que estou sofrendo

Por causa de você

 

Sonho que não vem

Luzes da cidade

Eu me sinto só

Por causa de você

 

Eu te quero tanto

Tanto que nem sei dizer

E a felicidade pra mim

É nunca perder você

 

Peço pra uma estrela

Pra te convencer, enfim

Que não sou ninguém sem você

E não há você sem mim

 

            Retribuí, pedindo ao meu irmão mais velho, o seresteiro Pedro Silva, que me acompanhasse no violão e me ajudasse com o vocal a interpretar a canção Só Você, do romântico José Augusto:

 

Difícil entender

O mundo sem você

Não dá nem pra tentar

A gente se encontrou

Se amou e se gostou

Não dá pra separar

No jeito de pensar

Nos gestos mais banais

Nós somos quase iguais

No sonho mais comum

Nós dois viramos um

Somos uma vida só

 

Eu acho que esse amor

Já fez de nós sol e verão

A rima mais perfeita da canção

A vida é mais bonita

Com você perto de mim

E o coração pequeno

Prum amor tão grande assim

 

Eu quero só você

Nos momentos de ternura

Quero só você

Nos desejos, nas loucuras

Quero só você

Não arranque do meu peito

Esse amor que é todo seu

 

Não posso te perder

Que sentido tem o mundo

Inteiro sem você

Eu não quero me enganar

Vivendo por viver

Eu preciso tanto ter você

Pra sempre em minha vida

 

Pedro Silva e Raimundo Floriano: em retribuição

 

            Em prosseguimento, danei-me a cantar forrós do repertório de Jackson do Pandeiro, com acompanhamento e refrão do Forró Lunar.

 

            Depois disso, meu irmão José Albuquerque, o Carioquinha, poeta e cantor, e Expedito, com seu violão, deram um show de interpretação e talento.

 

            A essas alturas, transcorria o almoço, durante o qual, após a apresentação dos cantores, o forró e a dança rolavam pesado.

 

            Veroni me deixou à vontade. Foi cuidar da administração, do desencadeamento da programação, para que nada desse errado. Incansável, dedicada e eficiente. Enquanto isso, eu, no salão, me entregava totalmente ao meu papel na festa, que era dançar forró.

 

            Havia uma fila de damas esperando a sua vez, 25 no total! Eu tirava uma, e bailávamos até chegar perto do fotógrafo. Feita a pose, largava-a ali e voltava para mais outra.

 

            Além das profissionais das áreas de fisio e hidroterapia, de malhação e de reabilitação cardíaca, foram parceiras na dança minhas sobrinhas, minhas amigas, as filhas e as esposas dos meus amigos, todas querendo me demonstrar seu carinho e também sair bonitas nas fotos que eternizariam lances tão inesquecíveis para mim.

 

            A festa teve três momentos marcantes, que me levaram às lágrimas, muitas. Mas com uma emoção boa, não daquele tipo que dá trancos no coração do sujeito.

 

            O primeiro, quando meu irmão Pedro Silva me trouxe, emoldurada, uma carta que lhe fiz, a 17 de julho de 1946, aos dez anos, onde, nas maltraçadas linhas, dava notícia de certos acontecimentos balsenses e declarava que aquela era a primeira carta que fazia em minha vida. Logo após os rabiscos, a capa do meu livro Do Jumento ao Parlamento e a reprodução do meu célebre Cartão de Visitas, demonstrando que eu melhorara um bocadão sessenta anos depois.

 

            O segundo ficou a cargo de minhas filhas Elba e Mara, que me fizeram grande surpresa, apresentando em telão um vídeo com fatos de toda a minha vida, desde fotos da infância, até filmagens que guardo em meus arquivos. Tudo isso elas prepararam às escondidas, sem que eu desconfiasse de nada.

 

            O terceiro foi protagonizado por todos os meus sobrinhos, sobrinhas e demais pessoas jovens da família Albuquerque e Silva. Entraram no salão tendo à frente um deles caracterizado como palhaço, com pernas de pau, e todos os demais a segui-lo, com roupas e narizes de palhaço, anunciando o espetáculo do circo. Essa encenação eu sempre fazia com minhas filhas ainda crianças, eu representando o palhaço e elas, a molecada. Era, também, uma referência aos meus tempos de ajudante de palhaço no Circo Cometa do Norte, lá no Piauí. No telão, por sinal, passou essa cena, gravada quando a Elba tinha 7, e a Mara, 5 anos de idade.

 

            Às 8 da noite, após a saída dos últimos convidados, revi tudo o que se passara naquela tarde e só pude tirar uma única conclusão:

 

            Aos setenta anos, eu era um homem muito feliz!

 


De Balsas Para o Mundo terça, 18 de abril de 2017

PRETO, O QUÍPER CHAMPRADOR

PRETO, O QUÍPER CHAMPRADOR

Raimundo Floriano

 

 

                        Matéria publicada no Jornal da Besta Fubana no dia 17.3.14.

 

                        Já estamos na Quaresma, e o ano teima em não começar. Isso vai continuar assim até dezembro. Praticamente, podemos passar uma borracha no ano de 2014, pelo menos aqui no Brasil, considerando-o como se não tivesse existido.

 

                        Senão, vejamos. Passada a Quaresma, vem a Semana Santa; depois dela, a Copa do Mundo, que acabará em meados de julho; a seguir, a campanha eleitoral, as Eleições, com Primeiro Turno em 5 de outubro e Segundo Turno a 26 do mesmo mês; Finados e Proclamação da República em novembro; aí, entra-se no clima de Natal, Réveillon, e pronto! Acabou-se o que não foi-se!

 

                        E não sou só eu que pensa assim não. Vejam esta charge publicada dia 5.3.14, Quarta-feira de Cinzas, no Correio Braziliense:


                        Por isso, respirando esse ar futebolístico, que perdurará, como foi dito, até meados de julho, começo contando-lhes um caso muito engraçado, chistoso, do qual vocês vão rir pra cadete.

 

                        Era no tempo do Réis!

 

                        Tempo em que a terminologia do esporte era bem diferente: o goleiro era chamado de quíper; na defesa, jogavam os beques; no meio de campo, os ralfes; no ataque, a linha, onde se destacavam o ponta-esquerda, o ponta direita e o centroavante, que era chamado de centerfor. O juiz ou árbitro era o rifiri; o impedimento era ofisaide; escanteio era córner; a falta era mão ou bruta; e pênalti era pênalti mesmo.

 

Acervo Google 

                        Tempo em que a bola era fechada com cadarço e não tinha nome de batismo como as das últimas Copas. Eram chamadas de pelota, couro, pneu, ou, simplesmente, bola.

 

                        Estávamos no início da Década de 1940, quando ainda não fora mudado nosso padrão monetário para o Cruzeiro. Era, portanto, no tempo do Réis. O que nada tem a ver com o que aqui será narrado e serve apenas para situar o episódio nas calendas de antigamente.

 

                        Havia, em Balsas, um negro conhecido como Preto, agregado do Tio Cazuza, de Seu Tarcísio Moreira, de Seu Elias Kury, de Seu Luiz Silva e de outros comerciantes, prestando muitos tipos de serviço, como varrer a loja, carregar fardos de mercadorias no lombo – trabalho de cangueiro, como era chamado o estivador por lá –, sendo também chofer e, nos finais de semana, quíper da Seleção Balsense.

 

                        O “estádio” não tinha grama, era um campo escalvado, chão duro e batido, onde cada queda resultava em ferida ou contusão grave. Não havia rede nas traves. Muitas vezes, o rifiri, devido a alguma tomada de decisão polêmica, voltava pra casa debaixo de taca. Num campo sem marcação de cal no meio, nas laterais, na linha de fundo, ou definindo a grande e a pequena área, apitar era atividade intensamente heróica, arriscosa e insalubre por demais.

 

                        Imaginem o sacrifício, naquele tempo, do quíper, sem luvas, caneleiras, joelheiras e tornozeleiras, enfrentar a brutalidade dos atacantes adversários.

 

                        Mas o Preto a tudo enfrentava com bravura e de modo estiloso. Inventara uma jogada a que deu o nome de champrar. Quando a bola vinha na altura conveniente, ele a agarrava, champrando-a, nesta posição:

Preto champrando a pelota 

                        Isso fez escola.

 

                        No entanto, o que eu pretendo lhes contar nada tem a ver com o futebol.

 

                        Certa vez, o Tio Cazuza e alguns comerciantes amigos viajaram a São Paulo, no intuito de comprarem mercadorias e um caminhão, que as transportaria, levando o Preto como chofer.

 

                        As negociações demoraram, levaram dias, fazendo com que o Preto, em dado momento, chegasse para o Tio Cazuza e falasse:

 

                        – Seu Cazuza, eu quero ir simbora! Num aguento essa vida de Sun Palo!

 

                        Tio Cazuza até se espantou, pois o Preto estava recebendo o melhor tratamento possível, hospedado no mesmo hotel que os patrões e comendo nos mesmos restaurantes. Ao perguntar-lhe a causa de seu desassossego, o Preto respondeu:

 

                        – Seu Cazuza, neste mundo, só ficou um divertimento pra pobre como eu, que é f*der, mas já tô com quaje um mês aqui e ainda num dei nem uma bimbada! Vou simbora! Fico aqui mais não!

 

                        Diante do exposto, e com todas as pendências mercantis resolvidas, Tio Cazuza e seus companheiros encetaram a viagem de volta no dia seguinte.

 

 

                        Contam que, na estrada, confortavelmente na boleia do Chevrolet zerado, o Preto, Macunaíma sul-maranhense, enquanto dirigia, entoava este refrão que, mais de 30 anos depois, viraria tema de enredo de uma escola de samba carioca:

 

“Vou simbora, vou simbora

Eu aqui fico mais não

Vou voltar pras rapariga

Dos cabaré do sertão”

 

 

 

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De Balsas Para o Mundo segunda, 17 de abril de 2017

O XERIFE BRASILEIRO

O XERIFE BRASILEIRO

Raimundo Floriano

 

 

O Xerife em uniforme de passeio

 

            Meu maior sonho de consumo, hoje, é morar num quatro-quartos na 216 Sul. Até 1998, era andar de navio!

 

            Acho que esse intenso desejo se originava no fato de eu ter sido criado praticamente dentro do Rio Balsas, e do aspecto de que a minha primeira viagem na vida fora a bordo de uma embarcação.

 

            Mas nunca me mexia para realizar a fantasia. Ficava a imaginar, quando assistia a filmes na TV ou no cinema, como o Titanic, o encanto que seria viver essa aventura.

 

            Pois no mesmo ano em que o Titanic passou em Brasília, 1998, minha filha Elba completaria 15 anos e escolheu, em vez de festa, um pacote turístico que incluía excursão à Disney e viagem pelo Caribe, partindo de Miami e indo até Cancun, no México. No dia 11 de julho, eu, Veroni, Elba, Mara e Carolina Leal, a Carol, debutante e nossa amiga, viajamos rumo ao desconhecido.

 

            Fiquei tão alvoroçado com a segunda parte do pacote, que nem prestei muita atenção nos brinquedos e demais diversões dos parques em Orlando.

 

            Na segunda quinzena de julho, embarcamos, em Miami, no navio Leeward, da Norwegian Cruise Line, uma pequena cidade com população, contando passageiros, tripulantes, músicos e artistas, em torno de 3 mil pessoas, comandado por um norueguês, o Capitão Jan Ottessen.

 

            Para se ter uma ideia da extensão física do navio, o ator John Travolta e a cantora Gloria Gaynor também viajavam conosco, conforme publicado no jornal diário de bordo, mas não os vimos em momento algum.

 

            Tão logo zarpamos, a primeira emoção já se nos apresentou! Naquele ano, o dólar valia apenas 1 real, fazendo com que os Estados Unidos ficassem abarrotados de brasileiros. No mesmo roteiro, seguiam mais três navios: na frente, o Leeward, no meio, o Ecstasy e, na retaguarda, o Sovereign Of The Seas, guardando cerca de 3 quilômetros um do outro.

 

            À tarde, o lance de arrepiar! O navio Ecstasy começou a pegar fogo, acidente transmitido pela TV para o mundo todo e também visto por nós a olho nu. No Brasil, inclusive para os meus familiares, foram momentos de grande aflição, sem saberem em qual deles estávamos.

 

            Tudo não passou de um grande susto, pois os bombeiros de Miami são eficientíssimos e, em pouco tempo, debelaram o fogo. Os passageiros do Ecstasy foram resgatados pelo Sovereign.

 

            Se eu boquiaberto já estava com o ocorrido, mais perplexo fiquei com o mundo novo de glamour e requinte com que me deparei no interior do Leeward. O cassino, as lanchonetes, as piscinas, os shows ininterruptos no deck, os bingos, os jantares a rigor, os espetáculos à noite e, lá fora, o mar, o verde mar, que se estendia até o horizonte – tudo isso valia o esforço que fizera saindo de vidinha acomodada de sempre para usufruir de tudo aquilo que me ofuscava de tanto fulgor.

 

Navio Leeward: pequena cidade flutuante

 

            Tratei logo de fazer amizade com as pessoas que me interessavam, dentro do plano que concebera desde que saíra de Brasília. No navio, a gente podia agradar à vontade os tripulantes com gorjetas, que eles chamam de tip, existindo até uma tabela para nossa orientação.

 

            Comecei com o garçom jamaicano Patrik, molhando-lhe generosamente a mão, para que me trouxesse no café da manhã, diariamente, pão francês feito na hora. Caso vocês não saibam, quase todos os pães lá no exterior são doces. Nos jantares, Patrik também me orientava para não cometer gafes.

 

            Vou interromper minha narrativa para responder-lhes a pergunta que me fariam se aqui estivessem: como é que eu me entendia com eles, os jamaicanos, os americanos e os noruegueses? E eu esclareço: com o meu Inglês macarrônico! Quem tem vergonha, passa fome!

 

            Já com o camareiro americano Owen Wilson, a conversa foi bem outra. Pedi-lhe que me conseguisse uma entrevista com o Imediato do navio. Feitas as devidas gestões, o Imediato, que era norueguês e se chamava Olav Eriksson, descendente de vikings, bravos navegantes que fizeram a história da Noruega, recebeu-me em seu camarote.

 

            Revelei-lhe a minha aspiração. Falei-lhe do sonho que estava realizando, mas sua plenitude não seria atingida se eu não fosse agraciado com um cargo na tripulação do navio. Nem que fosse de porco-d’água, marinheiro desqualificado, como se falava em minha terra.

 

            O Imediato respondeu-me que sentia muito não poder atender-me, porque eu não possuía curso náutico algum que me habilitasse a qualquer cargo de navegador.

 

            Contei-lhe, então, o caso de Vasco Moscoso de Aragão, personagem do livro Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado, que fora nomeado Capitão de Longo Curso por amigos seus, oficiais da Marinha Mercante Brasileira.

 

            Olav Eriksson novamente quis me dissuadir. Revelou-me que o livro de Jorge Amado é conhecido por toda a marujada norueguesa, mas que o relato não passa de ficção.

 

            E eu, brasileiro que sou, apelei mais uma vez à sua boa vontade, perguntando se ele não poderia dar um jeitinho. Pois não é que o Imediato achou uma solução!

 

            Disse-me que eu poderia ser nomeado Xerife do Leeward, caso quisesse, bastando para isso adquirir a estrela correspondente na butique – no exterior, tudo se compra, tudo se vende – e a usasse na Noite do Capitão, para que o posto fosse oficializado.

 

            A estrela é imponente! Com seis pontas, tem no centro um escudo, dentro do qual se vê a figura do Leeward. Acima do escudo, em baixo-relevo, a palavra Sheriff; abaixo dele, o nome do navio.

 

            Luxo, brilho, esnobismo, fausto, exibição, novo-riquismo, ostentação, esplendor e o que você pensar de sedução e encanto caracterizam a Noite do Capitão.

 

            Vestindo meu terno mais vistoso, e acompanhado de minha família, toda ela nos trinques, tendo na lapela esquerda o símbolo do Vasco da Gama e, sobre o bolso direito a competente estrela, fui entronizado no Leeward no posto náutico de Xerife.

 

O Capitão Jan Ottessen e o Xerife: noite de gala

 

            Na última noite a bordo, realizou-se o Baile das Debutantes, no amplo salão de festas, tendo como astro convidado o ator global Eduardo Moscovis.

 

            Retornando ao Brasil, passei a ostentar a nova insígnia e a exercer a minha xerifança em Brasília, sendo, no futuro, reconhecido como Xerife da Academia RECOR e da Academia BOCA.

 

            No desempenho do meu nobre ofício, uso dois tipos de uniforme: o de passeio e o de serviço. O de passeio consiste de uma camisa escura, com a inscrição Balsas-MA no peito direito, estrela no peito esquerdo e quepe, no qual se veem, na frente, a inscrição Balsas-MA, encimada pelo símbolo do Exército Brasileiro, ladeado pelos símbolos do Serviço Público, da EsSA - Escola de Sargentos das Armas, a Bandeira Nacional e o símbolo do BPEB - Batalhão de Polícia do Exército de Brasília. O de serviço varia apenas na cobertura, um chapéu de abas rebatidas para cima, com os símbolos do Exército Brasileiro, da EsSA, da Infantaria e do BPEB, e as bandeiras do Brasil e de Portugal.

 

            Muita coisa tem acontecido comigo depois que me vi investido nesse destacado posto.

 

            Logo que cheguei ao Brasil, estava olhando umas vitrines lá no Venâncio 2.000, com o uniforme de passeio, quando fui polidamente abordado por dois policiais militares. Perguntaram-me o que significava aquela estrela. Disse-lhes que era Xerife e mostrei a inscrição nela contida. Os policiais questionaram a explicação, dizendo que esse cargo de Xerife não existe no Brasil. Contei-lhes a história de minha investidura no navio Leeward, mas nem assim se deram por satisfeito e solicitaram que eu lhes mostrasse meus documentos. Comecei pela identidade de 2º Tenente da Reserva do Exército Brasileiro. Foi o bastante! Os dois bateram continência e se retiraram!

 

            Doutra feita, estava eu, com o uniforme de serviço, num barzinho do Setor Comercial Sul, desses próprios para happy hour, para assistir ao lançamento do livro Mil Piadas de Salão: Dicionedotário, de Alan Viggiano. Como chegara cedo, sentei-me sozinho numa das inúmeras mesas disponíveis e aproveitei para adiantar a leitura do exemplar já comprado, enquanto aguardava o Alan para pegar o meu autógrafo.

 

            Os convidados foram chegando e ocupando as demais mesas, mas nenhum se habilitou a me fazer companhia, embora, dali a pouco, não houvesse lugar para mais ninguém sentado.

 

            Perto de mim, chegara um grupo barulhento de jovens, que ocupara duas mesas e se divertia a valer, tendo como o chefe das brincadeiras e das piadas um coroa baixinho e gordo. Notei que todas as pilhérias eram dirigidas à minha figura, mas fiz que nada percebia. Não contente com os gracejos, o grupo desafiou o gordinho a ir falar comigo e apurar quem eu era. E o gordinho não se fez de rogado. Chegou à minha mesa, sentou-se e perguntou:

 

            – Você é Xerife!

            Respondi-lhe:

            – Why don’t you diet? – tradução: por que você não faz uma dieta?

            Ele olhou para a sua turma, esboçou um sorrisinho amarelo, e voltou à carga:

            – Você é americano?

            Retruquei-lhe:

            – OK, big donkey! – tradução: é isso aí, grande jumento!

 

            O gaiato levantou-se e voltou para a sua mesa, onde a tagarelice teve um fim.

 

            Quando estive a passeio no Nordeste, notei que por lá ninguém respeita a faixa de pedestre, diferentemente dos motoristas de Brasília, que são exemplo para todo o País.

 

            Em João Pessoa, em frente ao Hardman Hotel, onde me achava hospedado, havia uma delas, recém-pintada, bem visível, separando-o da Praia de Manaíra. Mas era muito difícil atravessar a pista ali, pois ninguém obedecia ao sinal de vida – aceno para os veículos com o braço na horizontal.

 

            Estranhei aquilo e conversei com os taxistas que fazem ponto no local, e eles me explicaram que na dita faixa já ocorrera até atropelamento de turista.

 

            Sabendo disso, subi ao meu apartamento, enverguei o uniforme de Xerife e postei-me junto à faixa, com um apito na mão. Bastava fazer o sinal de vida, e todos os carros paravam como se isso fosse um velho costume dos pessoenses. Os taxistas regozijavam-se e me pediam:

 

            – Xerife, não vá embora! A Paraíba agradecerá!

 

            Aqui em Brasília, certa manhã, eu acabara de apitar um jogo de dominó dos aposentados, na Banca de Revistas da 215 Sul, e me dirigia, em uniforme de passeio, para a Loteria da 414. Ao chegar na faixa de pedestre confrontando com o Bar Cristal, já havia lá um garoto desconhecido, regulando uns 10 anos de idade. Um carro se aproximava. Eu e o garoto demos o sinal de vida. Quando botei o pé na faixa, o menino gritou:

 

            – Xerife, o carro não vai parar!

 

            Estaquei no ato!

 

            Com razão! No volante, vinha uma mulher falando ao celular, sem dar mostra alguma de que nos vira. Instintivamente, soprei com energia o apito que trazia ainda dependurado no pescoço, para que ela tomasse conhecimento da gravidade do ato que acabara de cometer.

 

            O apito surtiu efeito. Lá diante, a mulher parou, estacionou o carro na grama e veio falar comigo, achando que eu tivesse autoridade para aplicar-lhe uma multa. Ao chegar, interpelei-a:

 

            – A senhora viu o desastre que ia causando? Poderia até nos matar!

            Ela começou com a conversa mole de sempre:

            – Foi só um momento de desatenção, porque eu estava muito preocupada e com pressa.

            Voltei à carga:

            – Ainda mais, falando ao celular, o que é proibido!

            A mulher tentou contemporizar:

            – Será que o senhor não poderia aliviar, ao menos por esta vez?

            Nesse momento, o menino, que não arredara o pé dali, falou para a mulher:

            – A senhora está enganada! Todo mundo aqui na Quadra sabe que o Xerife não é lagoa!

            – Não é lagoa? O que é isso, menino?

            E o garoto:

            – O Xerife não é lagoa pra refrescar c(*) de pato!

            A mulher virou uma fera! Nervosa, gritou para o menino:

            – Me respeita, moleque atrevido!

 

            E foi-se retirando. Após umas 10 passadas, abriu uma carteira que portava no bolso do casaco, retirou dela uma nota de 50 reais, arremessou-a na minha direção e prosseguiu sem olhar mais para trás.

 

            O garoto, vendo que eu já ia encetando a caminhada rumo à 414, pegou a nota e azulou no mundo, em desabalada carreira!

 

            Ora, vejam só!

 

O Xerife em uniforme de serviço

 


De Balsas Para o Mundo sábado, 15 de abril de 2017

UROPRESTÍGIO

UROPRESTÍGIO

Raimundo Floriano

 

 

 O terrível exame: pesadelo dos pacientes

 

            Não sabe aquele exame em que a gente tem de encher a bexiga até a tampa? A tal ultrassonografia renal e prostática? Pois é, dia desses, eu era a bola da vez. Dos 40 em diante, essa é a rotina anual de todo o homem que se cuida, visando a evitar desagradáveis ou fatais surpresas.

 

            Depois de beber uns 15 litros d’água, parti para o laboratório. Por acaso, estava vestindo a camiseta polo branca do concorridíssimo 30º Congresso de Urologia, com a logomarca do evento, que ganhara na véspera.

 

             Aliás, devo informar que minha afinidade com esse importantíssimo ramo da Medicina se restringe à de paciente e que, tendo por lá dado uma de curioso, fui regiamente agraciado com estes preciosos brindes: 1 mochila, 1 caneta, referida camisa e 1 – unzinho só – comprimido de Sildenafil, genérico do Viagra, amostra grátis mediante receita.

 

            Voltemos ao exame. Já na saída de casa, não aguentava a pressão que me forçava a expelir todo aquele mijo.

 

            Feita a ficha no laboratório, fui encaminhado à sala de espera. Em lá chegando, pensei que não iria segurar a barra. Umas 20 pessoas já ali estavam, todas na fila do bebedouro, engolindo água e mais água. Eu, quase pingando na cueca, cogitei: “Será que suporto até ser atendido?”.

 

            De repente, veio uma recepcionista com as fichas na mão. Ia chamar pela ordem de chegada, mas me viu, olhou a camisa logomarcada, e voltou lá pra dentro. Com pouco, retornou e disse:

 

            – Primeiro, o doutor ali!

 

             Olhei em derredor. Era eu mesmo. Para ser honesto, eu deveria ter esclarecido que chegara por último, que a vez seria de outro. E o perigo de urinar nas calças? Com a maior cara de pau, acompanhei-a. Pelo que deduzi depois, a camisa do Congresso me valera por demais naquele momento.

 

            Mas devo me precatar.

 

            A revista Veja, de 6 de abril de 2005, informa que um deputado estadual, em discurso na tribuna da Assembléia Legislativa da Bahia contra o toque retal no exame de próstata a que se submetera pela manhã, assim se expressou:

 

“Até agora estou vendo estrelas, graças à virulência do médico. Se fazem isso com um Deputado, imagine com um sem-terra ou um desempregado. Eu me senti deflorado!”

 

            Nessas circunstâncias, meus amigos, muita cautela é o que se recomenda.

 

            Na próxima consulta, o retorno, com o resultado do laboratório em mãos, mais o do PSA, irei à presença do meu urologista, o Doutor Fragomeni, mais conhecido como o Mão Grande.

 

            Mas lá estarei trajando novamente a abençoada camiseta. Talvez assim me veja dispensado da temida e costumeira dedada!

 


De Balsas Para o Mundo sexta, 14 de abril de 2017

JACKSON NÃO MORREU (DO LIVRO DE BALSAS PARA O MUNDO)

JACKSON NÃO MORREU

Raimundo Floriano

 

 

Nosso ídolo

 

            Calmaí, minha gente!

 

             Não me refiro ao compositor, cantor e dançarino americano Michael Joseph Jackson (29.08.1958/26.06.2009), o Michael Jackson, o Rei do Pop, que presentemente todo o mundo chora. Reporto-me ao músico, compositor e cantor brasileiro e paraibano José Gomes Filho (31.08.1919/10.07.1982), o Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo, que ora o meu Nordeste canta.

 

            Jackson do Pandeiro, logo no início da carreira, chamou-nos a atenção pela forma peculiar de cantar seus forrós e dividir as sílabas de modo nunca antes ouvido no cenário forrozeiro deste país.

 

            Michael Jackson também assombrou as plateias ao dançar de um jeito novo. Dando passos à frente, mas andando pra trás, levou-nos até a supor que, para inventar essa coreografia, dum jeito que Fred Astaire, Gene Kelly e Elvis Presley jamais imaginaram, pode ter-se inspirado ao ouvir Jackson do Pandeiro cantando o rojão Sebastiana, de Rosil Cavalcanti, que diz: “ela veio com uma dança diferente”.

 

            Extasiou o Planeta Terra!

 

            Brincadeira à parte, o fato concreto é que ambos apresentaram notáveis coincidências no seu breve existir. Nosso Jackson viveu apenas 63 anos, e o Jackson americano, só 50. E mais: ambos eram negros, ambos nasceram sob o signo de Virgem, ambos se chamavam José, ambos sucumbiram vítimas de problemas cardíacos, ambos faleceram sob o signo de Câncer, ambos tiveram o apogeu de suas vidas em 1982.

 

            Naquele ano, Jackson do Pandeiro chegou ao ápice, ao deixar a vida terrena e transportar-se para o Mundo Racional, que ele tanto louvou nos rojões Alegria, Minha Gente, e A Luz do Saber, ambos de João Lemos. Michael Jackson, por seu turno, atingiu o cume de sua carreira artística no mesmo ano, ao lançar o álbum Thriller, que vendeu inacreditáveis 100 milhões de cópias!

 

            E as coincidências param por aqui!

 

            Com o incrível sucesso de Thriller, Michael Jackson firmou-se como o Rei do Pop, mas, em 1987, apenas cinco anos depois, as vendas do álbum Bad só atingiram a casa dos 30 milhões. Era a queda. Michael enfrentou obstáculos para acompanhar as novas tendências da música negra, como o rap e o hip hop, advindo disso as esquisitices em que mergulhou, do conhecimento de todos.

 

            Enquanto que o nosso Jackson, ah, o nosso Jackson!

 

            Em vida, teve de enfrentar fortíssimas inovações como o rock, a bossa nova, o iê-iê-iê, a jovem guarda, a nova MPB, o tropicalismo, os festivais com peças de laboratório. Depois de falecido, sua música suplantou a lambada, a axé-music, o pagode, o sertanejo, o brega e o forró plastificado.

 

            O ano de 2036 está longe! Bem distante! Faltam 27 longos anos para que se chegue lá! Será que as gerações existentes naquele longínquo futuro ainda reservarão para Michael Jackson o mesmo fervor, já não digo de quando do lançamento de Thriller, mas o de 2009, reacendido com o seu precoce desaparecimento?

 

            Faz 27 anos que Jackson do Pandeiro nos deixou, e sua música e o seu estilo estão mais presentes do que nunca. A grande Nação Nordestina ainda o mantém perene em sua criação forrozeira. Os exemplos a seguir dão uma ideia do enorme elenco dos grandes artistas que o têm como uma de suas referências musicais.

 

            Dentre os veteranos, ainda gloriosos na estrada, Elba Ramalho, Gilberto Gil, Trio Siridó, Dominguinhos, Zé Ramalho, Alceu Valença, Cecéu, Genival Lacerda, João Silva, Nando Cordel, Zenilton, Clemilda, Jorge de Altinho, Chiquinho Calixto, Terezinha do Acordeom, Severo.

 

            Na nova geração, a turma não para de crescer: Cezinha, Flávio Leandro, Bia Marinho, Hélio Donato, Anchieta Dali, Nena Queiroga, Josildo Sá, Rogério Rangel, Júnior do Bode, Cláudio Moreno, Ébano Nunes, Greg Marinho, Silvério Pessoa, Trio Virgulino, Trio Sabiá, Nádia Maia, O Bando de Maria, Trio Araripe, Adelmo Farias, Flávio José, Irah Caldeira, Kelly Rosa, Maciel Melo, Maria Dapaz, Mastruz com Leite, Novinho da Paraíba, Petrúcio Amorim, Cristina Amaral, Targino Gondim, Xico Bizerra, Santanna, o “Cantador”, Júnior Vieira, Eliezer Setton. São tantos!

 

            Hoje, 31 de agosto de 2009, quando lhes escrevo este capítulo, Jackson do Pandeiro, nosso eterno ídolo, completa 90 anos! E, ao ver a magnífica relação de artista acima citados e outros mais prestando-lhe justíssimo preito de homenagem e nele se inspirando, é com inexcedível entusiasmo que inflo o peito para proclamar:

 

            – Jackson do Pandeiro é imortal!

 

            Eu mesmo, do alto dos meus 73 anos, sem dotes artísticos e vocais para o canto, faço questão de propagar o nome de Jackson do Pandeiro por todo o lugar aonde vou. E foi o que aconteceu em 2003, na Praia da Pipa (RN), apoiado por excelente Trio Nordestino local, quando dei um grande espetáculo, cantando seus maiores sucessos, para a multidão de banhistas que me aplaudia.

 

             E pedia bis!

 


De Balsas Para o Mundo quinta, 13 de abril de 2017

IMORTAL EU SOU

IMORTAL EU SOU

Raimundo Floriano

 

 

O Disco-Símbolo da Imortalidade

 

            Fábio Cabral, Fundador da Academia Passa Disco da Música Nordestina, sediada no Recife-PE, me enviou mensagem perguntando quando eu iria tomar posse na referida. Estranhei, pois nem convidado fora. Mas, logo em seguida, Paulo Carvalho, Presidente do Órgão, confirmou-me a boa-nova, informando-me de que eu seria titular da Cadeira n° 10 e que deveria escolher um Patrono.

 

            Não fui com essa de dizer não mereço, não estou à altura, etc. e coisa e tal. Não! Com mais de 50 anos nesta minha cachaça de colecionador e pesquisador da nossa MPB, em especial do Dobrado, do Carnaval e do Forró, divulgando e compartilhando os achados de minha garimpagem, ultimamente no Jornal da Besta Fubana (www.luizberto.com), onde tenho um cantinho, A Coluna de Raimundo Floriano, já estava mais do que na hora de que isso fosse reconhecido por alguém.

 

            E quão grande foi a minha alegria ao constatar que esse primeiro alguém era uma instituição pernambucana, recifense, cujos dirigentes eu conhecia apenas virtualmente, pelo Orkut!

 

            Ainda que nascido no Maranhão e residente em Brasília há quase 50 anos, tenho em minhas veias o sangue pernambucano, conforme passo a explicar.

 

            A colonização de nosso país teve início com a implantação, por D. João III, Rei de Portugal, das Capitanias Hereditárias. Apenas duas delas prosperaram: São Vicente e Pernambuco.

 

            Duarte Coelho Pereira, 1º Capitão Donatário da Capitania de Pernambuco, chegou ao Brasil em 1535, trazendo consigo a esposa, D. Brites de Albuquerque, e o cunhado, Jerônimo de Albuquerque, solteiro, estabelecendo-se em Olinda. Do seu casamento, nasceram dois filhos olindenses: Duarte de Albuquerque Coelho e Jorge de Albuquerque Coelho. Duarte foi o 2° Donatário da Capitania, e Jorge, seu lugar-tenente. Ambos, quando a Pátria Lusa assim o exigiu, partiram para a África, onde Portugal, sob o comando do Rei D. Sebastião, lutava contra os mouros.

            Pelo que se sabe, Duarte e Jorge de Albuquerque Coelho não constituíram prole no Brasil. Por seu turno, Jerônimo de Albuquerque saiu-nos além da medida!

 

            O romanceiro cordelista lhe atribui filhos com mais de cem mulheres. Teve-as aos montões, a ponto de receber o cognome de Adão Pernambucano. Oficialmente, deixou 35 filhos, 125 netos e 220 bisnetos. Houve momento, diz-se, em que toda e qualquer família no Nordeste tinha um pingo do seu sangue.

 

            Durante um combate, Jerônimo, bravo guerreiro, foi aprisionado pelos índios tabajaras, antropófagos. Esteve prestes a ser devorado, mas foi salvo pela filha do Cacique Arcoverde, Muira-Ubi, mais tarde batizada Maria do Espírito Santo, com quem se casou, advindo dessa união oito filhos.

 

            O mais importante deles, Jerônimo de Albuquerque Maranhão, expulsou os franceses do Maranhão, em 1615, auxiliado por reforços vindos de Portugal. Devido a tal ato de bravura, foi nomeado capitão-mor daquele hoje Estado, cujo nome acrescentou ao seu.  Sou, portanto, descendente desse nobre mameluco. E, detalhe mais impressionante nessa genealogia: tal qual Jerônimo, plantador da semente dos Albuquerques no Brasil, sou casado com uma indígena, cuja avó era nativa da Nação Tapuia.

 

            Dito isso, passo a falar sobre a escolha de minha Patrona, a cantora Elba Ramalho.

 

            No final dos anos 70, a Música Nordestina ressentia-se da carência de representantes femininas que a divulgassem, e também a revigorassem, em universo quase totalmente dominado pelo sexo masculino. Importantes musas do nosso Forró, como Marinês e Anastácia, estavam praticamente aposentadas. Havia, sim, cantoras no Nordeste já consagradas nacionalmente, mas que nada fizeram por nossa Música Regional, como Alcione, Maria Bethânia e Gal Costa.

 

            Tomei conhecimento da existência de Elba Ramalho em 1979, ao ouvi-la no LP Asas da América, num projeto de revitalização do Frevo, no qual interpretava duas faixas: Olha o Trem e A Mulher do Dia, ambas de Carlos Fernando. Gamei na hora! Despontava uma forrozeira nova que, embora no Frevo, já demonstrava a que veio, com sua voz de pastorinha e modo de cantar inteiramente novo e seu. Porém eu queria mais. Queria ouvi-la também no Forró, matando a pau.

 

            E isso não se fez esperar. Ainda em 1979, pelo final do ano, lançou seu primeiro LP, Ave de Prata, onde Canta, Coração, de Carlos Fernando e Geraldo Azevedo, e Bodocongó, de Humberto Teixeira e Cícero Nunes, a entronizaram no sagrado templo do Forró, além de Não Sonho Mais, de Chico Buarque, onde esganiçava a voz, num jeito personalizado de cantar.

 

            Instalara-se ela, assim, no meu gosto e na minha preferência. Desde então, passei a acompanhar o seu trabalho e a adquirir todos os seus registros fonográficos.

 

            Em 1982, após a morte de Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo, Elba passou a ser minha principal referência na Música Nordestina, porquanto Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, já se encontrava no seu ocaso artístico. De 1979 até agora, gravou uns 30 frevos e cerca de 80 forrós.

 

            Enquanto isso, as exceções nordestinas acima citadas, somadas às novatas, porém já famosas, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Pitty, Margareth Menezes e outras, passaram e passam ao largo de nossas raízes musicais

.

            Elba Ramalho é hoje o nosso grande ícone, e, com imensa alegria, vejo surgirem a cada dia novas cantoras espelhando-se no seu estilo, na sua voz, no seu carisma.

 

            Meu fascínio por Elba Ramalho solidificou-se e intensificou-se de tal forma que, em 1983, quando nasceu minha primeira filha, batizei-a com o nome de Elba.

 

            Quando a menina estava com 20 dias de nascida, a cantora, no auge da carreira, veio apresentar-se em Brasília.

 

            Com a ajuda dos meus amigos Luiz Berto e Maurício Mello, na época empresários no Distrito Federal do Forró Pisa na Fulô, consegui que a estrela tirasse uma foto com minha filha nos braços.

 

            Feita a escolha da Patrona, e após a devida comunicação da Academia à cantora, a grande surpresa: nestes tempos de agenda forrozeira lotada, ela aceitou, marcando a solenidade para as 19h00 do dia 27 de maio de 2009.

 

            Assim, no dia 26 de maio, uma terça-feira, parti para o Recife, acompanhado de Veroni, minha mulher, e Mara, nossa caçula – Elba, a da foto, não pôde viajar, devido à sua recente posse em cargo público. Nesse mesmo dia, hospedamo-nos no Hotel Manibu Recife, em Boa Viagem, onde instalei meu Cardinalato.

 

            Comunicada minha chegada ao Papa Berto I, meu amigo desde 1966, pôs ele à minha disposição o papamóvel, choferado pelo eficientíssimo cinesíforo Vilaça que, à noite, nos conduziu ao Palácio Pontifício, localizado no bairro Apipucos.

 

Elba e Elba, em outubro de 1983

 

            No Palácio Pontifício, o Papa Berto I havia providenciado reunião com alguns clérigos da Igreja Católica Apostólica Sertaneja - ICAS, ou, simplesmente, Igreja Sertaneja, contando com as seguintes presenças, além do Papa e do meu pessoal: Papisa Aline, Papinha João Berto, Cardeal João Veiga, Padre Arnaldo Ferreira, Padre Fábio Cabral e Cila, sua mulher, Padre Ismael Gaião e o leigo Valter Azevedo, amigo orkutiano que, mais tarde, no meu Decreto Cardinalício nº 1, seria nomeado Seminarista.

 

            O Papa lamentou que, dentre os sacerdotes convidados, três houvessem apresentado suas escusas pela ausência naquela ágape, por motivos diversos e justificadíssimos: o Cardeal Zelito Nunes, por estarem ele e Madre Lelê, sua mulher, grávidos de quase nove meses, com o ansiado Gabriel prestes a nascer; o Cardeal Xico Bizerra, devido a seu assoberbamento na composição de mais uma cantiga para Elba; e o Cardeal Paulo Carvalho, por mor de escala no hospital onde dá plantão. Felizmente, tive a honra de conhecê-los na solenidade da minha posse.

 

            Em rega-bofe tocado a uísque, refrigerante e tira-gosto, trocamos ideias, aproveitamos para nos conhecermos e relembrarmos fatos acontecidos no passado. Nessa ocasião, o Cardeal João Veiga me presenteou com o livro Poetas do Repente, editado pela Fundação Joaquim Nabuco, acompanhado de CD e DVD, preciosos documentos para as minhas pesquisas e o meu deleite.

 

            Lá pelas tantas, o Sumo Pontífice convidou todos os presentes a comparecerem ao Escritório Papal, para a inauguração, na parede dessa dependência palaciana, de duas novas placas de logradouros públicos, com nomes de amigos seus. É um modo de o Papa demonstrar sua deferência a alguns privilegiados membros da seita. Salamaleques e rapapés papais!

 

            Ali, em local de destaque, já se encontravam: Avenida Cyll Gallindo, Rua Vladimir Carvalho, Beco do Giba, Viela Orlando Tejo, Arruado Maurício Melo Jr. e Alameda General-Presidente Natanael. Duas novas placas encontravam-se veladas. Descerradas pelo Papa, surgiram os nomes: Esquina Raimundo Floriano e Travessa Arnaldo Ferreira.

 

            Encerrando essa cerimônia, o Padre Ismael Gaião lavrou em livro especial a Ata do Feito e procedeu à sua leitura, após o que foi ela assinada pelos homenageados.

 

            Nada mais havendo a tratar naquela noite, eu e minha família retiramo-nos para o meu Cardinalato, a bordo do papamóvel, quando o cinesíforo Vilaça mostrou sua eficiência, não só como chofer, mas como utilíssimo cicerone, mostrando-nos e explicando-nos belas vistas turísticas da Capital Mauriceia.

 

            No dia seguinte, 27, quarta-feira, às 17h30, Vilaça nos conduziu no papamóvel para a Academia Passa Disco da Música Nordestina, no Shopping Sítio da Trindade, Estrada do Encanamento, aonde chegamos às 19h00 e ficamos aguardando a vinda da estrela, o que logo aconteceu.

 

            Acompanhada do sanfoneiro Cezinha, seu namorado, Elba Ramalho deu início à comemoração, lançando e autografando seu CD Balaio de Amor, posando para fotos com todos os seus inúmeros fãs e esbanjando simpatia e simplicidade, o que nos fez admirá-la mais ainda.

 

            Passou-se, então, à solenidade de minha posse. No palco montado ao ar livre, compondo a Mesa, Fábio Cabral, Paulo Carvalho e o Imortal Luiz Berto, que, como Mestre de Cerimônias, deu início aos trabalhos. Convocou a mim e à estrela para tomarmos lugar diante da Mesa e em frente à plateia. Depois da saudação feita por Luiz Berto aos novos imortais, Elba Ramalho, a Patrona, entregou-me o Disco-Símbolo da Academia e recebeu idêntico troféu das mãos de Fábio Cabral, com a explicação de que um terceiro Disco ficaria exposto em local próprio na Academia, para marcar a perenidade do ato.

 

            Em seguida, o Presidente Paulo Carvalho deu por encerrada a cerimônia, e Elba Ramalho iniciou seu belíssimo e inesquecível show, cantando, principalmente, as faixas do seu CD recém-lançado.

 

            A Academia Passa Disco da Música Nordestina é, por ora, incipiente, embrionária, mas, dentro em breve, sua abrangência alcançará todo o território nacional. Como agora no meu caso, convocando-me em Brasília. A imortalidade dos seus membros se contém no fato de que, daqui a uns 150 anos, quando se der a primeira vacância em qualquer das Cadeiras, o nome do seu Membro inicial e o do Patrono permanecerão caracterizando-a, como ocorre na Academia Brasileira de Letras.

 

            Até o momento em que escrevo estas maltraçadas linhas, são estes os Imortais: Cadeira nº 00 - Fábio Cabral, empresário do ramo fonográfico e promotor cultural, e seu Patrono Luiz Gonzaga; Cadeira nº 01 - Paulo Carvalho, médico, discófilo e pesquisador, e seu Patrono, Jackson do Pandeiro; Cadeira nº 02 - Lina Fernandes, jornalista, e seu Patrono, Xico Bizerra, compositor e cantor; Cadeira nº 03 - Luiz Berto, escritor e agitador cultural, e sua Patrona, Irah Caldeira, cantora e forrozeira; Cadeira nº 04 - Ana Rios, designer, criadora do Disco-Símbolo da Imortalidade, e seu Patrono, Josildo Sá, compositor e cantor; Cadeira nº 05 - Joselito Nunes – o Zelito –, escritor e poeta, e seu Patrono, Pinto do Monteiro, cordelista e cantador; Cadeira nº 06 - Jessier Quirino, arquiteto, escritor, poeta, cordelista e showman, e seu Patrono, Mestre Salustiano, ator, músico, compositor e artesão; Cadeira nº 07 - Paulo Wanderley, pesquisador e colecionador, especializado em Luiz Gonzaga, e seu Patrono, Dominguinhos; Cadeira nº 08 - Maciel Melo, compositor e cantor, e seu Patrono, Zé Dantas, compositor; Cadeira nº 09 - Anselmo Alves, jornalista e cineasta, e seu Patrono, Lampião, o Rei do Cangaço e sanfoneiro; Cadeira nº 10 - Raimundo Floriano, discófilo e pesquisador, especializado em Jackson do Pandeiro, escritor e cordelista, e sua Patrona, Elba Ramalho; Cadeira nº 11 - José Maria Marques, pesquisador, especializado em Luiz Gonzaga, e seu Patrono, João Silva, cantor e parceiro maior do Gonzagão; Cadeira nº 12 - Santanna, compositor e cantor, e seu Patrono, Accioly Neto, compositor e cantor.

 

            Voltemos à grande festa.

 

            Espetáculo com E maiúsculo foi o que aconteceu ali. Elba não se restringiu apenas a brindar-nos com músicas do seu novo disco ou do seu acurado repertório. Chamou ao palco para interagirem com ela não só alguns dos seus compositores ali presentes, mas também outros artistas que acorreram àquela maravilhosa festa: Flávio Leandro, Rogério Rangel, Eliezer Setton, Xico Bizerra, Terezinha do Acordeom, Júnior Vieira, Anchieta Dali, Luizinho Calixto, Cristina Amaral, Kelly Rosa, Hélio Donato e Conjunto Forroviário, Nena Queiroga, Bia Marinho, Josildo Sá e Targino Gondim, tendo sempre Cezinha como sanfoneiro principal. E todo esse pessoal, inclusive a estrela, se apresentando ali de graça, dando canja, sem cobrar sequer um mísero centavo.

 

                                                                      

            O público era imenso e vibrante. Além de inúmeros membros do clero da Igreja Sertaneja, notaram-se ali outros nomes do mundo artístico nordestino, entre músicos, compositores e intelectuais: Fábio Simões, Arimateia Ayres, Lourdinha Oliveira, Tostão Queiroga, Anjo Caldas, Gabriel Sá, João Cláudio Moreno, Gonzaga Leal, Valter Azevedo, Arluce Carvalho, Jeová da Gaita, Nilson Araújo, Ismael Gaião, Paulo Wanderley, Antônio Marinho, Greg Marinho, Júnior do Bode e Marinna Duarte, sua noiva.

 

            Depois de mais de uma hora em cena, a estrela se retirou, mas a festa prosseguiu até quase meia-noite, com muitos dos artistas acima citados revezando-se no palco ou mostrando-me seus trabalhos, presenteando-me com seus CDs, falando-me dos seus planos, consultando-me, enchendo minha bola.

 

            Como último ato dessa extraordinária aventura, vi-me cercado por tietes recifenses, de ambos os sexos, que me instaram a decifrar meu famoso cartão de visita. A cada definição, uma explosão de gargalhadas!

 

            Foi a minha grande noite de fama, gravada para sempre no meu coração!

 

            Meus mais efusivos agradecimentos ao Papa Berto I, extensivos à Papisa e ao Papinha, pelas mordomias postas à nossa disposição, além da hospitalidade oferecida no Palácio Pontifício. E também por ter-me inserido em sua patota e no círculo cultural da Veneza Brasileira.

 

            Meu reconhecimento a duas personalidades recifenses que, na solenidade de minha posse, se destacaram no serviço do meu Cardinalato e da minha Imortalidade: Madre Superiora Neide, auxiliando minha filha Mara com sua máquina fotográfica, e Seminarista Valter Azevedo, que sempre me manteve abastecido, às suas custas, de Coca-Cola Diet e piedosos itens mastigatórios.

 

            Apagados os lampiões, novamente o cinesíforo Vilaça nos conduziu no papamóvel de volta ao hotel.

 

            Às 14h00 do dia seguinte, 27, quinta-feira, pegamos o avião de regresso para Brasília. A bordo, fiquei a matutar no que me acontecera da terça até a quinta, vendo as cenas vividas passarem velozmente em minha mente, como num filme. Será que foi um sonho? Um sonho que durou três dias, no dizer do frevo dos Irmãos Valença?

 

            Foi não!

 

            Prova disso são as 70 fotos que registraram tudo, na sequência de como aqui foi relatado, e que se encontram, no meu álbum virtual orkutiano, à disposição de todos.

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De Balsas Para o Mundo quarta, 12 de abril de 2017

A IGREJA SERTANEJA

A IGREJA SERTANEJA

Raimundo Floriano

 

 Vaqueiros na folgança: seminaristas da Igreja Sertaneja

 

            No início da década de 70, eu e o escritor fescenino Luiz Berto fundamos, sob minha inspiração, uma seita sem caráter religioso, denominada Igreja Sertaneja, da qual, como chefes supremos, éramos antístites – bispos, como nas inúmeras outras que sugiram depois dela.

 

            Seus templos agregavam todos os bares, botecos e biroscas de Brasília onde se pudesse consumir uma boa cachaça – e todas as marcas brasileiras são de excelente qualidade. Exemplo disso é a Sagatiba que, segundo a revista Veja de 12.05.04, seria vendida na Europa ao preço de 28 euros a garrafa, o equivalente, na época, a 102 reais.

 

            Tínhamos até um jornal, O Gole, onde esbanjávamos criatividade e bom humor. Maiores detalhes se encontram no meu livro Do Jumento ao Parlamento, Montreal, 2003, 274 p., edição esgotada. 

 

             Já naquele tempo, órgãos da grande mídia, como O Globo, Jornal do Brasil, Estadão e até o The New York Times, da imprensa norte-americana, eram detentores da supremacia editorial, com sua abrangência e circulação planetária. Não podendo competir com tamanha magnitude nacional e internacional, o nosso pequenino O Gole viu-se obrigado a cerrar suas portas.

 

            Paralelamente, fundei, a 24 de junho de 1972, a Banda da Capital Federal, da qual eu era o mestre, e Luiz Berto, o contramestre, destinada a animar o carnaval de rua de Brasília. Essa banda, com estandarte e uniforme, existe até hoje, apresentando-se apenas em ocasiões muito especiais.

 

             A Igreja Sertaneja e a Banda da Capital Federal muito deram o que falar, pois os fiéis de uma eram componentes da outra. Na Igreja Sertaneja, havia muitas ovelhinhas a apascentar. Já na Banda da Capital Federal, as folionas se pegavam no tapa, decidindo quem saía com o estandarte!

 

            Também fazíamos parte da Diretoria do Bloco de Sujos Sumo do Guará, que fornecia sambistas para Escola de Samba Acadêmicos da Asa Norte e passistas para o bloco de frevo As Pás Douradas.

 

            Arrefeceram-se um pouco os ânimos da Igreja Sertaneja depois da nossa aposentadoria, cada qual procurando fixar-se em alguma atividade que preenchesse suas extensas horas de ócio. Assim eu pensava.

 

            De supetão, chegou-me a novidade!

 

            Lá no Recife, onde fixou residência definitiva, o Bispo Dom Berto reuniu um magote de cachacistas militantes e biriteiros juramentados e elegeu-se para o cargo maior de nossa seita, passando a assinar-se Papa Berto I.

 

            E eu, mentor da seita, fui alijado pelo Sumo Pontífice, saindo a troco de pé na bunda! Novamente, meus pensamentos se mostraram completamente enganados.

 

            Astuciosamente, ou salomonicamente, o Papa Berto I, usando de toda a sua sapiência, achou um jeito de agraciar-me com irresistível e compulsório cala-a-boca: nomeou-me Cardeal!

 

            Fiquei a matutar: Luiz Berto é muito presepeiro e aprontador, reuniu no Recife uma grande quantidade de fiéis, tem saco para aguentar essa turma de beberrões, de dia e de noite. Nada mais justo que assuma esse cargo maior da Igreja Sertaneja. Dessa vez, refleti com sabedoria, senão, vejamos!

 

            Em substituição ao O Gole, o Papa Berto I fundou o Jornal da Besta Fubana - JBF, virtual, assumindo inteiramente o encargo de editá-lo, assim como o de arcar com todas as despesas decorrentes da assinatura do seu blog na Internet: www.luizberto.com. Pródigo homem esse Papa!

 

            Preciso falar-lhes um pouco do título desse jornal.

 

            Em 1984, o escritor Luiz Berto ficou famoso no mercado editorial com o lançamento do seu livro O Romance da Besta Fubana, do qual tive a honra de ser o revisor gramatical e ortográfico.

 

            A Besta Fubana é entidade fantástica do imaginário nordestino e figura principal desse romance que é, no dizer do autor, “descrição histórica, científica e literária da instauração da República Rebelada dos Palmares, no ano pomposo de 1953, com relato pormenorizado e circunstanciado das causas, pessoas, sucedências e consequências, em ordem cronológica e estilo acessível”.

 

            Tal livro deu-lhe muitos prêmios e valeu-lhe uma temporada cultural de 6 meses nos Estados Unidos, com realização de palestras no Canadá.

 

            Voltemos à Igreja Sertaneja e ao Jornal da Besta Fubana.

 

            O jornal reúne, dentre seus colunistas e comentaristas, grande parte do Alto Clero da Igreja Sertaneja, bem como a nata da intelectualidade nordestina.

 

            Para se ter uma ideia, veja-se, na foto ao final deste capítulo, a quantidade de expoentes da cultura atual no cenário literomusical nordestino e brasileiro presentes a evento na Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            Direi um pouco de cada um deles.

 

            Jessier Quirino - Cardeal - Arquiteto, escritor, poeta, compositor, colunista do JBF e Imortal da Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            João Veiga - Cardeal - Médico, escritor e colunista do JBF.

 

            Luiz Berto - Papa - Professor de Matemática, escritor, editor do JBF e Imortal da Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            Adelmo Nobre - Cardeal - Comerciante, pesquisador musical e comentarista do JBF.

 

            Paulo Carvalho - Cardeal - Médico, pesquisador cultural, fotógrafo, colunista do JBF e Imortal da Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            Evilácio Feitosa - Cardeal - Médico, poeta e colaborador do JBF.

 

            Natanael Guedes - Cardeal - Artista plástico e colunista do JBF.

 

            Joselito Nunes - Cardeal - Advogado, escritor, poeta, pesquisador da cultura popular, colunista do JBF e Imortal da Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            Irah Caldeira - Prioresa - Compositora, cantora, forrozeira e Patrona de Luiz Berto na Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            Xico Bizerra - Cardeal - Bancário, compositor, radialista, colaborador do JBF e Patrono da jornalista Lina Fernandes na Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            Raimundo Floriano - Cardeal - Trombonista, escritor, discófilo, pesquisador musical, colunista no JBF e Imortal da Academia Passa Disco da Música Nordestina.

 

            Irah Caldeira não é a única representante do sexo feminino em nosso grupo. No Recife, por exemplo, temos a Papisa Aline, mulher do Papa Berto I e coeditora do JBF, e a Madre Superiora Neide Santos, agitadora cultural. Em Florianópolis-SC, a Madre Superiora Ana Cristina Arruda Laskos, balsense, minha conterrânea e afilhada literocultural, campeã brasileira de natação e casada com João Renato Laskos, gente grande dos Correios, encontra-se empenhada na implantação do Convento Diocesano Catarinense.

 

            Há uns 20 anos, cumprindo recomendações médicas, estou compulsoriamente afastado da boa cachacinha que deu origem à ideia de criação da seita, consumindo apenas refrigerante diet.

 

            Em compensação, convivo com pessoas desse quilate, com o talento das quais a Igreja Sertaneja tem-se expandido, arrebanhando a cada dia mais fiéis: cantores, músicos, escritores, poetas, compositores e escribas, além de boêmios e seresteiros, no Brasil e no Exterior, o que se comprova nos acessos mundiais ao JBF!

 

            Neste momento em que lhes escrevo, já somos lidos em 77 países!

 

            É a glória, ou não é?

De pé: Jessier Quirino, João Veiga, Luiz Berto, Adelmo Nobre, Paulo Carvalho, Evilácio Feitosa, Natanel Guedes e Zelito Nunes

Sentados: Irah Caldeira, Xico Bizerra e Raimundo Floriano

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De Balsas Para o Mundo segunda, 10 de abril de 2017

MINHA COLEÇÃO E DISCOS E A INTERNET

MINHA COLEÇÃO DE DISCOS E A INTERNET

Raimundo Floriano

 

 Estante A: Bossa Nova a Música Latina

 

            Quando comecei a ganhar meu dinheirinho fixo, no início de 1958, cuidei logo de comprar uma radiola – mistura de rádio com vitrola – e adquirir os primeiros discos. Desde então, a mania não parou, só recrudesceu. Comecei com o bolachão – disco de cera de carnaúba, pesado e quebradiço –, passei pelo vinil e pela fita cassete, até chegar ao atual estágio do cedê.

 

            A vida de nômade, ora morando em alojamentos, ora em quartos de pensão, ora em locais provisórios, fez com que meu acervo se desfizesse e se renovasse por várias vezes. O que veio a cessar em 1975, quando me acomodei em residência definitiva.

 

            Nessa nova etapa, acumulei preciosidades, assim considerando todos os registros sonoros que satisfizessem ao meu exigentíssimo paladar musical.

 

            Cheguei a possuir 2.400 elepês e 800 fitas cassetes, todos numerados e registrados em mais de 10 mil fichas, o que me exigiu a aquisição de imenso móvel de aço com várias gavetas para o arquivamento.

           

            Com o advento do disco a laser, comecei a me reciclar. Em 2003, tomei a decisão de transformar todo o meu acervo de vinis e fitas em cedês, após o que me desfiz de tudo o que fora substituído. Doando, é claro, pois a ninguém interessava comprar essas velharias.

 

            A colocação dos cedês nas estantes obedeceu a método por mim elaborado e que tem funcionado muito bem até agora, possibilitando-me uma busca rápida e fácil, mesmo sem o auxílio do computador, onde tudo está registrado. E tudo cabendo num único disquete!

 

            Classifiquei todas as peças na ordem alfabética dos intérpretes, agrupados esses nos 33 gêneros a seguir:

 

            Bossa Nova, Brasil, Brega, Carnaval, Choro, Cordas, Country, Dobrado, Erudita, Festas, Forró, Fossa, Frevo, Futebol, Humor, Internacional, Jazz, Jovem Guarda, Latina, MPB, Nordeste, Orquestra, Rock, Sacra, Samba, Seresta, Sertão, Sopro, Teclado, Trilha Sonora, USA, Valsa e Velha Guarda.

 

            Encimando cada gênero, há um estojo vazio, com a lombada escura e letras brancas, designando-o. Os intérpretes vêm, então, em ordem alfabética. No final de cada gênero, para que a inclusão de uma ou mais peças não acarrete a mexida em toda a estante, vêm 10 ou 20 estojos vazios, conforme a frequência, com lombadas brancas e, em letras escuras, a inscrição VAGO.

 

            Assim organizado, fiquei em condições de localizar qualquer disco no tempo máximo de 30 segundos!

 

            As figuras das duas estantes aqui apresentadas dão uma ideia de como ficou tudo isso.

 

            E é todo o meu acervo, composto de mais de 60 mil títulos, nos formatos normal e MP3, só na MPB – cerca de 12 mil de Carnaval –, que coloco à disposição de quem se interesse em conhecê-lo e estudá-lo.

 

Estante B: Música Popular Brasileira a Velha Guarda

 

            A propósito, dizem por aí que já existem gestões, junto ao Governo do Distrito Federal, para que tão organizada coleção passe a constar no Catálogo Turístico de Brasília. Não acredito!

 

            Esse valioso patrimônio cultural perderia completamente o seu sentido, se eu não o compartilhasse com os pesquisadores que, diariamente, localizando-me pelo site de busca Google, se valem dos meus conhecimentos com os mais diversos objetivos no setor, os quais atendo com presteza e satisfação.

 

            Para tanto, é imprescindível o papel da Internet! Que maravilhosa ferramenta posta de mão beijada à nossa disposição!

 

            Na intenção de comunicar-me com internautas do mundo inteiro, criei, no site de relacionamento Orkut, a Comunidade Dobrados, Carnaval e Forró, justificando-a pelos motivos a seguir.

 

            O Dobrado é o tipo de música que desperta o civismo nos jovens e solidifica o patriotismo no povo em geral; o Carnaval é a maior manifestação espontânea do brasileiro, enquanto que o Forró representa a síntese da cultura musical nordestina.

 

            O intuito desta Comunidade, com acervo em cedês superior a 1.500 dobrados, 12.000 mil marchinhas e sambas carnavalescos, 1.400 frevos e, por ora, 2.000 forrós, é estabelecer o intercâmbio, com os estudiosos, tanto do arquivo sonoro, quanto da literatura pertinente.

 

            Sem falar no grande elenco de intérpretes da Velha Guarda e em todas as peças musicais componentes da discografia de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Algumas até fora de catálogo.

 

            Desse modo, a Comunidade tem funcionado, sempre respeitando os limites estabelecidos pelo Direito Autoral.

 

            Por isso, no que se refere aos registros sonoros, devo ater-me à divulgação apenas daqueles que são de domínio público ou que não estejam ferindo o interesse de alguém. É o caso dos 27 Hinos Estaduais, cuja garimpagem me exigiu mais de três anos de pesquisa e teimosia, colocados ali para quem os queira ouvir.

 

            No meu álbum de fotos do Orkut, sob o título Partituras Oficiais, encontram-se todas as desses Hinos Estaduais, juntamente com as dos Hinos Oficiais Brasileiros.

 

            A minha condição de colecionador de discos, trombonista e Mestre da Banda da Capital Federal me fez amealhar enorme quantidade de partituras de músicas carnavalescas, distribuídas pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - ECAD, com o propósito de divulgar seus compositores.

 

            Esse material se mostra agora preciosíssimo, mormente com a nova feição que o Carnaval Brasileiro tomou, já não se tocando mais, nos salões e nas ruas, os sucessos do passado, que tanto animaram o período momesco.

 

            Caíram em desuso, mas não no esquecimento. As solicitações que constantemente recebo dessas partituras são o atestado de que, no Brasil e no exterior, nossa rica MPB tem, no baú das recordações de eméritos colecionadores, lugar de destaque.

 

            E um detalhe que causa espécie: a maioria dos pesquisadores é composta por gente muito jovem, ainda não beirando a faixa etária dos 30!

 

            E eu, com meu modesto trabalho, sinto-me feliz por contribuir um bocado para que isso assim aconteça!

 

Ícone da Comunidade Dobrados, Carnaval e Forró

 

(Extinto o Orkut, desconheçam o que sobre ele foi escrito)

 


De Balsas Para o Mundo sábado, 08 de abril de 2017

DISCOTECA 2001: NASCIMENTO, ASCENSÃO E MORTE

DISCOTECA 2001: NASCIMENTO, ASCENSÃO E MORTE

Raimundo Floriano

 

 Discoteca 2001 no Distrito Federal: fim de uma era

 

            No final de 1968, início de 1969, foi exibido, nas telas do mundo inteiro, o filme 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, baseado em conto de Arthur C. Clark, que ficou considerado como o marco e o ícone da ficção científica, não só pelo roteiro, com um computador, o HAL 9000, provido de sentimentos quase humanos, mas, principalmente, pelos efeitos especiais. Sucesso estrondoso na crítica e na bilheteria. Virou moda!

 

              Como sói acontecer em tais ocasiões, surgiu uma cambulhada de empreendimentos comerciais com esse nome: bandas, boates, butiques, salões de cabeleireiro, bares, restaurantes, alfaiatarias, escolas, sorveterias, o escambau. E, como sói acontecer em tais açodamentos, nenhum teve existência mais que efêmera, mudando a denominação tão logo veio a furo a próxima novidade, com única e honrosa exceção: a Discoteca 2001.

 

            Bem administrada, com estoque variadíssimo e sempre atualizado, dominou o mercado fonográfico no Distrito Federal, chegando a possuir 13 filiais, espalhadas pelo Plano Piloto e Cidades Satélites. A minha preferida era a do Conjunto Nacional.

 

            Estávamos no tempo do LP, e grandes coleções eram lançadas no mercado: Pop Music, inglesa, com 30 volumes; Revivendo, de velha guarda da MPB, com 72; Moto Discos, de carnaval antigo, com 60; e Collector’s, de sucessos do Rádio, com 40, todas elas vendidas na 2001.

 

            Para que eu não perdesse qualquer edição, Dona Alice, sua gerente, guardava meus exemplares e me telefonava todo final de mês para que eu fosse buscá-los. Certo dia, estranhei a ausência de sua ligação. Fui à loja ver o que ocorrera, e lá me informaram de que ela havia falecido, juntamente com o marido, em acidente automobilístico, nas proximidades da Cidade Ocidental. Dali pra frente, engrenei as encomendas com a vendedora Isaura, o que funcionou até o fechamento das coleções. Ao todo, incluindo também discos de outros gêneros, calculo que adquiri ali mais de 500 produtos.

 

            Veio a era do CD, quando deixou de existir aquele gostinho de ir à discoteca para apreciar as capas, ler as contracapas e encartes, informações que o diminuto tamanho dos estojos já não mais nos proporciona. Mesmo assim, ainda dava para sapear, entrar na loja só por mera curiosidade, garimpar e sair de lá com dois ou mais discos comprados.

 

            Trinta e sete anos durou esse império! Agora, a notícia entristecedora: a 2001 vai fechar! Desaparecerá até o final de 2008!

 

            A maior parte das filiais já se acabou, e as que ainda permanecem abertas estão liquidando o estoque restante a preço de banana em fim de feira. Grande melancolia nos invade ao entrarmos ali e vermos as prateleiras semivazias, aguardando o golpe fatal: o último que sairá e apagará a luz. Melancolia só comparável à sentida quando o Ivan, da Livraria Presença, fechou suas portas. São pedaços da cultura que se esvaem!

 

            Se me perguntarem o motivo, eu cito dois. Primeiro, a falta de governo. Se ele fiscalizasse pra valer, a pirataria, que medra em nossas calçadas com desmedida pujança, não geraria efeito tão devastador. Segundo, o alto preço do disco. Enquanto na 2001 o CD varia de 15 a 40 reais, na Discodil do Conjunto Nacional, que vende adoidado, conforme constatei em recente visita, o preço vai de 8 a 11 reais. Ora, é preferível dar 10 reais num CD original, a pagar 5 reais ao camelô por um pirata que, além da má qualidade, pode danificar os equipamentos de reprodução.

 

            Isso é um problema a ser encarado seriamente pelo mercado fonográfico.

 

            Caso contrário, quem vai desaparecer não será mais a loja revendedora, mas toda a indústria envolvida no processo.

 

            Isso no Brasil, é claro!

 


De Balsas Para o Mundo sexta, 07 de abril de 2017

TÁ FALTANDO UM

TÁ FALTANDO UM

Raimundo Floriano

 

 

Ao luar do sertão: o terror da violência

 

                    No dia 12 de junho de 2004, ao meio-dia, eu me encontrava no Iraque, em plena guerra!

 

            Espere aí, meu povo, a guerra à qual me refiro não é aquela do Oriente Médio, mas a batalha que eu e alguns amigos travávamos contra as garrafas cheias, à venda nos botequins do Iraque, assim conhecida a parte de baixo da Praça da Matriz de Santo Antônio de Balsas, durante o Festejo.

 

             Os amigos se locupletando na cerveja, na pinguinha e noutras quentes, e eu, no refrigerante diet. Combate ameno, luta prazenteira.

 

            Muito mais violenta do que a mencionada guerra bushiana é a que se trava diariamente no nosso Brasil, numa luta inglória e desigual: de um lado, bandidos fortemente armados, do outro, cidadãos pacatos e inermes, na brutalidade que se alastra por todo o país, chegando até ao pacífico sertão sul-maranhense, a exemplo da cruel execução a sangue-frio de que foi vítima, recentemente, o empresário José Eduardo, proprietário da Casa do Fazendeiro, no Alto Bonito, já quase chegando em casa, quando retornava de viagem a São Paulo.

 

            Pois bem, ali no nosso pelejar iraquiano, na doce vida, chegou meu contraparente Jorginho Silva com uma novidade:

 

            – Lá na Vaquejada, no Parque de Exposição, eu vi uma coisa por demais interessante. Todo mundo está com um jornal estampando a foto da Seleção Balsense de Futebol de 1956, que ganhou de Carolina no Festejo daquele ano!

            – Jorginho, que jornal é esse? – indaguei.

            – É O Fazendeiro, editado quinzenalmente pela Casa do Fazendeiro, daqui de Balsas mesmo.

            – Rapaz, no meu livro Do Jumento ao Parlamento, lançado aqui no Festejo de 2003, há um episódio semelhante. Talvez tenham copiado o que publiquei.

            – Não sei – disse o Jorginho –, mas o caso é que todo mundo está admirando o feito.

 

            Ora, se fosse uma cópia do livro, não havia problema. Eu mesmo a autorizara, no Copyright, desde que citados o autor e a fonte. Precisava verificar isso. Como estávamos saindo em carreata, dirigindo-nos à residência do casal Antônio Augusto e Luíza Pires, onde se realizava uma feijoada comemorativa ao Dia dos Namorados, chamei meu amigo Luizão, acumulando os cargos de Segurança e Assessor para Assuntos Terranatalenses, e determinei que fosse em busca de um exemplar do pré-falado jornal. Ele, que não queria abandonar a boca-livre daquela comitiva, chiou:

 

            – Marraimundo!

            – Se vire, Luizão. Ande ligeiro, arrume o jornal e vá nos encontrar lá na casa da Luíza.

 

            A feijoada estava superlotada de amigos, companheiros de velhos carnavais. Muita música e alegria, em ambiente descontraído e acolhedor. Mal chegáramos, e já me aparece o Luizão, todo esbaforido, com a missão cumprida.

 

            De cara, gostei do que vi. Elaborada primeira página, manchetes bem destacadas, seções diversificadas em mais 11 páginas, fotografias em profusão. Porém não deu outra: era cópia sem menção do meu livro.

 

            No dia 14, rumei para a Redação do quinzenal, no intuito de pedir uma explicação. A Casa do Fazendeiro fervilhava de clientes. Quando lá entrei, sem conhecer pessoa alguma, fui direto a um dos caixas e perguntei a um camarada que se encontrava ali por perto:

 

            – Você trabalha aqui?

            – Sim! O que o senhor deseja?

 

            Expliquei-lhe o motivo de minha presença ali, ele me pediu que eu esperasse e entrou por uma porta à direita. Não demorou, e o camarada estava de volta em companhia de outro funcionário da empresa:

 

            – Este aqui é o jornalista Carlos Airton Rocha, Chefe da Redação.

 

            O Carlos Airton foi extremamente receptivo às minhas ponderações colocando-se à disposição para os necessários esclarecimentos, franqueando-me suas páginas para os meus escritos, o que aconteceu logo na edição seguinte, com uma retificação, e em posteriores, com matérias que lhe enviei.

 

            Naquele dia, quando ia saindo da Casa do Fazendeiro, um pormenor me causava frustração: não ter conhecido o proprietário daquilo tudo. Um cara que, em ramo comercial tão especializado quanto o agropecuário, tinha o topete de se meter no empreendimento cultural daquele porte, dando oportunidade a todos os que se aventurassem pelo mundo das letras, só poderia ser um idealista.

 

            Balsas devia a ele o arrojo dessa aventura, desse altruísmo, eis que cultura geralmente não dá lucro para quem a exercita. Mas, como não vira ninguém naquele estabelecimento com jeito nem pose de dono, e com viagem marcada para o dia seguinte, só me restava conformar-me.

 

            Quando me retirava, sempre acompanhado pelo camarada que me recebera na chegada, peguei um cartão de visita, entreguei-o a ele, e falei, em tom de brincadeira, como é do meu feitio:

 

            – Olhe aqui, ô cabra, quando você estiver sem documento em algum lugar, puxe este cartão e diga: “Eu sou amigo do Raimundo Floriano, Mão de Onça, Pé de Pano!”. Mas, mudando de pau pra cacete, me diga, meu camarada, como é mesmo o seu nome?

 

            E ele respondeu:

 

            – José Eduardo!

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De Balsas Para o Mundo quinta, 06 de abril de 2017

OS OLHOS DA CARA

OS OLHOS DA CARA

Raimundo Floriano 

 

A condessa a exibir-se: em Sociedade, tudo se sabe

 

            Há muito tempo, venho cismando com essa expressão.

 

            Se os olhos ficam na cara, e não em qualquer outra parte do corpo, por que as pessoas falam, sempre que compram algo de preço exagerado: “Paguei os olhos da cara”?

 

            Consultei o escritor fescenino Luiz Berto, recorri ao cordelista Orlando Tejo, busquei pistas nos escritos de Esmeraldo Braga, nas pesquisas de Maurício Melo, e nada!

 

            Aí, lembrei-me do jornalista Márcio Cotrim, que tem uma coluna dominical no Correio Braziliense denominada O Berço das Palavras, na qual traduz com exemplos muito elucidativos essas expressões tão usadas no nosso dia a dia.

 

            Tempo é dinheiro, por exemplo, diz ele que é o lema do capitalismo, celebrizado por Benjamin Franklin, um dos patriarcas da independência dos Estados Unidos e inventor do para-raios, talvez inspirado no filósofo grego Teofrastos, que viveu no século III a.C, autor de mais de 200 livros, num dos quais constava a frase: “O tempo custa muito caro”. Acrescenta ele que Aparício Torelly, o Barão de Itararé, tinha do dito uma versão irônica: “Se tempo é dinheiro, paguemos nossas dívidas com o tempo”.

 

            Cotrim se esmera ao explicar esta: Vá tomar banho! Segundo suas pesquisas, a higiene, em tempos passados, tinha muito a ver com a virtude, assim como a sujeira estava relacionada ao pecado, até porque um dos nomes do diabo era “sujo”. Mandar alguém tomar banho não somente recomendava que se lavasse com água e sabão, eliminando a sujeira física, como também as desonestidades. Acrescenta ser voz corrente que D. João VI tinha horror a banhar-se. Uma vez, acometido de severa micose, recebeu do médico da Corte a receita do remédio preciso: banho! O soberano relutou, mas, enfim, sob protesto, sujeitou-se a entrar numa grande tina, onde foi esfregado por vários escravos até a remoção total da crosta de sujeira, disso resultando sua cura.

 

            Recorri ao renomado cronista, mas Márcio Cotrim não me deu a solução na hora, ficou de pesquisar. Nesse ínterim, Chico Fogoió, meu assessor piauiense de Cultura Inútil, que também estava inserido no processo, mandou-me a historieta a seguir, que transmiti ao Márcio e agora repasso aos meus leitores, sem muita certeza de sua veracidade.

 

            No século XIX, havia um conde muito rico na Inglaterra, mancebo ainda na força de sua virilidade, casado com mulher extremamente bela e possuidora de maravilhoso bumbum, podendo-se dizer que estamos tratando de uma popozuda.

 

            Visto que o maridão era chegado a uma sodomia, não demorou o dia em que ele não se conteve e fez à consorte a proposta indecorosa: sexo anal! A esposa, imediatamente, o repeliu. Mas ele não desistiu facilmente. Continuou tentando.

 

            Ora, havia numa butique, exposto à venda, lindo casaco confeccionado com pele de onça brasileira, legítima suçuarana, e, por isso mesmo, de preço quase proibitivo aos bolsos não muito apercebidos, literalmente, os olhos da cara.

 

            Sabendo disso, e diante da persistência do cônjuge varão, referida condessa topou satisfazer-lhe os instintos bestiais, mas com esta condição: que o conde lhe comprasse o precioso casaco. Feita a compra, o marido teve, finalmente, como recompensa, o prêmio que há muito almejava.

 

            No primeiro baile dado pela rainha, a condessa compareceu vestindo o tão desejado casaco. Ao vê-lo, todas as amigas a elogiavam e perguntavam: “Quanto te custou?” E, a todas elas, respondia:

 

            – Custou-me o olho do c(*)!


De Balsas Para o Mundo quarta, 05 de abril de 2017

BOB NELSON, O CAUBÓI BRASILEIRO

BOB NELSON, O CAUBÓI BRASILEIRO

Raimundo Floriano

 

O criador do country sertanejo

 

            Na manhã de 29 de agosto de 2009, um sábado, estava eu, como faço habitualmente, ouvindo o programa Onde Canta o Sabiá, transmitido ao vivo pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, sob a batuta do veteraníssimo radialista Gerdal dos Santos e com assessoria da pesquisadora Patrícia Rodrigues que, vez em quando, recorre ao meu acervo musical para a obtenção de títulos não mais existentes no mercado fonográfico. No quadro Alguém Muito Especial, era homenageada a falecida cantora Emilinha Borba, imortal que deu vida à marchinha Chiquita Bacana.

 

            No início do quadro, foi chamada para dar um depoimento a atriz-acordeonista-cantora Adelaide Chiozzo, criadora de sucessos como Beijinho Doce e Sabiá na Gaiola, estrela de 23 filmes da Atlântida, hoje com 78 anos.

 

            Adelaide chegou com todo o gás, alegre, voz firme e contagiante. Começou o diálogo com o Gerdal quando, ali mesmo no ar, deram-lhes a notícia do falecimento do cantor Bob Nelson na noite anterior. Adelaide não se conteve diante do choque. Caiu em convulsivo pranto e não mais teve condições de participar do quadro.

 

            Eu, por meu lado, pegado pela surpresa, quase também cheguei às lágrimas. Bob Nelson foi um dos ídolos da minha infância. Não houve menino do meu tempo que não tentasse imitá-lo, cantando o seu famoso “eu-tiro-o-leite!”, até que a voz engrossasse, e isso se tornasse impossível! Naquele momento, orei por ele!

 

            Nelson Roberto Pérez, o Bob Nelson, cantor e compositor, nasceu em Campinas-SP, a 12.10.1918. Era o 6º dos filhos de José Pérez, espanhol, ferroviário da Mogiana e dono do Hotel Dalva, e de Dona Floresmina, do lar.

 

            Fez o grupo escolar que funcionava anexo à Escola Normal e formou-se contabilista na Escola de Comércio São Luiz. Trabalhou como caixeiro-viajante, percorrendo a Central do Brasil como vendedor das meias Ethel, que quase ninguém comprava, devido ao alto preço, e iniciou sua carreira musical cantando na Rádio Educadora de Campinas. Em sua família, só ele teria pendores artísticos.

 

            Em 1940, participou do conjunto vocal Grupo Cacique, inspirado nos já famosos Bando da Lua e Anjos do Inferno. Dele faziam parte Paulinho Nogueira, Armando do Couto, Aimoré Santos Matos e o Professor Enéas. Quando Carmen Miranda se apresentou em Campinas, em 1939, eles a acompanharam.

 

            Em 1943, adotou o estilo que o caracterizaria, inspirado nos cantos tiroleses e nos filmes de Gene Autry, que incluía uma roupa completa de caubói, com a qual se apresentou cantando para o General Mac Arthur, Comandante-Geral das tropas aliadas no Pacífico na Segunda Guerra Mundial. Seu nome artístico foi calcado no do ator do cinema americano Robert (Bob) Taylor, grande galã da época, sugerido por Dermival Costalima, então diretor da Rádio Tupi.

 

            Com esse novo estilo de cantar e de trajar-se, foi o pioneiro da fusão entre a música caipira brasileira e o country norte-americano. Seus imitadores estão por aí, às centenas, aos milhares!

            Ainda em 1943, interpretando sua versão de Ó Susana, de Stephen Foster, ganhou o primeiro prêmio no programa A Hora da Peneira, da Rádio Cultura de São Paulo.

 

            Suas músicas fizeram muito sucesso, entre elas O Boi Barnabé, com Victor Simon, Eu Tiro o Leite, com Sebastião Lima, Santa Fé, composição de José Cunha e Nelson Teixeira, Vaqueiro do Oeste, com Stephen Foster, Não Sou de Briga, de Santos Rodrigues e B. Toledo, Alô, Xerife, de Pedro Paraguassu e José Batista, Minha Linda Salomé, de Denis Brean e Victor Simon, e Vaqueiro Alegre, com Ben Kanter e Victor Simon.

 

            Em 1946, época em que era um dos principais artistas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, participou do filme Segura Essa Mulher, e, no ano seguinte, de Este Mundo É Um Pandeiro, ambos de Watson Macedo.

 

            Casou-se com Antonietta Leal Pérez, em 1950, com a qual teve dois filhos, Nelson Roberto e Eduardo José.

 

            O Vaqueiro Alegre, seu slogan preferido, foi ídolo de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, o Tremendão, tendo este gravado uma música em sua homenagem em 1974, A Lenda de Bob Nelson.

 

            Aposentou-se, em 1976, na Rádio Nacional, onde já deixara de cantar e atuava como Secretário do Departamento Jurídico e Diretor de Gravações.  A partir de então, voltou a exercer sua primeira profissão: caixeiro-viajante, representante de produtos ópticos, percorrendo todo o Brasil para promover vendas, sempre disposto a se apresentar artisticamente, com a mesma disposição e a mesma capacidade de conquistar plateias.

 

            Faleceu no Rio Janeiro, vítima de parada cardíaca, no dia 28.08.2009, perto de completar 91 anos de idade.

 

            Os dados biográficos aqui constantes foram colhidos nas páginas da Editora Revivendo e da Enciclopédia da Música Brasileira, da Art Editora, e também da memória do autor.


De Balsas Para o Mundo segunda, 03 de abril de 2017

CÔRTES, MEU AMIGO, ESPELHO E GURU

CÔRTES, MEU AMIGO, ESPELHO E GURU

Raimundo Floriano 

 

Sebastião Corrêa Côrtes - Acervo Cândida Corrêa Côrtes

 

            Aquele 15 de julho de 2008 ficará para sempre marcado na minha mente como uma data da qual jamais gostaria de recordar.

 

            Cheguei em casa, vindo da hidroterapia, mais ou menos às 9 horas de manhã e, como de hábito, comecei a leitura diária do jornal Correio Braziliense. Ao abrir o caderno Cidades, o susto e a quase incontida comoção: morrera, na noite anterior, Sebastião Corrêa Côrtes, e o sepultamento se daria às 11 horas.

 

            Larguei o jornal e fui para o computador, tentando colocar na tela tudo aquilo que esse homem foi para mim, numa espécie de válvula de escape. Minha intenção era apenas extravasar a forte emoção que de mim se apoderara, mostrando o que escrevera ao meu irmão José, o Carioquinha, que, por certo, compareceria aos funerais. Com o texto no bolso, redigido em menos de uma hora, dirigi-me à Capela 6 do Campo da Esperança.

 

            Junto ao ataúde, os oradores se sucediam. Em dado momento, sem que isso tivesse planejado, num gesto impulsivo, e insofreável, acerquei-me do féretro, solicitei e obtive de Dona Maria, a viúva, permissão para ler o texto a seguir.

 

            Conhecemo-nos na Câmara dos Deputados, onde exercíamos o cargo de Auxiliar Legislativo, ele nomeado em 1964 e eu, em 1967, e isso era só o que tínhamos em comum. Não éramos farinha do mesmo saco. Ele estava a duzentos mil anos-luz acima de mim, na cultura e no saber: foi o homem mais inteligente, culto e sábio que conheci em toda a minha vida.

 

            Antes de entrar para a Câmara, ele era professor universitário e servidor do IBGE em Goiânia, de onde foi requisitado, em 1959, para trabalhar no Palácio do Planalto, com tarefa altamente honrosa: redigir discursos a serem pronunciados pelo Presidente da República, começando com Juscelino Kubitschek e, em seguida, Jânio Quadros, João Goulart e Marechal Castelo Branco.

 

            Mais tarde, ingressou no Poder Legislativo, mediante a aprovação em concurso público de âmbito nacional, no qual obteve o primeiro lugar. Aliás, esta era a sua maior diversão naqueles tempos pioneiros: inscrever-se em concursos apenas para obter a primeira colocação!

 

            Sua última missão na Câmara foi a de coordenar toda a Assessoria Legislativa.

 

            Nossa amizade no trabalho era formal. Construímos relacionamento mais chegado após nossa aposentadoria, principalmente porque eu, com fumaças de escriba, vivia socorrendo-me da sua experiência para orientar-me na cultura, de um modo geral, e na Língua Portuguesa, em particular. Côrtes era filólogo, latinista, poliglota e helenista. Claro está que muito eu tinha a aprender com ele.

 

            Sua versatilidade era impressionante. Não só redigia em Latim, língua da qual foi professor no Seminário de Brasília, como falava Latim. Outra: uma vez, pegamos juntos o elevador lá no Venâncio 2.000. No meio da estrada, entrou o empresário Lindberg Aziz Cury, e aí a coisa não prestou não! Os dois danaram-se a conversar em Árabe, deixando-me boquiaberto e por demais maravilhado com a erudição do amigo.

 

            Gozei da honra de tê-lo como revisor do meu livro, Do Jumento ao Parlamento, e mereci dele a deferência de dedicar-me, na festa dos meus 70 anos, discurso laudatório onde enumerou, em adjetivos iniciados com cada letra do alfabeto, atributos que julgava inerentes à minha pessoa. Só faltaram o k, o w e o y, mas isso já era querer de mais.

 

            Era crítico severo, irônico e impiedoso, razão pela qual seus ensinamentos jamais foram esquecidos. Certa feita, ao ler vastíssimo texto que submeti à sua apreciação, lascou-me na cara:

 

            – Raimundo, seu estilo é o que eu classifico como suinismo!

            – E o que isso significa?

            – Você escreve muito a palavra um, sem necessidade. Os suínos é que passam o dia todo falando um-um-um-um. Corrija-se nisso. Por exemplo, tire esse monte de um que tem neste texto, e o sentido em nada se alterará.

 

            Dali pra frente, passei a policiar-me, para nunca mais cair na porcaria.

 

            Côrtes enfrentou seriíssimos problemas cardíacos no final de sua existência. Foram AVCs, enfartes e outras cardiopatias que, apesar de graves e invasivas, não lhe tiraram a sapiência e a vontade de viver. Lutou bravamente. Fomos colegas de malhação na Academia RECOR, onde eu me refazia de uma vascularização, e ele procurava recuperar os movimentos tolhidos pelo primeiro derrame. Na hidroterapia, batalhou com ardor nos seus últimos dias. E isso não o impedia de compartilhar seus conhecimentos com todos os que a ele recorriam. Constantemente, era solicitada sua presença no Senado ou na Câmara, para auxiliar parlamentares na redação de pronunciamentos e demais proposições legislativas.

 

            Há cerca de dois meses, vali-me de sua ajuda pela última vez. Eu andava encucado com a análise sintática da primeira frase do Hino Nacional Brasileiro e, tentando ilustrar-me, consultei vários estudiosos. Nenhum me deu resposta satisfatória. Vejamos o caso. Originalmente, a oração assim aparece: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/De um povo heróico o brado retumbante. Na ordem direta, temos: “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico”. Onde as margens plácidas é o sujeito, ouviram é o predicado, o brado retumbante é o objeto direto, e de um povo heróico é o adjunto adverbial. Mas adjunto adverbial de quê? Ninguém atinava. Liguei para o Côrtes, ele, disparou na bucha: “De origem!”. Bom, agora, que ele matou a charada, todo mundo vai dizer que sabia a solução.

 

            Hoje é um dia triste para mim. Neste momento, o corpo desse grande amigo se encontra à espera das últimas homenagens que lhe serão prestadas, antes de baixar ao túmulo. E eu, nestas despretensiosas linhas, quero deixar patenteada a grande admiração que lhe devotei no nosso labutar e expressar meu profundo sentimento de pesar pela perda que ora se nos é imposta pelo Destino.

 

            Que Deus o tenha!

 

            Nesse meu pequeno panegírico, faltaram alguns importantes dados referentes à sua formação intelectual, falha que agora procuro sanar.

 

            Côrtes nasceu em Patrocínio (MG), a 15.04.1924. Ainda menino, tornou-se seminarista, mas, depois de alguns anos, ao descobrir não ter vocação para o celibato, ingressou na vida secular e foi um importante membro da Igreja Católica. Assessorou a CNBB, elaborando, corrigindo e revisando documentos e textos em Latim a serem enviados para o Vaticano.

 

            Conquistou a maior parte de sua magnífica escolaridade em Goiânia (GO), onde, no tempo de estudante, para se sustentar, lecionava Português, Francês, Filosofia e Direito.

 

            Graduou-se em Filosofia, Teologia, Direito, Matemática e Estatística. Cursou a Escola Superior de Guerra, com pós-graduação em Segurança Nacional.

 

            Além do Latim e do Árabe, era fluente em vários outros idiomas como o Inglês, o Espanhol, o Italiano, o Francês, o Esperanto, o Grego e o Japonês. Sabia de cor o Dicionário e a Gramática Latina. Tinha o dom do sotaque e se passava por francês entre os franceses.

 

            Com Dona Maria, teve os filhos Marcelo, Cláudio, Diomar e Tarcísio.

 

            Quando foi aprovado, em primeiro lugar, no vestibular de Direito, em Goiânia, na década de 50, escreveu para Dona Candinha, sua mãe, a carta que adiante transcrevo.

 

“Mamãe,

 

Já fiz o Curso Primário, o Ginasial, o Clássico, o Curso de Filosofia e Teologia, Matemática e Estatística, e agora vou fazer o Curso de Direito. Já andei a pé, a cavalo, de trem, de ônibus, de navio e de avião; contemplei serras, vales, planícies, planaltos, praias, vilas e cidades, mas tudo isso somado não vale uma fraçãozinha sequer do que a senhora vale para mim. Sou-lhe agradecido pelas noites que a senhora não dormiu, pelo leite com que me alimentou e pela fé que implantou em meu peito. E hoje, alvo de homenagens pela aprovação no vestibular, eu me lembrei de seu empenho em me manter no Seminário, dos adobes de barro que fazia, das roupas usadas que conseguia para mim. Essa lembrança me fez ver que a vitória não é minha e sim da senhora.

 

Sebastião”

 

            Pois é, naquela época tão distante, Côrtes não imaginava a grandiosidade que lhe era reservada no Mundo das Letras!

 


De Balsas Para o Mundo sábado, 01 de abril de 2017

MEIRA FILHO, A VOZ DO BRASIL

MEIRA FILHO, A VOZ DO BRASIL

Raimundo Floriano

 

 

Senador Meira Filho - Acervo Câmara dos Deputados

 

            Sempre fui amarrado num som, pouco ou nada representando para mim a imagem, especialmente a televisiva. Quer ver-me puto dendascalças, com cara de quem recebe presente de grego, amarelo de sem-jeitismo, então me oferte um DVD. Nem que seja de sacanagem, nem que seja de mulher pelada.

 

            Quando comecei a ganhar meu dinheirinho, isso no início de 1958, lá em Belo Horizonte, tratei logo de comprar uma radiola – mistura de rádio com vitrola – e iniciei a hoje respeitável e propalada coleção de registros sonoros. Ao chegar a Brasília, em dezembro de 1960, morando no alojamento do meu quartel, adquiri um radinho de pilha, do tamanho duma rapadura, da marca Hitachi, valente pra baralho, que pegava todas as estações locais de dia, e muitas do resto do país e do exterior à noite.

 

            E foi aí que conheci o Meira Filho.

 

            Ele tinha um programa na Rádio Nacional de Brasília, que ia das 5 às 9 horas da manhã, denominado O Dia Começa Com Música, cobrindo todo o território nacional e ouvido igualmente em diversas partes do mundo. Seu prefixo, que também entremeava sua fala e os comerciais, era um samba forrozado instrumental pra lá de arretado que, pelo fato de representar muito bem a Capital recém-nascida, foi batizado e consagrado pelo povo nordestino com o nome de Nacional Brasília. Guardo-o em meu acervo, na interpretação de Kariri e Seus Oito Baixos, sanfoneiro de Timom (MA).

 

            Diariamente, eu tinha duas oportunidades de ouvir o Meira: pela manhã, no seu programa campeão de audiência, e à noite, às 19 horas, no A Hora do Brasil, hoje A Voz do Brasil, da qual ele foi, durante 35 anos, um dos mais atuantes locutores, sendo também o locutor oficial da Presidência da República.

 

            O Dia Começa Com Música era, em sua essência, um programa de recados, funcionando como o telefone de que dispunham os nordestinos que vieram construir a Nova Capital e suas famílias distantes, para se comunicarem. Recebeu mais de seis milhões de cartas, a maioria das quais era respondida no ar. Houve até o caso de um fazendeiro abonado que, um dia, chegou de motorista particular à casa do Meira, lhe beijou as mãos e se ajoelhou aos seus pés, agradecendo-lhe por ter localizado sua filha que, desmemoriada, se achava perdida em Brasília.

 

            Até meados dos anos 60, Meira Filho animava as tardes de sábado candangas com um programa de auditório ao vivo, na TV Nacional, repleto de variedades, com imenso sucesso. Em escala menor – pelo menos em criatividade –, seria hoje o Domingão do Faustão. Tanto no rádio quanto na televisão, Meira foi o primeiro animador a fazer o emprego de uma buzina, no que foi imitado mais tarde pelo famoso Chacrinha.

 

            Quando comecei a sair pelas ruas com o meu trombone de vara, tocando para alegrar o povão, tive no Meira Filho um grande incentivador, que me colocava no ar onde quer que me encontrasse, e deixava que eu falasse à vontade nas entrevistas.

 

            Ele trabalhou em quase todas as emissoras de rádio da Capital. O Programa do Meira, na Rádio Planalto, já nos anos 80, detinha espetacular audiência. Severino, taxista amigo meu, falou-me que, certa vez, na fila do Aeroporto, contou pra mais de 30 táxis todos sintonizados nele.

 

            Por isso mesmo, Meira Filho foi o primeiro senador eleito pelo Distrito Federal, com votação esmagadora, sem fazer campanha e sem gastar um tostão sequer em propaganda eleitoral. Não sendo, porém, a política a sua praia, e dela desiludido, deixou de concorrer à reeleição – que lhe seria garantida – no final do mandato.

 

            João Assis Meira Filho nasceu em Teproá-PB, a 24.10.1922, e faleceu em Brasília-DF, a 08.06.2008.

 

            Deixou 5 filhos, 12 netos e 2 bisnetos. Compareci à sua Missa de Sétimo Dia, onde pude constatar que ele deixou, não apenas essa bela família, mas milhares de brasileiros anônimos, agradecidos por terem sido de alguma forma, em algum momento, por ele ajudados.

 

            Tendo ele dedicado todo o tempo profissional de sua vida à atividade radiofônica, posso afirmar, sem medo de errar, que o Rádio Brasileiro teve na pessoa de Meira Filho a sua perfeita tradução.

 

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De Balsas Para o Mundo sexta, 31 de março de 2017

HISTÓRIA DE AMOR SELVAGEM

HISTÓRIA DE AMOR SELVAGEM

Raimundo Floriano

 

 

Vovô Osório: boêmio enfeitiçador

 

            Andei batendo cabeça pelo mundo do namoro, desde o começo dos anos 70 até ao início dos anos 80, sem conseguir arrematar um ponto com nó. Nada saía certo. Até que as oportunidades apareciam, e muitas, mas não duravam mais que um verão, um Carnaval.

 

            Até que certo dia me veio à cabeça um estalo de sapiência. A solução dos meus problemas estava bem ali, à minha mão, ao meu alcance, e não a aproveitava.

 

            Acontece que, na minha patota de boteco, dominó e papo-furado havia um feiticeiro iorubá-pernambucano, o Vovô Osório, na época com 97 anos de idade.

 

            Osório Lopes de Santana nasceu em Nazaré da Mata-PE, a 19.03.1885, vindo a falecer na Cidade Ocidental, em 14.01.2004, aos 118 anos de idade. Na época em que este episódio aconteceu, ele residia numa casa simples na QI 16 do Guará I, identificada por uma placa pregada no muro anunciando: Vovô Osório é aqui!

 

            Tocador de cavaquinho, violão e exímio pandeirista, era figura infalível nas nossas rodadas de dominó, baralho, samba, cerveja e pinga em qualquer birosca daquela satélite. Em sua casa, lia mão, jogava búzios, botava tarô, benzia, unia e desapartava. O que ele amarrasse, ninguém mais desatava. O que ele separava, ninguém mais conseguia juntar. E foi ali naquela modesta residência que fui procurá-lo certa noite fria de julho de 1981.

 

            Ao ver-me na sua sala de consultas, nem me perguntou nada, nem ao menos fez as deferências comuns aos colegas de farra e de gole. Foi logo dizendo:

 

            – Seu lugar não é aqui!

            – Mas... – tentei eu argumentar, no que fui energicamente interrompido.

            – Tome vergonha na cara! Vá procurar mulher de sua laia!

 

            E, sem dizer mais nada, conduziu-me à porta da rua. Saí de lá danado da vida, pra morrer de raiva do catimbozeiro, do falso amigo que não quis socorrer o outro em momento de aflição. Nem bem me distanciara, e ainda ouvia a voz dele gritando lá na escuridão da noite:

 

            – Da sua laia! Da sua laia!

 

            Aquela sentença ficou martelando minha cabeça. Cheguei em casa, me deitei na cama e comecei a rememorar todas as tentativas que fizera para recompor meu lar, reconstruir uma família.

 

            E, com a voz do Vovô Osório a retinir no meu ouvido, repassei todos os casos que tivera. Tudo com gente da minha laia: moças de minha terra natal, colegas da UDF e da Câmara dos Deputados, outras que frequentavam os mesmos ambientes sociais que eu, as passistas da Banda da Capital Federal, meninas do Bloco de Sujos Sumo do Guará, todas, portanto, gente da minha laia!

 

            E foi cismando e remoendo que, de repente, cheguei a uma lagoa azul, calma e serena, onde uma bela e jovem índia – na aldeia é chamada de cunhã – se banhava. Acerquei-me e perguntei se também podia banhar-me ali. Ela disse que sim. Tirei a roupa, fiquei só de short, mas quando fiz menção de entrar n’água, a índia me alertou de que aquela lagoa era sagrada e nela ninguém podia entrar de roupa. De modo natural, sem estranhar, fiquei completamente despido e mergulhei na água azul.

 

            A cunhã me contou, então, que pertencia à Nação Tapuia, era aculturada, morava em Brasília, trabalhava na Câmara dos Deputados – sua laia! –, e que na aldeia era conhecida como Nita, sendo irmã da índia Caxuxa, mulher do Cacique Saló Kriakaso.

 

            Terminado o banho, perguntei-lhe se podia voltar no dia seguinte, e ela prontamente concordou. Ao retirar-me, meu coração começou a balançar, ao lembrar-me da bela cunhã. Será? Teria sido amor à primeira vista? Mas as palavras do Vovô Osório retiniam no meu ouvido: “Sua laia! Sua laia”.

 

            No outro dia, retornei decidido a conquistar aquela cunhã e fazê-la minha mulher, de qualquer jeito, mesmo contrariando as recomendações do feiticeiro.

 

            Depois do segundo banho, e já vestidos, um marimbondo picou a índia na coxa, o que a fez levantar a saia para me mostrar. Aí, meus amigos, não tive como conter o olhar malicioso! E vejam bem como é a natureza humana. Enquanto estávamos na lagoa, completamente sem roupa, nenhum pensamento sensual me passara pela cuca. Apenas o amor e a intenção de conquistar a índia me ocupavam o pensamento. Mas foi só ver o que estava escondido, fiquei todo enfeitiçado pelo encanto revelado. Por isso mesmo, e pelo amor que me dominava, pedi que a índia voltasse novamente no dia seguinte, com o que ela concordou.

 

            Ao distanciar-me, a expressão sua laia não me saía do pensamento. E grande claridade me iluminou. Eu era descendente de Jerônimo de Albuquerque e de Muira-Ubi, índia tabajara, depois batizada como Maria do Espírito Santo, filha do Cacique Arcoverde, correndo em minhas veias, portanto, o sangue índio!

 

            Não sei quantas vezes nos encontramos, nem quantos banhos tomamos depois disso. Com sua laia sem sair da minha mente, um dia perguntei à índia se estávamos namorando. Ela respondeu que sim e acrescentou:

 

            – Você é meu manaíra!

 

            Embora eu não soubesse o significado da palavra manaíra, fiquei pra estourar de tanta alegria.

 

            Sempre fui um grande mergulhador, habilidade que aprendi e treinei quando menino, atravessando o Rio Balsas, uns 60 metros de largura, dum fôlego só. Querendo exibir-me para a cunhã, mergulhei na intenção de passar de um a dois minutos submerso. Já levara uns 30 segundos, quando avistei lá no fundo uma coisa brilhando. Apanhei-a. Era um isqueiro a gás. Algum caçador ou pescador descuidado o perdera ali.

 

            Duvidando que ele ainda funcionasse, tentei acendê-lo. Na primeira tentativa, a chama se projetou. E, nesse momento, algo muito estranho e assustador aconteceu. O que eu não sabia era que, desde o primeiro banho com a cunhã, a mata me observava com centenas de olhos. No momento em que gás se fez fogo, cerca de trezentos índios nos cercaram e todos eles se curvaram diante de mim, fazendo reverências e exclamando:

 

            – Yawarapope, Membecapy! Yawarapope, Membecapy!

 

            Conduziram-me à presença do Cacique Saló Kriakaso e segredaram-lhe ao ouvido algo que não pude entender, após o que o cacique fez-me a mesma reverência e também exclamou:

            – Yawarapope, Membecapy! Yawarapope, Membecapy!

 

            E, como primeira providência, instou que lhe entregasse o ibiratata. Vendo que eu não entendia, um índio ficou ao meu lado, servindo-me de intérprete e me ordenou, mostrando o isqueiro:

 

– Entregue o pau-de-fogo!

 

Obedeci. Após receber o ibiratata, o cacique me perguntou, recriminando:

 

– Como tem coragem de profanar nossa lagoa sagrada?

 

Sem titubear, e querendo entrar logo de sola no que mais me interessava, falei com muita firmeza na voz:

 

– Quero me casar com a índia Nita!

 

O cacique tentou demover-me de minhas intenções:

 

– A índia Nita é uma das virgens da tribo e está reservada para se casar com um grande chefe guerreiro!

 

Expliquei-lhe que eu era Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, estando, assim, preparado para chefiar muitos homens, se fosse necessário entrar em combate. O cacique opôs mais um obstáculo:

 

– O chefe guerreiro que casará com a índia Nita deve pertencer à tribo.

 

Respondi-lhe contando a minha origem tabajara. Disse-lhe que, com o casamento, também passaria a pertencer àquela Nação. Falei-lhe que eu exercia um cargo de chefia na mesma tribo onde a índia Nita trabalhava, a Câmara dos Deputados. Vencidas estavam todas as barreiras.

 

E, no mesmo momento, o enlace matrimonial se realizou, mas somente diante de minha promessa de que, chegando a Brasília, trataria logo de oficializar a união no cartório competente.

 

A cerimônia foi simples. Com um espinho de tucum, o pajé furou meu dedo anular e o da índia, fazendo brotar de cada um pequena gota vermelha, e mandou que juntássemos os dois sangues.

 

Tremi nas bases. Naquele tempo, a aids já era o mal que afligia o mundo. Como é que eu, um cabra criado na boemia, na esbórnia, poderia macular a pureza daquela jovem índia? Ela, porém, percebendo minha relutância, falou-me com doçura:

 

– Não tem perigo! Você é meu manaíra!

 

O índio que me servia de intérprete traduziu:

 

– Manaíra quer dizer favo de mel!

 

Unidos os sangues, éramos um só corpo e um só espírito. A cerimônia se deu por encerrada, começando a festança. E quem nos aparece ali, com seu terno branco, óculos escuros, copo de cerveja na mão e um embrulho contendo um cobertor como presente de casamento? Ele mesmo, o Vovô Osório que, a cada momento, entre uma bicada e outra, gritava a todo pulmão:

 

– Sua laia! Sua laia! Sua laia!

 

Minha mulher, a cunhã tapuia

 

E aí, não sei se isso foi sonho, se ainda estou sonhando, o certo é que, desde julho de 1982 – um ano após a consulta com o feiticeiro – estou casado com uma neta da Nação Tapuia, com a qual tenho duas filhas, duas indiazinhas que enchem de alegria o nosso lar.

 

De vez em quando, me vem recordação daquele sonho em que tudo rapidamente se passou. A minha estranheza quanto ao nome com que fui batizado pela tribo: Yawarapope, Membecapy. Foi o cacique Saló Kriakaso quem me fez a tradução: Mão de Onça, Pé de Pano. Como eu ainda não entendesse, ele me esclareceu:

 

– Mão de Onça, porque você tirou fogo da água! Pé de Pano, porque pisou macio para ganhar o amor da índia Nita.

 

Na hora de acender o fogo sagrado, o pajé veio lá do seu cafofo com um isqueiro na mão e acendeu a chama. Aí, eu fiquei baratinado. Se eles já conheciam isqueiro, que chamavam de ibiratata, por que deram tanto valor ao meu, chegando ao ponto de chamarem-me de Mão de Onça, culminando com aquele confisco do meu pelo cacique? Mas Saló Kriakaso apressou-se a solucionar o impasse:

 

– Foi o primeiro isqueiro do mundo que nós vimos acender na primeira lapada, na primeira faiscada!

 

A tapuia-tabajara, nossa primogênita


A tapuia-tabajara, nossa caçula


De Balsas Para o Mundo sexta, 31 de março de 2017

O TEL

HISTÓRIA DE AMOR SELVAGEM

Raimundo Floriano

 

 

Vovô Osório: boêmio enfeitiçador

 

            Andei batendo cabeça pelo mundo do namoro, desde o começo dos anos 70 até ao início dos anos 80, sem conseguir arrematar um ponto com nó. Nada saía certo. Até que as oportunidades apareciam, e muitas, mas não duravam mais que um verão, um Carnaval.

 

            Até que certo dia me veio à cabeça um estalo de sapiência. A solução dos meus problemas estava bem ali, à minha mão, ao meu alcance, e não a aproveitava.

 

            Acontece que, na minha patota de boteco, dominó e papo-furado havia um feiticeiro iorubá-pernambucano, o Vovô Osório, na época com 97 anos de idade.

 

            Osório Lopes de Santana nasceu em Nazaré da Mata-PE, a 19.03.1885, vindo a falecer na Cidade Ocidental, em 14.01.2004, aos 118 anos de idade. Na época em que este episódio aconteceu, ele residia numa casa simples na QI 16 do Guará I, identificada por uma placa pregada no muro anunciando: Vovô Osório é aqui!

 

            Tocador de cavaquinho, violão e exímio pandeirista, era figura infalível nas nossas rodadas de dominó, baralho, samba, cerveja e pinga em qualquer birosca daquela satélite. Em sua casa, lia mão, jogava búzios, botava tarô, benzia, unia e desapartava. O que ele amarrasse, ninguém mais desatava. O que ele separava, ninguém mais conseguia juntar. E foi ali naquela modesta residência que fui procurá-lo certa noite fria de julho de 1981.

 

            Ao ver-me na sua sala de consultas, nem me perguntou nada, nem ao menos fez as deferências comuns aos colegas de farra e de gole. Foi logo dizendo:

 

            – Seu lugar não é aqui!

            – Mas... – tentei eu argumentar, no que fui energicamente interrompido.

            – Tome vergonha na cara! Vá procurar mulher de sua laia!

 

            E, sem dizer mais nada, conduziu-me à porta da rua. Saí de lá danado da vida, pra morrer de raiva do catimbozeiro, do falso amigo que não quis socorrer o outro em momento de aflição. Nem bem me distanciara, e ainda ouvia a voz dele gritando lá na escuridão da noite:

 

            – Da sua laia! Da sua laia!

 

            Aquela sentença ficou martelando minha cabeça. Cheguei em casa, me deitei na cama e comecei a rememorar todas as tentativas que fizera para recompor meu lar, reconstruir uma família.

 

            E, com a voz do Vovô Osório a retinir no meu ouvido, repassei todos os casos que tivera. Tudo com gente da minha laia: moças de minha terra natal, colegas da UDF e da Câmara dos Deputados, outras que frequentavam os mesmos ambientes sociais que eu, as passistas da Banda da Capital Federal, meninas do Bloco de Sujos Sumo do Guará, todas, portanto, gente da minha laia!

 

            E foi cismando e remoendo que, de repente, cheguei a uma lagoa azul, calma e serena, onde uma bela e jovem índia – na aldeia é chamada de cunhã – se banhava. Acerquei-me e perguntei se também podia banhar-me ali. Ela disse que sim. Tirei a roupa, fiquei só de short, mas quando fiz menção de entrar n’água, a índia me alertou de que aquela lagoa era sagrada e nela ninguém podia entrar de roupa. De modo natural, sem estranhar, fiquei completamente despido e mergulhei na água azul.

 

            A cunhã me contou, então, que pertencia à Nação Tapuia, era aculturada, morava em Brasília, trabalhava na Câmara dos Deputados – sua laia! –, e que na aldeia era conhecida como Nita, sendo irmã da índia Caxuxa, mulher do Cacique Saló Kriakaso.

 

            Terminado o banho, perguntei-lhe se podia voltar no dia seguinte, e ela prontamente concordou. Ao retirar-me, meu coração começou a balançar, ao lembrar-me da bela cunhã. Será? Teria sido amor à primeira vista? Mas as palavras do Vovô Osório retiniam no meu ouvido: “Sua laia! Sua laia”.

 

            No outro dia, retornei decidido a conquistar aquela cunhã e fazê-la minha mulher, de qualquer jeito, mesmo contrariando as recomendações do feiticeiro.

 

            Depois do segundo banho, e já vestidos, um marimbondo picou a índia na coxa, o que a fez levantar a saia para me mostrar. Aí, meus amigos, não tive como conter o olhar malicioso! E vejam bem como é a natureza humana. Enquanto estávamos na lagoa, completamente sem roupa, nenhum pensamento sensual me passara pela cuca. Apenas o amor e a intenção de conquistar a índia me ocupavam o pensamento. Mas foi só ver o que estava escondido, fiquei todo enfeitiçado pelo encanto revelado. Por isso mesmo, e pelo amor que me dominava, pedi que a índia voltasse novamente no dia seguinte, com o que ela concordou.

 

            Ao distanciar-me, a expressão sua laia não me saía do pensamento. E grande claridade me iluminou. Eu era descendente de Jerônimo de Albuquerque e de Muira-Ubi, índia tabajara, depois batizada como Maria do Espírito Santo, filha do Cacique Arcoverde, correndo em minhas veias, portanto, o sangue índio!

 

            Não sei quantas vezes nos encontramos, nem quantos banhos tomamos depois disso. Com sua laia sem sair da minha mente, um dia perguntei à índia se estávamos namorando. Ela respondeu que sim e acrescentou:

 

            – Você é meu manaíra!

 

            Embora eu não soubesse o significado da palavra manaíra, fiquei pra estourar de tanta alegria.

 

            Sempre fui um grande mergulhador, habilidade que aprendi e treinei quando menino, atravessando o Rio Balsas, uns 60 metros de largura, dum fôlego só. Querendo exibir-me para a cunhã, mergulhei na intenção de passar de um a dois minutos submerso. Já levara uns 30 segundos, quando avistei lá no fundo uma coisa brilhando. Apanhei-a. Era um isqueiro a gás. Algum caçador ou pescador descuidado o perdera ali.

 

            Duvidando que ele ainda funcionasse, tentei acendê-lo. Na primeira tentativa, a chama se projetou. E, nesse momento, algo muito estranho e assustador aconteceu. O que eu não sabia era que, desde o primeiro banho com a cunhã, a mata me observava com centenas de olhos. No momento em que gás se fez fogo, cerca de trezentos índios nos cercaram e todos eles se curvaram diante de mim, fazendo reverências e exclamando:

 

            – Yawarapope, Membecapy! Yawarapope, Membecapy!

 

            Conduziram-me à presença do Cacique Saló Kriakaso e segredaram-lhe ao ouvido algo que não pude entender, após o que o cacique fez-me a mesma reverência e também exclamou:

            – Yawarapope, Membecapy! Yawarapope, Membecapy!

 

            E, como primeira providência, instou que lhe entregasse o ibiratata. Vendo que eu não entendia, um índio ficou ao meu lado, servindo-me de intérprete e me ordenou, mostrando o isqueiro:

 

– Entregue o pau-de-fogo!

 

Obedeci. Após receber o ibiratata, o cacique me perguntou, recriminando:

 

– Como tem coragem de profanar nossa lagoa sagrada?

 

Sem titubear, e querendo entrar logo de sola no que mais me interessava, falei com muita firmeza na voz:

 

– Quero me casar com a índia Nita!

 

O cacique tentou demover-me de minhas intenções:

 

– A índia Nita é uma das virgens da tribo e está reservada para se casar com um grande chefe guerreiro!

 

Expliquei-lhe que eu era Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, estando, assim, preparado para chefiar muitos homens, se fosse necessário entrar em combate. O cacique opôs mais um obstáculo:

 

– O chefe guerreiro que casará com a índia Nita deve pertencer à tribo.

 

Respondi-lhe contando a minha origem tabajara. Disse-lhe que, com o casamento, também passaria a pertencer àquela Nação. Falei-lhe que eu exercia um cargo de chefia na mesma tribo onde a índia Nita trabalhava, a Câmara dos Deputados. Vencidas estavam todas as barreiras.

 

E, no mesmo momento, o enlace matrimonial se realizou, mas somente diante de minha promessa de que, chegando a Brasília, trataria logo de oficializar a união no cartório competente.

 

A cerimônia foi simples. Com um espinho de tucum, o pajé furou meu dedo anular e o da índia, fazendo brotar de cada um pequena gota vermelha, e mandou que juntássemos os dois sangues.

 

Tremi nas bases. Naquele tempo, a aids já era o mal que afligia o mundo. Como é que eu, um cabra criado na boemia, na esbórnia, poderia macular a pureza daquela jovem índia? Ela, porém, percebendo minha relutância, falou-me com doçura:

 

– Não tem perigo! Você é meu manaíra!

 

O índio que me servia de intérprete traduziu:

 

– Manaíra quer dizer favo de mel!

 

Unidos os sangues, éramos um só corpo e um só espírito. A cerimônia se deu por encerrada, começando a festança. E quem nos aparece ali, com seu terno branco, óculos escuros, copo de cerveja na mão e um embrulho contendo um cobertor como presente de casamento? Ele mesmo, o Vovô Osório que, a cada momento, entre uma bicada e outra, gritava a todo pulmão:

 

– Sua laia! Sua laia! Sua laia!

 

Minha mulher, a cunhã tapuia

 

E aí, não sei se isso foi sonho, se ainda estou sonhando, o certo é que, desde julho de 1982 – um ano após a consulta com o feiticeiro – estou casado com uma neta da Nação Tapuia, com a qual tenho duas filhas, duas indiazinhas que enchem de alegria o nosso lar.

 

De vez em quando, me vem recordação daquele sonho em que tudo rapidamente se passou. A minha estranheza quanto ao nome com que fui batizado pela tribo: Yawarapope, Membecapy. Foi o cacique Saló Kriakaso quem me fez a tradução: Mão de Onça, Pé de Pano. Como eu ainda não entendesse, ele me esclareceu:

 

– Mão de Onça, porque você tirou fogo da água! Pé de Pano, porque pisou macio para ganhar o amor da índia Nita.

 

Na hora de acender o fogo sagrado, o pajé veio lá do seu cafofo com um isqueiro na mão e acendeu a chama. Aí, eu fiquei baratinado. Se eles já conheciam isqueiro, que chamavam de ibiratata, por que deram tanto valor ao meu, chegando ao ponto de chamarem-me de Mão de Onça, culminando com aquele confisco do meu pelo cacique? Mas Saló Kriakaso apressou-se a solucionar o impasse:

 

– Foi o primeiro isqueiro do mundo que nós vimos acender na primeira lapada, na primeira faiscada!

 

A tapuia-tabajara, nossa primogênita

A tapuia-tabajara, nossa caçula


De Balsas Para o Mundo quinta, 30 de março de 2017

O TELEFONADOR BALSENSE

O TELEFONADOR BALSENSE

Raimundo Floriano

 

 

Telefonador em ação: seria o Belizário?

 

            Meu amigo Jonas Cruz, músico, cavalheiroso policial militar mineiro, gente grande lá nas Alterosas e fiel da Igreja Sertaneja, achou tão hilariante a matéria abaixo, publicada em abril de 2004, pelo Jornal do Inatel, órgão do Instituto Nacional de Telecomunicações, sediado em Santa Rita do Sapucaí-MG, que me mandou um exemplar do periódico, para que eu a lesse na íntegra.

 

            Sob o título Curiosidades, está assim na página 8:

 

            Joaquim Belizário, o Telefonador

 

            “Casado, 46 anos, três filhos, Joaquim Belizário é o telefonador da cidade de Balsas, no interior maranhense. É ele quem cumpre a nobre missão de ligar sua cidade ao Brasil e ao mundo. Situada ao sul do Estado, Balsas tem população estimada em 25 mil habitantes. Conta com três agências bancárias, escritórios de vários órgãos estaduais e federais, 25 estabelecimentos industriais e, aproximadamente, 350 estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços (...). Balsas é importante e tem-se tornado maior ainda pelo recebimento de considerável fluxo de imigrantes, paranaenses, mineiros, baianos e, principalmente, gaúchos. Balsas é grande, mas não fala. A cidade não está integrada ao sistema nacional de telecomunicações. Aí é que entra o Joaquim Belizário. Duas ou três vezes por semana, o ‘seu Joaquim’ visita os importantes comerciantes, agricultores, pecuaristas e profissionais liberais da cidade e anota as comunicações que precisam manter com o Rio, São Paulo, Goiânia.... No volante da zelada Rural Willys de sua propriedade, Joaquim Belizário empreende viagem até a localidade de Estreito, ao norte de Goiás, percorrendo 300 km de estradas não asfaltadas. Em Estreito, acomoda-se numa cabine telefônica e desincumbe-se de suas tarefas; encomenda a um laboratório paulista as vacinas para o gado de um cliente, comunica a um deputado em Brasília o recado do prefeito. Terminado os telefonemas, anotada as respostas dos interlocutores, ‘seu Joaquim’ retorna à poeira dos 300 km de volta até Balsas. Chega, transmite o resultado de seu trabalho aos clientes, acerta as contas e despede-se com ‘até depois de amanhã’. Daí a dois dias os 600 km serão novamente percorridos.

 

(Telecomunicações - histórias para a História da História - J. A. Alencastro e Silva, 1990).”

 

            Caso digno de nota, pitoresco, engraçado, o jornal fez muito bem ao expô-lo em suas páginas. Se a cidade focalizada fosse Carolina, por exemplo, eu iria grudar na cola de alguns camaradinhas carolinenses, ciosos de sua terra e bairristas até dizer chega!

 

            Reconheço muito bem a capacidade dos cronistas e dos escritores em geral, ao criarem suas narrativas, podendo até nelas inserirem um pouco de ficção.

 

            Mas acontece que se tratava de Balsas. Eu, balsense até debaixo d’água, consultei alguns antigos conterrâneos, e nenhum deles ouvira falar no aludido Joaquim Belizário. Assim, vi-me na contingência de esclarecer alguns detalhes que me pareceram discrepantes da realidade.

 

            Por isso, a 24 de julho de 2004, enviei ao emérito jornal a seguinte carta:

 

            “Senhor Redator,

 

            Mineiro amigo meu, imbuído de inconfessável, porém visível intuito de gozação – sadia, por sinal – sobre este escriba, enviou-me exemplar do nº 4 desse importante jornal, que faz referência não muito lisonjeira à pequenina Balsas, município do sertão sul-maranhense, minha querida terra natal. Matéria que remonta ao ano de 1990 afirma que a cidade, de 25 mil habitantes, por não estar integrada ao sistema nacional de telecomunicações, se valia dos serviços de um ‘telefonador’, indivíduo que, após anotar as mensagens de comerciantes, agricultores, pecuaristas e profissionais liberais, dali se deslocava até ao Estreito-MA – erroneamente dito como localizado no norte de Goiás –, onde, de uma cabine telefônica, as transmitia para o Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia, retornando, logo após, à presença dos clientes, com o resultado do seu trabalho. O Jornal do Inatel, no propósito de fazer um pouco de História, pecou redundantemente ao não situar no tempo, não precisar o ano em que tal procedimento ocorria. Quando Cabral descobriu o Brasil, também aqui não encontrou tão avançado sistema, e as comunicações entre naus e caravelas se efetuavam mediante o uso de bandeiras, de espelhos e de pombos-correios. Os aborígines que aqui recepcionaram os lusos também não conheciam o telefone, sendo seus recados enviados por intermédio de toques de tambores rústicos ou de sinais de fumaça. Residi durante três anos em Belo Horizonte, moderna, bela e aprazível capital mineira. Até dezembro de 1960, quando de lá me mudei para Brasília, a metrópole também se utilizava, para a discagem além-fronteiras, de um ‘telefonador’, representado esse pelas operadoras da companhia telefônica, a quem teríamos que pedir uma linha e esperar, às vezes por horas, até que se completasse a ligação, constituindo isso verdadeiro tormento para quem tinha pressa em manter um contato interurbano. Balsas tem hoje uma população estimada em mais de 70 mil habitantes, é um dos maiores produtores de grãos do mundo por hectare, e dos seus bancos escolares saíram pessoas que se projetaram no cenário nacional, a exemplo de um governador do Estado e um escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, Presidente da República e atual Presidente do Congresso Nacional. Ah, ia-me esquecendo: usufruímos do sistema DDD desde o início da década de 80, ali implantado num esforço conjunto da Embratel e do então prefeito Jorge Kury. Urge, portanto, senhor, que se faça justiça ao nosso amado rincão e à comunidade balsense, publicando esta carta nesse prestigioso informativo. Atenciosamente, Raimundo Floriano.”

 

            No dia 26 de julho, chegou-me o retorno esperado, conforme o e-mail abaixo transcrito:

 

“Caro Senhor,

 

O fato relatado nesta edição do Jornal do Inatel foi transcrito do livro Telecomunicações - História Para a História de J. A. Alencastro e Silva, editado em 1990 e devidamente creditado no final da matéria.

 

Trata-se de uma narrativa de uma pessoa chamada Joaquim Belizário e que se identificou, no livro referido acima, como o telefonador da cidade de Balsas.

 

A narrativa foi utilizada apenas para ilustrar uma matéria que, sem grandes pretensões, pretende mostrar um pouco a história das telecomunicações no Brasil, da qual fazem parte, com certeza, milhares de personagens como o Senhor Joaquim Belizário.

 

Seu pedido será encaminhado para avaliação do conselho editorial do Jornal do Inatel, porém reiteramos que não houve, em momento algum, intenção de desmerecer os habitantes da cidade de Balsas.

 

A próxima edição do Jornal do Inatel será em setembro.

 

Agradecemos a gentileza do seu contato.

Um grande abraço.

Izabelle Mendes de Carli

Assessora de Comunicações e Marketing”

 

            Estão vendo? Elegância é isso aí!

 

            Com essa gentilíssima resposta do jornal, dei por encerrado o assunto, e apenas o registro aqui para que o povo balsense tome dele conhecimento.


De Balsas Para o Mundo quarta, 29 de março de 2017

TERESINA, MEU XODÓ

TERESINA, MEU XODÓ

Raimundo Floriano

 

 

Praça Pedro II: Theatro 4 de Setembro e Cine Rex 

            No dia 16 de fevereiro de 1950, uma sexta-feira, embarcaram-me em Floriano, no ônibus do Chicão, com destino a Teresina! Aos 13 anos de idade, eu estava diplomado em florianês!

 

            Seguia rumo ao progresso, à cultura, aos mistérios e aos encantos da Capital Piauiense, onde já se encontrava meu irmão José Albuquerque, o Carioquinha, funcionário do Banco do Brasil, que me iria custear os estudos e muito me ajudaria, não só naquela época, como em vários difíceis momentos por que passei na vida.

 

            José era solteiro e morava numa república de bancários. Não querendo me deixar solto no mundo, arranjou para que eu ficasse hospedado na casa de Donamaria Albuquerque, irmã do Padre Solon, prima de minha mãe e mulher do Comandante Luiz Barbosa, considerada pessoa durona, exigente, cobradora, sendo certo que na casa dela estudante havia de andar sempre dentro dos eixos. Que o dissesse o balsense José Bráulio Forentino, já com um ano de estágio naquele cortado!

 

            A casa, de Donamaria, alugada, ficava na Rua da Glória – atual Lisandro Nogueira –, nº 1797, parede-meia com a do proprietário, Dr. Bernardo Melo, Capitão Dentista da Polícia Militar.

            Falemos na viagem!

 

            Saímos de Floriano às 7 horas da manhã e viajamos o dia todo.

 

            Enquanto vencíamos vagarosamente o percurso, o refrão da marchinha Daqui Não Saio, de Paquito e Romeu Gentil, gravada pelos Vocalistas Tropicais para o Carnaval daquele ano, que começaria no sábado, dia 18, não me saía da cabeça.

 

            Eu o aprendera nos ensaios diários que o locutor Defala Attem realizava no salão do Politeama, velho e desativado cinema florianense: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.

 

            A estrada era piçarrada, de mau estado – ainda não havia asfalto por lá – e, perto de Amarante, apresentava temido obstáculo, que era a travessia do Rio Canindé em cima de um pontão precariamente construído com talos de buritis, troncos de bananeiras e outros materiais flutuantes. E a fila aguardando o embarque não acabava mais! Por isso, dormimos em Amarante, na Pensão do Gérson, estalajadeiro muito conhecido na região devido às mímicas que a todo instante fazia.

 

            No dia seguinte, bem cedinho, retomamos a viagem. Os obstáculos agora eram os riachos transbordantes devido ao intenso período chuvoso, fazendo com que esperássemos às margens de alguns até que as águas baixassem. Mais ou menos às 9 da noite, chegamos a Teresina. Dois dias de viagem!

 

            Meu irmão, naquele momento, encontrava-se dando aula num cursinho, motivo pelo qual pedira ao Antônio Iran, nosso primo, filho de Tia Antônia, que me fosse receber na Agência, que ficava na Praça Saraiva.

 

            Novamente, a cena de minha chegada a Floriano se repetiu: seguimos a pé, com um estivador chapeado carregando a mala e o saco de rede, e o Iran me mostrando e explicando cada detalhe da paisagem que surgia à medida que progredíamos na caminhada.

 

            Nosso destino ficava entre as Ruas Arlindo Nogueira e Area Leão, a quatro quarteirões do 25º BC. Um bom estirão!

 

            Iniciamos a subida! Tomamos o lado esquerdo da Praça Saraiva, correspondente à Rua Félix Pacheco, e seguimos. Naquela praça, o Iran me mostrou o Seminário, a Igreja de Nossa Senhora das Dores, o Colégio Diocesano e a Delegacia de Polícia Civil, após a qual, dobramos à esquerda, pegando a Rua 13 de Maio até chegarmos à Praça Pedro II, àquela hora já deserta.

 

            Cruzamos a praça e, ao fazê-lo, Iran me mostrou o Quartel da Polícia Militar, o Theatro 4 de Setembro e o Cine Rex, que ostentavam cartazes anunciando para breve os filmes O Ébrio e Carnaval no Fogo.

 

            Pegamos a Avenida Antonino Freire, onde o Iran me apontou a Agência dos Correios, o Palácio de Karnak, do Governador, a Igreja de São Benedito, tendo ao lado o Convento e, à esquerda, o Posto Kaiser e a Escola Industrial. Seguimos em frente, cruzamos a Rua Quintino Bocaiúva, após a qual atingimos a Avenida Frei Serafim.

 

            Ali, dobramos à esquerda, pegamos a Rua Arlindo Nogueira, cruzamos as Ruas Álvaro Mendes, Coelho Rodrigues, Eliseu Martins, do Amparo – atual Areolino de Abreu – e, enfim, dobramos à direita, na Rua da Glória. Ufa! Chegamos!

 

            Na sala de jantar, uma recepção me aguardava. A dona da casa e três lindas garotas, regulando a minha idade: Marilu, minha prima, filha de Donamaria; Auricélia, moradora da casa ao lado; e Leda, filha do Dr. Bernardo.

 

            Que decepção para elas, ao verem aquele matuto todo maltratado por dois dias de viagem, sem tomar banho, enfrentando lama e poeira! E que acanhamento o meu, bicho do mato, ao deparar com as meninas da Capital, eu que, naquele tempo, corria de medo quando me encontrava diante de qualquer uma delas!

 

            Para compensar, um garoto, dois anos mais novo, o Bernardo Melo Filho, primeiro menino que conheci em Teresina!

 

            Depois disso, logo me enturmei com outros, ao entrar para o Ateneu, onde fora matriculado na 2ª Série: Helcias Arcoverde, José Emílio Ommatti, Jorge Waquim, João Emílio Falcão Filho, Odolfo Tavares, Luiz Gonzaga Viana, Albano Freitas, Basílio Bezerra Filho, Firmino Silveira e Iaci Correia.

 

            Naquela noite, passado o meu vexame e vencido pelo cansaço, fui dormir. Enquanto não caía no sono, o refrão não me saía da cuca: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Apaguei! E só fui acordar quando outra bela melodia ao longe se fez!

 

            Um som que escutei todas as noites durante os sete anos em que vivi em Teresina e que me serviu, no início, para avisar que estava na hora de levantar e pegar a estrada rumo à Educação Física, no quintal do Professor Moacir Madeira Campos, um dos sócios do Ateneu, nas proximidades do bairro Vermelha: o apito do trem!

 

            Assim que pude, cuidei logo de conhecer essa grande novidade tecnológica, o trem de ferro e a estrada idem!

 

            Na etapa seguinte, participei da que foi a minha estreia em aventuras arriscadas: andei no elevador do IAPC!

 

            No meu primeiro ano em Teresina, fui, um dia, o menino mais rico da cidade. Vou lhes contar.

 

            Em março de 1950, a Casa Nova, grande loja de tecidos, lançara, na Rádio Difusora de Teresina, com prêmio de 500 cruzeiros para quem acertasse, estas perguntas: qual a primeira peça teatral escrita no Brasil? Por quem foi escrita? Em quantas línguas?

 

            Quinhentos cruzeiros, naquele tempo, davam para 250 entradas no cinema, ou 500 sorvetes, ou 1.000 picolés. Pequena fortuna para as quimeras da infância!

 

            O Professor Antilhon Ribeiro, que lecionava História no Ateneu, do qual era o outro sócio, ensinou as respostas para todos os seus alunos: a primeira peça teatral escrita no Brasil foi O Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, em Português e Tupi.

 

            Escrevi minha resposta num papel, atrapalhei-me na hora, fiz um borrão sobre ela, reescrevi-a, e depositei-a numa urna lá na Casa Nova.  E fiquei esperando!

 

            Todos os finais de semana, saía um automóvel na rua, com alto-falante no teto, mencionando o concurso e tocando o jingle da loja. De tanto repeti-lo, gravei-o na memória, cantava-o a todo instante, e agora aqui o reproduzo:

 

REFRÃO:

 

A Casa Nova, a Casa Nova

Vende barato

Quem quiser, que tire a prova

(Bis)

 

Faz poucos dias

Que cheguei nesta cidade

Procurando novidade

Bons tecidos pra comprar

Fui informado

Por enorme freguesia

Que tudo quando eu queria

Lá iria encontrar

 

REFRÃO

 

Tem casemira

Brim de linho, caroá

Carrapicho, tafetá

Seda, chita e gorgorão

Voile e crepe

Tem bramante e opaline

Tropical e tricoline

Panamá, gaze e fustão

 

REFRÃO

  

Agora eu quero

Avisar à freguesia

Que não há mercadoria

Que se possa comparar

Com os tecidos

Que a Casa Nova tem

Por isso não há ninguém

Que lá não queira comprar

 

            Só no segundo semestre, aconteceu a premiação. Durante toda a semana, no rádio e nas amplificadoras, era a notícia mais constante.

 

            Numa tarde domingueira de agosto, com o pequeno auditório da Rádio Difusora superlotado, o locutor Dennis Clark procedeu à apuração. Havia 14 respostas certas, que foram colocadas numa caixa. Dennis chamou uma garotinha que estava sentada no colo da mãe e lhe pediu que retirasse uma carta. Quando a menina ia entregando a carta ao locutor, já reconheci os meus borrões!

 

            Isso me fez famoso na Capital por algum tempo!

 

            Comparada ao esparrame de hoje, Teresina era um ovo em 1950. Podia-se ir a pé aos bairros mais famosos: Piçarra, Vermelha, Porenquanto, Mafuá.

 

            De dia, o movimento era na Praça Rio Branco, com as Casas Pernambucanas e Loja Rianil, o Bar Carvalho, onde se comprava o melhor bife a cavalo da cidade, o Café Avenida, o Hotel Piauí, em construção, em cuja última laje se via uma placa com a inscrição Aqui há Otis, a Farmácia da Dona Lili, a Igreja do Amparo, o coreto, onde as Bandas do 25º BC e da Polícia Militar, de vez em quando, realizavam retretas, e o Ponto de Táxi, com os minúsculos carros Perfect importados, que cobravam 5 cruzeiros pela corrida.

 

            À noite, a Praça Pedro II dominava, com o Quartel da Polícia, os dois cinemas, o Picolé Azas – com mesmo – o Salão de Sinuca do Chico Doca, bares, restaurantes e o Ponto de Táxi, com carrões americanos como os do Walmor, e do Bianor, cuja corrida custava 10 cruzeiros.

 

            Uma pista carroçável transversal separava a Pedro II em dois níveis.

 

             No superior, onde ficava o Quartel da PM, reunia-se a assim chamada 2ª Sociedade, constituída de soldados da Polícia ou do Exército, empregadas domésticas e moçinhas de namoro fácil, conhecidas como “curicas”. Ali, namorados de ambas as classes sociais aproveitavam as sombras das figueiras para darem um amasso.

 

            No inferior, fronteiriço aos cinemas, a nata da Sociedade se reunia, com moças e rapazes desfilando em sentido contrário, trocando olhares para um futuro namoro, quem sabe no nível superior da praça, quem sabe nos escurinhos do 4 de Setembro ou do Cine Rex, pois ali, conforme o costume de então, os corpos não podiam se tocar. As meninas de fácil namoro da elite eram conhecidas pelo preconceituoso e despeitado apelido de “galinhas”!

 

            Aquela intensa vida social noturna se acabava, em ambos os níveis, como num passe de mágica, às 21h00, quando o Corneteiro do Quartel da PM soava o Toque de Revista do Recolher! Era a senha para que todos fossem pra casa dormir!

 

            Teresina só possuía um clube, o Clube dos Diários, que não era provido de piscina. Por esse motivo, a “croa” – pronúncia aferesada de coroa –, ilha que se formava no meio do Rio Parnaíba, entre Teresina e Timon, durante o período das secas, era o ponto de encontro, aos domingos, de todos, ricos ou pobres, que ali procuravam um pouco de refrigério diante do calor brabo que assolava a região.

 

            Um ponto alto da diversão noturna teresinense eram as quermesses. A de Nossa Senhora das Dores, na Praça Saraiva, onde pontuava o Padre Zé Luiz; a de São Benedito, promovida pelo Frei Conrado; e a de Nossa Senhora do Amparo, a cargo do Padre Chaves. E tome retreta, e tome comidas e bebidas típicas, e tome amplificadora oferecendo músicas de alguém para alguém, e tome correio elegante, no qual fui, por qualquer prenda, moleque de recado.

 

            Abstraindo-se a saudade que sentia da casa paterna, dos meus irmãos e dos amigos de Balsas, Teresina foi, durante sete anos, o meu quintal, a minha praia, o meu pasto!

 

            Igual a todo menino da minha laia, pintei e bordei! Fiz filme com o Manelão – ou Avião –, varei o Theatro – pulando o muro e entrando sem pagar –, gritei para a Lazarina “É homem! É homem!”, para que ela, no meio das moças, levantasse o vestido e mostrasse os possuídos, atazanei a vida de um homem que andava de cartola, fraque e bengala, cópia fiel do que ilustrava o rótulo do Elixir de Mururé. Com esse, bastava que se gritasse “Mururé! Mururé!”, para que ele brandisse a bengala e saísse em perseguição ao atrevido.

  

            Pesquei lambaris com garrafa no Rio Poti, onde tomava banho, atravessava-o a nado ou a vau, conforme o mês, andava no pontão e assistia ao bate-estaca, tocado a vapor, enfincar pilares na terra, construindo a ponte, obra que se arrastou por muitos anos.

 

            No Rio Parnaíba, capturei pitus nas locas, que eram vendidos na ZBM; pesquei sardinhas e mandis; pulei da Ponte Metálica; joguei futebol e bronzeei-me na croa; varejei na canoa que o Tio Joãozinho lá deixara para a diversão dos sobrinhos; e assisti à construção do cais.

 

            No Centenário de Teresina, ocorrido a 16 de agosto de 1952, as maiores festividades, que duraram por todo o mês, aconteciam na Praça João Luiz Ferreira. Muitos artistas famosos do Rio de Janeiro a abrilhantaram. Foi a maior festa a que já assisti. No seu transcurso, aprendi a dançar tambor! Como atração que perdurou por muitos anos, foi construído, na Praça Pedro II, ao lado esquerdo do Theatro 4 de Setembro, o Bar Carnaúba, usando-se em toda a sua estrutura apenas o material retirado daquela palmeira, que já foi a maior riqueza econômica piauiense.

 

            Pulei o muro do Estádio, ou assisti a jogos trepado nos altos galhos do pé de tamarindo, que ficava bem junto, esperando que, aos quinze minutos para acabar o jogo, abrissem os portões, na denominada “hora dos miseráveis”. Só assim, conheci o melhor time de Teresina, o River; o seu mais famoso jogador, o Sargento Diderot; o técnico do Artístico, o Arroz; e o craque do Artístico, sempre convocado para a Seleção Piauiense, o Luizinho Cavalo Velho.

 

            Havia, anualmente, o Campeonato Brasileiro, não de times, mas com as Seleções Estaduais. O Piauí sempre jogava com o Rio Grande do Norte ou com o Maranhão, todos logo desclassificados.

 

            Estudei em três colégios teresinenses: o Ateneu, o Diocesano, onde fui interno, e o Liceu Piauiense. Morei na Rua da Glória, na Teodoro Pacheco, na Barroso, na da Estrela e na Baixa da Égua. Frequentei a doce vida da Rua Paissandu e do Bar Quitandinha.

 

            Filei comida na casa de Fructuoso José da Silva, meu Tio Fructo, casado com Zoraide Benvindo, a Tia Zora; na casa de Tia Antônia, casada com o dentista e ourives Raimundo Lopes de Aguiar, onde morei por uns tempos; na casa de Benedito Vasconcelos, o Beni, meu primo, Gerente do Banco do Brasil e casado com Ezir, onde também morei; e na casa do primo Pedro Maranhense Costa, do BB, casado com Raimunda Pires, a Dica, o qual, vez por outra, me ajudava com uma dádiva monetária. Antônio Luiz do Monte Furtado, também do BB, primo solteiro e abonado, muito me escorou nos momentos de pindaíba.

 

            Privei do companheirismo dos primos Oswaldo, Pedro Del Pretes, Achiles Mussoline e Bernardino, o Benu, e gozei da amizade das primas Ana Maria, Maria Ester e Terezinha de Souza e Silva, todos filhos do Tio Fructo.

 

            Inspirado num filme com o caubói Roy Rogers, construí, no quintal de Tia Antônia, um casebre de paredes e cobertura de palha, em cuja entrada pendurei uma tabuleta com o letreiro indicativo a carvão: Rancho Preguiça, no qual eu cozinhava em latas velhas de manteiga e de goiabada. Meu baião-de-dois era muito apreciado pelas primas Maria de Nazareth e Maria do Amparo, além do primo José Ivan, de apenas dois anos, a quem ensinei o dificílimo contorcionismo de morder o dedão do seu próprio pé. As sobremesas eram os doces que minha mãe mandava de Balsas, ou as cocadas feitas por Tia Cristina Albuquerque, que possuía uma quitanda na Rua Félix Pacheco, onde morava, entre a João Cabral e a beira do rio, ou seja, na ZBM. Por causa disso, suas portas fechavam-se às 18h00, após o que não abriam nem por decreto.

 

            Em Teresina, conheci o primeiro amor e cometi o primeiro pecado. Fui menino rico por um dia, estudante pobre, cabo e soldado do Exército no 25º BC, ajudante de palhaço e mais um desempregado, como tantos por lá.

 

            No dia 17 de fevereiro de 1957, aniversário de meu pai, um domingo, exatamente sete anos após ter desembarcado ali pela primeira vez, eu tomava, na mesma Praça Saraiva, um ônibus de luxo para Fortaleza.

 

            Fora aprovado na seleção para a EsSA - Escola de Sargentos das Armas, sediada em Três Corações-MG, e seguia, com outros camaradas, em direção ao futuro, à independência financeira, à conquista do sul-maravilha!

 

            Ao embarcar, e em toda a viagem, que durou mais de dez dias, percorrendo a Rio-Bahia e a estrada de ferro do Rio de Janeiro para Cruzeiro-SP e de lá até o destino, o refrão daquela marchinha não continuava a retinir: “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Porque parte do meu coração em Teresina ficou.

 

            E agora, é até razoável alguém me perguntar:

 

            – Mas o seu visgo não era com Floriano?

 

            E eu esclareço:

 

            – Floriano era paixão de garoto! Teresina foi amor de adolescente!

 

            Passaram-se 45 anos sem que eu voltasse à assim chamada Chapada do Corisco! Coração ingrato!

 

            Mas não era bem isso. Com meus pais residindo em Balsas, a 180 léguas de Teresina, sempre passava minhas férias por lá, mas a saudade, no fundo do peito, amargava que nem jiló!

 

            Em agosto de 2002, morando em Brasília, quando a Terra de Mafrense comemoraria o Sesquicentenário, com uma campanha publicitária cujo lema era “Teresina, Cidade Futuro”, chamei Veroni, minha mulher, e anunciei: – Vamos viajar de volta para o futuro!

 

            Mas queria participar do evento de modo a nada perder! Para tanto, entrei em contato com o Serviço de Relações Públicas da Prefeitura Teresinense, contei minha história e o meu amor pela cidade, o que muito pesou a meu favor, e solicitei-lhes convite para que eu e Veroni assistíssemos à solenidade principal de local privilegiado.

 

            Prestimosamente, enviaram-nos duas camisas alusivas ao Sesquicentenário, a serem usadas por todos no Palanque do Prefeito, bem como o convite a seguir. 

 

            Ao desembarcar do avião, no Aeroporto Senador Petrônio Portela, temperatura em volta de 30 graus, senti no rosto aquela baforada quente, tão conhecida dos velhos tempos. Começava a matar a saudade do querido Piauí.

 

            Hospedei-me no Rio Poty Hotel. Do meu apartamento, uma vista impressionante da cidade se descortinava no rumo do Ceará, mostrando o quanto Teresina crescera, limitando-se ali apenas com o horizonte.

 

            Em 1957, toda aquela área era mato. Lembrei-me dos tempos de outrora, quando o Dr. Bernardo Melo levava a meninada no seu Austin para tomar banho na SOCOPO, uma bica de água mineral no meio da floresta.

 

            O amplo palanque encontrava-se montado na Avenida Frei Serafim, em frente ao Colégio das Irmãs. Foram duas horas de desfile, com carros alegóricos contando a história da cidade, desde sua fundação até os dias atuais. A maior escola de samba do mundo não narraria melhor aquela saga! Impressionou-me deveras a quantidade de bandas de música, 14! Quando saíra de lá, só existiam duas, a do 25º BC e a da Polícia Militar.

 

            No dia anterior, sábado, assistimos à missa matinal na Igreja do Amparo, celebrada pelo Monsenhor Chaves, com quem conversei, relembrando os tempos em que ele fora meu professor de Francês no Colégio Diocesano. Lá, encontrei-me com Marion Couto Kyrieleison Soares, que cantava no Coral do Amparo, no início dos anos 50, juntamente com minhas primas Maria Zélia, Maria Célia e Maria Lélia Albuquerque Aguiar.

 

            Almoçamos na casa da família de nossa amiga Heloísa dos Santos Costa, moradora em Brasília, mas que, vitimada por doença terminal, preferiu passar seus últimos dias junto a seus entes queridos, no Parque Piauí.

 

            Depois do almoço, seu irmão Luiz Edson Santos Costa, médico, nos levou até à Vermelha, onde fizemos rápida visita ao dentista Benedito Ferreira Ramos, meu colega da EsSA, que há 45 anos não via.

 

            À noite, meu conterrâneo João Tourinho, amigo de infância, e a angicalense Rosária, sua mulher, receberam-nos em sua senhorial mansão, em São Cristóvão, quando aproveitamos para relembrar os belos tempos idos.

 

            Durante minha estada por lá, tive o apoio do meu primo Airton Coelho e Silva, médico, filho do Tio Joãozinho, de Lindalva, sua mulher, e de seu filho Jener. Ele me levou de carro a todos os pontos que marcaram minha vida teresinense. E começamos pela casa do Bernardo Melo Filho, industrial, casado com Rita de Cássia, ainda residente na Rua da Glória, por ter sido ele o primeiro menino teresinense que eu lá conhecera.

 

            Bernardo levou-nos para que eu revisse Seu João Souza, antigo vizinho, com quase 90 anos, a quem muito perturbara com minhas batidas num poste de ferro – espécie de alvorada para toda a vizinhança –, e sua filha Valderez, brotinho em 1950.

 

            Depois, seguimos para os pontos que eu queria fotografar. O Centro Histórico de Teresina em quase nada mudara naqueles 45 anos! Eu poderia até plagiar o cantor Ronnie Von ao dizer: a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim! E, pasmem, na Praça da Bandeira, o mesmo Mercado Municipal!

 

            No domingo, após o desfile, Airton levou-nos para almoçar num restaurante e, terminado este, conduziu-nos até uma chácara que possui à esquerda da estrada para União, onde aproveita para descontrair do estresse causado pela rotina médica.

 

            Vi todos os poucos parentes que ainda tenho em Teresina: Magnólia Carvalho, minha prima, casada com Raimundo Baptista de Carvalho, desembargador aposentado, residente no bairro São João, Suzane Coelho e Silva, minha prima, irmã do Airton, e Germano Coelho, seu filho.

 

            Na noite da véspera do nosso retorno, Conrado Nogueira Barros, dentista e meu companheiro dos tempos da caserna, casado com Elza, promoveu um forró em sua residência, no Planalto Itinga, no qual tive o prazer de matar a saudade das músicas regionais, assim como deleitar-me com os pratos que caracterizam a cozinha piauiense.

 

            Conheci o resto da família do Conrado, notadamente sua filha Lisa Minerva, que hoje faz parte de minha amizade no Orkut, e revi seu irmão Evandro Nogueira Barros, o Bela Aurora, como o chamávamos antigamente.

 

            Belizário Virtunis da Rocha, o Bili, dos tempos da pensão na Baixa da Égua e funcionário do Banco do Brasil, marcou um encontro com alguns amigos para as 10h00, do dia 19, segunda-feira, dia do nosso regresso, em frente ao Clube dos Diários. Compareceram, além do Bili, Fernando Martins da Rocha, funcionário público, Janclerques Marinho, escritor, e o João Tourinho.

            Terminada a reunião, João Tourinho nos levou ao local onde o Rio Poti desemboca no Rio Parnaíba, para que Veroni conhecesse o espetáculo do encontro das águas.

 

            Agenda social pra ninguém botar defeito!

 

            Agora, eu já sei como é que se faz!

 

            Quando a saudade novamente apertar, é só pegar um avião e, em duas horas, eu chego lá!

 

            Teresina, meu xodó, jamais te esquecerei!


De Balsas Para o Mundo segunda, 27 de março de 2017

FLORIANO, PAIXÃO QUE SE NÃO LIMITA

FLORIANO, PAIXÃO QUE SE NÃO LIMITA

Raimundo Floriano

 

 Floriano em 1949: Praça da Matriz 

            Não existe balsense mais florianense da gema do que eu. Desde o meu nascimento, a palavra Floriano soou-me como melodia vinda do céu. E não era para menos. Seu Rosa Ribeiro, meu saudoso pai, homenageando sua terra natal, nomeara-me Raimundo Floriano.

 

            Desde cedo, aprendi a orgulhar-me desse nome. Meus irmãos mais velhos, que estudavam em Floriano, vinham de férias falando nos mágicos encantos da cidade. Assim, eu ansiava pela chegada de minha vez de conhecê-la.

 

            No dia 5 de fevereiro de 1949, aos 12 anos de idade, embarquei no motor Pedro Ivo, rumo ao estudo, ao progresso e ao desconhecido. Logo em Uruçuí, onde o Rio Balsas desemboca no Parnaíba, aquele mar de água. E nele, uma amostra do que seria o porvir: o vapor Brasil – para mim, um navio –, sob o comando do florianense Seu Antônio Anísio, rebocando três imensas barcas, fazia manobras para aportar. No dia 8, desembarquei na rampa de Floriano.

 

            Aguardava-me um estivador chapeado previamente contratado por minha Tia Maria Isaura, moradora à Rua Fernando Marques, 698, para onde seguimos, ele com minha mala e o saco da rede, e eu com o meu assombro diante de tanta coisa nova que se descortinava ante meus olhos.

 

            Bem na rampa, uma frota de jumentos, pertencente a Dona Inês Angelim, carregada de ancoretas d’água para fornecimento à população, subia, em zigue-zague, íngreme ladeira, sabedoria asinina que logo seria transmitida a este matuto, grande admirador dos jegues. Mais adiante, a rua calçada, o meio-fio, a arborização, a casa de Seu Tiago Roque, a Praça da Matriz, a Avenida, os sobrados dos carcamanos, bicicleta com um menino em riba dela, as carroças de Seu Salomão Mazuad, o Riacho do Gato e o Riacho da Onça passando por dentro da metrópole.

 

            Daí pra frente, novos impactos: o Ginásio Santa Teresinha, a Escola Normal Regional, o Cine Natal e outros primores que se me apresentavam, tais como luz elétrica, sorvete, picolé, gelo em barra, gibi, e carro, muito carro, os caminhões de Seu Arudá Bucar, ônibus e jipes.

 

            Se eu pudesse determinar qual a Oitava Maravilha do Mundo, não titubearia em decretar que seria o serviço de alto-falantes, mais conhecido como amplificadora. Em Floriano, havia duas. A Amplificadora Florianense, “a voz líder e potente da cidade”, nas palavras do seu locutor, o Defala Attem, e a Amplificadora do Chico Reis, “a voz do comércio, a maior”, como apregoava o locutor Almir Reis, filho do dono.

 

            Cinema era pago, picolé era pago, sorvete era pago, gibi era pago, mas a amplificadora era diversão acessível a qualquer bolso, mesmo ao mais desprovido. Bastava ter ouvidos e atenção.  Uma saía do ar e, ato contínuo, a outra emendava, presenteando-nos com os mais belos sucessos musicais da moda. Essas duas amplificadoras foram, em parte, as responsáveis pelo amor que tomei pela Música Popular Brasileira, pela memória musical que hoje me proporciona meio de ocupar meu ocioso tempo de aposentado, fazendo-me, pelo Orkut, um internauta intensamente procurado por aficionados do mundo inteiro, que me consideram o mais completo, atualizado e atento colecionador, no âmbito da Música Militar, do Carnaval Antigo e do Forró.

 

            Indeléveis na minha memória são os prefixos das duas emissoras. A Amplificadora Florianense iniciava e encerrava seus trabalhos com o dobrado Batista de Melo, de Mathias de Almeida. A Amplificadora do Chico Reis, com o dobrado Antônio José de Almeida, de Horácio Casado.

 

            Quando comecei a ganhar dinheiro, muito tempo depois disso, e pude comprar meu primeiro som, cuidei logo de amealhar essas relíquias. Pena que, neste ano de 2007, ao completar 71, já não encontre pessoas daquela época para trocarmos ideias, tirarmos dúvidas, contarmos reminiscências, matarmos saudades, ouvirmos os sons que marcaram nossas adolescências. E fico telefonando a esmo, na vã esperança de lograr conexão com algum interlocutor contemporâneo, unzinho que seja.

 

            Sossega, coração!

 

            Morei lá apenas um ano. Em 1950, fui estudar em Teresina. Mas minha benquerença, renitente que é, recusou-se a partir.

 

            Agora, no seu 110º Aniversário, não titubeio ao afirmar, sem medo de erro:

 

Em 1949, Floriano, a minha querida xará, era assim!


De Balsas Para o Mundo sábado, 25 de março de 2017

PEDRO FONSECA, O CRONÔMETRO

PEDRO FONSECA, O CRONÔMETRO

Raimundo Floriano

 

 

            Quem pensa que os sinos da torre da Igreja Matriz de Santo Antônio de Balsas só servem para tocar a chamada para as missas e novenas e o sinal dos mortos, está muito enganado. Hoje, até que assim é. Mas houve época em que um deles foi fonte de ocupação muito rendosa: o bater das horas.

 

            Essa profissão era exercida por meu irmão Afonso Celso. Todos os dias úteis, ele desferia suas batidas no sino maior, que serviam para dar início às atividades comerciais ou colegiais da cidade. Às sete horas, quando as portas das lojas e das escolas se abriam; às onze, quando se fechavam para o almoço; à uma da tarde – treze badaladas –, quando a rotina recomeçava, e às cinco, término da faina diária.

 

            A remuneração provinha dos comerciantes, da maioria deles, pois havia uns que se recusavam a colaborar. Para fazer justiça, aqui relaciono os que contribuíam mensalmente com a quantia de Cr$2,00 (dois cruzeiros): Aarão Lima, Salomão Ahuad, Chico Florentino, Moisés Coelho, Jacques Pinheiro, Doutor Gonzaga, Augusto Pires, Coronel Fonseca, Hermes Fonseca, Seu Lima, Doutor Didácio, Cazuza Ribeiro, Alexandre Pires, Elias Alfredo Kury, o Seu Curi, Raimundo Bringel, Raimundo Botelho, Edísio Silva, Gesner Soares, José Costa Branco, José Costa Preto, Joaquim Coelho, José de Souza Lima, o Souzinha, Constâncio Coelho, Tarcísio Moreira, Santo Coelho, Silvério Sampaio, Professor Joca Rego e, na Tresidela, Manoel Coelho, Aprígio Alencar e Elias Miranda. Multiplique cada cabeça por dois, e veja como a grana era boa!

 

            Em 1947, meu irmão Afonso foi estudar em Goiânia, passando-me o comando do badalo. Função que desempenhei até 5 de fevereiro de 1949, quando, aos 12 anos, embarcaram-me no motor Pedro Ivo, com destino a Floriano, para fazer o rigoroso exame de admissão ao Ginásio Santa Teresinha, do Doutor Sobral Neto. Foi uma saída tão brusca, que nem deixei substituto na torre.

 

            No Porto da Rampa, subi a bordo, ante o olhar da multidão que ali comparecera para as despedidas. Ato contínuo, o barco zarpou, seguiu até o Porto do Fonseca, manobrou e embicou rio abaixo, emitindo um longo e saudoso apito ao passar pela Rampa. Na primeira curva à esquerda, a do Remansão, quando não mais vi Maria Bezerra, minha mãe, acenando com um lenço branco – costume de então –, abri o rabo a chorar.

 

            E chorei até chegar em Sambaíba, grande centro da indústria fluvial, onde fora construído o motor Pedro Ivo, sob a supervisão do Comandante Luiz Barbosa, e onde, num dos estaleiros, Mestre Casemiro de Abreu, renomado carpinteiro, acertava os últimos detalhes para o lançamento do motor Princesa Isabel, propriedade dos negociantes balsenses Alexandre Pires e Jacques Pinheiro. Era o progresso que me escancarava suas portas.

 

            Nas férias de julho, reencontrei minha Balsas Querida muito modificada: sinuca, picolé, bicicleta de aluguel, chaveiro, amplificadora e até promessa de um cinema, que o rádio-técnico-eletricista Zé Farias cumpriria dentro em breve, consagrando-se como o primeiro projecionista da cidade. O comércio já não fechava suas portas para o almoço e, igualmente, os sinos não mais batiam as horas.

 

            Voltemos, agora, ao que realmente interessa neste episódio!

 

            Em certa longínqua madrugada de 1947, na ocasião da partida do meu irmão Afonso, aboletado na carroceria do caminhão do Olegário, rumo à conquista do Planalto Central, ocorreu-me perguntar-lhe:

 

            – Afonso, você nunca teve relógio. Muito menos eu. Como é que você fazia, e como é que eu vou fazer, para saber o exato momento de sapecar as batidas no sino?

 

            Sua resposta:

 

            – Suba na torre e fique observando a Casa Agreste!

 

            Referia-se ao estabelecimento comercial do Coronel Fonseca, na Praça da Matriz, de secos e molhados, com usina beneficiadora de arroz e algodão, imensos armazéns de couro, coco babaçu e sal, fornecedor de mercadorias para toda a região sul-maranhense e tocantina, do qual era auxiliar graduado e da máxima confiança o Pedro Fonseca, sobrinho do Coronel.

 

            Prosseguiu o Afonso:

 

            – Pela manhã, quando o Pedro Fonseca abre a loja, são sete horas; quando fecha, são onze. À tarde, quando abre as portas novamente, são treze horas; ao fechar, são cinco. Não tem como errar!

 

            Se o Pedro Fonseca possuía relógio? Ao que me consta, não!

 

            Mas assim sempre se sucedeu! Sem falhar uma vez sequer! Na batata, rente que só pão quente, justo que nem boca de bode!

 

Pedro Fonseca abrindo a loja: base segura  para o menino do badalo

 

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De Balsas Para o Mundo sexta, 24 de março de 2017

MARTINHO MENDES, MEU TIPO INESQUECÍVEL

MARTINHO MENDES, MEU TIPO INESQUECÍVEL

Raimundo Floriano 

 

Martinho Mendes e seu saxofone

 

            Martinho Mendes nasceu em Loreto-MA no dia 12 de novembro de 1917. Era também chamado Martim Músico e até Martim Musgo, como falavam os menos letrados.

 

            Em sua terra natal,  na luta pelo pão de cada dia, exerceu as profissões de músico, barbeiro e chofer, tendo nesta, por muitos anos, trabalhado para o negociante José do Egito Coelho.

 

            Foi ele o primeiro músico que conheci na minha infância, e sua arte musical e seu saxofone muito me influenciaram no propósito de também vir a ser um músico de sopro e ajudaram a formar meu vasto e profundo conhecimento do nosso repertório carnavalesco.

 

            Martinho Mendes teve três devoções na vida: a família, a boemia e a Música.

 

            A primeira devoção, a família, caracterizava-se pela paixão e fidelidade dedicadas à sua mulher, Dona Antônia Alves Mendes. Nunca ouvi falar de que Martinho Mendes tivesse pulado a cerca.

 

            Essa veneração à esposa rendeu-lhe sete produtos do amor: Édison, ou Edinho, Aluísio, Sebastião, Antônio, Manoel, Luzimar e Lúzia Maria.

 

            A segunda devoção, a boemia, exige que eu me demore mais para explicar o que ela significa hoje e o que foi no passado.

 

            Grandes composições foram dedicadas ao tema: Boêmio de Raça, gravado por Orlando Silva; A Volta do Boêmio, na voz de Nélson Gonçalves, em que a mulher falava para o amado: “meu amor, você pode partir, não esqueça o seu violão”.

 

            Há um grande compositor na Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense chamado Carlos Boemia, e existe um conjunto musical denominado Os Cervejas.

 

            Hoje, a sexta-feira ficou conhecida como o Dia da Cerveja e da happy hour, hora feliz, ou seja: a felicidade consiste em virar o copo!

 

            Em Blumenau-SC, realiza-se, anualmente, a Oktoberfest, com duração de uma quinzena, na qual centenas de milhares de pessoas se reúnem com o objetivo único de encherem a cara.

 

            Grandes marcas de cerveja arregimentam ídolos de várias atividades para promoverem seus produtos. A Brahma será patrocinadora oficial da Copa do Mundo da Fifa de 2010. É o Futebol, a maior paixão nacional, a Pátria de Chuteiras, com seus saudáveis atletas, aliado à velha devoção do Martinho Mendes, a boemia.

 

            Eu mesmo, que agora só bebo refrigerante diet, fundei, em 1972, a Igreja Sertaneja, seita sem caráter religioso, cujos templos eram todos os bares e botecos do Brasil.

 

            Mas, nos anos 40-50, o preconceito arraigado na mente do povo do meu sertão fez com que a boemia fosse um ato abjeto, abominável. Por isso mesmo, minha geração não produziu sequer um instrumentista de sopro.

 

            Alguns refratários até que tentaram: Ninosa da Dona Clara e os irmãos Alcebíades e Expedito, os três no pistom. Mas nenhum deles prosperou no intento. Acho que lhes faltou propensão para a arte.

 

            Houve um adulto, o Barroso, enfermeiro do Posto de Saúde, que tocava clarineta, mas seu instrumento piava tanto que, tão logo terminava a introdução, ele se entregava à parte vocal.

 

            Eu, além de admirar o Martinho como músico, também sonhava em, na maturidade, ser também um boêmio igual a ele. Certo dia, perguntei-lhe:

 

            – Martim, é bom ficar de fogo?

            E ele me respondeu:

            – O bom mesmo é quando começa o “tontinho”!

 

            Na segunda metade dos anos 40, o comerciante Jacques Pinheiro comprou um caminhão da marca General Motors Truck, que ficou conhecido apenas por “General”, e contratou o Martinho como chofer.

 

            O General era muito velho, sucata da Guerra, só pegava na manivela ou empurrado, e seu motor era todo afolozado, sem força. Servia apenas para pequenos carretos ou para levar passageiros ao Campo de Aviação. Era ótimo para a meninada, que podia facilmente amorcegar-se – pendurar-se – em sua carroceria.

 

            Sem qualquer tipo de trânsito ou obstáculo para dificultar-lhe a marcha, o General teve no Martinho um chofer competente, com ou sem “tontinho”!

 

            A predisposição do povo contra a profissão de músico persistiu por todos aqueles anos.

            Um dia, numa retreta na Praça de São Sebastião, faltou o pandeirista. Vi ali uma chance de me lançar no metiê. Mesmo sem noção alguma do ofício, pedi:

 

            – Martim, eu posso tocar o pandeiro?

 

            Ele, talvez no “tontinho”, consentiu!

 

            Peguei o bicho e tentei acompanhar a música, porém não dei uma batida correta. Deixei-o e, acabada a retreta, fui pra casa.

 

            Estava na varanda, quando uma beata enredeira entrou e falou pra minha mãe:

 

            – Comadre Maria, não vou nem lhe contar!

            – Conte logo, comadre!

            – Seu filho Raimundo, aquele dali, tava tocando!

            –Tocando o quê, comadre? – perguntou minha mãe, já apavorada!

            – Pandeiro, comadre! Tocando pandeiro com o Martim Musgo.

 

            Que baita carão levei! Se tivesse tomado uma surra, doeria menos!

 

            Sua terceira devoção, a Música, revelou ser ele detentor de talento inato para essa arte que foi seu principal meio de vida.

 

            Ao chegar a Balsas, com vinte e poucos anos de idade, e ali estabelecer-se para sempre, Martinho já era um musicista completo e burilado. Lia e escrevia na pauta, fazia arranjos, compunha jingles para as lojas – tinha isso, sim –, criava introduções e colocava melodia nas músicas feitas pelos foliões para caracterizar cada bloco carnavalesco. Desconfio que ele tenha percorrido um pouco o caminho da leitura, visto que, quando estava no tontinho, costumava falar palavras de raro uso, eruditas: probabilidade, longitudinal, indubitavelmente, admoestação, coesão, periculosidade, estipêndio, protuberância, assimilação, prestimosidade.

 

            O que me espanta é que toda essa riqueza musical e intelectual foi adquirida em Loreto, sem jamais ter residido em qualquer outro centro de recursos culturais mais avançados.

 

            Eu, que naquele tempo não dançava – tinha acanhamento das meninas –, fui um espectador privilegiado do seu desempenho nos bailes, nos vesperais, nas serenatas, nas alvoradas, nas retretas.

 

            Muitos músicos o auxiliaram nessas tocatas: Zé Passarinho, Walfrido, Enoc e Raul no banjo; Luiz Deodato, o Luiz Bode, Geminiano Farias, o Gemi, e Domingos Mendes, o Dumingau, na bateria; e pandeiristas e sanfoneiros eventuais.

 

            Cinco dos seus filhos seguiram-lhe na arte, com instrumentos diversos. Édison, o Edinho, no sax, Aluísio no banjo, Sebastião no pandeiro, Manoel no sax e Luzimar na bateria.

 

            Nos festejos, tinha seu conjunto ao meu inteiro dispor.

 

            Tanto na Igreja Matriz de Santo Antônio – com quermesse de 1º a 13 de junho –, quanto na Igreja de São Sebastião – com quermesse de 11 a 20 de janeiro –, a parte musical era assim desencadeada: alvoradas nas madrugadas dos primeiros e últimos dias, retretas diárias, depois do Terço, que começava às 11h00, e funções à noite, animando os leilões e as barraquinhas, que vendiam bebidas e comidas típicas.

 

            No Festejo de Santo Antônio, as músicas eram as de meio de ano: rumbas, boleros, sambas, baiões, maxixes, valsas. No de São Sebastião, prevaleciam os lançamentos carnavalescos do ano, que eram tocados e cantados para que todos os aprendessem e os cantassem nos salões, como era costume da época.

 

            Três músicas, no entanto, tinham presença cativa nos Festejos: a valsa Santa Terezinha, de Antenógenes Silva, tradição que o Mestre Riba da Sanfona ainda preserva, o samba Balsas, Cidade Sorriso, e o dobrado Padre Cícero. O samba é de autoria de Martinho e um desconhecido caixeiro viajante e consta, com letra e partitura, no meu livro Do Jumento ao Parlamento. O dobrado é de autoria apenas do Martinho, e sua partitura fará parte deste perfil.

 

            O trabalho do Martinho, no Carnaval, não se restringia apenas aos bailes sociais, geralmente realizados na varanda da residência do meu Tio Cazuza. Havia os vesperais infantis, os desfiles com os blocos nas ruas, além do baile da segunda sociedade, àquela época conhecido como “Pipiral”, na casa do Seu Zé Bento. Isso sem contar os ensaios dos blocos, cada qual querendo manter segredo quanto à marchinha que marcaria sua entrada triunfal no salão. E tudo regado a lança-perfume!

 

            Participava também dos dramas – peças teatrais escolares –, de horas de arte, de solenidades cívicas e dos circos mambembes que por Balsas passavam.

 

            Terminado o período carnavalesco e dos festejos da cidade, sempre havia trabalho em diversas fazendas e localidades nos arredores, cada qual festejando seu Padroeiro.

 

            Era o caso da Festa do Coco da Aparecida no município de Loreto, sua terra natal. Em que pese a ausência de transporte rodoviário, Martinho não perdia essa grande festa, famosa em todo o sertão sul-maranhense. Pegava sua tralha musical, jogava-a no lombo dum jumento e seguia a pé com seu conjunto, como se vê na ilustração a seguir:

 

Martinho e Seu Conjunto: rumo à Festa do Coco da Aparecida

 

            Quando aprendi a dançar e comecei a namorar, e vi que isso era bom, Martinho foi meu grande parceiro nos bailes e vesperais que eu promovia, juntamente com meus amigos, quando estava de férias em Balsas, sempre deixando para receber a paga no apurado da cota. Ele sabia que comigo não havia poréns! Caso alguém deixasse de cooperar, eu completaria o combinado!

 

            Em 1972, aprendi a tocar o trombone de vara! Realizei o primeiro sonho, era um instrumentista de sopro! Faltava o segundo, que se concretizou conforme passo a relatar.

 

            Em 1975, os foliões de Balsas organizaram um bloco carnavalesco denominado Jardim da Infância. Arregimentado o pessoal e confeccionadas as fantasias, faltava contratar um músico que desse suporte ao Martinho e também se dispusesse a sair pelas ruas com o bloco, de carro, ou a pé! E aí, bateu-lhes uma inspiração. Alguém sugeriu:

            – Vamos buscar o Raimundo Floriano lá em Brasília!

            Aprovada a ideia, fizeram uma vaquinha, arrecadaram a grana e mandaram-me as passagens aéreas. Viajei no sábado de Carnaval!

 

Bloco Jardim da Infância

 

            Ao descer do avião, a emocionante surpresa que até hoje me causa arrepios ao narrá-la: ao pé da escada, todo o Bloco Jardim da Infância fantasiado, com o Martinho à frente tocando Balsas Querida, a marcha-hino de Augusto Braúna!

 

            Aproveitamos todos para tirar a foto acima, ali mesmo no Aeroporto e, em seguida, embarcamos na carroceria dum caminhão, dando início ao carnaval de rua! Dizem que foi o melhor de todos os tempos!

 

            Pelo menos para mim, foi isso mesmo! Realizei o sonho de tocar para o povão em companhia daquele famoso ídolo de minha infância!

 

            Martinho era grande amigo de nossa família e foi o barbeiro de meu pai durante os seus últimos anos de vida, atendendo-o em casa até quando faleceu, em 1973.

 

            Sete anos depois, chegou a hora de Martinho Mendes também se despedir deste mundo, da família, da boemia, da Música!

 

            Sua saúde vinha apresentando indícios de grave debilidade, razão pela qual o Dr. José Bernardino, que cuidava dele, havia recomendado que parasse de tocar, que não soprasse nem um balão, pois o seu pulmão não suportaria o esforço. Martinho rebatia com desdém:

 

            – Quero morrer tocando!

 

            E foi assim mesmo que aconteceu! Com seriíssimos problemas financeiros, inclusive desejando terminar uma obra iniciada em sua casa – que estava quase caindo –, ele fora obrigado a aceitar um convite para tocar na Liga Operária Balsense.

 

            Compareceu também porque ali estavam presentes suas três devoções: a família, para a qual se preocupava em dar morada mais condigna; a boemia, pois nessas festas não lhe faltava a cervejinha de sempre; e a Música, na perfeição do seu desempenho ao executar qualquer melodia no seu velho saxofone!

 

            Nessa festa, no momento em que tocava a rumba Siboney, de Ernesto Lecuona, caiu no chão, já nos estertores da morte.

 

            Levaram-no às pressas para o consultório do Doutor José Bernardino, que o encaminhou para o Hospital São José, mas revelou aos que o acompanhavam:

 

            – O Martinho está praticamente morto!

 

            E naquele dia, 25 de maio de 1980, Martinho Mendes se findava, aos 63 anos de idade!

 

            Até aqui, falou quem o conheceu ainda na infância, expondo suas impressões de criança e, depois, de adolescente. Mas houve uma pessoa de geração anterior à minha, contemporânea do Martinho já na idade adulta, que não conteve suas emoções ao ver o nosso músico recebendo as últimas homenagens em seu velório.

 

            Trata-se do ilustre balsense Dr. Paulo de Tarso Fonseca, jurista, professor, Procurador de Justiça do Estado do Maranhão, que, tão logo chegou em casa, produziu, em forma de carta para seu amigo Miguel Borges, nosso conterrâneo e residente em Carolina, a bela crônica que, devidamente autorizado, passo a transcrever.

 

            “Caro Miguel.

 

            “A notícia que tenho para lhe dar é a da morte do Martinho. Não é outro, o Martinho Músico, dono do sopro inconfundível daquele seu inseparável saxofone, que desde a nossa infância acostumamos a ouvir nas vesperais dos domingos alegres, nos bailes tradicionais, e, sobretudo, nas retretas das noitadas de Santo Antônio...

            “Morreu o Martinho, músico cristalino, boêmio solitário, companheiro fiel das noites enluaradas de nossa cidade, ao tempo das serenatas – poesia musical, que cada um escutava sem perder uma nota, docemente, como eflúvios naturais da vida simplória do sertão. Suas músicas, seus solfejos característicos, por serem simples, inconfundíveis, maravilhosos aos nossos ouvidos, eternos em nossos corações. Lembram-me sempre os chorinhos gostosos, trejeitados. Aquelas marchinhas animadas, com sabor de virgindade, suas valsas melódicas e penetrantes, tocadas com pedaços de nossas almas. Miguel, no Martinho tudo é lembrança...

            “Fui à casa dele, ao seu velório. Lá estava ele, deitado, todo de preto, na sala da frente de seu casebre, que já é quase o meio da rua. Não parecia morto. Estava dormindo. Rosto sereno. Tranquilo. Nenhuma sombra de angústia sofrida. Sabe, Miguel, até parecia mais jovem, mais recuperado, impecável. Nunca um morto. Isso não parecia. Parecia estar a sonhar um sonho de criança. Parecia diante da vitória conquistada, ele, o herói da grande batalha.

            “Morreu o Martinho... Nosso velho Martinho... Figura singular. Alma inofensiva. Artista feito de arte dada por Deus, arte que nunca perdeu, que nunca negociou...

            “Miguel, você sabe o quanto o Martinho foi grande para a nossa cidade. Criou, na sua música, quantas gerações, quantas? O Martinho é um pedaço de Balsas, insubstituível, está na lembrança de todos nós. Morreu como um gigante, no campo de honra, abraçado com o seu inseparável companheiro, o velho saxofone, que dele em vida recebeu, como prêmio, seu último sopro. Balsas está chorando a partida do Martinho, seu grande amigo, retrato de sua alma, o maravilhoso artista do povo, que pobre e simples se impôs às gerações que o conheceram como um autêntico campeão.

            “Caro Miguel, amigo e companheiro, essa a notícia que esta carta lhe leva. Guardemos com carinho em nossas lembranças a figura do Martinho. Ele é digno de todos os balsenses. Merece o reconhecimento de nossa cidade que tanto amou. Rezemos por ele, que teve entre nós a imagem de um justo.

            “Um abraço. (a) Paulo Fonseca”

 

            A partitura do dobrado Padre Cícero, composição de Martinho Mendes, constante das duas páginas a seguir, foi digitalizada pela Professora Silvana Maria Sócrates Teixeira, da Escola de Música de Brasília, baseando-se única e exclusivamente na melodia que lhe solfejei.

 

            A Escola de Música Leonizard Braúna, homenagem a outro grande musicista, o Beethoven do Sertão, que conheci já em minha fase adulta e que tocava com perfeição saxofone, trombone, clarineta, pistom e gaita de boca, constitui-se, atualmente, no grande celeiro musical de Balsas.

 

            E é a esses jovens artistas que exorto a incluírem Padre Cícero em seu repertório. Que melhorem a atual partitura, façam arranjos, e, mais que isso, prestem, nas solenidades cívicas, nas retretas, ou em qualquer lugar, um preito de gratidão a esse homem que nos legou tão bela marcha militar.

 

            Assim, Martinho Mendes permanecerá para sempre na memória do povo balsense!

 

            Será, portanto, um tipo inesquecível!

 


De Balsas Para o Mundo quinta, 23 de março de 2017

MORENINHA, A RAINHA SANTA DO FESTEJO

MORENINHA, A RAINHA SANTA DO FESTEJO

Raimundo Floriano 

 

Moreninha, a Rainha Santa: partida par o firmamento

 

            Aconteceu há mais de sessenta anos!

 

            Em 1946, o Festejo de Santo Antônio, nosso Padroeiro, prometia! Acabara-se o Governo Vargas, e a palavra mais ouvida em Balsas era “constituinte”, termo que para nós, crianças filhotes da ditadura, se associava a “vinho reconstituinte”, um milagroso medicamento vendido nas farmácias. E se constituinte era remédio, só podia ser coisa boa. Os reflexos econômicos e progressistas do fim da Segunda Guerra Mundial se faziam presentes nas mercadorias que chegavam em profusão. Vivia-se a euforia do consumo e da gastança, tão refreada no período belicoso, a população impregnada de inexcedível otimismo e esperança.

 

            Os botequins, todos de palha, armados em frente à Igreja Matriz, exibiam, além das frutas da época, miudezas desconhecidas para muitos, a maioria importada e, segundo voz corrente, resultado da indenização que os Estados Unidos fizeram ao Brasil por sua participação na guerra. Iniciava-se o domínio do plástico e do náilon. Eram cintos, linhas de pesca, sapatos, chapéus, utensílios domésticos, lanternas, bijuterias, espelhos, bugigangas diversas e, sobressaindo-se, o maravilhoso brinquedo, coqueluche daquele Festejo: o ioiô.

 

            O romeiro já não se aproximava do marreteiro e, timidamente, perguntava:

 

            – Tem pente pra homem de chifre?

 

            Agora, era diferente. O matuto, nó-cego, bico-largo, capiau, como queiram, chegava no botequim, todo empolgado, e mandava:

 

            – Bote um cinturão pra menino de matéria plástica!

 

            Em adição aos itens já citados, os botequineiros vendiam comidas e bebidas, destacando-se a gengibirra – produto regional –, conhaque e cachaça, muita cachaça. Cerveja, só nos raros botequins que possuíam geladeira a querosene. Não fazia diferença se a bebida fosse quente ou fria. No Festejo, Balsas transformava-se no maior exportador brasileiro de garrafas vazias.

 

            Também havia vários tipos de jogo, como o do bicho, na roleta, e o do caipira, esse bancado pelo Cadete, simpático e popular cidadão conterrâneo, que apregoava:

 

            – Olha o jogo do caipira, quem mais bota, menos tira!

 

            Na barba-de-são-severino, certo tipo de pescaria, com um molhe de linhas, cada qual amarrada a objetos de pequeno valor, mas, no meio deles, um grande prêmio. O jogador pagava e escolhia a ponta da linha para puxar. Ganhava aquilo que tivesse a sina de arrastar. O marreteiro anunciava:

 

            – Aqui é a barba-de-são-severino, jogam homens, mulheres e meninos e o povo aviciado. O homem que apanha da mulher, não vai dar parte ao delegado!

 

            Ladeando a Matriz de Santo Antônio, as duas barracas da Paróquia, de madeira e tecido, no formato de lanchas. À esquerda, a lancha Marabá, homônima da ancorada no Porto da Rampa e pertencente ao Comandante Wenceslau Ribeiro. À direita, a representante de outra embarcação, propriedade de armadores piauienses, mas com o nome bem sugestivo e apropriado para o momento: Vitória! Nessas barracas, eram oferecidas comidas típicas, saladas de fruta, café, chocolate, bolos da região, cerveja, refrigerante e refresco, que nós chamávamos de “gelado”. A renda maior, toda revertida para a Matriz, provinha dos leilões e da venda de votos para a Rainha da Festa.

 

            Ao meio-dia, no patamar da igreja, realizava-se a retreta, animada por Martinho Mendes e Seu Conjunto. O repicar dos sinos e o estouro dos foguetes anunciavam a função. A música mais ouvida e cantada naquele Festejo era o samba Santo Antônio Amigo, de Pereira Matos, Neneco e A. Gomes, gravação do Ciro Monteiro:

 

Santo Antônio amigo,

Seja meu camarada

Queira me ajudar nas pazes

Com aquela que é minha amada

Vou tirar a sorte

Na noite de São João

Pra saber se me caso

Com ela, ou não

Ela é a dona, é,

Do meu coração, oi

 

Na sorte eu procuro

A minha felicidade

O amor sendo sincero

Não traz contrariedade

Por despeito ou por intriga

Não pode se acabar

Por isso eu peço a Santo Antônio

Para me ajudar, oi

 

            Amada, sorte, casamento, dona do meu coração, felicidade, amor, sinceridade, ajuda, palavras mágicas que tinham tudo a ver com o Festejo do santo casamenteiro. No decorrer dos 13 dias de devoção, tudo respirava o amor e a esperança de um enlace abençoado. E, coincidentemente, já se anunciava, durante a trezena, aquele que seria o casamento do ano.

 

            Acabara de chegar para o Festejo um filho da terra, que fizera fortuna lá pras bandas de Goiás, jovem formoso, cavalgando montaria ricamente ajaezada com arreios jamais vistos no nosso sertão, sela primorosa, toda enfeitada com adereços de prata, rédea finamente trabalhada, configurando-se esse mancebo como um verdadeiro Príncipe Encantado, excelente partido existente apenas nas quimeras das adolescentes. E a mais bela de todas, a Moreninha, flor em botão, de apenas 16 aninhos, era candidata a Rainha da Festa. O romance entre os dois estava escrito nas tortuosas páginas do Destino e surgiu como decorrência natural do Festejo. Foi um namoro pelo qual toda a cidade torcia e ansiava no devaneio de um desfecho glorioso, que seria a realização do enlace matrimonial.

 

            Moreninha foi eleita, e sua coroação constituiu-se na mais majestosa solenidade desse tipo a que presenciei em toda a minha vida.

 

            Terminado o Festejo, a cidade não amanhecera, como nos anos anteriores, com aquele ar de tristeza, a sensação de algo irremediavelmente perdido. Todos tinham o pensamento voltado para a apoteose, que seria o dia do casamento do Príncipe Encantado com a Moreninha, Rainha do Festejo.

 

            As tortuosas linhas do Destino, porém, continham roteiro trágico, epílogo tétrico e sanguinário.

 

            Cinco dias após a coroação, no final da tarde, quando voltava do trabalho para casa, Moreninha teve seu último encontro com o Príncipe Encantado que, naquele momento, se transfigurara em Mensageiro da Morte. Até hoje não se sabe ao certo o motivo. Dizem que transtornado por ter contas a acertar com a Justiça Goiana, algo a ver com a riqueza que ostentava, e também por nunca ter conseguido de Moreninha a submissão a seus ousados avanços amorosos. O certo é que o Mensageiro da Morte, ao defrontar-se com ela, sacou de um revólver e o descarregou em seu peito. Seis tiros fatais! Depois, correu, remuniciando a arma e, ao chegar à casa de parentes onde se hospedava, deu um tiro no ouvido. O Destino quis que o assassino apenas cumprisse seu papel ao tirar a vida da Moreninha. O tiro que dera em si saiu pela boca, e ele, em pouco tempo, já recuperado do ferimento, foi transferido para São Luís, onde, julgado e condenado a 30 anos de prisão, quase nada cumpriu, visto que, em curto espaço de tempo, se evadiu da cadeia e sumiu no oco do mundo.

 

            Assim se narra essa triste história. Para nós, da Moreninha ficou aquela indelével imagem do seu corpo esvaído em sangue, o rosto celestialmente sereno, deixando-nos para sempre a impressão de que acabáramos de perder a doce menina que, expirando, se tornara a Rainha Santa do Festejo.

 

            Seu nome era Maria da Conceição!

 

            Meu irmão Pedro Silva, em crônica publicada no jornal A Tarde, de Carolina, pranteou nossa saudade, em bonita e emocionante página, da qual perdemos o inteiro teor, mas que continha como ideia central este pensamento:

 

            – Quando morre uma virgem, aparece mais uma estrela no céu!

 

 


De Balsas Para o Mundo quarta, 22 de março de 2017

DOUTOR ROSY, O MÉDICO DO MEU SERTÃO

DOUTOR ROSY, O MÉDICO DO MEU SERTÃO

Raimundo Floriano

 

 Doutor Rosy (29.07.1917 – 03.07.2000)

 

            Balsas viveu, no mês de junho de 1945, episódio que ficará marcado em minhas lembranças para todo o sempre.

 

            O fim da Segunda Guerra Mundial, a 8 de maio, já deixara todos os corações aliviados, principalmente dos mancebos da cidade, alguns sorteados para o treinamento militar, outros já convocados, aguardando embarque, e sossegara a fértil imaginação da meninada, que via, a cada avião que passava, lá nas alturas do céu, grande contingente de alemães prontos a invadir o nosso querido torrão. Mas não foi isso nem o tradicional Festejo de Santo Antônio, de 1º a 13, que tornaram aquele mês indelével nas reminiscências de minha infância. Algo extremamente grandioso iria acontecer.

 

            A cidade receberia, na segunda quinzena, o primeiro balsense formado em Medicina, que viria para ali exercer o seu sacerdócio. Se bem que nascido no município maranhense de Grajaú, Roosevelt Moreira Kury, o Rosy, como era conhecido, filho do sírio-libanês Elias Alfredo Kury e Dona Nilza, viera com a família morar em Balsas ainda nos cueiros.

 

            Seu Curi, assim chamado, grande fazendeiro, apicultor, columbófilo e comerciante de secos e molhados, era um homem muito culto, e isso se pode depreender, tanto pela primorosa educação que deu aos filhos, quanto pelos nomes com os quais os batizou. Nada de João, Pedro, Maria, Francisca, comuns na região. Os dele eram Hamedy, Jorge Clemenceau, Virgínia, Roosevelt e Elenil.

 

            Tudo se mobilizava para o grande baile de recepção. Na casa do meu Tio Cazuza, a varanda, espaço reservado para os importantes eventos sociais, teve seu piso de ladrilhos recoberto com tecido, no qual se aplicou uma camada de parafina, preparado para os 12 pares que, à meia-noite, ponto culminante da festa, dançariam, todos trajados a rigor, ao som de Martinho Mendes e Seu Conjunto, a valsa Sobre as Ondas, de J. Rosas. Mas aí surgiu um grande problema para a formação dos casais de dançarinos, como passo a relatar.

 

            Havia duas camadas sociais distintas que nunca se mesclavam nas festas dançantes: a primeira, composta pelas pessoas mais abastadas, dita “Sociedade”, e a segunda, formada pelos menos apercebidos, também chamada de “Pipiral”. Jamais se misturaram, a não ser no ano anterior, na primeira eleição após o período ditatorial de Getúlio Vargas, quando se celebrizou um tipo de festança em que as classes não se distinguiam e era denominado “popular”.

 

             Doze rapazes da sociedade apresentaram-se para o bailado, mas o número de damas perfazia apenas dez.

 

            Convocaram-se os chefes de família da Sociedade para estudar o comportamento e o mérito das senhoritas do Pipiral, no intuito de promover duas delas à elite. Ao final, foram escolhidas a Benilde, filha do Seu Antônio Pereira, e a Antônia, filha do Seu Filintro Melo.

 

            Maravilhosa foi essa valsa, os cavalheiros com solenes ternos pretos e gravatas-borboleta, e as damas, de branco, em seus luxuosos vestidos longos. Depois disso, as moças de bom procedimento do Pipiral, que eram a sua maioria, passaram a frequentar os bailes da Sociedade, sem mais qualquer distinção. Liberou geral!

 

            Foi o primeiro bem que o Doutor Rosy proporcionou à cidade!

 

            Passadas as festividades, o médico iniciou a sua missão de curar.

 

            Toda a população do sertão sul-maranhense, especialmente dos municípios de Balsas, Carolina, Riachão, Mangabeiras, Loreto, Sambaíba, Batateiras, Tasso Fragoso, Alto Parnaíba, São Félix, Imperatriz, São João dos Patos e outros teve na pessoa do Doutor Rosy a segurança no diagnóstico e a destreza no bisturi. Não há por ali família alguma que não tenha passado por seus cuidados médicos, sempre exercidos com prestimosa e extrema dedicação.

 

            Uma de suas primeiras ações não remuneradas, pois só cobrava de quem tivesse condições de pagar, foi examinar todos os alunos do Grupo Escolar Professor Luís Rego, a maior escola pública da região. Media a pressão, auscultava com o estetoscópio no tórax e, com o ouvido nas costas de cada um, mandava respirar fundo e contar 33, depois, abrir a boca, botar a língua pra fora e dizer ahhhhhh! O resultado de cada exame era anotado num caderno. A molecada, toda ela sadia, não deu trabalho nem preocupação ao doutor. Mas, depois de tudo, a novidade, o diagnóstico que caiu como uma bomba e se espalhou por toda a escola: um menino chamado Raimundo sofria de “faringite”!

 

            Ninguém de nós sabia o que era aquele troço de faringite, porém com um nome tão bonito, logo apareceram os candidatos a enfermo. Raimundo Buracão, que morava ali onde hoje é o Hospital São José, avocou para si a doença e, para comprová-la, todo o dia, quando chegava ao Grupo, se mijava nas calças. Raimundo Nonato, vulgo Cacete, dela não abriu mão, e até mancava um pouco, demonstrando sua condição de padecente. Raimundo Porrotô deu pra andar de marcha a ré pra trás, feito siri-patola. Raimundo Florentino até batia em quem dissesse que não era ele o vitimado. Nos esclarecimentos do doutor, dias após, a decepção para alguns: o Raimundo da faringite era o Floriano, este que agora lhes fala. E, por muito tempo, fui alvo da admiração de uns, da inveja de outros e da indiferença da maioria, por ser o paciente com a fascinante moléstia.

 

            Doutor Rosy ensinou-me, desde cedo, o que era nepotismo, palavra tão em voga nos dias de hoje. Começou a engraçar-se de minha prima Violeta, com quem viria a casar-se e, a partir do namoro, não quis mais receber um centavo sequer do pessoal lá de casa. Esse nepotismo durou ao longo de toda a sua vida, e foi o doutor quem, com desvelo, assistiu meu pai e minha mãe, até quando exalaram seus últimos suspiros.

 

            Além da Medicina, exercia, com desprendimento, a função de professor de Matemática no Ginásio Balsense, do qual foi um dos fundadores e diretores. Quem passou por suas mãos angariou conhecimentos que o tornariam apto a partir para outros desafios. Não há exemplo de aluno seu que tenha fracassado na vida.

 

            Até meados dos Anos 1950, a cidade ressentia-se da carência de uma ponte que ligasse a sede do município ao bairro Tresidela, situado à margem direita do Rio Balsas. Havia apenas uma canoa que fazia a travessia de pessoas, animais e mercadorias. A vida era muito difícil para os estudantes, pois as escolas ficavam todas na sede; para os produtores de ambos os lados, cujo comércio dependia totalmente daquele único veículo; e para os moradores, na sua rotina diária.

 

            Em 1955, Doutor Rosy foi eleito para o cargo de Prefeito. Sua primeira providência foi mandar construir, no Porto do Fonseca, a tão esperada ponte. A obra ficou a cargo de Seu Luiz Botelho Barbosa, projetista e construtor naval, com planta trazida da Itália por padres da Prelazia de Balsas, numa engenharia ousada para a época: toda de madeira, suspensa por cabos de aço. E lá ela permanece até hoje, bela, benfazeja, firme, incólume.

 

            Só um quarto de século mais tarde, já nos anos 80, é que foi construída, no Porto do Lava-Cara, a ponte de cimento.

 

Ponte Velha: marca da Administração Rosy

 

            Os benefícios que proporcionou à cidade como médico, no magistério e na prefeitura o credenciavam a postular um novo mandato, isso em 1965, pois ainda não fora instituída a figura da reeleição. A História está cheia de exemplos comprobatórios da máxima que diz que o povo é iconoclasta – adora destruir seus ídolos. E sabem como foi que a população balsense agradeceu àquele que lhe proporcionava tanto bem? Elegeu o outro candidato! Este, diga-se de passagem, era o Doutor Didácio Santos, também um homem honrado, que já fora prefeito anteriormente e que, nesse novo mandato, deixaria sua marca ao promover, em 1968, com retumbante sucesso, as festividades comemorativas do Cinquentenário de Balsas.

 

            Em janeiro de 1961, eu me encontrava de férias em Balsas. Numa tarde de domingo, Doutor Rosy chegou lá em casa, com fisionomia apreensiva, e me perguntou se eu tinha uma arma. Diante de minha afirmativa, pediu-me que a municiasse, enchesse os bolsos de balas e o acompanhasse. Acho que ele me escolheu para isso porque eu era sargento do Exército, sabendo, portanto, comportar-me em situações de risco, e, também, por ser primo da Violeta, sua mulher. Enfim, éramos parentes, ou seja, farinha do mesmo saco.

 

            Obedeci. Rumamos para o Hospital São José e, no caminho, ele me contou todo o bê-á-bá. O empreiteiro que construía a estrada de Balsas para Floriano, chamado Raimundo Pinto, acabara de dar entrada no hospital, todo cortado de facão e machado – do couro cabeludo aos pés –, consequência de briga, na noite anterior, com alguns dos seus peões, da qual resultara até morte. Doutor Rosy, receoso de que houvesse uma tentativa de reação dos contendores rivais, no momento da cirurgia, precisava de alguém que garantisse sua segurança enquanto operasse o ferido.

 

            E assim se deu. O paciente não podia ser anestesiado, por ter ingerido muito álcool, nem dormir, coisas da Medicina. Era esta a cena: Seu Raimundo Pinto sentado na maca, o doutor costurando, uma freira instrumentando, e eu, com a mão direita empunhando o revólver, e com a esquerda ajudando a manter na melhor posição o lesado, que não emitiu um só gemido em toda aquela operação. De vez em quando, para que ele não dormisse, o doutor chamava bem alto: SEU RAIMUNDO, SEU RAIMUNDO! Coisas da Medicina.

 

             Já à noitinha, findo o trabalho, retiramo-nos, e o empreiteiro ficou num quarto, aguardando o restabelecimento. Assim pensávamos. Mas que nada! Nem amanheceu lá! Foi só recuperar-se do estado alcoólico, deu com a asa no mundo. Raspou-se! Deixando para trás, abandonados ao deus-dará, seus tratores, suas máquinas, seus caminhões, suas caçambas e tudo o mais que ali possuía. E dele ninguém nada mais soube!

 

            O Doutor Rosy foi, além de meu conterrâneo, parente e amigo, um grande mestre em sabedoria, instruindo-me sobre muitas coisas práticas do nosso sertão.

 

            Certa noite de lua, num daqueles costumeiros bate-papos na porta da Farmácia de Dona Lourdes, presentes o Bernardino, Antônio Pires, Gonzaguinha, Tadeu, Angelino, Tião Bradesco, Cabo Júlio, Moizemar e outros mais, quando o assunto era mordida de cascavel, ensinou-nos a fazer torniquete, que era amarrar uma corda ou tira de pano logo abaixo da picada e apertar. Perguntei-lhe como proceder, se a lesão fosse no rosto. Respondeu que, geralmente, a cobra morde é no calcanhar ou na perna.

 

            Insisti:

            – E se eu for passando debaixo de uma árvore, e ela estiver ali, num dos galhos, e me atacar?

 

             Aí, o Sábio nos deu a grande lição:

 

            – Desinfete com mercurocromo, álcool ou merthiolate, porque cobra venenosa não sobe em pé de pau!

 

            A conterrânea Ralucildes Marcon, hoje residente na cidade catarinense de São José, me relatou um lance que não posso deixar de levar adiante. O doutor tinha aquela cara de durão, não se abria à toa, mas, lá no fundo, era um tremendo gozador. A mãe dessa amiga, a Luzia, e o avô, Seu Pinto, eram enfermeiros no Posto de Saúde, onde ele atendia as pessoas carentes, muitas delas residentes nos arrabaldes ou em propriedades rurais distantes. Para certos casos, Doutor Rosy tinha o método infalível, antes de examinar: a hidrossaponiterapia. Conforme fosse homem ou mulher, encaminhava o paciente ao Seu Pinto ou à Luzia, para que lhes aplicasse o prévio tratamento hidrossaponáceo. Era, então, o enfermo levado ao tanque, onde lhe ministravam um belo banho com água, sabão de coco e esfregação com bucha. Logo após, começava a consulta propriamente dita. O doutor perguntava:

 

            – Muito bem, de que é que você se queixa?

 

            E o matuto:

 

            – Engraçado, doutor, num sinto mais nada, fiquei bonzinho!

 

            E, a partir de então, mesmo sem que o doutor o recomendasse, passava a tomar banho com sabão, pelo menos uma vez por semana.

 

            Esta quem me contou foi o Gonzaguinha, saudoso amigo e irmão de leite. Passo-a para vocês do jeito que a ouvi. Já na era do telefone, uma cliente ligou para ele, aflita:

 

            – Doutor Rosy, me receite um remédio porque eu estou sentindo uma dor desgraçada!

            – Onde é que está doendo, minha senhora?

            – É no apendicite, doutor!

            – E como é que a senhora sabe que é no apêndice? De que lado é a dor?

            – Do lado esquerdo, doutor!

            – Mas minha senhora, acho que há um engano. O apêndice fica do lado direito.

 

            E a cliente:

 

            – Doutor, é do lado esquerdo de quem entra!

 

            E esta outra me foi contada pela Maria Isaura, minha saudosa irmã e madrinha.

 

            A moça viera lá de fora, do sertão. Trazia consigo uma aura de mistério, conforme adiante se verá. Seria submetida a delicada cirurgia para correção de graves problemas gastrointestinais, não sei bem, coisas lá da Medicina. Antes de dar entrada no hospital, ela chamou o Doutor Rosy para uma conversa muito particular:

 

            – Dotô, eu queria fazer um pedido?

            – Pois não! Diga o que é! – Respondeu o doutor.

            – O senhor vai me operar é no estambo?

            – Sim!

            – Do pé do imbigo pra baixo?

            – É ali mesmo!

            – Pois dotô, eu queria pedir pro senhor fazer um conserto, mode eu poder fazer o que todo mundo faz e eu nunca fiz. Pra falar de vera, é dos pouco adivertimento que pobre pode ter sem pagar nada. Todo mundo lá no sertão se adiverte, só não eu! Nessa idade, fico só vendo a felicidade dos outros! Será que o senhor pode me ajudar?

 

            Doutor Rosy, um tanto curioso, falou:

 

            – Dependendo do caso, talvez a ajuda esteja ao meu alcance. Qual é o problema?

 

            E a moça esclareceu:

 

            – Dotô, eu nunca soltei um peido!


De Balsas Para o Mundo terça, 21 de março de 2017

DESCIDA DE BOIA NO RIO BALSAS - A INVENÇÃO

A DESCIDA DE BOIA

Raimundo Floriano

 

 

Descida de boia: Riacho da  Pendanga à esquerda

 

            Como tentei demonstrar até aqui, Balsas é uma cidade abençoada. O Rio Balsas, que a banha, é uma dádiva dos céus. Nos primórdios da colonização, foi ele a principal via de transporte desde a cidade até Uruçuí, no Piauí, onde desemboca no Rio Parnaíba, que leva suas águas até o Oceano Atlântico.

 

            Na descida, as balsas, carregadas de passageiros e da produção agropecuária da região. Na subida, os batelões, impulsionados por varas e remos, até o ano de 1911, quando se inaugurou intensa navegação de vapores, lanchas e motores, num fluxo que durou 50 anos, e só se acabou com a construção da Barragem de Boa Esperança. A história dessa navegação, com seus armadores, mestres, contramestres, comandantes, práticos, marinheiros e embarcações foi objeto de minuciosa exposição nesta Primeira Parte do livro.

           

            Com sua perenidade e cristalina água despoluída durante quase todo o ano, potável, sem necessidade de qualquer sistema de filtragem, esse rio proporciona as duas principais atrações turísticas do sertão sul-maranhense. A primeira é a descida de balsa, desde o Porto da Tomázia, 180 km acima, até o Porto da Rampa, também conhecido como Porto das Caraíbas, no centro da cidade.

 

            Essa viagem é demorada; durando três dias, exige muitos equipamentos e, pelo aspecto oneroso, é acessível apenas às pessoas mais aquinhoadas. A segunda, de curta duração e ao alcance de qualquer bolso, é a descida de boia, partindo do Porto da Canaã. E é sobre ela que lhes quero falar.

 

            É o passeio praticamente obrigatório dos finais de semana. Não há visitante que não o experimente. Ficou mundialmente famoso quando o jovem Adílson Oliveira Jr., de Piracicaba-SP, bolsista da EMBRAPA em Balsas, dele participou e, ao retornar à sua terra natal, fundou a Comunidade Já desci o Rio Balsas de Boia, no Orkut, extinta recentemente, não sei o porquê, cujo número de membros ultrapassou a casa dos 2.000, espalhados pelos quatro cantos do nosso planeta. A 31 de dezembro de 2009, reativei-a, na esperança não só de reagrupar todos os antigos membros, como também de angariar novos sócios, no intuito de promover, mais ainda, o nome de nossa cidade. Em 2005, foi realizada a Descida das Mil Boias, evento a que acorreram balsenses e demais entusiastas de todo o país e também do exterior, sendo registrada por observadores para que conste do Guiness Book of Records.

 

            Mas... Como tudo isso começou? A seguir, minha versão.

 

            Em julho de 1952, aos 16 anos, desci, sozinho, o Rio Balsas, do Porto do Canto Alegre, hoje Porto da Canaã, pela primeira vez. Que se saiba, ninguém fizera isso antes. No dia seguinte, repeti a aventura. Aventura mesmo, pois desconhecia os meandros, as corredeiras, o xenhenhém, as margens, o tempo gasto no percurso.

 

             Naquela época, eu não possuía relógio. Hoje, sei que são duas horas, mais ou menos, sem paradas e com o vento não soprando para cima.

 

            Comecei usando talo de buriti ou tronco de bananeira. Não havia carros em Balsas, exceto uns caminhões, cujas câmaras de ar eram remendadas até a exaustão e, ao serem descartadas, só forneciam mesmo tiras para fazer baladeira.

 

             Quando ali estou a passeio, desço todos os dias. Em julho de 1991, fiz 30 descidas. Se não encontro companhia, pego um táxi até lá e desço só. O que eu não posso perder é o encanto da paisagem, o mistério das águas, o maravilhoso sol.

 

            Histórias tenho para contar. Em 1964, por exemplo, meu primo Doutor Cazuzinha e eu descemos do Canto Alegre numa grande enchente, cobra pra todo lado, quase ao anoitecer. Não acreditam? Pois ele está lá em Balsas, pronto para confirmar esse arrepiante lance!

 

            Não quis dizer que “inventei a roda”. Isso não! Antes de mim, muitos navegaram por ali, como os balseiros, que há séculos singram aquelas águas. Outros também faziam uma minidescida, partindo do Rasião, cerca de quilômetro e meio acima da Rampa. Mas como diversão, como passeio, declaro-me o primeiro. Peguei um talo de buriti e, por não achar companheiro, segui sozinho, a pé, para o desafio.

 

            Escolhi o caminho de ida porque eu já o conhecia: na margem oposta, fica o Canto Alegre, fazenda do meu saudoso Tio Cazuza, do lado da Tresidela. Nos dias seguintes, sempre desacompanhado, repeti o feito.

 

            Só bem depois, quando o progresso chegou a Balsas, é que se iniciou o uso de câmaras de ar como boia.

 

            Em julho de 1991, reconhecendo o meu pioneirismo, Júnior Coelho, Presidente da Câmara Municipal, me conferiu o troféu Um Amigo do Rio das Balsas. Por isso, fico orgulhoso, emocionado até, quando contemplo as fotos da Descida das Mil Boias. Pena que certos problemas ortopédicos tenham impedido a minha participação.

 

O percurso Balsas – Canaã no passado

 

            Na minha adolescência, o percurso de ida, 9 km, era assim: eu saía da Rua do Frito, atual 11 de Julho, e seguia, talo de buriti às costas, rumo à aventura. Com um quilômetro, estava atravessando a vau o Riacho do Lava-cara, no final da hoje Rua Benedito Leite. Ainda não havia a ponte. Seguindo adiante, agora só mato, alcançava a Bacaba, onde morava o Canário, oficial de justiça, pioneiro afro-brasileiro da colonização balsense. Logo em seguida, o Riacho da Bacaba, esse com ponte e, mais adiante, o cemitério. Andava um estirão e chegava ao Salgadinho, mais ou menos onde há hoje uma cancela e um curral. Logo depois, onde hoje há um areão, ficava a Lagoa do Canto Alegre. Lagoa perene, imensa, com jacarés, cágados, traíras, piabas, garças, patos, marrecos, paturis, mergulhões, tudo que é ave piscívora, lindo recanto que o desmatamento se encarregou de destruir. Depois, era caminhar muito, até chegar ao Porto do Canto Alegre. E lá, à espera, o aconchegante rio!

 

O percurso Canaã – Caraíbas hoje

 

            Sem parada e vento calmo, 12 km, duas horas de duração. Aos 10 minutos, à direita, em frente a uma vazante, gameleira frondosa debruça-se sobre o rio. No galho rente à água, cágados costumam dormir, quentando-se ao sol. 30 minutos: tapera e vestígios da antiga fazenda do Jair Gaúcho. No meio do rio, é muito raso, a boia raspa o leito. O local poderia ser batizado de Rala-bunda. É de bom alvitre jamais amarrar garrafa na boia, pois ela se quebra nas pedras. Uma hora: Pendanga, com seu riachinho, a roda-d’água e, mais adiante, o emocionante xenhenhém. É aí que as boias surfam n’água, em imensas ondas. Agora, de vez em quando, mirar o horizonte à frente, pois, com uma hora e meia, aparece, lá bem longe, a antena da Rádio Rio Balsas. Faltam, portanto, 30 minutos para a chegada. Com mais um pouco, surgem sinais da cidade. Daí, é comemorar a façanha!

 

Companheiros de descida

 

            Acompanharam-me nas descidas, ao longo desses 62 anos: Veroni, minha esposa, Elba e Mara, nossas filhas; Pedro Silva; José, o Carioquinha; Bergonsil Albuquerque e Silva, Valéria e Maurício; Afonso Celso de Albuquerque e Silva e Afonso Celso; Maria dos Mares Albuquerque e Silva; Rosimar Albuquerque e Silva, Renato, Luciana, Marianne e Adriane; Ceres, Paula e Gustavo Noleto; José de Sousa e Silva Filho, o Doutor Cazuzinha; Esmaragdo e Silva Neiva, Casusa Neto e Antônio Estevam; Oscar Fernandes, Nívia Kury, Flávia e Léo; José Elias Kury e Maria Luíza, a Lu; Márcia Kury, Rosy Neto, Ramom e Thiago; Winston Kury e Ilza Kury; João Emigdio da Costa e Silva, Clarissa, Carmen e Juliana; Luís Fernando da Costa e Silva e sua irmã Ana Alice; Walber Reis; Carlos Kutiansky, Ana Maria, Felipe, Fernando e Diogo; Pedro Ivo da Silva Sobrinho; Dodolfo Fonseca, Isaura, Adolfinho e Fernando; Gláucia Holanda, Liana Vieira; os irmãos Gomes: Evaneide, a Joanna, e Francisco de Assis, o Tico; Raimundo Ribeiro, o Titina, Juracy e Maria Lúcia; João Ribeiro Filho; Adalberto Pereira Lima e Vânia; João Ribeiro Neto e Aliete, Carlomagno Pereira Lima, o Carló, e Terezinha; Carmélia Coelho, Gustavo, Vítor e Felipe; Walter Kury e Crisálida; Doutor Luzimar Miranda da Silva.

 

Depoimento de uma balsense há quase 60 anos moradora em Niterói-RJ, minha prima e cunhada

 

            Raimundo, não há a menor dúvida, você é realmente o pioneiro das descidas de boia no Rio Balsas. Sua descrição é perfeita, rica em detalhes, detalhes dos quais eu sequer me lembrava e que me emocionaram. Ao ler sua menção ao Canário, lembrei-me de tudo, do rosto dele, da casa e até do pé de umbu comum que havia na porta de sua casa. A Bacaba, o Lava-Cara, o Salgadinho... O Rasião me fez lembrar da Josefa da "Berada", com sua voz estridente. E a Lagoa, quanta lembrança agradável! Ali, o papai sempre parava para apreciarmos a natureza, especialmente as garças. Que saudade do meu tempo de criança, do Balsas que já não existe, a não ser em nossas lembranças e em nossos corações! Há 11 anos, não vou a Balsas e nem sei se algum dia voltarei. Mas, se voltar, certamente ficarei triste com a destruição de quase tudo e a ausência de quase todos que povoaram a minha infância. Com exceção da minha família, praticamente não identifico ninguém, é uma cidade cheia de pessoas desconhecidas. Restam a Igreja Matriz de Santo Antônio e o maravilhoso Rio Balsas, que, apesar de maltratado, persiste em sua perenidade e em sua correnteza, que leva as águas, mas não as nossas lembranças. Obrigada por ter-me enviado esse relato, que tantas recordações me trouxe e me emocionou a ponto de me deixar em lágrimas. Um grande abraço. (a) Izaura Maria.

 

            Talvez este capítulo possa parecer aqui fora do contexto, dado que a descida de boia só vai do Porto da Canaã ao Porto das Caraíbas, não podendo ser considerada, assim, um tipo de navegação.

 

            Possa parecer!

 

            É sabido em Balsas o caso de um forasteiro que foi realizar sozinho essa descida e tratou logo de encher a cara, levando consigo uma garrafa de pinga pra beber no percurso. Como era de se esperar, foi mesmo que botar num dedo o anel da dormideira. O resultado disso foi que passou direto pelas Caraíbas, despercebido, roncando na boia, e só foi resgatado em Sambaíba, a primeira cidade rio abaixo.

 

            Caso o sono persistisse, poderia ter chegado ao Oceano!

 


De Balsas Para o Mundo segunda, 20 de março de 2017

COMANDANTE PUÇÁ

COMANDANTE PUÇÁ

Raimundo Floriano

 

 

José Rodrigues dos Santos, o Puçá

 

            A foto que encabeça este capítulo foi-me enviada pelo personagem-título, assim como sua rica biografia, em seis laudas manuscritas.

 

            José Rodrigues dos Santos, o Puçá, nasceu em Floriano, no dia 08.05.1922, filho de Laurentino Rodrigues dos Santos e Cezária Maria da Conceição. O apelido, que ele adotou e que o identifica até hoje, vem da fruta silvestre do mesmo nome, de cor azeviche, saborosa e rara.

 

            Aos 10 anos de idade, ficou órgão de pai e mãe. Dona Cezária morreu em decorrência de males oriundos de sua intensa exposição ao calor nas bocas dos fornos das olarias onde trabalhava. Seu Laurentino, vítima de infecção no calcanhar, provocada pela mordida dum gato, no rabo do qual pisara.

 

            Seu irmão mais velho, de um total de sete, Fernando, já casado e com três filhos, residente em Uruçuí, sabendo os demais irmãos desamparados, foi buscá-los. A viagem de volta, num percurso de 208 km, foi feita a pé, levando seis dias na caminhada. Um dos pousos foi a Fazenda Brejo, antiga propriedade do meu avô paterno, Capitão Pedro José da Silva, hoje em poder do meu primo Airton, médico residente em Teresina, filho do Comandante João Clímaco, meu Tio Joãozinho, também personagem deste livro.

 

            A família do Puçá está, desde o início dos anos 50, intimamente ligada à minha. Fernando é o pai da Maria Júlia, que foi morar conosco em 1951, ainda menina, sendo, praticamente, criada por Maria Bezerra, minha mãe. Seguiu ela com minha irmã Maria Alice para Engenheiro Dolabela-MG, quando esta se casou, acompanhando-a nas mudanças para Brotas-SP, Anápolis-GO, e, finalmente, Balsas. Em 1974, veio cuidar de minha residência aqui em Brasília. Mais tarde, casou-se com Odílio Silva, antigo craque da Seleção Balsense de Futebol, com o qual teve um filho, o Reinaldo, meu afilhado, engenheiro da computação, todos residentes em Anápolis, ela aposentada pelo INSS. Maria Rodrigues, irmã do Puçá, veio a ser um forte esteio para a minha gente em Balsas, nas ocasiões mais delicadas. Fechou os olhos de minha mãe, quando do seu último suspiro, tendo-a velado como se parente fosse. Igualmente, esteve à cabeceira de Rosa Ribeiro, meu pai, até que expirasse. Desde 1966, constituiu-se em amiga, conselheira, companheira, praticamente mãe de minha irmã Maria Alice, falecida de mal súbito em 2002. Hoje, Maria Rodrigues, funcionária estadual aposentada, reside em Balsas, na aconchegante casinha com que Maria Alice a presenteou.

 

            Puçá, chegando a Uruçuí, começou, ainda menino, a trabalhar em olarias. Dois dos seus irmãos, Adelino e Cezário, entraram para a Marinha Mercante e ganharam o mundo, viajando sem parar. Devido ao fato de não se dar bem com a cunhada, Puçá, em 1937, aos 15 anos de idade, fugiu com boiadeiros que iam comprar gado em Goiás. Levaram eles, a pé, 30 dias de Uruçuí a Porangatu que, na época, se chamava Descoberto.

 

            Ali, compraram 350 bois e rumaram para o Peixe, à margem esquerda do Rio Tocantins, onde compraram mais 350, tocando a boiada rumo à Paraíba, em viagem que durou nove meses. Chegaram ao destino com o desfalque de 50 bois: alguns serviram de alimento para os boiadeiros, outros morreram envenenados por ervas daninhas ou picadas de cobras, e houve os que cansaram na longa caminhada ou sumiram mato adentro. A boiada foi vendida ao Coronel Sizenando, na Fazenda Canto do Feijão, perto do Litoral Paraibano, por um valor sete vezes superior ao pago em Goiás. Todos os da comitiva regressaram de pau de arara para Uruçuí.

 

            Naquela cidade, foi morar com o Dr. Auzônio Del Século Carneiro da Câmara, Juiz de Direito da Comarca, que o acolheu como se seu filho fosse. Em 1940, aos 18 anos, dele obteve permissão para ingressar na Marinha Mercante.

 

            Embarcou na lancha Nazira, mais tarde renomeada Rosicler, sob as ordens do Comandante Antônio Fernandes.

 

            Prosseguindo na Marinha Mercante, iniciou sua carreira como taifeiro – espécie de criado de bordo – nos vapores 15 de Novembro e Joaquim Cruz, então propriedades do armador Petrônio Oliveira, no vapor Afonso Nogueira e na já mencionada lancha Rosicler, ambos propriedades do armador Afonso Macedo Nogueira.

 

            O empresário Afonso Nogueira era um idealista empreendedor e arrojado. Natural do Ceará, com atividade comercial diversificada, montou seu próprio estaleiro em Floriano e ali construiu o vapor que levou seu nome e a lancha Nazira, por encomenda do árabe Amado Bucar, residente em Balsas, depois batizada Rosicler ao mudar de dono. Apenas as máquinas vieram da Inglaterra, de onde foi também importada a maioria das embarcações a vapor da época.

 

Vapor Afonso Nogueira - Acervo Teodoro Sobral Neto

 

            Puçá serviu em várias delas sob o comando do Prático João Sambaíba, que o elevou da categoria de taifeiro à de moço de convés – marinheiro raso. Mais tarde, Sambaíba o promoveu a mestre de convés – que chefia e orienta os moços de convés. Com o passar do tempo, Puçá aprendeu a pilotar.

 

            Querendo vê-lo progredir na carreira, Sambaíba o liberou para um curso na Capitania dos Portos de Parnaíba, do qual Puçá se saiu com brilhantismo, obtendo a Carta de Praticante de Prático.

 

            Com essa credencial, serviu em várias embarcações pelo período de um ano, após o que seus irmãos Adelino e Cezário, que já trabalhavam na FRONAPE – Frota Nacional de Petroleiros –, de passagem por Floriano, o orientaram a fazer o Curso de Aperfeiçoamento. Dessa forma, Puçá rumou com os irmãos para o Rio de Janeiro, de onde, já como aluno, embarcou num dos navios da FRONAPE, na rota Rio de Janeiro – Belém – Rio de Janeiro. De volta ao Rio, terminado o curso, os dois irmãos lá o deixaram e seguiram para a Inglaterra. Não querendo acompanhá-los, Puçá voltou para Floriano, onde recomeçou a navegar em embarcações de água doce.

 

            De posse da Carta de Prático, expedida pela Capitania dos Portos de Parnaíba, Puçá exerceu sua profissão pilotando e comandando no trecho Balsas-Parnaíba, e em outros pontos, como adiante se verá.

 

            No dia 25 de dezembro de 1951, casou-se com Adelina Souza Dourado, tendo como padrinhos o Comandante Luiz Barbosa e sua esposa, Maria Correia de Albuquerque, a Donamaria, em cerimônia civil realizada na residência do Sr. Olindo Solino e presidida pelo Juiz Suplente Gabriel Miranda, tendo Emigdio Rosa e Silva, o Rosa Ribeiro, meu pai, como escrivão. No religioso, a celebração ficou a cargo do Padre Clóvis Vidigal, na Igreja Matriz de Santo Antônio de Balsas.

 

            Desse casamento, nasceram-lhes os filhos José Filho, Laurentino Neto, Gregória e Mária de Fátima, dos quais Laurentino, policial, é o único sobrevivente.

 

            Na linha Balsas-Parnaíba, navegou nas embarcações abaixo relacionadas.

 

            Vapores: Joaquim Cruz, 15 de Novembro, Afonso Nogueira e Rio Balsas, este propriedade de Félix Pessoa, residente em Teresina.

 

            Lanchas: Palmira, Rosicler, Rio Poty e Marabá, esta pertencente ao Comandante Wenceslau Ribeiro.

 

            Motores: João Fernandes, propriedade de João Clímaco da Silva; Cidade de Balsas, propriedade de Hélio Fonseca e José Lima Filho, o Seu Lima; Princesa Isabel, propriedade de Alexandre Pires e Jacques Pinheiro Costa; Boa Esperança, propriedade de Dejard Queiroz; Pedro Ivo, propriedade de Cazuza Ribeiro, e Ubirajara, propriedade de Cazuza Ribeiro e Luiz Barbosa, que foi a pique em fevereiro de 1957, em naufrágio no qual morreram cinco pessoas por afogamento e marcou o fim de sua carreira náutica naquelas paragens.

 

            Por essa época, era também o começo do fim da intensa navegação fluvial na Bacia do Parnaíba, posto que, em 1959, já se cogitava da construção da Barragem de Boa Esperança.

 

            Em meados de 1957, na busca por outro meio de vida, Puçá mudou-se com a família para Goiânia e, em 1958, para Brasília, ainda em construção. Tão logo aqui chegou, foi convidado pelo empresário Boli Pierre de Santana, para se aventurarem pelas águas da Região Amazônica. Convite aceito, Boli comprou o motor Cisne Branco, no qual Puçá navegou pilotando e comandando. Houve também o vapor Barão de Cametá, na linha Belém-Cametá, no Baixo Amazonas, propriedade de um certo Sr. Kalil, residente em Belém. Após cinco anos navegando naquela Região, Puçá retornou para Brasília, onde fixou residência definitiva.

 

            Na Capital Federal, com o conhecimento e a amizade adquiridos durante sua longa vida de navegante, foi-lhe fácil conseguir colocação. Primeiramente, no Clube do Congresso e, posteriormente, na FUNAI – Fundação Nacional do Índio –, onde se aposentou. 

 

            Mas não pensem que o velho marinheiro se contentou com o sedentarismo proporcionado pela inatividade bem-remunerada. Longe disso!

 

            Constantemente, é ele convocado pela companheirada para se embrenharem nas matas e rios dos Estados de Goiás, Tocantins e Mato Grosso, em pescarias e caçadas que chegam a durar semanas.

 

            Em Brasília, Puçá mantém vasto círculo de relacionamento afetivo com todos os que vieram das plagas por onde navegou, principalmente com os balsenses, sendo presença infalível em todas as festas que realizamos.

 

            Sou parte integrante de um pouco dessa bonita história. Minha primeira viagem na vida foi feita no motor Pedro Ivo, com destino a Floriano, em fevereiro de 1949, no qual Puçá, aos 27 anos, já era um dos importantes marinheiros. Novamente, em dezembro de 1951, no mesmo motor, subi de Teresina a Balsas, em animadíssima jornada, conhecida na época como a viagem dos estudantes em férias.

 

            Puçá é um preciosíssimo arquivo da memória do nosso saudoso tempo de estudante e de menino matuto do sertão sul-maranhense.

 

Motor Ubirajara e Barca Macapá, na rampa de Balsas - Acervo do autor

 


De Balsas Para o Mundo sábado, 18 de março de 2017

COMANDANTE LUIZ BARBOSA

COMANDANTE LUIZ BARBOSA

Raimundo Floriano 

 

Luiz Botelho Barbosa - Acervo Marilu Barbosa Coelho

 

            O Comandante Luiz Barbosa desempenhou importante papel no início de minha escalada rumo à conquista do mundo. Quando saí de casa pela primeira vez, a 5 de fevereiro de 1949, aos 12 anos de idade, ele capitaneava o motor Pedro Ivo, no qual fui embarcado com destino a Floriano, na busca do saber, iniciada com o duríssimo Exame de Admissão no Ginásio Santa Terezinha.

 

            Ao fazer minha última viagem no Rio Balsas, em fevereiro de 1956, no motor João Fernandes, do meu Tio João Clímaco, o Comandante Luiz Barbosa seguia como passageiro, sendo de grande valia quando, a certa altura, o barco perdeu o leme, exigindo grande perícia para que se conseguisse aportá-lo. E na floresta, sob a orientação de Seu Luiz, improvisou-se um leme de madeira, que nos levou até Uruçuí, onde foi fabricado o definitivo.

 

            Luiz Botelho Barbosa nasceu na cidade de Loreto-MA, no dia 04.03.1911, filho de Benedito Barbosa e Dona Antônia Botelho Barbosa.

 

            Por obra do acaso, o ano de 1911 coincidiu com o início da navegação a vapor no Rio Balsas.

 

            Casou-se, a 3.10.1933, com Maria Correia de Albuquerque, depois Maria Albuquerque Barbosa, a Donamaria, prima de minha mãe, Maria de Albuquerque e Silva, a Maria Bezerra.

 

            Naqueles tempos, o povo do sertão era fogo! Bastava saber que tinha um parente em cidade grande, e logo mandava um filho para estudar hospedado em sua casa. Isso aconteceu comigo. No início de 1950, fui residir na casa do Comandante em Teresina, na Rua da Glória, 1797, valendo-se meus pais do parentesco acima citado.

 

            Na mesma casa, morava também o saudoso conterrâneo e amigo José Bráulio Florentino, parente de Donamaria pelo lado dos Correias. Sendo nós dois de mesma idade e estudando em colégios diferentes, eu no Ateneu, e ele no Liceu, era natural que vivêssemos aos tapas e chutes, competindo em tudo, querendo mostrar quem era mais desasnado. É claro que eu sempre perdia. Minha esperteza era suplantada por seu saber. Isso ficou provado pelos cargos que ocupou depois de formado, chegando a Juiz de Direito no Estado de Goiás, tendo a carreira interrompida por seu falecimento precoce.

 

            O Comandante Luiz Barbosa e Donamaria tiveram três filhos: Maria Luísa, a Marilu, médica, Luís, o Albuquerque, professor universitário, e Eduardo, geógrafo.

 

            Difícil é definir a profissão de Seu Luiz fora da Marinha Mercante, onde conquistou, de fato, o posto de comandante. Em sua certidão de casamento, consta como industrial. Mas a vida prática demonstrou que era muito mais: administrador, projetista, construtor naval e rodoviário, engenheiro hidroviário, inventor. Foi um desses seres que vieram ao mundo dotados de múltiplas habilidades.

 

            Morando desde criança em Balsas, onde a possibilidade de aquisição de conhecimentos especializados era quase nula, muito cedo revelou atributos inatos admiráveis. Tudo o que decidiu fazer, fez! Isso com maestrias e perfeição, tornado-se, destarte, credor da admiração e o respeito dos seus contemporâneos.

 

            Durante a Segunda Guerra, os combustíveis fósseis escassearam no Norte e no Nordeste, vez que a navegação de cabotagem fora praticamente suspensa, face ao risco de torpedeamento dos navios brasileiros. Na busca de uma solução para o transporte rodoviário, os caminhões passaram a ser adaptados para consumir gasogênio, combustível que, originado do carvão vegetal, não satisfazia inteiramente, já que reduzia drasticamente a potência dos motores a explosão.

 

            Nessa época, Luiz Barbosa administrava a Estação Experimental do Pirajá, no Piauí. Estudando exaustivamente o problema, concluiu por modificações no modelo clássico em vigor, o que aumentou consideravelmente a potência dos seus caminhões.

 

            Comandando os motores Pedro Ivo e Ubirajara e outros barcos, observou que, em certas épocas do ano, com a baixa das águas, a navegação em vários trechos do Rio Balsas se tornava praticamente impossível. Em face disso, ele mapeou esses trechos e elaborou um projeto de elevação da lâmina d’água, o qual foi aprovado pelo Departamento Nacional de Portos e Canais.

 

            A execução ficou a seu cargo, exigindo-lhe vários meses de árduo trabalho, no qual, utilizando-se de diversas embarcações, levava grandes carregamentos de pedras e as colocava nas margens direita e esquerda dos pontos críticos. Dessa forma, reduzindo a largura do rio, conseguiu elevar a profundidade desses trechos em até quatro palmos!

 

            Em 1955, utilizando-se de material abandonado pela Petrobras após a frustrada prospecção de petróleo na Fazenda Testa Branca, principalmente de grande quantidade de cabos de aço, construiu, com projeto trazido da Itália por um padre da Prelazia de Balsas, a primeira ponte de nossa cidade sobre o rio. Em modelo pênsil, no Porto do Fonseca, é hoje um dos nossos mais belos e marcantes símbolos.

 

            A quebra do babaçu para a extração da amêndoa sempre foi lenta, difícil e de baixa produtividade, visto que realizada de forma artesanal, geralmente por mulheres, utilizando-se de um machado e um macete. Tendo estudado o problema durante vários anos, Luiz Barbosa inventou e construiu, em convênio com a Universidade Federal de Goiás, a primeira máquina viável nesse setor. Essa invenção é hoje copiada ou adaptada em vários países.

 Motor Ubirajara - Acervo Marilu Barbosa Coelho 

            Sua contribuição foi decisiva como projetista e supervisor na construção de vários cascos de motores, dois deles propriedades de Cazuza Ribeiro: o Pedro Ivo e o Ubirajara, no qual era sócio.

 

            O Ubirajara foi o primeiro motor a utilizar a propulsão por meio de roda, uma vez que, até então, todos os motores eram propelidos a hélice. A roda tinha a vantagem de não se desgastar nem quebrar sob o atrito e choques com pedregulhos no leito do rio Balsas, avarias constantes nos cascos helicomóveis.

 

            Esse motor era, em tudo, diferente dos demais, sendo o maior deles: 28 metros de comprimento por 8 metros de largura. Maior que ele, andando por aquelas bandas, só mesmo o vapor Chile. Sua proa não tinha a forma pontiaguda, comum na Bacia do Rio Parnaíba. Ao contrário, era reta em toda a sua extensão e ligeiramente alevantada, para diminuir o atrito com a água. Tinha capacidade para transportar, nos porões e no convés, umas 80 toneladas. Esquisitão, rústico, sem pintura, despertava a curiosidade e a admiração de todos os que o conheceram.

 

            O Comandante Luiz Barbosa faleceu no dia 05.08.2006, em Brasília, aos 95 anos.

 

            Sem sombra de dúvida, pode-se dizer que ele foi um mestre da improvisação, sempre surgindo com soluções genais para os problemas mais diversos com que se deparava, diuturnamente, nos vários campos em que militou.

 


De Balsas Para o Mundo sexta, 17 de março de 2017

COMANDANTE JOÃO CLÍMACO

COMANDANTE JOÃO CLÍMACO

Raimundo Floriano

 João Clímaco da Silva - Acervo Noêmia Coelho da Silva

 

            João Clímaco da Silva, o Tio Joãozinho, filho do Capitão Pedro José da Silva e de Isaura Maria de Sousa e Silva, nasceu na Fazenda Brejo, município de Floriano, no dia 30.03.1903, onde viviam do cultivo da terra generosa, da criação de gado, da extração da cera de carnaúba e de derivados do coco babaçu.

 

            Irmão do meu pai, Emigdio Rosa e Silva, o Rosa Ribeiro, João Clímaco foi o penúltimo de uma grande prole de 16 irmãos, sendo considerado o caçula, vez que sua irmã mais nova, Maria, morreu ao nascer.

 

            Na infância, João Clímaco se aventurava pelas trilhas da mata virgem, vadeando riachos, transpondo colinas, capturando aves com arapucas e alçapões, abatendo caças com mundéus e bodoques, por ele mesmo fabricados, e amansando burro brabo.

 

            Levava essa maravilhosa e despreocupada existência sem atropelos, até que um dia seu irmão Fructuoso José da Silva, o Tio Fructo, regressando de Manaus-AM, sob influência das ideias progressistas advindas de sua permanência naquele principal centro cultural do Brasil no Ciclo da Borracha, persuadiu seus pais a mudarem-se para Floriano, objetivando a educação dos filhos menores. Para o Joãozinho, acabou-se o que era doce!

 

            Em Floriano, ainda na adolescência, João Clímaco tornou-se reservista e, logo depois, ingressou na Marinha Mercante, na qual permaneceu até o dia de sua aposentadoria, cumprindo rapidamente estágios que foram de marinheiro a comandante.

 

            Tinha ele a alma inquieta dos ciganos. O seu afã de navegar era tanto, que ele não parava, resultando-lhe disso o justo apelido de João Fogo Aceso. Subia de Parnaíba a Balsas com sua lancha rebocando uma barca repleta de sal e mercadorias manufaturadas, viajando dia e noite, chegava ao destino, amarrava a barca, dava meia-volta com a lancha e retornava por cima do rastro, ou melhor, do banzeiro, sem sequer abaixar a labareda na caldeira.

 

            Casou-se em Balsas, no dia 07.12.1939, com a carolinense Noêmia Coelho de Souza, filha do Dr. Cosme Coelho de Souza, Juiz da Comarca, e de Dona Guilhermina Xavier Coelho, fixando residência em Floriano. Encerrava-se ali sua longa trajetória de marujo folgazão, festeiro e muito namorador. Desse matrimônio, nasceram-lhes os filhos Airton, médico, Holbaner, bancário, Suzane, professora, e Nilson, arquiteto.

 

            Tio Joãozinho era um navegante arrojado e destemido. Certa feita, valendo-se de sua Carta de Piloto Para o Norte do País, foi desafiar os mistérios das remansosas torrentes do Rio Amazonas, na mais fascinante e arriscada aventura de sua vida. Pilotando a lança Palmira, recém-adquirida em Manaus por seu primo João Luiz da Silva, residente em Floriano, desceu o Rio-mar tendo apenas o maquinista na tripulação, em memorável jornada, até chegarem ao Oceano Atlântico, onde a lancha foi içada para o convés de um grande navio, que a transportou até a Porto de Tutoia, no Maranhão.

 

            Tenho-o em minha lembrança como pessoa alegre, divertida, mão-aberta e muito gozadora, qualidade esta que me trouxe motivos de zangas, em 1949, quando eu, aos 12 anos de idade, fui estudar em Floriano, morando com Tia Maria Isaura, irmã dele e do meu pai.

 

            Para fazer graça e me atazanar diante dos demais parentes, veio com uma história de que eu fora registrado com o nome errado. Que Floriano, antes de ter essa denominação, chamava-se Colônia de São Pedro de Alcântara. Por isso, meu nome verdadeiro seria Raimundo Colônia. E assim passou a me tratar desde então, provocando riso e gracejos de quem estivesse por perto. Ao pronunciar colônia, falava culônia, com ênfase na primeira sílaba, exasperando-me mais ainda. Se eu me inflamasse e desse qualquer resposta dura, ele vinha, na maior seriedade, tirando uma de ofendido:

 

            – Me respeite, que eu sou seu tio! Tenha consideração com os mais velhos! Esse menino do Rosa é muito entusiasmado!

 

            Restava-me, então, a única opção possível: calar-me e recolher-me à minha insignificância de moleque atrevido.

 

            Em compensação, Tio Joãozinho, de vez em quando, molhava minha mão com 1, 2 e até 5 cruzeiros, o que me fazia esquecer todas as suas zombarias. Em 1956, ao abonar-me pela última vez, botou-me na mão uma pelega de 10. Aliás, essa sua generosidade é reconhecida hoje por quase todos os seus sobrinhos. A chegada da lancha Tambo em Balsas era sinal de algum dinheirinho no bolso da gente.

 

            Seu nome está indissoluvelmente ligado ao desenvolvimento do Sul do Maranhão e do Norte de Goiás. Figurando entre os pioneiros navegadores do Rio Balsas, percorreu, por quase meio século, seus sinuosos canais e os estirões do Rio Parnaíba, levando em suas barcas, fabricadas nos estaleiros da Sambaíba-MA, mercadorias vitais para a sobrevivência, não somente das populações ribeirinhas, mas de outras mais distantes, radicadas em vastas regiões do Maranhão, Piauí e Goiás.

 

            A carga de suas barcas incluía sempre o sal, que lhes servia de lastro, trazidos das salinas de Amarração, no Oceano Atlântico, que descansava algum tempo nos armazéns de alguns negociantes de Balsas, para depois prosseguir viagem, nas tropas de burros ou em caminhões, alcançando longínquas fazendas, povoados, vilas e cidades além do Rio Tocantins.

 

            Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ficou fácil o acesso aos derivados de petróleo. Mais baratos que a lenha, já então escassa, o óleo diesel, a gasolina e o óleo cru foram, gradativamente, determinando a substituição das máquinas a vapor pelos motores a explosão, iniciando-se, assim o encerramento do ciclo da navegação fluvial de longo curso, substituída, pouco a pouco pelo transporte rodoviário.

 

            Mesmo assim, João Clímaco, bem como outros bravos navegadores do seu quilate, continuou a singrar aquelas águas, obstinadamente, agora em barcos popularmente denominados “motores”, propulsionados por modernas máquinas cujo combustível era derivado do petróleo.

 

            São dessa última fase os seus motores João Fernandes, São Pedro e Mensageira de São Benedito.

 

            Encerrou-se, com a desativação das máquinas a vapor, a fase romântica da navegação na Bacia do Parnaíba. Os motores não tinham o mesmo encanto dos vapores e lanchas. Faltavam-lhes, por exemplo, o apito triunfal que anunciava as chegadas, e o apito saudoso que assinalava as partidas, belos, maviosos, altissonantes, que faziam tremer a terra.  Os apitos dos motores, por sua vez, eram quase inaudíveis a grande distância.

 

            A construção da Barragem de Boa Esperança, iniciada efetivamente em julho de 1963, dada a ausência de eclusas, tornou inviável a navegação no Alto Parnaíba. Embora resistindo por alguns anos no que ainda lhe restava do rio, o Comandante teve de se render, por fim, à aposentadoria, passando a viver o resto dos seus dias na rememoração dos feitos inesquecíveis, na saudade perene dos rios, dos seus marinheiros e dos seus barcos.

 

            Tio Joãozinho deixou saudades nas barrancas por onde navegou. A marca dos seus cabos de aço trançado, usado nas espiadas, ficou indelével em cada tronco de gameleira à margem das corredeiras do Rio Balsas e das cachoeiras e rasos do Rio Parnaíba.

 

            Particularmente para nós, os seus sobrinhos, foi o herói legendário que, regressando de mundos distantes, apitava na volta do rio, junto à Quinta do Olindo Solino, convidando-nos para uma viagem triunfal até o Porto da Rampa. Sempre nos trazia pequenos presentes: bola de futebol, bombom de apito, barra de chocolate, carrinho de flandre, boneca de louça para as meninas, e até mesmo um trocadinho, como já foi dito.

 

            Tio Joãozinho faleceu no dia 22 de setembro de 1998, em Floriano, aos 95 anos de idade.

            A seguir, um pequeno perfil das três embarcações que mais marcaram sua vida de navegador: Chile, Tambo e Palmira.

 

VAPOR CHILE 

            Vapor especialmente projetado para operar como rebocador e no transporte de passageiros, o mais belo gaiola de toda a Bacia do Parnaíba. Foi a embarcação de maior importância na vida de João Clímaco, que o comandou por muitos anos e em diversas oportunidades.

 

            Na década de 50, foi retirado da navegação regular de longo curso, para fazer a linha regular ente Teresina e Floriano.

 

            O comprimento de seu casco, cerca de 40 metros, quase o impossibilitava de navegar pelo canal do Rio Balsas, de tal modo que somente conseguia fazer a curva no Porto do Fonseca, com a popa encostada na Tresidela, em marcha a ré, e a proa roçando as areias da margem oposta.

 

            Sua máquina era extremamente silenciosa, quase um sussurro quando em funcionamento. Seu apito, ao contrário, era de potência estrondosa, com sonoridade de incomparável beleza.

 

Vapor Chile - Acervo Noêmia Coelho da Silva 

            Quando o Chile apitava no vale do Morro da Arara, em Amarante, a terra estremecia e a montanha devolvia o som em sequências e ecos quase infindável. Em Balsas, seu apito era ouvido em pleno dia, antes mesmo de cruzar a linha de entrada do igarapé, na Barra do Cachoeira, a uma distância de mais de 12 quilômetros.

 

            Originariamente registrado com o nome de Netuno, ao ser adquirido pelo armador João Luiz da Silva, primo de João Clímaco e de meu pai, passou a chamar-se Chile.

 

            Em 1951, fiz nele pequena viagem, até a Barra do Cachoeira, para a grande festa de lançamento no rio do casco do motor Cidade de Balsas, construído ali mesmo por encomenda dos seus proprietários, Hélio Fonseca e José Lima Filho, o Seu Lima, constituindo-se isso em rara exceção, pois todos os cascos, tanto de motores quanto de barcas, tinham sua origem comum nos estaleiros de Sambaíba.

 

            Nessa ocasião, o vapor era capitaneado pelo Comandante Benedito Freitas, primo de meu pai, grande navegador naquela bacia, personagem indispensável neste meu trabalho, ausente apenas por não ter eu conseguido dele uma foto e sequer o mínimo de dados biográficos.

 

LANCHA TAMBO

Lancha Tambo - Acervo Noêmia Coelho da Silva 

            Lancha rebocadora construída especialmente para navegar em rios de pequena profundidade. As linhas do seu casco esguio e longilíneo eram de impressionante beleza. Seu nome significava tálamo, ou leito nupcial.

 

            Quando em movimento, balançava graciosamente e, com o simples passar de uma pessoa por um dos lados do seu convés, chegava a adernar.

 

            O Comandante João Clímaco afeiçoou-se a ela de tal forma que, tendo-a comandado em várias oportunidades como empregado, veio a adquiri-la. Seu dono anterior, o primo João Luiz da Silva, detinha, com ela e o Chile, a posse do Casal 20 do Rio Balsas.

 

            Em face do seu pequeno calado, era a única embarcação a hélice a transpor os rasos do Rio Balsas, no pico das águas baixas.

 

            Certa madrugada de chuva, navegando no Baixo Parnaíba, no momento em que ia virar para bombordo, um trovão impediu que o mestre da barca por ela rebocada ouvisse o toque de apito do prático anunciando a manobra e solicitando o afrouxamento do cabo de reboque respectivo, daí resultando que ela adernou além da conta e naufragou. Chegando a estação das águas baixas, foi resgatada, voltando a navegar normalmente como dantes. 

LANCHA PALMIRA

 

Lancha Palmira - Acervo Noêmia Coelho da Silva 

            Lancha rebocadora de casco curto, largo, de proa em linhas quase curvas, contrastava com a Tambo em elegância, beleza, potência, comprimento, estabilidade, força, velocidade e calado.

 

            Projetada para singrar em águas profundas, somente podia navegar no Rio Balsas na estação das cheias, embora tenha sofrido redução de calado para adaptar-se às condições da Bacia do Parnaíba.  Mesmo assim, vez em quando, encalhava.

 

            Foi um dos rebocadores mais possantes dos áureos tempos da navegação a vapor naquela bacia. Sua máquina, de fabricação alemã, era pequena e delicada. Comparada às suas congêneres francesas e inglesas, distinguia-se pela leveza de suas linhas, mais parecendo uma joia do que potente máquina. Quem a visse em repouso, jamais poderia imaginar seu fantástico desempenho.

 

            Vencia as corredeiras do Rio Balsas sem recorrer a espiadas. Foi a única rebocadora a transpor o encachoeirado da Volta do Rio sem se valer do guincho.

 

            Em sua primeira viagem subindo o Rio Balsas, assombrou a todos por sua velocidade, ultrapassando outras embarcações que haviam largado de Floriano até com uma semana de vantagem.

 

            Tio Joãozinho ligava-se a cada um desses três barcos que comandou por sentimentos diferentes: ao Chile, pela saudade, à Tambo, pelo amor, e à Palmira, pelo orgulho. 

MOTOR MENSAGEIRA DE SÃO BENEDITO 

            Os motores, com seus cascos de madeira fabricados por ali mesmo e máquinas a óleo diesel, apresentaram grandes vantagens sobre os vapores e lanchas, até que, também, se tornassem economicamente inviáveis.

 

            Eram rápidos, transportavam passageiros no piso superior e até podiam dispensar reboques, pois carregavam cerca de quarenta toneladas de mercadoria em seus porões.

 

            Tio Joãozinho possui três deles: São Pedro, Mensageira de São Benedito e João Fernandes. Não conheci os dois primeiros. Mensageira de São Benedito era, deduzindo-se pela foto, cópia fiel do João Fernandes, e é deste que guardo pequena recordação.

 

            Em fevereiro de 1956, nele viajei, de Balsas a Uruçuí, com Tio Joãozinho no comando, o Prático Jeremias no timão, e o Comandante Luiz Barbosa como um dos passageiros.

 

            Com poucas horas de viagem, João Fernandes perdeu o leme no meio do Rio Balsas, o que exigiu de toda a marujada e de Luiz Barbosa, que assumiu a orientação das manobras, muita calma e perícia, até que se conseguisse aportar sem perigo. Ali mesmo, foi cortada uma árvore e improvisado um tosco leme, com o qual chegamos a Uruçuí, onde se resolveu o problema em definitivo.

 

            Esta foi a última viagem que fiz naqueles saudosos rios.

 

Motor Mensageira de São Benedito - Acervo Noêmia Coelho da Silva

 

 


De Balsas Para o Mundo quinta, 16 de março de 2017

COMANDANTE FÉLIX PESSOA

COMANDANTE FÉLIX PESSOA

Raimundo Floriano

 

 Félix Pessoa - Acervo Família Leite Pessoa 

            Quando o conheci, em fevereiro de 1950, a primeira impressão que me causou foi a de que se tratava de um lorde inglês, tal seu porte e elegância, sua riqueza, seus empreendimentos fluviais, comerciais e industriais, sua residência, palacete de dois andares, ocupando, com o quintal, quase todo o quarteirão, na Rua Teodoro Pacheco, entre as Ruas João Cabral e Riachuelo e a uns 250 metros do Rio Parnaíba, em Teresina-PI.

 

            Impressionava-me a nobreza do homem que, residindo na Capital Piauiense, batizara a mais bela embarcação que possuía, construída por ele próprio, com nome que mais enche de orgulho meus conterrâneos: Rio Balsas!

 

            Eu morava ao lado desse palácio, na esquina entre a Teodoro Pacheco e a João Cabral, na casa de minha Tia Antônia, heroína que acolhera em seu lar este seu sobrinho levado, estudante relapso, cuja maior atividade era mandriar à beira rio, nadando, pescando, caçando pitus nas locas, ou pulando da Ponte Metálica, em ornamentais saltos de ponta-cabeça dignos de qualquer olimpíada.

 

            A proximidade dessas moradias, a convivência com sua família, principalmente com seus filhos mais novos, fizeram com que eu fosse testemunha de boa parte de sua exemplar história.

 

            Félix Pessoa nasceu em Grajaú-MA, filho de Joaquim Pessoa e Amada Carvalho Pessoa, no dia 04.01.1898.

 

            Nessa época, seu pai era forte empresário em Balsas, negociando com algodão, babaçu, couro e outros produtos da região, e também proprietário do vapor Netuno, depois rebatizado como Chile. Mais tarde, estabeleceu-se em Teresina.

 

            Félix cursava Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, quando seu pai, vítima de mal súbito, faleceu, fazendo com que ele abandonasse os estudos e retornasse para Teresina, com a finalidade de tomar conta dos negócios da família.

 

            Alternando suas viagens no vapor Netuno com atividades comerciais e industriais, montou sua oficina no quintal da já mencionada casa na Rua Teodoro Pacheco.

 

            Na Marinha Mercante, galgou todos os postos possíveis na Bacia do Parnaíba, até ser alçado ao posto de comandante.

 

            Félix Pessoa foi um superdotado, revelando conhecimentos que ninguém imagina de onde vieram, principalmente no campo da mecânica, da navegação fluvial e da construção naval. Alguma coisa, claro, herdou do seu pai, que figurou como um dos primeiros desbravadores do Rio Balsas.

 

            Ainda naquele quintal, construiu, por encomenda da Campanha de Erradicação da Malária, a lancha Teresina, que foi levada às águas do Rio Parnaíba, saindo da Rua Riachuelo, sobre um estrado provido de pneus e impulsionado pela força de vários populares que para ali acorreram no intuito de ajudar. E de fazer farra também!

 

            Depois, expandindo as atividades, instalou sua oficina em imenso galpão, provida de grande estaleiro, na Avenida Maranhão, entre a Rua Teodoro Pacheco e a Rua Paissandu, de frente para o rio.

 

            Nesse estaleiro, construiu duas das embarcações que fizeram parte de minha infância, a lancha Rio Poty, sobre a qual me alongarei no capítulo A Lancha, e o pré-falado vapor Rio Balsas, gaiola propelido por caixa de roda. Para todas as embarcações que construiu, as máquinas vieram da Alemanha ou da Inglaterra.

 

            Em março de 1925, o Comandante Félix Pessoa se casou com Dona Lygia Leite Pessoa, advindo desse casamento cinco filhos: Delisa, autodidata, Ana, a Nanon, contabilista, Joaquim, engenheiro, Félix, o Felixzinho, procurador federal, e Lígia, a Liginha, funcionária pública.

 

            Em dezembro do mesmo ano, o Comandante Félix Pessoa participou de um fato histórico merecedor de destaque.

 

            Estando a Coluna Prestes estacionada em Floriano, o General Juarez Távora, na época tenente desertor do Exército Brasileiro e um dos chefes na Coluna, requisitou o vapor Rio Balsas para conduzir parte dos revoltosos para Amarante. Após realizar duas viagens, e estando Dona Lygia, sua mulher, prestes a dar à luz, o Comandante resolveu não fazer a terceira. Embarcou-a no vapor e foi refugiar-se no Delta do Parnaíba. Ali, a 02.01.1926, na Ilha Grande de Santa Isabel, do lado do Piauí, num armazém de couro, sobre uma pilha deles, nasceu sua filha Delisa.

 

            Em 1950, extasiei-me, ali na oficina da Avenida Maranhão, ao conhecer em minha vida a primeira instalação industrial: uma fábrica de pregos! Mas, também em 1950, triste cena se gravou em minha memória para todo o sempre.

 

O Vapor Rio Balsas original - Acervo Família Leite Pessoa 

            No início dos anos 50, com o advento da Era dos Motores e o incremento do transporte rodoviário, acrescidos da escassez da lenha usada como combustível para as caldeiras, ficou evidente que a navegação a vapor estava conhecendo o seu final.

 

            Para adaptar-se aos novos tempos, o Comandante Félix Pessoa reformou o vapor Rio Balsas, retirando-lhe a caixa de rodas, adaptando-lhe uma hélice na popa e equipando-o com motor a explosão. Isso o transformou de rebocador em barco para transporte de carga no próprio bojo, podendo ainda rebocar. Seu destino, na viagem inaugural, seria, logicamente, a cidade de Balsas!

 

            O então motor Rio Balsas estava atracado na Rampa – ainda não fora construído o cais –, fronteiriça ao estaleiro. Era tempo de cheia. À noite, as águas baixaram, mas a tripulação, talvez porque adormecida, não se apercebeu disso, a ponto de soltar as amarras, à medida em que o barco pendia, o que resultou no seu naufrágio. O quadro, no dia seguinte, foi por demais chocante e desolador.

 

 O Rio Balsas após a reforma - Acervo Família Leite Pessoa

 

            Os negócios do Comandante eram diversificados, incluindo outras embarcações, barcas, indústria e transporte rodoviário.

 

            Ele foi o último empresário a deixar o negócio de navegação na Bacia do Parnaíba. Segundo pensamento seu e do Comandante Luiz Barbosa, que a mim o expôs, dois fatores contribuíram para liquidar aquela navegação: as estradas de rodagem e as exigências da Previdência Social. A construção da Barragem da Boa Esperança é citada como o terceiro. Mas se fosse somente esse empecilho, bastava que o projeto previsse, desde o início, as necessárias eclusas.

 

            No começo dos anos 60, com o término em definitivo do transporte aquaviário, os negócios do Comandante se encontravam em dificuldades, quando imprevisto acontecimento veio em seu socorro: o desmoronamento da Ponte Metálica. Em decorrência, as autoridades federais tiveram, então, de adquirir todas as suas embarcações, que se encontravam obsoletas, para as transformarem em pontões, a fim de que a travessia do rio não sofresse interrupção.  Segundo o dito popular, há males que vêm para o bem!

 

            O Comandante Félix Pessoa faleceu em Teresina no ano de 1978. Seu nome, no entanto, ficou eternamente inscrito nas páginas da história daqueles gloriosos tempos.

 

            E agora, mais ainda, depois da publicação deste livro, quando envidarei esforços para colocar na Internet o perfil desse homem que foi um dos meus exemplos na vida!

 

 


De Balsas Para o Mundo quarta, 15 de março de 2017

CAZUZA RIBEIRO

CAZUZA RIBEIRO

Raimundo Floriano

 

 

Cazuza Ribeiro  – Acervo Família Sousa e Silva

 

            Dos cinco grandes homens que fizeram a história da navegação fluvial de Balsas até Parnaíba, atingindo o Oceano Atlântico, apenas um, exatamente meu Tio Cazuza, não possuía qualquer intitulação na Marinha Mercante.

 

            Seu trabalho foi todo realizado em terra firme, mas se iguala em proeminência ao de todos os navegantes aqui focalizados, sobressaindo-se, sobremaneira, no que tange ao progresso e ao desenvolvimento comercial, industrial, rodoviário, agropecuário, econômico, esportivo, social e cultural de nossa cidade.

 

            Difícil seria colocar os nomes desses grandes homens na ordem de importância nesta primeira parte do meu livro. Resolvi, portanto, introduzi-los na ordem alfabética dos nomes pelos quais eram conhecidos: Cazuza Ribeiro, Félix Pessoa, João Clímaco, Luiz Barbosa e Puçá. Assim, meu Tio Cazuza aparece em primeiro lugar. Não é proteção, nem nepotismo, acreditem-me!

 

            José de Sousa e Silva, o Cazuza Ribeiro, filho do Capitão Pedro José da Silva e de Isaura Maria de Sousa e Silva, nasceu na Fazenda Brejo, município de Floriano, no dia 22.10.1898, onde viviam da atividade agropecuária. Era irmão de meu pai, Emigdio Rosa e Silva, o Rosa Ribeiro, e de João Clímaco da Silva, o Tio Joãozinho, focalizado neste livro, pertencendo a uma prole de 16 filhos.

 

            Na infância, seus pais se mudaram para Floriano, com o intuito de providenciarem a necessária educação escolar aos filhos menores. Naquela cidade, Tio Cazuza trabalhou na casa comercial de Raimundo Ribeiro da Silva, o Tio Mundico, seu irmão por parte de pai.

 

            Mudou-se para Balsas em 1912, com apenas 14 anos, onde fora trabalhar com outro irmão seu por parte de pai, o também comerciante João Ribeiro da Silva, o Tio João Ribeiro, ali estabelecido, casado com Maria Ribeiro da Silva, a Tia Marica, sendo admitido posteriormente na firma como sócio.

 

             Também lá, em 1916, viria a residir meu pai. Rosa e Cazuza ficaram conhecidos, de fato, com sobrenome “Ribeiro”, por causa desse irmão mais velho.

 

            Sendo Tio Cazuza um homem muito bonito, e com seus negócios a prosperar, poderia ter namoradas em cada canto da cidade. Afortunadamente, o verdadeiro amor bateu cedo à sua porta, destinando-lhe como a mulher de sua vida Rita Pereira da Silva, a Ritinha Pereira, conhecida lá em casa como Madrinha Ritinha, irmã de Tia Marica, sua cunhada. Casaram-se em 06.12.1919, jamais transferindo sua residência de Balsas.

 

            Desse casamento, vieram-lhes 10 filhos: Antonio, médico, Esmaragdo, desembargador, Raimundo, químico industrial, Manoel, general, Maria Violeta, autodidata, Maria Iracy, autodidata, Pedro Ivo, contabilista, João Ribeiro, funcionário público, José, o Cazuzinha, médico, e Izaura Maria, publicitária, além do sobrinho Ludovico Evelim, bancário, criado como filho. O casal proporcionou a todos, com grandes sacrifícios, mas com muita clarividência, educação escolar esmerada, mandando-os para o estudo em centros mais adiantados, como Floriano, Teresina, São Luís, Fortaleza, Belém e São Paulo.

 

            Na casa de Rosa Ribeiro e Maria Bezerra, meus pais, também éramos 10. Formávamos, assim, a maior família da cidade. Brincando nos mesmos quintais, comendo das mesmas panelas, estudando nas mesmas escolas, vivendo as mesmas alegrias e tristezas, formávamos uma comunidade admiravelmente fraternal, e isso se confirma com os casamentos acontecidos na família: Raimundo casou-se com minha irmã Maria Alice, e Izaura Maria, com meu irmão Bergonsil.

 

            Na vigência da sociedade, João e Cazuza adquiriram um automóvel Ford, Modelo 1929, o qual, posteriormente, passou a ser propriedade exclusiva de Tio Cazuza.

 

            Com o falecimento de seu irmão João Ribeiro, em 1930, a sociedade passou a viger com a viúva, que se mudou para Teresina, algum tempo depois, premida pela necessidade de oferecer aos filhos estudos mais avançados.

 

            Desfeita a sociedade, começou ele a negociar por conta própria. Seu estabelecimento comercial, na hoje Praça Getúlio Vargas, era conhecido como Casa Violeta, nome de fantasia, e nele se vendia de um tudo: tecidos, louças, ferragens, sapatos, perfumes, material escolar e até medicamentos. Durante muitos anos, meu pai o auxiliou na administração dessa loja.

 

            Possuía ele, também, na mesma praça, na esquina do grande solar onde residia, outra casa de comércio, a Mercearia Ideal, inclusive com mesas de bilhar e de sinuca, que Madrinha Ritinha competentemente dirigia. Vez em quando, era apoiada nessa tarefa por minha saudosa mãe.

 

            Sua residência, enquanto ele viveu, era considerada o clube de Balsas. Na ampla varanda, foram realizadas as maiores festas a rigor das quais tenho lembrança, iluminadas, primeiramente, com petromax – candeeiro a querosene, com camisa incandescente –, e, posteriormente, com luz elétrica produzida por um grupo-gerador instalado no próprio quintal. Descreverei uma dessas festas de gala no capítulo dedicado ao Doutor Rosy. Também, na dita varanda, realizavam-se bailes sociais e populares, bem como toda a euforia dos tríduos carnavalescos. Aquela casa emanava alegria e felicidade!

 

            Tio Cazuza operou ininterruptamente no ramo de distribuição de sal grosso, mercadorias manufaturadas em geral, inclusive tecidos, e na compra e venda de couros de boi, peles silvestres e todos os demais gêneros que se comercializavam na região naquela época.

 

            Expandindo seus negócios, fundou empresa comercial individual, depois transformada em sociedade, denominada Silva & Cia., na cidade de Xerente-GO, hoje Miracema-TO, sob a direção de seu sobrinho, Pedro Silva, meu irmão, nela admitido como sócio, transferida para Carolina (MA) em 1950.

 

            Em Balsas, Cazuza Ribeiro foi pioneiro em várias atividades, tais como proprietário do primeiro carro, do primeiro rádio, da primeira geladeira, do primeiro dínamo gerador de energia elétrica, da primeira sorveteria, bem como de usina de beneficiamento de arroz, esta localizada no Porto da Rampa.

 

            Sua empresa de navegação fluvial iniciou-se com o motor Pedro Ivo e a barca Macapá e, posteriormente, ampliou-se com o lançamento do motor Ubirajara, todos construídos na cidade de Sambaíba-MA, este em sociedade com o Comandante Luiz Barbosa. Destinava-se o Ubirajara, principalmente, a transportar óleo combustível em tambores de 200 litros para a Geofísica, empresa que, a serviço do Conselho Nacional do Petróleo - CNP, mais tarde Petrobras, pesquisava o ouro negro em nossa região.

 

            O motor Pedro Ivo faz parte do lado romântico de minha vida e será mencionado em outros perfis constantes deste meu trabalho. Peço-lhes licença para dizer um pouco dessa nave que me desmamou – esse é o termo –, pois eu jamais deixara Balsas.

 

Motor Pedro Ivo – Acervo Família Sousa e Silva 

            Movido a óleo diesel, impulsionado a hélice, dois andares, media 20 m de comprimento por 6 m de largura. Sua capacidade era de 40 toneladas, rebocando uma barca, a Macapá, com mais 60. Além disso, podia transportar 120 passageiros, que dormiam em redes. Sua tripulação era assim composta: Luiz Barbosa, projetista e supervisor da construção naval, no posto de comandante; João Sambaíba, prático – timoneiro ou piloto –; Puçá, oficial da Marinha Mercante, prático em treinamento; Pascoal Ferreira, maquinista; Seu José, despenseiro e garçom; Seu Jerônimo, cozinheiro; Mamede Kalil, Luiz Botelho, João Paulo e outros marinheiros completavam esse elenco de navegadores. Singrava os rios Balsas e Parnaíba e atingia o Oceano Atlântico, carregando pessoas, matérias-primas e produtos manufaturados. Seu calado – profundidade mínima de água para flutuar – era de 6 palmos.

 

            Discorrerei sobre o motor Ubirajara no capítulo dedicado ao Comandante Luiz Barbosa.

            A barca Macapá tinha porte médio, com capacidade de transportar apenas 60 toneladas de carga, como dito acima, muito apropriada para rebocadores velozes, característica essa do motor Pedro Ivo.

 

            Tio Cazuza era proprietário de dois grandes armazéns de madeira, onde se estocavam querosene e gasolina, em latas de 18 litros, e, principalmente, o sal grosso, que vinha de Parnaíba em barcas rebocadas por vapores, lanchas ou motores, algumas com capacidade em torno de 100 toneladas.

 

            Atuou no ramo do transporte de Balsas para Carolina, adquirindo dois caminhões, um Chevrolet 1949, o São José, e um Ford 1951, o São Pedro. Lembro-me deles quando tinham como choferes, respectivamente, Francisco Farias, o Chico Cearense, e Miguel Lima, o Miguelzinho. Naquele tempo, esses caminhões transportavam carga e, em cima dela, passageiros, que superlotavam as carrocerias, pois os ônibus ainda não existiam por lá.

 

            Proprietário das fazendas Canto Alegre, que adquiriu em 1932, e Brejo Comprido, comprada tempos depois, Tio Cazuza negociou também como pecuarista, organizando boiadas, que seguiam para o Litoral, tendo nessa empreitada o auxílio de meu cunhado Pedro da Costa e Silva, boiadeiro por vocação e ofício.

 

            Representou a famosa Casa Inglesa, firma importadora de Parnaíba, em todo o Sul do Maranhão e Norte de Goiás, hoje Tocantins. Além disso, comprava mercadorias, para revenda em Balsas, nos principais centros comerciais, como Teresina, Parnaíba, Belém, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.

 

            Uma vez, por volta de 1947, vi-o com uma porção de miniaturas de pontes, feitas de talos de buriti, e pensei que fossem brinquedos para presentear os filhos ou os sobrinhos. Pela explicação que me deu, e que agora transmito a vocês com palavras minhas, aquelas pontezinhas eram protótipos a serem apresentados numa grande licitação levada a efeito pela empresa Geofísica. Saindo-se vencedor com seu projeto, construiu as pontes reais, de madeira, na estrada carroçável Riachão – Balsas, passando pelo vilarejo Vargem Limpa, que perduraram incólumes até que outras de concreto, muitos anos depois, as substituíssem.

 

Barca Macapá: cabos cruzados na descida  – Acervo do autor 

            Tio Cazuza era um grande aficionado do futebol. Apoiava todos os times locais, não importando sua torcida pessoal, e promovia jogos da Seleção Balsense em cidades próximas. Fornecia uniformes e demais equipamentos para os times, nada cobrando deles. Mandava cercar o campo de futebol com peças e mais peças de tecido – algodãozinho –, por ocasião dos grandes eventos esportivos, para que fosse possível a cobrança de ingressos.

 

            Por esse motivo, ao ser construído o estádio municipal da cidade, recebeu ele o nome de Cazuza Ribeiro. A Câmara de Vereadores de Balsas novamente o homenageou, denominando Cazuza Ribeiro uma das principais ruas do município.

 

            Sua personalidade de grande empreendedor e cidadão sério o fez respeitado e bem-conceituado não só em Balsas, mas também nas diversas cidades com as quais mantinha contatos os mais diversos.

 

            Ao falecer precocemente, no dia 27.06.1952, com apenas 53 anos de idade, em São Luís-MA, vítima de complicações hepáticas, deixou não apenas sua família, mas toda a cidade de Balsas, em sincera consternação, num luto a que, embora não fosse oficial, a inteira população balsense inconsolável e voluntariamente se entregou.

 

            E levou quase um ano sem que se realizasse ali qualquer tipo de festa, demorando muito para que novamente a alegria se reinstalasse em nossas plagas, todos relembrando aquele grande homem, Cazuza Ribeiro, que foi um exemplo de vida para sua imensa família e também para todos os seus concidadãos!

           

 

 

 

 


De Balsas Para o Mundo segunda, 13 de março de 2017

O MOTOR

O MOTOR

 

 

 Motor Princesa Isabel - Acervo do autor

 

                 O motor foi a última peça de resistência na história da navegação fluvial em toda a Bacia do Parnaíba.

 

            Na segunda metade dos anos 40, a navegação a vapor deu sinais de arrefecimento, devido à morosidade de suas embarcações e à dificuldade em se conseguir para suas caldeiras o único combustível, a lenha, que começava a escassear.

 

            O fim da Segunda Guerra Mundial, no entanto, tornou mais fácil a aquisição de produtos derivados do petróleo, dando ensejo a que se criasse um novo tipo de transporte fluvial mais veloz, econômico e altamente operacional. Assim nasceu o motor.

 

            Construído com casco de madeira, dois conveses, equipado com motor a óleo diesel – daí o nome – impulsionado por hélice instalada na popa, e tendo na proa o indispensável guincho para as espiadas, tornou-se o objeto de desejo dos armadores de então.

 

            Seu comprimento médio era de 20 metros. Já não necessitando da imensa máquina acoplada a grandes caldeiras, nem de numerosa tripulação, e com seu motor ocupando pequeno espaço físico, transportava passageiros no convés superior e até 40 toneladas nos porões, podendo ainda funcionar como rebocador.

 

            O primeiro motor balsense foi o Pedro Ivo, construído em 1948 nos estaleiros de Sambaíba e focalizado neste livro no perfil de Cazuza Ribeiro, meu tio.

 

            Logo depois, chegaram a Balsas dois motores vindos de Carolina, via Rio Tocantins e Oceano Atlântico: o Antônio Dias e o Estado de Goiás.

 

            O segundo motor balsense foi o Princesa Isabel, construído em Sambaíba pelo marceneiro Casemiro de Abreu, por encomenda dos comerciantes Alexandre Pires e Jacques Pinheiro Costa. Como já falei no capítulo anterior, sua máquina veio de Parnaíba, instalada na popa da barca Saloia.

 

            A experiência inicial do motor de popa na Saloia mostrou-se danosa. Naquela viagem, o fracasso foi total, porque a areia do Rio Parnaíba entrava pelos dutos de refrigeração e provocava o superaquecimento, tanto pela obstrução, quanto pelo atrito. Por esse motivo, sua instalação no Princesa Isabel deu-se no centro da estrutura.

 

            Em 1952, quando concluí o curso ginasial, embarquei no Princesa Isabel, em Teresina, rumo às férias em Balsas, tendo como companheiros de viagem José Bráulio Florentino, José Alberto Pires, estudantes, e o comerciante José do Egito Bucar, o Dué, com Seu Alexandre Pires no comando. Da tripulação, lembro-me ainda: João Sambaíba, prático, Dico Azevedo, maquinista, e, como pau pra toda obra, o Pequinha, por toda a vida serviçal de Seu Alexandre.

 

            Nem bem andáramos vinte léguas e, perto da fazenda chamada Tiúbas, o motor sofreu uma pane, ficando impedido de prosseguir. Dormimos naquele local e, tão logo amanheceu, fomos socorridos pelo Comandante Barbosinha que, com o motor Albatroz, de propriedade do industrial, mecânico e armador José Martins, de Uruçuí, nos levou de volta a Teresina.

 

 

Motor Albratroz - Acervo Ernani Martins Barros

 

            Esse José Martins era um piauiense cheio de invenções úteis e habilidosas. Uma delas foi a canoa para atravessar o largo Rio Parnaíba, de Uruçuí-PI, para Benedito Leite-MA. Utilizou para isso um cabo de aço, suspenso de um lado ao outro do rio, e um segundo cabo com a extremidade superior presa a uma roldana instalada no cabo suspenso, com a outra extremidade acoplada à canoa. Conforme a posição em que se colocasse essa extremidade na canoa, ela ia e vinha, usando apenas a força da água.

 

            Também ele construiu um motor, o Urucânia, cujo combustível era o gasogênio – gás pobre extraído por oxidação da madeira ou do carvão –, obtendo desempenho igual aos outros que queimavam combustível fóssil como a gasolina, o óleo diesel e o óleo cru.

 

            O terceiro motor balsense foi o Cidade de Balsas, construído num estaleiro improvisado na Barra do Cachoeira, por encomenda dos comerciantes Hélio Fonseca e José Lima Filho, o Seu Lima.

 

            O quarto motor balsense foi o Ubirajara, provido de caixa de roda no lugar da hélice, cujas descrição e foto se encontram no perfil do Comandante Luiz Barbosa.

 

            O quinto motor balsense foi o Boa Esperança, com um semitoldo, propriedade do comerciante Dejard Queiroz. A foto de um similar seu enfeita este capítulo.

 

            Houve ainda os motores João Fernandes e Mensageira de São Benedito, este com foto no perfil do Comandante João Clímaco, meu tio, e o Rio Balsas, transformação do vapor do mesmo nome, com foto no perfil do Comandante Félix Pessoa, que naufragou no cais de Teresina no dia da viagem inaugural.

 

Motor idêntico ao Boa Esperança - Acervo do autor

 


De Balsas Para o Mundo sábado, 11 de março de 2017

A BARCA

A BARCA

Raimundo Floriano

 

 Barca Santa Maria - Acervo Teodoro Sobral Neto 

            A barca foi a maior das embarcações que o trecho Balsas – Parnaíba conheceu!

 

            Sem máquina ou qualquer força propulsora, navegava a reboque de vapor, lancha ou motor.

 

            Geralmente construída nos estaleiros de Sambaíba, com madeira de lei e cobertura de palha, seu casco, de calado profundo, era quase todo formado por um grande porão, próprio para transportar mercadorias e, sobre ela, os passageiros.

 

            No Rio Balsas, sua capacidade era em torno de 100 toneladas. No Rio Parnaíba, chegava a 160. A barca pequena era denominada bote, e sua carga não passava das 20 toneladas.

 

            Seu lastro – carregamento para dar-lhe estabilidade – era formado pelo sal grosso trazido das salinas de Parnaíba e armazenado em Balsas, para depois ser comercializado em todo o Sul do Maranhão e Norte de Goiás, hoje Tocantins.

 

            Muitos dos vapores, lanchas e motores, chegando ao destino, deixavam lá a barca para ser descarregada e retornavam, às vezes sem nem atracar. Nesses casos, ela voltava ao sabor das águas, com o teto rebaixado para maior visibilidade, governada pelo leme e por vogas de cabo comprido na proa.

 

            A tripulação era composta de um mestre, um contramestre, um cozinheiro e marinheiros de proa, encarregados de manejar os cabos que a atrelavam ao rebocador na subida e as vogas na descida. Recordo-me apenas do Mestre Luiz da Bernarda.

 

            Por não possuir força propulsora, a barca era muito vulnerável diante de certos perigos que se apresentavam a cada instante, como galharias e grandes pedras às margens dos rios. Mesmo a reboque, eram sempre constantes esses percalços.

 

            Na primeira vez em que viajei na Bacia do Parnaíba, assisti ao naufrágio da barca que rebocávamos, ao ser ela arremessada de encontro a um rochedo pelas traiçoeiras águas do famigerado Remanso do Surubim.

 

            Nessa mesma viagem, conheci a barca Saloia. Vinha ela de Parnaíba, rio acima, com um possante motor instalado em sua popa, destinado à lancha Princesa Isabel, cujo casco, construído pelo marceneiro Casemiro de Abreu e ainda em fase de acabamento nos estaleiros de Sambaíba, seria lançado às águas poucos dias depois.

 

            A história da lancha Rosicler está intimamente ligada à memória dos antigos balsenses, não só por ter sido construída especialmente para um comerciante de nossa cidade, mas também pelo fato que passo a narrar.

 

            Em 1946, no período chuvoso, sua barca, de nome Olinda, naufragou, abarrotada de mercadorias, no Porto da Rampa, por descuido de sua tripulação.

 

            Estava a barca atracada, com o rio cheio e, lá pelas tantas da noite, as águas começaram a baixar. Encontrando-se presa à rampa pelo lado direito, começou a adernar para o lado esquerdo, vindo a emborcar. Se o vigia de bordo não estivesse desatento, bastaria que ele afrouxasse o cabo correspondente, para que a barca acompanhasse o fluxo da vazante.

 

            Por vários anos, ficou ela encalhada, na Tresidela, com o casco para cima.

 

            Na época, muitos se aventuraram a mergulhar para a garimpagem do que se podia resgatar do fundo do rio, principalmente no período da seca, quando suas águas ficaram cristalinas, e as mercadorias eram nitidamente visíveis. Até escafandros, enviados da Capital, foram usados, constituindo-se isso em grande novidade para todos nós.

 

            Um dos mergulhadores avulsos, porém, de nome Manoel Tachariado, sem proteção alguma, aventurou-se por demais nas proximidades do casco emborcado, sendo sugado, talvez, pois dele nunca mais se teve notícia.

 

Barca Saloia, repaginada pelo Photoshop

Acervo Teodoro Sobral Neto


De Balsas Para o Mundo sexta, 10 de março de 2017

A LANCHA

 

A LANCHA

Raimundo Floriano 

 

Lancha Leopoldo Bulhões: cópia da Rio Poty

Acervo Família Leite Pessoa

 

            A lancha é embarcação que possui algumas características comuns ao vapor: casco de aço, caldeira a lenha, propulsão por máquina a vapor e potente guincho na proa, para a operação das espiadas.

 

            Difere dele em muitos pontos: em vez da caixa de roda, tem instalada em sua popa uma hélice, que a movimenta. Pequena, é provida de apenas um convés, destinado esse às maquinas e a toda a tripulação, transportando passageiros precariamente, e tem como destinação principal a função de rebocador, atrelando-se a ela barcas com as mesmas tonelagens das puxadas pelos grandes vapores.

 

            A Rio Poty foi a maior lancha a navegar na Bacia do Parnaíba, pois seu casco era consideravelmente mais longo que o das outras lanchas em operação na época, medindo 19,5 m de comprimento. Distinguia-se das demais por um segundo toldo, o que, normalmente, só ocorria com vapores e motores. Devido ao seu grande calado, navegava o ano todo só no Rio Parnaíba. No inverno – a nossa estação das águas –, singrava também o Rio Balsas.

 

            Foi construída em Teresina, como se verá no perfil do Comandante Félix Pessoa. Talvez a lancha Leopoldo Bulhões, que ilustra esta matéria, tenha sido fabricada depois dela, sendo-lhe uma espécie de clone.

 

            A Rio Poty marcou profundamente minha infância.

 

            Dos inúmeros rapazotes que auxiliaram minha mãe e a nós todos, os meninos da casa, nas tarefas domésticas de buscar água no rio, lascar lenha no mato, levar as vacas para a quinta pela manhã e trazê-las à tarde, comprar ovos na Tresidela e vender bolos e produtos hortigranjeiros da nossa lavra, um deles, aos 18 anos, entrou para a Marinha Mercante.

 

            Era o Antônio Divino que, por ser atarracado, musculoso e de grande força braçal, ganhou o apelido de Antônio Quebra-Homem. Marinheiro de proa, tinha as mãos asperamente calejadas, devido ao trabalho com cabos de aço, geralmente esgarçados, nas espiadas.

 

            Na época em que se deu o fato que narro, ele navegava na lancha Tambo, propriedade do meu Tio Joãozinho.

 

            Toda vez que a Tambo aportava em Balsas, Quebra-Homem tirava uma tarde de folga para nos visitar. Era notável sua bela figura retinta, sapatos engraxados, boné de marinheiro, óculos ray-ban, uniforme branco impecavelmente engomado.

 

            Ao chegar, nós o recebíamos na varanda, minha mãe servia-lhe um café passado na hora, acompanhado de bolos e doces, e a conversa ia longe, com ele contando suas aventuras, e a meninada boquiaberta a escutar.

 

            No ano de 1946, numa dessas visitas, Quebra-Homem levou de presente para o meu irmão Afonso, três anos mais velho que eu, uma perfeita miniatura da lancha Rio Poty.

 

            Com uns 60 centímetros de comprimento, casco compacto, confeccionado com tamboril – madeira mole como o isopor –, hélice e leme, pintada com tinta a óleo, em tudo se assemelhava ao modelo real. Tinha até uma chapa de chumbo, do tamanho de um palmo, incrustada no fundo do casco, para que lhe servisse de lastro, não a deixando adernar. Era perfeita!

 

            Se ciúme matasse, eu teria sucumbido naquele dia!

 

            Quis o acaso que, pouco depois, ela viesse para a minha posse. Em 1947, o Afonso foi estudar em Goiânia, passando-a para mim. Em fevereiro de 1949, fui estudar em Floriano e passei-a para o Rosimar, meu irmão mais novo. Também ele, nos meados daquele ano, foi estudar em Miracema, deixando-a para ninguém. Assim se encerra a história da lanchinha que tanto nos maravilhou.

 

            A lancha que ficou mais conhecida pela população de Balsas e é lembrada até hoje pelos antigos moradores foi a Rosicler. O motivo disso é que fora fabricada especialmente, com o nome Nazira, para um árabe ali residente, seu Amado Bucar, que depois a repassou para o próprio fabricante, o florianense Afonso Nogueira, que a rebatizou como Rosicler.

 

            Outras lanchas famosas, a Tambo e a Palmira, têm suas fotos postadas no perfil do Comandante João Clímaco. Havia também a Marabá, do Comandante Wenceslau Ribeiro, da qual alguns balsenses ainda se recordam.

 

            As lanchas inspiraram muitos dos nossos conterrâneos, como Seu Pequeno, que chegou a construir duas de madeira, na porta de sua residência.

 

            Essa casa, conjugada com sua usina de beneficiamento de arroz e sua oficina, ocupava todo o quarteirão direito da Praça de São Sebastião, hoje Praça Roosevelt Kury.

 

            Hygino Pedro de Farias era seu nome. De grande inteligência e imaginação fértil, planejava e fabricava máquinas em sua oficina, como a de descaroçar algodão, do qual era exportador. De invento em invento, chegou a perder alguns dedos das mãos! Era, mesmo assim, um obstinado! Nunca desistia!

 

            A primeira lancha de madeira que construiu foi a São Paulo e não se constituiu em grande novidade. Apenas chamava a atenção o progresso da obra, dia a dia, até que ficasse completamente pronta. Aí, sim, foi uma festa para todo mundo da cidade a operação de empurrá-la até o rio, deslizando sobre toras roliças de madeira. Logo depois, foi ela vendida para armadores piauienses.

 

            A outra lancha do seu estaleiro, de cujo nome ninguém mais se lembra, deu o que falar!

 

            Dentro daquela sua fantástica engenhosidade, Seu Pequeno a concebeu para ser propelida por força humana, através de um intrincado sistema de rodas e engrenagens.

 

            No dia da inauguração, porém, devido à exaustão da força propulsora dos homens que giravam as manivelas, a lancha não conseguiu, partindo do Porto do Depósito, ultrapassar o Porto do Martim, uns cem metros rio acima.

 

Lancha rebocando barca


De Balsas Para o Mundo quinta, 09 de março de 2017

O VAPOR

O VAPOR

Raimundo Floriano

 

 

 Vapor 15 de Novembro - Acervo Teodoro Sobral Neto

 

            O vapor é um tipo de barco com casco de aço, equipado com caldeira a lenha, propelido por máquina a vapor – daí o nome – acoplada a uma roda provida de palhetas que funcionam como remos, para dar-lhe impulsão, instalada na popa, num conjunto denominado caixa de roda. Tem dois andares ou conveses. O convés inferior é destinado à tripulação e às máquinas; o superior, ao comandante, ao prático e aos passageiros. Sua função principal é rebocar barcas repletas de mercadorias, e também de passageiros, chegando algumas delas a transportar cerca de 100 toneladas. Tem instalado na sua proa um possante guincho, usado nas constantes espiadas, operação sobre a qual mais adiante explanarei.

 

            Para falar-lhes sobre o que foi a conquista do Rio Balsas pelo vapor e seus intrépidos tripulantes, vali-me de dois escritores da época, Thucydides Barbosa, com o livro Subsídios Para a História de Balsas, e Cazuza Vasconcelos, meu tio pelo lado materno, com reportagem no jornal O Norte, além de um historiador contemporâneo, Eloy Coelho Netto, com os livros História do Sul do Maranhão e Nova Época. Igualmente me foi de grande ajuda a página da Prefeitura Municipal de Balsas na Internet. Portanto, nada aqui apresentarei de novidade, exceto algumas imagens que consegui resgatar e também produzir, para que as novas gerações gravem na memória algo que se perdeu em muito curto espaço de tempo, pois não faz 50 anos que a nossa profícua navegação fluvial teve decretado o seu final. E apenas 50 anos ela durou!

 

            Dos textos mencionados, só li, no original, as matérias escritas por Eloy Coelho Netto, que trazem alguns dos seus fragmentos, deixados pelos antigos cronistas. No mais, lanço mão do resultado de conversas que tive com antigos balsenses, o que pode ocasionar imprecisões. Perdoem-me se muito falhar.

 

            No final da década de 10, os batelões se encontravam completamente ultrapassados, tal era o volume e a intensidade do comércio que se praticava na então Vila Nova de Santo Antônio de Balsas, acrescido do fluxo de viajantes, tudo isso demandando uma outra forma de transporte mais eficiente e competitivo. Havia, ainda, a necessidade da conquista, pelo Poder Público, daquela região.

 

            Eloy Coelho Netto menciona a Lei nº 170, que previa a contratação dos serviços de uma companhia de navegação fluvial, especialmente para subir o rio e estabelecer navegação regular para Balsas e Vitória do Alto Parnaíba. Pesquisei na Internet, mas não encontrei essa lei, para inteirar-me do seu exato teor. Concluí que se tratava de lei federal, porque o assunto era privativo, na época, do Departamento Nacional de Portos, Rios e Canais - DNPRC, subordinado ao então Ministério da Viação e Obras Públicas.

 

            Caros leitores, peço-lhes perdão se, daqui pra frente, minhas conclusões estiverem completamente laborando em erro, pois as fontes de consulta de que dispus não me esclareceram muito bem certos detalhes. Meu sincero interesse é o de que a linda história de nossa navegação fluvial não caia no completo olvido da população balsense. Esta primeira parte do meu livro é uma prova de amor à minha cidade. Se alguma falha ou imprecisão houver, considerem isso como crime passional!

 

            Prossigamos!

 

            Contratada pelo DNPRC, a empresa Oliveira, Pearce & Cia., sediada em Teresina e dirigida pelo Coronel Pedro Tomás de Oliveira, seu principal sócio, assumiu a responsabilidade do ingente encargo, empregando nesse desafio o seu melhor vapor, o Antonino Freire, sob o comando de Thomas William Pearce, sócio da firma.

 

            O vapor Antonino Freire, equipado com poderoso guincho, encetou sua viagem desbravadora removendo pedras, tocos, galharias marginais e tudo o mais que obstruísse o canal. Media também a profundidade – calado – nos trechos mais rasos, no intuito de orientar a fabricação dos novos barcos que por ali transitariam. Elaborou-se um estudo completo para os futuros navegantes.

 

            Considero essa viagem inaugural como o lançamento, pelos russos, do primeiro satélite artificial da Terra, o Sputnik, que escancarou as portas para a corrida espacial, culminando, até agora, com a conquista da Lua.

 

            Foram dezessete dias de árduo trabalho, em que a tripulação, toda ela impregnada de entusiasmo pela aventura de que participava, dedicava-se com alegria e esmero ao empreendimento, na ideia fixa da vitória final, que era a chegada ao Porto das Caraíbas.

 

            E isso aconteceu no dia 11 de julho de 1911!

 

            A partir de então, a navegação do Rio Balsas ficou verdadeiramente estabelecida. Suprindo a cidade de sal, fez deslocar-se para ali o eixo do comércio sul-maranhense!

 

            Essa é a data que a Prefeitura Municipal de Balsas tem como aceita, referendada pela Câmara Municipal que, muito depois, renomeou o logradouro onde nasci, a Rua do Frito, denominando-a Rua 11 de Julho!

 

            Eloy Coelho Netto, em seu livro Nova Época, ficção histórica, romanceou essa chegada como abaixo relatado.

 

            Antes, porém, deixem-me explicar-lhes o que é uma espiada. Espia, de modo geral, é o cabo de aço que passa de um barco para o cais, a fim de segurá-lo. A espiada consiste em levar esse cabo, numa canoa, uns 100 ou 200 metros rio acima, em trechos de muita corredeira, amarrá-lo em uma árvore de tronco firme, geralmente uma gameleira, ficando a outra extremidade atrelada na proa do barco a um guincho que, aos poucos, com o movimento rotativo, vai enrolando o cabo, fazendo com que o barco suba e a correnteza seja vencida.

 

             Quase todas as embarcações, mormente as mais pesadas, ao atingir a Volta do Rio, perto de onde fica hoje a AABB, tinham de executar a espiada final.

 

            Voltemos a Eloy Coelho e à sua preciosa ficção-realidade, no capítulo A Última Espiada:

           

            “E assim, na curva do rio em que a corredeira assinalava um empecilho, o São Francisco, vapor preferido da empresa, fazia muita força, gemia e ia rompendo os últimos obstáculos que o separavam de Remanso. Já o comandante ordenara aos dois marinheiros de proa a preparar a canoa, vencer a curva, levar o arame e terminar a última espiada. Era ali detrás que estavam as casas brancas e os sinais do porto ansiosamente esperado.

 

            “Alegrava-se a rapaziada de bordo com as alvíssaras do descanso e dos dias de folga que se aproximavam após longo e difícil percurso. Não era o tratamento dispensado no vapor, pois era notória a fartura do São Francisco. Não restava dúvida de que Peter Junior se provia de tudo, guardando as conservas portuguesas, azeite da melhor qualidade, vinhos europeus e uísque escocês para os momentos solenes como aquele que ansiosamente se aguardava. Havia ainda o leitão, o carneiro, o bode e a carne seca. Nada faltava na despensa do que se recomendava. Mas o que se desejava era um mundo novo atingido, a tomada de contato, a conquista do sexo feminino, a mulher, a expansão temperamental própria da nossa gente.

 

            “Agora, voltava a canoa na rota do arame esticado com um marinheiro apenas, pois o outro ficara no lugar do amarrado, observando as reações de resistência da velha gameleira, de onde alongava o olhar e via, diretamente, um pouco adiante, Remanso em cheio.

 

            “Saltara o marinheiro da canoa e ligara o cabo ao bolinete do vapor, voltando imediatamente ao seu posto. E o São Francisco, com o sinal de partida, dada a operação como perfeita, anúncio de nova época, caminhou, rompendo o bulício da corredeira e foi até o pouso tranquilo da sombra fresca e amiga da velha árvore, gameleira frondosa e forte, arrimo do último estágio dessa aventura.

            “Acabara-se, assim, a última espiada, e apenas o vapor atravessara o rio, Remanso estava, naquele belo dia, com o porto ocupado.

 

            “Todos os marinheiros promoviam a limpeza geral e não escapavam proa e popa daquele movimento, máquinas e camarotes, a última fase para o repouso tão esperado.

 

            “No seu camarote, Peter Junior mandava registrar no Diário de Bordo a ocorrência da chegada e, depois, se curvando sobre a mesa em reflexão, se inscrevia como um dos heróis da terra bárbara e da nova época.”

 

            Verdadeira poesia em prosa esse apaixonado texto de Eloy Coelho Netto, nosso ilustre conterrâneo!

 

            Do mesmo modo em que na ficção, o Comandante Thomas William Pearce inscreveu, com heroísmo e dedicação, de modo indelével, seu nome na História de Balsas!

 

            Estava cumprida a missão! A navegação Balsas – Parnaíba, ida e volta, perdera seu mistério! E o movimento no nosso rio se intensificou! E com uma novidade adicional: a barca a reboque dos vapores e lanchas.

 

            Eloy, ao falar nas aspirações da brava tripulação, mencionava a conquista do sexo, a mulher. Com efeito, em qualquer parte do mundo, é sabido que o marinheiro tem um amor em cada porto.

 

            Já naquele tempo, a chegada duma embarcação em qualquer paragem era sinônimo de festa, alegria e muita confusão. Ainda mais se levando em conta a quase inexistência da força policial. Os cabarés da vida boêmia eram palco de grandes noitadas, bebedeiras e memoráveis arranca-rabos. Os que mais aprontavam eram os embarcadiços sem qualificação náutica alguma, contratados temporariamente, sem qualquer compromisso com a Marinha Mercante. Talvez por isso mesmo, tais baderneiros ficaram, desde cedo, conhecidos pela alcunha de “porcos-d’água”.

 

 

Vapor rebocando barca

 

            Desde o advento do primeiro vapor, era enorme o afluxo de pessoas ao Porto da Rampa, para assistirem à chegada ou à partida das embarcações, com seus fortes apitos, triunfais na vinda, saudosos na despedida. Virou uma das diversões da cidade.

 

            Retomemos o fio da meada!

 

            Regressando o vapor Antonino Freire a Teresina, com todos os estudos e observações anotados durante a viagem pioneira, cuidou a empresa Oliveira, Pearce & Cia. de mandar construir um barco com características especiais para navegar nas águas do Rio Balsas. Encomendou-o, então, aos estaleiros da empresa Izaac Abella & Michel, sediada em Liverpool, Inglaterra.

            Assim nasceu o vapor Joaquim Cruz!

 

            Sua provável foto, que ilustra esta matéria, foi a melhor que consegui. Na época em que foi feita, já não ostentava o nome na sua proa. É identificado por possuir um entalhe nas bordas laterais do convés inferior, para que nele fosse colocada a prancha, tábua larga e grossa, espécie de ponte para embarque e desembarque. Talvez se tenha obtido essa imagem depois do naufrágio, do qual adiante falarei, daí a ausência do letreiro identificador. É o que deduzo. Mas posso estar errado nessa conclusão.

 

            A chegada triunfal do Joaquim Cruz em sua primeira viagem a Balsas, sob o comando de Thomas William Pearce, aconteceu no dia 16 de abril de 1916, às cinco horas da tarde!

 

            A rampa do Porto das Caraíbas, ou Porto da Rampa, ficou apinhada por grande multidão que acorrera ao local para recepcionar o grande hóspede.

 

            No dia seguinte, mais de cem pessoas reunidas no edifício da Câmara Municipal dirigiram-se para bordo do Joaquim Cruz, de onde o Comandante Thomas William Pearce se fez acompanhar de volta àquele edifício, no qual foi realizada Sessão Solene, quando falaram alguns vereadores e o homenageado.

 

            Terminada a parte oficial das honras prestadas ao comandante, um lauto banquete para 150 talheres foi-lhe oferecido na residência do Capitão Firmino de Souza Lima, com a presença de senhoras, senhoritas e cavalheiros representativos da população local.

 

            O Joaquim Cruz foi um vapor especial construído na Inglaterra, assim como outros, vindos do exterior. Mas os criativos brasileiros logo puseram mãos à obra. Em Floriano, o armador Afonso Nogueira construiu o vapor Afonso Nogueira e a lancha Rosicler. Em Teresina, Félix Pessoa, personagem deste livro, construiu o vapor Rio Balsas e as lanchas Teresina e Rio Poty. Até as caldeiras eram fabricadas no Brasil. Apenas as máquinas eram importadas da Inglaterra ou da Alemanha!

 

            O vapor Joaquim Cruz ficou ligado a Balsas pela primeira viagem que fez na Bacia do Parnaíba, tendo nossa cidade como destino. E marcou minha infância por um acontecimento deveras inesquecível.

 

            Em certa madrugada do mês de janeiro de 1947, época da cheia do rio, naufragou perto da cidade de São Félix, tendo a bordo minha irmã Maria Alice, que retornava de Teresina, e também o comerciante balsense Moisés Coelho, que levava muita mercadoria para o período carnavalesco, a maioria salva, pois o vapor ficara semissubmerso. Na bagagem de minha irmã, em grande quantidade, um brinquedo, subproduto americano de náilon, que virara moda desde o fim da Segunda Guerra: o ioiô!

 

            Com o baixar das águas, o Joaquim Cruz foi resgatado, voltando a navegar com toda a pompa e circunstância.

 

Provável vapor Joaquim Cruz - Acervo Teodoro Sobral Neto

 

            De todos os vapores que marcaram nossa história fluvial, consegui apenas as fotos do Chile, estampada no perfil do Comandante João Clímaco; do Rio Balsas, no perfil do Comandante Félix Pessoa; do Afonso Nogueira, no perfil do Comandante Puçá; e do 15 de Novembro, propriedade do armador piauiense Petrônio Oliveira, neste capítulo.

 

            O desenho de vapor rebocando uma barca foi feito apenas para registrar como essa operação se realizava em nosso querido rio e na esperança de que este livro seja um dia entronizado nas bibliotecas balsenses, para que todas as suas imagens se perenizem.

 

            Caso isso ocorra, terei alcançado plenamente o meu objetivo.


De Balsas Para o Mundo quarta, 08 de março de 2017

O BATELÃO

O BATELÃO

Raimundo Floriano

 

 

 O batelão: pioneiro na subida do Rio Balsas

 

            A palavra batelão é o aumentativo de batel, pequeno barco. Designa embarcação robusta, feita de madeira, cobertura de palha, fundo chato, impelida por varas e remos, empregando-se apenas a força humana, podendo também ser rebocada. Era utilizada, principalmente, no comércio do regatão, ou seja, o vendedor que percorre os rios, parando de lugar em lugar.

 

            Esta narração tem seu começo no século XIX, quando um grande número de produtores agropecuários possuía fazendas em ambas as margens do Rio Balsas.  Para acesso a elas, o Porto das Caraíbas consolidou-se como o ponto mais apropriado, pelo incessante movimento de viajantes, criadores, boiadeiros, negociantes e vaqueiros que por ali transitavam.

 

            O nome Caraíbas deriva de uma grande fazenda homônima existente no lado direito do rio, hoje Tresidela, bem perto daquele local. No lado esquerdo, também havia fazendas de apreciável porte, como a Bacaba e outras.

 

            José Pedro foi o primeiro canoeiro, fazendo a passagem dos transeuntes de um lado para o outro no dito porto, onde estabeleceu uma quitanda, na qual vendia cachaça, rapadura, farinha de mandioca, milho, querosene e sal, estes dois últimos gêneros chegados ali trazidos por tropeiros e também transportados pelos batelões.

 

 

Porto das Caraíbas no século XIX: canoa da passagem

 

            Vila Nova foi o nome que tomou o arraial em torno do Porto das Caraíbas, onde se aglomeravam novos povoadores, nordestinos em sua maioria.

 

            E foi naqueles primórdios que o ambulante Antônio Ferreira, baiano de Jacobina, subiu o Rio Balsas com seu batelão, negociando de vilarejo em vilarejo ribeirinho, até alcançar o Porto das Caraíbas, em volta do qual um novo núcleo de população se fixava, onde se estabeleceu definitivamente com seu armazém de secos e molhados.

 

            Rabequista, folgazão e festeiro, começou ele com o sortimento de seu empório, com os forrobodós que promovia e com o Festejo a Santo Antônio, de quem era devoto, a atrair pessoas em derredor da povoação, com o que novas moradias foram se agrupando, não só pela alegria e prosperidade lá encontradas, como também pela salubridade, fartura e limpidez das águas do Rio Balsas.

 

            Por esse motivo, Antônio Jacobina é considerado o legítimo fundador da cidade.

 

            Até 1911, quando se iniciou a navegação a vapor, grande parte das mercadorias manufaturadas alcançou nosso sertão transportada nessas pequenas e audazes embarcações, os batelões.

 

            Conheci esses pequenos barcos e até andei em alguns, em curta viagem, quando estudante em Teresina.

 

            No Rio Parnaíba, eles enfrentavam a subida com relativa facilidade. O rio era largo, com águas mansas, amenizando o trabalho da marujada.

 

             A tripulação era assim composta: na popa, um timoneiro – o homem do leme; atuando nas coxias – passarelas laterais –, seis marinheiros, que empurravam com varas a embarcação, três de cada lado, com carga de até 10 toneladas. Devido ao casco alto, não havia remadores.

 

            Mas de Uruçuí até o Porto das Caraíbas, com o Rio Balsas estreito e veloz, é-me impossível imaginar o quanto se tornava sacrificado o cumprimento do longo itinerário de 360 quilômetros rio acima.

 

            Devido às características do rio, os batelões lá eram pequenos, e a tripulação se compunha de um timoneiro na popa e, na longa proa, dois remadores e dois vareiros, despendendo esforço gigantesco para carregamento que não perfazia duas toneladas.

 

            Quando me perguntam como é que os bateleiros agiam ao enfrentarem as corredeiras, tão comuns em nosso rio, e os trechos profundos, onde as varas não alcançavam o leito, eu só tenho uma resposta:

 

            – Sei não!

 


De Balsas Para o Mundo sábado, 04 de março de 2017

A BALSA

A BALSA

Raimundo Floriano

 

 

A balsa: primeira embarcação a singrar nossas águas

 

            A balsa é um símbolo que infla de justificado orgulho o coração de todos nós balsenses, de nascimento ou por adoção.  Antes mesmo de chegar à nossa região qualquer sinal de progresso, ela já servia de transporte para os sertanejos ribeirinhos, como também para sua produção agropecuária até o Litoral.

 

            Por isso mesmo, deu nome à nossa cidade: Santo Antônio de Balsas! E tem sua imagem inscrita no nosso Brasão Municipal!

 

            É, porém, o único tipo dentre as embarcações citadas na primeira parte deste livro no qual nunca viajei em longo trecho.

 

            Por esse motivo, não podendo imaginar os detalhes de aventura que jamais vivi, valho-me, devidamente autorizado, de uma bela crônica escrita, em 1995, pelo amigo Cesário Barbosa Bonfim, o Barbosinha, cearense de Independência e balsense de coração, que veio com seus pais e irmãs morar em nossa querida cidade em 1944, aos dez nos de idade, hoje formado em Direito, aposentado como Auditor de Rendas da Secretaria da Fazenda do Estado de Goiás e residente em Goiânia.

 

            As raras intervenções que farei no seu trabalho servirão apenas para acrescentar pequenos detalhes, como os que recolhi de depoimento dado pelo comerciante conterrâneo Odilon Botelho, importante armador balseiro e suinocultor, ao site da nossa Prefeitura Municipal.

 

            As balsas estão, hoje, no rol das coisas que o tempo levou, e falar sobre elas é, sem dúvida, um modo de reverenciá-las e trazê-las ao presente, prestando, também, singela e sincera homenagem àqueles que a utilizaram por tantas décadas, muitos dos quais começaram a vida tendo-as como opção única para a realização de seus negócios.

 

            Para que se tenha ideia do que seja uma balsa, é necessário que se saiba como eram construídas, sua finalidade, o material utilizado, as pessoas envolvidas, as mercadorias que transportavam, seus condutores, passageiros e, principalmente, como era a viagem, sempre inesquecível para quem a fez pelo menos uma vez na vida.

 

            As mercadorias mais usualmente transportadas eram o arroz, o feijão, o milho, o coco babaçu, o algodão descaroçado, couros de bovinos, peles de caças silvestres e também animais vivos, preferencialmente galináceos e suínos.

 

            Qualquer pessoa poderia transformar-se em comerciante balseiro. Bastava ter disposição e capital suficiente para comprar a mercadoria e os talos de buriti, contratar o mestre e contramestre, pagar os impostos na Coletoria Estadual e viajar com sua carga a vender. Esses talos eram adquiridos ao longo do tempo, até que formassem o acervo necessário à construção da balsa.

            Os mestres e contramestres eram pessoas simples, que aprenderam a arte de navegar e conhecer o rio, como as palmas das próprias mãos, com os pais ou parentes a quem serviam como auxiliares até se tornarem aptos para o ofício. Tinham a dupla tarefa de construírem a embarcação e de conduzirem-na do porto de origem ao porto de destino.

 

Buritizeiros: onde tudo começou

 

            A principal matéria-prima utilizada na feitura de uma balsa era o talo de buriti. Nada se utilizava que não viesse diretamente do mato. As embiras com que se faziam as cordas para servirem de amarras; as varas com que se trancafiavam os talos e a armação do teto; as palhas de piaçaba ou de babaçu, para a cobertura; e, por fim, as vogas – espécies de leme –, enormes remos presos a suportes enfiados nas extremidades das balsas, com os quais o mestre e o contramestre a manobravam para um lado ou para o outro, em busca do canal mais profundo do rio.

 

            Quando o buritizeiro é novo, os talos que sustentam suas grandes palmas chegam a medir até três metros de comprimento e cerca de oito centímetros de diâmetro. Tirados no brejo, os talos são postos a secar ao sol e, com pouco tempo, atingem peso reduzidíssimo, equivalendo, hoje, ao espaguete de isopor, imprescindível nas aulas de hidroterapia. Foi com boias feitas desses talos que os meninos de outrora aprenderam a nadar, não sem antes engolirem uma piaba viva, para ficarem rápidos e espertos.

 

            As embiras eram extraídas do “olho” do buritizeiro novo. Adquiriam-se os talos de pequenos agricultores que moravam nos chamados “gerais” – longínquas terras acima da cidade e próximas das cabeceiras do rio – e conduziam suas produções em pequenas balsas, vulgarmente denominadas “macacos”, cujos talos eram vendidos aos milheiros e estocados em estaleiros.  Vez em quando, a meninada surrupiava um talo para nadar ou então levar para casa, onde com ele fabricava caminhões e barcos de brinquedo, muito mais queridos pelos donos que os hoje vendidos nas lojas especializadas.

 

            Em diversos tamanhos e espessuras, os talos eram atados em feixes, os quais eram agregados por varas e embiras e, arrumados desse modo, formavam um grande estrado armado na beirada do rio, ao qual era lançado somente depois de pronto.  Já na água, era construída a casa da balsa. Até se dar por completo o trabalho, levava-se cerca de dez dias. O tamanho dependia da finalidade a que se destinava, do peso ou da qualidade da carga a transportar. Cada balsa consumia, em média, de oito a dez mil talos. Algumas chegavam a medir vinte metros de comprimento por seis de largura!

 

            Pronta a balsa, armada a casa, com fogão quase ao rés do piso – caixilho de madeira medindo mais ou menos um metro de comprimento por sessenta centímetros de largura, cheio de barro amassado e provido de trempes de pedra –, iniciava-se o embarque das mercadorias.

 

            As que conduziam arroz beneficiado eram as melhores para os passageiros se deitarem sobre a carga, diferente das balsas de espichados – couros de bois sem curtir – que exalavam cheiro característico e muito desagradável.

 

Macaco: pequena balsa para viagem curta

 

            Tudo pronto, era chagado o momento do embarque dos passageiros. Não podia haver viagem mais tranquila e, ao mesmo tempo, mais monótona, com despedidas demoradas, tristes e chorosas. Fazia-se o embarque numa só passada, uma vez que a balsa ficava rente à margem, sem necessidade de prancha, como os outros tipos de embarcação.

 

            Desatada a corda de embira que a prendia à terra, a balsa começava a deslizar lentamente para o meio do rio, arrastada pela correnteza, dando início à grande viagem ao sabor das águas.

 

            Era a hora dos acenos de lenços e mãos, que duravam até que a balsa alcançasse a primeira volta do rio. Providenciava-se, então, a armação das redes, e a tranquilidade passava a ali reinar, quebrando-se o silêncio apenas pelo remar das vogas e o marulhar das águas.

 

            O fogão a lenha era aceso, e o contramestre providenciava o primeiro cafezinho a bordo. A fumaça saída da casa dava um toque romântico à cena da balsa descendo vagarosamente o rio. Quando não havia mulheres a bordo que se dispusessem a cozinhar, o contramestre, que maneja a voga na retaguarda da balsa, assumia a incumbência do preparo da comida.

 

            Aproximando-se o final de um dia de viagem, realizava-se manobra diferente, a mais difícil de todas, que é a atracação. Era necessário que a balsa fosse aos poucos conduzida para a margem, muito antes de atingir o ponto desejado para aportar, de modo que passasse tão perto do barranco que o contramestre pudesse saltar com a comprida corda na mão e amarrá-la, de qualquer modo, na primeira árvore, pedra ou toco, com firmeza suficiente para fazer parar aquela casa flutuante.

 

            À noite, após apetitoso jantar – a fome é a melhor cozinheira –, geralmente maria-isabel, acompanhada de linguiça de porco e ovos estrelados, servidos em pratos esmaltados, iniciava-se o serão, com jogos de baralho, contos de causos e bate-papos, até que o sono vencesse a todos, dando-se por fim o dia de viagem, do total de uma dezena, de Balsas para Floriano. Se o destino fosse Teresina ou Parnaíba, haja romantismo e paciência!

 

            A cidade de São Félix de Balsas, à margem direita do rio, era parada obrigatória para todas as embarcações, em face da crendice de que quem não prestasse obrigação ao Santo Padroeiro, na certa naufragaria. Acontece que o trecho do rio logo abaixo de São Félix é o mais difícil e encachoeirado, e havia muitos exemplos de navegantes que, não rendendo a devoção, ou dela profanando, tiveram suas embarcações naufragadas como castigo.

 

            Ao atingir a cidade de Uruçuí, à direita, do lado do Piauí, fronteiriça a Benedito Leite, à esquerda, do lado do Maranhão, o Rio Balsas desemboca no Rio Parnaíba, produzindo o belo espetáculo das águas que não se misturam, límpidas as do Balsas, barrentas as do Parnaíba, seguindo ambas alguns quilômetros até que se mesclem, formando um todo homogêneo, de cor alaranjada, separando os dois Estados até chegarem à foz.

 

            Sendo o Rio Parnaíba muito largo, a viagem, daí pra frente, tornava-se mais monótona ainda, devido ao distanciamento das margens. E aí, dois perigosos obstáculos a ultrapassar.

 

            Um deles, o temido Remanso do Surubim, onde o rio fazia uma curva de 180 graus, e o mestre, se não fosse perito, poderia fazer a balsa ficar rodando sem conseguir desvencilhar-se, quando não era arremessada contra rochedos, esbagaçando-se por completo.

 

            O outro era a Cachoeira de Boa Esperança, perto da hoje submersa cidade de Guadalupe, uma corredeira de cerca de seis quilômetros, que exigia muita destreza de todos os que ousavam desafiá-la.

 

            No mesmo dia, chegava-se a Floriano. Caso fosse esse o seu destino, a mercadoria era vendida ou entregue, e o armador providenciava a compra de produtos manufaturados para vender em Balsas, os quais seriam embarcados em vapores ou lanchas para a subida do rio, isso quando se iniciou a navegação maquinizada.

 

            Sem mais necessitar da balsa, o mestre e o contramestre encarregavam-se de vendê-la, por pouco ou quase nada, após o que iniciava a viagem de volta, a pé, levando nisso quase o mesmo tempo gasto na descida. Alguns desses abnegados levavam às costas, no regresso, as vogas, já pensando no dia de amanhã. Chegando a Balsas, mal esfriavam o corpo, e já estavam novamente na construção de mais outra. Era o meio de vida deles.

 

            Após a venda da balsa no seu destino, era ela desmanchada pelo comprador, servindo os talos, as varas e as palhas para a construção de cercas ou cobertura de casas de pessoas menos apercebidas.

 

            Grandes mestres e contramestres fizeram-se lembrar para todo o sempre: Mestre Salu, Mestre Zacarias, Mestre Raimundo Peta, Mestre João Geraldo, Mestre José dos Santos, Contramestre Benigno, Contramestre Zé Raimundo e Contramestre Pedro Rodrigues, o Pedão.

 

            A balsa, mercê de Deus, não está completamente esquecida pela população jovem de nossa cidade.

 

            Hoje, ela se constitui num dos mais cobiçados passeios turísticos da região, com pequenas balsas fabricadas nos gerais, proporcionando linda viagem, que dura três dias, desde o Porto da Tomázia, 180 quilômetros distante da cidade, até o Porto das Caraíbas, sendo ela provida de fogão a gás, caixas de isopor sortidas de carne fresca, cerveja, refrigerantes e água mineral, e equipada até com aparelhagem de som, para alegrar os passageiros.

 

            É o progresso, enfim!

 

Balsa moderna: preservando as tradições


De Balsas Para o Mundo sexta, 03 de março de 2017

LIVRO DE BALSAS PARA O MUNDO - APRESENTAÇÃO

 

APRESENTAÇÃO

Raimundo Floriano 

 

            O título deste livro pode parecer muito pretensioso: De Balsas Para o Mundo! Um grande convencimento do seu autor, uma descabida presunção! Pode parecer, mas eu me apresso em explicar os motivos pelos quais esse título foi concebido.

 

            De Balsas e nas balsas, saíram os estudantes do início do século XX à busca de novos conhecimentos, novos horizontes, novos rumos, novas conquistas. E numa luta muito desigual diante dos empecilhos que se lhe antepunham.

 

            Navegando ao sabor das águas, para chegar ao centro mais avançado, Floriano (PI), levavam 10 dias; estendendo-se a viagem até Teresina, a Capital daquele Estado, mais 5.

 

            A volta, nas férias, era percorrida no lombo de montarias, em comitivas que se organizavam para buscá-los em distâncias de mais de 50 léguas. Isso quando retornavam, pois alguns permaneciam longe do seu torrão até conseguirem o grau universitário.

 

            No advento dos vapores ou lanchas, a partir de 1911, quase nada mudou quanto a esse retorno, já que na subida, rebocando barcas abarrotadas de mercadorias, essas embarcações gastavam quase um mês só de Floriano ao Porto das Caraíbas.

 

            O resultado de tanto esforço e tenaz persistência é que esses estudantes lograram alcançar o diploma nos mais variados campos da realização profissional, tornando-se médicos, engenheiros, biólogos, juristas, fisioterapeutas, geólogos, professores, contabilistas, agrônomos, odontólogos, farmacêuticos, bacharéis em outras diversas áreas, ou galgando altos postos da administração brasileira, como o de parlamentar, general, brigadeiro, almirante, desembargador, governador e até presidente.

 

            A Primeira Parte deste trabalho, A Navegação Fluvial Balsas – Parnaíba, conta a linda história de uma atividade que foi intensa a partir de 1911, com a chegada do primeiro vapor a Balsas, até o início dos anos 60, quando o transporte rodoviário e a construção da Barragem de Boa Esperança a tornou inviável, com fotos e desenhos de suas principais embarcações e os perfis dos homens que fizeram tudo isso acontecer.

 

            A Segunda Parte, Crônicas Internacionais, traz algumas das páginas que venho escrevendo desde o lançamento do meu último livro, Do Jumento ao Parlamento, em 2003, contendo flagrantes da vida real, publicadas em minha coluna semanal na Internet.

 

            Para localizá-las, basta acessar o Google, digitar A Coluna de Raimundo Floriano e dar um Enter.

 

            E aqui vem a explicação do pomposo nome: Crônicas Internacionais.

 

            Também, um dia, em 1949, saí de Balsas, minha querida terra natal, a bordo de uma embarcação, o motor Pedro Ivo, enviado para estudar em Floriano. Isso foi o meu desmame.

 

            Daquele ano até esta parte, muita água rolou sob a ponte. Percorri numerosas plagas. Andei de carroça, de charrete, de ônibus, de elevador, de bicicleta, de automóvel, de caminhão, de trole, de trem, de bonde, de avião, de metrô e até de navio.

 

            Hoje, sou conhecido em imensa parte do Planeta Terra. Minha citada coluna, atualmente, é lida em 77 países! Maiores detalhes encontram-se mais adiante, no capítulo A Igreja Sertaneja.

 

            Isso estabelecido, peço-lhes que me respondam com toda a sinceridade:

 

            – Foi ou não foi de Balsas para o mundo?

 

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