Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas sexta, 08 de julho de 2022

A CIVILIZAÇÃO (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A CIVILIZAÇÃO

Olavo Bilac

 

 

 

Uma noite, toda a família, reunida em torno da grande mesa da sala de jantar, passava calmamente o serão. Otávio, inclinado sobre as páginas de um livro, contemplava as gravuras, e lia com interesse as linhas, em que se narravam longas viagens arriscadas, por terras e mares, na África, na Ásia e nas regiões geladas dos polos.
De repente, o menino levantou os olhos do livro, e perguntou:
— Papai, que quer dizer “civilização”?
— Por que perguntas isso, Otávio?
— Por que está escrito neste livro que os exploradores da Ásia, da África e dos polos têm o propósito de levar a civilização a essas regiões… então os homens que lá vivem não são homens como nós?
— São homens como nós, meu filho, mas não são civilizados como nós somos…
E, com paciência e carinho, o pai de Otávio começou a explicar-lhe o que é a civilização:
— A civilização, que é a difusão das riquezas materiais, intelectuais e morais, não pode nunca, sem um longo trabalho de reforma paciente, tomar conta de um país. Para que um povo tenha civilização, é necessário que o moroso passar dos séculos vá aperfeiçoando o caráter desse povo. Assim se a terra brasileira é hoje próspera e forte, foi necessário para isso o esforço coletivo e anônimo das gerações que se tem sucedido. Tu, que nasceste em plena civilização, gozando os benefícios que o trabalho dos teus antepassados preparou, concentra o teu espírito, e, contemplando o presente e lembrando o passado, compara-os, admirando o que foi esse lento progresso. Lembra-te, primeiro, da antiga bruteza deste solo: as selvas espessas e impenetráveis sucediam-se, como enormes muralhas; os rios, largos e acachoeirados, opunham novas barreiras ao passo humano; toda a natureza se mostrava concertada para repelir outros habitantes que não fossem os que ela já possuía, rudes e selvagens como ela. Esses viviam vagando, sem pouso certo, em constantes guerras; quando entravam na vida sedentária, a sua habitação era um agrupamento informe de ocas[i] de barro e madeira tosca, cercadas de trincheiras de espiques de palmeiras. E o que era a vida social desses tempos, diziam-no claramente as caveiras dos inimigos mortos em combate, espetadas nas caiçaras. Compara esses tempos ao tempo de agora! Vê como a terra brasileira está coberta de uma população de dezoito milhões de homens; o esforço humano venceu a hostilidade da natureza. As florestas abriram-se; desvendou-se o mistério das serras; as pontes, arrojadas de margem a margem, dominaram os rios; as feras recuaram; e o arado rasgando vitoriosamente a terra, deixou-a submissa e amiga. Abre agora um mapa, e vê como as estradas de ferro serpeiam, transpondo as águas, furando os montes, servindo os centros rurais, parando de espaço a espaço, ao pé de uma cidade, para logo correr de novo pelos campos, em busca de outras… De extremo a extremo do país, a civilização estendeu essa rede prodigiosa, que é como a ramificação de uma árvore imensa: dos troncos centrais partem os galhos, dos galhos partem as ramadas, e de ano em ano troncos novos se fixam no solo, expandidos em linhas várias, que vão de quilômetro em quilômetro ocupando todas as zonas povoadas ou por povoar. É por essa imensa combinação de canais que circula a atividade do trabalho, como pelas artérias e pelas veias do corpo humano circula o sangue que mantém a nutrição do organismo. E repara agora como, acompanhando as locomotivas, que voam pelos trilhos, se estendem os fios telegráficos, constantemente vibrando, conduzindo a eletricidade invisível e poderosa, que transmite o pensamento, e que congrega num mesmo ideal de ordem, de disciplina, de submissão ao governo da lei todos os cérebros… E observa agora o conforto da gente que trabalha. A sua habitação já não é a rude taba do selvagem, nem a feia senzala dos escravos, onde em promiscuidade imunda os deserdados da fortuna penavam e morriam. A senzala desapareceu, como desapareceu a oca. Limpa e arejada, a habitação atual do lavrador, do trabalhador livre, sorri, como a morada da paz e da fartura. Quando, ao romper da clara manhã, o trabalhador deixa casa, para ir mourejar, sabe que deixa acomodada e feliz a família: e, voltando a cabeça, para com um olhar amigo abençoar os filhos que da porta o veem partir, ele sabe, avistando a fumaça que coroa a chaminé doméstica, que ali não falta o pão, como não falta sossego… agora, vê que multidão de cidades há espalhadas pela tua terra, meu filho!… Umas, postas à beira-mar, dominam as águas contidas pelos cais, vendo balançarem-se aos seus pés os navios, em cujos mastros as bandeiras de todos países da terra flutuam. Outras, emergem risonhas e barulhentas do seio fecundo das matas. Outras, agarradas aos flancos das serras, são as primeiras a receber a luz do sol, e parecem estar celebrando, com o clamor dos seus sinos, com o estrépito das máquinas das suas fábricas, a glória do homem! E, enquanto os homens vão para o trabalho, as crianças, logo às primeiras horas do dia, partem para a escola…
— A Escola também é fruto da civilização, papai? — perguntou Otávio, que ouvia tudo aquilo com uma atenção religiosa, fitando no pai os seus grandes olhos inteligentes e curiosos.
— Também, meu filho! E a Escola de hoje já não é o que era antigamente, no início da civilização. A Escola já não é um lugar de tristeza e martírio: é um prolongamento da casa da família. O mestre na apela para o castigo corporal, para a dor física, como para os únicos meios de formar a alma da criança: apela para o exemplo, para o carinho, para o afetuoso conselho que convence e comove. E, nas salas claras, diante dos mapas, diante dos livros, as crianças já não bocejam, acabrunhadas pelo tédio: sente-se bem, na atenção com que elas ouvem as lições, o desabrochar da sua inteligência na alegria, que é a saúde moral, e na vontade de saber, que é o elemento principal da educação. E aí tens o que é a vida de hoje em tua Pátria, meu filho! E aí tens o que é “civilização”! Lembra-te de novo do tempo em que as tribos viviam por aqui, nuas e sem leis, e do tempo em que somente os braços dos pobres cativos exploravam a terra, — e mede a extraordinária extensão do progresso que temos conquistado!
— E esse progresso é completo, papai?
— Não. O progresso humano é incessante e infindável. O trabalho do homem não para. No meio das imperfeições e das injustiças que ainda há nas sociedades civilizadas, esse trabalho é a garantia de um futuro cada vez melhor. O esforço coletivo, animado pelo amor e pela bondade, há de um dia nivelar todos os homens, e há de assentar no seio do planeta que habitamos a felicidade completa! Tu, que amas a terra em que nascestes, aprende, reconhecendo o valor do que os teus avós já fizeram, a sacrificar o teu próprio bem ao bem comum, para que os teus filhos e os teus netos possam abençoar a tua memória, como abençoas a memória dos que te deram a civilização!


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