No consultório, sentado diante do médico, o paciente mantinha o olhar direcionado para o busto de Hipócrates posicionado sobre a mesa que havia entre eles. Um sinal de timidez, nada surpreendente em um rapaz tão jovem, mal saído da adolescência propriamente dita. Talvez indo pela primeira vez sozinho a uma consulta.
Depois de fazer as perguntas iniciais de praxe, e de digitar no computador algumas anotações, o médico indagou:
– Bem, meu caro J*, eu vou me permitir lhe chamar de você, por causa da sua idade. Há algum motivo especial para você ter vindo se consultar com um psiquiatra?
O rapaz respondeu rápido. Como se ansiasse por aquela pergunta:
– Doutor, eu queria saber se tem algum remédio pra não ter raiva. Pra eu queria nunca sentir raiva de ninguém.
– Pra raiva?… por quê?… você tem sido agressivo com as pessoas?
– Não, doutor! Deus me livre!… É por causa de um poder que eu tenho… que é muito perigoso…
– Um poder? – interessou-se o médico. – que tipo de poder?
– É porque eu tenho o poder de matar uma pessoa, só com o olhar. Basta eu ter uma raiva. Se eu olhar com raiva pra pessoa, ela morre na hora.
O psiquiatra olhou detidamente para o rapaz franzino, carente de melanina e sol, e foi difícil imaginar aquela criatura tirando a vida de um semelhante. Tampouco considerou provável que daqueles olhos, fixos no busto de Hipócrates, pudesse sair algum raio mortífero.
Depois de refletir sobre a melhor forma de levar aquela conversa adiante, prosseguiu:
– E… como foi que você ficou sabendo que tem esse poder? Até agora seu olhar ainda não matou ninguém… eu espero…
– Faz tempo que eu sei, doutor. Tem uns seres de outro planeta que me acompanham desde pequeno. Eles me disseram.
– Ah, sim! De outro planeta… – comentou o médico, tentando demonstrar naturalidade. Nem precisaria, no entanto, preocupar-se com isso, porque, a essa altura, o paciente estava mergulhado em seus próprios pensamentos.
– É… Parecem com os humanos, mas são mais altos. Têm as mãos grandes… Eles controlavam meu poder… Mas já vinham me avisando, que quando eu fizesse 18 anos, eu ia ficar por minha conta. Aí, ano passado, eu completei 18… e não tenho mais coragem de olhar pra ninguém…
– Bem, J*, nós precisamos investigar isso, talvez com sessões de psicanálise, se você concordar. Por enquanto, eu vou receitar um estabilizador de humor, pra você já ir tomando, mas é importante a gente buscar a causa desse seu sentimento de que pode matar as pessoas.
– Investigar, doutor? – perguntou o jovem, surpreso, olhando pela primeira vez para o médico.
– Sim, investigar, no sentido de buscar as causas, a origem… a psicanálise pode ajudar muito… Uma das linhas que nós podemos considerar, é a possibilidade de você ter um transtorno psicótico. Talvez até uma psicose crônica, já que você relata que desde criança tem o mesmo tipo de… digamos… delírio… Então, pode ser que, durante a adolescência, com as variações hormonais, isso tenha se agravado…
– Como assim, delírio, doutor?
– Bem… é como eu digo… precisamos averiguar… Mas, o delírio, assim como a alucinação, seria mais ou menos como a pessoa tratar como realidade uma coisa que só existe pra ela… Aí a pessoa acredita naquilo… vive como se aquilo fosse realidade…
– Então, doutor… o senhor quer dizer que esse meu poder, de matar as pessoas com o olhar, pode ser só coisa da minha cabeça?
– Bem… pode! O mais provável é que seja isso mesmo.
E o corpo do médico pendeu para a frente, até o rosto se chocar com o tampo da mesa. Estava morto.