– Nossa Senhora! Hoje o senhor está com uma cara…
– Cara de que, Ananias?
– De poucos amigos.
– Nunca tive muitos amigos, dois ou três, no máximo. Já é muito.
Ananias enfiou a viola no saco, emudeceu.
O Velho Marinheiro, após longos minutos de silêncio, pediu uma nova rodada para o Carneiro, acendeu o cigarro e desandou a falar:
– Não é nada contra você, Ananias. Mafalda é que me tira do sério. Já cansei de lhe falar: “Mulher, não gosto de me intrometer na vida dos outros. Agora, não me calo ante coisas que acho erradas e afetam pessoas indefesas ou das quais eu gosto. Então, se é para me contar lambanças alheias e esperar que eu fique calado, pegou o bonde errado”. Adianta falar? Mafalda me conta as coisas e depois reclama de minhas reações. Vai entender.
Ananias estava mudo, mudou permaneceu, receoso de irritar ainda mais seu amigo, já a ponto de explodir.
– Você não está interessado na conversa?
– Sou todo ouvidos, Velho Marinheiro. O que aconteceu?
– Meu neto e a mulher dele – peru e perua, dois basbaques deslumbrados – levaram meu bisneto ao médico. Diagnóstico: a criança está desnutrida, gorda e desnutrida. Que vergonha! Se ainda fossem miseráveis, vá lá, daria para entender. Mas dinheiro não lhes falta, ao contrário. A criança anda mais enfeitada que poodle de pet shop, tem toda sorte de brinquedos e roupas de grife. A mãe, porém, nunca fez uma sopa para o menino. Diz que não tem tempo, vida agitada, trabalho, cursos, festas e viagens. O pai compra potes e mais potes de “papinha” pronta e tudo o que é tranqueira industrializada. E se gaba: “É da melhor qualidade, custa caro!” Pode? É essa a alimentação básica do menino: papinha industrializada. Você precisa ver a conversa dos dois sobre criação de filhos. É como se dizia: “quem vê cara não vê coração”. Posam de pais ultramodernos, discutem métodos educativos e sei lá mais o quê. Falam de viagens futuras pelo mundo. Mas são incapazes de fazer um caldo para Pierino, de dar uma fruta na boca de Pierino! Deixam tudo para a tal da babá.
– Perdão, Velho Marinheiro. Quem é Pierino?
– A puta que o pariu, Ananias.
– Como?
– Meu bisnetinho. Perdão. Ora, quem mais seria Pierino, Ananias? Tenha paciência.
– Claro, claro.
– Mas lhes falei um bocado.
Por via das dúvidas, Ananias pediu mais uma rodada completa para Carneiro, antes de perguntar ao Velho Marinheiro:
– E o que o senhor lhes disse?
– Olha aqui, vagabunda e vagabundo, quem tem preguiça de fazer comida para o próprio bebê não serve para nada. O que lhes falta é vergonha na cara. Vão-se catar. Se quiserem, Mafalda e eu criamos Pierino. Mais um não vai nos aleijar.
– E eles?
– Desligaram o telefone na minha cara. Juraram que nunca mais pisam em minha casa. Danem-se, me fariam um favor.