Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis terça, 25 de julho de 2023

MADRUGANDO NO AEROPORTO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

MADRUGANDO NO AEROPORTO

Marcos Mairton

 

São quatro e meia da madrugada e escrevo com o notebook apoiado em uma das mesas de um café, no aeroporto de Brasília.

Tive que acordar cedo para estar aqui a essa hora. Mas, fazer o quê? Sou um sujeito um tanto neurótico com essa história de perder voo. Prefiro uma hora de ociosidade na área de embarque a sair por aí correndo enquanto arrasto a bagagem de mão. Lembro, como se fosse ontem, das vezes mais assustadoras em que isso aconteceu, a primeira, no aeroporto de Lisboa, a segunda, no de Amsterdã. Talvez o risco de não conseguir voltar para o Brasil tenha me traumatizado.

Mas, duas semanas atrás, aconteceu de novo, desta feita em Brasília mesmo. A caminho do aeroporto, deparei-me com o pior engarrafamento que já vi na via L4 Sul. Quem conhece Brasília sabe que o limite de velocidade ali é de 80 Km/h, mas sabe também que entre seis e oito da noite o trânsito pode ficar complicado.

O certo é que, quando passei minha bagagem de mão pelo raio X, faltavam dois minutos para o início do embarque. Foi nessa hora que a funcionária disse, com toda a simpatia possível:

– O senhor foi sorteado para ter a bagagem submetida a uma inspeção visual.

Um palavrão quase escapou da minha boca, mas controlei a reação. Cheguei a argumentar que faltavam dois minutos para o início do embarque, mas ela disse gentilmente:

– Dá tempo. É rapidinho.

E só me restou esperar e engolir o choro. No final, acabou dando tudo certo.

Esse problema não terei hoje. Como disse na primeira linha desta crônica, às quatro e meia da madrugada eu já havia passado pelo raio X da bagagem de mão. Com o início do embarque previsto para 8:25 da manhã, estou tranquilo.

Escrevi o parágrafo anterior e pensei: o leitor que chegou até aqui deve estar achando que me atrapalhei com os horários; ou que enlouqueci de vez. Como assim, a pessoa chegar ao aeroporto às 4:30 da madrugada, para um voo que promete decolar às nove da manhã?

Admito, é estranho mesmo. Mas, é preciso considerar que escrevo no dia 30 de março de 2023.

 

Ontem à noite, enquanto arrumava a mala, vi a notícia que Jair Bolsonaro desembarcaria em Brasília hoje, às sete da manhã, depois de três meses fora do Brasil. E senti um frio na barriga.

 

 

Pensei nos bolsonaristas com saudade do seu líder, desejosos por mostrar a ele sua lealdade; pensei no próprio ex-presidente, sorrindo e acenando para a multidão; pensei na preocupação das autoridades responsáveis pela segurança do Distrito Federal, querendo evitar serem tachadas de omissas.

Vieram-me à mente imagens de barreiras policiais, mochilas sendo revistadas antes de entrar no saguão do aeroporto e um monte de gente em todos os espaços do aeroporto, gritando: “Mito! Mito! Mito!”.

Em meio a todo esse movimento, eu não conseguia chegar a tempo de pegar meu voo.

Estimulado por esses pensamentos, eu poderia ter feito várias reflexões sobre política, democracia, direito de manifestação e tantas coisas.

Mas fui dominado por uma preocupação, digamos, mais imediata, talvez trivial, quem sabe até egoista:

– Dessa vez não! – disse eu, em voz alta a mim mesmo. – Saio de casa de madrugada, mas, quando essa multidão se formar, já estarei dentro do aeroporto!

Separei a roupa para viajar, programei o despertador do celular para as três da madrugada e tentei dormir.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 19 de julho de 2023

A DANÇA DA VERDADE(*) - (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNSTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A DANÇA DA VERDADE(*)

Marcos Mairton

 

Outro dia estava eu a refletir sobre a quantidade de mentiras que se espalham pelo mundo. Fazia isso sentado em uma cadeira de balanço, na varanda de minha casa, quando Shayeubad apareceu no portão.

Convidei-o a entrar e nos pusemos a conversar sobre o assunto.

Até que, a certa altura da conversa, ele me fez um convite inusitado:

– Se você deixar seu corpo dormindo aí, posso lhe levar para ver a dança das versões. É uma performance bem interessante sobre essas suas reflexões.

Mesmo sem entender direito o que ele quis dizer com “deixar meu corpo dormindo”, minha sempre aguçada curiosidade levou-me a concordar imediatamente.

Shayeubad pediu que eu fechasse os olhos. Fechei e o ouvi contar regressivamente de três a um.

No instante seguinte estávamos em um grande salão, onde um tablado oval, de uns 100 metros quadrados, era contornado por cadeiras confortáveis. A maioria delas estava ocupada por pessoas que, aparentemente, esperavam o início de uma apresentação.

Shayeubad me orientou a ocupar um dos lugares disponíveis e esperar também.

Minutos depois, começou a tocar uma música instrumental, um tanto épica.

Em seguida, surgiu no meio do tablado uma espécie de luz, em formato feminino. Mais precisamente, a imagem de uma bela mulher, feita de luz violeta.

Mas aquela figura luminosa esteve diante dos nossos olhos apenas por alguns instantes.

Um ou dois segundos depois surgiram magicamente, em volta dela, de quatro a seis mulheres. Eram em tudo semelhantes ao ser de luz: na cor, na forma e nos movimentos. Mas, aparentemente, eram feitas de matéria consistente, como a de nossos corpos humanos.

Dançavam de modo a seduzir os olhares dos presentes, enquanto o ser de luz desaparecia por trás de seus corpos.

No momento seguinte brotaram do chão outras dançarinas.

Estavam em maior quantidade e não eram tão parecidas com o ser de luz, como o eram as primeiras, apesar de algumas serem também muito belas. Outras, nem tanto.

Percebi então que havia entre todas aquelas dançarinas uma espécie de disputa pela atenção do público. À medida que desenvolviam suas performances, se alguma se destacava, as pessoas aplaudiam seus movimentos. Enquanto isso, aquelas que obtinham menos destaque aos poucos esmaeciam e sumiam diante dos nossos olhos.

Depois de alguns minutos, restou no salão apenas uma das dançarinas do primeiro grupo – uma daquelas quatro ou seis que haviam surgido em torno da figura luminosa.

O público a aplaudiu calorosamente. Ela agradeceu e deixou o tablado.

Era possível ouvir o rumor das pessoas comentando o desempenho das dançarinas. Alguns dos presentes pareciam não concordar com o resultado final. Esperavam que outra dentre elas houvesse chegado ao final.

Passados alguns minutos, novo espetáculo começou, semelhante ao primeiro.

Dessa vez, a figura feminina que surgiu no meio do tablado era feita de uma luz amarela, brilhante como ouro.

Rapidamente, sua luminosidade projetou-se para fora do corpo, dando forma a quatro dançarinas vestidas de amarelo, parecidíssimas com ela. Sua pele aparentava estar coberta por tinta dourada.

Dançavam freneticamente em torno do ser de luz, enquanto ele desaparecia.

Não tardou a brotarem do chão as outras dançarinas. Estavam em número bem maior que na apresentação anterior. Em sua disputa por atenção, às vezes duas ou três juntavam seus corpos e punham-se à frente de alguma das artistas performáticas que haviam surgido primeiro, impedindo que o público as visse.

Aos poucos, porém, cada uma das moças foi desaparecendo – como da primeira vez – restando somente uma dançarina de amarelo.

Novos aplausos do público. Dessa vez, de pé.

Não sei quanto tempo ficamos ali, mas foi o suficiente para assistirmos a várias daquelas apresentações, que se sucediam após breves intervalos.

Ao sairmos do salão, agradeci a Shayeubad por me levar a ver tão belo espetáculo. Mas, percebendo que ele esperava de mim algum comentário mais detalhado, acrescentei:

– Notei que na maioria das vezes a dançarina que ficava por último era uma das primeiras a surgir no tablado. Apesar do esforço das moças que brotavam do chão, poucas delas conseguiram se manter até o final.

– É assim mesmo – respondeu Shayeubad sorrindo. – Lembra de quando lhe falei que o espetáculo se chama “Dança das Versões”?

– Lembro.

– É isso. O ser de luz que surge no início de cada ato é a verdade. O brilho da verdade dá origem a algumas figuras semelhantes a ela: as versões. Mas logo surgem as mentiras, chamando para si a atenção. O resto você já entendeu.

– Sim, entendi. E embora me conforte saber que na maioria das vezes as mentiras se dissolvam, lamento que a verdade em sua forma original, seja uma luz que brilha apenas por poucos instantes. Depois, o que resta são versões. Mesmo que versões verdadeiras, versões.

– Não lamente. Para o público, uma boa versão da verdade é suficiente. Nem sei se estamos prontos para um mundo onde a verdadeira verdade prevaleça. Você está pronto? Eu estou?

– Não sei.

– Então feche os olhos e conte até três. Vamos voltar.

Obedeci e, ao abrir os olhos novamente, estava na varanda da minha casa, em minha cadeira de balanço.

Shayeubad havia sumido.

(*) Publiquei esse texto há alguns anos, aqui mesmo no JBF. Retirei a publicação quando o incluí em meu livro “Histórias para refletir, repensar e repassar”. Mas, diante do quanto o assunto “fakenews” tem estado presente na mídia e nas redes sociais, resolvi postá-lo novamente.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 13 de julho de 2023

NINGUÉM VAI ME OUVIR (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUND FLORANO)

 

NINGUÉM VAI ME OUVIR

Marcos Mairton

 

 

As coisas tão ficando complicadas na minha cabeça.
E tudo que aprendi eu já começo a desaprender.
E o pouco que ainda lembro tenho medo que eu agora esqueça.
E aquilo que eu fazia, a cada dia deixo de fazer.

Até o meu violão
Eu quase não toco mais
Por causa do tempo que passo em redes sociais.

Se quero saber das notícias,
Eu já não procuro jornais.
Verdades, versões e mentiras estão quase iguais.

Escrevo canções mas sempre acho que ninguém me entende.
Pois até lá em casa já não tão me entendendo também.
Parece que as coisas que eu falo ninguém compreende,
Mas tá tudo certo, eu também não entendo ninguém.

Eu ligo o computador
Pensando em me distrair.
Como quem procura um bar, um lugar para ir.

Escrevo umas frases e clico
Num certo botão de enviar
Mas sinto que o que eu disser ninguém vai escutar.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 07 de julho de 2023

A GUERRA DOS MANIFESTOS (ou O APARENTE CONFRONTO DA DEMOCRACIA COM A LIBERDADE) - (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

Eleição é um evento que sempre traz novidades. A criatividade das pessoas que se dedicam às campanhas é grande. Desde os políticos até os hoje chamados genericamente de apoiadores, passando por marqueteiros e cabos eleitorais, todo mundo participa da elaboração e execução de estratégias para atrair a atenção – e, se possível, o voto – dos eleitores.

Foi assim com os showmícios; as carreatas (um neologismo criado a partir da palavra passeata, com os participantes comparecendo, não a pé, mas de carro); e a alocação de militantes nas esquinas das avenidas, portanto bandeiras de partidos e candidatos, dentre outras manobras.

Mas essas iniciativas foram ficando para trás.

Os showmícios acabaram proibidos pela legislação eleitoral. Os agitadores de bandeiras foram perdendo a graça, à medida que militantes de verdade foram sendo substituídos por pessoas remuneradas para esse trabalho.

Somente as carreatas ainda têm alguma relevância, especialmente no interior, onde candidatos costumam encerrar a campanha com uma espécie de desfile que demonstraria sua popularidade. Estas, porém, têm sido superadas este ano pelas motociatas, até agora praticadas exclusivamente pelo Presidente da República que tenta a reeleição.

Hoje, o campo da batalha pelos votos deslocou-se quase totalmente para o universo virtual da internet, especialmente das redes sociais.

Basta ver a preocupação da Justiça Eleitoral com uma prática chamada “disparos em massa pelo WhatsApp”. Segundo se verifica em reportagens e comentários de jornalistas sobre o tema, o envio de mensagens com conteúdo eleitoral a uma grande quantidade de pessoas foi decisivo nas eleições mais recentes.

Há quem diga que o verdadeiro mal dessa massificação do envio de conteúdo político por meio de aplicativos de mensagens é a difusão de notícias falsas ou indutoras ao erro, no que tem sido chamado de fake news. Tenho minhas reservas quanto a essa afirmação, mas não quero fugir do tema que escolhi para hoje.

Nas redes sociais, candidatos tentam contar com maior número possível de seguidores, a ponto de existir gente especializada em arrebanhar esses seguidores, mediante pagamento, é claro. O que não significa que algumas lideranças tenham efetivamente muitos seguidores, o que é fundamental para a propagação de suas ideias.

Mas o que me motivou a tocar neste assunto hoje foi a constatação de algo que me parece novo, senão inédito: uma disputa de manifestos.

Qualquer pessoa que tenha acompanhado o noticiário brasileiro na última semana sabe que no dia 26 de julho foi lançado um documento intitulado “CARTA EM DEFESA DA DEMOCRACIA E DO PROCESSO ELEITORAL”. Por meio desse documento, juristas, professores e artistas, dentre outras figuras de destaque, manifestam sua preocupação com as instituições democráticas, em especial o processo eleitoral, do qual fazem parte as urnas eletrônicas, cuja credibilidade vem sendo motivo de acirrados debates ultimamente.

Com os recursos de difusão de informações que a internet proporciona, o documento logo passou a receber o apoio de milhares de pessoas, com os sites de notícias destacando sua grande repercussão.

Não tardou para aliados e apoiadores do movimento pela reeleição do Presidente da República identificarem o documento como uma ação político-eleitoral, cujo objetivo seria, de uma só vez, tachar o Presidente de antidemocrático e demonstrar o grande apoio popular dos que se posicionam contra ele.

De fato, o documento não cita nominalmente o Presidente da República, mas é fácil extrair do seu texto referências a condutas que lhe são atribuídas.

Veio então a resposta, dois dias depois, 28 de julho, por meio de um documento com o seguinte título: MANIFESTO EM DEFESA DAS LIBERDADES. Este, além de defender a premissa de que “sem liberdade não há democracia”, cita nominalmente o apoio ao Presidente da República.

Formou-se assim o embate entre os dois manifestos.

Obviamente que o embate não é entre a LIBERDADE e a DEMOCRACIA, pois se tratam de dois valores que tendem a conviver com imensa facilidade. Não seria absurdo afirmar que a LIBERDADE tem melhor possibilidade de florescer na DEMOCRACIA, e que a DEMOCRACIA somente se desenvolve onde prevalece a LIBERDADE.

O que se observa é que cada polo da nossa polarizada política (desculpem a redundância) escolheu, como símbolo para sua posição, um valor que seja caro ao cidadão comum, de modo a disputar seus corações e mentes não a partir de pessoas, mas desses valores (embora o grupo que apoia o Presidente mencione seu nome em seu manifesto).

Aparentemente, a escolha desses valores foi baseada – ou, no mínimo, inspirada – em questões ligadas à realidade dos cidadãos. Ou seja: a DEMOCRACIA, relacionada ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas; a LIBERDADE, relacionada às medidas restritivas adotadas durante a pandemia da COVID19, em contrariedade à posição defendida pelo Presidente da República, e às restrições à liberdade de expressão recentemente impostas pelo Poder Judiciário, notadamente o STF e o TSE.

O fato é que agora, com a GUERRA DOS MANIFESTOS deflagrada, esses detalhes a respeito de como ela foi iniciada pouco importam.

Os lados do embate estão definidos. O que interessa agora é qual deles conseguirá reunir o maior número de adeptos. Não é uma antecipação da eleição presidencial, que ocorrerá em breve, mas imagino que o sentimento dos que compõem cada um dos lados seja parecido.

Uma verdadeira corrida por assinaturas digitais está acontecendo. Vejamos onde isso vai dar.

Na última consulta que fiz aos sites que recebem assinaturas, às 16 horas do dia 30 de julho, ontem, o placar estava assim:

DEMOCRACIA: 555.200
LIBERDADE: 524.200

Diferença: 31.000


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sábado, 10 de junho de 2023

A ESTÁTUA DO DITADOR (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A ESTÁTUA DO DITADOR

Marcos Mairton

 

No meio da praça principal da capital daquele país minúsculo estava fixada a estátua do seu ditador.

Como uma boa estátua de ditador, o monumento não o retratava muito fielmente. Havia nela um pouco menos de barriga e um pouco mais de tórax que no original humano; um pouco menos de largura e um pouco mais de altura, por assim dizer.

O rosto inclinado para cima, junto com o olhar apontado para baixo, esses sim, lembravam mais a figura que lhe serviu de modelo.

Mas o fato é que esses detalhes não faziam muita diferença para as pessoas que todos os dias aplaudiam calorosamente a estátua.

É que vigorava naquele país uma lei segundo a qual, todos os dias, às 17 horas, todas as pessoas que estivessem na praça da capital deveriam se dirigir à estátua e aplaudi-la. Uma salva de palmas de dez minutos, era o que exigia a lei.

Claro que a manifestação às vezes durava mais que o tempo regulamentar. Afinal, não era raro haver alguém ali disposto a prolongar a salva de palmas por dois ou três minutos extras.

Um dia, porém, aconteceu algo inusitado.

No momento em que todos se agrupavam diante da imagem do ditador, para aplaudi-la, um pombo pousou na cabeça da estátua e defecou abundantemente em sua testa. As fezes melequentas do pombo escorreram por entre as sobrancelhas e deslizaram pelo nariz da estátua, deixando-o um pouco mais pontiagudo. Uma ponta voltada para baixo, como a dos narizes das bruxas dos livros ilustrados de histórias para crianças.

Por um instante, fez-se um silêncio tão eloquente que a praça mais parecia um cemitério à noite.

Até que duas pessoas se entreolharam, e, percebendo um esboço de riso no rosto uma da outra, começaram a bater palmas com grande entusiasmo.

A multidão seguiu seu exemplo e a praça explodiu em aplausos. Uma salva de palmas contagiante, acrescida de gritos e assobios, que durou muito mais que os dez minutos regulamentares.

Na verdade, mais de vinte minutos em uma verdadeira festa, como há muito não se via ali.

Os policiais que vigiavam diuturnamente a praça – e seus frequentadores – acharam tudo aquilo muito estranho, mas nada puderam fazer, pois as pessoas estavam apenas cumprindo rigorosamente a lei.

Não obstante, ficou claro que, naquele dia, os aplausos eram para o pombo.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 04 de junho de 2023

INDEPENDÊNCIA E LIBERDADE (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

O Hino Nacional Brasileiro fala de liberdade já em seus primeiros versos: “o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátria”. Assim também o Hino da Independência do nosso país: “já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”.

É como se independência e liberdade fossem a mesma coisa. Ou pelo menos andassem juntas, de modo que um povo independente seria o mesmo que um povo livre.

Mas… um povo se torna livre pelo simples fato de deixar de estar submetido ao poder de um Estado, passando a se submeter a outro?

Certamente que não. E a história mostra inúmeros casos em que o povo simplesmente mudou de senhor. Casos em que líderes de movimentos por liberdade logo se mostraram novos tiranos.

Assim, ao simbolizar a liberdade por meio de raios de sol, o Hino Nacional e o Hino da Independência do Brasil nos trazem, em seus inspirados versos, mais que uma bela imagem. Propositalmente ou não, eles nos lembram que o sentimento de liberdade deve ser renovado a cada dia. Como os raios de sol, que nos chegam após a escuridão de cada noite.

E não devemos ter dúvida que a escuridão da tirania está sempre a ameaçar a luz da nossa liberdade.

A tirania não se anuncia como tal, porque sabe que não é bem vinda. Mas é hábil em se esconder atrás de promessas sedutoras.

“É para sua segurança!”. “É pela sua saúde!”. “É pela ciência!”. “É pela defesa da democracia!”. “É pelo fortalecimento das nossas instituições!”.

E assim vamos entregando nossa liberdade.

Aos poucos vamos sendo impedidos de fazer o que queremos, ou obrigados a fazer o que não queremos. Isso inclui o ato de pensar e de expressar o que pensamos.

É evidente que a vida em sociedade nos impõe limitações, imprescindíveis a uma convivência pacífica. A questão é até onde vão essas limitações, e o quanto de liberdade resta ao indivíduo, se até o ato de dizer o que pensa pode lhe acarretar penalidades.

Seria fácil citar aqui exemplos de ataques recentes às nossas liberdades. No mundo inteiro e, particularmente, no Brasil.

Não citarei nenhum desses exemplos. Talvez por desejar que cada leitor exerça sua liberdade de pensamento, refletindo sobre situações nas quais tenha se sentido tolhido em suas liberdades individuais. Talvez por não me sentir com liberdade suficiente para falar de casos específicos em que nossa liberdade tem sido agredida.

Finalizo registrando que escrevo no dia 5 de setembro de 2022. Daqui a dois dias, nós, brasileiros, celebraremos os 200 anos de independência do nosso país.

Que, a cada novo dia, o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhe no céu da nossa pátria!

Que, a cada novo dia, os filhos desta pátria vejam raiar a liberdade no horizonte do Brasil!


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 28 de maio de 2023

A FÉ NO ESTADO E AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Já que se aproximam mais uma vez as eleições presidenciais; que mais uma vez as pessoas se enchem de esperança por um país melhor para se viver; e de temor, pela possibilidade de seu candidato ser derrotado, porque estão convencidas de que a vitória do outro levará o país inevitavelmente à desgraça; decidi propor aos leitores (e eleitores) a reafirmação da crença de que o Estado há de resolver todos os nossos problemas.

Então, lembrei de uma oração que certa vez ouvi de alguém que dirigia sua fé, não a Deus, mas a esse ente que, embora abstrato, faz parte deste mundo material: o Estado.

Esse ser que comanda as nossas vidas, comparado por Thomas Hobbes a um peixe monstruoso, capaz de a todos os outros devorar, impedindo assim que os peixes menores se devorassem entre si: o Leviatã.

Não lembro se as palavras são exatamente as que reproduzo a seguir, mas acredito que o essencial esteja aí.

Claro que é possível acrescentar algo mais à oração. Desde, é claro, que o acréscimo não seja ofensivo ao destinatário da nossa fé.

Afinal, não faltam atributos edificantes que se possa reconhecer ao Estado, nosso dirigente, controlador e supridor de tudo (ou quase tudo, o que nos remete à canção “Aí eu bebo”, de Maiara e Maraísa).

 

 

O que não é admissível é que se façam críticas ao Estado. Ou melhor, que se dirijam ataques às suas instituições (para usar uma linguagem mais conforme os tempos atuais). Menos ainda, que se cogite de sua extinção.

Dito isto, e sem mais delongas, oremos ao Estado:

Creio no Estado, todo poderoso,
Que controla a nós, viventes desta terra.
Creio nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário,
Que foram concebidos no Espírito das Leis,
Sistematizados por Montesquieu, depois positivados.
E juntos compõem esse ser abstrato, forte e soberano.
Que nos submete inexoravelmente a cada dia.
Cujo poder paira sobre nós, todo poderoso,
E tem o monopólio de nos julgar, vivos ou mortos.
Creio no respeito aos nossos direitos fundamentais
E nas liberdades individuais.
Creio na harmonia entre os poderes;
No princípio democrático e no sistema representativo;
Creio que todo poder emana do povo;
No sagrado direito ao voto;
No funcionamento das instituições;
Creio nos princípios da legalidade e da igualdade.
E que só o Estado pode garantir a paz e a Justiça
nessa terra.
Amém!

Em tempo, reconheço que o leitor pode entender que o presente texto usa de ironia, pelo menos até esta parte.

Nessa hipótese, esclareço que esse suposto tom irônico não teria qualquer intenção de desqualificar ou desmerecer o Estado. Não é um ataque aos seus poderes, seus princípios, suas instituições ou à democracia.

O objetivo dessa alegada ironia seria apenas induzir o (e)leitor a uma reflexão sobre a responsabilidade que cada um de nós tem de, mesmo sob o poder e a proteção do Estado, buscar, por nossos próprios meios, a felicidade e a construção de um mundo melhor.

As eleições que se aproximam são muito importantes. Mas, como diria Geraldo Vandré, “a vida não se resume em festivais”.

Digo eu: nem tampouco em eleições presidenciais.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 22 de maio de 2023

AS MACAQUICES DE PODER NO REINO DA BAZÓFIA (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Escrevi pela primeira vez sobre o Reino da Bazófia em 2020, estimulado por uma crônica de José Paulo Cavalcanti, titular da cadeira de número 39 na Academia Brasileira de Letras, a quem tenho a honra de chamar de amigo.

Então, se antes de prosseguir nesta leitura, o leitor quiser obter algumas informações preliminares sobre o Reino da Bazófia, deve clicar AQUI.

Caso resolva prosseguir sem visitar aquele texto, deve apenas ter em mente que o Reino da Bazófia existiu na Europa, entre meados da Idade Média e a época em que se formaram as primeiras monarquias. Depois desapareceu do mapa, deixando quase nenhum vestígio.

Mesmo assim, fragmentos de documentos encontrados em velhos mosteiros permitem resgatar fatos ocorridos no Reino da Bazófia, os quais revelam curiosos traços da organização política daquele reino.

Feitos esses esclarecimentos, vamos aos fatos.

Conta-se que, certa vez, apareceu no Palácio Real do Reino da Bazófia um pequeno macaco. Servidores do palácio tentaram pegar o bichinho, mas ninguém conseguiu fazer a captura. Bem se sabe que os macacos são animais ágeis, mas aquele parecia mesmo acima da média dos de sua espécie. Comparado com os gordos assessores do rei, a diferença era absurdamente desproporcional.

Para surpresa de todos, depois de deixar os funcionários reais exaustos o bichinho foi-se acomodar espontaneamente sobre os ombros do rei.

O monarca ficou muito feliz com aquela inesperada atitude do macaquinho, e o adotou como bicho de estimação. Deu ao animalzinho o nome de Poder:

– Porque muitos queriam alcançá-lo, mas ele veio para quem o merece – explicou o rei aos assessores, o que fez por pura zombaria, já que não devia explicações a ninguém ali.

Passavam-se os dias e, para gáudio do rei bazófio, Poder continuava a transitar pelo palácio real, como se aquele lugar fosse mesmo o seu lar, desde o início dos tempos. Tornou-se comum nobres, servidores e outros súditos menos importantes verem o macaco Poder junto ao rei.

Apesar da aparente docilidade do símio, ninguém conseguia tocar nele, tal qual ocorrera na primeira vez que fora visto no palácio. Mesmo quando brincava no salão real, com algum dos seus vários brinquedos – sim, o macaquinho Poder frequentemente ganhava brinquedos do próprio rei ou de membros da nobreza que visitavam o palácio – mesmo nesses momentos, se alguém se aproximava, Poder saltava rapidamente para o lustre, o alto de um armário ou outra posição onde se mantivesse a salvo de mãos humanas.

O próprio rei, único que eventualmente podia sentir Poder sobre seus ombros, precisava esperar que o macaco viesse até ele, pois, toda vez que tentava segurar o animalzinho em suas mãos, Poder saltava para longe dele.

O rei não se incomodava com aquele comportamento de Poder. Ao contrário, ria daquilo. Com o tempo, afeiçoou-se tanto ao bichinho, que volta e meia saía em passeios pelas ruas de Bazófia para que o povo visse Poder em seus ombros.

Nessas ocasiões, a população se aglomerava nas calçadas e nas margens das estradas para aplaudir a comitiva. Já não se sabia se os aplausos eram para o rei ou para o macaco, mas o fato é que, com Poder junto de si, o rei havia aumentado muita sua popularidade.

Como era de se esperar, toda aquela popularidade passou a gerar insatisfação entre os nobres, especialmente aqueles que compunham o Conselho Real, uma espécie de parlamento de Bazófia.

Sentindo que estavam perdendo importância junto ao povo, os conselheiros reais tramaram um plano para tirar Poder do rei: em um dos passeios reais, o presidente do Conselho de Nobres, que tinha lugar na carruagem real, tentaria tirar Poder dos ombros do rei; como o bichinho era muito arisco, certamente se assustaria, saltando da carruagem, o que causaria tumulto, deixando o rei desmoralizado, em uma situação até mesmo ridícula; com o rei ridicularizado, a nobreza, insuflada pelo conselheiros, passaria a boicotar o rei em todos os seus atos de governo, até enfraquecê-lo e derrubá-lo.

E assim foi feito. Quando a carruagem real, com a capota aberta, atravessava a praça principal da capital do Reino da Bazófia, o Presidente do Conselho Real tentou repentinamente agarrar Poder, que estava acomodado em um dos ombros do rei. O bichinho assustou-se, como previsto, mas, ao invés de fugir, saltou para a cabeça do conselheiro.

Surpreso com a reação do macaquinho, o conselheiro real continuou tentando pegar Poder, que, sobre sua cabeça, puxava-lhe as orelhas e enfiava-lhe os dedos nos olhos. Ao tentar se segurar nos cabelos do conselheiro, acabou arrancando-lhe peruca, deixando à mostra a avançada calvície do membro da nobreza de Bazófia.

A essa altura, o próprio rei tentava tirar Poder da cabeça do conselheiro, também sem sucesso. Enquanto isso, as pessoas aglomeradas na praça invadiam a rua, misturando gargalhadas a impropérios e gritos de protesto. Em instantes, a carruagem real estava cercada pela multidão, com alguns jovens mais afoitos tentando subir no veículo, mas sendo repelidos pela guarda real.

Não se tem certeza sobre o que houve depois disso. A versão mais aceita é que, em sua luta por Poder, o rei e o presidente do Conselho Real caíram da carruagem e foram pisoteados pela multidão que os cercava. O povo, que no início aplaudia a comitiva, passou a atacar a guarda real, com paus e pedras. Formaram-se inúmeros grupos, que brigavam entre si, sem saber exatamente por qual motivo estavam brigando. Instalado o caos, não se sabe com quem ficou Poder.

Os fragmentos de jornais rudimentares que circulavam à época são estudados até hoje. Há certo consenso entre estudiosos do assunto no sentido de que, a partir daquele dia, o Reino da Bazófia entrou em um longo período de anarquia e decadência econômica.

Mas historiadores continuam a debater sobre o tema. Uns dizem que as coisas começaram a dar errado no Reino da Bazófia quando o rei passou a se exibir com o Poder, sem ter controle sobre ele. Outros sustentam que o plano do conselheiro não deu certo porque o Poder lhe subiu à cabeça. Outros ainda acreditam que a revolta em Bazófia teria sido evitada se o Poder tivesse sido mantido longe do povo.

Aparentemente, as teses aqui referidas não são excludentes umas das outras.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis terça, 16 de maio de 2023

ABSURDOS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

ABSURDOS

Marcos Mairton

 

Absurdo é uma ave grande e desajeitada, cuja principal característica é seu grito, alto e estridente, capaz de desnortear outros animais que estejam por perto, inclusive seres humanos.

Seu nome vem exatamente dessa característica. Do latim “absurdus”, unindo a partícula “ab” (desde; a partir de) a “surdus” (o que não escuta), adquirindo, pelo uso coloquial, o significado de dissonante, fora do tom, desafinado.

Não se pode dizer que seja um animal raro, porque os absurdos proliferam em todo o planeta, sendo comuns na América do Sul. No Brasil, parecem encontrar condições muito favoráveis à sua reprodução. Estudos comprovam que grandes absurdos, oriundos dos Estados Unidos, às vezes migram para o sul, tornando-se ainda maiores quando chegam a terras brasileiras.

Há registros de absurdos na Amazônia, na caatinga, no cerrado, na mata atlântica e nos pampas. Mas é uma ave misteriosa, que consegue se manter oculta onde deveria facilmente ser vista, aparecendo inesperadamente em ocasiões e lugares improváveis.

Um dos maiores mistérios dos absurdos é a diversidade de formas com que são descritos. Ao que tudo indica, ninguém tem certeza quanto a sua aparência, mas todo mundo nota quando um absurdo chega. Ou quase todo mundo, porque sempre há os distraídos, que não percebem a presença do absurdo, mesmo quando ele está diante de seus olhos.

E tem também aquela turma que finge só perceber os absurdos que prejudicam seus interesses. Quando o absurdo os favorece, parecem mais distraídos que os distraídos de verdade:

– Olha o tamanho desse absurdo, gente!

– Onde?

– Aí! Na sua frente!

– Aqui? Não vejo absurdo nenhum.

E a vida segue. No fundo, a presença de um absurdo sempre causa certa surpresa, perplexidade e até medo. Especialistas dizem que mesmo quem é responsável pela criação de um absurdo se abala com sua presença. Mas certamente há quem se divirta criando absurdos.

Como diz o poeta Jessier Quirino, nesse mundo existe gente pra tudo, e ainda sobra dois pra tocar gaita!

O certo é que às vezes o absurdo é fugaz: surge, mas logo desaparece. Outras vezes permanece por longos períodos junto a agrupamentos de seres humanos. Vai ficando por ali, fingindo normalidade, até que as pessoas acabam se adaptando à sua presença. Continua sendo um absurdo, mas não incomoda mais ninguém. Ou quem se incomoda não diz nada, com receio de ser tratado como intolerante.

Sim! Porque às vezes o absurdo ganha a proteção de defensores, ONGs e ativistas, de modo que quem o trata como tal, ou seja, como absurdo, passa a sofrer represálias de toda sorte.

E ainda tem os absurdos que fazem seus ninhos no alto dos prédios públicos, em palácios, ministérios e tribunais. Esses costumam ser grandes, apesar do esforço de algumas autoridades para os fazer parecer pequenos. O simples ato de expor publicamente a existência desses absurdos pode levar alguém a sofrer sanções jurídicas, com a perda de bens e até da liberdade.

Mas, o fato é que os absurdos seguem alheios a tudo isso, e não deixam de ser o que são: absurdos. Podemos fingir que os ignoramos, podemos simular indiferença quando os vemos, ou negar a sua presença. Ainda assim eles continuarão lá.

E quem conhece a sua natureza sempre sentirá a esperança pulsar em seu coração quando ouvir alguém dizer, em tom de alerta:

– Mas isso é um absurdo!

P.S.: Como não consegui a foto de nenhum absurdo, a imagem ilustrativa é de um urutau, ave também conhecida como mãe-da-lua.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis terça, 09 de maio de 2023

NATAL LIMEIRIZADO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

NATAL LIMEIRIZADO

Marcos Mairton

 

Não sei por quais cargas d’água, quando pensei em escrever a mensagem de natal deste ano, para ler na ceia, com a família, só imaginei Zé Limeira glosando o mote “Viva o menino Jesus!”.

Longe de mim a pretensão de alcançar o nível do mito Zé Limeira. Mas imitar não é pecado.

Então escrevi essas estrofes:

Numa noite de natal,
O sol brilhava no céu,
Um justo virava réu,
Um são ia pro hospital.
Um famoso marginal
Bebia um chá de cuscuz,
Alguém acendeu a luz,
O sujeito foi-se embora
E gritou Nossa Senhora:
Viva o menino Jesus!

Quando eu vi Papai Noel
Montado numa galinha,
Logo vi que ele não tinha
Escrito nada em cordel.
Veio vindo um coronel
Chupando um pé de mastruz.
Uma nuvem de urubus
Pelo terreiro ciscava,
Enquanto o povo gritava:
Viva o menino Jesus!

Já comi peru assado,
Mas joguei fora o caroço
São Tomé, quando era moço,
Jogou muito carteado.
São João foi atropelado
Por duzentos cururus.
Deu três tiros de obus
E fez a maior zoada,
Gritando, de madrugada:
Viva o menino Jesus!

Jesus nasceu num domingo,
Segunda-feira falou,
Terça, de tarde, pegou
Um nó d’água e deu um pingo.
João e seu amigo Ringo
Foram nos maracatus,
Pegaram a dançar nus,
Sem o menor sobressalto.
E o povo cantando alto:
Viva o menino Jesus!

Vou chegando aos finalmente,
Falando dos três reis magos
Que foram muito bem pagos
Pelo Coronel Prudente.
Cada um trouxe um presente,
E um ovo de avestruz.
José, que usava um capuz,
E tocava uma corneta,
Escreveu na caderneta:
Viva o menino Jesus!


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 03 de maio de 2023

EVANGELHO EM CEARÊS: O NASCIMENTO DE JESUS (Lucas 2:1-20) - (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

Naquele tempo, o manda chuva dos romanos era um tal de César Augusto, e ele mandou fazer um apurado de todo filho de Deus que fizesse sombra nas terras do império.

Como José era aparentado com o Rei Davi, tinha que fazer a ficha em Belém, que era a terra da família dele. Por conta disso, José e Maria, que moravam em Nazaré, tiveram que juntar os mulambo e se mandar pra Belém.

Só que Maria já tava com o bucho pelas goela, por isso perigava do menino nascer no meio da viagem. E foi só o que deu: quando foram chegando em Belém, Maria já tava se vendo de dor.

Aí foi que deu o maior bode, porque a cidade tava lotada desse povo que foi fazer a ficha que o imperador tinha mandado. Porque naquele tempo era assim, quando o imperador mandava, não queria nem saber quem foi que envernizou barata. Era a língua ou o beiço. Ou o cabra cumpria a ordem ou a chibata comia.

José foi em tudo quanto era hotel, pousada e casa de família, pedindo um canto pra se ajeitar com Maria, mas foi o mesmo que dar um tiro n’água. O povo dizia que não tinha lugar nem pra um cibite fastioso.

Naquele aperreio, com Maria em tempo de parir no meio da rua, o jeito foi passarem a noite numa palhoça onde dormiam uns bichos de criação. Vaca, jumento, Carneiro, essas coisas.

E foi ali mesmo que o menino Jesus nasceu. Aí Maria pegou o bichim e deitou ele na gamela que botavam comida pros bichos.

Nisso, uns pastores que tavam numa capoeira ali perto levaram um susto lascado, porque apareceu lá um anjo dando o serviço do nascimento de Jesus:

– Ei, magote de macho mole, deixe de froxura! Vocês tão vendo é um anjo, não é uma moto com dois vagabundo em cima não! Vim aqui só passar o bizu pra vocês que em Belém, nasceu agorinha o cabra mais pedra noventa que esse mundo já viu ou vai ver. O menino é liso! É o Salvador! É o Cristo! Tá lá numa palhoça, deitadinho numa gamela de dar ração pros bicho, todo enroladinho nuns mulambo.

O anjo tava nessa conversa, quando outros anjos chegaram botando moral:

– Bora, macho! Termina esse leriado aí. Tu conversa muito!

E os anjos pegaram o beco. Depois, os pastores tomaram cada um uma garapa de açúcar, pra passar o nervoso, e meteram o pé no rumo de Belém.

Os pastores ficaram abismados quando viram o menino Jesus dormindo na gamela do boi. Mas acreditaram no que os anjos tinham dito e ficaram ali rezando.

Depois teve a visita dos reis magos. Uns cabra que vieram lá da baixa da égua com uns agrado pro menino Jesus. Mas aí já é outra parte da história.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 27 de abril de 2023

UM MOMENTO DE LUZ (CORDEL DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UM MOMENTO DE LUZ

Marcos Mairton

 

Foi um momento de luz,
De muita iluminação,
O que aconteceu comigo
Numa certa ocasião,
Quando o dia terminava
E eu sozinho viajava
Pela estrada no sertão.

Estacionei na estrada
Para trocar um pneu
Que furou quando o meu carro
Em um buraco bateu,
Mas, logo que estacionei,
E as ferramentas peguei,
Algo estranho aconteceu.

Eu olhei à minha volta,
Para ver se via alguém.
Mas, naquele lugar ermo,
Não apareceu ninguém.
Só algumas avoantes
Sobrevoaram, rasantes,
E pousaram mais além.

Mas na hora em que olhei
Para onde o bando pousou
Algo na minha visão
De repente se alterou,
Pois vi cada passarinho
Tão de perto, tão pertinho,
Que isso até me assustou.

 

Foi como se em cada olho
Uma lente de aumento
Houvesse sido instalada
Naquele exato momento.
E tudo o que eu olhava
Depressa se aproximava
Num estranho movimento.

Como um “zoom” de filmadora
Minha vista funcionava
Aumentando qualquer coisa
Que minha vista alcançava.
Bastava eu me concentrar
Em algum ponto e olhar
E tudo se aproximava.

Estranhei aquilo tudo,
E era mesmo intrigante,
Pois olhei fixamente
Para uma avoante,
E, naquele campo aberto,
Vi a ave tão de perto
Que parecia um gigante.

E, à medida que a ave
Parecia estar crescendo,
Cada mínimo detalhe
Ia logo aparecendo.
De um olho vi a retina,
No bico, cada narina,
Tudo isso eu ia vendo.

Eu continuei olhando
E foi como atravessar
Entre as penas do seu peito
Até a pele alcançar.
Ao chegar à epiderme
Vi um parasita, um verme,
De sangue a se alimentar.

Vendo aquele parasita
Satisfazer sua fome
Pensei: “Meu Deus, neste mundo
Todo corpo se consome,
Um bicho come outro bicho,
Não existe sobra ou lixo,
Tudo se bebe ou se come”.

E, de fato, enquanto o verme
Faminto se alimentava,
Outro verme ali surgiu
E agora o atacava.
Houve uma luta entre os dois
E, alguns segundos depois,
Um ao outro devorava.

Foi então que percebi
Que outros bichos semelhantes
Habitavam entre as penas
Das pequenas avoantes,
Chegando mesmo a formar
Uma cadeia alimentar,
E das mais impressionantes.

Eu, então, naquele instante,
Olhei a areia, no chão,
E vi, que daquela areia,
Enxergava cada grão
E, entre os grãos, seres vivos
Movimentando-se ativos,
Eram vida em profusão.

Nessa hora refleti
Sobre o mundo em que vivemos:
“Com tanta vida na Terra,
Muito mais do que nós vemos,
A Terra bem pode ser
Um ser vivo a nos manter
E nós nunca percebemos”.

“Talvez o chão seja a pele
Deste ser que nos sustenta,
Que fornece as substâncias
Que a todos alimenta,
E nós, nada percebendo,
Por aqui vamos vivendo,
Nossa sina violenta”.

“Essa sina violenta
Que não nos deixa entender
Que estamos fazendo a Terra
Mais e mais adoecer.
A consequência evidente:
Se o planeta está doente,
Todos vamos padecer”.

Enquanto eu pensava nisso,
Minha vista escureceu,
Me senti um pouco tonto,
Não sei o que aconteceu.
Ao recobrar o sentido,
Vi que tinha anoitecido,
A noite agora era um breu.

Só então em me lembrei
Que ainda tinha que trocar
O pneu que, horas antes,
Aconteceu de furar.
Com muita pressa troquei
E pra casa retornei
Deixando aquele lugar.

Mas, ainda hoje eu lembro
Do dia em que eu pude ver
Coisas que são pequeninas,
Mas minha vista fez crescer.
Porém, mais que enxergar,
O que eu vi me fez pensar,
E aquela ocasião,
Para mim foi um momento
De luz, de esclarecimento,
De muita iluminação.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 21 de abril de 2023

UM LOUCO NO PODER (CORDEL DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UM LOUCO NO PODER

Marcos Mairton

Um homem que enlouqueceu
É um homem perigoso.
Mas o perigo é maior
Se for também poderoso.
Faz coisas muito absurdas,
E as pessoas seguem surdas,
Fingindo não perceber
Os abusos perpetrados
E os prejuízos causados
Por um louco no poder.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sábado, 15 de abril de 2023

CRÔNICA DE SEGUNDA-FEIRA: A SEGUNDA NA TERÇA E A MENTIRA DA LINGUAGEM NEUTRA (POSTAGEM DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

CRÔNICA DE SEGUNDA-FEIRA: A SEGUNDA NA TERÇA E A MENTIRA DA LINGUAGEM NEUTRA

Marcos Mairton

Nos últimos dias do ano de 2022, tracei minhas metas para 2023. Normal. Milhões de pessoas fazem isso no mundo inteiro. Mas desta vez me impus uma meta que soou como um desafio: escrever pelo uma vez por semana para minha coluna no Jornal da Besta Fubana.

Talvez isso não pareça muita coisa para grandes jornalistas, daqueles que têm colunas diárias, ou mesmo semanais, em grandes jornais, mas para mim, que não tenho a atividade de colunista do JBF como atividade principal, é.

Deu-se, porém, que o primeiro dia de 2023 caiu em um domingo. E, talvez pela educação religiosa que recebi, talvez por tradição, talvez pela preguiça que o domingo me inspira, escrever em um domingo não seria fácil. E teve a festa de réveillon, que havia durado até às sete da manhã daquele dia 1/1/2023 (na verdade, esse foi o verdadeiro motivo de eu não querer nem olhar para a tela do computador naquele dia).

Foi na noite daquele domingo que me veio a ideia da “Crônica de Segunda-Feira”. Recostei-me para dormir, no domingo à noite, sem a menor ideia do que escreveria no dia seguinte, mas com uma certeza: antes da meia-noite da segunda-feira teria um texto escrito para o JBF.

E assim fiz. Quem leu deve ter observado que o assunto da crônica foi minha caminhada matinal pelas ruas de Copacabana, onde havia passado a virada do ano. É óbvio. Por um lado, já acordei pensando na crônica; por outro, não faltavam fontes de inspiração naquele lugar incrível.

Repeti a fórmula nas duas segundas-feiras seguintes e – bingo! – texto concluído e enviado ao nosso patrão Luiz Berto com sucesso! Noutras palavras, a ideia da crônica de segunda-feira parece ter dado certo.

Acontece que Berto, observador como é, não poderia deixar passar um detalhe. E perguntou, via WhatsApp: “Por que danado você tá enviando crônicas de segunda-feira na terça?”.

Agora, vocês sabem o que o Berto já sabia: envio a crônica na terça porque escrevo na segunda. Como eu tenho mania de deixar o texto descansando algumas horas, antes de revisar, faço a revisão na terça-feira, bem cedinho, e só então envio para publicação.

E ficou assim: a crônica de segunda-feira sempre sai na terça-feira.

Hoje, por exemplo, eu aproveitei que não tinha acontecido nada de extraordinário durante o dia para passar essas explicações para vocês.

Aliás, não tinha nada quase até o final do dia, porque quando eu dava aquela última olhada no celular antes de me preparar para dormir, deparei-me com a seguinte manchete, em um site do governo brasileiro: PARLAMENTARES ELEITES REÚNEM-SE PELA PRIMEIRA VEZ EM BRASÍLIA.

É isso mesmo que vocês leram: ELEITES!

Eu já tinha visto uns vídeos que mostravam a posse de membros do governo que se instalou no Brasil neste ano, e neles a pessoa que ia discursar cumprimentava a “TODAS, TODOS E TODES”. Alguns invertiam, certamente para dar mais ênfase, pondo o TODES antes do TODOS.

Mas achei que era iniciativa da pessoa que discursava. Uma vontade de chamar a atenção, parecer inclusivo ou, como se diz nas redes sociais, simplesmente “lacrar”. Não imaginei que a comunicação oficial um dia viesse a maltratar a língua portuguesa dessa forma.

Diante da tal “vontade de lacrar”, imaginei se não seria o caso de ignorar o fato. Fazer de conta que não vi.

Mas não foi possível. A palavra TODOS já tem para mim um significado, e sempre foi suficientemente inclusivo. Bastava se dirigir a TODOS para ficar claro que todas as pessoas presentes eram destinatárias da nossa voz.

Antes de me tornar uma pessoa “de humanas”, a coisa funcionava para mim como um corolário da teoria dos conjuntos. TODOS significava a totalidade dos elementos de um conjunto. Assim, TODOS eram todos os seres humanos, todas as pessoas, todas as laranjas de um cesto, todos os planetas do universo.

Agora vem essa gente preconceituosa separar todo mundo (ou talvez eles prefiram “tode munde”).

Quer saber? Ainda que a intenção de vocês fosse se expressar de forma mais inclusiva, vocês estariam atentando contra a nossa língua portuguesa, e, consequentemente, contra a nossa cultura, contra a nossa história.

Acontece que vocês não estão sendo inclusivos. Vocês fingem que estão incluindo, mas estão, na verdade, dividindo as pessoas, como se, no fim das contas, não fosse todo mundo gente.

Fico triste ao ver o governo brasileiro apoiar esse tipo de coisa.

Enquanto não me ameaçarem de prisão por respeitar a língua portuguesa, esta crônica está disponível à leitura de TODOS.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 10 de abril de 2023

MADRUGANDO NO AEROPORTO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

MADRUGANDO NO AEROPORTO

Marcos Mairton

São quatro e meia da madrugada e escrevo com o notebook apoiado em uma das mesas de um café, no aeroporto de Brasília.

Tive que acordar cedo para estar aqui a essa hora. Mas, fazer o quê? Sou um sujeito um tanto neurótico com essa história de perder voo. Prefiro uma hora de ociosidade na área de embarque a sair por aí correndo enquanto arrasto a bagagem de mão. Lembro, como se fosse ontem, das vezes mais assustadoras em que isso aconteceu, a primeira, no aeroporto de Lisboa, a segunda, no de Amsterdã. Talvez o risco de não conseguir voltar para o Brasil tenha me traumatizado.

Mas, duas semanas atrás, aconteceu de novo, desta feita em Brasília mesmo. A caminho do aeroporto, deparei-me com o pior engarrafamento que já vi na via L4 Sul. Quem conhece Brasília sabe que o limite de velocidade ali é de 80 Km/h, mas sabe também que entre seis e oito da noite o trânsito pode ficar complicado.

O certo é que, quando passei minha bagagem de mão pelo raio X, faltavam dois minutos para o início do embarque. Foi nessa hora que a funcionária disse, com toda a simpatia possível:

– O senhor foi sorteado para ter a bagagem submetida a uma inspeção visual.

Um palavrão quase escapou da minha boca, mas controlei a reação. Cheguei a argumentar que faltavam dois minutos para o início do embarque, mas ela disse gentilmente:

– Dá tempo. É rapidinho.

E só me restou esperar e engolir o choro. No final, acabou dando tudo certo.

Esse problema não terei hoje. Como disse na primeira linha desta crônica, às quatro e meia da madrugada eu já havia passado pelo raio X da bagagem de mão. Com o início do embarque previsto para 8:25 da manhã, estou tranquilo.

Escrevi o parágrafo anterior e pensei: o leitor que chegou até aqui deve estar achando que me atrapalhei com os horários; ou que enlouqueci de vez. Como assim, a pessoa chegar ao aeroporto às 4:30 da madrugada, para um voo que promete decolar às nove da manhã?

Admito, é estranho mesmo. Mas, é preciso considerar que escrevo no dia 30 de março de 2023.

Ontem à noite, enquanto arrumava a mala, vi a notícia que Jair Bolsonaro desembarcaria em Brasília hoje, às sete da manhã, depois de três meses fora do Brasil. E senti um frio na barriga.

Pensei nos bolsonaristas com saudade do seu líder, desejosos por mostrar a ele sua lealdade; pensei no próprio ex-presidente, sorrindo e acenando para a multidão; pensei na preocupação das autoridades responsáveis pela segurança do Distrito Federal, querendo evitar serem tachadas de omissas.

Vieram-me à mente imagens de barreiras policiais, mochilas sendo revistadas antes de entrar no saguão do aeroporto e um monte de gente em todos os espaços do aeroporto, gritando: “Mito! Mito! Mito!”.

Em meio a todo esse movimento, eu não conseguia chegar a tempo de pegar meu voo.

Estimulado por esses pensamentos, eu poderia ter feito várias reflexões sobre política, democracia, direito de manifestação e tantas coisas.

Mas fui dominado por uma preocupação, digamos, mais imediata, talvez trivial, quem sabe até egoista:

– Dessa vez não! – disse eu, em voz alta a mim mesmo. – Saio de casa de madrugada, mas, quando essa multidão se formar, já estarei dentro do aeroporto!

Separei a roupa para viajar, programei o despertador do celular para as três da madrugada e tentei dormir.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 03 de abril de 2023

MÃE COM *M* MAIÚSCULO (*) - CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

 

 

Eu havia acabado de sair de casa. Caminhava até um restaurante self-service que fica a duas quadras do nosso apartamento em Fortaleza, quando fui abordado por uma mulher, que carregava uma criança nos braços. Perguntou onde seria o ponto de ônibus mais próximo.

Indiquei a direção e a fiquei observando se afastar. Devia ter pouco mais de trinta anos. O menino parecia ter uns dois anos de idade, talvez mais. Grande demais para ser carregado no colo, o que me levou a pensar que estivesse doente.

As roupas, tanto da mulher como da criança, não pareciam as comuns de ficar em casa. “É isso mesmo” — pensei — “a mãe deve ter levado o filho ao médico, cedo da manhã, agora estão voltando para casa”.

Trabalho pesado locomover-se suportando o peso daquele menino, sob o sol de quase meio dia.

Enquanto acompanhava aquela jovem mãe com o olhar, lembrei de outra mulher, que conheci há muitos anos.

Naquela época, seus dois filhos eram pequenos. Quando o mais velho estava com pouco mais que cinco anos de idade, o mais novo, que tinha menos de dois, teve poliomielite, empurrando aquela mãe para verdadeira peregrinação por postos de saúde e hospitais públicos em busca de tratamento para o menino.

Depois de inúmeras idas e vindas, consultas, exames e madrugadas na porta de hospitais, em busca de atendimento, ela conseguiu marcar uma cirurgia para o filho. Mas o método que seria adotado pelo cirurgião ainda não tinha eficácia comprovada pela literatura médica. Por causa disso, ela teria que assinar um termo de responsabilidade, para o caso de alguma coisa dar errado.

A mulher enfrentou resistência família. Amigos e parentes a aconselharam a não assinar o termo. Mas ela assinou.

Acreditou na medicina. Mas, talvez por acreditar mais em Deus que nos homens, recorreu também à novena de Santa Teresinha do Menino Jesus. Fez as orações, ganhou uma rosa no oitavo dia e encheu-se de esperança.

Hospitais, cirurgias, sessões de fisioterapia e meses de expectativa passaram a fazer parte da vida daquela mulher. Ao final de meses, em um período que não se sabe ao certo quanto tempo durou, a recompensa pelo esforço: o menino voltou a andar.

Seis anos depois de ter contraído a doença, ele já corria com os colegas da escola na hora do recreio. Não era tão rápido quanto os outros meninos, mas corria. Claudicava, tropeçava, caía, mas seguia em frente. A mãe sempre lhe dizendo: “Cada um caminha com as pernas que tem”.

Um detalhe não pode ser esquecido: durante todo o período em que essa mulher lutava pela saúde do filho caçula, cuidava para que ele o irmão continuassem frequentando a escola. Para ela, não havia obstáculo que justificasse uma criança parar de estudar.

O marido a ajudou nessa luta para cuidar dos filhos e educá-los, é verdade. Alguns de seus irmãos e irmãs também ajudaram. Mas, sendo esta uma crônica escrita para o Dia das Mães, a protagonista da história é essa mulher, que dedicou uma vida inteira à família.

Na difícil tarefa de mãe, nunca levantou a voz para repreender os filhos, nunca os pôs de castigo, nem muito menos bateu neles. Ao invés de dizer “não faça isso”, ela sempre preferiu perguntar “você acha certo fazer isso?”. Onde muitos diriam “isso não é possível”, perguntava: “você quer tentar?”.

Passaram-se os anos. Seus filhos hoje são adultos. O mais velho formou-se em odontologia, fez mestrado e doutorado. Hoje é professor da Universidade Federal do Ceará, um profissional respeitado no país inteiro. O mais novo — aquele da poliomielite — formou-se em Direito, fez mestrado e tornou-se juiz federal e escritor.

Com os “meninos” encaminhados na vida, ela finalmente achou espaço para si mesma. Já na chamada terceira idade, realizou dois desejos com os quais sonhara a vida inteira: fazer faculdade de Teologia e aprender a andar de bicicleta.

Após a realização desses desejos, alfabetizou e contribuiu para a formação de dezenas de crianças. Sem fazer alarde, em sua própria casa, onde improvisava uma sala de aula e dava gratuitamente aulas de reforço escolar.

Hoje, essa mulher leva uma vida tranquila, com a serenidade de quem fez a sua parte para tornar nosso planeta um lugar melhor para se viver.

O nome dessa mulher vencedora é Ivonete. Ou simplesmente Neta, como sempre preferiram os seus irmãos, as suas irmãs e o seu falecido marido.

Eu e meu irmão, Materson, temos nosso próprio jeito de chamá-la. Chamamos simplesmente de Mamãe.

E, na hora de escrever, é assim mesmo que o fazemos: com M maiúsculo.

(*) Escrevi essa crônica em 2014. Hoje, véspera dos Dia das Mães de 2020, estando longe da minha mãe, sem poder ir vê-la, por causa da pandemia do corona vírus, resolvi atualizar alguns pontos do texto e publicá-la novamente.

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis terça, 28 de março de 2023

AOS ENTREGADORES DE REFEIÇÕES (CRÔNICA MUSICAL DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Hoje, 13/5/2020, estamos completando 60 dias de distanciamento social.

Em celebração à data, homenageamos esses trabalhadores imprescindíveis para que possamos ficar o máximo possível em casa: os entregadores de refeições.

Quando acaba o estoque de alimentos, ou simplesmente estamos sem disposição para cozinhar, são eles que nos socorrem.

A esses bravos, nosso muito obrigado!

 

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 22 de março de 2023

PÉ DE CHUMBO, PÉ DE VENTO — O CORDEL (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Essa é uma história baseada em fatos da vida real. Memórias de minha infância, sempre recheada de aventuras, no meu querido bairro do Pirambu, em Fortaleza.

Memórias de uma noite de festa, quando amigos e vizinhos comemoravam a chegada do ano novo, mas surgiu um valentão querendo estragar a nossa alegria. Valentões eram figuras comuns naquele tempo.

A versão escrita do cordel — tanto impressa como em e-bookordel — está disponível para venda na Amazon. Basta clicar aqui para acessar a página.

Como os leitores do JBF moram no meu coração, todos poderão receber uma versão em PDF, totalmente grátis. Enviei uma cópia do arquivo ao nosso editor Luiz Berto Filho, com autorização para que ele repasse a quem fizer o pedido, por meio de um comentário nesta postagem.

Mas não deixem de ver o vídeo. Na declamação tem coisas que não cabem no texto escrito.

Depois, deixem o seu GOSTEI e se INSCREVAM no canal. Será um prazer recebê-los lá.

 

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 16 de março de 2023

NO REINO DA BAZÓFIA (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)Q

 

NO REINO DA BAZÓFIA

Marcos Mairton

Há algumas semanas, houve um dia em que enriqueci significativamente o meu vocabulário. Não em um exemplar das Seleções Reader´s Digest, apesar do espaço ali dedicado a essa finalidade, mas em fonte tanto quanto ou mais profícua: a coluna “Penso, logo insisto”, do jurista e escritor José Paulo Cavalcanti, no Jornal da Besta Fubana.

Em sua crônica postada em 23 de abril deste ano, o grande José Paulo expôs o significado de palavras raras da língua portuguesa. Palavras só acessíveis aos que têm verdadeira intimidade com a última flor do Lácio, inculta e bela, como diria Bilac. Ou Fernando Sabino, pela boca de Geraldo Viramundo, em “O Grande Mentecapto”.

Vocábulos como biltre, burlão, engrimanço, pícaro e pirrónico. Uma riqueza!

Não sei se por serem palavras que muitos plebeus gostariam de dizer a certos nobres; não sei se por causa do título da crônica de José Paulo ser “Um país de estultos”; o fato é que, após sua leitura, lúdicos pensamentos levaram-me a um reino imaginário, em plena Europa Medieval.

Uma monarquia onde o rei vivia engalfinhando-se em querelas com os membros da sua corte de nobres, sempre ansiosos por uma oportunidade para se apropriarem do trono e da coroa.

Como se sabe, com a queda do Império Romano do Ocidente, a Europa transformou-se em verdadeira colcha de retalhos, com seus territórios ocupados por hunos, godos, alamanos, burgúndios e tantos outros.

Na minha cabeça de contador de histórias, se entre esses povos, chamados genericamente de bárbaros, existiram os vândalos, teriam convivido também com eles os biltres, os burlões, os engrimanços, os pícaros e os pirrônicos.

A essas etnias fictícias, cujos nomes engendrei a partir da crônica de José Paulo, não resisto à tentação de acrescentar os néscios, os torpes, os incautos, os sáfaros e até os probos. Embora estes últimos certamente fossem minoria, frequentemente desalojados de sua aldeias e perseguidos por seus inimigos.

Nessa viagem no tempo, percorro cerca de mil anos, até chegar à época da formação das monarquias nacionais absolutistas. E ao tempo do flagelo da Peste Negra.

Vejo, então, vários desses povos reunidos em uma mesma monarquia: néscios, biltres, sáfaros, burlões, probos e incautos, agrupados sob um mesmo brasão.

A unificação é um tanto forçada, e se dá mais por conveniência dos nobres que para benefício de camponeses, artesãos e mesmo de burgueses.

Daí por que, como fora antes anunciado, esses nobres vivem metidos em escaramuças. Entre si e com o monarca da vez. Digo “da vez” porque nesse reino, o rei, que pouco manda, frequentemente é deposto por outro nobre mais poderoso, mas que também acaba caindo.

Um reino onde a paz é sempre frágil e de curta duração. Alguns dos poucos momentos de menor beligerância ocorrem durante grandes festas populares que ali ocorrem, as quais recebem apoio do próprio rei e de todos os nobres.

Essas festas são conhecidas como “as badernas”, e acontecem todos os anos. Nelas, o povo se diverte livremente nas ruas dos burgos, bebendo, cantando e dançando, celebrando não se sabe exatamente o quê.

Em nossa viagem imaginária ao passado, encontramos esse reino em mais um período conturbado, enfrentando toda sorte de problemas econômicos, sociais e políticos, apesar de ter acabado de acontecer, com muito sucesso, mais uma edição das badernas anuais.

O país está sob o comando do Rei Lorpa, que é da linhagem dos néscios, mas, para conquistar o trono, precisou do apoio dos incautos e dos probos. Estes já não estão felizes com sua posição no governo, mas acreditam que ficariam em situação ainda pior, se a cetro voltasse para as mãos dos inimigos do Rei Lorpa.

Idolatrado pelos néscios, Lorpa é odiado pelos biltres, os sáfaros e os burlões. Estes também brigam entre si, mas têm agido como aliados, e tudo farão para arrancar o rei do trono. Ou o trono do rei, ainda que, para isso, seja necessário pôr em risco a unidade do próprio reino.

Tornando a situação ainda mais dramática, o reino, assim como todo o Velho Mundo, está sendo assolado pela Peste Negra.

Trazida da China pelas caravanas que faziam a Rota da Seda, ou pelos mercadores que cruzavam o Mar Mediterrâneo em suas naus, a peste já ceifou a vida de cerca de um terço da população do continente europeu.

Nesse reino, a situação não é diferente. Não se conhece prevenção ou tratamento para a doença. Tenta-se cuidar dos pacientes com sangrias, infusões, chás de ervas e novenas. Mas nada funciona.

Centenas de pessoas morrem todos os dias. Chega a faltar coveiros, porque os que não morreram têm medo de enterrar os cadáveres.

O povo sofre com a peste, a fome e o desemprego.

Mas o Rei Lorpa e os nobres de sua corte estão ocupados demais, em sua luta pelo trono, para dedicar alguma atenção a quem morreu ou está prestes a morrer.

Tempos difíceis no imaginário Reino da Bazófia.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 09 de março de 2023

AOS NAMORADOS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AOS NAMORADOS

Marcos Mairton

Amanhã é Dia dos Namorados. Uma data boa para se celebrar. E simples. Um jantar, um vinho, uma música que lembra o começo da história… o resto fica por conta da criatividade de cada um…

Neste ano de 2020, alguns namorados estão com dificuldade para ficarem juntos. Já não são os pais que proíbem o namoro. Esse tempo (felizmente) já passou. É um tal coronavírus que está trazendo dificuldades para as pessoas saírem de casa. E, se na casa da namorada ou do namorado tem alguém infectado, talvez seja melhor mesmo não ir até lá.

Mas também tem namorados com problemas, por estarem juntos demais. Dias e dias compartilhando o mesmo espaço faz emergirem problemas de relacionamento que normalmente não se tem.

Nesse ponto, sinto-me privilegiado. Depois de quase 90 dias de isolamento social, ter Natália ao meu lado praticamente o tempo todo é um prazer que se renova.

Esse será mais um de muitos Dias dos Namorados.

Foi pensando nessa turma que está namorando há algum tempo que eu e meu amigo Ricardo Morais fizemos o vídeo a seguir.

Um pouco de poesia, um pouco de música e o reconhecimento àqueles que estão ficando com os sapatos velhos de tanto caminharem juntos.

Com muito amor.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 03 de março de 2023

O QUE É QUE EU FAÇO? (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O QUE É QUE EU FAÇO?

Marcos Mairton

Queridos frequentadores desta coluna, tenho me divertido com esse novo brinquedo, que é a edição de vídeos.

Gosto de adquirir novos conhecimentos. Vou aprendendo um recurso aqui, um efeito ali, e, a meu juízo, os vídeos vão ficando melhores.

Desta vez, aproveitando o clima romântico da semana passada, editei um clipe com o meu xote “O que é que eu faço com essa saudade?”.

O resultado está aí. Espero que gostem.

 

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 27 de fevereiro de 2023

A PANDEMIA NA VIDA DE UM UNIVERSITÁRIO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Tem uns dias que meu filho Álvaro está aqui em casa, aproveitando o período de férias para descansar, e para botarmos os assuntos em dia.

Álvaro mora em São Paulo, onde cursa Biotecnologia na USP. Na capital paulista, divide um apartamento de dois quartos com outros dois estudantes cearenses, o Felipe e o Pedro. Colegas do ensino médio que também foram em busca de novos voos.

Uma alegria recebê-lo aqui, depois de meses sem nos encontrarmos pessoalmente, ainda mais nesses tempos em que nosso cuidado com as pessoas mais queridas está mais ativo.

Desde que ele chegou, temos conversado muito, especialmente sobre a situação atípica enfrentada por eles (e por todos nós) este ano.

Aulas pela internet, isolamento social, convivência o dia inteiro por dias seguidos… e a ameaça constante de se contrair uma doença que já matou mais de 600 mil pessoas no planeta.

A certa altura de uma dessas conversas, entendi que estávamos falando de temas que poderiam interessar a muita gente, não apenas a nós. Propus que gravássemos um vídeo, e ele topou de imediato.

O resultado foi esse, que agora compartilho com você, leitor da nossa coluna.

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sábado, 18 de fevereiro de 2023

O RECOLHEDOR DE FOLHAS E O VENTO (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Certa manhã, um jovem, que acabara de fazer seus exercícios em um parque, resolveu descansar um pouco, sentado em um banco que havia ali.

Enquanto descansava, observou um homem que trabalhava recolhendo folhas secas. Com um ancinho, reunia as folhas em pequenos montes. Depois, abaixava-se, pegava-as com as mãos e as punha em um saco plástico que trazia preso à cintura.

 

 

Acontece que, naquela manhã, o vento atrapalhava o trabalho do homem.

Não era uma ventania capaz de levar as folhas secas para longe, mas soprava forte o suficiente para destruir os montinhos que ele fazia.

E era um vento intermitente. Assim, em alguns momentos, o recolhedor até conseguia amontoar algumas folhas, mas, logo o vento voltava a soprar, e elas se espalhavam outra vez.

Depois de alguns minutos observando a luta do recolhedor de folhas contra o vento, o jovem percebeu que, apesar de ter o seu trabalho dificultado, o homem parecia não se abalar. A cada vez que as folhas fugiam, ele pacientemente as reunia com o ancinho, e começava tudo de novo. Sua fisionomia não expressava o menor sinal de aborrecimento.

Em um dado momento, o jovem aproximou-se do recolhedor de folhas e falou:

– O vento está fazendo o seu trabalho ser bem difícil, não? Você não se irrita com isso?

O homem sorriu antes de responder:

– Veja só… eu não posso dizer que fico feliz. Mas não tenho como parar o vento. Então, restam-me duas opções: fazer esse trabalho ou não fazer. Se escolher não fazer, vou ter que procurar outro trabalho. Pode ser que eu tenha dificuldade para conseguir um emprego, e isso vai comprometer o meu sustento e da minha família. Mesmo que eu consiga logo um emprego novo, é provável que alguma outra coisa me dificulte o serviço, como vento faz hoje em dia. Assim, acho mais inteligente continuar com esse trabalho que já venho fazendo.

– Mas eu não disse pra você deixar o emprego. Apenas perguntei se não se irrita com o vento.

– Pois era aí mesmo que eu queria chegar. Como eu não estou pensando em deixar o emprego, pelo menos enquanto não aparece outro melhor, restam-me duas opções: fazer o meu trabalho, me irritando com o vento, ou fazer a mesma coisa, sem me irritar. Se eu me irritar, o meu trabalho vai se tornar uma coisa desagradável, cansativa. De nada me adiantará repreender o vento, então, talvez eu chegue em casa mal humorado, descarregando raiva e frustração na minha mulher e nos meus filhos. No dia seguinte, é possível que já saia de casa chateado, por ter que ir para um trabalho que só me causa dissabor. Cada dia para mim será como um pesadelo. E, o vento? Vai parar de soprar por causa da minha irritação, raiva ou frustração? Não. O vento vai continuar sendo vento. Soprando e parando de soprar por razões que não têm nada a ver comigo. Então, qual a minha opção mais inteligente? Me irritar com o vento ou aceitar que ele sopre, sem me alterar?

– Sem dúvida, é mais inteligente aceitar que o vento sopre. Mas é que a irritação às vezes acontece sem a gente querer. Geralmente, quando acontece alguma coisa contra a nossa vontade, a gente fica com raiva e nem percebe…

– Pois esse é o vento que nós precisamos aprender a controlar! O que vento sopra dentro da gente. Que nos faz perder a calma quando somos contrariados. Se você não controla, ele vira ventania, vira tempestade, destrói tudo… Mas, se você o conhece e controla, pode estar o maior temporal aqui fora, dentro de nós continuará a calmaria…

– Puxa, para um recolhedor de folhas secas, o senhor é bem sábio!

– E você esperava o quê? Que eu fosse algum cabeça de vento?


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 12 de fevereiro de 2023

SALTOS IMPOSSÍVEIS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

SALTOS IMPOSSÍVEIS

Marcos Mairton

Deixando o Rio de Janeiro, em um ensolarado final de tarde, com destino a Brasília, desci do táxi e entrei no Aeroporto Santos Dumont. Não havia pressa alguma. O voo estava previsto para largas três horas depois. Teria tempo de sobra para fazer um lanche e observar o movimento, nessa fonte inesgotável de histórias que são os aeroportos.

“Todos os dias é um vaivém…”, diz a canção. E foi como se as vozes de Simone e Maria Rita disputassem um lugar em minha memória musical. É fato que a música fala de uma estação de trem; mas, de certa forma, dá no mesmo: os aeroportos são as novas plataformas para tantas chegadas e partidas, e outros tantos encontros e despedidas…

 

 

Decidido a não ter qualquer preocupação com o tempo, segui direto para o salão de embarque. Na fila do raio X, à minha frente, uma jovem tirou a jaqueta e a pôs na esteira, junto com a bolsa e o telefone celular. Usava uma calça um tanto quanto engraçada, ou pelo menos destoantes dos meus desatualizados padrões estéticos: colada ao corpo do joelho para cima, e abrindo-se em formato de cone, do joelho para baixo.

Chamou-me a atenção, ainda, o fato de ela ser mais alta que eu, característica pouco comum entre as mulheres que costumo encontrar cotidianamente.

Chegada a minha vez de passar os pertences pela máquina de raio X, pus a mala na esteira e o paletó em uma bandeja de plástico. Costumo tirar o paletó e pôr no raio X porque, assim, vão em seus bolsos meus dois telefones celulares, as chaves e outros objetos metálicos, como moedas. O notebook vai em outra bandeja, devidamente retirado da mochila e apoiado sobre ela.

Estava nessa fase do procedimento – tirando o notebook da mochila – quando ouvi uma voz feminina, logo à minha frente, demonstrando irritação.

Era a jovem de quem falei antes. Reclamava com o funcionário do aeroporto por ter que voltar e passar, novamente, pelo detector de metais. Uma luz vermelha piscava na parte inferior do portal a cada vez que ela transitava por ali.

O rapaz que controlava o equipamento tentava ser gentil, mas a moça queixava-se de já haver tirado todas as pulseiras e, até mesmo, o cinto.

– O problema é nos pés – explicava o rapaz. – Deve haver metal nos seus sapatos. Acontece muito isso…

O desentendimento entre os dois atrasava minha passagem, mas isso não chegava a ser um incômodo. Afinal, ainda restavam duas horas e quarenta e cinco minutos para o meu embarque.

Apesar dos protestos e da impaciência cada vez maior, a viajante acabou aceitando tirar os seus sapatos. Acomodou-se em um banco – aparentemente, posto naquele espaço para aquela exata finalidade – e pôs-se a descalçar, ali mesmo.

Foi, então, que contemplei os maiores saltos de sapatos que já pude ver em toda a minha vida!

A parte da frente, onde se apoiam os dedos e os metatarsos, deveria ter uns vinte centímetros de altura; os saltos propriamente ditos – que, em condições normais de temperatura e pressão, servem para apoiar o calcanhar – chegavam, facilmente, a uns trinta centímetros.

Não sei se a irritação da moça tinha alguma relação com o fato de ela ter que circular por ali, exibindo sua altura real. Aos meus olhos, a redução da estatura era algo que não a diminuía em nada – perdoem-me o trocadilho. Mas as pessoas têm suas preferências estéticas e, no caso, a diferença era bem grande.

Com os pés descalços, ela cruzou o portal do detector de metais, agora, sem acionar qualquer alarme. Pegou de volta seus sapatos com saltos gigantes, que haviam sido postos na esteira do raio X, e os calçou novamente. Ocultos sob sua calça engraçada – de pernas com bocas de sino –, ninguém suspeitava que eram eles que faziam a jovem ficar tão alta.

Se alguém me houvesse mostrado aqueles calçados na vitrine de uma loja, acharia que eram apenas uma peça decorativa. Como aqueles calçados conceituais, criados por grandes estilistas, para lançarem suas coleções, mas que são de uso improvável. Teria certeza de que ninguém seria capaz de andar equilibrando-se naquelas coisas.

Mas, ela andava. E rápido. O tempo que gastei repondo o notebook na mochila e vestindo novamente o paletó foi suficiente para que a moça dos saltos impossíveis sumisse na multidão.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 06 de fevereiro de 2023

VALE A PENA LER DE NOVO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAMUNDO FLORIANO)

 

VALE A PENA LER DE NOVO

Marcos Mairton

Na semana passada, o leitor Sancho manifestou, em comentários a esta coluna, certa decepção, por esperar um texto mais “caliente”, com lindas quadrigêmeas vietnamitas a lhe acalentar os pés.

Por coincidência, naquele mesmo dia eu estava trabalhando em um conto, cuja trama conta com corações bem mais aquecidos que os ‘Saltos Impossíveis”. Imediatamente pensei: é esse o novo conto que vai para a coluna no JBF esta semana!

Mas fui vencido pelos afazeres cotidianos e ainda não consegui terminar o conto.

Então, para não deixar Sancho e os demais leitores sem leitura esta semana, resolvi republicar um texto que foi escrito originariamente para esta coluna, mas hoje faz parte do livro “A manicure e outros casos de amor e traição”.

Quem não leu ainda, poderá ler agora. Para quem já leu, acredito que vale a pena ler de novo.

* * *

ENTRE AMIGOS

– Tenho um assunto meio delicado pra falar contigo – disse o Pereira ao Roberto, no meio da tarde da sexta-feira. Estava calmo, mas o olhar deixava escapar certa preocupação.

– Precisa ser agora ou pode ser depois do expediente?

– Pode ser depois. Sem problema.

– Tem happy hour hoje no Panela Velha. Será que dá pra gente conversar lá?

– Melhor não. Podemos dar uma passada no Bar da Tia Noélia? Depois a gente segue pro Panela.

– Beleza! – concordou o Roberto sorrindo, mas percebendo o tom preocupado do amigo.

No final da tarde, saíram do trabalho juntos e foram ao local combinado. Apesar do jeito sério como o Pereira falara horas antes, mantinham certa descontração.

Conheciam-se há mais de cinco anos, desde que o Roberto começou a trabalhar na empresa onde o Pereira estava há dez. Tornaram-se amigos rapidamente e era comum beberem juntos após o expediente. Geralmente iam com outros colegas de trabalho a um lugar – meio bar, meio restaurante – chamado Panela Velha, próximo à empresa. Mas, às vezes, saíam só os dois, principalmente se queriam conversar sobre temas mais reservados, como problemas de família ou aventuras com mulheres.

Se bem que, nesse segundo aspecto, quem sempre tinha alguma novidade para contar era o Roberto. Depois de haver passado por dois casamentos, vivia agora em uma união “quase estável”, como ele mesmo definia.

 

Já o Pereira, casado com a mesma mulher há quase vinte anos, limitava-se a ouvir e admirar a facilidade com que o amigo renovava as companhias femininas.
Depois de uns goles de cerveja e amenidades, o Pereira introduziu o assunto que motivara aquela conversa particular:

– Beto, eu queria ouvir a tua opinião sobre uma situação que um amigo meu está passando. Só que ele me pediu que eu não contasse pra ninguém, então eu não vou poder dizer de quem se trata. Pode ser?

– Claro, Pereira. E nem se preocupe, que eu não vou insistir pra você dizer quem é. Segredo é segredo.

– Pois é o seguinte. Esse meu amigo acha que está sendo traído. E, sendo bem sincero, eu não disse pra ele a minha opinião, mas acho que está mesmo…

– Pereira, tem um detalhe aí – interrompeu o Roberto. – Tudo bem que você queira falar do milagre sem dizer o nome do santo. Entendo e respeito. Mas, se esse “amigo” for um de nós dois, é melhor abrir o jogo…

– Que é isso, Beto? Se fosse um de nós dois, eu iria direto ao assunto! Não, amigo, não é de você nem de mim que estou falando. Se um de nós dois é corno, pode ter certeza de que eu não estou sabendo de nada.

– Nem eu… – emendou o Roberto sorrindo.

O Pereira também riu, mas parecia inquieto, talvez ansioso para chegar ao ponto central da conversa. Tomou um gole de cerveja e continuou:

– Ok. Então, vamos adiante. O caso é que esse meu amigo veio me dizer que a esposa anda com uns comportamentos estranhos, uns sumiços. Ele está pensando em investigar. Eu até acho que ele devia fazer isso mesmo. Só que eu tenho quase certeza que o cara que tá pegando a mulher dele é meu amigo também…

– Sério, Pereira? E um conhece o outro?

– Eles se conhecem, sim. Não são amigos… assim, de saírem juntos, mas têm algum contato e até se dão bem.

– E aí? O que você disse pro cara?

Pereira respirou fundo antes de responder:

– Por hora, disse só que ele observasse melhor e tivesse calma. Mas estou com uma preocupação danada que ele descubra tudo e dê merda… Se for como estou pensando, até o ambiente lá na empresa vai ficar ruim…

– Que coisa, Pereira! Quer dizer que o negócio é com colegas nossos! Não seria o caso de alertar o “Ricardão”?

– Era o que eu tava pensando em fazer. Mas fico me sentindo meio traidor… O cara me abre uma informação dessas, e eu levo para o outro lado?…

– Mas, é por uma razão nobre, amigo! Pra evitar uma tragédia…

– Com certeza, é um risco. Mas ainda tem outro detalhe. Apesar de o “Ricardão” ser muito amigo meu, ele não chegou a me dizer que está pegando a mulher do outro colega. Comentou que tá com um esquema novo, mas não disse quem era. Eu, que já tinha notado uns sinais, percebi o que estava acontecendo, mas fiquei sem jeito pra tocar no assunto com ele.

– Entendo. Se ele não quis lhe dizer, não lhe cabe perguntar…

– Isso mesmo! Porque, Roberto, veja bem. Você é amigo meu de longa data. Outro dia, você mesmo comentou comigo que estava saindo com uma mulher casada. Mas não deu nenhuma outra pista de quem seja. Você viu que eu não perguntei nada, porque penso exatamente assim: se você não quis me dizer é porque tinha razão pra isso. Mas é claro que fiquei imaginando se ela ou o marido não seriam pessoas do nosso círculo de amizades. Porque, afinal, se os envolvidos fossem pessoas alheias à minha convivência, você certamente me diria, como já disse outras vezes…

– É verdade…

– Já se fosse alguém próximo… por exemplo, o Mauro. O Mauro é nosso colega, mas é mais amigo meu do que seu. É gente boa. A mulher dele não é bonita, tudo bem, é até meio feia, mas é gostosa…

– Não acho ela feia, não. O conjunto é bom…

– Ok. O conjunto é bom – continuou o Pereira. – A gente vê isso toda vez que ela vai buscar ele lá no Panela. Você já viu, né? O Mauro, bêbado, senta no banco do passageiro; ela se abaixa pra prender o cinto de segurança dele; e a gente fica olhando para a melhor parte do conjunto. É ou não é?

Roberto acenou com a cabeça, concordando. O Pereira prosseguiu:

– Pois bem. Eu acho que a Mulher do Mauro, sabendo da amizade que eu tenho com ele, não daria mole pra mim. Se desse, eu me esquivaria. Mas, e se ela desse mole pra você? Você talvez pegasse. Arrisco dizer que pegaria, sem remorso. Pegava ou não pegava?

– Talvez, Pereira. Quer dizer… Talvez eu ficasse em dúvida, porque o cara trabalha ali, com a gente… Mas, sinceramente, só pela relação de trabalho que eu tenho com ele… Eu não deixaria de pegar por causa disso, não…

Pereira parecia ansioso para lançar a próxima pergunta:

– Então? Agora, diga, com a mesma sinceridade: se você estivesse enrolado com a mulher do Mauro, você me falaria?

Roberto refletiu por alguns segundos. Depois falou pausadamente:

– Sinceramente, Pereira. Não falaria, não. Não que eu tivesse medo de você contar a ele. Mas é que eu acho que você iria dizer que eu não fizesse isso, que eu tinha que me afastar imediatamente…

– Bingo! – exclamou o Pereira, dando um tapa na mesa, que fez várias bolhinhas dos copos de cerveja subirem ao mesmo tempo, até espocar na superfície.

Depois começou a falar como se passasse um pito no Roberto, mas em volume muito baixo, quase sussurrando. Chegou a inclinar o corpo em direção ao amigo, como para se certificar de que ninguém mais no bar ouviria aquela parte da conversa:

– Claro que eu ia te encher o saco, porra! Como é que tu achas que eu iria me sentir, se eu soubesse de um negócio desses? Um amigo como o Mauro, por quem eu tenho a maior consideração, sendo traído! E eu, convivendo com ele todo dia no trabalho, sabendo de tudo! Sabendo inclusive que o amante era outro camarada mais amigo ainda. Ia ser uma merda!

– Pô, Pereira, é verdade. Então seria melhor não te dizer mesmo…

– E eu entenderia perfeitamente. Mas, vamos complicar mais a situação. Suponhamos que o Mauro dissesse pra mim que ia contratar um detetive. Seria certo eu não lhe alertar?

– Pelo amor de Deus, Pereira! Nesse caso, você teria que me avisar, urgente.

– Pois é. Era essa a situação que eu precisava falar contigo. Esse meu amigo (que eu não disse que é o Mauro) acha que está sendo traído. E me disse que pretende contratar um detetive pra seguir a mulher. Agora me diga: se a mulher casada que você vem pegando ultimamente (que eu não estou dizendo que é a mulher do Mauro) for a esposa desse amigo desconfiado de quem falei? Esse, que pode até ser o Mauro, mas ninguém confirmou que seja? Não seria bom você saber?

– Seria, meu amigo, seria. Vou te dizer uma coisa, Pereira: é nessas horas que a gente conhece uma amizade verdadeira! Faça o seguinte: dê um apoio a esse seu amigo desconfiado. Esse que você não disse que é o Mauro. Se for o caso, até vá com ele conversar com o detetive. Faça isso: ajude seu amigo a tirar isso a limpo. E não se preocupe comigo. Quer saber? Eu já tô até com remorso, por estar pegando uma mulher casada. Não que seja a mesma. Não é isso que estou dizendo. Embora ela seja mesmo casada com um amigo…

– Não dê mais pista, não, Betão. Vamos deixar isso pra lá…

– Então, tá certo. Deixemos isso pra lá. Vamos fazer um brinde à nossa amizade e tocar o barco pra frente!

Roberto falou as últimas palavras sorrindo e enchendo novamente o copo de cerveja. Estava feliz por ver confirmada a lealdade do amigo. Pereira também relaxou:

– Beleza, Betão! Assim é que se fala!

– Isso é nada, rapaz! Vamos tomar a saideira, que ainda dá tempo de encontrar o resto do pessoal lá no Panela.

O assunto estava encerrado. Tomaram a saideira, pagaram a conta e foram-se.

A vida seguiu o seu curso normal. O trabalho, os encontros regados a cerveja com os colegas, os olhares para a parte de trás da mulher do Mauro, quando ela ia buscar o marido bêbado ao final do happy hour.

Umas quatro sextas-feiras depois, quando deixavam o tradicional encontro com os colegas no restaurante Panela Velha, Roberto perguntou ao Pereira como tinha ficado o caso do amigo traído.

Pereira disse que o detetive fora contratado, mas não havia descoberto nada. Uma semana seguindo todos os passos da mulher e ela frequentara apenas shopping centers, lojas de decoração, uma academia de ginástica e o próprio trabalho dela. O amigo dizia que só não lamentava o dinheiro gasto, porque recuperara a confiança na esposa e a própria paz de espírito.

Depois de dar todos os detalhes, sem dar o nome de nenhum dos envolvidos no caso, Pereira forçou uma mudança de assunto:

– E o futebol de amanhã, Beto, lá no sítio do Batista? Tu vais?

– Tô com vontade. Vai ser departamento contra departamento?

– Vai. Mas, se algum time ficar muito fraco a gente mistura.

– Beleza! – animou-se o Roberto.

E já começava a se despedir, quando fez uma pausa e perguntou:

– Só mais uma coisa, Pereira…O Mauro vai?

– Disse que vai.

E despediram-se. No dia seguinte, os colegas de trabalho reuniram-se para a prática do esporte preferência nacional.

Cerveja e churrasco depois do jogo. A animação de costume. Alguns deram pela falta do Roberto, que acabou não aparecendo. O Pereira explicou que, na última hora, ele tinha mandado uma mensagem para o seu celular, avisando que não poderia comparecer. Tinha amanhecido com diarreia.

– Eu também não acordei muito bem – completou o Mauro. – Será que o Roberto comeu o mesmo que eu comi?

Ninguém respondeu.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis terça, 31 de janeiro de 2023

A ESTÁTUA DE ARIANO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A ESTÁTUA DE ARIANO

Marcos Mairton

É difícil até de crer
Não ter sido por engano
Que alguém veio a cometer
Esse ato vil e insano,
Que foi o de derrubar,
Jogar no chão e quebrar
A estátua de Ariano.

O Mestre Ariano estava
Conosco até outro dia.
E a todos nós encantava
Com a arte da poesia.
Ter sua estátua quebrada,
Covardemente atacada,
O Mestre não merecia.

O seu nome está gravado
Na memória nacional,
Em um lugar destacado
Do cenário cultural.
Pois misturou, sem conflito,
Popular com erudito
Na expressão Armorial.

Mestre Ariano, é bem triste
Ver tua estátua caída.
Mas a cultura resiste
E não se dá por vencida.
Derrubar o monumento
Não apaga o teu talento
Nem tua história de vida.

 

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 25 de janeiro de 2023

O TELEFONEMA DO MINISTRO (CRÔNICA D MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMNDO FLORAIANO)

 

O TELEFONEMA DO MINISTRO

Marcos Mairton

 

Quarta-feira passada (21-10-2020), o Senado Federal aprovou a indicação do Desembargador Federal Kassio Nunes Marques para a cadeira deixada vaga pelo Ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal.

O fato me fez lembrar um conto que publiquei há quase três anos, e que alguns amigos juram que é baseado em fatos reais.

Não é. É ficção. Claro que em toda ficção há algo de realidade. Como em toda narrativa que se pretende verdadeira há um pouco de ficção (até no depoimento de uma testemunha, sob juramento).

Mas penso que, ao escrever um conto, o autor deve saber se está adaptando um fato real para a ficção, ou se está criando uma narrativa simplesmente imaginada, inserindo nela elementos de realidade.

O conto a seguir é dessa segunda espécie. Garanto.

Portanto, não fiquem perguntando nos comentários quem é Genário, porque essa pessoa não existe no mundo real.

Vamos ao conto.

* * *

AMIZADE SEM INTERESSE

Brasília, 23 de fevereiro de 2017. Circunstâncias alheias ao meu controle levaram-me a almoçar em um restaurante tipo self-service, naquele horário que aparentemente toda a população da cidade resolve se alimentar: entre 12:30 e 13:30.

Feita a pesagem da comida, fiquei com prato e talheres na mão, procurando uma mesa vaga. Ou, pelo menos, uma vaga em alguma mesa, embora não me agrade almoçar ao lado de pessoas totalmente desconhecidas.

Foi então que notei a presença de um conhecido meu, ocupando sozinho uma mesa de quatro lugares. Aproximei-me cumprimentando-o:

– Doutor Genário! Tudo bem? Posso me acomodar por aqui? Ou tá esperando alguém?

– Não, não… Senta aí – respondeu ele sem muito entusiasmo.

Achei compreensível sua reação. Como alertei já no princípio, não era um amigo que estava ali, mas apenas um conhecido. Desses que a gente encontra eventualmente em solenidades e lançamentos de livros. Talvez quisesse almoçar sozinho, planejando o que faria à tarde, olhando as mensagens no celular. Ou, por qualquer outra razão, preferisse não ter ninguém compartilhando sua mesa. Ainda mais alguém como eu, com quem não tinha intimidade, mas que sua boa educação recomendaria dar alguma atenção.

O certo é que, sendo ele uma pessoa bem educada, e precisando eu de um lugar para sentar, passamos a dividir a mesma mesa, em um clima cordialidade protocolar.

Prosseguiu assim por alguns minutos, até que meu celular tocou.

Não costumo atender a ligações enquanto estou almoçando, mas vi que se tratava de um amigo de longa data, Alexandre Monteiro, advogado em Fortaleza, que há semanas não dava notícias.

Desde que mudei para Brasília, em 2016, para atuar como juiz instrutor do Superior Tribunal de Justiça, esse amigo, em tom de gozação, passou a me chamar de Ministro. E eu, devolvendo a brincadeira, trato-o por Ministro também.

Atendi:

– Ministro Alexandre! Onde é que você anda, amigo?

Alexandre respondeu como de costume. Que andava muito ocupado, com muitos processos, viagens, etc. Na verdade, o que importa aqui não é o que conversamos, mas a reação do conhecido que compartilhava comigo a mesa do restaurante.

A partir do momento em que atendi o telefone, doutor Genário passou a olhar para mim com particular interesse. Como se quisesse participar da conversa telefônica. Sem entender seu comportamento, continuei a ligação, mas observando sua linguagem corporal.

A certa altura da conversa, Alexandre convidou-me para o aniversário da sua filha, e eu, no tom formalesco que costumamos brincar, perguntei:

– E quando é a solenidade, Ministro?

Ao ouvir aquela pergunta, doutor Genário abriu um sorriso, inclinou-se em minha direção e perguntou num sussurro:

– É o Ministro Alexandre de Moraes?

Revelava-se, assim, o motivo do súbito interesse do meu comensal pelo telefonema que eu acabara de receber: aconteceu que, no dia anterior, o Ministro Alexandre de Moraes, recém indicado para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal, havia tido seu nome aprovado pelo Senado Federal, após a regulamentar sabatina; aparentemente, o doutor Genário deduziu que sua excelência acabara de telefonar para mim, e, pelo andar da conversa, deveria estar me convidando para sua posse na Corte Suprema.

Diante de tamanho interesse do Doutor Genário por assuntos ministeriais, faltou-me coragem para lhe causar algum tipo de frustração. Assim, no mesmo instante em que, ao telefone, confirmava presença no aniversário para o qual acabara de ser convidado, olhei para o meu companheiro de refeição e levantei o polegar, em sinal de positivo.

E, admito, não me limitei a isso. Penitencio-me até hoje por tal conduta, mas, a partir daí, passei a induzir deliberadamente o doutor Genário a erro, desejando a Alexandre sucesso nos desafios, e lembrando-lhe de não permitir que o trabalho nos impeça de tomar umas cervejas juntos, de vez em quando.

Ao final daquela ligação, doutor Genário estava mais sorridente, conversando mais e comendo menos. Antes de ir embora, fez questão de trocarmos cartões de visita, embora já houvéssemos feito isso em ocasião anterior (não sei se ele lembrava disso).

No dia seguinte, às 10:45 da manhã, doutor Genário enviou uma mensagem para meu celular: “Caro amigo, almoçarei hoje naquele mesmo restaurante de ontem. Caso você chegue depois, saiba que seu lugar na minha mesa está reservado”.

Respondi a mensagem, agradecendo a gentileza, mas fui fazer a minha refeição em outro lugar.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 18 de janeiro de 2023

AVES PRETAS E POETAS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AVES PRETAS E POETAS

Marcos Mairton

É grande e justa a fama do poema de Edgar Allan Poe, “O Corvo” (The Raven), de 1845.

Um poema narrativo, cheio de suspense e mistério, que fala de um insólito encontro entre alguém que está sozinho em casa, em uma noite fria de dezembro, e a ave, que chega de surpresa.

Tendo sido vertido para vários idiomas, conta com traduções para a língua portuguesa assinadas por ninguém menos que Fernando Pessoa (clique aqui para ler) e Machado de Assis, em O Corvo

Mais recentemente, na década de 1970, nosso saudoso conterrâneo Belchior juntou Allan Poe com Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, ao por o Corvo na companhia do Assum Preto, em sua canção “Velha roupa colorida”:

Como Poe, poeta louco americano
Eu pergunto ao passarinho
Black bird, assum preto, o que se faz?
Raven, never, raven, never, raven, never, raven, never, raven
Assum preto, pássaro preto, black bird, me responde: Tudo já ficou atrás
Raven, never, raven, never, raven, never, raven, never, raven
Black bird, assum preto, pássaro preto, me responde:
O passado nunca mais.

Pois também eu me inspirei no Corvo, ao encontrar, empoleirada no telhado da minha casa, outra ave. Também preta, também misteriosa.

 

O URUBU

Inspirado no poema “O Corvo” (The Raven), de Edgar Allan Poe

Certo dia, numa tarde ensolarada,
Regressava ao meu lar, minha morada.
Quando, ao chegar à frente do portão,
Surpreendeu-me a insólita visão
De um grande e majestoso ser alado.
Que, ali, postado ao topo do telhado
— a um só tempo, próximo e distante —
Como estátua, das que habitam os portais,
Em silêncio, sério, sóbrio e elegante,
Olhava-me apenas, e nada mais.

Observando a imponente figura,
Com sua plumagem quase toda escura,
Veio-me a ideia de que aquela imagem
Bem poderia ser a de um personagem,
Já conhecido, de outro tempo e lugar.
Lembrava eu, então, do corvo de Edgar.
Que em sua casa, entrou, num certo dia,
De ventos frios, quase glaciais.
E às perguntas do poeta respondia
Sempre a resposta mesma: “Nunca mais!”

Imaginei, mas só por um momento
Fez-me sentido aquele pensamento,
De que a ave sobre o meu telhado
Fosse o corvo em versos retratado
Pelo famoso poeta americano.
Rapidamente, reparei o engano,
Pois que lembrei, olhando o céu azul,
De um detalhe sobre esses animais:
Corvos não há na América do Sul,
Se um dia houve, hoje não há mais.

Assim, ficou, de plano, esclarecido,
Que a ave que houvera ali surgido
Não era corvo. E, de fato, a olho nu,
Bem se via se tratar de um urubu.
Um urubu que, abrindo suas asas,
Sobrevoou, decerto, muitas casas,
Até que veio a pousar na minha,
Muito embora ali houvesse outras tais.
Um urubu, que não se sabe de onde vinha,
Simplesmente estava ali, e nada mais.

Mas, mesmo resolvida essa questão,
De que a ave ali pousada não
Seria o corvo, o corvo tão famoso,
Continuei intimamente desejoso,
De que o ser, de tão escuras penas,
Não fosse um simples urubu, apenas,
Mas uma ave que então respondesse
Minhas perguntas, quem sabe outras mais.
Que eu, depois, em versos escrevesse
Ainda que somente repetindo: “nunca mais”.

Pensando assim, passei a indagar:
Ó, ave misteriosa, podes me falar
Do que tens visto quando estás voando?
Ou do que chega aos teus ouvidos quando
Planas tranquilo em grandes altitudes?
Conta-me, pois, se entre tuas virtudes
Está a generosidade de dizer
Aos que não voam – como nós, pobres mortais –
Coisas que somente hão de saber
Os que alcançam altitudes colossais!

Mas o urubu calado permanecia.
Se tinha algo a dizer, não me dizia.
Talvez guardasse íntimos segredos,
Talvez apenas escondesse medos,
Por estar pousado, e não voando.
Enquanto eu, já me impacientando,
Deixei transparecer que era presa
De um dos sete pecados capitais:
“Fosse eu poeta de maior grandeza,
Tu certamente falarias mais!”.

Mas até o meu insulto foi ignorado.
E o urubu permaneceu calado.
Ao contrário do corvo, em Baltimore,
Que respondia sempre “nevermore”
A cada indagação de Edgar.
Conformei-me, desisti de perguntar.
E, amuado, me calei também.
E, sem dizer sequer um “nunca mais”
Parecendo mesmo demonstrar desdém,
A ave foi-se em ventos termais.

Passou o tempo e esqueci o ocorrido
Até que um dia tudo fez sentido:
Não foi por má educação ou desrespeito
Que o urubu se comportou daquele jeito.
Explico: anos depois fiquei sabendo,
Em obra de ornitologia que andei lendo,
Que, na verdade, por não ter siringe,
– órgão das aves, de funções vocais –
Permanecia a ave, tal qual uma esfinge,
Em seu silêncio, sem falar jamais.

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 08 de janeiro de 2023

METAIS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

METAIS

Marcos Mairton

Confesso que hesitei antes de escrever este conto. E hesitei mais ainda em publicar. Pela sua carga de violência. Não gosto de contar histórias violentas.

Mas, como já disse em várias oportunidades, às vezes os personagens de um conto me aparecem em sonho, pedindo para que eu conte suas histórias. E, nesse caso, um dos personagens insistiu muito. Primeiro, pedindo que eu escrevesse o texto, depois, que o publicasse. Ao todo, foram mais de uma dúzia de aparições, praticamente implorando que o caso fosse exibido em linguagem escrita.

Acho que ele me venceu pelo cansaço. Não quero mais sonhar com isso.

Eis, portanto, o texto encaminhado para publicação.

Apenas advirto: SE VOCÊ É UMA PESSOA CUJA SENSIBILIDADE RECOMENDA NÃO LER HISTÓRIAS VIOLENTAS, PARE DE LER AQUI.

Feita a advertência, vamos aos fatos.

Em uma manhã ensolarada de um dia qualquer, no meio da semana, um rapazinho, de seus dezesseis anos, caminhava em uma praça com seu cãozinho. Era um animalzinho pequeno e peludo, talvez um maltês ou um shitszu. Com a coleira presa a uma guia retrátil, às vezes se adiantava em relação ao seu humano, às vezes ficava um pouco para trás.

O rapaz, com algumas espinhas e muitas sardas no rosto branco, tinha o cabelo grande o suficiente para esconder um pouco dos olhos, mas não para chegar até os ombros. Parecia não ter se penteado naquela manhã. Vestia uma bermuda de estampa camuflada – aparentemente folgada para seu corpo franzino – e comprida, cobrindo suas pernas finas até a altura dos joelhos. A camiseta branca, surrada, com uma frase qualquer no peito, em inglês, bem poderia ser uma espécie de pijama. Nos pés, sandálias de borracha, dessas chamadas japonesas, com uma parte que se prende entre o dedão e o indicador.

Seguiam em plena harmonia, com as devidas pausas para o pequeno animal farejar alguma coisa ou fazer suas necessidades fisiológicas. Não demorou até o rapaz tirar um saco plástico de um dos muitos bolsos da sua bermuda, recolher dejetos sólidos do seu amigo canino e os depositar em um cesto de lixo. Depois seguiram em seu passeio matinal.

Estavam nisso, quando o rapazinho percebeu um sinal de perigo. Em sentido contrário, vinha um homem, de uns 30 anos, também acompanhado de um cão. Fisicamente bem mais forte que o rapaz, usava apenas calção e tênis. Aparentemente, havia saído de casa sem camisa, não pela falta da peça em seu guarda-roupa, e sim para exibir a pele bronzeada e a musculatura do tórax e dos braços.

Mas não era a compleição física do homem que havia gerado tensão no rapaz. O problema era o cão que o acompanhava: um pitbull, desses que metem medo mesmo quando estão presos em uma jaula de ferro.

Era um cão de pernas relativamente curtas, como costumam ser os pitbulls. O dorso mal chegava à altura do joelho do seu condutor, mas o peito largo e o pescoço grosso davam uma ideia da força daquele animal. Tinha o pelo marrom – salvo uma parte branca no peito – e olhos castanhos, o que fazia com sua cabeça parecesse a de uma estátua de bronze.

O rapazinho que caminhava com o shitzu (ou talvez um maltês) provavelmente não viu de imediato essa parte da cor dos olhos, por causa da distância que havia entre eles no momento do encontro, uns 80 a 100 metros. Mas deve ter percebido que o pitbull parou de andar e se postou com o corpo ereto e as orelhas e a cauda erguidas. Na linguagem corporal canina, isso significa estado de alerta. Ou, mais precisamente, que avistara o cãozinho. E que o via como um alvo.

O jovem também parou. Deu um rápido puxão na guia do seu bichinho de estimação, sinalizando sua parada, e olhou para os lados, como se pensasse em mudar de direção.

Mas isso durou apenas um instante. Porque, no instante seguinte, ele olhou novamente para a frente e percebeu que o pitbull já vinha, em desabalada carreira, em sua direção.

Não foi possível identificar se o animal havia se soltado, ou se já passeava solto. Sabe-se apenas que o seu dono continuava caminhando lentamente, como se não houvesse percebido o ataque. Trazia em uma das mãos uma grossa corrente de aço inoxidável, a qual, presume-se, deveria estar presa ao pescoço do seu cão.

Enquanto isso, o cãozinho peludo já sentia a pressão das presas do pitbull em seu pescoço, enquanto era sacudido de um lado para o outro violentamente. Sua sorte parecia definida, quando algo inesperado aconteceu.

Sem muita pressa, e demonstrando total segurança em seus movimentos, como se fossem ensaiados, o rapazinho largou a guia, pôs a mão direita em um dos bolsos laterais de sua bermuda camuflada e sacou de lá uma pequena faca dobrável, consideravelmente pontiaguda.

Com surpreendente habilidade no uso do instrumento perfurocortante, o jovem desdobrou a faca, agachou-se e moveu a lâmina de baixo para cima, cravando-a no abdômen do pitbull, próximo às costelas. Depois, fez um movimento horizontal, rasgando a barriga do animal, desde o ponto da perfuração até a sua genitália.

Talvez pelo efeito da adrenalina em seu corpo, o pitbull não deu o menor sinal de que a perfuração houvesse lhe causado dor. Simplesmente caiu para o lado, debatendo-se, enquanto seu sangue e seus intestinos espalhavam-se pelo chão da praça.

Agora seu dono havia apertado o passo, e estava a uns dez metros do local do incidente. Olhos arregalados, boca aberta, parecia não acreditar na cena à qual acabara de assistir.

O rapazinho, então, com a mão, o braço, o rosto e a camiseta sujos de sangue, ficou novamente de pé, ergueu no ar a faca e gritou:

– Para o animal bravio, o aço frio!

Ao ver aquela cena, o dono do pitbull parou assustado. Demorou alguns segundos antes de ser tomado por ira e iniciar uma reação:

– Filho da puta! Tu matou meu cachorro! – gritou.

Transformando em arma a corrente que trazia à mão – e que poderia ter evitado todo esse problema – partiu em direção ao jovem, dando sinais de intenções nada pacíficas.

Mesmo diante daquela demonstração de fúria, o rapazinho, mais uma vez, não se abalou. Guardou a faca no mesmo bolso de onde a retirara minutos antes, e, enquanto levantava a camisa com a mão esquerda, procurava, com a direita, alguma coisa na parte de trás da sua cintura.

Retirou dali uma pistola preta, não muito grande. Engatilhou-a e disparou contra o dono do pitbull, que a essa altura estava a não mais que três metros de distância.

Foram dois disparos no peito. Enquanto o homem agonizava no chão da praça, o rapazinho aproximou-se dele calmamente. Ergueu a mão que segurava a arma, e disse, em voz alta, mas com uma serenidade assustadora:

– Para o humano inconsequente, o chumbo quente.

Pronunciadas aquelas palavras, guardou a arma, pôs carinhosamente nos braços o seu cãozinho ferido, e saiu caminhando lentamente, como se nada houvesse acontecido.

Próximo da esquina, havia um carro estacionado, de onde saiu uma mulher de uns 50 anos, que o abraçou e verificou os ferimentos do cãozinho.

Depois, todos embarcaram no veículo e deixaram o local.

A polícia chegou minutos depois, pedindo informações aos transeuntes sobre o ocorrido, mas não conseguiu nada relevante. Mesmo no prédio em frente à praça, de onde algum morador na janela poderia ter filmado tudo com o celular, os investigadores não conseguiram nenhuma pista.

Tudo que se sabia era que se tratava de um rapazinho de aparência inofensiva, mas que sabia matar. E que, conforme a natureza dos seus inimigos, escolhia o metal com o qual lhes tiraria a vida.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 01 de janeiro de 2023

AINDA O VÍRUS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AINDA O VÍRUS

Marcos Mairton

 

Escrevo no dia 9 de novembro de 2020. Quase oito meses atrás, publiquei uma crônica na qual falei do modo de vida que havia adotado após a chegada da pandemia do coronavírus ao Brasil.

Na época, diante dos fatos noticiados na imprensa a respeito do assunto, anunciei as metas que norteariam a minha conduta. A meta principal: não contrair a doença. A meta alternativa: contraindo-a, não a transmitir a ninguém.

Também comentei, na referida crônica, o quão diferente havia se tornado uma simples ida ao supermercado. Falei de luvas, álcool em gel e cuidados com a desinfecção dos produtos adquiridos. Práticas que repentinamente haviam sido incluídas no meu cotidiano.

Não falei de máscaras, porque estas apenas se incorporariam ao nosso vestuário semanas depois. Menos pelas tentativas de imposição dos governos, e mais pela nossa crença nas opiniões dos especialistas, divulgadas a toda hora nos meios de comunicação.

Aqui no Brasil, somente em julho entraria em vigor a Lei Federal 14.019/2020, tornando obrigatório o seu uso, mas a depender de regulamentação a ser estabelecida pelo Poder Executivo federal.

Desconheço se houve tal regulamentação. Sei que, mesmo antes da publicação da Lei 14.019/2020, já se tinha notícia da edição de decretos estaduais e municipais estabelecendo punições a quem circulasse sem máscara em espaços públicos. Tenho dúvidas quanto ao valor jurídico desses decretos, ante o disposto no art. 5º, II, da Constituição Federal:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Mas meu objetivo aqui não é fazer uma análise jurídica da suposta obrigatoriedade do uso de máscara no Brasil. Talvez faça isso em um futuro breve, mas não hoje. Hoje, minhas reflexões não estão no dever-ser das normas jurídicas, e sim no ser-e-acontecer do dia a dia.

Porque na semana passada fiz algo que há meses não fazia: fui almoçar em um restaurante. E ainda me é estranho ver mesas deliberadamente deixadas vazias, para que os comensais mantenham-se distanciados; observar pessoas usando máscara enquanto caminham entre as mesas; ter a temperatura do corpo medida na chegada ao estabelecimento.

Medidas que talvez estejam funcionando. Afinal, nos últimos três meses, apesar da reabertura de inúmeros estabelecimentos comerciais, há uma nítida tendência de queda na quantidade de novos casos e novos óbitos confirmados no Brasil por COVID-19.

Fonte: G1

Por outro lado, pode não ser nada disso. Pode ser que esses números estejam caindo simplesmente porque muita gente já foi contaminada e muita gente já morreu. A tal imunização de rebanho. Quem sabe? Embora reconheça a minha imensa ignorância na área, cada vez que tento ler sobre o assunto, encontro informações desencontradas e até contraditórias.

Então, o que me resta é observar o que acontece ao meu redor.

Olhar as pessoas em volta e imaginar quem entre nós carrega consigo o corona vírus. Nas mãos, nas roupas, na sola dos sapatos, nas entranhas… Quem de nós é seu hospedeiro? Quem de nós já o teve em suas células e hoje ostenta a tão sonhada imunidade? Talvez permanente, talvez temporária…

No restaurante, semana passada, ficamos certos de que a nossa mesa estava livre dessa presença non grata, porque a jovem que nos atendeu teve o cuidado de espalhar álcool na superfície de madeira. Mas como saber se eu mesmo não levei o vírus comigo, na minha própria roupa ou no meu telefone celular?

O fato é que ele pode ter grudado no meu tênis da última vez que saí para passear com meu cachorro – ou no cachorro mesmo – e estar atualmente no tapete da minha sala. Ou no sofá, ao meu lado, enquanto vejo um jogo de futebol na TV.

O leitor que chegou até este ponto tem motivo para pensar que, se até aqui escapei do vírus, não consegui me defender de uma psicose. E agora ando por aí assustado, sentindo pavor de um inimigo invisível, que me espreita a cada passo.

Curiosamente, isso não acontece. Depois de sete meses dessa nova realidade que o vírus nos impôs, entristeço-me com as centenas de milhares de famílias que perderam seus entes queridos, mas me sinto bem mais sereno em relação ao risco de contrair a doença e sofrer os seus tão variados efeitos.

Continuo mantendo os cuidados com a lavagem das mãos e o uso do álcool nas compras do supermercado, mas sem a tensão dos primeiros meses. O trabalho em regime de home office continua me permitindo sair de casa apenas quando necessário, mas essas saídas já não causam tanto estresse.

Como se o novo corona vírus fosse (e parece que é) apenas mais um ser que compartilha conosco a vida na superfície do nosso planetinha azul. Um ser que tem antecipado a morte de muitos da nossa espécie, e dá sinais de que pode continuar a fazer isso por um tempo cuja duração ainda se desconhece. Mas sobre o qual estamos a cada dia aprendendo mais.

Pode ser que em breve tenhamos uma vacina. As notícias mais recentes apontam para isso, nos enchendo de esperança. Mas também pode ser que demore. Pode ser até que nenhuma das que estão sendo testadas funcione satisfatoriamente.

Independentemente de alguma dessas possibilidades se tornar realidade, o que me parece cada vez mais claro é que a suspensão de atividades econômicas vai se tornando uma providência cada vez menos viável. E de eficácia duvidosa. Se nos primeiros meses da pandemia o “fique em casa” fez sentido, o fato de o número de óbitos vir decrescendo após a reabertura do comércio pode indicar o contrário.

Quem pode afirmar essas coisas com certeza?

Imagino que, para quem teve alguém da família morto pela COVID-19, deve ser bem tenso entrar em um trem ou ônibus, para se deslocar para o trabalho ou voltar para casa. E tantas outras coisas que já foram simples, mas hoje envolvem risco para a saúde e até para a vida.

Mas as pessoas precisam ganhar o seu sustento, e nem todos têm a possibilidade, de trabalhar em casa (como eu). Assim, cada vez mais as pessoas estão nas ruas. Não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Jornais noticiam uma segunda onda do vírus na Europa, mas já não é tão fácil convencer as pessoas a se isolarem em casa.

No fim das contas, a espécie humana há de seguir o seu caminho. O vírus também.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 25 de dezembro de 2022

UMA MULHER, UM NOCAUTE! (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UMA MULHER, UM NOCAUTE!

Marcos Mairton

 

No dia 11 de fevereiro de 1990, James “Buster” Douglas, um boxeador até então praticamente desconhecido, surpreendeu o mundo: venceu o aparentemente imbatível Mike Tyson, detentor dos títulos mundiais de pesos pesados dos três principais organismos internacionais do boxe.

Tyson era um fenômeno. Destruía os adversários que encontrava pela frente. Suas lutas eram garantia de estádios lotados e picos de audiência na TV.

Mas, como a luta com Douglas aconteceu no Japão, muita gente no Brasil ficou sem assistir, por causa do fuso horário. Foi o que ocorreu comigo: fui a uma festa naquela noite de sábado e só no domingo pela manhã fiquei sabendo do resultado. Apaixonado que sempre fui pelo boxe, lamentei não ter visto o combate.

Calhou, porém, de acontecer que, no dia seguinte, eu passava pelo calçadão da Rua Liberato Barroso, no centro de Fortaleza, quando vi a luta sendo exibida em um televisor, na vitrine de uma loja de eletrodomésticos. A venda de videocassetes no Brasil estava em plena expansão, então o gerente havia gravado a luta e a estava exibindo como forma de atrair clientes.

Naquele tempo, eu era bancário e trabalhava das doze às dezoito horas, com quinze minutos de intervalo para o lanche. Havia saído para fazer uso dessa pausa, quando me deparei com a chance de ver a luta que havia perdido no fim de semana. Fiz um rápido cálculo da relação custo-benefício de me demorar por ali e decidi: ficaria sem meu repasto e ainda voltaria atrasado para o trabalho, mas veria a queda de Tyson. Afinal, em um tempo em que não tínhamos acesso a facilidades como TV a cabo e YouTube, quando é que eu teria oportunidade de ver aquela luta de novo?

Havia mais gente interessada em ver os dois lutadores trocando jabs, ganchos e cruzados. Logo se formou um grupo de espectadores na frente da vitrine. Embora naquele ponto do calçadão houvesse apenas um banco de praça, que não comportava mais que três pessoas, cada um ia se acomodando como podia. Dois jovens sentaram-se no chão, à frente do dito banco, enquanto outros três encostaram-se a um cesto de lixo. A maioria contava apenas com o apoio das próprias pernas. Com muito jeito, consegui um lugar escorado ao tal banco de praça, de três lugares, no qual, àquela altura, já estavam sentados cinco rapazes.

À medida que a luta continuava, muitas pessoas paravam para ver o que estava acontecendo, mas logo seguiam adiante. Apenas alguns homens, principalmente os mais jovens, é que acabavam ficando para ver o final. De qualquer modo, a cada round, o grupo de telespectadores aumentava.

Perto do final do oitavo assalto, já éramos mais de vinte. Um office-boy desatento cometeu o erro de passar entre nós e a vitrine, bem na hora em que Douglas pressionava Tyson contra as cordas. O protesto foi geral:

– Sai daí, abestado!

– Transparente!

– Vai passar na frente do cabaré da tua mãe!

O rapaz percebeu que estava incomodando e saiu dali rapidinho, ao som de uma sonora vaia. Não ficou claro se a vaia era para ele ou para Buster Douglas, que acabava de ir à lona, depois de receber um violento uppercut no queixo.

Agora já éramos mais de trinta. O office-boy seguiu o seu caminho e Douglas conseguiu se recuperar. A pequena multidão estava inquieta, os níveis de testosterona altos e subindo. O round nove já havia começado e a cada golpe dos lutadores, ouviam-se murmúrios, impropérios, choques de uma mão fechada contra a palma da outra mão. Parecia até uma transmissão ao vivo.

A expectativa aumentava. Enquanto os treinadores estavam novamente cuidando de seus pupilos e dando-lhes instruções, alguém lembrou que Tyson cairia no próximo assalto. Muitos de nós conversávamos sobre a luta como se fôssemos velhos amigos, embora nunca houvéssemos nos encontrado antes. Éramos como meninos desconhecidos a quem se entrega uma bola de futebol, capazes de passar horas jogando sem sequer saber os nomes uns dos outros.

Soou o gongo para o décimo assalto. Os lutadores levantaram de seus corners, aproximaram-se e trocaram alguns golpes. Douglas parecia mais determinado. Toda a nossa atenção estava voltada para a luta, quando, de repente…

Ela apareceu… Saindo, assim, do nada, como se houvesse se materializado ali mesmo… Veio andando lentamente, com o olhar voltado para a vitrine na qual assistíamos à luta, de forma que não dava para ver direito o seu rosto.

Mas quem estava preocupado com seu rosto, se havia tanto para admirar no restante do corpo? Corpo? Era um monumento! Tudo eram pernas, nádegas, peitos e sensualidade. Ainda mais com aquela blusa curtinha deixando à mostra a barriga, o umbigo… Uma sainha mais curta ainda, nos permitia admirar tudo o que podia ser visto das coxas para baixo e deduzir o que ficava encoberto dali para cima…

Aliás, que paradoxo ver que aquele pedaço de tecido era pequeno o suficiente para deixar tanta coisa à mostra, e grande o bastante para deixar tanta coisa oculta, a provocar nossa imaginação!

Mas, não me dedicarei a maiores detalhes quanto a descrições físicas. Dizer que era morena seria uma indelicadeza com as loiras, as negras, as ruivas… E vice-versa. Além do mais, o que importa a cor de sua pele ou a forma de seus cabelos? Era uma mulher fantástica e pronto, quem quiser que imagine a sua!

O que interessa é que continuou caminhando lentamente por aquele espaço sagrado que separava os lutadores de sua platéia, como se ignorasse totalmente nossa presença e não desse a menor importância para Mike Tyson e Buster Douglas.

Parecia concentrada em algo logo abaixo da TV, no chão da vitrine talvez. Parou e inclinou o tronco em uns quarenta e cinco graus, como se tentasse enxergar melhor algum detalhe do objeto de sua atenção, o qual até hoje não sei o que era. Lembro apenas que a inclinação de seu corpo fez com que a saia parecesse ainda mais curta.

Em pleno centro da cidade, no meio da tarde de uma segunda-feira, fez-se por alguns instantes um silêncio de igreja vazia. Até uma folha que caísse no chão seria ouvida naquele momento.

Mas nenhuma folha caiu. E nenhum de nós se moveu. Ficamos paralisados, vendo-a passar. Tenho certeza que muitos suspenderam a respiração por todo o tempo em que deslizou à nossa frente.

Alheia a tudo, ela continuou o seu caminho. Lentamente, despreocupadamente. Quando faltava apenas um passo para chegar à outra extremidade da vitrine, um engraçadinho saiu do transe em que se encontrava e soltou a voz:

– Aí tá certo, né? Pode é ficar passando pra lá e pra cá o dia todo que ninguém diz nada!

Foi o suficiente para nos libertar a todos. Uns gargalhavam, outros vaiavam, outros tantos aplaudiam. Um rapaz deu um tapa no ombro do outro e exclamou:

– Puta que pariu! O que é aquilo, meu irmão!?

O amigo limitou-se a abrir os braços e arregalar os olhos. Alguns chegaram a bater palmas cadenciadas e iniciar um coro de “Volta! Volta!”.

Acho que nessa hora ela percebeu que era a causadora daquele rebuliço, pois apressou o passo e afastou-se dali.

Então, quando nossa musa já praticamente sumia na multidão, olhei novamente para a TV e vi Mike Tyson caído. Engatinhava no ringue, em movimentos vacilantes como os de um bebê. Apoiou-se na mão esquerda, enquanto, com a direita, tentava recolocar o protetor na boca, mas o movimento era patético e inútil. A contagem chegava a dez. Estava derrotado. Restava-lhe como consolo apenas o abraço carinhoso do mediador do combate.

Quanto a mim, sabia que o melhor a fazer era voltar correndo para o trabalho e torcer para que meu chefe não houvesse percebido que eu havia prolongado demais o intervalo para o lanche.

(*) Escrevi essa crônica em 2010. Está no meu livro “Contos, crônicas e cordéis“, de 2012. Ao ver os anúncios da volta de Mike Tyson, em luta contra Roy Jones Jr., resolvi postá-lo novamente.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 16 de dezembro de 2022

O RESGATE DO GOLFINHO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O RESGATE DO GOLFINHO

Marcos Mairton

Foto por Melissa Carseller, do site Pipa Aventura

Certa manhã, um golfinho parecia disposto a por fim à sua própria vida. Tomando impulso com a cauda, deslizou na crista de uma onda e lançou-se em direção à praia, dando claros sinais de que estaria decidido a chegar até a areia. Ali fatalmente morreria de desidratação.

Os estudos mais recentes no campo da zoologia não levam muito a sério a possibilidade de animais se suicidarem. Apesar de haver relatos a esse respeito, os biólogos consideram outras razões – como estresse, medo ou tentativa de fuga de um cativeiro – que gerariam situações nas quais há apenas a aparência de o animal ter tomado a decisão de se matar.

Especificamente quanto à ordem dos cetáceos, da qual fazem partes golfinhos e baleias, sempre chama a atenção quando grupos inteiros encalham em alguma praia. Mas também nesses casos as teorias mais aceitas afastam a possibilidade de suicídio, pelo menos nos moldes dos cometidos por seres humanos.

Alheio a essa discussão entre cientistas, aquele jovem golfinho – sim, era um jovem golfinho – parecia firme em seu propósito de deixar para trás o oceano, a família e seus amigos marinhos.

Provavelmente já conseguia ver a areia da praia, quando, nos últimos metros do fatídico percurso, acabou esbarrando em algo que o impediu de alcançar seu objetivo.

Era um homem, que, depois de caminhar um pouco pela praia, havia entrado no mar até o ponto onde a água chegava à altura dos seus joelhos. Olhava distraído para o horizonte, quando foi surpreendido com o impacto do golfinho contra suas pernas.

Ao ver o golfinho debatendo-se naquelas águas rasas, com o dorso já exposto ao sol, o homem o empurrou contra as ondas, para que pudesse voltar à segurança das águas mais profundas.

Mas o golfinho não ajudava. Quanto mais o homem o empurrava para dentro do mar, mais ele insistia em ir em direção à praia.

Ficaram nesse impasse: o golfinho se esforçando para chegar à areia e o homem lutando, com todas as suas forças, para o devolver às profundezas do mar.

Até que, depois de alguns minutos, quando os dois já estavam ficando exaustos, o golfinho apontou subitamente o nariz em direção às ondas e, movimentando a cauda com força, seguiu mar adentro.

Num instante, foi como se uma luz houvesse iluminado a mente daquele golfinho. Parecia ter reconhecido que todo aquele esforço de um estranho para o salvar só poderia ser um sinal de que sua vida valia mais do que lhe parecia. Ou, pelo menos, mais do que lhe parecera em um momento ruim.

Mais alguns segundos se passaram. O homem agora via o golfinho saltar por sobre as ondas e desaparecer entre espumas. Com o golfinho a salvo, resolveu voltar para casa.

Enquanto ainda caminhava pela areia da praia, o homem admirava a beleza do céu e aspirava o ar com mais força, para sentir o cheiro do mar. Ouvia o barulho das ondas e sentia o atrito da areia sob os seus pés. Estava feliz com o que acabara de realizar.

Mas estava sobretudo grato àquele golfinho.

É que, naquela manhã, aquele homem havia saído de casa decidido a entrar no oceano o máximo que pudesse, até não conseguir mais nadar de volta.

O encontro com o golfinho o havia impedido de por em prática o seu plano suicida.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 12 de dezembro de 2022

UM ABRAÇO (*) - (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

UM ABRAÇO (*)

Marcos Mairton

Xavier estava sentado, com os cotovelos sobre a mesa e o queixo apoiado nas palmas das mãos. Havia um murmúrio de vozes, mas ele parecia alheio ao que se passava ao seu redor.

Com os olhos fechados, podia ver, no fundo da sua mente, a rua lá fora.

Mas não havia ninguém ali. As calçadas, as praças, tudo estava vazio. Se alguém aparecia, caminhava apressado, olhando para os lados, como se estivesse fugindo de alguma coisa.

Um ruído o trouxe de volta ao bar. Um leve ruído. Porcelana tocando madeira. Em seguida, uma voz:

– Senhor… seu café…

O cheiro agradável da bebida encheu suas narinas. Agora ele ouvia as vozes e risos ao seu redor.

Xavier abriu os olhos. Percebeu a fumaça saindo do líquido escuro na xícara.

Ergueu-se e olhou para o garçom. Sem dizer uma palavra, o abraçou como se fossem velhos amigos.

E assim comemoraram o fim da pandemia.

(*) Este é meu último conto de 2020 no JBF. Que ele seja como uma profecia para 2021. Agradeço a todos os fubânicos que dedicaram algum tempo aos escritos desta coluna. FELIZ ANO NOVO!


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 05 de dezembro de 2022

O BOM LADRÃO NA TEOLOGIA MANSUETIANA (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Nesta Semana Santa de 2021, estive lembrando de como Seu Mansueto – meu saudoso pai – apreciava debater assuntos religiosos. Como ficava feliz quando recebia em sua casa missionários cristãos, fossem eles católicos, protestantes ou testemunhas de Jeová, o que era mais comum.

A coisa se tornava ainda mais curiosa pelo fato de Seu Mansueto ler a bíblia diariamente, mas se considerar ateu. Por influência minha, às vezes admitia ser agnóstico.

– Eu acredito em uma força superior que criou tudo – dizia ele. – Criou e depois deixou aí para que cada um se vire. O resto é conversa.

– Então o senhor é agnóstico, papai. Se fosse ateu não acreditaria nem nessa força superior que teria criado o mundo.

– Meu filho, se você está me dizendo que é assim, então eu sou… Como é o nome mesmo?

– Agnóstico. Alguém que não acredita nem duvida da existência de Deus.

– Então eu sou agnóstico. Taí. A partir de agora, quando me perguntarem qual a minha religião, eu vou dizer que sou agnóstico.

Isso não facilitou a vida dos missionários que por lá apareciam. As controvérsias surgiam de várias passagens da Bíblia, deslocando-se do Livro do Gênesis para a crucificação de Cristo numa fração de segundos, como presenciei certa vez.

– Mas, Seu Mansueto, como é que Deus pode ter deixado cada um “se virar”?

– Eu acho que foi. Se Deus existe e criou o mundo, o trabalho dele acabou aí. O resto é com a gente. Cada um que se vire.

– Então, por que Ele teria enviado o próprio filho para nos salvar? – replicou o pregador.

– Você tá falando de Jesus?

– Claro! Jesus, nosso Salvador!

– Pois, se Jesus foi mesmo filho de Deus, taí uma prova de que o pai dele não tá preocupado com ninguém. Veja se tem cabimento. Deus manda o filho dele pra cá, pra ensinar as pessoas a serem boas. Aí os “manda-chuvas” da época acham que aquelas pregações são uma coisa perigosa para eles. Mandam prender, espancar e matar Jesus. Deus vê o filho sofrer toda essa covardia e deixa o rapaz morrer inocente. Que pai é esse, meu amigo?

– Mas…

– Pois, se fosse um filho meu, primeiro, eu não botava ele numa boca quente dessas. Depois, hoje mesmo, sem eu ser Deus, se eu visse esse pessoal querendo matar covardemente meu filho, eu me lascava todinho, mas não aceitava uma coisa dessas. Pode ter certeza: prum cabra crucificar um filho meu, sem ele ter feito nada de errado, tem que acabar comigo primeiro. E, se eu tivesse o poder de fazer e desfazer, como você diz que Deus tem… Aí a “peia dobrava”, meu amigo! O “pau cantava” era sem pena!

– Mas, Seu Mansueto, tinha que ser como foi mesmo. Porque foi o sofrimento de Jesus que pagou os pecados dos homens. Por isso que basta aceitar Jesus como nosso Salvador para a gente se salvar também.

– Salvar, pra você, quer dizer ir pro céu? Ficar lá, com Jesus, os anjos… é isso?

– É.

– Então, eu não preciso me preocupar. Porque, se o céu existe, eu devo ir é pra lá mesmo. Depois que eu morrer, é claro.

– Então, o senhor já aceitou Jesus?

– Olhe, eu ainda não entendi bem o que é “aceitar Jesus”, mas eu acho que Deus, pra ser Deus, tem que ser justo.

– Isso é verdade. Deus é justo.

– Então, raciocine comigo. Pelo que tá escrito na Bíblia, quem foi uma pessoa que já morreu sabendo que ia pro céu?

– Como assim?

– Assim mesmo, como eu estou dizendo. Antes do camarada morrer, Jesus garantiu vaga pra ele no céu. Você sabe a história do ladrão que foi crucificado junto com Jesus? Um que chamam de “bom ladrão”?

– Sei.

– Então. Você lembra que Jesus disse, ali mesmo, na cruz, que ele ia direto se encontrar com o Pai dele? Se Jesus é Deus, como você diz, ele não ia mentir. Então aquele ladrão foi pro céu, que é onde dizem que Deus fica. Ora, se Jesus garantiu lugar no céu para um ladrão, então, eu, que nunca roubei, mereço ir pro céu também. Aliás, eu mereço até mais do que o tal do bom ladrão. Pra lhe ser bem sincero, até hoje eu não sei por que dizem que ele era bom. Pra mim, não existe ladrão bom.

– Seu Mansueto, é porque, quando estava na cruz, ele se arrependeu! Arrependeu-se de verdade, com sinceridade. Deus sabe se o arrependimento é sincero…

– Ah, mas aí é uma beleza! O cidadão faz as estrepolias que bem entende, e depois, quando está à beira da morte, crucificado, se arrepende! Arrependimento, depois de condenado? Pra mim não serve. Quem tiver que se arrepender, que se arrependa antes de ser descoberto. E, ainda assim, se quem roubou e se arrependeu merece ir pro céu, quem nem chegou a roubar merece muito mais. Por isso é que eu digo que, se houver céu, Deus pode até não me deixar entrar, mas ele vai saber a injustiça que está cometendo.

– Mas, Seu Mansueto, são os mistérios de Deus…

– Rapaz, não venha com essa história de mistério, não… Você não é o missionário? Então o seu serviço é me explicar as coisas que eu não entendo, pra eu me convencer a entrar pra sua religião…

– Eu sei, Seu Mansueto, mas veja bem…

E a conversa prosseguia em divergências sem fim, até o missionário se cansar e ir embora, geralmente com a promessa de voltar outro dia, acompanhado de outro mais experiente.

Enquanto Seu Mansueto viveu, muitos foram os religiosos surpreendidos com os argumentos de um homem de raciocínio extremamente lógico, que, apesar de duvidar da existência de Deus, conhecia os textos bíblicos como pouca gente.

Há outra coisa que é justo reconhecer: Seu Mansueto era absolutamente autêntico no que dizia. Defendia seus pontos de vista de sua teologia com uma honestidade intelectual que deixava transparecer facilmente o respeito que tinha por essas questões.

Se há mesmo uma vida após a morte – e acredito que há – Seu Mansueto hoje em dia deve travar uns bons debates por lá.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 28 de novembro de 2022

VINTE ANOS DE MAGISTRATURA: O CONCURSO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

À esquerda, a sede do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no Recife-PE

 

A posse ocorreu no dia 25 de abril de 2001. Mas as primeiras recordações que me vêm são de quase dois anos antes, em meados de 1999, quando eu ainda era Procurador do Banco Central, em Fortaleza.

No começo da tarde, um colega chegou à Procuradoria com a notícia:

– Saiu o edital pra juiz federal da 5ª Região!

Embalado que vinha por concursos anteriores, com bons resultados nos certames do próprio Banco Central (dois anos antes) e da Advocacia-Geral da União (embora o resultado final ainda não houvesse sido publicado), fiz uma brincadeira que hoje me soa um tanto arrogante:

– Opa! Vamos lá! Se a primeira prova for daqui a mais de 90 dias, é bom vocês prepararem minha festa de despedida!

Os colegas riram. Acho que não me levaram a mal pelo excesso de confiança. O certo é que o edital realmente marcava a prova para cerca de 90 dias depois, talvez um pouco mais. Isso acabou me servindo como estímulo, pela vontade de cumprir a otimista previsão.

Os dias que se seguiram passaram voando. Em meados de setembro (lembrando sempre que estávamos em 1999) eu já estava fazendo a primeira prova, de questões objetivas, na sala de aula de uma escola, em Fortaleza.

Eu e uma multidão de gente. É muito estranha essa história de fazer concurso. Você vê todas aquelas pessoas chegando para fazer a prova e pensa: “Tanta gente para tão poucas vagas… Quantos dos que estão aqui hoje serão aprovados? Talvez nenhum”.

No caso, eram, salvo engano, dezessete vagas; ou vinte e uma; já não lembro com precisão.

Lembro que o resultado dessa primeira prova saiu muito rápido. Coisa de uns trinta dias depois.

Sem saber que a correção das provas já havia ocorrido, acabara de chegar à Justiça Federal, na Rua João Carvalho, em Fortaleza, para ver uns processos do Banco Central, quando me deparei com um grupo de pessoas aglomeradas, olhando umas folhas impressas por computador, fixadas em um flanelógrafo:

– O que é isso? – perguntei a um dos guardas do prédio.

– É o resultado do concurso pra juiz.

Aproximei-me devagar, ocupando o espaço deixado por cada pessoa que se afastava. Não era uma lista muito grande. Corri os olhos, do topo ao fim da lista, e rapidamente avistei o meu nome. Um dos últimos. Era preciso tirar nota 6,0 para passar à fase seguinte. Eu havia feito 6,1. Estava aprovado na primeira fase.

Dei alguns passos para trás e fui em direção ao guarda com quem havia falado antes. Estendendo-lhe a mão, falei, sorrindo:

– Pode me dar os parabéns. Tô dentro!

Aparentando certa surpresa, ele apertou minha mão com força:

– Parabéns, doutor!

Mais tarde, quando retornei à Procuradoria do Banco Central, os colegas procuradores já sabiam da minha aprovação. Fizeram festa. Foram generosos nos abraços. Mas aí eu já estava pensando nas provas subjetivas, que estavam marcadas para aproximadamente trinta dias depois.

Foram duas as provas subjetivas.

Na primeira, duas questões para discorrer e uma dissertação sobre um assunto jurídico. O tema da questão era de matéria penal: “O consentimento do ofendido na Teoria do Delito”.

Uma curiosidade a respeito dessas provas dissertativas é que eu memorizava frases genéricas de autores importantes e acabava encontrando um jeito de as encaixar nas minhas respostas, fazendo referência inclusive ao capítulo da obra que servira de fonte. Não sei se isso me ajudou de alguma maneira, mas eu imaginava que seria positivo para o candidato o examinador encontrar em seus textos citações de Hans Kelsen, Karl Engisch, Miguel Reale ou Paulo Bonavides.

Na segunda prova, mais duas questões, e a grande destruidora de candidatos: a elaboração de uma sentença judicial.

O leitor que chegou até aqui pode estar curioso quanto à matéria discutida na sentença, então, não custa relembrar: cabia ao candidato julgar um caso de embargos a execução fiscal, envolvendo matéria tributária. Mais precisamente, imposto de renda de pessoa jurídica tributada com base no lucro real.

Claro que havia uma série de questões processuais a resolver, antes de se chegar ao mérito.

A prova mais difícil da minha vida. Um inferno. O lado bom daquele dia foi que o alívio por ter terminado a prova foi tão grande que nem pensei mais se passaria ou seria reprovado.

Alea jacta est! A sorte está lançada!

Segundo a Wikipedia, a expressão “alea jacta est” significa, ao pé da letra, “os dados foram lançados”. E, nesse caso, os dados devem ter sido lançados com força, porque rolaram um bocado. O resultado das tais provas subjetivas, inclusive a sentença, só seria conhecido meses depois, entre maio e junho do ano 2000, se bem me lembro.

Na época, eu já havia deixado a Procuradoria do Banco Central, e havia assumido o cargo de Advogado da União, em Natal.

A Procuradoria da União na capital potiguar ficava na Av. Deodoro da Fonseca, quase em frente à Catedral Metropolitana de Natal. Certo dia, ao sair do trabalho, olhei para o templo cristão e pensei: “Se passar nesse concurso pra juiz federal, vou dar dez voltas correndo em torno da catedral”.

Catedral Metropolitana de Natal-RN

Cumpri a promessa poucos dias depois da publicação do resultado das provas subjetivas, mas a jornada até a magistratura federal estava longe de acabar. Depois de recursos de candidatos serem julgados, questões judiciais serem superadas, e apresentarmos a documentação referente aos chamados títulos (aprovações em concursos anteriores, artigos publicados, etc), a última fase do concurso somente aconteceria no começo de 2001: a temida prova oral.

Por esse tempo, eu continuava advogado da União, mas já havia deixado a cidade de Natal, depois de conseguir ser removido para Fortaleza.

Àquela altura do campeonato não havia mais concorrência entre nós, candidatos. Cada um lutava apenas consigo mesmo, para fazer a pontuação mínima exigida no edital, já que o número de sobreviventes era menor que a quantidade de vagas disponíveis. Isso mesmo: das centenas – talvez milhares – que se inscreveram, éramos agora menos de vinte guerreiros.

Preciso dizer algumas palavras sobre uma coisa chamada prova oral.

Não sei se hoje o sistema continua o mesmo, nem se há variações nos concursos para outros cargos ou outros tribunais, mas estou certo que a tensão que envolve o ato continua grande.

Em nosso concurso, o procedimento era o seguinte: durante alguns dias, os membros da comissão fariam perguntas a cada candidato, separadamente; para isso, todos nos reunimos em Recife naqueles dias, e foi determinada uma ordem pela qual os candidatos seriam chamados; assim, a cada dia alguns candidatos eram inquiridos.

Vinte e quatro horas antes da prova, a banca examinadora sorteava o que se chama de “ponto”, no qual constavam os tópicos do programa do concurso sobre os quais deveriam versar as perguntas a serem feitas na prova. Ou seja, cada candidato só ficava sabendo os temas das perguntas na véspera da prova.

Um detalhe importante, que quem não vive ou não viveu o mundo dos concursos talvez não saiba: cada ponto era formado por tópicos de cada uma das disciplinas; assim, um ponto reunia temas de Direito Civil, Penal, Constitucional, Administrativo, Tributário, Previdenciário, Internacional, etc.

Dito isto, indago ao leitor: quem dormiria naquelas 24 horas?

Não sei os outros, mas eu devo ter dormido no máximo umas duas horas, entre o fim da madrugada e o começo da manhã. O restante do tempo foi vivido em um quarto de hotel, na companhia de outros colegas, que também fariam prova no dia seguinte, revendo tudo o que era possível. A alimentação ficava por conta de sanduíches solicitados pelo serviço de quarto.

Alternávamos períodos de leitura e anotações com momentos nos quais fazíamos perguntas uns aos outros, para estimular nossa capacidade de elaborar respostas imediatas. Não me era possível perceber nenhum clima de disputa por posições na classificação. Ao contrário, cooperávamos o quanto possível. Nasciam ali amizades que certamente nos acompanharão por toda a vida.

No fim desse processo, cheguei para a prova quase em transe. Sentei-me diante de cada um dos membros da comissão e fui respondendo o que me perguntavam como se estivesse em “modo automático”. Como se minha mente seguisse um algoritmo que buscava dispositivos legais, doutrinários e jurisprudenciais a partir de palavras chave contidas nas perguntas.

Talvez por isso eu não me lembre mais de nenhuma das perguntas que me foram feitas. Lembro apenas que o último examinador foi o doutor Ivan Lira de Carvalho, juiz federal em Natal, que participava da banca examinadora na condição de professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estava encarregado de formular perguntas sobre Direito Penal, e havia recebido dos candidatos que me antecederam a carinhosa alcunha de “Ivan, o terrível”, em alusão ao czar russo, dado o grau de dificuldade das perguntas que fazia.

Ivan Lira já era meu conhecido, da época em que fui advogado da União e atuei em alguns processos sob a sua jurisdição, em Natal. O que eu não esperava era que ele fosse lembrar disso na hora da minha prova. Mas lembrou.

Sentei-me, cumprimentei-o, e ele, antes de iniciar a inquirição, disse uma frase que jamais esqueci. Falou pausadamente, quase sorrindo:

– Doutor Marcos Mairton… era advogado da União em Natal, mas, na primeira oportunidade, desprezou o Rio Grande do Norte e se mandou para o Ceará. O mundo dá voltas, né doutor?

Não me recordo se respondi alguma coisa. Lembro apenas que tentei convencer a mim mesmo de que o introito havia sido uma tentativa de me deixar menos tenso. Que não funcionou. Talvez tenha tido efeito contrário. Enquanto eu recuperava a concentração, ele prosseguiu:

– Vou fazer só uma pergunta, doutor. É tudo ou nada. O senhor responde “sim” ou “não” e “porquê”.

E fez uma pergunta sobre a possibilidade da tentativa nos crimes culposos.

À medida que ele formulava a pergunta, meu coração se enchia de alegria. Naquele dia, eu seria capaz de falar trinta minutos sobre aquele assunto, sem precisar parar sequer para beber água. Senti que vencia a última batalha.

Tivemos conhecimento do resultado final do concurso no fim da tarde daquele mesmo dia.

No dia seguinte, ao chegar à casa dos meus pais, em Fortaleza, havia música tocando, cerveja gelada e churrasco à vontade. Para amigos e parentes, a festa já estava em pleno andamento.

A vizinhança toda veio dar parabéns ao filho caçula do Seu Mansueto e da Dona Ivonete. Todos já admiravam o fato de o filho mais velho ser professor da Universidade Federal do Ceará e capitão-dentista da Polícia Militar; agora, o mais novo seria Juiz Federal.

Não é meu propósito aqui falar de desigualdades sociais, mas não posso deixar de mencionar o fato de que aquela comemoração acontecia em uma casa simples, no meu querido bairro do Pirambu, em Fortaleza. Os convidados eram donas de casa, comerciárias, motoristas de ônibus, taxistas, mecânicos, pedreiros e outros profissionais que sequer haviam concluído o ensino médio. Gente honesta e trabalhadora, mas sem muito estudo.

O orgulho dos meus pais em meio a tudo aquilo era plenamente justificável, porque, em um lugar onde praticamente ninguém tinha curso superior, meu irmão já havia concluído seu doutorado em Odontologia, enquanto eu era mestre em Direito.

E era muito bom sentir que não apenas meus pais estavam orgulhosos e felizes. Cada uma das pessoas que ali estava demonstrava uma alegria verdadeira. Talvez por se sentirem parte da história do menino estudioso que eles viram crescer, e que, pelo estudo, chegava a um cargo público de grande importância.

Eu também estava feliz. Mas sabia que a jornada estava apenas começando.

Minha posse como juiz federal ocorreu dias depois daquela festa, no Plenário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, ao lado dos meus colegas de concurso, que se tornaram amigos para a vida toda, e por quem tenho profunda admiração: George, André, Gledison, Niliane, Francisco, Leonardo, Jailsom, Joana Carolina, Maximiliano, Raimundo e César.

Na cerimônia, sentimos falta do amigo também querido Fernando Braga, que havia sido aprovado e nomeado junto conosco, mas à época já era Procurador da República, e preferiu permanecer no Ministério Público Federal. Tornar-se-ia membro do TRF da 5ª Região apenas anos depois, como Desembargador Federal, na vaga do quinto constitucional Tribunal destinada ao Ministério Público.

Naquela noite de quarta-feira, no dia 25 de abril de 2001, fechava-se um ciclo em minha vida. Iniciava-se outro, que já dura vinte anos.

No ciclo em curso, é incrível perceber que tanta coisa aconteceu e, ao mesmo tempo, como tudo passou tão rápido.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 21 de novembro de 2022

CRÔNICAS FORENSES: PAI CORINTHIANO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

Era um processo no qual a autora pleiteava salário maternidade pelo nascimento de um dos seus três filhos. Alegava ser segurada do Instituto Nacional da Previdência Social, na condição de agricultora. Uma causa comum nos Juizados Especiais Federais espalhados pelo interior do Brasil.

O que havia de peculiar naquele processo era o fato de a autora ter recebido o salário maternidade quando nasceram os dois filhos mais novos. Só depois requereu o benefício em relação ao filho mais velho, mas o INSS negou. Assim, o que se discutia no caso era apenas se à época da primeira gravidez ela já trabalhava na agricultura.

Feita a chamada pelo servidor do fórum, a mulher entrou na sala de audiências acompanhada de um advogado já conhecido do juiz naquele tipo de processo.

Percebia-se que ainda era jovem, apesar da pele um tanto castigada pelo sol do sertão cearense. O vestido, longo e de mangas compridas, e o cabelo chegando quase à altura da cintura, também acrescentavam alguns anos à imagem daquela senhora.

Antes de tomar seu depoimento, o juiz fez algumas ponderações:

– Dona Luzia, não há dúvida que atualmente a senhora é agricultora. O próprio INSS reconheceu isso, quando pagou o salário maternidade dos seus dois filhos do casamento atual. Mas, estudando seu processo, ficou parecendo, pra mim, que a senhora teve o primeiro filho de um relacionamento anterior ao seu casamento, quando a senhora ainda não trabalhava com agricultura. Depois que seu primeiro filho nasceu, e que esse relacionamento terminou, a senhora converteu-se a uma igreja evangélica, onde conheceu o seu atual marido, pai dos seus outros dois filhos. A partir daí, senhora passou a trabalhar na agricultura com seu marido, que já era agricultor. Mas, quanto ao seu primeiro filho, que é quem interessa pra esse processo, me parece que o pai era um rapaz que trabalhou um tempo em São Paulo, mas voltou para o Ceará e vocês passaram a namorar. A senhora engravidou e, depois que o menino nasceu, ele foi pra São Paulo de novo e a senhora ficou só, com seu filho. Naquele tempo a senhora não era agricultora. Nem o pai de seu filho, que, em São Paulo, já fazia um tempo que trabalhava na construção civil e torcia pelo Corinthians. Foi isso que aconteceu ou eu tô enganado?

A mulher, surpresa com as palavras do juiz, disse, titubeante:

– Doutor… o senhor sabe da minha vida toda… Foi isso mesmo que aconteceu.

Esclarecidos os fatos, e após os advogados falarem, o juiz explicou que, nesse caso, ela tinha direito ao salário maternidade dos dois filhos mais novos, mas não do mais velho. Julgou improcedente o pedido e encerrou a audiência.

Mais tarde, o advogado da mulher foi ao gabinete do juiz, querendo saber como o magistrado havia extraído dos autos toda aquela história.

– Não foi muito difícil – explicou o juiz. – Pelas certidões de nascimento, identifiquei os dois pais. Analisando os dados do sistema do INSS, vi que o marido não tinha nenhum trabalho de carteira assinada, mas o pai do filho mais velho tinha vínculos de emprego em São Paulo, antes e depois do nascimento do filho. Não encontrei qualquer indício de que ela tenha casado com o pai do primeiro filho, mas na certidão de casamento com o pai dos outros dois, vi que o casório aconteceu meses depois que o pai do primeiro filho havia voltado a trabalhar em São Paulo. Quanto a ter se tornado evangélica, bastou observar o cabelo, a roupa, uma pequena Bíblia na mão, e os nomes dos filhos, tirados do livro sagrado: Josafá e Davi.

– Incrível, doutor. Agora que o senhor explicou, ficou fácil. É a experiência, né?

O advogado já se preparava para ir embora, quando lembrou de um último detalhe:

– Excelência, só mais uma coisa: como foi que o senhor descobriu que o pai da criança era corinthiano?

– Essa foi a parte fácil. O senhor observou bem a certidão de nascimento do menino? Nascido em janeiro de 2006, Carlito Tevez da Silva. Quem o senhor acha que escolheu esse nome pra criança?


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 14 de novembro de 2022

QUATRO CANÇÕES (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

QUATRO CANÇÕES

Marcos Mairton

 

Gosto de escrever, de contar histórias, de falar das coisas que sinto.

Às vezes faço isso em prosa, às vezes em versos.

E quando me expresso por meio de versos, às vezes esses versos se juntam a uma melodia e formam uma canção.

De uns tempos pra cá, tenho gravado essas canções e publicado, usando as facilidades que as plataformas de streaming proporcionam.

Sem maiores pretensões de fazer sucesso como cantor, mas tentando apresentar algo que as pessoas gostem de ouvir.

Dá um certo trabalho, mas é muito prazeroso ver (e ouvir) o resultado. E esse prazer compensa todo o trabalho.

Bem, acabo de gravar mais quatro canções e apresentá-las ao público.

Agradeço aos profissionais e músicos que me ajudaram a tornar real mais esse sonho.

Agradecimento especial ao Mariano Júnior, do Hertz Studio, que trabalhou como produtor musical; e ao Everardo Ribeiro, que fez a segunda voz em duas músicas.

Para ter acesso a elas, basta clicar na figura abaixo.

 

Uma já tem clipe pronto. Espero que gostem.

Não Busco o Sucesso

 

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 07 de novembro de 2022

OS DIREITOS FRAGILIZADOS PELO VÍRUS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

Imagem ilustrativa obtida na página Freepik

 

Agora, que os números da pandemia mostram tendência de cair para níveis aceitáveis; agora, que a vacinação está bem adiantada em diversos países do mundo, dentre eles o Brasil; agora, que começamos a ter esperança de retomar hábitos de um modo de vida que ainda consideramos normal; penso que já podemos imaginar o que veremos quando olharmos para o passado e observarmos nossa conduta durante a luta da humanidade contra o coronavírus.

Nesse olhar – ainda um pouco para o lado, talvez na diagonal, mas desejando que em breve seja para trás – minha formação em Direito faz com que eu dirija a atenção para as normas jurídicas brasileiras e sua aplicação, nesse período difícil, de travessia ainda em curso, para a humanidade.

Olho, observo, e o que vejo é uma grande fragilidade das garantias oferecidas pelo Direito aos cidadãos, em sua individualidade. Inclusive aquelas garantias inscritas na Constituição Federal. Inclusive aquelas relacionadas entre os chamados direitos fundamentais.

Afinal, estabelecimentos comerciais foram obrigados a fechar suas portas, pondo em xeque a livre iniciativa; templos religiosos sofreram a mesma restrição, pondo em dúvida a liberdade de culto religioso; e até praças e praias tiveram seu acesso restringido, o que contraria, pelo menos em tese, o direito de ir e vir.

A certa altura dos acontecimentos, governadores baixaram decretos limitando o horário em que as pessoas poderiam sair de suas casas e se locomover pelas ruas. O chamado toque de recolher.

Em linguagem mais clara e direta: governadores determinaram, por decreto, que você, leitor, não poderia sair de casa em determinados horários.

Tenho plena consciência de que alguns leitores não receberão bem essas minhas primeiras palavras. Dirão alguns: “Mas está havendo uma pandemia!”. “É para proteger a nossa vida!”, advertirão outros.

Sim, eu entendo. Também tenho medo. Apenas estou fazendo um esforço para raciocinar como se o perigo já houvesse passado.

Então, como conciliar tais decretos, que impõem restrições importantes à nossa liberdade, com dispositivos da Constituição como esses incisos do art. 5º?:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

Tais dispositivos constitucionais deixaram de vigorar durante a pandemia? Diante da excepcionalidade da situação, os direitos individuais foram automaticamente suspensos?

Tenho, cá comigo, minhas dúvidas. Até porque aprendi, ainda na faculdade de Direito, que em ambos os incisos do Art 5º acima transcritos, a palavra “lei” deve ser entendida em seu sentido estrito: instrumento normativo aprovado pelo parlamento como tal, conforme o processo legislativo correspondente.

E decretos não são lei. Decisões judiciais, ainda que devam ser fundamentadas em leis, leis também não são.

Mas li, em um grande site de notícias, que afirma ter consultado grandes juristas, que o Estado tem o poder e o dever de agir para garantir o direito à saúde. Assim, em uma crise sanitária de grandes proporções, como a causada pelo coronavírus, a Constituição ampararia a restrição de circulação para proteção da saúde.

Ora, quem sou eu para questionar as afirmações de grandes juristas, ainda mais quando elas vêm publicadas em um grande site de notícias?

E por que eu as questionaria, se o Ministério Público – federal e estadual – cumprindo o seu mister de defender a sociedade, não as questionou? Ao contrário, há notícias de que o Ministério Público foi autor de pedidos de lockdown.

Assim também o Poder Judiciário, acionado, decretou medidas de restrição de atividades econômicas e sociais, e até de circulação de pessoas no território nacional.

No sentido contrário, a voz praticamente solitária do Presidente da República, que chegou a ingressar com ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 6763), contra medidas restritivas decretadas por autoridades locais. Por uma questão formal, o mérito da causa sequer chegou a ser analisado.

Com o encerramento do feito, sem julgamento do mérito, ficamos sem a posição do STF sobre o caso.

Mas esse julgamento sem mérito não interfere muito nestas reflexões, uma vez que não há aqui o objetivo de aprofundar a análise técnico-jurídica do tema.

Simplesmente reconheço o fato de que as restrições aos direitos individuais foram, em sua maioria, cumpridas, voluntariamente ou não, em nome da defesa da vida e da saúde da coletividade.

Assim, prevaleceu, no debate público, o entendimento de que governantes locais, por meio de decreto, e órgãos do Poder Judiciário, por meio de decisões judiciais, estão autorizados pela Constituição a impor restrições aos direitos individuais do cidadão, em nome de valores maiores, como, no caso, a saúde pública ou a própria vida.

É evidente que essas restrições aumentaram a pressão do poder estatal sobre os indivíduos. Mas como se preocupar com a opressão do Estado, quando esperamos que ele, Estado, nos defenda do monstro microscópico que nos ameaça a vida?

Tenho forte convicção de que a aceitação pacífica das restrições aos direitos individuais foi, sim, influenciada pelo medo da morte, e pela dor das perdas causadas pelas mortes.

Aliás, medo e dor plenamente justificados, diante da tragédia que se abateu sobre a humanidade.

A reflexão que proponho, portanto, neste momento – quando começam a ficar para trás as turbulentas águas desse rio pandêmico, e passamos a vislumbrar a sua outra margem – é até que ponto estaremos dispostos a abrir mão dos nossos direitos fundamentais diante de ameaças outras que poderão vir no futuro.

Porque, quando se afasta um direito fundamental, em nome de uma situação excepcional, a discussão já não é mais sobre o quanto esse direito é fundamental, mas sobre o quanto a situação é excepcional.

A partir de agora, portanto, não se discutirá mais se um governador ou um prefeito pode baixar um decreto proibindo as pessoas de saírem de casa em determinado horário. Já se sabe que isso é possível, inclusive com o apoio do Ministério Público e do Poder Judiciário.

O que restará, para o futuro, é a discussão sobre quais situações excepcionais permitirão esse tipo de decreto.

Um novo vírus? Uma superbactéria? Uma catástrofe ambiental de grandes proporções (como aquela do filme “O Dia Depois do Amanhã”)? Uma invasão alienígena? Ataques terroristas generalizados, talvez com uso de armas químicas?

O que será capaz de despertar novamente o nosso medo, a ponto de fazer com que tantos de nós aceite trocar direitos fundamentais por uma suposta proteção à vida?

Em resumo, e justificando o título deste texto: o coronavírus, além das inúmeras mortes que causou, trouxe consequências para outros aspectos da vida social; um deles foi expor a fragilidade dos nossos direitos e garantias fundamentais diante de uma ameaça grave e real.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 31 de outubro de 2022

UMA NOTA DE DEZ REAIS (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

UMA NOTA DE DEZ REAIS

Marcos Mairton

 

Era um domingo, nos idos de 2010 ou 2011. Uma época em que aconteciam muitos assaltos em Fortaleza, inclusive nas chamadas áreas nobres, como Aldeota, Meireles, Dionísio Tôrres e Papicu.

Eu tinha acabado de almoçar em uma churrascaria de rodízio e, sabendo que havia exagerado no consumo de picanha e outras carnes vermelhas, decidi passar em uma farmácia e comprar uns envelopes de sal de fruta, para tomar logo que chegasse em casa.

Estacionei o carro em uma das três vagas que havia diante de uma farmácia ali perto, em uma rua que fazia esquina com a Avenida Engenheiro Santana Júnior, se não me falha a memória.

Sabendo que era uma área onde ocorriam assaltos com certa frequência, observei o local antes de desembarcar. Havia quase nenhum movimento de pedestres na rua. Só os carros passavam na avenida, a maioria no sentido de quem voltava da Praia do Futuro.

Pude perceber que havia um rapaz atendendo no balcão, mas parecia não haver nenhum cliente no estabelecimento, porque o dito rapaz estava parado, olhando na minha direção, como se esperasse que eu fosse em sua direção para me atender.

Havia, sim, uma idosa, no exato limite da porta da farmácia, mas não estava comprando nada. Parecia mais estar esperando alguém, porque olhou para um lado da rua e depois para o outro, antes de voltar à posição inicial. Magra, pequena, usando um vestido preto até a altura dos joelhos, e com o cabelo preso em uma espécie de rabo de cavalo. Devia ter uns 70 anos, talvez um pouco mais.

Resolvi entrar na farmácia. Em um gesto extra de cautela, deixei a carteira e o celular embaixo do banco do carro e desembarquei levando comigo apenas o cartão do banco e uma nota de cem reais no bolso traseiro da bermuda. Se fosse vítima de um roubo, evitaria entregar o telefone e a carteira com meus documentos.

Os acontecimentos seguintes mostraram que minha cautela fazia sentido. Mal iniciei a caminhada pela calçada, em direção às portas da farmácia, três rapazes saíram de uma viela – um beco, como se diz no Ceará – que eu não havia percebido, e vieram em minha direção.

Tinham o cabelo parcialmente descolorido, de uma maneira que eu já conhecia, e sabia que seria um sinal de possível relacionamento com o crime.

– Tem um trocado pra gente aí, barão? – disse-me aquele que parecia ser o líder do grupo.

A abordagem seguia um padrão que eu já conhecia, do relato de outras pessoas: pedem algum dinheiro ou perguntam as horas; quando você pára e pensa numa resposta, anunciam o assalto ou tentam arrancar à força o que você tiver nos bolsos. A ação depende do tipo de arma da qual disponham.

Naquele exato momento, porém, na velocidade absurda que nossos pensamentos alcançam em situações de alto estresse, lembrei que, ao sair da churrascaria, havia encontrado no chão, perto do meu carro, uma nota de dez reais. Amassadinha, mas inteira. Lembrei ainda que havia posto aquela nota de dez reais no bolso da camisa, e não na carteira, junto com as outras notas.

Com essa memória de fatos recentes instantaneamente carregada em minha mente, pus a mão no bolso da camisa, peguei a nota encontrada minutos antes e disse:

– Eu trouxe esses dez reais pra você. Ela disse que eu lhe entregasse aqui, em frente à farmácia.

– Diabeisso, barão?! Tu é doido? Ela quem?

– Era uma senhora idosa, magrinha, com o cabelo amarrado como um rabo de cavalo. Apareceu pra mim num sonho essa noite. Disse que eu viesse aqui com dez reais e desse pro primeiro rapaz que aparecesse pedindo. Que é melhor pedir do que roubar, e que não queria ver o “menino” roubando pra comprar droga.

– Porra, maluco, tu sonhou com a vó!?

– Se era sua avó eu não sei. Tô fazendo só o que ela me pediu – disse eu, estendendo a nota de dez reais em direção a ele.

– Era a vó, macho! Ela morreu tem uns três mês. Todo domingo ela me dava dez real, quando chegava da missa – prosseguiu ele, com a voz trêmula e lágrimas transbordando dos olhos.

– Que seja, então, irmão. Toma aí teus dez reais!

– Tô nem com vontade de receber, ó? Que doidice é essa, macho? – disse, esfregando o pulso direito no olho do mesmo lado, dando-me a impressão de que tentava dissimular o movimento para enxugar uma lágrima.

Peguei a sua mão esquerda, pus a nota de dez reais nela e comecei a me despedir:

– Guarda aí, irmão. Vai na paz!

Retomei, então, meu movimento para entrar na farmácia, ao mesmo tempo em que observava, com minha visão periférica, os três rapazes se afastarem, conversando entre si, como tentando entender o que tinha acontecido.

O rapaz do balcão, que acompanhava tudo de seu posto, parecia surpreso com a cena que acabara de assistir:

– Achei que o senhor ia ser assaltado – disse ele. – Essa turma já é conhecida aqui na área…

– Eu também achei. Mas, quando eles me abordaram, eu vi aquela senhorinha entrando na farmácia, e veio uma ideia na minha cabeça. Acabou dando certo.

– Qual senhorinha?

– Uma magrinha, de preto, com o cabelo feito um rabo de cavalo. Tava aqui na entrada, olhando lá pra fora. Quando eles apareceram ela veio pra perto do balcão.

– Desculpa aí, senhor, mas não tinha mais ninguém aqui, não. Só eu e minha colega ali no caixa.

Olhei em volta e não vi ninguém além do rapaz que me atendia e da moça no caixa, que em nada se assemelhava à senhora que eu acabara de ver.

Fui até a calçada e examinei com os olhos tudo ao redor, mas não vi mais a idosa.

Paguei a conta e retomei meu caminho para casa. Mas nunca entendi direito o que aconteceu naquele domingo. Em plena luz do dia. Em uma farmácia de Fortaleza.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 24 de outubro de 2022

O MUNDO CONTINUA ASSOMBRADO POR SERES ALIENÍGENAS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

Bem, caros leitores desta coluna, com a ampla circulação da notícia, semana passada, de que o Conselho Institucional do Ministério Público Federal discutiu e arquivou uma notícia crime de um homem que afirma que a Terra foi invadida por extraterrestres “reptilianos”, resolvi republicar o texto a seguir.

Escrevi-o em 2012, quando era titular da Vara Federal de Quixadá. Pelo jeito, o tema continua atual.

O HABEAS CORPUS DOS EXTRATERRESTRES

Os relatos de aparições de OVNIS em Quixadá não são poucos nem recentes. Só para dar um exemplo bem conhecido, no dia quatro de junho de 1960, a escritora Rachel de Queiroz narrou, na sua coluna em “O Cruzeiro”, um avistamento presenciado por ela mesma no dia 13 de maio daquele mesmo ano. Diz a escritora: “(…) aquela luz com o seu halo se deslocava horizontalmente, em sentido do leste, ora em incrível velocidade, ora mais devagar. Às vêzes mesmo se detinha; também o seu clarão variava, ora forte e alongado como essas estrêlas de Natal das gravuras, ora quase sumia, ficando reduzido apenas à grande bola fôsca, nevoenta. (…). Tinha percorrido um bom quarto do círculo total do horizonte, sempre na direção do nascente; e já estava francamente a nordeste, quando embicou para a frente, para o norte, e bruscamente sumiu, – assim como quem apaga um comutador elétrico”.

Às vezes o assunto fica meio esquecido, mas sempre volta. Ultimamente, com a exibição do filme “Área Q”, voltou com força total. No filme, um repórter americano é enviado a Quixadá, para fazer uma matéria sobre OVNIs e abduções. No decorrer da trama, ele mesmo vive experiências cercadas de mistério, as quais estão relacionadas com o desaparecimento do seu filho ocorrido meses antes.

Com esse retorno do assunto às telas dos cinemas – e sabendo que nos arredores de Quixadá encontram-se desde pessoas que simplesmente viram luzes no céu até gente que perdeu o juízo depois de ser abduzida – não será de admirar se qualquer hora dessas for ajuizado algum habeas corpus cuja petição seja redigida mais ou menos assim:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 23ª VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO CEARÁ

JOSÉ DE TAL (qualificação), vem respeitosamente à presença de V.Exa. impetrar o presente HABEAS CORPUS PREVENTIVO, o que faz com fundamento no inciso LXVIII do Art. 5º da Constituição Federal, em favor de três pacientes cuja qualificação neste momento não é possível, identificando-se, atualmente, apenas como Sócrates, Platão e Aristóteles, nomes que adotaram neste Planeta Terra, apontando como autoridades coatoras o Superintendente da Polícia Federal no Ceará, o Delegado de Polícia Civil de Quixadá, o Comandante da Polícia Militar em Quixadá e o Comandante do Tiro de Guerra de Quixeramobim-CE.

I – DOS FATOS

Há aproximadamente um ano os Pacientes vêm mantendo contato regularmente com o Impetrante, mediante comunicação telepática, tendo eles se identificado como seres de outro planeta, interessados em trocar experiências com os habitantes deste Planeta Terra, notadamente os da espécie homo sapiens.

Durante esse período, o Impetrante e os Pacientes têm aperfeiçoado sua comunicação, possibilitando ao Impetrante aprender sobre eles e também ensinar-lhes coisas sobre o nosso planeta. Os Pacientes até já aprenderam um pouco do idioma português, pois têm interesse em conversar com outras pessoas que não o Impetrante, mas, segundo eles, nem todos os homo sapiens estão aptos à comunicação telepática.

Ocorre que, por tudo o que os Pacientes já aprenderam sobre a Terra e seus habitantes, têm eles grande e justificado receio de, em se apresentando clara e abertamente para as pessoas, virem a sofrer cerceamento de sua liberdade, sendo arbitrariamente aprisionados, submetidos a experimentos ditos científicos e tratados como animais irracionais, especialmente porque sua aparência física não guarda muitas semelhanças com a dos homo sapiens.

Em razão disso, e considerando que dentro de no máximo um mês pretendem voltar à Terra e se apresentar de forma ostensiva para os habitantes deste Município de Quixadá, o presente habeas corpus é impetrado com a finalidade de garantir que os Pacientes possam cumprir pacificamente sua missão em nosso planeta, sem ter cerceado o seu direito de ir e vir, não sendo aprisionados, seja em delegacias ou presídios, nem tampouco em laboratórios ou zoológicos.

II – PRELIMINARMENTE: DA COMPETÊNCIA

A competência para processar e julgar o presente habeas corpus é da Justiça Federal, uma vez que, não tendo os pacientes cometido qualquer crime, a sua eventual prisão seria equiparada à do estrangeiro irregular, para fins de deportação.

Essa prisão está prevista no art. 61 da Lei 6.815/80, o qual dispõe que a mesma pode ser decretada pelo Ministro da Justiça. Entretanto, a jurisprudência está pacificada no sentido de que, desde o início da vigência da Constituição de 1988, a competência para expedir o decreto de prisão é da Justiça Federal, uma vez que deve emanar de autoridade judiciária, em face da garantia constitucional segundo a qual ninguém será preso senão em flagrante delito, por ordem judicial competente, ou nos casos de transgressão ou crime militar (art. 5º, LXI).

contrario sensu, no caso de prisão da espécie sem ordem judicial, a competência para apreciar o habeas corpus contra ela impetrado é também da Justiça Federal.

III – DO CABIMENTO DO PRESENTE HABEAS CORPUS EM FAVOR DOS PACIENTES

Apesar de a literalidade do caput do art. 5º da Constituição Federal se referir a “brasileiros e estrangeiros residentes no país”, a doutrina já esclareceu que os Direitos Fundamentais reconhecidos em nosso ordenamento jurídico alcançam os estrangeiros que estejam no país apenas de forma transitória.

No presente caso, também estrangeiros são os Pacientes, logo, protegidos pelos mesmos direitos e garantias. Entretanto, é real o risco de as Autoridades Impetradas negarem essa condição aos pacientes, partindo da falsa premissa de que, tendo os Direitos Fundamentais como núcleo a dignidade da pessoa humana, somente os membros da espécie homo sapiens mereceriam sua proteção.

Essa noção, entretanto, é equivocada. O Direito não se submete a critérios meramente biológicos. Como destaca RADBRUCH, ninguém é “pessoa” por natureza, originariamente, e bastaria a experiência da escravidão para demonstrar isso.

De fato, as lições do passado – quando o Direito excluiu homens e mulheres da condição humana – ensinam que a redução do conceito de humanidade conduz ao cometimento de atrocidades. Da mesma forma, a ampliação desse conceito favorece a Justiça e a Democracia.

Importa, portanto, destacar a visão de JOHN LOKE, ao definir “pessoa” como “um ser pensante, inteligente, dotado de razão e reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como um eu, ou seja, como o mesmo ser pensante, em diferentes tempos e lugares”. Ou de PETER SINGER, quando cita JOSEPH FLETCHER para apontar os seguintes “indicadores de humanidade”: autoconsciência, autodomínio, sentido de futuro, sentido de passado, capacidade de se relacionar com os outros, preocupação com os outros, comunicação e curiosidade.

É evidente que um indivíduo da espécie homo sapiens que tenha perdido (ou não tenha adquirido) essas características continua sendo uma pessoa humana. Também não se pretende defender aqui que animais como chimpanzés ou golfinhos, por serem dotados dos indicadores acima, sejam seres humanos.

A questão que se impõe é o reconhecimento de que, se o indivíduo é membro de uma espécie que tem entre suas características esses indicadores de humanidade e, além disso, a capacidade de reconhecer um ordenamento jurídico e se guiar por ele, esse indivíduo deve, sem sombra de dúvida, ter sua dignidade respeitada, tanto quanto qualquer membro da espécie homo sapiens, independentemente do planeta de onde tenha vindo.

Forçoso reconhecer, portanto, que os Pacientes devem receber a proteção dos Direitos Fundamentais acolhidos pela Constituição Federal, notadamente o Direito à Liberdade, de modo que qualquer ato tendente à sua prisão, fora das hipóteses do art, 5º, LXI, seria contrário à Constituição.

No presente caso, nem mesmo a prisão do estrangeiro para fins de deportação (art. 61, Lei 6.815/80) seria cabível, uma vez que, segundo pacífica jurisprudência, tal prisão é ensejada por indícios de que, em liberdade, o deportando tentaria se furtar à ação das autoridades. Afinal, os próprios Pacientes têm interesse em agir em cooperação com as autoridades locais, a fim de melhor cumprir sua missão neste planeta.

A razão deste habeas corpus é apenas evitar que os Pacientes tenham os seus direitos mais básicos desrespeitados.

IV – DO JUSTO RECEIO

O receio dos pacientes se justifica pelo histórico de casos não esclarecidos de extraterrestres vindos à Terra que foram aprisionados e tratados desumanamente, como no caso ocorrido na cidade de Varginha-MG, em 1996.

No referido caso, somente em outubro de 2010 veio a público o resultado do Inquérito Policial Militar que investigou os fatos, apresentando a conclusão de que, segundo o Exército, o ET nunca existiu. As testemunhas teriam visto um homem agachado perto de um muro, sendo “mais provável a hipótese de que este cidadão, estando provavelmente sujo, em decorrência das chuvas, visto agachado junto a um muro, tenha sido confundido, por três meninas aterrorizadas, com uma ‘criatura do espaço'”.(Revista Isto É, Edição 2136, 15.10.2010).

Vossa Excelência não acha estranho que uma versão tão simples dos fatos tenha demorado quase quinze anos para ser apresentada ao público? Os Pacientes têm a sua própria versão para o caso.

Embora não seja recomendável revolver os fatos em busca de provas na via estreita do habeas corpus, a nebulosidade das informações divulgadas é suficiente para os Pacientes terem receio quanto ao tratamento que receberão das autoridades brasileiras.

V – DO PEDIDO

Pelos fundamentos apresentados, requer o Impetrante:

– Sejam as Autoridades Impetradas, indicadas no preâmbulo deste, notificadas para apresentar suas informações.

– Seja intimado o Ilustre Representante do Ministério Público para que integre a presente lide.

– Seja concedida a ordem de habeas corpus requerida, com a conseqüente expedição de Salvo-Conduto, evitando-se a concretização da ameaça ao direito de locomoção dos pacientes.

Nestes termos,

Pede Deferimento.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 17 de outubro de 2022

DE UM TUÍTE SE FEZ UM SAMBA (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

DE UM TUÍTE SE FEZ UM SAMBA

Marcos Mairton

 

O autor, como se vê do print, é um cidadão que naquela rede social adota o nome de Billy, pessoa a quem não conheço pessoalmente, mas que me apraz seguir, porque tem umas tiradas espirituosas.

Ao ver seu tuíte com esse pedido de desculpas, percebi a ironia, mas também notei uma musicalidade na combinação das palavras. Li-o novamente, em voz alta e confirmei que havia algo melodioso ali.

Pedi autorização ao Billy para usar o texto no refrão de uma canção. Ele concordou. No dia seguinte a canção estava completa. Aí o trabalho que deu foi gravar o vídeo que agora compartilho com vocês.

 

 

EM PROCESSO DE DESCONSTRUÇÃO (DESCULPA AÍ)

Quando o politicamente correto surgiu como expressão
De uma nova moral pra gente seguir,
Não percebi o esforço que eu teria que fazer
para mudar tanta coisa em meu jeito de ser.

Aos poucos fui percebendo que minha falta de empatia.
foi tantas vezes um modo de opressão das minorias
E comecei minha luta, verdadeira revolução,
Um processo de desconstrução

Desculpa, gente
Por comer essas coisas que aumentam meu colesterol
Por beber cerveja gelada num dia de sol
Por ser homem, gostar de mulher e de futebol

Desculpa aí,
Por ser essa pessoa assim tão tóxica
Com senso de humor um tanto ácido
Pela minha falta de senso estético
Por meu raciocínio matemático
Por minha personalidade hermética
Fazendo de você sempre uma vítima,
Eu sei já andei na contramão.
Mas estou em processo de desconstrução


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 10 de outubro de 2022

UM TRIBUTO A RENATO RUSSO (POSTAGEM DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UM TRIBUTO A RENATO RUSSO

Marcos Mairton


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 03 de outubro de 2022

TORTURA (CONTO DE MARCOS MAIRTON. COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

TORTURA

Marcos Mairton

 

Não um martelo de ferro, dos que servem para enfiar pregos na madeira, mas um daqueles martelos de borracha, grandes, que os caminhoneiros usam para verificar se os pneus do veículo que dirigem estão com a pressão adequada.

Tum, tum, tum… um golpe, dois, três… parei de contar.

Permaneci de olhos fechados, tentando imaginar que aquelas marteladas eram parte de um sonho. Ou um pesadelo.

A cada golpe, o ruído surdo, abafado, de objeto contundente se chocando contra uma superfície sólida, porém oca. Lembrei-me das batidas dadas em um tambor, em embarcações a remo, para manter os remadores no mesmo ritmo.

Veio-me à mente a cena da galé no filme Ben-Hur.

 

 

Até que, repentinamente, as batidas cessaram. Silêncio. Um silêncio que não trouxe paz alguma, por causa da expectativa de que os golpes de martelo recomeçassem a qualquer momento.

Foi então que ligaram uma furadeira. Ao invés das batidas, agora eu ouvia o som agudo do motor que girava a ponta de aço.

De vez em quando a ponta giratória parecia ser pressionada contra alguma superfície dura, porque o som ficava mais grave e cheio de vibrações. Parava um pouco e começava tudo de novo.

Aquilo foi se tornando insuportável. Já não pude mais me manter calado, nem de olhos fechados.

– Puta que pariu! – gritei, ao mesmo tempo em que me sentava na cama. – Esses escrotos não sabem que é proibido fazer reforma dia de domingo?!

Minha mulher, que havia acordado há mais tempo, veio da sala correndo:

– Que foi isso, amor?

– Esses putos! Esses escrotos do apartamento de cima! Dando porrada na parede com uma marreta e ligando a porra de uma furadeira em pleno domingo! Me acordaram!

– Mas, amor, hoje é segunda-feira. E já são nove da manhã. Não lhe chamei porque ontem você me disse que hoje só ia trabalhar à tarde. Lembra?

Lembrei. Tomei um gole da água que restava em um copo na cabeceira da cama. Fiquei mais calmo.

Mas continuo achando meus vizinhos uns escrotos.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 26 de setembro de 2022

UM LUGAR ESTRANHO EM UMA NOITE ESTRANHA (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

A cabeça doía, latejava. Artérias pulsavam de cada um dos lados da fronte, como se ameaçassem estourar. Valdomiro ficou parado por alguns segundos, esperando que os olhos se acostumassem à escuridão, embora mal conseguisse mantê-los abertos, por causa da dor de cabeça.

 

 

 

 

Precisava reagir. A primeira coisa a fazer era levantar e encontrar um vaso sanitário. A vontade de urinar incomodava cada vez mais. Ainda deitado, começou a se mover e percebeu que não estava usando seu costumeiro pijama, mas calça jeans e uma camisa de mangas compridas. “Como assim?”, pensou. “Será que bebi tanto que adormeci sem trocar de roupa?”.

Sim, havia adormecido sem trocar de roupa. E tinha mesmo bebido. Agora começava a lembrar. Saíra do trabalho com o Flávio e o Gerson para tomar uns uísques no Skina Bar. Três amigas do Gerson apareceram por lá. Preferiram beber vinho. Valdomiro exibiu seus conhecimentos enológicos. Que não eram lá grande coisa, mas suficientes para uma das moças ficar interessada na conversa. Valdomiro lembrou de ter bebido vinho com ela. Bonitinha a moça.

Mas as lembranças de Valdomiro foram rapidamente interrompidas. A vontade de urinar reclamava a sua atenção. Retomando seu intento de procurar um banheiro, conseguiu sentar na beirada da cama. Já enxergava alguma coisa, mas, do pouco que via, nada reconhecia. E tudo continuava a se mover, como se ele estivesse dentro de um barco, em uma noite de tempestade. Um lugar estranho em uma noite estranha. “Como vim parar aqui?” – pensava.

Enquanto se preparava para ficar de pé, mais imagens vinham-lhe à mente. Na saída do bar, carros estacionados na rua, muitos. O de Valdomiro não estava lá. “Claro! Eu estava de carona com o Gerson!”. Mas, teria voltado com ele? Não lembrava, embora fosse o mais provável… A não ser que tivesse passado para o carro daquela amiga do Gerson… Como era mesmo o nome dela…?

Esses pensamentos passavam pela cabeça de Valdomiro em uma velocidade espantosa, enquanto ele, ainda sentado na beirada da cama, tentava firmar os pés no chão. As pernas tremiam, os braços também. Ao primeiro esforço para se erguer, a cabeça deu um giro tão rápido que o obrigou a permanecer sentado e apoiar as mãos no colchão. Sentiu vontade de vomitar. Manteve o controle.

“Se foi mesmo ela quem me trouxe para cá, deve ter ficado decepcionada. Não tirei nem a roupa! Não deve ter acontecido nada aqui…”. Pensou nisso e voltou imediatamente o olhar para o outro lado da cama. Os olhos já habituados à falta de luz o permitiram vislumbrar a silhueta da mulher. Estava deitada na cama, envolta no lençol, de costas para ele.

Valdomiro agora tinha certeza da comédia de mau gosto que protagonizara. Preparou-se para mais uma tentativa de se erguer e sentiu algo incomodando no bolso da calça. Era o telefone celular. Pegou o aparelho e olhou as horas. Três e vinte e sete da madrugada. “Meu Deus! Se a Marilda ligar agora, eu vou dizer o quê?”.

Sim, havia Marilda, a mulher de Valdomiro. Ela não se incomodava que ele saísse de vez em quando com os amigos e bebesse um pouco. Mas ficar até tão tarde na rua era algo que ainda não havia acontecido nos seus quase seis anos de convivência. Valdomiro tentou imaginar o que poderia acontecer, mas a cabeça, latejando de dor, não permitia raciocínios complexos. O que ele sabia mesmo é que tinha que sair dali e que, antes, precisava de um banheiro. Já não estava mais suportando a vontade de urinar.

Teve uma ideia. Acendeu a lanterna do celular, para iluminar o caminho até um possível banheiro no entorno.

Finalmente de pé, não resistiu à tentação de apontar o foco da lanterna para aquela mulher com quem acabara de compartilhar a cama, mas de quem sequer lembrava o nome.

A luz deve tê-la incomodado, porque ela virou-se em direção a Valdomiro e, protegendo os olhos com a palma da mão esquerda, perguntou mal-humorada:

– Que porra é essa Miro? Ainda tá bêbado?

Era a Marilda.

Valdomiro até hoje não sabe dizer se levou um susto ou se sentiu um alívio ao reconhecer a esposa. Talvez os dois. O certo é que, um segundo depois, reconheceu também o abajur que ela acabava de acender, a cama, o quadro na parede…

Valdomiro agora tinha ciência de todas coisas ao seu redor. Sem pronunciar uma palavra, cambaleou em direção ao banheiro. As mãos tentando abrir o zíper da calça. Não conseguiu. Dominado por movimentos antiperistálticos, ajoelhou-se diante do vaso sanitário e sentiu como se as vísceras lhe quisessem escapar pela boca. Enquanto vomitava, a urina lhe descia pelas coxas e formava uma poça junto aos joelhos.

Debilitado, mas confortado por saber que estava na segurança de seu apartamento, Valdomiro agora se preocupava apenas com a reação de Marilda quando o dia amanhecesse. Mas foi ela mesma quem pôs fim a suas preocupações, ao dizer em tom compassivo tudo o que ele precisava ouvir:

– Porra, Miro. Que cachaça foi essa? Nunca te vi assim. O Flávio e o Gerson te trouxeram praticamente carregado nos braços. Veja se você consegue tomar um banho frio. Enquanto isso eu vou preparar um caldo com um resto de carne moída que sobrou da janta.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 19 de setembro de 2022

UNS VERSOS (POSTAGEM DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UNS VERSOS

Marcos Mairton

Ficou assim:

Hoje em dia não me espanto
Com nada do que acontece
Nem com fumaça que desce
Nem com bola que tem canto.
Tá tudo estranho num tanto
Que poste mija em cachorro
Na cabeça, em vez de gorro,
Tem gente usando sapato,
O rato persegue o gato,
Mas eu, de tédio, não morro.

Se mandar parar, eu corro
Se mandar correr, eu paro
Baixando o preço, acho caro.
Se me matarem, não morro.
Só vou a pronto-socorro
Se não estiver doente.
Animal, pra mim, é gente,
E gente é bicho selvagem,
Vou partir numa viagem
Pra ficar aqui presente.

Eu, tomando um caldo quente,
Quase queimava o meu pé.
Pedi então um café,
Que é bebida transparente.
Um ateu disse: – Sou crente!
Mas só creio duvidando.
Se eu sair, já vou chegando.
Todo largo é muito estreito.
Todo impossível tem jeito,
Já começo terminando.

Eu termino começando,
Eu construo destruindo,
Se estou voltando, estou indo,
Se estou indo, estou voltando.
Vi uma cobra voando
E um falcão que se arrastava.
Vi um mudo que falava,
E um cego que tudo via.
Anoiteceu meio-dia
Mas nenhum galo cantava.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 18 de setembro de 2022

GADO NOVO (CRÔNICA LITEROMUSICAL DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORiANO)

 

GADO NOVO

Marcos Mairton

 

Dizia ainda o jornal que, “no último dia 21, a canção virou assunto nas redes sociais após ser mencionada no caderno de provas do primeiro dia do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)”.

Veja matéria clicando aqui

Nada disso me surpreende, porque “Admirável gado novo” – uma referência à obra “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, é uma dessas canções que não se desgastam com o tempo.

Aliás, no tempo atual do Brasil, marcado por grande polarização política, com numerosos grupos de pessoas que apoiam cegamente um ou outro líder, chamar o outro de “gado” virou um xingamento bem popular.

Tocado pelas reflexões que me foram trazidas pela inclusão de “Admirável gado novo” no ENEM, chamei uma turma que gosta de tocar, para darmos a nossa própria interpretação da música.

 

 

 

Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 05 de setembro de 2022

A VOZ DO POVO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

A VOZ DO POVO

Marcos Mairton

 

Carnaval chegando, vamos reativar a coluna com uma marchinha pra todo mundo cantar nos dias de folia.

O tema é superconhecido da comunidade fubânica, aliás de todo o povo brasileiro.

Afinal, é o povo que diz: “Ex-corno não existe!”

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 26 de agosto de 2022

TIRO NO PÉ (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

TIRO NO PÉ

Marcos Mairton

Ultimamente, tenho encontrado nos jornais, com certa frequência, textos escritos por analistas políticos ou econômicos usando a expressão “tiro no pé”. A cada vez que isso acontece, lembro de um caso que julguei em Fortaleza, sobre um assalto a uma agência dos Correios.

A expressão é relativamente comum, mas não custa lembrar que “tiro no pé” é “algo que foi feito ou planejado errado, e a pessoa que o executou, pensando que ia se dar bem, acabou se prejudicando”. As aspas estão aí porque fui buscar a explicação no site Dicionário Informal. É sempre bom usar referências bibliográficas.

Mas de onde teria surgido a expressão? Quem teria dado o primeiro tiro no pé?

Fiz uma rápida pesquisa no Google e nada encontrei. Muitos sites explicam o que a expressão significa, mas ninguém diz de onde ela surgiu.

Diante do vazio informativo, busquei na minha própria experiência a resposta para as indagações acima.

Porque, afinal de contas, não sou leigo no assunto quando se trata de manusear armas de fogo. Quando me registrei, em 2019, no Clube Esportivo de Atiradores, Caçadores e Colecionadores do Distrito Federal (CEACC-DF), já havia feito, por razões profissionais, vários cursos de autoproteção, todos eles incluindo o uso de armas de fogo para defesa pessoal.

Nesses cursos, uma lição sempre se repetiu: em deslocamentos com a arma pronta para uso, manter o cano para baixo, em um ângulo de 45 graus em relação ao eixo vertical.

O motivo do cano direcionado para baixo é evitar um disparo acidental contra alguém que esteja à sua frente, mas o ângulo de 45 graus serve para que não aconteça o fato sobre o qual tratamos aqui: um tiro no pé.

Lembro então de uma cena que vi em um filme cuja trama se passava no século XVIII, talvez XIX. Dois jovens se enfrentavam em um duelo com pistolas. De costas um para o outro, caminhavam dez passos em sentidos opostos. Depois, viravam-se e atiravam.

Durante a caminhada, mantinham as pistolas com o cano apontado para baixo, mas sem observar a regra dos 45 graus. Talvez tenha surgido assim a expressão “tiro no pé”. Algum duelista mais nervoso deve ter apertado o gatilho antes da hora e acertado a extremidade de um de seus membros inferiores.

Foi mais ou menos o que aconteceu naquele caso do assalto à agência dos Correios que um dia julguei.

Os dois assaltantes estavam dentro do estabelecimento, quando chegaram ao local dois policiais, alertados por populares.

Os militares foram recebidos à bala. Depois de uma breve troca de tiros, um dos assaltantes pegou para refém uma senhora de aproximadamente 50 anos de idade. Saiu da agência fazendo da mulher um escudo humano. O outro assaltante vinha logo atrás.

Já na calçada, a arma do assaltante disparou. Um tiro no pé. Não dele, mas da refém. A mulher caiu ao solo. Um dos policiais, demonstrando grande habilidade, aproveitou o momento e disparou também a sua arma, alvejando o assaltante no abdômen. O outro indivíduo levantou as mãos, rendendo-se. Foram presos.

É por isso que sempre que ouço alguém dizer que “fulano deu um tiro no pé”, no sentido figurado, lembro desse caso, quando o tiro no pé foi literal. Não foi no pé de quem atirou, mas quem atirou acabou se dando mal também.

Neste ano de eleições para vagas de presidente da república, governador, senador, deputado federal e deputado estadual, estratégias eleitorais aparentemente geniais podem acabar resultando em verdadeiros tiros no pé. Espero que apenas no sentido figurado.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sábado, 20 de agosto de 2022

DIFICULDADE PARA ESCREVER (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

DIFICULDADE PARA ESCREVER

Marcos Mairton

 

 

Foi difícil reconhecer, mas ultimamente tenho tido dificuldade para escrever.

Não que me tenham escasseado as ideias. Ou que eu tenha perdido a capacidade de expressá-las. Não é isso, tenho certeza.

Também não posso dizer que me falta tempo livre. Porque tempo livre é algo que há muito tempo não tenho. Sempre me encontro tratando de alguma questão relacionada ao trabalho ou à minha vida pessoal. Isso nunca me impediu de escrever meus contos, crônicas e cordéis. Nem de compor e gravar minhas canções. As madrugadas existem também para essa finalidade.

Na verdade, por doloroso que me seja admitir, o que me tem freado a capacidade de escrever é o receio de falar o que não devo.

Porque tem muita coisa acontecendo em nosso país – dessas que dá uma vontade danada de comentar – e a vontade de escrever vem todo dia. Mas sempre vem junto aquele receio de entrar em polêmica. E ser chamado de fascista, de comunista, de bolsonarista, de lulista, de incompetente, de burro e outras coisas que não quero citar aqui.

Outro dia, lancei uma pergunta aos meus seguidores no Twitter: “Será que, se eu disser que achei a visita do Elon Musk positiva, estarei declarando automaticamente apoio ao governo?”.

Várias pessoas responderam que sim. Só uma respondeu que não.

De certa forma, foi uma pergunta retórica. Eu mesmo já sabia, de antemão, que avaliar positivamente a vinda de Elon Musk ao Brasil significaria ser visto por muitos frequentadores das redes sociais como bolsonarista.

Porque é assim que temos vivido no Brasil.

Se você é a favor do direito de o cidadão ter a posse de uma arma de fogo, você é fascista; se é contra é comunista. Se é contra a obrigatoriedade de vacinas contra a COVID, é negacionista; se é a favor, é globalista. Se diz que confia nas urnas eletrônicas, é golpista; se não confia, também.

É como se as pessoas não pudessem mais ter opinião própria. Todo mundo está seguindo uma manada. Ou um rebanho. A questão é apenas definir: qual? qual das manadas essa pessoa segue?

Tudo isso me faz lembrar a canção do saudoso Belchior: “Saia do meu caminho. Eu prefiro andar sozinho. Deixe que eu decida minha vida”.

Eu também prefiro andar sozinho. E, se for para errar, prefiro errar sozinho. Mas isso não tem sido fácil ultimamente.

De todo modo, espero que, admitindo publicamente a razão da dificuldade que tenho tido para escrever, eu consiga superar esse bloqueio.

Claro que continuarei atento aos impedimentos legais aos quais estou submetido, mas espero me incomodar menos com eventuais enquadramentos nas caixinhas ideológicas disponíveis.

A propósito, gostei muito da visita do Elon Musk ao Brasil. Esse cidadão parece ser mais que o homem mais rico do mundo no momento. Parece estar interessado em algo grande, revolucionário, que o faça entrar para a história.

Imagino que muitas pessoas vejam isso como egocentrismo, e talvez seja mesmo. Mas os ucranianos que estão utilizando a internet em plena guerra, com a ajuda do StarLink, certamente não estão preocupados com isso.

Aqui, em nosso país, espero que a conjunção de esforços de empresas de Elon Musk com empresas ou entidades governamentais brasileiras possam gerar bons frutos para o nosso povo.

Parece-me evidente que essa seja uma expectativa legítima, independentemente de quem seja o presidente da República. Mas também me parece claro que pouca gente está interessada nisso. Pelo menos nos dias atuais.

Hoje, para alguém se posicionar sobre algo, geralmente é necessário levar em consideração fatores político-ideológicos, digamos, mais complexos.

E segue o jogo!

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 14 de agosto de 2022

OS CARCARÁS E O POMBO

OS CARCARÁS E O POMBO

Marcos Mairton

 

No dia 25 de fevereiro de 2022, uma sexta-feira, almocei com um amigo em um restaurante que fica na margem do Lago Paranoá, na Vila Planalto, em Brasília.

Lembro bem a data porque foi no dia seguinte ao início da invasão russa à Ucrânia.

Ao sair do local, testemunhei um fato da natureza que muito me impressionou.

Aconteceu em um terreno baldio, próximo ao restaurante. Havia no local algum lixo acumulado. Um bando de pombos se alimentava ali.

A rua estava praticamente sem movimento. Eu dirigia meu carro bem lentamente, quando percebi que um daqueles pombos estava com problemas. Aparentemente, ele havia pisado em um saco plástico que continha alguma substância pegajosa. Ao tentar voar novamente, arrastou o saco grudado em seu pé.

Vendo que o pombo conseguia voar apenas por alguns metros, mas acabava arrastado novamente para o chão, pelo peso do saco de lixo preso a sua perna, parei o carro e fiquei observando, como se pressentisse que algo aconteceria ali.

E aconteceu mesmo. De repente, surgiram dois carcarás.

Pela maneira como surgiram, desde o alto, voando em círculos até se aproximar do solo, parece que passavam por ali e perceberam — assim como eu percebi — a dificuldade de locomoção do pombo.

Segundos depois, um dos carcarás já estava pousado no chão, com a cabeça do pombo sob suas garras. O outro pousou em seguida. Mais alguns segundos e as duas aves de rapina já estraçalhavam o pombo com seus bicos poderosos.

Demorei ainda alguns minutos com o carro parado, assistindo àquela cena selvagem. Literalmente, selvagem, em plena paisagem urbana.

Depois, enquanto dirigia a caminho de casa, fui refletindo sobre como a nossa vida de humanos têm situações como aquela.

Porque nós, seres humanos, temos a peculiaridade de, durante milhares (talvez milhões) de anos, termos sido presas, mas depois nos tornado grandes predadores. Talvez por isso, tanto na natureza como nas relações sociais, algumas vezes nos comportemos como presas, outras vezes como predadores.

Certamente influenciado pela invasão da Rússia contra a Ucrânia – iniciada no dia anterior àquele episódio, como já referi – pensei no quanto é perigoso um país abrir mão de sua defesa militar, ficando sem condições de reagir adequadamente a um ataque externo.

Refiro-me ao acordo feito pela Ucrânia, em 1990, em razão do qual o país abriu mão das armas nucleares então instaladas em seu território, em troca de segurança e reconhecimento como país independente.

Mas também pensei no assaltante, que, tendo a certeza de que o cidadão não tem uma arma em sua residência, entra nela e anuncia o assalto, seguro de que não haverá resistência.

Nessa segunda hipótese, alguns dirão que nossa defesa cabe à polícia. Que o Estado deve prover a segurança coletiva.

Realmente. Mas, se nossa segurança compete exclusivamente à polícia, por que existem empresas de segurança armada? Deve a lei permitir a uns que contratem seguranças armados mas a outros (exatamente aqueles que não podem pagar seguranças armados) proibir a posse de uma arma de fogo?

Aqui, é preciso diferenciar a segurança pública, coletiva, do direito à autodefesa.

É evidente que o Estado deve cuidar da segurança coletiva. Mas não se deve por isso privar o cidadão de sua defesa individual. É direito de cada indivíduo defender a si mesmo. E defender outra pessoa também, conforme as circunstâncias. A Constituição Brasileira prevê o direito à vida (art. 5º, caput), enquanto o nosso Código Penal exclui do rol de condutas criminosas a conduta praticada em legítima defesa, de si e de terceiros (arts. 23 e 25).

É justo a lei reconhecer o direito de defender a própria vida, e, ao mesmo tempo, tirar do cidadão os meios para exercê-lo? Penso que não.

A esse pensamento costuma-se opor o argumento, de ordem prática, de que armas, munição e treinamento também são caros, logo, inacessíveis a boa parte da população. Mas entre os que podem contratar empresas de segurança e os que não terão condições financeiras de comprar e manter uma arma existe muita gente, não? Deve-se negar a esses o acesso a uma arma? Responder positivamente é aceitar que o direito à autodefesa seria um privilégio de pessoas ricas.

Alega-se ainda que assaltantes sempre poderão estar mais bem armados que o cidadão, além de contar com o elemento surpresa. É verdade. Mas, se formos por esse caminho, deveremos considerar que, estando o cidadão desarmado, a superioridade bélica do assaltante já não será uma dúvida, e sim uma certeza. Com tal superioridade, sequer precisará do elemento surpresa.

Dito isto, volto ao pombo cuja única defesa contra os carcarás seria voar mais rápido que eles. Sem meios para se defender, virou presa fácil de seus algozes.

Os que discordam do meu ponto de vista aproveitarão esse encerramento para lembrar que voar rápido é uma característica natural dos pombos. Ao contrário das armas de fogo, construídas pela mão humana.

Meus amigos! Facas, martelos, bicicletas e automóveis também são construídos pela mão humana, e fazem parte das nossas vidas! A única característica que diferencia esses objetos das armas de fogo é que eles apenas acidentalmente nos causam ferimentos. Já as armas de fogo são feitas para isso.

Mas é exatamente pela possibilidade de causar ferimentos que as armas têm o poder de inibir – ou mesmo interromper – ataques injustos. Às vezes isso é necessário.

Em tempo: ao mesmo tempo em que considero justo que todo cidadão tenha direito à posse de uma arma de fogo, para sua defesa, reconheço que o seu uso exige habilidade, cautela e treinamento.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 10 de março de 2021

O ÚLTIMO CORDEL (FOLHETO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

 

O ÚLTIMO CORDEL
Marcos Mairton
 
 
 
 
 
Já havia alguns meses que o velho poeta estava prostrado naquela cama de hospital. Muitas foram as vezes em que as enfermeiras comentaram que daquele dia ele não passaria. Mas o dia terminava e ele continuava firme. Quando dava a impressão de que não veria o amanhecer, acordava melhor. 
 
E o mais incrível era que, apesar da saúde tão debilitada, todo dia o velho poeta aparecia com versos novos. Às vezes uma simples quadrinha, falando da luz do sol que entrava pela janela; outras vezes um romance inteiro de cordel, em sextilhas, septilhas ou décimas; outras ainda, decassílabos elogiando os dotes físicos de alguma das enfermeiras ou reclamando da comida.
 
Ele escrevia os versos em um caderno e depois os declamava, geralmente depois do jantar. Quando estava muito abatido e não conseguia ler em voz alta, pedia a alguma enfermeira que fizesse a leitura. As pessoas que trabalhavam ali, e até os outros doentes daquela enfermaria, divertiam-se com aquilo e afeiçoavam-se ao velho poeta.
 
Com o tempo, a doença foi se agravando e ele não pôde mais escrever. Pediu então, a um de seus filhos, um gravador, para que pudesse continuar criando seus versos sabendo que depois alguém os passaria para o papel. Isto fez com que o velho poeta se tornasse uma atração ainda mais especial daquele lugar. Gente que trabalhava nas outras enfermarias - e até em outros andares do prédio - passava por lá e se demorava perto do seu leito para ouvi-lo gravando as declamações de seus versos.
 
Um dia ele recebeu a visita de um repórter. O jovem jornalista queria saber da sua vida, das suas obras, mas, principalmente, da sua capacidade criativa, estando tão doente. Afinal de contas, a história de seus dias fazendo versos no hospital havia se espalhado e agora ele estava bem mais famoso do que fora em toda a sua vida.
 
O velho poeta respondia com boa vontade - e até com alegria - cada uma das perguntas. A certa altura, o repórter perguntou, como quem encaminhava a entrevista para o final:
 
- Depois de tantos cordéis, tantos poemas, tantas histórias de heróis, fadas e amores proibidos, ainda ficou faltando algum assunto que você gostaria de tratar em seus versos?
 
O velho olhou para a porta da enfermaria por alguns segundos, pensativo. Os olhos fixos no vazio, como se observasse imagens que só ele via. Depois, ligou o gravador e pediu ao repórter que também ligasse o dele, pois tinha mais uma história para contar. E começou.
 
O velho poeta estava
Na cama de um hospital
Dando uma entrevista
Ao repórter de um jornal,
Mas, no meio dessa prosa,
Uma mulher bem formosa
Chegou naquele local.
 
Ela estava bem vestida,
Elegante e perfumada,
Entrou sem fazer barulho,
Discreta e muito educada.
Em seguida, aquela dama
Postou-se ao lado da cama
E ficou sem dizer nada.
 
O velho continuou
O que já estava fazendo.
Às perguntas do repórter
Prosseguia respondendo.
E, enquanto o tempo passava,
A mulher observava
O que ia acontecendo.
 
A verdade é que o poeta
Desde cedo esperava
A chegada da mulher
Que agora ali estava.
Pois há meses ela ia
Ver o velho todo dia
E ali horas ficava.
 
Apesar disso, o poeta
Não lhe deu muita atenção.
Falava com o repórter,
Dando mesmo a impressão
De que estava incomodado
Com a mulher ao seu lado,
Feito um anjo guardião.
 
O tempo ia passando
E o velho não se calava.
Até mesmo o repórter
Nada mais lhe perguntava,
Pois o poeta dizia,
Em forma de poesia,
Cada coisa que lembrava.
 
Até que, uma certa hora,
A mulher se irritou.
Ficou de frente pro velho
E nos seus olhos olhou,
Disse: “Não quero ser rude.
Esperei tudo o que pude,
Mas agora terminou”.
 
“Faz meses que todo dia
Venho aqui pra lhe buscar,
Mas você encontra um jeito
De eu nunca lhe levar.
Pede sempre mais um dia,
Para alguma poesia
Que ainda tem de terminar”.
 
“Eu, que não sei fazer versos,
Mas acho lindo quem faz,
Sem querer vou lhe deixando
Ficar sempre um dia a mais,
E você, espertamente,
Usa desse expediente
Para me passar pra trás”.
 
“Agora é essa entrevista
Que parece não ter fim.
Que poeta embromador!
Nunca vi alguém assim.
Mas, chega desse tormento,
Não vou mais dar cabimento
Pra você zombar de mim”.
 
O velho fez uma pausa e pediu um pouco d’água. Respirava com dificuldade. A voz estava fraquinha, abafada, como se saísse de dentro de uma mala fechada. 
 
O repórter olhava espantado. Será que todos aqueles versos estavam sendo recitados de improviso? Ou o poeta já os havia criado antes, os guardou na memória e agora estava apenas declamando? De um jeito de outro, aquele homem velho e moribundo era um verdadeiro gênio.
 
Enquanto o repórter fazia essas conjecturas, o poeta respirou fundo e prosseguiu, falando pausadamente.
 
Então o velho entendeu
Que não adiantaria 
Encompridar a conversa
Nem fazer mais poesia.
Era hora da partida,
Desta para a outra vida,
Chegara enfim o seu dia.
 
De partir nessa viagem
O velho ficou com medo,
Mas a mulher disse a ele:
“Vou lhe contar um segredo:
Se você tivesse visto
Pra onde vai, eu insisto,
Tinha ido bem mais cedo”.
 
“O lugar do seu destino
Tem paz e tem alegria,
Tem amizade de todos,
Tem amor, tem harmonia
E uma turma preparada
Pra fazer, na sua chegada,
Uma grande cantoria”.
 
O velho inda duvidava
Que ela falasse a verdade,
Mas, ia fazer o quê,
Doente e naquela idade?
O jeito, então foi seguir,
E finalmente partir
Em busca da eternidade.
 
A mulher de quem eu falo,
O senhor já percebeu,
É a morte, que, nesse instante,
A sua mão me estendeu.
Então, o velho, cansado,
Naquela cama deitado,
Deu um suspiro...
 
E a voz do velho se calou para sempre, pelo menos por estas bandas. Não conseguiu pronunciar as últimas palavras do último verso, mas elas ecoaram na mente do repórter, das enfermeiras, dos médicos e dos outros empregados do hospital que se haviam aglomerado em redor de seu leito. 
 
A partir de certo ponto, todos haviam percebido que aquele seria o seu último cordel.

Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 28 de dezembro de 2020

UM ABRAÇO (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UM ABRAÇO (*)

Marcos Mairton

 

 

Xavier estava sentado, com os cotovelos sobre a mesa e o queixo apoiado nas palmas das mãos. Havia um murmúrio de vozes, mas ele parecia alheio ao que se passava ao seu redor.

Com os olhos fechados, podia ver, no fundo da sua mente, a rua lá fora.

Mas não havia ninguém ali. As calçadas, as praças, tudo estava vazio. Se alguém aparecia, caminhava apressado, olhando para os lados, como se estivesse fugindo de alguma coisa.

Um ruído o trouxe de volta ao bar. Um leve ruído. Porcelana tocando madeira. Em seguida, uma voz:

– Senhor… seu café…

O cheiro agradável da bebida encheu suas narinas. Agora ele ouvia as vozes e risos ao seu redor.

Xavier abriu os olhos. Percebeu a fumaça saindo do líquido escuro na xícara.

Ergueu-se e olhou para o garçom. Sem dizer uma palavra, o abraçou como se fossem velhos amigos.

E assim comemoraram o fim da pandemia.

(*) Este é meu último conto de 2020 no JBF. Que ele seja como uma profecia para 2021. Agradeço a todos os fubânicos que dedicaram algum tempo aos escritos desta coluna. FELIZ ANO NOVO!


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 21 de dezembro de 2020

O RESGATE DO GOLFINHO (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O RESGATE DO GOLFINHO

Foto por Melissa Carseller, do site Pipa Aventura

Certa manhã, um golfinho parecia disposto a por fim à sua própria vida. Tomando impulso com a cauda, deslizou na crista de uma onda e lançou-se em direção à praia, dando claros sinais de que estaria decidido a chegar até a areia. Ali fatalmente morreria de desidratação.

Os estudos mais recentes no campo da zoologia não levam muito a sério a possibilidade de animais se suicidarem. Apesar de haver relatos a esse respeito, os biólogos consideram outras razões – como estresse, medo ou tentativa de fuga de um cativeiro – que gerariam situações nas quais há apenas a aparência de o animal ter tomado a decisão de se matar.

Especificamente quanto à ordem dos cetáceos, da qual fazem partes golfinhos e baleias, sempre chama a atenção quando grupos inteiros encalham em alguma praia. Mas também nesses casos as teorias mais aceitas afastam a possibilidade de suicídio, pelo menos nos moldes dos cometidos por seres humanos.

Alheio a essa discussão entre cientistas, aquele jovem golfinho – sim, era um jovem golfinho – parecia firme em seu propósito de deixar para trás o oceano, a família e seus amigos marinhos.

Provavelmente já conseguia ver a areia da praia, quando, nos últimos metros do fatídico percurso, acabou esbarrando em algo que o impediu de alcançar seu objetivo.

Era um homem, que, depois de caminhar um pouco pela praia, havia entrado no mar até o ponto onde a água chegava à altura dos seus joelhos. Olhava distraído para o horizonte, quando foi surpreendido com o impacto do golfinho contra suas pernas.

Ao ver o golfinho debatendo-se naquelas águas rasas, com o dorso já exposto ao sol, o homem o empurrou contra as ondas, para que pudesse voltar à segurança das águas mais profundas.

Mas o golfinho não ajudava. Quanto mais o homem o empurrava para dentro do mar, mais ele insistia em ir em direção à praia.

Ficaram nesse impasse: o golfinho se esforçando para chegar à areia e o homem lutando, com todas as suas forças, para o devolver às profundezas do mar.

Até que, depois de alguns minutos, quando os dois já estavam ficando exaustos, o golfinho apontou subitamente o nariz em direção às ondas e, movimentando a cauda com força, seguiu mar adentro.

Num instante, foi como se uma luz houvesse iluminado a mente daquele golfinho. Parecia ter reconhecido que todo aquele esforço de um estranho para o salvar só poderia ser um sinal de que sua vida valia mais do que lhe parecia. Ou, pelo menos, mais do que lhe parecera em um momento ruim.

Mais alguns segundos se passaram. O homem agora via o golfinho saltar por sobre as ondas e desaparecer entre espumas. Com o golfinho a salvo, resolveu voltar para casa.

Enquanto ainda caminhava pela areia da praia, o homem admirava a beleza do céu e aspirava o ar com mais força, para sentir o cheiro do mar. Ouvia o barulho das ondas e sentia o atrito da areia sob os seus pés. Estava feliz com o que acabara de realizar.

Mas estava sobretudo grato àquele golfinho.

É que, naquela manhã, aquele homem havia saído de casa decidido a entrar no oceano o máximo que pudesse, até não conseguir mais nadar de volta.

O encontro com o golfinho o havia impedido de pôr em prática o seu plano suicida.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 30 de novembro de 2020

UMA MULHER, UM NOCAUTE (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UMA MULHER, UM NOCAUTE!

No dia 11 de fevereiro de 1990, James “Buster” Douglas, um boxeador até então praticamente desconhecido, surpreendeu o mundo: venceu o aparentemente imbatível Mike Tyson, detentor dos títulos mundiais de pesos pesados dos três principais organismos internacionais do boxe.

Tyson era um fenômeno. Destruía os adversários que encontrava pela frente. Suas lutas eram garantia de estádios lotados e picos de audiência na TV.

Mas, como a luta com Douglas aconteceu no Japão, muita gente no Brasil ficou sem assistir, por causa do fuso horário. Foi o que ocorreu comigo: fui a uma festa naquela noite de sábado e só no domingo pela manhã fiquei sabendo do resultado. Apaixonado que sempre fui pelo boxe, lamentei não ter visto o combate.

Calhou, porém, de acontecer que, no dia seguinte, eu passava pelo calçadão da Rua Liberato Barroso, no centro de Fortaleza, quando vi a luta sendo exibida em um televisor, na vitrine de uma loja de eletrodomésticos. A venda de videocassetes no Brasil estava em plena expansão, então o gerente havia gravado a luta e a estava exibindo como forma de atrair clientes.

Naquele tempo, eu era bancário e trabalhava das doze às dezoito horas, com quinze minutos de intervalo para o lanche. Havia saído para fazer uso dessa pausa, quando me deparei com a chance de ver a luta que havia perdido no fim de semana. Fiz um rápido cálculo da relação custo-benefício de me demorar por ali e decidi: ficaria sem meu repasto e ainda voltaria atrasado para o trabalho, mas veria a queda de Tyson. Afinal, em um tempo em que não tínhamos acesso a facilidades como TV a cabo e YouTube, quando é que eu teria oportunidade de ver aquela luta de novo?

Havia mais gente interessada em ver os dois lutadores trocando jabs, ganchos e cruzados. Logo se formou um grupo de espectadores na frente da vitrine. Embora naquele ponto do calçadão houvesse apenas um banco de praça, que não comportava mais que três pessoas, cada um ia se acomodando como podia. Dois jovens sentaram-se no chão, à frente do dito banco, enquanto outros três encostaram-se a um cesto de lixo. A maioria contava apenas com o apoio das próprias pernas. Com muito jeito, consegui um lugar escorado ao tal banco de praça, de três lugares, no qual, àquela altura, já estavam sentados cinco rapazes.

À medida que a luta continuava, muitas pessoas paravam para ver o que estava acontecendo, mas logo seguiam adiante. Apenas alguns homens, principalmente os mais jovens, é que acabavam ficando para ver o final. De qualquer modo, a cada round, o grupo de telespectadores aumentava.

Perto do final do oitavo assalto, já éramos mais de vinte. Um office-boy desatento cometeu o erro de passar entre nós e a vitrine, bem na hora em que Douglas pressionava Tyson contra as cordas. O protesto foi geral:

– Sai daí, abestado!

– Transparente!

– Vai passar na frente do cabaré da tua mãe!

O rapaz percebeu que estava incomodando e saiu dali rapidinho, ao som de uma sonora vaia. Não ficou claro se a vaia era para ele ou para Buster Douglas, que acabava de ir à lona, depois de receber um violento uppercut no queixo.

Agora já éramos mais de trinta. O office-boy seguiu o seu caminho e Douglas conseguiu se recuperar. A pequena multidão estava inquieta, os níveis de testosterona altos e subindo. O round nove já havia começado e a cada golpe dos lutadores, ouviam-se murmúrios, impropérios, choques de uma mão fechada contra a palma da outra mão. Parecia até uma transmissão ao vivo.

A expectativa aumentava. Enquanto os treinadores estavam novamente cuidando de seus pupilos e dando-lhes instruções, alguém lembrou que Tyson cairia no próximo assalto. Muitos de nós conversávamos sobre a luta como se fôssemos velhos amigos, embora nunca houvéssemos nos encontrado antes. Éramos como meninos desconhecidos a quem se entrega uma bola de futebol, capazes de passar horas jogando sem sequer saber os nomes uns dos outros.

Soou o gongo para o décimo assalto. Os lutadores levantaram de seus corners, aproximaram-se e trocaram alguns golpes. Douglas parecia mais determinado. Toda a nossa atenção estava voltada para a luta, quando, de repente…

Ela apareceu… Saindo, assim, do nada, como se houvesse se materializado ali mesmo… Veio andando lentamente, com o olhar voltado para a vitrine na qual assistíamos à luta, de forma que não dava para ver direito o seu rosto.

Mas quem estava preocupado com seu rosto, se havia tanto para admirar no restante do corpo? Corpo? Era um monumento! Tudo eram pernas, nádegas, peitos e sensualidade. Ainda mais com aquela blusa curtinha deixando à mostra a barriga, o umbigo… Uma sainha mais curta ainda, nos permitia admirar tudo o que podia ser visto das coxas para baixo e deduzir o que ficava encoberto dali para cima…

Aliás, que paradoxo ver que aquele pedaço de tecido era pequeno o suficiente para deixar tanta coisa à mostra, e grande o bastante para deixar tanta coisa oculta, a provocar nossa imaginação!

Mas, não me dedicarei a maiores detalhes quanto a descrições físicas. Dizer que era morena seria uma indelicadeza com as loiras, as negras, as ruivas… E vice-versa. Além do mais, o que importa a cor de sua pele ou a forma de seus cabelos? Era uma mulher fantástica e pronto, quem quiser que imagine a sua!

O que interessa é que continuou caminhando lentamente por aquele espaço sagrado que separava os lutadores de sua platéia, como se ignorasse totalmente nossa presença e não desse a menor importância para Mike Tyson e Buster Douglas.

Parecia concentrada em algo logo abaixo da TV, no chão da vitrine talvez. Parou e inclinou o tronco em uns quarenta e cinco graus, como se tentasse enxergar melhor algum detalhe do objeto de sua atenção, o qual até hoje não sei o que era. Lembro apenas que a inclinação de seu corpo fez com que a saia parecesse ainda mais curta.

Em pleno centro da cidade, no meio da tarde de uma segunda-feira, fez-se por alguns instantes um silêncio de igreja vazia. Até uma folha que caísse no chão seria ouvida naquele momento.

Mas nenhuma folha caiu. E nenhum de nós se moveu. Ficamos paralisados, vendo-a passar. Tenho certeza que muitos suspenderam a respiração por todo o tempo em que deslizou à nossa frente.

Alheia a tudo, ela continuou o seu caminho. Lentamente, despreocupadamente. Quando faltava apenas um passo para chegar à outra extremidade da vitrine, um engraçadinho saiu do transe em que se encontrava e soltou a voz:

– Aí tá certo, né? Pode é ficar passando pra lá e pra cá o dia todo que ninguém diz nada!

Foi o suficiente para nos libertar a todos. Uns gargalhavam, outros vaiavam, outros tantos aplaudiam. Um rapaz deu um tapa no ombro do outro e exclamou:

– Puta que pariu! O que é aquilo, meu irmão!?

O amigo limitou-se a abrir os braços e arregalar os olhos. Alguns chegaram a bater palmas cadenciadas e iniciar um coro de “Volta! Volta!”.

Acho que nessa hora ela percebeu que era a causadora daquele rebuliço, pois apressou o passo e afastou-se dali.

Então, quando nossa musa já praticamente sumia na multidão, olhei novamente para a TV e vi Mike Tyson caído. Engatinhava no ringue, em movimentos vacilantes como os de um bebê. Apoiou-se na mão esquerda, enquanto, com a direita, tentava recolocar o protetor na boca, mas o movimento era patético e inútil. A contagem chegava a dez. Estava derrotado. Restava-lhe como consolo apenas o abraço carinhoso do mediador do combate.

Quanto a mim, sabia que o melhor a fazer era voltar correndo para o trabalho e torcer para que meu chefe não houvesse percebido que eu havia prolongado demais o intervalo para o lanche.

(*) Escrevi essa crônica em 2010. Está no meu livro “Contos, crônicas e cordéis“, de 2012. Ao ver os anúncios da volta de Mike Tyson, em luta contra Roy Jones Jr., resolvi postá-lo novamente.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sábado, 07 de novembro de 2020

METAIS (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

METAIS

Marcos Mairton

 

Mas, como já disse em várias oportunidades, às vezes os personagens de um conto me aparecem em sonho, pedindo para que eu conte suas histórias. E, nesse caso, um dos personagens insistiu muito. Primeiro, pedindo que eu escrevesse o texto, depois, que o publicasse. Ao todo, foram mais de uma dúzia de aparições, praticamente implorando que o caso fosse exibido em linguagem escrita.

Acho que ele me venceu pelo cansaço. Não quero mais sonhar com isso.

Eis, portanto, o texto encaminhado para publicação.

Apenas advirto: SE VOCÊ É UMA PESSOA CUJA SENSIBILIDADE RECOMENDA NÃO LER HISTÓRIAS VIOLENTAS, PARE DE LER AQUI.

Feita a advertência, vamos aos fatos.

Em uma manhã ensolarada de um dia qualquer, no meio da semana, um rapazinho, de seus dezesseis anos, caminhava em uma praça com seu cãozinho. Era um animalzinho pequeno e peludo, talvez um maltês ou um shitszu. Com a coleira presa a uma guia retrátil, às vezes se adiantava em relação ao seu humano, às vezes ficava um pouco para trás.

O rapaz, com algumas espinhas e muitas sardas no rosto branco, tinha o cabelo grande o suficiente para esconder um pouco dos olhos, mas não para chegar até os ombros. Parecia não ter se penteado naquela manhã. Vestia uma bermuda de estampa camuflada – aparentemente folgada para seu corpo franzino – e comprida, cobrindo suas pernas finas até a altura dos joelhos. A camiseta branca, surrada, com uma frase qualquer no peito, em inglês, bem poderia ser uma espécie de pijama. Nos pés, sandálias de borracha, dessas chamadas japonesas, com uma parte que se prende entre o dedão e o indicador.

Seguiam em plena harmonia, com as devidas pausas para o pequeno animal farejar alguma coisa ou fazer suas necessidades fisiológicas. Não demorou até o rapaz tirar um saco plástico de um dos muitos bolsos da sua bermuda, recolher dejetos sólidos do seu amigo canino e os depositar em um cesto de lixo. Depois seguiram em seu passeio matinal.

Estavam nisso, quando o rapazinho percebeu um sinal de perigo. Em sentido contrário, vinha um homem, de uns 30 anos, também acompanhado de um cão. Fisicamente bem mais forte que o rapaz, usava apenas calção e tênis. Aparentemente, havia saído de casa sem camisa, não pela falta da peça em seu guarda-roupa, e sim para exibir a pele bronzeada e a musculatura do tórax e dos braços.

Mas não era a compleição física do homem que havia gerado tensão no rapaz. O problema era o cão que o acompanhava: um pitbull, desses que metem medo mesmo quando estão presos em uma jaula de ferro.

Era um cão de pernas relativamente curtas, como costumam ser os pitbulls. O dorso mal chegava à altura do joelho do seu condutor, mas o peito largo e o pescoço grosso davam uma ideia da força daquele animal. Tinha o pelo marrom – salvo uma parte branca no peito – e olhos castanhos, o que fazia com sua cabeça parecesse a de uma estátua de bronze.

O rapazinho que caminhava com o shitzu (ou talvez um maltês) provavelmente não viu de imediato essa parte da cor dos olhos, por causa da distância que havia entre eles no momento do encontro, uns 80 a 100 metros. Mas deve ter percebido que o pitbull parou de andar e se postou com o corpo ereto e as orelhas e a cauda erguidas. Na linguagem corporal canina, isso significa estado de alerta. Ou, mais precisamente, que avistara o cãozinho. E que o via como um alvo.

O jovem também parou. Deu um rápido puxão na guia do seu bichinho de estimação, sinalizando sua parada, e olhou para os lados, como se pensasse em mudar de direção.

Mas isso durou apenas um instante. Porque, no instante seguinte, ele olhou novamente para a frente e percebeu que o pitbull já vinha, em desabalada carreira, em sua direção.

Não foi possível identificar se o animal havia se soltado, ou se já passeava solto. Sabe-se apenas que o seu dono continuava caminhando lentamente, como se não houvesse percebido o ataque. Trazia em uma das mãos uma grossa corrente de aço inoxidável, a qual, presume-se, deveria estar presa ao pescoço do seu cão.

Enquanto isso, o cãozinho peludo já sentia a pressão das presas do pitbull em seu pescoço, enquanto era sacudido de um lado para o outro violentamente. Sua sorte parecia definida, quando algo inesperado aconteceu.

Sem muita pressa, e demonstrando total segurança em seus movimentos, como se fossem ensaiados, o rapazinho largou a guia, pôs a mão direita em um dos bolsos laterais de sua bermuda camuflada e sacou de lá uma pequena faca dobrável, consideravelmente pontiaguda.

Com surpreendente habilidade no uso do instrumento perfurocortante, o jovem desdobrou a faca, agachou-se e moveu a lâmina de baixo para cima, cravando-a no abdômen do pitbull, próximo às costelas. Depois, fez um movimento horizontal, rasgando a barriga do animal, desde o ponto da perfuração até a sua genitália.

Talvez pelo efeito da adrenalina em seu corpo, o pitbull não deu o menor sinal de que a perfuração houvesse lhe causado dor. Simplesmente caiu para o lado, debatendo-se, enquanto seu sangue e seus intestinos espalhavam-se pelo chão da praça.

Agora seu dono havia apertado o passo, e estava a uns dez metros do local do incidente. Olhos arregalados, boca aberta, parecia não acreditar na cena à qual acabara de assistir.

O rapazinho, então, com a mão, o braço, o rosto e a camiseta sujos de sangue, ficou novamente de pé, ergueu no ar a faca e gritou:

– Para o animal bravio, o aço frio!

Ao ver aquela cena, o dono do pitbull parou assustado. Demorou alguns segundos antes de ser tomado por ira e iniciar uma reação:

– Filho da puta! Tu matou meu cachorro! – gritou.

Transformando em arma a corrente que trazia à mão – e que poderia ter evitado todo esse problema – partiu em direção ao jovem, dando sinais de intenções nada pacíficas.

Mesmo diante daquela demonstração de fúria, o rapazinho, mais uma vez, não se abalou. Guardou a faca no mesmo bolso de onde a retirara minutos antes, e, enquanto levantava a camisa com a mão esquerda, procurava, com a direita, alguma coisa na parte de trás da sua cintura.

Retirou dali uma pistola preta, não muito grande. Engatilhou-a e disparou contra o dono do pitbull, que a essa altura estava a não mais que três metros de distância.

Foram dois disparos no peito. Enquanto o homem agonizava no chão da praça, o rapazinho aproximou-se dele calmamente. Ergueu a mão que segurava a arma, e disse, em voz alta, mas com uma serenidade assustadora:

– Para o humano inconsequente, o chumbo quente.

Pronunciadas aquelas palavras, guardou a arma, pôs carinhosamente nos braços o seu cãozinho ferido, e saiu caminhando lentamente, como se nada houvesse acontecido.

Próximo da esquina, havia um carro estacionado, de onde saiu uma mulher de uns 50 anos, que o abraçou e verificou os ferimentos do cãozinho.

Depois, todos embarcaram no veículo e deixaram o local.

A polícia chegou minutos depois, pedindo informações aos transeuntes sobre o ocorrido, mas não conseguiu nada relevante. Mesmo no prédio em frente à praça, de onde algum morador na janela poderia ter filmado tudo com o celular, os investigadores não conseguiram nenhuma pista.

Tudo que se sabia era que se tratava de um rapazinho de aparência inofensiva, mas que sabia matar. E que, conforme a natureza dos seus inimigos, escolhia o metal com o qual lhes tiraria a vida.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 28 de outubro de 2020

AVES PRETAS E POETAS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

AVES PRETAS E POETAS

É grande e justa a fama do poema de Edgar Allan Poe, “O Corvo” (The Raven), de 1845.

Um poema narrativo, cheio de suspense e mistério, que fala de um insólito encontro entre alguém que está sozinho em casa, em uma noite fria de dezembro, e a ave, que chega de surpresa.

Tendo sido vertido para vários idiomas, conta com traduções para a língua portuguesa assinadas por ninguém menos que Fernando Pessoa (clique aqui para ler) e Machado de Assis, em O Corvo

Mais recentemente, na década de 1970, nosso saudoso conterrâneo Belchior juntou Allan Poe com Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, ao por o Corvo na companhia do Assum Preto, em sua canção “Velha roupa colorida”:

Como Poe, poeta louco americano
Eu pergunto ao passarinho
Black bird, assum preto, o que se faz?
Raven, never, raven, never, raven, never, raven, never, raven
Assum preto, pássaro preto, black bird, me responde: Tudo já ficou atrás
Raven, never, raven, never, raven, never, raven, never, raven
Black bird, assum preto, pássaro preto, me responde:
O passado nunca mais.

Pois também eu me inspirei no Corvo, ao encontrar, empoleirada no telhado da minha casa, outra ave. Também preta, também misteriosa.

O URUBU

Inspirado no poema “O Corvo” (The Raven), de Edgar Allan Poe

Certo dia, numa tarde ensolarada,
Regressava ao meu lar, minha morada.
Quando, ao chegar à frente do portão,
Surpreendeu-me a insólita visão
De um grande e majestoso ser alado.
Que, ali, postado ao topo do telhado
— a um só tempo, próximo e distante —
Como estátua, das que habitam os portais,
Em silêncio, sério, sóbrio e elegante,
Olhava-me apenas, e nada mais.

Observando a imponente figura,
Com sua plumagem quase toda escura,
Veio-me a ideia de que aquela imagem
Bem poderia ser a de um personagem,
Já conhecido, de outro tempo e lugar.
Lembrava eu, então, do corvo de Edgar.
Que em sua casa, entrou, num certo dia,
De ventos frios, quase glaciais.
E às perguntas do poeta respondia
Sempre a resposta mesma: “Nunca mais!”

Imaginei, mas só por um momento
Fez-me sentido aquele pensamento,
De que a ave sobre o meu telhado
Fosse o corvo em versos retratado
Pelo famoso poeta americano.
Rapidamente, reparei o engano,
Pois que lembrei, olhando o céu azul,
De um detalhe sobre esses animais:
Corvos não há na América do Sul,
Se um dia houve, hoje não há mais.

Assim, ficou, de plano, esclarecido,
Que a ave que houvera ali surgido
Não era corvo. E, de fato, a olho nu,
Bem se via se tratar de um urubu.
Um urubu que, abrindo suas asas,
Sobrevoou, decerto, muitas casas,
Até que veio a pousar na minha,
Muito embora ali houvesse outras tais.
Um urubu, que não se sabe de onde vinha,
Simplesmente estava ali, e nada mais.

Mas, mesmo resolvida essa questão,
De que a ave ali pousada não
Seria o corvo, o corvo tão famoso,
Continuei intimamente desejoso,
De que o ser, de tão escuras penas,
Não fosse um simples urubu, apenas,
Mas uma ave que então respondesse
Minhas perguntas, quem sabe outras mais.
Que eu, depois, em versos escrevesse
Ainda que somente repetindo: “nunca mais”.

Pensando assim, passei a indagar:
Ó, ave misteriosa, podes me falar
Do que tens visto quando estás voando?
Ou do que chega aos teus ouvidos quando
Planas tranquilo em grandes altitudes?
Conta-me, pois, se entre tuas virtudes
Está a generosidade de dizer
Aos que não voam – como nós, pobres mortais –
Coisas que somente hão de saber
Os que alcançam altitudes colossais!

Mas o urubu calado permanecia.
Se tinha algo a dizer, não me dizia.
Talvez guardasse íntimos segredos,
Talvez apenas escondesse medos,
Por estar pousado, e não voando.
Enquanto eu, já me impacientando,
Deixei transparecer que era presa
De um dos sete pecados capitais:
“Fosse eu poeta de maior grandeza,
Tu certamente falarias mais!”.

Mas até o meu insulto foi ignorado.
E o urubu permaneceu calado.
Ao contrário do corvo, em Baltimore,
Que respondia sempre “nevermore”
A cada indagação de Edgar.
Conformei-me, desisti de perguntar.
E, amuado, me calei também.
E, sem dizer sequer um “nunca mais”
Parecendo mesmo demonstrar desdém,
A ave foi-se em ventos termais.

Passou o tempo e esqueci o ocorrido
Até que um dia tudo fez sentido:
Não foi por má educação ou desrespeito
Que o urubu se comportou daquele jeito.
Explico: anos depois fiquei sabendo,
Em obra de ornitologia que andei lendo,
Que, na verdade, por não ter siringe,
– órgão das aves, de funções vocais –
Permanecia a ave, tal qual uma esfinge,
Em seu silêncio, sem falar jamais.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 25 de outubro de 2020

O TELEFONEMA DO MINISTRO (CAUSO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

O TELEFONEMA DO MINISTRO

 

Quarta-feira passada (21-10-2020), o Senado Federal aprovou a indicação do Desembargador Federal Kassio Nunes Marques para a cadeira deixada vaga pelo Ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal.

O fato me fez lembrar um conto que publiquei há quase três anos, e que alguns amigos juram que é baseado em fatos reais.

Não é. É ficção. Claro que em toda ficção há algo de realidade. Como em toda narrativa que se pretende verdadeira há um pouco de ficção (até no depoimento de uma testemunha, sob juramento).

Mas penso que, ao escrever um conto, o autor deve saber se está adaptando um fato real para a ficção, ou se está criando uma narrativa simplesmente imaginada, inserindo nela elementos de realidade.

O conto a seguir é dessa segunda espécie. Garanto.

Portanto, não fiquem perguntando nos comentários quem é Genário, porque essa pessoa não existe no mundo real.

Vamos ao conto.

* * *

AMIZADE SEM INTERESSE

Brasília, 23 de fevereiro de 2017. Circunstâncias alheias ao meu controle levaram-me a almoçar em um restaurante tipo self-service, naquele horário que aparentemente toda a população da cidade resolve se alimentar: entre 12:30 e 13:30.

Feita a pesagem da comida, fiquei com prato e talheres na mão, procurando uma mesa vaga. Ou, pelo menos, uma vaga em alguma mesa, embora não me agrade almoçar ao lado de pessoas totalmente desconhecidas.

Foi então que notei a presença de um conhecido meu, ocupando sozinho uma mesa de quatro lugares. Aproximei-me cumprimentando-o:

– Doutor Genário! Tudo bem? Posso me acomodar por aqui? Ou tá esperando alguém?

– Não, não… Senta aí – respondeu ele sem muito entusiasmo.

Achei compreensível sua reação. Como alertei já no princípio, não era um amigo que estava ali, mas apenas um conhecido. Desses que a gente encontra eventualmente em solenidades e lançamentos de livros. Talvez quisesse almoçar sozinho, planejando o que faria à tarde, olhando as mensagens no celular. Ou, por qualquer outra razão, preferisse não ter ninguém compartilhando sua mesa. Ainda mais alguém como eu, com quem não tinha intimidade, mas que sua boa educação recomendaria dar alguma atenção.

O certo é que, sendo ele uma pessoa bem educada, e precisando eu de um lugar para sentar, passamos a dividir a mesma mesa, em um clima cordialidade protocolar.

Prosseguiu assim por alguns minutos, até que meu celular tocou.

Não costumo atender a ligações enquanto estou almoçando, mas vi que se tratava de um amigo de longa data, Alexandre Monteiro, advogado em Fortaleza, que há semanas não dava notícias.

Desde que mudei para Brasília, em 2016, para atuar como juiz instrutor do Superior Tribunal de Justiça, esse amigo, em tom de gozação, passou a me chamar de Ministro. E eu, devolvendo a brincadeira, trato-o por Ministro também.

Atendi:

– Ministro Alexandre! Onde é que você anda, amigo?

Alexandre respondeu como de costume. Que andava muito ocupado, com muitos processos, viagens, etc. Na verdade, o que importa aqui não é o que conversamos, mas a reação do conhecido que compartilhava comigo a mesa do restaurante.

A partir do momento em que atendi o telefone, doutor Genário passou a olhar para mim com particular interesse. Como se quisesse participar da conversa telefônica. Sem entender seu comportamento, continuei a ligação, mas observando sua linguagem corporal.

A certa altura da conversa, Alexandre convidou-me para o aniversário da sua filha, e eu, no tom formalesco que costumamos brincar, perguntei:

– E quando é a solenidade, Ministro?

Ao ouvir aquela pergunta, doutor Genário abriu um sorriso, inclinou-se em minha direção e perguntou num sussurro:

– É o Ministro Alexandre de Moraes?

Revelava-se, assim, o motivo do súbito interesse do meu comensal pelo telefonema que eu acabara de receber: aconteceu que, no dia anterior, o Ministro Alexandre de Moraes, recém indicado para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal, havia tido seu nome aprovado pelo Senado Federal, após a regulamentar sabatina; aparentemente, o doutor Genário deduziu que sua excelência acabara de telefonar para mim, e, pelo andar da conversa, deveria estar me convidando para sua posse na Corte Suprema.

Diante de tamanho interesse do Doutor Genário por assuntos ministeriais, faltou-me coragem para lhe causar algum tipo de frustração. Assim, no mesmo instante em que, ao telefone, confirmava presença no aniversário para o qual acabara de ser convidado, olhei para o meu companheiro de refeição e levantei o polegar, em sinal de positivo.

E, admito, não me limitei a isso. Penitencio-me até hoje por tal conduta, mas, a partir daí, passei a induzir deliberadamente o doutor Genário a erro, desejando a Alexandre sucesso nos desafios, e lembrando-lhe de não permitir que o trabalho nos impeça de tomar umas cervejas juntos, de vez em quando.

Ao final daquela ligação, doutor Genário estava mais sorridente, conversando mais e comendo menos. Antes de ir embora, fez questão de trocarmos cartões de visita, embora já houvéssemos feito isso em ocasião anterior (não sei se ele lembrava disso).

No dia seguinte, às 10:45 da manhã, doutor Genário enviou uma mensagem para meu celular: “Caro amigo, almoçarei hoje naquele mesmo restaurante de ontem. Caso você chegue depois, saiba que seu lugar na minha mesa está reservado”.

Respondi a mensagem, agradecendo a gentileza, mas fui fazer a minha refeição em outro lugar.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 23 de setembro de 2020

A ESTÁTUA DE ARIANO (CORDEL DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

A ESTÁTUA DE ARIANO

É difícil até de crer
Não ter sido por engano
Que alguém veio a cometer
Esse ato vil e insano,
Que foi o de derrubar,
Jogar no chão e quebrar
A estátua de Ariano.

O Mestre Ariano estava
Conosco até outro dia.
E a todos nós encantava
Com a arte da poesia.
Ter sua estátua quebrada,
Covardemente atacada,
O Mestre não merecia.

O seu nome está gravado
Na memória nacional,
Em um lugar destacado
Do cenário cultural.
Pois misturou, sem conflito,
Popular com erudito
Na expressão Armorial.

Mestre Ariano, é bem triste
Ver tua estátua caída.
Mas a cultura resiste
E não se dá por vencida.
Derrubar o monumento
Não apaga o teu talento
Nem tua história de vida.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 14 de setembro de 2020

PASSANDO O DEDO - VÍDEO COM MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

 

MARCOS MAIRTON – BRASÍLIA-DF

Caros leitores, temos um novo clipe no ar.

A música vocês já conhecem.

Acontece que juntamos à nossa interpretação os personagens da história, interpretados pelo ator Rodolfo Cordón, da Companhia de Comédia G7, e a atriz Kelly Costty, do Grupo de Teatro Celeiro das Antas.

O próprio Rodolfo Cordón fez o roteiro. Mariano Jr. do Hertz Studio, que já havia feito a produção musical, entrou com a produção e a direção do clipe.

A mim só resta agradecer a essa turma, que fez da minha canção um verdadeiro curta metragem de comédia.

Espero que vocês gostem.

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 28 de agosto de 2020

VALE A PENA VER DE NOVO

 

VALE A PENA LER DE NOVO

Na semana passada, o leitor Sancho manifestou, em comentários a esta coluna, certa decepção, por esperar um texto mais “caliente”, com lindas quadrigêmeas vietnamitas a lhe acalentar os pés.

Por coincidência, naquele mesmo dia eu estava trabalhando em um conto, cuja trama conta com corações bem mais aquecidos que os ‘Saltos Impossíveis”. Imediatamente pensei: é esse o novo conto que vai para a coluna no JBF esta semana!

Mas fui vencido pelos afazeres cotidianos e ainda não consegui terminar o conto.

Então, para não deixar Sancho e os demais leitores sem leitura esta semana, resolvi republicar um texto que foi escrito originariamente para esta coluna, mas hoje faz parte do livro “A manicure e outros casos de amor e traição”.

Quem não leu ainda, poderá ler agora. Para quem já leu, acredito que vale a pena ler de novo.

* * *

ENTRE AMIGOS

– Tenho um assunto meio delicado pra falar contigo – disse o Pereira ao Roberto, no meio da tarde da sexta-feira. Estava calmo, mas o olhar deixava escapar certa preocupação.

– Precisa ser agora ou pode ser depois do expediente?

– Pode ser depois. Sem problema.

– Tem happy hour hoje no Panela Velha. Será que dá pra gente conversar lá?

– Melhor não. Podemos dar uma passada no Bar da Tia Noélia? Depois a gente segue pro Panela.

– Beleza! – concordou o Roberto sorrindo, mas percebendo o tom preocupado do amigo.

No final da tarde, saíram do trabalho juntos e foram ao local combinado. Apesar do jeito sério como o Pereira falara horas antes, mantinham certa descontração.

Conheciam-se há mais de cinco anos, desde que o Roberto começou a trabalhar na empresa onde o Pereira estava há dez. Tornaram-se amigos rapidamente e era comum beberem juntos após o expediente. Geralmente iam com outros colegas de trabalho a um lugar – meio bar, meio restaurante – chamado Panela Velha, próximo à empresa. Mas, às vezes, saíam só os dois, principalmente se queriam conversar sobre temas mais reservados, como problemas de família ou aventuras com mulheres.

Se bem que, nesse segundo aspecto, quem sempre tinha alguma novidade para contar era o Roberto. Depois de haver passado por dois casamentos, vivia agora em uma união “quase estável”, como ele mesmo definia.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 19 de agosto de 2020

SALTOS IMPOSSÍVEIS (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

SALTOS IMPOSSÍVEIS

Deixando o Rio de Janeiro, em um ensolarado final de tarde, com destino a Brasília, desci do táxi e entrei no Aeroporto Santos Dumont. Não havia pressa alguma. O voo estava previsto para largas três horas depois. Teria tempo de sobra para fazer um lanche e observar o movimento, nessa fonte inesgotável de histórias que são os aeroportos.

“Todos os dias é um vaivém…”, diz a canção. E foi como se as vozes de Simone e Maria Rita disputassem um lugar em minha memória musical. É fato que a música fala de uma estação de trem; mas, de certa forma, dá no mesmo: os aeroportos são as novas plataformas para tantas chegadas e partidas, e outros tantos encontros e despedidas…

Decidido a não ter qualquer preocupação com o tempo, segui direto para o salão de embarque. Na fila do raio X, à minha frente, uma jovem tirou a jaqueta e a pôs na esteira, junto com a bolsa e o telefone celular. Usava uma calça um tanto quanto engraçada, ou pelo menos destoantes dos meus desatualizados padrões estéticos: colada ao corpo do joelho para cima, e abrindo-se em formato de cone, do joelho para baixo.

Chamou-me a atenção, ainda, o fato de ela ser mais alta que eu, característica pouco comum entre as mulheres que costumo encontrar cotidianamente.

Chegada a minha vez de passar os pertences pela máquina de raio X, pus a mala na esteira e o paletó em uma bandeja de plástico. Costumo tirar o paletó e pôr no raio X porque, assim, vão em seus bolsos meus dois telefones celulares, as chaves e outros objetos metálicos, como moedas. O notebook vai em outra bandeja, devidamente retirado da mochila e apoiado sobre ela.

Estava nessa fase do procedimento – tirando o notebook da mochila – quando ouvi uma voz feminina, logo à minha frente, demonstrando irritação.

Era a jovem de quem falei antes. Reclamava com o funcionário do aeroporto por ter que voltar e passar, novamente, pelo detector de metais. Uma luz vermelha piscava na parte inferior do portal a cada vez que ela transitava por ali.

O rapaz que controlava o equipamento tentava ser gentil, mas a moça queixava-se de já haver tirado todas as pulseiras e, até mesmo, o cinto.

– O problema é nos pés – explicava o rapaz. – Deve haver metal nos seus sapatos. Acontece muito isso…

O desentendimento entre os dois atrasava minha passagem, mas isso não chegava a ser um incômodo. Afinal, ainda restavam duas horas e quarenta e cinco minutos para o meu embarque.

Apesar dos protestos e da impaciência cada vez maior, a viajante acabou aceitando tirar os seus sapatos. Acomodou-se em um banco – aparentemente, posto naquele espaço para aquela exata finalidade – e pôs-se a descalçar, ali mesmo.

Foi, então, que contemplei os maiores saltos de sapatos que já pude ver em toda a minha vida!

A parte da frente, onde se apoiam os dedos e os metatarsos, deveria ter uns vinte centímetros de altura; os saltos propriamente ditos – que, em condições normais de temperatura e pressão, servem para apoiar o calcanhar – chegavam, facilmente, a uns trinta centímetros.

Não sei se a irritação da moça tinha alguma relação com o fato de ela ter que circular por ali, exibindo sua altura real. Aos meus olhos, a redução da estatura era algo que não a diminuía em nada – perdoem-me o trocadilho. Mas as pessoas têm suas preferências estéticas e, no caso, a diferença era bem grande.

Com os pés descalços, ela cruzou o portal do detector de metais, agora, sem acionar qualquer alarme. Pegou de volta seus sapatos com saltos gigantes, que haviam sido postos na esteira do raio X, e os calçou novamente. Ocultos sob sua calça engraçada – de pernas com bocas de sino –, ninguém suspeitava que eram eles que faziam a jovem ficar tão alta.

Se alguém me houvesse mostrado aqueles calçados na vitrine de uma loja, acharia que eram apenas uma peça decorativa. Como aqueles calçados conceituais, criados por grandes estilistas, para lançarem suas coleções, mas que são de uso improvável. Teria certeza de que ninguém seria capaz de andar equilibrando-se naquelas coisas.

Mas, ela andava. E rápido. O tempo que gastei repondo o notebook na mochila e vestindo novamente o paletó foi suficiente para que a moça dos saltos impossíveis sumisse na multidão.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 09 de agosto de 2020

O RECOLHEDOR DE FOLHAS E VENTO

 

O RECOLHEDOR DE FOLHAS E O VENTO

Certa manhã, um jovem, que acabara de fazer seus exercícios em um parque, resolveu descansar um pouco, sentado em um banco que havia ali.

Enquanto descansava, observou um homem que trabalhava recolhendo folhas secas. Com um ancinho, reunia as folhas em pequenos montes. Depois, abaixava-se, pegava-as com as mãos e as punha em um saco plástico que trazia preso à cintura.

Acontece que, naquela manhã, o vento atrapalhava o trabalho do homem.

Não era uma ventania capaz de levar as folhas secas para longe, mas soprava forte o suficiente para destruir os montinhos que ele fazia.

E era um vento intermitente. Assim, em alguns momentos, o recolhedor até conseguia amontoar algumas folhas, mas, logo o vento voltava a soprar, e elas se espalhavam outra vez.

Depois de alguns minutos observando a luta do recolhedor de folhas contra o vento, o jovem percebeu que, apesar de ter o seu trabalho dificultado, o homem parecia não se abalar. A cada vez que as folhas fugiam, ele pacientemente as reunia com o ancinho, e começava tudo de novo. Sua fisionomia não expressava o menor sinal de aborrecimento.

Em um dado momento, o jovem aproximou-se do recolhedor de folhas e falou:

– O vento está fazendo o seu trabalho ser bem difícil, não? Você não se irrita com isso?

O homem sorriu antes de responder:

– Veja só… eu não posso dizer que fico feliz. Mas não tenho como parar o vento. Então, restam-me duas opções: fazer esse trabalho ou não fazer. Se escolher não fazer, vou ter que procurar outro trabalho. Pode ser que eu tenha dificuldade para conseguir um emprego, e isso vai comprometer o meu sustento e da minha família. Mesmo que eu consiga logo um emprego novo, é provável que alguma outra coisa me dificulte o serviço, como vento faz hoje em dia. Assim, acho mais inteligente continuar com esse trabalho que já venho fazendo.

– Mas eu não disse pra você deixar o emprego. Apenas perguntei se não se irrita com o vento.

– Pois era aí mesmo que eu queria chegar. Como eu não estou pensando em deixar o emprego, pelo menos enquanto não aparece outro melhor, restam-me duas opções: fazer o meu trabalho, me irritando com o vento, ou fazer a mesma coisa, sem me irritar. Se eu me irritar, o meu trabalho vai se tornar uma coisa desagradável, cansativa. De nada me adiantará repreender o vento, então, talvez eu chegue em casa mal humorado, descarregando raiva e frustração na minha mulher e nos meus filhos. No dia seguinte, é possível que já saia de casa chateado, por ter que ir para um trabalho que só me causa dissabor. Cada dia para mim será como um pesadelo. E, o vento? Vai parar de soprar por causa da minha irritação, raiva ou frustração? Não. O vento vai continuar sendo vento. Soprando e parando de soprar por razões que não têm nada a ver comigo. Então, qual a minha opção mais inteligente? Me irritar com o vento ou aceitar que ele sopre, sem me alterar?

– Sem dúvida, é mais inteligente aceitar que o vento sopre. Mas é que a irritação às vezes acontece sem a gente querer. Geralmente, quando acontece alguma coisa contra a nossa vontade, a gente fica com raiva e nem percebe…

– Pois esse é o vento que nós precisamos aprender a controlar! O que vento sopra dentro da gente. Que nos faz perder a calma quando somos contrariados. Se você não controla, ele vira ventania, vira tempestade, destrói tudo… Mas, se você o conhece e controla, pode estar o maior temporal aqui fora, dentro de nós continuará a calmaria…

– Puxa, para um recolhedor de folhas secas, o senhor é bem sábio!

– E você esperava o quê? Que eu fosse algum cabeça de vento?

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 26 de julho de 2020

A PANDEMIA NA VIDA DE UM UNIVERSITÁRIO

 

A PANDEMIA NA VIDA DE UM UNIVERSITÁRIO

Tem uns dias que meu filho Álvaro está aqui em casa, aproveitando o período de férias para descansar, e para botarmos os assuntos em dia.

Álvaro mora em São Paulo, onde cursa Biotecnologia na USP. Na capital paulista, divide um apartamento de dois quartos com outros dois estudantes cearenses, o Felipe e o Pedro. Colegas do ensino médio que também foram em busca de novos voos.

Uma alegria recebê-lo aqui, depois de meses sem nos encontrarmos pessoalmente, ainda mais nesses tempos em que nosso cuidado com as pessoas mais queridas está mais ativo.

Desde que ele chegou, temos conversado muito, especialmente sobre a situação atípica enfrentada por eles (e por todos nós) este ano.

Aulas pela internet, isolamento social, convivência o dia inteiro por dias seguidos… e a ameaça constante de se contrair uma doença que já matou mais de 600 mil pessoas no planeta.

A certa altura de uma dessas conversas, entendi que estávamos falando de temas que poderiam interessar a muita gente, não apenas a nós. Propus que gravássemos um vídeo, e ele topou de imediato.

O resultado foi esse, que agora compartilho com você, leitor da nossa coluna.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sábado, 04 de julho de 2020

NÃO POSSO ME AFOGAR, SAMBA, COM MARCOS MAIRTON


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 28 de maio de 2020

NO REINO DA BAZÓFIA

 

NO REINO DA BAZÓFIA

Há algumas semanas, houve um dia em que enriqueci significativamente o meu vocabulário. Não em um exemplar das Seleções Reader´s Digest, apesar do espaço ali dedicado a essa finalidade, mas em fonte tanto quanto ou mais profícua: a coluna “Penso, logo insisto”, do jurista e escritor José Paulo Cavalcanti, no Jornal da Besta Fubana.

Em sua crônica postada em 23 de abril deste ano, o grande José Paulo expôs o significado de palavras raras da língua portuguesa. Palavras só acessíveis aos que têm verdadeira intimidade com a última flor do Lácio, inculta e bela, como diria Bilac. Ou Fernando Sabino, pela boca de Geraldo Viramundo, em “O Grande Mentecapto”.

Vocábulos como biltre, burlão, engrimanço, pícaro e pirrónico. Uma riqueza!

Não sei se por serem palavras que muitos plebeus gostariam de dizer a certos nobres; não sei se por causa do título da crônica de José Paulo ser “Um país de estultos”; o fato é que, após sua leitura, lúdicos pensamentos levaram-me a um reino imaginário, em plena Europa Medieval.

Uma monarquia onde o rei vivia engalfinhando-se em querelas com os membros da sua corte de nobres, sempre ansiosos por uma oportunidade para se apropriarem do trono e da coroa.

Como se sabe, com a queda do Império Romano do Ocidente, a Europa transformou-se em verdadeira colcha de retalhos, com seus territórios ocupados por hunos, godos, alamanos, burgúndios e tantos outros.

Na minha cabeça de contador de histórias, se entre esses povos, chamados genericamente de bárbaros, existiram os vândalos, teriam convivido também com eles os biltres, os burlões, os engrimanços, os pícaros e os pirrônicos.

A essas etnias fictícias, cujos nomes engendrei a partir da crônica de José Paulo, não resisto à tentação de acrescentar os néscios, os torpes, os incautos, os sáfaros e até os probos. Embora estes últimos certamente fossem minoria, frequentemente desalojados de sua aldeias e perseguidos por seus inimigos.

Nessa viagem no tempo, percorro cerca de mil anos, até chegar à época da formação das monarquias nacionais absolutistas. E ao tempo do flagelo da Peste Negra.

Vejo, então, vários desses povos reunidos em uma mesma monarquia: néscios, biltres, sáfaros, burlões, probos e incautos, agrupados sob um mesmo brasão.

A unificação é um tanto forçada, e se dá mais por conveniência dos nobres que para benefício de camponeses, artesãos e mesmo de burgueses.

Daí por que, como fora antes anunciado, esses nobres vivem metidos em escaramuças. Entre si e com o monarca da vez. Digo “da vez” porque nesse reino, o rei, que pouco manda, frequentemente é deposto por outro nobre mais poderoso, mas que também acaba caindo.

Um reino onde a paz é sempre frágil e de curta duração. Alguns dos poucos momentos de menor beligerância ocorrem durante grandes festas populares que ali ocorrem, as quais recebem apoio do próprio rei e de todos os nobres.

Essas festas são conhecidas como “as badernas”, e acontecem todos os anos. Nelas, o povo se diverte livremente nas ruas dos burgos, bebendo, cantando e dançando, celebrando não se sabe exatamente o quê.

Em nossa viagem imaginária ao passado, encontramos esse reino em mais um período conturbado, enfrentando toda sorte de problemas econômicos, sociais e políticos, apesar de ter acabado de acontecer, com muito sucesso, mais uma edição das badernas anuais.

O país está sob o comando do Rei Lorpa, que é da linhagem dos néscios, mas, para conquistar o trono, precisou do apoio dos incautos e dos probos. Estes já não estão felizes com sua posição no governo, mas acreditam que ficariam em situação ainda pior, se a cetro voltasse para as mãos dos inimigos do Rei Lorpa.

Idolatrado pelos néscios, Lorpa é odiado pelos biltres, os sáfaros e os burlões. Estes também brigam entre si, mas têm agido como aliados, e tudo farão para arrancar o rei do trono. Ou o trono do rei, ainda que, para isso, seja necessário pôr em risco a unidade do próprio reino.

Tornando a situação ainda mais dramática, o reino, assim como todo o Velho Mundo, está sendo assolado pela Peste Negra.

Trazida da China pelas caravanas que faziam a Rota da Seda, ou pelos mercadores que cruzavam o Mar Mediterrâneo em suas naus, a peste já ceifou a vida de cerca de um terço da população do continente europeu.

Nesse reino, a situação não é diferente. Não se conhece prevenção ou tratamento para a doença. Tenta-se cuidar dos pacientes com sangrias, infusões, chás de ervas e novenas. Mas nada funciona.

Centenas de pessoas morrem todos os dias. Chega a faltar coveiros, porque os que não morreram têm medo de enterrar os cadáveres.

O povo sofre com a peste, a fome e o desemprego.

Mas o Rei Lorpa e os nobres de sua corte estão ocupados demais, em sua luta pelo trono, para dedicar alguma atenção a quem morreu ou está prestes a morrer.

Tempos difíceis no imaginário Reino da Bazófia.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 24 de maio de 2020

PÉ DE CHUMBO, PÉ DE VENTO - O CORDEL

 

PÉ DE CHUMBO, PÉ DE VENTO — O CORDEL

Essa é uma história baseada em fatos da vida real. Memórias de minha infância, sempre recheada de aventuras, no meu querido bairro do Pirambu, em Fortaleza.

Memórias de uma noite de festa, quando amigos e vizinhos comemoravam a chegada do ano novo, mas surgiu um valentão querendo estragar a nossa alegria. Valentões eram figuras comuns naquele tempo.

A versão escrita do cordel — tanto impressa como em e-bookordel — está disponível para venda na Amazon. Basta clicar aqui para acessar a página.

Como os leitores do JBF moram no meu coração, todos poderão receber uma versão em PDF, totalmente grátis. Enviei uma cópia do arquivo ao nosso editor Luiz Berto Filho, com autorização para que ele repasse a quem fizer o pedido, por meio de um comentário nesta postagem.

Mas não deixem de ver o vídeo. Na declamação tem coisas que não cabem no texto escrito.

Depois, deixem o seu GOSTEI e se INSCREVAM no canal. Será um prazer recebê-los lá.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 14 de maio de 2020

AOS ENTREGADORES DE REFEIÇÕES

 

AOS ENTREGADORES DE REFEIÇÕES

Hoje, 13/5/2020, estamos completando 60 dias de distanciamento social.

Em celebração à data, homenageamos esses trabalhadores imprescindíveis para que possamos ficar o máximo possível em casa: os entregadores de refeições.

Quando acaba o estoque de alimentos, ou simplesmente estamos sem disposição para cozinhar, são eles que nos socorrem.

A esses bravos, nosso muito obrigado!

 

 

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 22 de abril de 2020

AS VERSÕES, AS MENTIRAS E A VERDADE

 

AS VERSÕES, AS MENTIRAS E A VERDADE

Outro dia, estava eu a refletir sobre a quantidade de mentiras que se espalham pelo mundo. Fazia isso sentado em uma cadeira de balanço, na varanda de minha casa, quando Shayeubad(*) apareceu no portão.

Convidei-o a entrar, e nos pusemos a conversar sobre o assunto.

Até que, a certa altura da conversa, ele me fez um convite inusitado:

— Se você deixar seu corpo dormindo aí, posso lhe levar para ver a dança das versões. É uma performance bem interessante sobre essas suas reflexões.

Mesmo sem entender direito o que ele quis dizer com “deixar meu corpo dormindo”, minha sempre aguçada curiosidade levou-me a concordar imediatamente.

Shayeubad pediu que eu fechasse os olhos. Fechei e o ouvi a contar regressivamente de três a um.

No instante seguinte, estávamos em um grande salão, onde um tablado oval, de uns 100 metros quadrados, era contornado por cadeiras confortáveis. A maioria delas estava ocupada por pessoas que aparentemente esperavam o início de uma apresentação.

Shayeubad me orientou a ocupar um dos lugares disponíveis e esperar também.

Ficamos ali, aguardando, em silêncio.

Minutos depois, começou a tocar uma música instrumental, um tanto épica.

Em seguida, surgiu, no meio do tablado, uma espécie de luz, em formato feminino. Mais precisamente, a imagem de uma bela mulher, feita de luz violeta.

Mas aquela figura luminosa esteve diante dos nossos olhos apenas por alguns instantes.

Um ou dois segundos depois, surgiram magicamente, em volta dela, de quatro a seis mulheres. Eram em tudo semelhantes ao ser de luz. Na cor, na forma e nos movimentos. Mas, aparentemente, eram feitas de matéria consistente como a de nossos corpos humanos.

Dançavam de um modo a seduzir os olhares dos presentes, enquanto o ser de luz desaparecia por trás de seus corpos.

No momento seguinte, brotaram do chão outras dançarinas.

Estavam em maior quantidade, e não eram tão parecidas com o ser de luz, como as primeiras, apesar de algumas serem também muito belas. Outras, nem tanto.

Percebi então que havia entre todas aquelas dançarinas uma espécie de disputa pela atenção do público. À medida que desenvolviam suas performances, se alguma se destacava, as pessoas aplaudiam seus movimentos.

Enquanto isso, aquelas que obtinham menos destaque aos poucos esmaeciam e sumiam, diante dos nossos olhos.

Depois de alguns minutos, restou no salão apenas uma das dançarinas do primeiro grupo — uma daquelas quatro ou seis que haviam surgido em torno da figura luminosa.

O público a aplaudiu calorosamente. Ela agradeceu e deixou o tablado.

Era possível ouvir o rumor das pessoas comentando o desempenho das dançarinas. Alguns dos presentes pareciam não concordar com o resultado final. Esperavam que outra dentre elas houvesse chegado ao final.

Passados alguns minutos, novo espetáculo começou, semelhante ao primeiro.

Dessa vez, a figura feminina que surgiu no meio do tablado era feita de uma luz amarela, brilhante como ouro.

Rapidamente, sua luminosidade projetou-se para fora do corpo, dando forma a quatro dançarinas vestidas de amarelo, parecidíssimas com ela. Sua pele aparentava estar coberta por tinta dourada.

Dançavam freneticamente em torno do ser de luz, enquanto este desaparecia.

Não tardou a brotarem do chão as outras dançarinas. Estavam em número bem maior que na apresentação anterior. Em sua disputa por atenção, às vezes duas ou três juntavam seus corpos e punham-se à frente de alguma das performistas que haviam surgido primeiro, impedindo que o público as visse.

Aos poucos, porém, cada uma das moças foi desaparecendo — como da primeira vez — restando somente uma dançarina de amarelo.

Novos aplausos do público. Desta vez, de pé.

Não sei quanto tempo ficamos ali, mas foi o suficiente para assistirmos a várias daquelas apresentações, que se sucediam após breves intervalos.

Ao sairmos do salão, agradeci a Shayeubad por me levar a ver tão belo espetáculo. Mas, percebendo que ele esperava de mim algum comentário mais detalhado, acrescentei:

— Notei que na maioria das vezes, a dançarina que ficava por último era uma das primeiras a surgir no tablado. Apesar do esforço das moças que brotavam do chão, poucas delas conseguiram se manter até o final.

— É assim mesmo — respondeu Shayeubad sorrindo. — Lembra de quando lhe falei que o espetáculo se chama “Dança das Versões”?

— Lembro.

— É isso. O ser de luz que surge no início de cada ato é a verdade. O brilho da verdade dá origem a algumas figuras semelhantes a ela: as versões. Mas logo surgem as mentiras, chamando para si a atenção. O resto você já entendeu.

— Sim, entendi. E embora me conforte saber que na maioria das vezes as mentiras se dissolvam, lamento que a verdade, em sua forma original, seja uma luz que brilha apenas por poucos instantes. Depois, o que resta são versões. Mesmo que versões verdadeiras, versões.

— Não lamente. Para o público, uma boa versão da verdade é suficiente. Nem sei se estamos prontos para um mundo onde a verdadeira verdade prevaleça. Você está pronto? Eu estou?

— Não sei.

— Então feche os olhos e conte até três. Vamos voltar.

Obedeci, e, ao abrir os olhos novamente, estava na varanda da minha casa, em minha cadeira de balanço.

Shayeubad havia sumido.

(*) Shayeubad é um amigo que costuma aparecer para conversar comigo desde que eu era criança. No começo, minha mãe dizia que ele era meu amigo imaginário, e que desapareceria quando eu chegasse à adolescência. Ao escrever este conto, tenho 53 anos de idade, e Shayeubad continua compartilhando comigo as mais variadas reflexões.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 16 de abril de 2020

ESPECIALISTA EM CLOROQUINA

 

ESPECIALISTA EM CLOROQUINA

Eu já estava até com o texto pronto para a coluna desta semana.

Mas, de tanto ouvir falar em cloroquina; de tanto receber pelo WhatsApp links para artigos científicos nesse assunto; de tanto ver entrevistas em jornais, de infectologistas, imunologistas, pneumologistas… deixei o texto para a semana que vem.

Peguei o violão e fiz essa brincadeira aí:

 

 

Vixe, como tem especialista
Nesse assunto,
Que era só da medicina.
É um mistério que me surpreende:
Hoje, todo mundo entende
Dessa tal de cloroquina.

Um lado diz que é muito bom,
O outro alerta que faz mal
A discussão agora é internacional.

O da direita recomenda
O da esquerda recrimina
E todo mundo fala dessa cloroquina.

E eu que não manjo do assunto
Já não sei o que fazer
Se desse vírus eu um dia adoecer.

Se a direita diz que é bom,
A esquerda diz que é arriscado
E eu nem sabia que remédio tinha lado.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 10 de abril de 2020

CORDEL DA SEMANA SANTA

 

CORDEL DA SEMANA SANTA

Tenho observado muita gente postando vídeos.

E, como eu sou daqueles que acredita que as coisas boas devem ser multiplicadas, resolvi postar alguns também, declamando cordéis de minha autoria.

Como estamos na Semana da Páscoa, comecei com meu “Cordel da Semana Santa”.

Espero que vocês gostem. E nos próximos vamos aperfeiçoando, claro!

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 12 de março de 2020

A VERSÃO DO ESCORPIÃO

 

A VERSÃO DO ESCORPIÃO

Existe uma fábula muito conhecida, sobre um escorpião que pede a um sapo para o ajudar a atravessar um rio. O sapo fica com receio de ser ferroado durante a travessia, mas o escorpião promete não lhe fazer mal. Até porque, se o fizesse, ambos morreriam: o sapo envenenado e o escorpião afogado.

Segundo a fábula, o sapo acaba permitindo que o escorpião viaje nas suas costas. Mas, no decorrer do percurso, o escorpião crava seu ferrão no dorso do sapo.

Sentindo o efeito do veneno, o sapo pergunta a razão pela qual o escorpião havia feito aquilo.

— Ferroar é a minha natureza — teria dito o escorpião. — Por mais que eu queira mudar, não tenho como evitar isso.

Essa história sempre me deixou um tanto intrigado.

Não pelo seu desfecho lamentável, mas porque, se o sapo e o escorpião morreram nas águas do rio, e não há nada a indicar que houvesse alguém lá, para testemunhar a conversa entre o anuro e o aracnídeo, como esses fatos chegaram ao nosso conhecimento? Um mistério.

Muitas vezes refleti sobre isso, sem encontrar solução convincente.

Até que, certa manhã, enquanto recolhia folhas secas no jardim, encontrei um escorpião, e pusemo-nos a conversar. Durante a conversa, essa questão da fábula veio à tona:

— É fake news! — rebateu o escorpião, indignado.

— Como assim? — surpreendi-me. — Essa fábula é muito antiga…

— As fake news também são antigas. Nem sequer foi o escorpião que pediu ajuda ao sapo. O sapo é que ofereceu carona ao escorpião.

Tive vontade de sorrir, mas ele parecia falar sério, então achei melhor prestar atenção no que tinha a dizer. Ele prosseguiu:

— O sapo ofereceu carona. O escorpião relutou, mas acabou aceitando, porque, de fato, o rio estava bem cheio. Subiu nas costas do sapo e os dois iniciaram a travessia. Quando já se aproximavam da outra margem, o sapo começou a ser arrastado pela correnteza, e passou a nadar de um jeito estranho. A todo instante afundava e voltava para a superfície. O escorpião desconfiou que o sapo estava fazendo aquilo de propósito, para o derrubar na água, afogá-lo e depois comê-lo. Foi nessa hora que o escorpião enfiou suas tenazes nas costas do sapo. As tenazes! Para se segurar com mais firmeza. Não o ferrão!

— Mas… e a frase “ferroar é a minha natureza”, que fecha a fábula? Foi tirada de onde?

— A conversa aconteceu, mas a frase foi outra: ao sentir as tenazes do escorpião enfiadas em suas costas, o sapo perguntou: “Você me ferroou?”. E o escorpião respondeu: “Ferroar até me daria mais firmeza. Pare de balançar ou não vou ter como evitar isso”.

— Essa versão da fábula é incrível! Confesso que nunca tinha ouvido falar dela!

— Porque você é um humano. Saiba que, entre nós, os escorpiões, essa história é muito conhecida. Até porque é a única verdadeira.

— Mas, se na sua versão da história, o escorpião não ferroou o sapo, então… eles não morreram?

— Não! Nada disso. O sapo ficou só um pouco ferido pelas tenazes do escorpião. Mas deu sorte. Logo que se afastaram um do outro, uma moça apareceu do nada e deu um beijo no sapo. Houve um tipo de explosão, e ele se transformou em um humano. Alguns meses depois eles se casaram. Quando seus filhos nasceram, ele contava para as crianças essa lenda do escorpião que ferroou covardemente o sapo. Uma mentira deslavada. Mas que foi sendo contada, de geração em geração, e por isso é que vocês, humanos, só conhecem uma versão da história: a versão do sapo.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 06 de março de 2020

O CHEQUE (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O CHEQUE

No período de 2006 a 2009, razões profissionais me levaram a percorrer muitas vezes a BR-304 – que corta o Estado do Rio Grande do Norte, de leste a oeste – viajando de Natal a Mossoró, ou vice-versa.

A certa altura do percurso, havia um restaurante, à beira da estrada, que servia comidas regionais: queijo coalho, macaxeira frita, carne de sol… À medida que se aproximava do local, o viajante ia encontrando pequenas placas, fixadas nas estacas de uma cerca, com os nomes das comidas que compunham o cardápio.

Restaurante de Campo era o nome do estabelecimento. O proprietário chamava-se Seu Alfredo, e tinha, na época, uns 70 anos de idade.

Era conhecido na região pelo temperamento instável e o limitado estoque de paciência. Uma espécie de Seu Lunga potiguar, sempre com uma resposta pronta e ácida para perguntas que considerasse inúteis ou inoportunas.

Bastava que um cliente desavisado pedisse o cardápio, para Seu Alfredo responder com uma pergunta:

– Num viu as placas, não?

– Vi, mas…

– Pois o cardápio é aquele!

– Puxa… não prestei atenção…

– Pois pegue seu carrinho e volte lá pro começo da cerca. O cardápio que tem é aquele.

Claro que ninguém voltava. Alguns clientes acabavam conseguindo lembrar de alguma coisa, enquanto outros simplesmente iam embora. Mas a maioria já pedia o cardápio sabendo que a resposta seria essa. Tudo não passava de provocação.

O tratamento dispensado por Seu Alfredo aos empregados também não era dos melhores.

Lembro de uma vez em que o garçom me serviu um refrigerante, quando eu havia pedido suco de laranja. Seu Alfredo – que costumava transitar por entre as mesas – perguntou-me se estava tudo certo com o meu atendimento:

– Tudo bem, Seu Alfredo. Só o meu suco de laranja que não veio. O rapaz trouxe foi refrig…

Antes que eu terminasse de pronunciar a palavra “refrigerante”, Seu Alfredo lançou um olhar fulminante em direção ao garçom e berrou:

– Francisco! O rapaz tá dizendo aqui que pediu suco de laranja e você trouxe refrigerante! Deixe de ser burro e traga o pedido certo! Aliás, essa parte do “deixe de ser burro” sou eu que tô dizendo! O rapaz pediu só pra trazer o suco dele!

Era assim. E não faltavam fregueses, em geral mais interessados em ver as demonstrações de truculência do Seu Alfredo, que na comida.

Outra característica folclórica do local era um letreiro enorme que havia, logo na entrada do restaurante, avisando que ali não se recebia cheques de determinado banco. O texto era mais ou menos o seguinte: “Recebemos cheques de qualquer banco, menos do banco X”.

Segundo se comentava, certa feita o tal banco havia devolvido um cheque do Seu Alfredo, por engano, embora houvesse saldo na conta. Foi o suficiente para ele não querer mais negócio com a instituição financeira até o fim dos seus dias.

Comentava-se que ele ficava ainda mais irritado que o normal, se ouvisse alguém pronunciar o nome do tal banco dentro do restaurante.

Pois se deu que, certa vez, resolvi testar a paciência do Seu Alfredo.

Fiz o meu pedido ao próprio Seu Alfredo, mas fui logo perguntando quanto daria a conta. Ele não gostava nem um pouco dessa pergunta:

– Rapaz… – disse ele, já demonstrando impaciência – como é que eu sei quanto vai dar a sua conta? Eu não sei nem se você ainda vai pedir mais alguma coisa…

– Eu sei, Seu Alfredo – repliquei. – Mas é que eu tô com pouco dinheiro, e só tenho cheque do banco X…

O homem ficou roxo. Parecia estar sufocando. Os olhos, fixos em mim, demonstravam algo entre a raiva e a perplexidade, como se não acreditasse que alguém havia tido a imprudência de tocar naquele assunto.

Passaram-se alguns segundos até que conseguisse falar novamente, mas a voz saiu com grande esforço. Como se movesse os lábios, mas o maxilar estivesse travado, pressionando os dentes inferiores contra os superiores:

– Faça o seguinte… coma e beba aí o que você quiser… se o seu dinheiro der pra pagar, você paga… se não der, tá tudo certo também, que eu não sou homem de negar um prato de comida a quem tá com fome…

Tive certo remorso por ter provocado Seu Alfredo daquela maneira. Mesmo muito irritado, ele falou demonstrou nobreza de sentimento: não era homem de negar comida a quem não pode pagar.

Recuperando novamente o fôlego, ele retomou o uso da palavra:

– Agora… essa porcaria desse seu cheque… você vá passar ele lá da baixa da égua pra uma banda… que aqui essa desgraça não entra, nem que eu engrene!

E afastou-se de mim, sem mais nada dizer.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 13 de fevereiro de 2020

NÃO É MALANDRAGEM

 

 

NÃO É MALANDRAGEM

Já se passaram alguns anos desde que compus esse samba. Na época, fiquei receoso que alguém interpretasse mal, ou tomasse as dores de algum político, e acabei enviando ao JBF uma gravação bem amadora, sob pseudônimo.

Acontece que, ano passado, mostrei o samba ao Mariano Júnior, do Hertz Studio, e ele se empolgou todo:

– Grave isso, homem! – disse ele, e já foi sugerindo o arranjo.

Acabou me convencendo, ao falar que poria um trombone de vara na introdução. Se tem um instrumento de sopro que me agrada é o trombone, talvez porque permita solos de notas graves, mas não tão graves como as da tuba. Seria como o violoncelo, entre os instrumentos de corda.

Voltando ao samba, ainda fiquei receoso de eu mesmo interpretar a peça – comentei isso com os amigos que encontrei na casa do Berto, em dezembro do ano passado. Mas acabei gravando minha própria interpretação.

“Só pra testar”, disse eu, na ocasião.

Acontece que, quando o pessoal do back vocal entrou em cena… aí não teve mais jeito! Lamento se alguém não gostar, mas “Não é malandragem” é mais uma de minhas canções que em breve estará em todas as plataformas digitais do planeta (YouTube, Spotify, Itunes, etc).

Para que os leitores que gostam de acompanhar os detalhes, a letra ficou assim:

Você, que, o povo um dia, pelo voto, elegeu,
Mas, que não honrou essa missão que recebeu,
Que depois de eleito, aproveitou a situação
Para roubar a nação!

Não venha dizer que é o doutor da malandragem,
E, por ser malandro, tinha que levar vantagem.
O que você fez foi se sujar na podridão
Da corrupção!

Superfaturamento,
Desvio de verba e cartel
Na licitação.
A prestação do serviço
Que só existe no papel.
Tudo armação!

Lavagem de dinheiro,
Esquema, propina pro fiscal
E a comissão
Vai para a diretoria,
Para fazer a alegria
Do chefão.

(Vou dizer)
Não é malandragem isso aí.
Não é malandragem, não é não.
O que você faz, sei o que é
É corrupção.

Fique você consciente,
Malandro não é um delinquente,
Nem um marginal.
Não tem que roubar ninguém
Pra ser esperto e se dar bem
No final.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 09 de fevereiro de 2020

QUARENTA ANOS

 

QUARENTA ANOS

 

Oito de fevereiro de 2020 é um dia importante para mim. Importante chega mesmo a ser uma palavra insuficiente para traduzir o meu sentimento em relação a essa data.

É que no dia 8/2/2020 completo 40 anos de vida profissional.

Sim, ainda criança, ajudei meus pais, em seu pequeno comércio, o que me garantiria mais uns três ou quatro anos nessa contagem. Mas eu mesmo nunca vi minhas tarefas de balconista como trabalho propriamente dito.

Então, a partir daquele dia, 8/2/1980, é que foi trabalho mesmo. Com carteira assinada e contribuição para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e para a Previdência Social.

Por essa razão, considero o início da minha vida profissional em 8/2/1980.

Naquela data, assumi o cargo de bancário aprendiz, no Banco do Nordeste do Brasil S/A. Uma sociedade de economia mista, que, como tal, tinha — e tem até hoje — o Governo Federal como seu acionista controlador.

Quatorze anos incompletos, era a minha idade. Para ser mais exato, treze anos e seis meses, o que gerou certa dúvida se eu poderia assumir o cargo. Decidiram que sim, e deixei a infância para me tornar bancário.

A família fez festa. Um tio mais bem informado que os outros decretou:

— Tá feito na vida! Bancário de banco federal é o melhor emprego do Brasil!

Ele tinha certa dose de razão. Meu salário seria mais ou menos o mesmo de meu pai (vejam que incrível, antes de fazer 14 anos, eu ganharia quase igual ao meu pai!). Depois de três anos, passaria ao cargo de escriturário, e o salário multiplicar-se-ia por quatro ou cinco vezes.

Um excelente emprego! Pelo menos até o final dos anos 1980.

Em 1990, com a posse de Fernando Collor na Presidência da República, cuja principal promessa de campanha era a “caça aos marajás”, já sabíamos que nosso futuro não era muito promissor. Afinal, éramos nós alguns dos principais “marajás” a serem caçados.

Além disso, a partir dos anos 1990, a profissão de bancário — mesmo de um banco federal — já não tinha o mesmo glamour. A automatização no setor, naquela época, foi massiva. A cada dia, as máquinas substituíam pessoas nas mais variadas tarefas. E com vantagem.

Talvez seja difícil para o leitor acreditar, mas, em 1983, quando passei a trabalhar na agência do Banco do Nordeste em Parnaíba, no Piauí, havia ali apenas dois microcomputadores. Éramos uns 40 funcionários, mas só dois ou três sabiam operar aquelas máquinas misteriosas (em pouco tempo, tornar-me-ia uma daquelas pessoas).

Dez anos depois, a informatização já havia chegado a todos os recantos da atividade bancária. Cada vez mais máquinas, cada vez menos pessoas. Cada vez menos motivos para manter o nível salarial.

Em 1993, os computadores invadiam o último bastião das atividades manuais da empresa: o Departamento Jurídico. Coincidência ou não, naquele ano, enquanto eu cursava os últimos semestres da faculdade de Direito, dava aulas de operação de microcomputadores para turmas de advogados do banco onde trabalhava.

Acabei deixando o banco em janeiro de 1998, quando já havia também me tornado um de seus advogados. Sendo bem preciso, não apenas advogado, mas chefe de uma das duas assessorias que compunham o departamento jurídico.

Quarenta anos! Passou tão rápido, e, no entanto, são inúmeros os momentos a lembrar!

Forçarei um final agora, para não alongar demais este texto. Mas talvez devesse contar toda a história de minha vida profissional algum dia. Talvez em um e-book…

Por ora, apenas registro que, de janeiro de 1998 a fevereiro de 2000, fui Procurador do Banco Central do Brasil; de fevereiro de 2000 a abril de 2001, fui Advogado da União; e, de abril de 2001 até hoje, sou Juiz Federal.

Quarenta anos, portanto, ao todo. Com a satisfação de nunca ter ficado um único dia desempregado. Houve, sim, períodos em que tive dois empregos, quando tive escritório de advocacia e quando lecionei na faculdade de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Mas, períodos sem vínculo empregatício, nunca mais os tive. Desde o dia oito de fevereiro de 1980. Quarenta anos!


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 15 de janeiro de 2020

AMORES E SEMENTES

 

 

AMORES E SEMENTES

 
 

Lembro que, quando enviei ao Berto minha poesia “Amores e Sementes”, para postar no Jornal da Besta Fubana, percebi nela certa musicalidade.

Mas, na ocasião, não identifiquei para onde aquele ritmo levaria. Somente meses depois, senti nela um jeito de samba. Um samba suave, sossegado, que desse certo com a letra romântica. Precisava só de um refrão, pra dar mais liga…

Passaram-se mais umas semanas até que o refrão começasse a tocar, dentro da minha cabeça. Um dia tocou! Tocou e eu gostei.

Levei para mostrar ao Mariano Júnior, do Hertz Studios, em Brasília. Ele também gostou, e bolou de imediato um arranjo.

Ficou assim:

AMORES E SEMENTES

Amores mal resolvidos
Nunca morrem totalmente,
Ficam só adormecidos
Dentro da alma da gente.

E o seu sono até parece
Com o sono da semente,
Que, guardada, permanece
Em seu estado latente,

Mas basta lançar na terra
E regar suavemente
Que a longa noite se encerra
E ela acorda novamente.

REFRÃO

E, hoje, te ver
Foi como semear
Pra o nosso amor renascer
Como a semente a acordar.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 29 de dezembro de 2019

TRÊS MICROCONTOS

 

 

TRÊS MICROCONTOS

INCANSÁVEL

No auge da expansão do império, Strenus era o soldado romano mais admirado pelos seus companheiros de batalha.

Não era o mais forte, nem o mais rápido. Mas se dizia que podia lutar por doze horas seguidas, sem dar sinais de cansaço. Depois de cansado, ainda era capaz de lutar por mais doze horas.

* * *

MAU HUMOR

A moça era muito bonita, mas não gostava do próprio sorriso. Sorria diante do espelho e se achava feia.

Por causa disso, praticamente não sorria em público. Se um riso lhe escapava ao controle, escondia o rosto com as mãos.

Alguns comentavam em segredo: “Se não fosse tão mal-humorada, seria linda!”.

* * *

O ‪VENDEDOR DE VERDADE‬S

‪Certa vez, um político foi à loja do vendedor de verdades.‬

– Nenhuma dessas verdades me serve – disse, depois de experimentar várias.

– Posso fazer uma sob medida, mas é mais caro.‬

– Não importa o preço! Meus eleitores têm que continuar acreditando em mim.‬

– Então é uma verdade para seus próprios eleitores?‬

– Sim!

– Fique tranquilo. Sendo a verdade de um político para seus próprios eleitores, tenho vários modelos aqui. É só adaptar.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 11 de dezembro de 2019

UMA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO, NARRADA EM CORDEL

 

UMA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO, NARRADA EM CORDEL

 

Algumas coisas realmente não tem preço. Pude constatar isso na tarde de hoje.

No meio do expediente, recebi o link de um vídeo, gravado na sala de aula de uma faculdade. Nele, duas alunas apresentavam um cordel.

Mas, não era qualquer cordel. Era um cordel específico, que falava de uma história real de superação de limitações físicas, da qual eu tinha pleno conhecimento.

Explico.

Em maio deste ano, recebi o e-mail de uma estudante de psicologia, chamada Aleysandra, pedindo minha ajuda para a elaboração de um cordel.

Era um trabalho da faculdade. Aleysandra explicou-me que estava cursando a disciplina “Psicologia e pessoas portadoras de deficiência”, e o trabalho consistia em apresentar a história de vida de uma pessoa portadora de deficiência. Ela já havia levantado todos os dados do caso, inclusive entrevistando a pessoa que se tornaria a personagem principal da história.

Aleysandra falou então que pretendia contar tudo em versos de cordel, mas não tinha o domínio necessário da técnica para tanto.

Foi aí que entrei na história, ajudando Aleysandra a fazer o seu cordel. Corrigi rimas e métricas, sugeri alguns versos, escrevi outros. Dois dias depois do e-mail de Aleysandra, estava pronto o nosso cordel sobre Teliana.

Teliana, esse é o nome da mulher guerreira, que (ainda) não conheço pessoalmente, mas passei admirar, apenas a partir das informações que me foram passadas por Aleysandra.

Hoje, ao receber o link do vídeo de Aleysandra e sua amiga Samara, que foi sua parceira na apresentação do Cordel, meu coração encheu-se alegria.

A história de Teliana agora não é conhecida apenas por parentes e amigos. Ela foi contada para os estudantes da Unichristus, tornando-se fonte de inspiração para muitas outras pessoas, portadoras de deficiência ou não.

E agora está disponível para o mundo.

Poder participar dessa história não tem preço.

Segue o vídeo. Seguem os versos.

 

 

* * *

TELIANA – Aleysandra Oliveira e Marcos Mairton

Vou lhes contar a história
De alguém muito especial
Que tinha boa saúde,
Pouco andava em hospital,
Mas, um dia isso mudou,
Por um mal que se instalou
No seu órgão cerebral.

O seu nome é Teliana,
Mulher forte e inteligente.
Que, com esforço, levava
Uma vida independente.
Duramente trabalhando,
E os dois filhos sustentando
Sozinha, praticamente.

Sua vida era tranquila
Até que, num certo dia,
Um problema de saúde
Um doutor descobriria,
E foi como um cataclisma,
Pois um tal de aneurisma
Em seu corpo se escondia.

Por isso, uma cirurgia
Ela teve que fazer,
Pois corria sério risco
De a qualquer hora morrer.
Deu certo a operação,
Mas, na recuperação,
Algo veio a acontecer.

 

E o que lhe aconteceu
Foi um fato mesmo trágico:
Porque teve um AVC,
E foi do tipo hemorrágico.
Foi parar na UTI,
E pra lhe tirar dali,
Precisava um poder mágico.

Ficou em coma três meses.
Muita gente já dizia,
Que muito dificilmente
Ela sobreviveria,
De fato, sobreviveu,
Mas o seu corpo sofreu
Terrível paralisia.

Uma trombose no olho,
Quase lhe causou cegueira;
As sequelas que ficaram
Foram para a vida inteira.
Com muito esforço falava,
E, para andar precisava
Das rodas de uma cadeira.

Apesar de tudo isso,
Que aconteceu em sua vida,
Ela nunca desistiu
E não se deu por vencida.
Está sempre agradecendo
Por continuar vivendo,
E seguir na sua lida.

Com o apoio da família
Que lhe foi essencial,
Não só pelo lado físico,
Mas também sentimental.
Porque, na dificuldade,
A família, na verdade,
É sempre fundamental.

Vem aprendendo a viver
Com suas limitações,
E percebendo que ainda
Consegue ter condições,
De ser feliz e sorrir,
Como também de cumprir
Desafios e missões.

É claro que sente falta
De passear como antes,
Principalmente sozinha,
Por lugares mais distantes,
Pois são muitas as barreiras,
Que atrapalham as cadeiras
Usadas por cadeirantes.

São escassos os lugares
Onde há preocupação
Com quem tem deficiência
Em sua locomoção.
Praças, ruas e calçadas,
São bastante inadequadas
E sem adaptação.

Os cadeirantes não querem
Nem dó e nem piedade,
E sim ter um pouco mais
De ação e mobilidade,
Para, com autonomia,
Exercer, no dia a dia,
A sua capacidade.

Apesar dos contratempos
Que enfrenta em sua cadeira,
Teliana segue em frente,
Determinada, guerreira.
Tocando o seu dia-a-dia,
Sua força contagia
A sua família inteira,

Teliana ainda faz
Muita fisioterapia.
Leva a sério o tratamento
De fonoaudiologia.
Às vezes até se cansa,
Mas não perde a esperança
De voltar a andar um dia.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 24 de novembro de 2019

CÃO DE GUARDA

 

 

O CÃO DE GUARDA

Em um tempo distante, que não se sabe precisar quando, em uma vila fictícia de um país imaginário, vivia um homem que frequentemente era vítima de furtos.

Pelo que indicavam as circunstâncias, esses furtos aconteciam à luz do dia, porque o homem morava sozinho, e sua casa era afastada do centro do povoado. Quando ele saía para trabalhar, a residência ficava desguarnecida. Ao retornar, era comum sentir falta de algum de seus pertences.

Tendo esses fatos ocorrido várias vezes, um amigo sugeriu àquele homem que adquirisse um cão de guarda. Assim, enquanto o homem estivesse fora, o cão intimidaria algum larápio que por lá aparecesse.

Havia, porém, um detalhe – e isso o amigo do homem furtado desconhecia – que gerava imensa dificuldade para a implementação daquela providência, aparentemente tão adequada ao caso: é que aquele homem, vítima de tantos furtos, detestava cães.

Durante toda a infância, ele ouvira a mãe dizer que cães, especialmente os de guarda, são animais perigosos, que se voltam contra os próprios donos, quando menos se espera.

– E tem outra coisa, – dizia frequentemente a mãe – basta um vento mais forte derrubar alguma coisa no quintal que o cachorro passa o resto da noite latindo. Aí ninguém dorme mais…

Tendo ouvido tantas vezes a mãe se referir aos cães de maneira depreciativa, o homem adquirira a antipatia materna aos cães, e resistia à ideia de ter em sua casa um habitante canino.

Mas, talvez pelo fato de os furtos continuarem, talvez pela insistência do amigo, com relação ao cão, o homem acabou tomando uma providência: comprou um gato persa, desses de aparência bem mal-humorada; pôs no felino uma coleira, com uma corrente fina, mas bem longa, e o prendeu na varanda, à frente da casa.

Alguns dias depois, o homem chamou o amigo que lhe sugerira o cão, e mostrou a ele o novo habitante da casa:

– Veja você mesmo: agora tenho um cão de guarda!

O amigo achou aquilo muito estranho. Considerou que o homem deveria estar brincando. Mas também admitiu que ele poderia estar enlouquecendo. Chegou a pensar em perguntar se o homem percebia que aquilo era um gato, mas achou a pergunta ridícula. Sem decidir se estava diante de uma piada ou de um caso de loucura, acabou por se limitar a um comentário em forma de pergunta:

– Interessante… Mas… está dando certo? Quer dizer… acabaram-se os furtos?

– Acabar, acabar mesmo… não. Mas… com o tempo o guardião aí vai aprendendo o serviço. Ele é inteligente. Vai aprender. Por enquanto, a grande vantagem dele é que não late à noite.

– Tenho certeza que não late nem de dia — completou o amigo, ainda com dificuldade para acreditar que o homem estava falando sério.

Inventou uma desculpa e foi embora, sem mais nada dizer a respeito do “cão de guarda”.

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 27 de outubro de 2019

ARARAS

 

 

ARARAS

Por razões profissionais, vim morar em Brasília em 2016, logo no começo do ano. Na época, não imaginei que ficaria tanto tempo por aqui, mas o fato é que 2019 está terminando, e, com isso, estou prestes a completar quatro anos na Capital Federal.

Estava pensando nisso esta manhã, enquanto recolhia folhas secas no jardim. É um ritual que tenho repetido quase todas as segundas, quartas e sextas-feiras. Desde que passei a morar no Lago Norte, há quase um ano, acordo às seis da manhã, recolho folhas secas no jardim, ponho-as em um saco plástico preto e deixo tudo na lixeira da calçada. Por volta das nove da manhã, o caminhão da coleta de resíduos orgânicos passa recolhendo.

Praticamente todas (senão todas) as vezes em que estou me dedicando a essa atividade, ouço gritos de araras; em seguida, vejo-as passar voando.

É um casal de araras-canindé. Da posição em que me encontro, vejo mais facilmente suas barrigas amarelas, mas também consigo perceber o azul da parte externa de suas asas, que eu bem sei que se estende por todo o seu dorso.

Lindos animais! Demonstram certo esforço para voar — diferentemente das andorinhas e tesourinhas, que também costumam aparecer por aqui — certamente pelo seu peso, mas ainda assim são elegantes no voo, com suas caudas longas formando quase uma ponta no final.

Cada vez que elas passam, fico olhando, até que desapareçam por trás das árvores da vizinhança.

Hoje, porém, nesta manhã do dia 25 de outubro de 2019, ao ouvir a “voz” das araras, notei algo diferente. Pareciam em maior algazarra que a de costume. Não havia pausas entre um grito e outro. Ao contrário, chegavam a emitir sons ao mesmo tempo, em coro.

Olhei para o céu, tentando perceber de qual direção elas vinham, e, que surpresa agradável! Nada menos que oito araras-canindé aproximavam-se, voando baixo, emitindo seu som característico, como se quisessem avisar que passavam por ali.

Um verdadeiro espetáculo da natureza! Fiquei acompanhando o seu voo o quanto pude, admirado com a exuberância da sua beleza!

Um pensamento inesperado levou-me da contemplação à reflexão: se hoje, com toda a urbanização que há nesta área, situada na capital do país, ainda é possível ver espetáculos como esse, imagine-se o que encontraram aqui os europeus que chegaram alguns séculos antes!

Quanta fauna e quanta flora! Quanta riqueza de cores e formas, com toda a diversidade que o Brasil nos oferece, desde o litoral até as partes mais internas, como o cerrado e o pantanal!

Como disse Caminha, em sua carta ao rei, “enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra”.

Não duvido que muitos daqueles homens tenham acreditado haver encontrado aqui um recanto divino, um lugar de bem aventuranças, talvez o Jardim do Éden.

A frase anterior me lembra que a generosidade da natureza não tem sido suficiente para fazermos do Brasil um lugar onde prevaleça a paz e a harmonia, onde não haja tantas pessoas sujeitas à miséria e à violência.

Neste lugar de natureza paradisíaca, os homicídios de cada ano são contados em dezenas de milhares, o trânsito mata outras tantas pessoas, o dinheiro desviado pela corrupção é calculado em bilhões e o crime organizado atua dentro e fora dos presídios. A própria natureza, cuja generosidade acabei de destacar, é muitas vezes agredida ou explorada de maneira desordenada.

Em um país com tantas riquezas naturais, com água em abundância, com um clima tão favorável, que torna todo o seu imenso território utilizável pelos seres humanos, só consigo concluir que estes últimos são os causadores de seus próprios problemas.

Mas hoje não quero me alongar em reflexões sobre as mazelas do Brasil.

Hoje — pelo menos hoje — escolho ficar com sentimento que me causou a visão aquelas oito araras sobrevoando meu jardim.

Hoje, quero reter na memória a beleza e a alegria daquelas aves majestosas. Sem esperar nada do futuro, nem lamentar nada do passado.

Coincidência ou não, no momento em que me preparo para escrever as últimas linhas desta crônica, ouço novamente os gritos das araras. Dessa vez, não posso vê-las, porque estou dentro de casa, em frente ao computador. Mas sua imagem ainda está fresca em minha mente. Isso basta.

Fecho os olhos e vejo novamente o voo daquele bando de araras.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 14 de outubro de 2019

UMA CONVERSA SOBRE VIDA OU MORTE

 

 

UMA CONVERSA SOBRE VIDA E MORTE

Certo dia, dei carona a Shayeubad(*), em uma das muitas vezes em que dirigi meu carro no percurso de cento e poucos quilômetros entre Quixadá e Fortaleza. Depois de alguns quilômetros na estrada, encontramos um jumento que acabara de ser atropelado.

Parei o carro perto do animal e pudemos ver que ele ainda agonizava. Estirado ao chão, já não se debatia, apenas tremia. De vez em quando tinha espasmos. Permaneceu assim por alguns minutos, até que uma lufada de ar lhe saiu pelas narinas, levantando poeira do acostamento. A partir daí, ficou imóvel. Estava morto.

Depois de retomarmos a jornada, Shayeubad abriu o debate sobre o ocorrido:

– Para onde você acha que foi a vida dele?

– Como assim? – perguntei, preparando-me para o que viria a seguir. Shayeubad sempre faz reflexões interessantes sobre situações como aquela.

Ele prosseguiu:

– Antes de aquele animal ser atropelado e morrer, havia algo nele que o fazia se mover, se alimentar, buscar uma parceira para se reproduzir. Ele tinha vida. Mesmo depois de ferido, dava para ver sua luta para continuar vivendo. Mas, isso foi se apagando aos poucos, até o suspiro final. Para onde vai a vida de um animal que morre?

– Sabe, Shay, a impressão que eu tenho é a de que a vida é como o fogo… O fogo é uma combinação de calor, oxigênio e combustível. Se faltar um dos três, o fogo apaga. Penso que… quando um animal morre… a vida dele simplesmente acaba… não vai a lugar nenhum…

Percebendo que eu estava hesitante em minha argumentação, Shayeubad interrompeu o meu discurso, fazendo mais uma pergunta, que já era o começo de sua própria análise para aquela questão:

– E se eu lhe disser que não era aquele animal que tinha vida, mas a vida é que o tinha? Você já imaginou que a vida pode ser algo que fica disperso no universo, e, quando encontra uma estrutura molecular adequada, instala-se ali e faz com que essa estrutura funcione, com as características que identificamos nos seres vivos?

– Como uma espécie de energia, que seria captada pelos corpos dos seres vivos?

– Mais ou menos isso…

– É um ponto de vista interessante. Acho que ainda não havia pensado assim…

– Então, pensemos – prosseguiu Shayeubad. – Pensemos que a vida já vinha rondando a Terra há muito tempo, atuando sobre os elementos, até que algumas moléculas se uniram e formaram um todo em condições de ser animado por ela. Pode ter surgido assim a primeira célula, o primeiro organismo unicelular. Impulsionado pela vida, esse organismo dividiu-se, multiplicou-se, tornou-se mais complexo e passou a se reproduzir. Desse ponto para a multiplicidade das formas e a formação das espécies seria um pulo.

Já não me surpreendo quando Shayeubad, diante de um fato qualquer da vida, começa a refletir sobre a origem do universo ou os grandes desafios da humanidade. Mesmo assim, achei engraçado que a morte de um jumento o levasse a falar daquele jeito. Meio sorrindo, desafiei:

– Boa! Mas dá para avançar um pouco no tempo e chegar à morte do jumento que vimos na estrada?

– Claro! – continuou ele, animado. – Mas é que, para chegar a esse ponto, é preciso considerar que a própria vida, ao animar a matéria, passa a consumir a estrutura material que ocupa. Se quisesse ser dramático eu diria que a vida já traz em si a semente da morte. Pelo fato de estar se desgastando, o organismo animado precisa se alimentar, na tentativa da vida de mantê-lo apto a sustentá-la. Ocorre que a alimentação nunca é suficiente para manter o organismo perpetuamente em condições de acolher a vida. Por isso, ele envelhece e morre. Chegamos, assim, ao jumento, que, antes de sofrer o desgaste natural dos corpos vivos, teve alguma parte essencial a esse funcionamento inviabilizada pelo trauma sofrido. Conclusão: o corpo morre porque já não tem condições de abrigar a vida; assim, ela vai embora.

– Mas, nesse caso… – interrompi. – se um animal morrer asfixiado, por exemplo, não bastaria restituir-lhe o oxigênio, para que a vida voltasse a animá-lo?

– Não! A falta de oxigênio causa a morte dos neurônios. Os danos são irreversíveis. Mesmo assim, considere a possibilidade de a vida só conseguir se instalar em estruturas orgânicas mais simples, como corpos unicelulares. Isso explicaria porque ela se liga a um embrião, mas não a um animal com o corpo já completo.

– Verdade! Pensando assim, os chamados procedimentos de ressuscitação somente fazem sentido enquanto ainda há alguma vida no corpo. Pelo menos, algum resquício.

– Exato! E tem mais. Considere nossa premissa de que o fato de um corpo abrigar a vida faz com ele se desgaste; que, mesmo gerando novas células, a partir da matéria orgânica obtida pela alimentação, esse desgaste leva à destruição desse corpo; essa pode ser a causa para outro fenômeno vital: a reprodução!

– Como assim?

– Acompanhe meu raciocínio: a morte inevitável dos seres vivos acarreta a necessidade de se gerarem outros organismos vivos. É aí que entra a reprodução, sexuada ou não. Ou seja, se a vida está tendo sucesso em se manter em determinado organismo, ela, a vida, fará com que ele se mantenha, como indivíduo, mas também que se multiplique. Assim, à medida que esses organismos vão sendo usados e se esgotando, morrendo, a vida vai se instalando nos novos que vão sendo criados. Cada vez que um corpo está muito danificado, pelo esgotamento ao qual chamamos velhice, por um trauma, ou por uma doença qualquer, a vida o deixa e vai procurar outro. Como ela prefere, ou precisa, se instalar em um corpo simples, a vida faz com que os corpos usem suas células para criar embriões, ou sementes, no caso dos vegetais.

– Isso dá uma teoria realmente interessante – reconheci. – Mas, considerando que os micro-organismos que causam as doenças são também seres vivos, não estaria havendo um confronto da vida contra a vida?

– Veja bem: apesar de a vida ser um todo único, cada organismo funciona como uma unidade independente. Logo, confrontos entre esses corpos fazem parte da lógica do sistema, porque a vida contida em um ser vivo faz com que ele busque nutrientes em outro ser vivo. Para a vida, não há muita diferença entre um mosquito se alimentar do seu sangue ou um leão comer a sua carne. Ela fará com que tanto o mosquito quanto o leão busquem em outro ser vivo a matéria da qual precisam, para manter seus corpos funcionando, ou seja, podendo abrigar a vida, além de gerar outros corpos com essa possibilidade.

– Bom, pra mim faz muita diferença ser comido mosquito ou por um leão!
Rimos um pouco do que eu acabava de dizer. Depois, fui eu quem retomou a conversa:

– Mas, voltando ao jumento que estava morrendo na estrada, quer dizer então que não era o animal que lutava para se manter vivo, mas era a vida que tentava manter aquele corpo funcionando, para continuar instalada nele?…

– Exatamente! Ela faz isso até com um homem que tente prender a respiração para morrer asfixiado. Antes que o homem morra, a vida o obrigará a respirar. Você já ouviu falar de alguém que tenha cometido suicídio apertando o próprio pescoço com as mãos? Não. Mesmo em uma pessoa que dispara um tiro contra o próprio coração, a vida continuará fazendo aquele corpo lutar para se manter vivo. Porque mesmo corpos complexos como os nossos estão submetidos aos desígnios da vida. E a finalidade da vida é viver.

Tive que concordar com ele que todas as formas de eliminação da vida das quais já ouvira falar voltam-se contra o corpo, nunca contra a energia vital que o anima. Cogitamos de casos graves de depressão, quando a pessoa perde totalmente a vontade de viver, mas concordamos que, somente depois que o corpo se debilita e órgãos importantes param de funcionar, a vida o deixa.

A essa altura, já havíamos entrado em Fortaleza. Shayeubad avisou-me que desembarcaria em um shopping center, em frente ao qual passaríamos dali a alguns minutos. Antes de nos despedirmos, ainda intrigado com toda aquela conversa, levantei uma última questão:

– Shay… Você sempre me pareceu ser espiritualista. Essa teoria da vida, como algo disperso no universo, e que se apropria dos corpos, não seria um tanto materialista?

– Quem tem tendência para o materialismo sempre encontrará razões para ser materialista – respondeu ele, de imediato, como se já esperasse a pergunta. – Não será a ideia da vida como algo independente dos corpos que irá mudar isso. Quanto a você, que tem formação cristã, não esqueça que, segundo a Bíblia, depois de fazer o homem do pó da terra, Deus soprou em seus narizes o fôlego da vida.

– Gênesis!

– Capítulo dois, versículo sete.

E desembarcou.

(*) Shayeubad é um amigo que há muitos anos aparece para conversar quando estou sozinho, mas costuma dizer algumas coisas que não entendo direito. Quando eu era criança, minha mãe dizia que ele era meu amigo imaginário e antes do final da minha adolescência deixaria de aparecer.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis terça, 24 de setembro de 2019

O EVANGELHO EM CEARÊS – ZAQUEU (Lc 19,1-10)

 

 

EVANGELHO EM CEARÊS – ZAQUEU (Lc 19,1-10)

Naquele tempo, Jesus entrou em Jericó e saiu varando a cidade, duma ponta a outra.

Tinha lá um elemento chamado Zaqueu, que era o manda-chuva dos cabra que cobravam os impostos da mundiça. O bicho tava por cima da carne seca. O problema dele não era dinheiro. Era liga.

E, além de estribado, o tal do Zaqueu era curioso. Quando viu a curriola de gente na rua, fazendo o maior enxame, foi pro meio do chafurdo, pra ver quem era Jesus.

 

Mas Zaqueu era um tronquim de amarrar onça; o chamado tamborete de forró. Desse povo batoré, que senta no fí-de-péda e fica balançando as pernas. Aí pelejava pra ver Jesus, mas não conseguia.

Se Zaqueu fosse algum mamanaégua, abria dos pau era cedo, mas ele era muito mala. Cheio de nó pelas costas. Saiu desembestado e, mais adiante, subiu num pé-de-pau e ficou cubando o movimento lá de cima, esperando Jesus passar.

Só que Jesus, desenrolado que só ele, viu a marmota de longe. Quando foi chegando perto do pé-de-planta onde o Zaqueu tava, disse logo:

— Zaqueu, macho véi! Deixa de fuleragem! Desce daí, que tua mulher te botou foi chifre, não foi asa não! Vai pra casa preparar o rango e o merol, que eu vou com um magote de caba esgalamido passar a hora da janta lá!

O Zaqueu desceu ligeiro, igual um azôgue. Alegre que só pinto em bosta, porque Jesus disse que ia jantar na casa dele.

Quando foi de noite, só se ouvia o leruaite do povo invejoso:

— Olhaí, macho, Jesus foi jantar na casa daquela carniça! Zaqueu veí, sujo que só pau de galinheiro… Diabeisso, macho?

— Sei lá, macho. Eles, que são branco, que se entendam…

Enquanto isso, Zaqueu, que tinha uma vocação danada pra puxa-saco, tentava tirar uma onda pra cima de Jesus;

— Mestre, eu tô pensando em dar metade das minha burundanga pra esses liso aqui da redondeza… Porque eu sou o tipo do cara que, se eu souber que fiquei com alguma coisa de alguém, vou devolver quatro tantos do que eu tenha ficado.

Mas, Jesus, que conhecia de mistério, e não se impressionava com conversa de alma, mostrou logo como é que a banda toca:

— Zaqueu, deixa de conversar miolo de pote! Eu vim na tua casa pra mostrar pra esse povo enxamista que qualquer cabra sem futuro é filho de Deus. Eu quero consertar é o que tá desmantelado mesmo, porque o que tá certo já tá bem feito.

Palavra da Salvação.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 26 de agosto de 2019

UMA MENTIRA DE VERDADE

 

UMA MENTIRA DE VERDADE

Ilustração da página Pixabay

Sabe o que eu gostaria de ouvir hoje? Uma mentira de verdade.

“Como assim, uma mentira de verdade?”, talvez pergunte o leitor.

E já respondo: uma mentira de verdade é uma dessas mentiras criadas com o sincero propósito de ser apenas uma mentira; dessas que alguém conta em um grupo de amigos, só para divertir quem conta e quem escuta.

Noutras palavras, uma mentira de verdade é uma mentira que não tem a menor pretensão de parecer uma verdade. Que não mereça sequer a acusação de ser uma meia verdade.

Lembro que, quando eu era criança, perto da minha casa morava um senhor, a quem todos chamavam simplesmente de Tio Américo. Não sei se ele tinha sobrinhos de verdade, mas isso não tem importância agora. O fato é que todos ali, crianças e adultos, o chamavam de tio.

Acredito que ele tinha, na época, entre sessenta e setenta anos. Não consigo ser muito preciso a esse respeito, porque, sendo eu um menino de oito ou nove anos, a imagem que tinha dele era de um velho, com seus cabelos grisalhos e a pele do rosto marcada por rugas.

Lembro bem que Tio Américo trabalhava como barbeiro. Não em uma barbearia de verdade, com cadeiras giratórias diante de espelhos, mas nas casas de seus clientes. Ou na rua mesmo, nas calçadas dos bares e mercearias do bairro. Onde houvesse alguém querendo fazer a barba ou cortar o cabelo, Tio Américo abria sua maleta, retirava as ferramentas de trabalho e prestava o serviço.

Era nessas horas, durante o atendimento aos clientes, que Tio Américo exibia o seu verdadeiro talento: contar mentiras; mentiras de verdade.

E como mentia bem! Acredito que muita gente cortava o cabelo com ele, só para ouvir suas mentiras.

Recordo uma vez em que ele, enquanto cortava o cabelo do meu pai, na calçada da nossa mercearia, contava uma aventura que dizia ter vivido em um tempo em que teria sido jogador de futebol.

— Nesse tempo eu jogava no Ceará — dizia ele, preparando o terreno para os eventos extraordinários que narraria a seguir.

Enquanto fazia uso da tesoura e do pente, mostrando destreza com as mãos, falava de sua habilidade com os pés.

— Pois, Mansueto — dizia Tio Américo, — o negócio apertou foi num dia em que nós fomos jogar contra o Guarany de Sobral, lá no Estádio do Junco.

Antes de prosseguir com a narrativa, um esclarecimento, especialmente para os leitores que não tenham muitas informações sobre a geografia e o futebol cearenses: no Ceará existe o time do Guarani Esporte Clube, da cidade de Juazeiro do Norte, onde o estádio de futebol se chama Romeirão; e o Guarany Sporting Club, da cidade de Sobral, que recebe as equipes visitantes no Estádio do Junco.

Feito o esclarecimento, sigamos ouvindo o Tio Américo, porque, àquela altura, já havia umas oito pessoas, entre adultos e crianças, prestando atenção à conversa.

— Rapaz… o jogo ia ser domingo de tarde. Cinco da tarde. Todo mundo foi avisado que nosso ônibus ia sair de Fortaleza seis da manhã, pra dar tempo da gente almoçar em Sobral, descansar um pouco e chegar no Junco às quatro. Mas aí, meu irmão, eu fui a uma festa, no sábado, e acabei perdendo a hora do ônibus. Quando acordei, já era bem umas dez horas. Imaginei que, mesmo que eles tivessem esperado uma meia hora por mim, àquela altura já estavam pra lá de Itapajé…

Enquanto ele falava, a quantidade de espectadores ia aumentando. Quem chegava com a história já em andamento ficava quieto, tentando pegar o fio da meada. Tio Américo prosseguia:

— Aí eu me conformei. Almocei, fiquei por ali, meio triste, em casa… Quando deu cinco horas, eu liguei o rádio e fui ouvir o jogo. Meu irmão, mal começou, o Guarany fez logo um gol. Com dez minutos, fez outro. Dois a zero. Aquilo me deu um remorso tão grande que veio uma ideia na minha cabeça. Nesse tempo eu morava perto da Praça da Estação. Aí eu vesti o uniforme do Ceará, calcei as chuteiras, peguei duas barras de sabão e fui pra estação do trem. Calculei qual era linha pra Sobral, que eu conhecia bem, cuspi nos trilhos; botei uma barra de sabão em cada trilho; fastei pra trás uns cinquenta metros, fiz carreira pra pegar impulso, e pulei em cima das barras de sabão. Rapaz… as travas da chuteira entraram no sabão que foi uma beleza! E eu fui escorregando pra frente! Fui pegando embalo, fui ganhando velocidade, com pouco tempo eu tava entrando na estação ferroviária lá de Sobral.

Gargalhada geral! Empolgado com a própria narrativa, Tio Américo havia suspendido até o corte de cabelo do meu pai. Mas não tinha ainda terminado a história. E prosseguiu:

— Quando eu fui saindo da estação, tinha um rapaz com um rádio, e eu perguntei pra ele de quanto tava o jogo. Ele disse “dois a zero Guarany; trinta do segundo tempo”. Aí eu pensei: “ainda dá”, e corri pro Junco. Cheguei no estádio, o treinador me mandou entrar ligeiro. Aquecimento, não precisava, que eu já vinha embalado.

Tio Américo fez uma pausa para temperar a garganta. Preparava o gran finale.

— Entrei em campo aos trinta e oito do segundo tempo e viramos pra três a dois. Ô jogo!

Nova bateria de gargalhadas ecoou. Ele próprio era um dos que mais ria.

Só meu pai, com o cabelo ainda por terminar de ser cortado, sorria de maneira contida. Não que não houvesse gostado da história, ou que estivesse incomodado com a demora de Tio Américo para terminar seu atendimento. É que o Seu Mansueto sempre riu pouco mesmo. Esperou que se fizesse silêncio e perguntou, demonstrando interesse:

— Tio Américo, e o senhor fez algum desses três gols?

— Fiz os três — respondeu o barbeiro, sem titubear. — No último minuto, ainda dava pra eu ter feito mais um. Passei por três zagueiros, fiquei cara a cara com o goleiro, mas toquei pra um rapaz que jogava de ponta esquerda, que era muito meu amigo. Eu quis dar a oportunidade a ele. Só que, pela posição que ele vinha, ele bateu com o pé direito e jogou por cima do gol. Não fosse isso, tinha sido quatro a dois.

O homem era — desculpe-me, leitor. o trocadilho — um craque! Na arte de mentir, claro.

Mas eram mentiras inofensivas, boas de ouvir. Diferentes dessas que encontramos hoje em dia, na TV, no rádio, nos sites de notícias e nas redes sociais, com o nome pomposo de fake news.

São umas mentiras pretensiosas essas tais fake news. Misturadas às verdades, com o propósito de enganar, para fazer prevalecer interesses nem sempre confessáveis.

Sim, eu sei que sempre houve mentiras escondidas em meio a verdades. Talvez o que haja de diferente hoje seja a quantidade dessas mentiras, aliada à velocidade com que elas percorrem o mundo. De tal modo que todos os dias recebemos uma quantidade enorme de informações, mas com baixíssima ou nenhuma confiabilidade.

Talvez o que esteja me acontecendo hoje seja o seguinte: tantas são as verdades mentirosas que nos chegam, que senti o desejo de ouvir ao menos uma mentira de verdade.

Como naquele dia, quando Tio Américo, após contar toda aquela história, enquanto cortava o cabelo do meu pai, desculpou-se por ter que ir logo embora:

— A essa hora, minha mulher já encheu minha banheira de água quente. Aí, chegando em casa, eu tomo banho, almoço… e vou tocar piano até umas horas…

Todos sabíamos que na casa do Tio Américo sequer caberia uma banheira, tampouco um piano. Mas ele estava sempre pronto para contar mais uma das suas mentiras. Que eram apenas mentiras. Mentiras de verdade.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 21 de agosto de 2019

UM CORDEL JURÍDICO (FOLHETO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

UM CORDEL JURÍDICO

Nos idos de 1997, tive a honra de exercer a advocacia na Superintendência Jurídica do Banco do Nordeste do Brasil.

Ali adquiri conhecimentos que utilizo até hoje em minhas atividades jurisdicionais. Também fiz grande amizades, que permanecem vivas até os dias atuais.

Um dos colegas com quem trabalhei, o advogado Isael Bernardo de Oliveira, tinha (e certamente ainda tem) habilidade para fazer versos de cordel, acontecendo muitas vezes de criarmos juntos várias estrofes jurídicas, quase de improviso, enquanto estávamos trabalhando.

Semana passada fui surpreendido, quando chegaram às minhas mãos versos que havíamos criado em uma daquelas ocasiões.

O portador da feliz lembrança foi o amigo-irmão Zico, também advogado do Banco do Nordeste, e que por mais de dez anos foi meu braço direito, trabalhando como diretor de secretaria na Justiça Federal.

Os versos recuperados daqueles tempos remotos são os seguintes:

Querido amigo Isael,
Antes de tudo, bom dia.
Vou lhe fazer um convite,
Com amizade e alegria:
Para estudarmos Direito,
Fazendo verso perfeito,
Direito com Poesia!

O convite do amigo
A mim muito satisfaz;
O Direito me afeiçoa,
Poesia me dá paz.
Se o Direito é sacerdócio,
Dele já me sinto sócio,
Da poesia ainda mais!

Então, vamos ao trabalho!
Comecemos neste instante!
Escolhendo logo o tema,
Algum assunto importante.
Pela nossa formação,
Nossa Constituição
Parece um tema vibrante!

Nessa tema escolhido,
Nossa Constituição,
É como um leito sagrado
Dos direitos do cidadão.
Todos eles essenciais,
As garantias constitucionais
Me chamam mais a atenção.

De fato, em tempos remotos,
Norma assim não existia.
As leis que o rei aplicava,
Ele mesmo é que as fazia.
E o povo, sempre sofrido,
Espoliado e oprimido,
Não tinha essa garantia.

Esse poder do monarca
A um tal ponto cresceu,
Que um tal de Luiz XIV,
Que lá na França viveu,
Gostava de se gabar,
E vivia a proclamar:
“O Estado aqui sou eu!”.

Essa frase do monarca
Revela absolutismo,
Que deve ser combatido
Assim como o nepotismo.
Muito próprio das nações
Cujas Constituições
Contêm autoritarismo.

O tal autoritarismo
Se opõe à democracia,
Que a nossa Constituição
No preâmbulo evidencia,
Lembrando sempre que o lema
Que escolhemos como tema
É Direito com Poesia!

Não esqueço, meu amigo,
Pois tenho boa memória;
Porém a Constituição
Também tem a sua história.
Foi contra o absolutismo
Que o constitucionalismo
Conquistou sua vitória!

E essa conquista importante
Chegou até nossos dias;
No encarte desenhado
Das boas democracias,
Dando luz e proteção
Ao país e ao cidadão,
Com as suas garantias.

Por isso é que a Carta Magna
Vigente aqui, hoje em dia,
Impõe como fundamentos
Da nossa democracia
A forma republicana,
Com dignidade humana,
Trabalho e cidadania.

Direito com Poesia,
De uma forma natural,
Para o Homem que trabalha
Na zona urbana ou rural.
Parabéns ao cidadão
Que tem a Constituição
Por patrimônio nacional!


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sábado, 17 de agosto de 2019

O MENINO QUE NÃO TINHA MEDO

 

 

O MENINO QUE NÃO TINHA MEDO

Era uma criança como qualquer outra, o Abel. Brincava, corria, jogava futebol… Não corria mais que os outros, nem era tão bom de bola, mas tinha uma coisa que fazia dele um menino que se destacava na turma: não tinha medo de nada.

Lembro que, quando foi morar na nossa rua, ele tinha uns onze anos de idade. Eu era um pouco mais novo, talvez menos de dois anos, mas, naquela época, isso fazia muita diferença. Até porque, muito me impressionava a autoconfiança com que Abel enfrentava qualquer situação na qual fosse preciso demonstrar coragem.

Se a brincadeira era subir em uma árvore, ele sempre chegava aos galhos mais altos. Se o desafio era cortar caminho atravessando o cemitério, quando voltávamos da escola, ele era o primeiro a entrar pelo portão macabro. Subia nos túmulos e corria entre eles, sem a menor cerimônia, enquanto os outros caminhávamos tensos. No final, quando chegava a hora de transpor o muro dos fundos do cemitério, para alcançar a rua do outro lado, ele primeiro ajudava todo mundo a subir. Só depois iniciava a própria escalada. Acabava sendo o último a sair dali.

Às vezes, jogávamos futebol na rua e a bola caía dentro do jardim da Dona Letícia, nossa vizinha. Ela odiava quando isso acontecia, porque a bola quebrava suas roseiras. Certa vez, ela deixou o cachorro solto no jardim, para que, caso a bola caísse lá dentro, não pudéssemos pegar de volta.

Mas a estratégia da vizinha malvada acabou não funcionando. Quando a bola passou sobre o muro, para se acomodar entre as roseiras de Dona Letícia, Abel nos chamou e disse baixinho:

– Fiquem perto do portão, chamando a atenção do cachorro, enquanto eu pulo o muro pelo outro lado.

Fizemos o que Abel pediu e ele pulou mesmo o muro. Pegou a bola, arremessou de volta para a rua e, no instante seguinte, já estávamos reiniciando o jogo. O cão de guarda nem notou que ele havia entrado e saído do jardim.

Para mim, que até hoje tenho medo de cachorro, aquele foi um gesto assustador, embora Abel houvesse feito tudo sorrindo, como se fosse apenas mais uma brincadeira qualquer.

O tempo passou. Eu e meus amigos crescemos respeitando aquele menino que nunca tinha medo de nada. Já éramos adolescentes quando seu pai arranjou um emprego no Rio de Janeiro e levou toda a família, fazendo com que perdêssemos o contato.

Vários anos depois (não lembro quantos), eu estava assistindo a um programa de televisão e vi um grupo de alpinistas que se preparava para escalar um vulcão, em um lugar chamado Cinturão de Fogo, no México, se não me engano. Lá estava Abel, entre os líderes do grupo, estampando no rosto o mesmo sorriso do menino que um dia desafiou o cão de guarda da Dona Letícia.

Comentei com alguns de meus amigos de infância aquela reportagem, e, a partir daí, sempre que um de nós encontrava alguma notícia das aventuras de Abel pelo mundo, mostrava para os outros.

Foi assim que, em 2008, quando todos nós já havíamos atravessado a barreira dos quarenta anos, aconteceu uma etapa do Campeonato Mundial de Motocross Freestyle em Fortaleza. Alguém trouxe a notícia de que Abel estava vindo para participar do evento. Ele já havia deixado de competir nessa modalidade, mas estava trabalhando na produção.

Reunimos vários amigos da época, descobrimos o hotel onde os organizadores da competição estavam hospedados e fizemos uma visita surpresa a Abel.

Foi uma festa! Uns casados, outros descasados, alguns com filhos adolescentes, outros com bebês de colo, o fato é que, mesmo sendo ele o aventureiro da turma, cada um de nós tinha alguma coisa para contar.

Como a competição aconteceria no sábado à noite, marcamos de ir à praia com as famílias no dia seguinte.

E assim fizemos. No domingo de manhã, lá estávamos nós, com as esposas e filhos, em uma praia muito conhecida nos arredores de Fortaleza, onde há também um famoso parque aquático. Meu filho Álvaro tinha acabado de fazer oito anos; Abelinho, filho dele, estava perto de completar onze. Num instante ficaram amigos, e logo estavam diante de nós, pedindo para ir brincar no parque aquático.

Mas, pela primeira vez, desde que o conheci, Abel pareceu vacilante:

– Meu filho, vá brincar na areia mais um pouco… depois nós iremos com vocês para os brinquedos…

Eu disse mais ou menos a mesma coisa para o Álvaro, e, com alguma relutância, os dois acabaram aceitando adiar as aventuras nos tobogãs aquáticos.

Quando se afastaram, perguntei a Abel:

– O que houve, amigo? Algum problema?

Ele coçou a cabeça, pensou um pouco e explicou:

– Olhe, pra lhe dizer a verdade… o problema é que o Abelinho é muito afoito, sabe? Quando ela entra nesses parques aquáticos, vai direto para os escorregadores mais altos. Aliás, é assim com tudo. Montanha russa, elevador que cai, trem fantasma, ele adora todos esses tipos de brinquedos. Você precisa ver o que ele faz com a bicicleta lá em casa…

– Não me espanta que ele seja assim – disse eu. – Você não fica feliz de ver que ele parece tanto com o pai?

– Eu fico mesmo é com medo – suspirou ele baixando os olhos. – Morro de medo que aconteça alguma coisa, que ele se machuque… Sei lá.

Percebi que o risco de o filho se ferir realmente deixava Abel com medo. E achei engraçado que aquilo acontecesse justamente com ele, sempre tão disposto a enfrentar toda sorte de perigos.

Nessa hora, senti que um sorriso se formou em meus lábios, mas, devo admitir que não foi por achar a situação engraçada que sorri. Era um sorriso que vinha de uma espécie de satisfação de, pela primeira vez na vida, me sentir encorajado a ir adiante, enquanto Abel vacilava.

– Deixa de besteira, rapaz! – disse eu, já me levantando. – Não tem nada perigoso aí, não! Vamos chamar os meninos, senão fica tarde e eles não vão poder aproveitar todos os brinquedos!

Minutos depois, os dois garotos deslizavam felizes pelos escorregadores. Fiquei orgulhoso de ver que, apesar de menorzinho, Álvaro acompanhava o Abelinho naquelas aventuras, sem vacilar, mesmo quando precisava se lançar dos pontos mais altos dos brinquedos aquáticos.

Ao meu lado, um Abel tenso acompanhava o filho com os olhos, até o final de cada descida.

Percebi sua tensão, mas não falei nada. Apenas reconheci para mim mesmo, depois de tantos anos, que, apesar da nossa amizade, sempre tive um pouco de inveja do Abel.

Porque ele era um menino que não tinha medo.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 31 de julho de 2019

GREVE DE ALEGRIA

 

GREVE DE ALEGRIA

Em 1999, escrevi um conto e depois apaguei o arquivo. Não quis mostrar o texto a ninguém. Achei que a história não merecia publicação. Mais que isso, achei que não deveria ser lida, porque estimulava sentimentos ruins, destrutivos.

No conto, uma quantidade imensa de brasileiros havia cansado dessa história de sermos um povo que enfrenta os problemas com alegria e bom humor, muitas vezes rindo de nós mesmos.

Dava-se, então, que vários grupos organizavam-se pelo país, em torno de uma mesma ideia. Como se houvessem combinado, decidiram protestar de um mesmo modo inovador: uma espécie de greve de alegria.

Parariam de rir, deixariam de festejar, evitariam demonstrar alegria, qualquer que fosse o motivo, enquanto o país não resolvesse seus principais problemas (que, naquela época, eram mais ou menos os mesmos de hoje).

Na ficção, os movimentos adquiriam um grande número de adeptos, de modo que as manifestações de apatia, tristeza e irritação espalhavam-se pelo país. É verdade que, como havia muitos grupos, independentes entre si, que organizavam os protestos, cada um se queixava por motivos diferentes. Na soma dos esforços, porém, o resultado era que o Brasil havia se tornado um lugar esquisitíssimo.

Continuava tendo carnaval, mas as músicas muitos blocos e escolas de samba eram tristes. E, ao invés de dançar, as pessoas andavam cabisbaixas ao lado de trios elétricos.

Continuava a haver futebol, mas, a cada gol, a reação de boa parte da torcida era fazer um minuto de silêncio. Se fosse um gol muito bonito, um golaço mesmo, era provável que recebesse uma sonora vaia.

E, assim, pela obstinação desses heróicos brasileiros em se mostrar insatisfeitos com seus problemas políticos, econômicos e sociais, o Brasil passava a ser, na minha ficção, um país movido pela tristeza, a indiferença, a raiva e quaisquer outros sentimentos que deixassem clara a infelicidade e a insatisfação do nosso povo.

Ocorre que, quando escrevo ficção, é como se eu acessasse um universo paralelo, onde as coisas que imagino acontecem de verdade. Assim, minha atividade de escritor limita-se a observar o que se passa nesses mundos imaginários, narrando-os, em seguida, na forma escrita.

Consequentemente, as situações que descrevo em meus contos são imaginárias, mas os sentimentos advindos da observação desses fatos são reais. E, nesse caso, eram sentimentos não eram nada construtivos (percebo-os novamente agora, enquanto escrevo esta crônica).

Eis o motivo pelo qual entendi, naquela ocasião, que não valeria a pena compartilhar com ninguém a história que acabara de escrever.

A par disso, hoje, vinte anos depois, lembro dela.

E o resultado dessa lembrança é a vontade de dizer aos meus leitores que, se alguém lhes propuser novas formas de protesto, que consistam em transformar momentos de diversão e entretenimento em protestos políticos, cuidado!

Cuidado para que essa suposta eficiente maneira de protestar não seja o primeiro passo para contaminar politicamente momentos das nossas vidas que poderiam ser bem mais divertidos.

Sim, a política é importante — é muito importante! — mas há outros aspectos da vida que precisam ser levados em consideração.

Temos a família, temos os amigos e temos ainda nós mesmos, que precisamos de momentos de leveza em nosso dia a dia. Ocasiões nas quais possamos apenas relaxar, nos divertir, sem transformar esses momentos de diversão em palanque político.

Manifestações artísticas, como a música, o cinema ou o teatro, sempre foram ferramentas para a manifestação política. A própria comédia é uma da mais eficazes maneiras de protestar. Mas, a arte também fala de amor, ternura e amizade.

Então, será que devemos ir ao cinema ou ao teatro com a predisposição de fazer daquele momento um ato político? E o churrasco com a família, no domingo? Será que é a ocasião adequada debatermos nossas preferências ideológicas?

Não tenho a resposta. Sequer estou dizendo que qualquer conduta nessas ocasiões seja certa ou errada. Estou apenas sugerindo ao querido leitor que reflita se vale a pena trocar a emoção do jogo de futebol (ou qualquer outro esporte de sua preferência) pela do protesto na arquibancada.

A questão é: vale a pena fazer de cada momento de lazer uma ocasião para proferir palavras de ordem?

Admito que, vinte anos atrás, quando escrevi aquele conto, eu até achava que sim. A par disso, ao fim do processo criativo, não gostei do estado de espírito em que me encontrava. Li o meu próprio texto e não gostei do que senti.

Felizmente, era apenas uma obra de ficção, com remotíssimas chances de se tornar realidade. Bastava apagar o arquivo e não haveria maiores consequências.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis terça, 16 de julho de 2019

ÁGUA NO CHOPE

 

 

ÁGUA NO CHOPE

 

REFRÃO

Querem botar água no meu chope,
Mas eu não vou deixar,
Vou me defender como puder
Não me entrego sem lutar.

Querem botar água no meu chope,
Mas eu não vou deixar,
Vou usar as armas que tiver,
Até o jogo virar.

A gente, tentando vencer nessa vida,
Enfrenta batalhas com fé e destemor,
Jogando o jogo, em cada partida,
Buscando a felicidade e o amor.

Mas, tem uma coisa que, quando acontece,
É causa de muita preocupação.
É quando a ameaça ou perigo
Tem forma de fogo amigo,
E a gente descobre a armação. (Que decepção!)

REFRÃO

Se a gente consegue o que muito queria,
E põe, no domingo, o chope pra gelar.
Prepara o churrasco, com toda alegria,
E chama os amigos pra comemorar.

Periga que venha alguém nessa festa,
Com a alma repleta de má intenção.
Se pega você descuidado,
Põe água em seu chope gelado,
Fique sempre atento, meu irmão. (Não relaxa, não!)

 


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 31 de maio de 2019

DIAGNÓSTICO PRECOCE

 

 

DIAGNÓSTICO PRECOCE

 

No consultório, sentado diante do médico, o paciente mantinha o olhar direcionado para o busto de Hipócrates posicionado sobre a mesa que havia entre eles. Um sinal de timidez, nada surpreendente em um rapaz tão jovem, mal saído da adolescência propriamente dita. Talvez indo pela primeira vez sozinho a uma consulta.

 

Depois de fazer as perguntas iniciais de praxe, e de digitar no computador algumas anotações, o médico indagou:

– Bem, meu caro J*, eu vou me permitir lhe chamar de você, por causa da sua idade. Há algum motivo especial para você ter vindo se consultar com um psiquiatra?

O rapaz respondeu rápido. Como se ansiasse por aquela pergunta:

– Doutor, eu queria saber se tem algum remédio pra não ter raiva. Pra eu queria nunca sentir raiva de ninguém.

– Pra raiva?… por quê?… você tem sido agressivo com as pessoas?

– Não, doutor! Deus me livre!… É por causa de um poder que eu tenho… que é muito perigoso…

– Um poder? – interessou-se o médico. – que tipo de poder?

– É porque eu tenho o poder de matar uma pessoa, só com o olhar. Basta eu ter uma raiva. Se eu olhar com raiva pra pessoa, ela morre na hora.

O psiquiatra olhou detidamente para o rapaz franzino, carente de melanina e sol, e foi difícil imaginar aquela criatura tirando a vida de um semelhante. Tampouco considerou provável que daqueles olhos, fixos no busto de Hipócrates, pudesse sair algum raio mortífero.

Depois de refletir sobre a melhor forma de levar aquela conversa adiante, prosseguiu:

– E… como foi que você ficou sabendo que tem esse poder? Até agora seu olhar ainda não matou ninguém… eu espero…

– Faz tempo que eu sei, doutor. Tem uns seres de outro planeta que me acompanham desde pequeno. Eles me disseram.

– Ah, sim! De outro planeta… – comentou o médico, tentando demonstrar naturalidade. Nem precisaria, no entanto, preocupar-se com isso, porque, a essa altura, o paciente estava mergulhado em seus próprios pensamentos.

– É… Parecem com os humanos, mas são mais altos. Têm as mãos grandes… Eles controlavam meu poder… Mas já vinham me avisando, que quando eu fizesse 18 anos, eu ia ficar por minha conta. Aí, ano passado, eu completei 18… e não tenho mais coragem de olhar pra ninguém…

– Bem, J*, nós precisamos investigar isso, talvez com sessões de psicanálise, se você concordar. Por enquanto, eu vou receitar um estabilizador de humor, pra você já ir tomando, mas é importante a gente buscar a causa desse seu sentimento de que pode matar as pessoas.

– Investigar, doutor? – perguntou o jovem, surpreso, olhando pela primeira vez para o médico.

– Sim, investigar, no sentido de buscar as causas, a origem… a psicanálise pode ajudar muito… Uma das linhas que nós podemos considerar, é a possibilidade de você ter um transtorno psicótico. Talvez até uma psicose crônica, já que você relata que desde criança tem o mesmo tipo de… digamos… delírio… Então, pode ser que, durante a adolescência, com as variações hormonais, isso tenha se agravado…

– Como assim, delírio, doutor?

– Bem… é como eu digo… precisamos averiguar… Mas, o delírio, assim como a alucinação, seria mais ou menos como a pessoa tratar como realidade uma coisa que só existe pra ela… Aí a pessoa acredita naquilo… vive como se aquilo fosse realidade…

– Então, doutor… o senhor quer dizer que esse meu poder, de matar as pessoas com o olhar, pode ser só coisa da minha cabeça?

– Bem… pode! O mais provável é que seja isso mesmo.

E o corpo do médico pendeu para a frente, até o rosto se chocar com o tampo da mesa. Estava morto.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quinta, 16 de maio de 2019

O JUIZ E O CANOEIRO

 

O JUIZ E O CANOEIRO

 

Muito antes de os países existirem na forma atual, com suas fronteiras bem definidas e os poderes do Estado bem delimitados, já havia reis que delegavam a cidadãos de sua confiança a tarefa de julgar as questões entre seus súditos.

Assim acontecia entre os Destros, um povo antigo, que vivia em algum ponto às margens do Mediterrâneo, antes de serem submetidos ao Império Romano, como tantos outros.

Era uma grande honra ser incumbido da função de julgador, porque todos ali sabiam que seu exercício exigia equilíbrio e sabedoria. Juízes insensatos, ou que se deixassem levar por interesses pessoais, acabavam gerando descontentamento entre a população, contribuindo, assim, para o descrédito do próprio soberano.

Sabendo disso, o destro Átrion sentiu um misto de alegria e preocupação, ao ser nomeado juiz. Afinal, tinha pouco mais de trinta anos de idade, e todos os juízes que ele conhecia eram homens de cabelos grisalhos, alguns ostentando longas barbas brancas.

É fato que havia estudado filosofia, na Grécia, e que, há mais de dois anos, era membro do Conselho de Sábios da sua aldeia, mas estaria pronto para a missão de julgar?

Durante os dias que se seguiram à sua nomeação, Átrion refletiu muito sobre isso. Por um lado, sentia-se honrado, com o reconhecimento que o rei lhe havia demonstrado; por outro lado, questionava-se se estaria preparado para decidir sobre a vida das pessoas.

Foi assim que, certa manhã, poucos dias antes da cerimônia do recebimento de sua Vara da Magistratura – um cajado que os juízes portavam, como símbolo da sua função – Átrion foi à casa de um experiente magistrado, conhecido como Mestre Aluk, cuja sabedoria era reconhecida por todos os seus pares. Buscava uma palavra que lhe acalmasse o espírito.

Mestre Aluk morava em uma chácara, em uma das muitas montanhas que havia nos arredores da aldeia onde Átrion exerceria suas funções de julgador. O velho magistrado recebeu o jovem com respeito e alegria, e o tratou com as honras de um juiz que já estivesse no exercício da jurisdição.

Encorajado pelo tratamento cordial do experiente julgador, Átrion foi o mais direto possível ao assunto:

– Mestre Aluk, tenho estado atormentado, desde a minha nomeação para o corpo de magistrados do Reino. Não questiono a escolha do Rei, nem nego os conhecimentos que adquiri ao longo de anos de estudo, e de outras funções que tenho exercido. Mas sei que sou o mais jovem dos juízes já nomeados por Sua Majestade. Tenho receio de me faltar a experiência necessária à atuação do julgador.

A partir daí, Átrion passou a tecer uma série de considerações a respeito do estudo, da experiência e da responsabilidade dos juízes.

Mestre Aluk ouviu tudo com atenção, sem demonstrar surpresa. Agradeceu a deferência de Átrion, por buscar seus conselhos, mas, sobre as preocupações expostas pelo futuro colega de magistratura, nada disse. Ao contrário, mudou de assunto e convidou o neófito para uma caminhada.

Depois de quase um quilômetro andando por um caminho aberto na floresta, falando sobre outros assuntos, chegaram a uma clareira, na margem do rio que descia do topo da montanha. Naquele ponto, a água formava ondas e fazia barulho ao se chocar com as pedras, devido à forte correnteza.

Mestre Aluk sentou-se em uma pedra grande, arredondada, e orientou Átrion a sentar-se em outra, semelhante. Parecia ser um lugar para onde o velho magistrado costumava se retirar, quando queria refletir sobre algum assunto.

Depois de uns instantes em silêncio, observando a correnteza, Mestre Aluk retomou a palavra:

– Meu caro Átrion, você sabe que esse rio deságua em um lago, em cujas margens está a aldeia onde você vai morar. Se você fosse contratar um canoeiro, para levar um saca de sal, deste ponto até alguém que mora na aldeia, que comportamento você esperaria do canoeiro?

Átrion percebeu que aquela não era uma simples pergunta sobre o transporte de sal. Pensou por alguns segundos e tentou ser objetivo em sua resposta:

– Mestre Aluk… essas águas são um tanto revoltas. Eu esperaria que o canoeiro conduzisse a embarcação em segurança, sem a deixar virar. Mas também que ele usasse da necessária habilidade para, nos momentos certos, aproveitar a força da água corrente para impulsionar a canoa. Evitando encalhar em algum ponto das margens, ou demorar demais no percurso até o lago.

Mestre Aluk sorriu. Parecia satisfeito com a resposta:

– Então, meu caro Átrion, você sabe como um juiz deve se conduzir. Porque o juiz deve ser como esse canoeiro, transportando o sal. No alto dessa montanha, nasce o rio, que serve de caminho até o lago e a aldeia. As leis do nosso povo, nossos costumes e valores, são como as pedras dessa montanha, de onde brota o rio do Direito. Por ele o juiz deve conduzir sua canoa, transportando a decisão que irá resolver a controvérsia. Observe que, assim como o canoeiro, o juiz não é um ser inerte, que deixa a embarcação ser levada pelas águas, à deriva. Não! Ele atua, com seu remo, corrigindo o rumo, evitando choques com as pedras… trabalhando para que o rio do Direito o conduza ao lago da Justiça. Mas o condutor da embarcação deve ter consciência de que não pode fazer prevalecer a sua vontade sobre a força do rio. Se tentar agir assim, provavelmente naufragará. Ou, talvez, entrará tanta água na canoa que dissolverá o sal. Assim, tal qual o canoeiro, que deve usar o poder das águas no cumprimento da sua missão, o juiz deve conhecer as correntes do Direito, para as usar na busca da realização da Justiça. Jamais deve fazer isso por interesse pessoal ou de terceiros, ou mesmo para tentar impor ao povo a sua própria noção do justo. O sal da Justiça deve ser entregue ao seu destinatário, na aldeia, e não deixado nas margens do rio, ou dissolvido em suas águas.

Após ouvir aquelas palavras, Átrion olhou detidamente para o rio, imaginando-se conduzindo a embarcação sobre as águas. Vários pensamentos vieram-lhe à mente, mas se limitou a dizer:

– Espero ter a humildade necessária, Mestre Aluk, para saber conduzir minha pequena canoa, entregando o sal da Justiça às pessoas da aldeia.

– Você a terá. Tenho recebido notícias de sua conduta no Conselho de Sábios. Muitos comentam do seu equilíbrio, sua humildade e seu senso de Justiça. Agora, vamos voltar à minha casa. Deve haver um bule de chá quentinho à nossa espera.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 22 de março de 2019

AS REGRAS DE TRANSIÇÃO PROPOSTAS NA REFORMA DA PREVIDÊNCIA E A PACIÊNCIA DE JÓ

 

 

AS REGRAS DE TRANSIÇÃO PROPOSTAS NA REFORMA DA PREVIDÊNCIA E A PACIÊNCIA DE JÓ

 

Imagem:  Bússola Literária

Não, eu não tenho nada contra uma reforma da previdência.

Pelo contrário, sou inteiramente a favor de uma reforma que venha para o bem do Brasil, resolvendo todos os seus problemas estruturais de déficit público e possibilitando ao país a retomada do crescimento econômico.

Ocorre apenas que, estando no serviço público federal desde janeiro de 1998, e já enquadrado em uma regra de transição, da reforma de 2003, é muito frustrante ver que a nova reforma propõe o desrespeito àquelas regras de transcrição, atualmente em vigor.

Afinal, são dezesseis anos acreditando nas normas fixadas para minha aposentadoria. Agora, que se aproxima o tempo de me beneficiar dessas normas, o Estado Brasileiro ameaça jogar tudo no lixo.

Diante dessa ameaça, sinto-me tentado a discursar sobre segurança jurídica, credibilidade do Estado brasileiro e coisas afins.

Mas não o farei. Sem qualquer intenção de me opor à reforma da previdência em curso, embora sentindo na pele os seus possíveis efeitos, busquei na Bíblia doses extras de resignação e paciência.

E minha fonte de inspiração foi Jó.

Não sei como é na Bíblia dos meus queridos leitores, mas, na minha Bíblia, o Capítulo 1, do Livro de Jó, diz o seguinte, a partir do versículo 23:

LIVRO DE JÓ, Capítulo 1

23 Satisfeito com a lealdade e a serenidade de Jó, o Senhor disse a Satanás: “Que belo exemplo de paciência é Jó! Ainda era praticamente uma criança quando começou a cuidar de suas tamareiras. No entanto, só colherá seus primeiros frutos daqui a cinco anos.”

24 “Para quem cultiva tâmaras, Jó não tem do que reclamar” — respondeu Satanás. “Fará a colheita com 53 anos de idade, quando muitos morrem de velhice sem colher fruto algum.”

25 “Verás que não é assim” — replicou Deus. “Farei com que os frutos de suas tamareiras só possam ser colhidos quando ele tiver 60 anos”.

26 E assim foi feito. Passaram-se os cinco anos que faltavam para as tamareiras de Jó darem frutos, e mais os sete que foram acrescentados para que ele alcançasse a idade mínima para a colheita.

27 Totalizando assim doze anos de espera para Jó, encontraram-se novamente Deus e Satanás em suas terras. Aos 60 anos, preparava-se Jó para colher os frutos de suas tamareiras, que estavam quase maduros. Sua fisionomia expressava a calma e a serenidade de sempre.

28 “Vês como Jó aguardou pacientemente a colheita, apesar dos anos extras que foram acrescentados à sua espera?” — disse Deus.

29 Mas Satanás fez novo desafio: “Aumente a idade mínima da colheita para 65 anos. Quero ver se restará nele alguma fé!”.

30 “Que assim seja!” — concordou Deus, confiante na paciência e lealdade de Jó. Imediatamente, todas as tâmaras de Jó murcharam.

31 Vendo aquilo acontecer, Jó olhou para o céu e disse: “Senhor, vejo que terei que esperar mais alguns anos para colher os frutos que venho cultivando a minha vida inteira. As tâmaras estavam quase maduras. Mas não me revolto contra Ti, porque sei que isso deve ser obra de Satanás!”.

32 E voltou Jó para casa, como fazia todos os dias, sem praguejar, sem lamentar e sem maldizer a própria sorte.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 10 de março de 2019

VIRTUDES E VÍCIOS NA GRAMA DO JARDIM

 

 

VIRTUDES E VÍCIOS NA GRAMA JARDIM

 

Aproveitando o domingo de céu nublado, tirei parte da tarde para cuidar da grama do jardim. Arrancador de mato nas mãos protegidas por luvas, lá fui eu separar as plantinhas desejáveis das indesejáveis.

Habituado a observar o que se passa ao meu redor – para depois transformar tudo em contos e crônicas – logo vieram as reflexões sobre a vida. É impressionante o quanto podemos aprender, com uma atividade aparentemente tão simples.

Primeiro, o necessário gesto de se ajoelhar diante da natureza (ou do seu Criador). Arrancar mato é um trabalho que requer concentração, paciência e algum conhecimento do que deve ou não ser arrancado. Mas, sem se pôr de joelhos, sua execução fica bem difícil. O gesto adquire, assim, um simbolismo de humildade.

Joelhos no chão, comecei a ver semelhanças entre nossas virtudes e a grama. E entre as ervas indesejáveis e os nossos vícios.

Lembrei que a grama nós precisamos plantar, adubar, regar, até que ela se fixe e estabilize na terra. O mato não. O mato simplesmente aparece, sem qualquer esforço nosso. E, se não cuidarmos da arrancá-lo regularmente, ele cresce e sufoca a grama.

É assim, por exemplo, com o egoísmo. Se não cultivarmos o altruísmo e a solidariedade, ele vai achando em nós o seu espaço. E aos poucos nosso estímulo para pensar no outro, para abrir mão de algo em favor do outro, parece desaparecer completamente.

Talvez seja assim também com a raiva, o ressentimento e tantas outras ervas daninhas que parecem nascer espontaneamente em nosso ser. Ao contrário da serenidade e da compaixão, que precisam ser plantadas e cuidadas.

Não vejo isso como uma falha nossa, mas como um efeito colateral do nosso instinto de sobrevivência, vindo lá dos nossos primórdios, quando a necessidade de cuidar primeiro de si mesmo era bem maior que a disposição para ajudar o outro. Isso ainda acontece hoje, felizmente com menor frequência.

Estamos aprendendo, evoluindo, nos aperfeiçoando, mas ainda temos muito a caminhar.

Segui com meu trabalho dominical e observei que algumas dessas ervas indesejáveis são mais fáceis de arrancar, enquanto outras misturam suas raízes de tal forma às raízes da grama, que é impossível extraí-las sem arrancar um pouco de grama junto. E acaba ficando um buraco no lugar. Uma ferida aberta que somente com o tempo poderá cicatrizar.

No caso do jardim, esperamos que a grama renasça naquele espaço vazio, ou a replantamos, mas sempre há o risco de ali brotar novamente o mato. Porque basta ficar uma semente, ou um pouco da raiz da erva daninha, para que ela renasça. Como os nossos vícios.

Depois de algumas horas de trabalho, minha principal conclusão foi a de que precisamos observar constantemente o que sentimos, pensamos e fazemos, para irmos nos livrando dos nossos vícios e reforçando nossas virtudes. Porque em nosso jardim há sempre um matinho para arrancar e algum trechinho de grama para repor.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 08 de fevereiro de 2019

UMA FÁBULA SOBRE LOBOS, OVELHAS E PASTORES (EM DOIS ATOS)

ÁBULA

UMA FÁBULA SOBRE LOBOS, OVELHAS E PASTORES (EM DOIS ATOS)

Marcos Mairton

Imagem de Fábulas Edificantes

PRIMEIRO ATO

Em uma noite fria e úmida – dessas em que só sai de casa quem tem algum motivo muito forte – um lobo solitário vagava na floresta, quando viu, em meio às árvores, a silhueta de uma ovelha.

A noite era de lua cheia, mas a visibilidade estava prejudicada pelas muitas nuvens que havia no céu. As copas das árvores, frondosas naquela época do ano, também formavam sombras que atrapalhavam a visão, mesmo para os olhos de um caçador noturno.

O lobo, então, moveu-se furtivamente – como bem sabem fazer os lobos – até chegar o mais perto possível do seu alvo. Sua boca já salivava, diante da possibilidade de uma refeição fácil, mas estava desconfiado com a presença da ovelha naquela parte da floresta. Ainda mais àquela hora da noite.

E foi-se o lobo, esgueirando-se nas sombras, o mais silenciosamente possível, até chegar a uma distância da sua potencial vítima, que seria facilmente transposta por um de seus poderosos saltos.

 

Naquele exato momento, o animal aparentemente indefeso virou-se para o lado onde o lobo estava, ficando frente a frente com ele. Estavam a menos de três metros um do outro. Olhos nos olhos. Imóveis, como duas estátuas.

Mas essa imobilidade durou apenas alguns segundos. Logo, o caçador abaixou a cabeça, soltou um breve grunhido, e sumiu novamente na floresta, tão silenciosamente como havia chegado. Acabara de perceber que não havia ali ovelha alguma.

O que ele havia visto era outro lobo, apenas estava sob uma pele de ovelha.

Mais interessado em comer que em brigar, o lobo em pele de lobo preferiu sair dali o quanto antes.

Moral do primeiro ato: Um lobo é capaz de reconhecer outro lobo, mesmo quando ele está sob pele de ovelha.

* * *

SEGUNDO ATO

Os dois pastores pretendiam sair de casa no começo da tarde, com destino a uma fazenda vizinha, onde iriam buscar algumas de suas ovelhas que estiveram pastando ali nos dias anteriores.

Acabaram, no entanto, saindo com muito atraso, e, no meio da noite, ainda atravessavam a floresta que havia entre as duas fazendas. Estavam nessa travessia, quando avistaram um lobo esgueirando-se em meio às árvores, como se tentasse surpreender alguma presa.

Com receio de tornarem-se, eles mesmos, comida de lobo, subiram em uma árvore para se proteger. Foi então que, do alto, puderam observar o feroz animal a se aproximar de uma ovelha, que displicentemente circulava por ali.

Ao ver aquela cena, o pastor mais jovem, esquecendo-se de sua própria segurança, chamou o colega mais experiente para ir em socorro da pobre ovelha. O pastor mais velho, no entanto, segurou o mais jovem pelo braço e disse:

– Espere.

– Mas o lobo vai pegar a ovelha, se ficarmos aqui! Somos pastores!

Falou com impaciência, mas baixando o máximo possível a voz, para não serem descobertos antes que pudessem organizar o resgate da ovelha.

– Espere – insistiu o mais velho. – E observe.

O pastor mais velho falou com tanta firmeza que o jovem acabou obedecendo e ficando por ali mesmo. E, qual não foi a sua surpresa, ao perceber que, após estar frente a frente com a ovelha, à distância de menos de um salto, o lobo havia simplesmente sumido na floresta, deixando a presa escapar.

– O que houve? – perguntou o pastor mais jovem.

– Eram dois lobos. Um deles estava sob pele de ovelha.

– E como você percebeu?

– Não sei dizer exatamente, mas desconfiei da maneira confiante como aquela ovelha andava na floresta. Sozinha, a essa hora da noite. Depois, no último momento, o jeito como ela olhou nos olhos do lobo… Ali, tive certeza do que estava acontecendo.

Moral do segundo ato: Pastores também podem reconhecer um lobo sob pele de ovelha. Mas isso requer certa experiência.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 06 de janeiro de 2019

AS PROVAS

 



Um amigo perguntou: – Cadê as provas?
E eu, então, lhe respondi: – Meu caro amigo,
Fique certo que elas não estão comigo.
Tenho aqui só uns sonetos e umas trovas.

E, acredito, não estão também contigo,
Nesse assunto, eu e tu somos incautos.
Se há provas, elas devem estar nos autos,
Com quem deve decidir crime e castigo.

Para isso há os juízes, afinal,
Dedicados a aplicar a lei penal.
Em qualquer democracia é desse jeito.

Se negarmos tal mister aos tribunais,
Por temermos que eles sejam parciais,
Quem irá dizer o Justo e o Direito?


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 23 de dezembro de 2018

A CARTOMANTE COLOMBIANA

 



Em outubro de 2005, estive nos Estados Unidos por razões profissionais. Terminados os trabalhos, adiei a viagem de retorno ao Brasil e passei uma semana em Miami. Depois quinze dias de trabalho, em ritmo intenso, queria passar uns dias descansando.

Aproveitei a ocasião para visitar um amigo – a quem chamarei aqui de Ricardo – que há anos morava naquela cidade da Flórida.

Conhecendo Miami como se houvesse vivido ali desde a infância, Ricardo levou-me para visitar muitos lugares e encontrar gente nova. Um dos lugares visitados foi um restaurante cubano, onde almoçamos certa vez. Como de costume, havia ali vários amigos dele, que nos receberam calorosamente.

Todos no lugar falavam espanhol. Despertou-me especial atenção uma colombiana, chamada Vera, que aparentava uns sessenta anos de idade e vestia roupas de cores aberrantes. Na cabeça, usava uma espécie de lenço vermelho, que prendia apenas parcialmente seus cabelos, dando-lhe a aparência de algumas ciganas de filmes e novelas.

À medida que a conversa avançava, percebi que ela frequentemente se referia a um certo Pablo, como sendo alguém conhecido das outras pessoas que estavam ali. Narrava fatos pitorescos envolvendo o tal Pablo, e todos riam.

Tentando compreender melhor o que se passava, perguntei:

– Con su permiso, señora, ¿quién es Pablo?

Ao ouvir minha pergunta, Vera deu uma sonora gargalhada. Mas não respondeu. Simplesmente lançou um olhar para meu amigo Ricardo e fez um movimento com a cabeça, como se o autorizasse a me responder. Ele entendeu o sinal e me disse, sorrindo, mas baixando a voz:

– A Vera é cartomante do Pablo Escobar. Cartomante só, não. É uma espécie de conselheira, guia espiritual, essas coisas …

– Cartomante de quem? – perguntei. Não por não haver entendido o que Ricardo me dissera em claro português, mas por achar que havia ali alguma espécie de brincadeira.

– Do Pablo Escobar. O colombiano.

– Então, ela foi cartomante dele, não? Porque, se o cliente dela for o Pablo Escobar que estou pensando, já morreu há uns dez anos.

Foi a vez de Ricardo olhar para Vera, como a lhe pedir autorização para seguir na explicação até o final.

Antecipei-me, porém, ao diálogo mímico dos dois e perguntei diretamente a ela, em espanhol:

– ¿Entonces usted fue cartomante de Pablo Escobar?

– En español, se habla “usted fue” o “yo fui” para hechos pasados – respondeu ela falando lentamente. – En el presente decimos: “usted es” o… “yo soy”!

– Sí, claro! Pero Pablo Escobar ha muerto desde hace más de 10 años…

Nova gargalhada de Vera. E continuou falando, agora, em um espanhol rápido e misturado a sorrisos, que, pelo que entendi, significava o seguinte:

– Não morreu nada! Armou toda aquela história de ter sido morto. Depois, se escondeu aqui, em Miami. Tudo combinado com o governo dos Estados Unidos. Fez parte do acordo para ele se entregar.

A essa altura, tive certeza de que ela realmente estava brincando comigo. O Pablo de quem falava era certamente algum amigo íntimo, a quem ela acrescentava o sobrenome Escobar, apenas como uma “broma”. Sorri e fiz um ar de quem havia acreditado no que acabara de ouvir, dando o caso por resolvido.

A partir daí, a conversa prosseguiu até nos despedirmos, sem mais nada digno de relato.

Ocorreu, porém, que, na noite daquele mesmo dia, Ricardo me levou a conhecer uma movimentada boate de Miami. O lugar estava lotado, com muita gente ocupando toda a calçada e parte da rua. A bilheteria já estava fechada e os seguranças, atentos para não permitirem a entrada de mais ninguém.

Falei para Ricardo que não havia problema. Que poderíamos ir embora e voltar no dia seguinte, mais cedo. Mas ele respondeu apenas:

– Espera, aí. Deixa eu ligar pra Vera, que ela dá um jeito.

Ligou, disse algumas palavras em espanhol que não entendi e deu uma gargalhada. Depois, desligou e falou para mim:

– Pronto. Resolvido!

Minutos depois, dois homens enormes, vestindo paletó, gravata e camisa pretos, saíram da boate e vieram em nossa direção. Dirigiram-se ao Ricardo e falaram com ele, em inglês, parecendo-me que pediam uma confirmação de que ele era mesmo quem procuravam. Em seguida, pediram-nos que os acompanhassem e conduziram-nos para a entrada da boate.

Lá dentro, Vera nos aguardava com um sorriso e um abraço. Estava em uma área restrita do lugar. Uma espécie de camarote, guardado por vários seguranças, semelhantes aos que nos foram buscar lá fora.

Acomodei-me por ali e fiquei observando o movimento. A todo o momento passavam garçons com bandejas repletas de latas de cerveja e drinks coloridos. Sem saber que tipo de bebida os tais drinks continham, preferi a segurança da cerveja.

Algum tempo depois, o fornecimento de cerveja foi suspenso, chegando a mim a informação de que, em toda a Flórida, a venda de bebidas alcoólicas era proibida de zero hora ao meio dia do domingo (nunca tentei confirmar isso).

A partir daí, o lugar começou a esvaziar-se lentamente. Vera já tinha ido embora bem antes. Ricardo sinalizou para irmos também. Pedi a um dos garçons que me orientasse sobre como fazer o pagamento das cervejas que havia consumido, mas ele me respondeu que eu não precisaria pagar nada. Falando em inglês, disse algo que me pareceu significar:

– Não precisa pagar nada. Todos aqui são convidados do Chefe!

Apontou para um homem ao fundo daquele espaço VIP e disse:

– Look there! He’s The Boss!

Em seguida, talvez por ter percebido meu sotaque e minha aparência latina, completou:

– Un gran hombre. El Patrón! – e afastou-se.

Como o tal “Patrón” estava cercado por muita gente, não consegui ver seu rosto. Reparei bem que era o único usando roupas de cor clara, provavelmente branca, nada mais que isso. Em meio àquele aglomerado de pessoas, a aproximação, para colher mais detalhes, era difícil. A iluminação também não ajudava.

Fomos embora e nunca perguntei nada a Ricardo sobre aquela noite, mas até hoje me pergunto se aquele homem da boate, chamado “The Boss” ou “El Patrón”, tinha alguma relação com a nossa conversa do almoço.

Alguns dias depois, retornei ao Brasil.

(*) Esta é uma obra de ficção. Tanto as datas como os nomes verdadeiros de pessoas e lugares foram incluídos para dar mais apelo dramático ao conto.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 14 de dezembro de 2018

O CARCARÁ E AS CORUJAS

 

 
O CARCARÁ E AS CORUJAS

Foto do colunista

Certa manhã, um casal de corujas estava tomando sol na entrada de seu ninho. Um carcará conversava com elas, e queixava-se da maledicência das outras aves.

– Dizem por aí que eu sou malvado. Que eu pego, mato e como. Falam que não respeito meus semelhantes, porque como filhotes de outros pássaros. Mas não tenho culpa de ser carnívoro. Até prefiro cobras e lagartos, mas, na falta deles, posso ter que procurar o almoço em algum ninho. Por necessidade.

– Não dê ouvidos a esse povo, compadre carcará! – respondeu a coruja macho, como quem queria animar o colega de rapina. – Eles têm inveja, por causa do seu voo elegante. Veja só: nós também somos carnívoros e sabemos como são essas coisas. Preferimos nos alimentar de ratos, mas, se a necessidade for grande, podemos comer filhotes de outras aves também. A natureza é assim mesmo!

– É bom saber que vocês me entendem. Por causa dessa falação, às vezes fico muito sozinho.

Fez-se um breve silêncio antes de o carcará retomar a conversa:

– Mas, vejo que vocês estão de saída! Por favor, não façam cerimônia por minha causa. Podem ir cuidar de seus afazeres, que eu vou já embora.

Ao ouvir o carcará falar daquela maneira gentil, a coruja fêmea olhou para dentro do seu ninho – que era apenas um buraco no chão – e viu os seus filhotes, ainda quase sem penas, amontoados lá no fundo. Depois, dirigiu seus grandes olhos amarelos para o carcará e falou, o mais cordialmente possível:

– De saída?! Impressão sua, compadre carcará! Já viu coruja sair de dia? Vamos ficar por aqui o dia todo.

– Bem… então… fiquem à vontade – disse o carcará, esticando as asas. – Vou voar um pouco.

E foi embora.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 25 de novembro de 2018

DIZ A LENDA (CURTA METRAGEM DE MARCOS MAIRTON)


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 16 de novembro de 2018

OLHANDO EM VOLTA

 

OLHANDO EM VOLTA

Todos os dias, olho em volta e estranho esse mundo em que vivemos.

Esse barulho, essa imensidão de automóveis amontoando-se nas ruas, nas avenidas. Essa música desagradável tocando no rádio, cada vez que entro em um táxi. Ou um Uber.

Essa multidão de gente em todo lugar para onde se vá. Gente apressada, nervosa, impaciente. Muitos parecendo zumbis, de olhos fixos na tela de seus computadores de bolso. Smartphones, iPhones. Gente que anda por aí, sem olhar onde pisa, como se um piloto automático lhes guiasse os passos.

As praças de alimentação dos centros comerciais – nem sei escrever o plural de shopping center – sempre lotadas. Comida feita às pressas. Fast food.

“Parecemos uma nuvem de gafanhotos em um milharal”, disse-me alguém, certa vez. Concordei.

Um mundo estranho. Ou um mundo no qual me sinto estranho. Se é que há alguma diferença entre uma coisa e outra.

A par disso, não sinto saudade de nada.

Nem de outra época, nem de outro lugar.

Olho em volta e acho tudo muito estranho.

Mas é o que temos: o aqui e o agora.

E sigo vivendo.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 04 de novembro de 2018

O PROFESSOR E O FLANELINHA

 



Foto: Lago Ribeiro. Blog do Labjor

Quando ingressei no Curso de Direito da Universidade de Fortaleza, em 1986, estava com vinte anos de idade, mas já trabalhava no Banco do Nordeste. Um bom emprego, que me permitia pagar com tranquilidade as mensalidades do curso, além de assistir às aulas sem o estresse de quem ainda busca uma vaga no mercado de trabalho.

O curso era noturno. Lembro que, no primeiro dia de aula, cheguei quando o sol ainda nem havia acabado de se por e deixei o carro no estacionamento externo do campus. Naquela época, não havia muita preocupação com assaltos ou furtos.

Um rapazinho, de uns quatorze anos que estava por ali, com uma flanela no ombro, prontificou-se a cuidar do carro até que eu voltasse:

– Posso ficar “pastorando” aí, Louro? – perguntou.

“Pastorar” é um verbo que no idioma cearês significa “cuidar de uma coisa alheia, sem tocar nela; manter sob vigilância”. A palavra consta dos dicionários de língua portuguesa como sinônimo de “pastorear”, que vem a ser a atividade do pastor ao cuidar do rebanho. O sentido é praticamente o mesmo.

“Louro” é uma das muitas maneiras de se tratar alguém cujo nome se desconhece.

– Pode! – respondi, de pronto, imaginando que ele pretendia receber alguma paga pelo serviço de vigilância, mas tendo certa dúvida se um jovenzinho daquela idade estaria a postos quando eu retornasse, lá pelas dez da noite.

E fui para minha aula. Quando retornei ao estacionamento, ao final, lá estava ele. Não pediu nada. Seu cumprimento – “Diz aí, Louro!” – foi o sinal para que eu lhe desse algum dinheiro.

A partir daquele dia, deixava costumeiramente o carro naquela área do estacionamento, sob os cuidados do jovem que passei também a chamar de “Louro” – o que fazia até mais sentido, porque, diferentemente de mim, ele tinha os cabelos loiros.

Foi assim durante todo o meu curso de Direito. Estacionava, cumprimentava o Louro e ia assistir às aulas. Ao voltar, encontrava-o esperando o pagamento, ou, o “trocado”, como ele preferia chamar.

Mas nem sempre ficava nisso. Várias vezes dei-lhe camisas e sapatos, em bom estado de conservação, que não mais usava. Era quase uma amizade. Não chegava a tanto, porque a conversa nunca passou de “Diz aí, Louro!”, “Beleza, Louro!” e coisas assim. Logo, nunca fiquei sabendo onde o Louro morava ou quem seria sua família, se é que tinha família e casa. Tampouco ele mostrava interesse na minha vida pessoal.

A par disso, recordo que muitas vezes cheguei a me questionar sobre o rumo que toma a vida de uma pessoa, conforme ela tenha oportunidade de estudar. E conforme faça uso dessa oportunidade.

Imaginei que o Louro, apenas uns cinco anos mais jovem que eu, deveria ter nascido em uma casa não muito mais pobre que a minha, na periferia de Fortaleza. Talvez tenha frequentado os primeiros anos do ensino fundamental em uma escola pública, como eu. Mas, em algum momento da vida, perdeu o interesse pelos estudos ou a condição de lhes dar sequência. É possível – talvez provável – que tenha sido incentivado pelos próprios pais a deixar o colégio, para contribuir com a renda da família. O contrário do que acontecera comigo, sempre estimulado a buscar nos estudos o caminho para melhorar de vida.

Independentemente dessas conjecturas, o fato é que, durante alguns anos, frequentamos a mesma universidade. Eu assistindo às aulas, ele “pastorando” meu carro. E, ao final daquele período, eu iria receber meu diploma de bacharel em Direito, enquanto ele continuaria sendo um “pastorador” carros, um “flanelinha”.

Passou o tempo. De bacharel em Direito, fiz o exame da Ordem dos Advogados do Brasil e tornei-me advogado; comecei a advogar no escritório de um amigo, e depois, no próprio departamento jurídico do banco onde trabalhava; entrei para o Mestrado em Direito Público da Universidade Federal do Ceará; passei em concurso para Procurador do Banco Central do Brasil; e concluí o mestrado.

Em 1999, já com o título de mestre, voltei à Universidade de Fortaleza, agora como professor do Curso de Direito, do qual fora aluno.

As aulas começavam às sete da noite, mas, no meu primeiro dia, cheguei à UNIFOR um pouco antes de anoitecer. Talvez por nostalgia, abri mão do estacionamento dos professores e deixei o carro na mesma área onde estacionava quando aluno.

Mal acabava de desembarcar, quando ouvi uma voz:

– Diz aí, Louro!

– Fala, Louro! – respondi com entusiasmo. – Tu ainda tá por aqui?

– Todo dia!

– Vai “pastorar” o meu?

– Claro!

– Tô de novo na área – falei sorrindo. – Mas agora como professor.

– É isso aí! Fez bonito! O senhor sabe que o estacionamento de professor é lá dentro, né? Mas, se quiser deixar aí, ninguém “bole”, não.

“Bole” é a terceira pessoa do singular do verbo “bulir”, que tem muitos significados na língua portuguesa. No idioma cearês é sempre utilizado no sentido de “tocar ou mexer em alguma coisa”.

Mas a palavra usada por ele que me chamou mais a atenção foi “senhor”. Era a primeira vez que se dirigia a mim daquela maneira. Certamente por respeito à minha, agora, condição de professor, demonstrando que, apesar de continuar frequentando a universidade apenas para vigiar os carros, reconhecia o valor dos que se dedicam ao ensino.

Iniciava-se, assim, mais um período de vários anos em que frequentei a Universidade de Fortaleza. Todas as noites, de segunda a sexta-feira. Raramente via o Louro, porque, como ele mesmo havia me alertado, o estacionamento dos professores ficava do lado de dentro do campus.

Nessa mesma época, fiz outros concursos. Fui advogado da União e juiz federal. Deixei de ensinar em 2005, quando me afastei de Fortaleza, para assumir a primeira vara federal de Juazeiro do Norte. Depois passei por Mossoró, Sobral e Quixadá. Até retornar a Fortaleza, em 2012.

Não voltei mais a ensinar, mas alguns anos depois do retorno a Fortaleza, fui convidado a dar uma palestra em um seminário na Unifor.

Um carro da universidade foi me buscar no fórum. Terminada a palestra, caminhei até a área externa, onde minha mulher me esperava em nosso carro. Passando pelo local onde costumava estacionar, lembrei dos tempos de aluno do curso de Direito.

O relógio marcava vinte e duas horas e mais um punhado de minutos. Alguns estudantes transitavam por ali, andando apressados em direção ao ponto de ônibus ou ao local onde haviam estacionado seus carros. Formava-se um engarrafamento na avenida que passa em frente à universidade. Alheio a todo aquele movimento, um homem de cabelos grisalhos estava sentado no meio-fio, demonstrando cansaço. Os braços apoiados nos joelhos, a testa apoiada nos antebraços.

No instante em que eu passava por ali, ele ergueu a cabeça e falou sorrindo:

– Diz aí, professor!

Era o Louro.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 02 de novembro de 2018

COMPARAÇÕES

 

COMPARAÇÕES 

Foto: Alamy

Quando saí de casa, o dia ainda não havia clareado totalmente. Como se o sol já estivesse acordado, mas resistisse à ideia de sair da cama.

Logo que cheguei à praça onde costumo fazer minhas caminhadas, vi passar uma jovem.

Andava rápido, como um praticante de marcha atlética, mas, com tanta suavidade, que os pés pareciam não tocar o chão.

Tinha as feições delicadas, como uma fada de livros infantis. E usava um vestidinho tão curto, que parecia uma blusa, deixando à mostra as pernas brancas, como se fossem de mármore.

De repente, ela parou perto de um carro estranho. Parecia saído de um filme de ficção científica. Entrou nele rapidamente, olhando para os lados, como se o furtasse.

No instante seguinte, o veículo flutuou no ar, como uma pluma erguida pelo vento, e partiu em direção ao espaço. Rápido e silencioso, como uma flecha.

Permaneci ainda alguns minutos olhando para o céu. Movimentando-me tanto quanto a estátua que há no meio daquela praça.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 28 de outubro de 2018

ESCREVENDO EM ESPANHOL

 

 
ESCREVENDO EM ESPANHOL

Tive a ousadia de participar de um concurso de contos promovido pelo site espanhol Microcuento. Nessa pretensiosa empreitada, fui estimulado por dois motivos.

O primeiro deles foi o desafio de escrever em outro idioma, concorrendo com nativos. Assim, fiz questão de escrever direto no espanhol, ao invés de fazê-lo em português e traduzir depois.

O segundo, o fato de o tema proposto ser muito presente na minha maneira de ver e viver a vida: O AGORA. Ou, como proposto no concurso “vivir con el ahora”.

Como era de se esperar, sequer fiquei entre os finalistas. Mas também não fui desclassificado, o que, para mim, é um tipo de vitória.

E ainda posso compartilhar com meus leitores a ideia do AGORA, de maneira lúdica. Uma parábola, talvez.

Chega de conversa. Segue o texto com o qual participei do concurso, seguido de sua tradução para o português.

Só mais um detalhe: a extensão do texto era limitada a 250 palavras.

EL GATO DE PORCELANA

En un reino imaginario, el rey era un hombre muy sabio y tranquilo, pero se estaba cansando de tantas tareas administrativas. Entonces decidió elegir a un Primer Ministro entre las personas más inteligentes del país.

Después de muchas pruebas de conocimiento, quedaron diez candidatos a quienes el rey propuso un desafío:

– El vencedor será el que me traiga un gato de porcelana.

– ¿Cuándo? – preguntaron en coro algunos competidores.

– ¡Ahora!

Los candidatos se quedaron sorprendidos. Nadie sale de casa con un gato de porcelana en el bolsillo.
El rey mandó que se fueran. Deberían volver al día siguiente para el desempate.

A la hora señalada, los candidatos se reunieron en el salón real. Pero antes de que el rey hiciera un nuevo desafío, uno de ellos, que traía consigo un paquete, pidió la palabra.

– Majestad, traigo al gato de porcelana que usted requirió.

– Admiro tu esfuerzo. Pero ya pasaron veinticuatro horas desde el desafío del gato.

– Sin duda, mi señor. ¿Y vuestra majestad se dio cuenta de que traigo el gato hoy y no ayer?

– ¡Claro!

– Y tampoco lo estoy trayendo antes o después de este momento.

– Es verdad.

– Entonces creo que traigo al gato en el momento exacto que vuestra majestad determinó: ¡ahora!

– ¡Muy ingenioso! Pero ¿es posible que el ahora se haya prolongado desde ayer hasta hoy?

– El ahora es infinito, majestad. En él todas las cosas suceden. Nunca antes, nunca después. Siempre ahora.
Y el rey sonrió satisfecho. Había elegido a su Primer Ministro.

O GATO DE PORCELANA

Em um reino imaginário, o rei era um homem muito sábio e tranquilo, mas estava cansado de tantas tarefas administrativas. Ele então decidiu escolher um primeiro-ministro entre as pessoas mais inteligentes do país.

Depois de muitos testes de conhecimento, sobraram dez candidatos a quem o rei propôs um desafio:

– O vencedor será aquele que me trouxer um gato de porcelana.

– Quando? – perguntaram em coro alguns dos concorrentes.

– Agora!

Os candidatos ficaram surpresos. Ninguém sai de casa com um gato de porcelana no bolso. O rei então ordenou que eles saíssem. Deveriam voltar no dia seguinte para o desempate.

Na hora marcada, os candidatos reuniram-se no salão real. Mas antes que o rei fizesse um novo desafio, um deles, que trazia consigo um pacote, pediu para falar.

– Majestade, eu trouxe o gato de porcelana que o senhor pediu.

– Admiro seu esforço – respondeu educadamente o rei. – Mas já se passaram vinte e quatro horas desde o desafio do gato.

– Sem dúvida, meu senhor. E vossa majestade percebeu que estou trazendo o gato hoje e não ontem?

– Claro!

– E eu também não trouxe o gato antes ou depois do momento em que estamos.

– É verdade.

– Então me parece que eu trouxe o gato no exato momento que vossa majestade determinou: agora!

– É um ótimo raciocínio! Mas seria possível o agora durar desde ontem até hoje?

– O agora é infinito, majestade. Nele todas as coisas acontecem. Nunca antes, nunca depois. Sempre agora.

E o rei sorriu satisfeito. Acabara de escolher seu primeiro-ministro.


Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 14 de outubro de 2018

SALTOS IMPOSSÍVEIS

 

 
SALTOS IMPOSSÍVEIS

Deixando o Rio de Janeiro, em um ensolarado final de tarde, com destino a Brasília, desci do táxi e entrei no Aeroporto Santos Dumont. Não havia pressa alguma. O voo estava previsto para largas três horas depois. Teria tempo de sobra para fazer um lanche e observar o movimento, nessa fonte inesgotável de histórias que são os aeroportos.

Todos os dias é um vaivém…”, diz a canção. E foi como se as vozes de Simone e Maria Rita disputassem um lugar em minha memória musical. É fato que a música fala de uma estação de trem; mas, de certa forma, dá no mesmo: os aeroportos são as novas plataformas para tantas chegadas e partidas, e outros tantos encontros e despedidas…

Decidido a não ter qualquer preocupação com o tempo, segui direto para o salão de embarque. Na fila do raio X, à minha frente, uma jovem tirou a jaqueta e a pôs na esteira, junto com a bolsa e o telefone celular. Usava uma calça um tanto quanto engraçada, para meus padrões estéticos, talvez desatualizados: colada ao corpo, do joelho para cima, e abrindo-se em formato de cone, do joelho para baixo.

Chamou-me a atenção, ainda, o fato de ela ser mais alta que eu – característica pouco comum entre as mulheres que costumo encontrar cotidianamente –, apesar da minha estatura de apenas um metro e setenta e dois centímetros. Se essa observação decorre de alguma admiração especial por mulheres mais altas, ou de eventual resquício de influências machistas em minha formação, é avaliação que deixo a cargo de quem se ocupar desta leitura.

Chegada a minha vez de passar os pertences pela máquina de raio X, pus a mala na esteira e o paletó em uma bandeja de plástico. Costumo tirar o paletó e pôr no raio X porque, assim, vão em seus bolsos meus dois telefones celulares, as chaves e outros objetos metálicos, como moedas. O notebook vai em outra bandeja, devidamente retirado da mochila e apoiado sobre ela.

Estava nessa fase do procedimento – tirando o notebook da mochila – quando ouvi uma voz feminina, logo à minha frente, demonstrando irritação.

Era a jovem de quem falei antes. Reclamava com o funcionário do aeroporto por ter que voltar e passar, novamente, pelo detector de metais. Uma luz vermelha piscava na parte inferior do portal a cada vez que ela transitava por ali.

O rapaz que controlava o equipamento tentava ser gentil, mas a moça queixava-se de já haver tirado todas as pulseiras e, até mesmo, o cinto.

– O problema é nos pés – explicava o rapaz. – Deve haver metal nos seus sapatos. Acontece muito isso…

O desentendimento entre os dois atrasava minha passagem, mas isso não chegava a ser um incômodo. Afinal, ainda restavam duas horas e quarenta e cinco minutos para o meu embarque.

Apesar dos protestos e da impaciência cada vez maior, a viajante acabou aceitando tirar os seus sapatos. Acomodou-se em um banco – aparentemente, posto ali para aquela exata finalidade – e acabou se descalçando, ali mesmo.

Foi, então, que contemplei os maiores saltos de sapatos que já pude ver em toda a minha vida!

A parte da frente, onde se apoiam os dedos e os metatarsos, devia ter uns vinte centímetros de altura; o salto propriamente dito – que, em condições normais de temperatura e pressão, serve para apoiar o calcanhar – chegava, facilmente, a uns trinta centímetros.

Não sei se a irritação da moça tinha alguma relação com o fato de ela ter que circular por ali, exibindo sua altura real. Aos meus olhos, a redução da estatura era algo que não a diminuía em nada – perdoem-me o trocadilho. Mas as pessoas têm suas preferências estéticas e, no caso, a diferença era bem grande.

Com os pés descalços, ela cruzou o portal do detector de metais, agora, sem acionar qualquer alarme. Pegou de volta seus sapatos com saltos gigantes, que haviam sido postos na esteira do raio X, e os calçou novamente. Ocultos sob sua calça engraçada – de pernas com bocas de sino –, ninguém suspeitava que eram eles que faziam a jovem ficar mais alta.

Se alguém me houvesse mostrado aqueles calçados na vitrine de uma loja, acharia que era apenas uma peça decorativa, como aqueles calçados conceituais criados por grandes estilistas para lançarem suas coleções, mas que são de uso improvável. Teria certeza de que ninguém seria capaz de andar equilibrando-se naquelas coisas. Mas, ela andava. E rápido.

O tempo que gastei repondo o notebook na mochila e vestindo novamente o paletó foi suficiente para que a moça dos saltos impossíveis sumisse na multidão.


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