Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas sexta, 27 de novembro de 2020

EMOÇÕES (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

EMOÇÕES

João do Rio

(Grafia original)

 

Ontem, às 6 horas da tarde, fui buscar ao club da rua do Passeio o velho barão Belfort, que me prometera mostrar, três dias antes, sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava e perdia com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez. Ao ver-me, disse amavelmente:

- Estamos a jogar. O Oswaldo ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro. Estou perdendo e apreciando este bom Oswaldo, que ainda tem emoções.

Os seus olhares seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Oswaldo, e, a cada cartada, tamborilando os dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito. De repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na mesa, e perguntou, enquanto mais pálido o moço estacava:

- E tu não jogas?

- Não.

- Fazes bem. Um escritor do tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o veneno da perdição. O veneno! ora vê tu, o veneno!

Sorriu com delicadeza.

- O Oswaldo permite? Vou embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar água de flor de laranja...

Levantou-se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o pleno verão tomara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para trás. O moço pendia a cabeça na sombra, e assim pálido, como um pálido crisântemo, os seus olhos tinham chispas de susto e de prazer.

Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé, e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor-de-pérola. Belfort aconchegou-se à almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em ouro e, enquanto o carro rodava, indagou:

- Que tal achaste o Oswaldo? É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava escandalosamente... Não lhe disse nada. Ainda é possível salvá-lo...

- Quer perdê-lo? indaguei habituado às excentridades desse álgido ser.

- Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser o bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes emoções de em tomo. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção.

- Oh! ser horrível e macabro!

- Seja; horrível, macabro, mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Oswaldo, quero apenas gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a perdê-lo, c'est tropfort...

- Pois não imagina o mal que fez ao pobre Oswaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!

- Tal qual como o outro. Que exemplar, meu caro! que caso admirável! Esse pequeno há seis meses odiava o víspora. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de perdição que ainda desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O Oswaldinho é tal qual o outro, o chinês, a minha última observação.

- O chinês?

Belfort soprou o fumo da cigarrilha, sorrindo.

- Imagina que vai para um ano fui apresentado a um rapaz chamado Praxedes, filho de uma chinesa e de um negociante português em Macau.

O homem falava inglês, estava no comércio e vinha de Shangai, com um carregamento de poterias e bronzes por contrabando, para vender. Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada instante frases amáveis e casara com uma interessante rapariga, a Clotilde - Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers, confessou o contrabando e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!

O Praxedes saía pela manhã, trabalhava, voltava para o jantar e não se largava mais de junto da Clô. Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legislativamente moral.

Uma noite em que o convidara para jantar, jogávamos. Adivinharia alguém que cratera esperava o momento de rebentar nessa alma tranqüila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu piano, com voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocupado - "Quer jogar?"

"Não sei". "É sempre agradável ensinar mesmo o vício". - "Então ensine". Pegou das cartas, olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos começaram a luzir. Jogamos outra. - "Mas isso assim sem dinheiro? Ponhamos dois tostões". - "Pois seja". Perdi. "Redobra se a parada? ""Oito tostões?"

"Sim". - "Pois seja". À meia-noite jogávamos a dez mil-réis, e Clotilde, muito cansada, já sem cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar à mesa.

Deitei-me sem conclusões, e só no dia seguinte, quando o chinês enleado apareceu pedindo outra partida, é que compreendi o assombro. A paixão estalara, - a paixão voraz, que corrói, escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, joguei e perdi. No outro dia, Praxedes voltou. Levei-o ao club à roleta, donde saiu a ganhar pela madrugada.

Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre iminente, de um abismo em vertigem. O chinês era patético. Com os dedos trêmulos, assoando-se de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Praxedes rouquejava num estertor silvante que parecia agarrar-se desesperadamente à bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e a alma do pobre esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o número desejado, num esforço que o tomava roxo...

Jantei no club só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também durante três dias e três noites. Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do club, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes. Ao cabo de uma semana, entretanto, a chance desandou. Praxedes começou a perder bruscamente com gestos de alucinado, espalhando as fichas como quem arranca pedaços da própria carne.

- "Calma, meu caro, dizia-lhe eu". " Impossível! impossível!" murmurava ele.

Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a outros, deram-lho. Pediu mais

deixou de ser o dom Praxedes, recebeu recusas brutas. Acabou não voltando mais ao club. Eu, porém, sentia-o em outros antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem de carregar na vida...

Certa noite, meses depois, encontrei-o numa batota da rua da Ajuda, com

o fato enrugado e a gravata de lado. Correu para mim, "Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar Isto de mirone não me serve. Empreste-me cinqüenta mil-réis para arrumar tudo no 00. Ah! está dando hoje escandalosamente. Faremos uma vaca? Vai dar pela certa."

Agarrou a nota como um desesperado, precipitou-se na roda que cercava o tableau da direita: "Tenho aqui cincoentão; esperem!" E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.

O duble-zero falhou. Ele voltou cínico: "É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá? Olhe, escute aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve?"

- Compreendi então a descabida vertigem daquela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força para a rua, fi-lo contar-me a vida. Estava desempregado, abandonara o emprego, vendera o mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mudara-se para uma casa menor e alugara a sala da frente. A cábula, a má sorte, a guigne perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável soluçava: - "Havemos de melhorar, empreste-me algum. Estou sem níquel!"

Deixei-o sem níquel, mas fui ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos vermelhos de chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro... - "E seu marido?" - "Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o vejo; hoje não comi..." - "Abandone-o!" - "Abandoná-lo eu? E a sociedade, e ele? Que seria dele?" - "Ora, ele!" -"Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas que quer? Veio-lhe a desgraça. As vezes brigo, mas ele diz-me: Ai! Clô, que hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que desenrolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos, por aí, tão triste, tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a pedir..."

É espantoso, pois não? O homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses seres especiais conseguem coisas tão difíceis!

Um instante o barão calou-se. O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por sobre o mar a talagarça fuliginosa das primeiras sombras. - Respeitei a Clotilde, por sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido. Ao outro dia, porém, Praxedes, com sorrisinhos equívocos na face escaveirada: "Esteve com a Clô, hem? Conservada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois não9 Recuei assombrado. Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a mulher, para arranjar dinheiro com que satisfazer as cartas e a roleta, mercandejava-a aberta, cínica, despejadamente. - "Que queres tu? indaguei áspero, tem vergonha, vai, some-te!"

"Eu hipoteco uma mobília. Só quinhentos, só quinhentos!"

Era a alucinação. Corri-o, e esperei ansioso, como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu encontro com o Oswaldo, li, na cama às 3 da manhã, este bilhete desesperado: "Venha. Praxedes matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. - Clô".

Ai! menino, não sei o que senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo. Precipitei-me. Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o Necrotério, Clotilde, desgrenhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus braços. - "Então, como foi isso?" "Sei lá como foi! Tinha que ser! A desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram semanais. Não arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele, lívido, embrulhando a casaca do casamento. Não sei o que me deu. - "Onde vais?"

- "Vou ver se arranjo uns cobres, respondeu. Preciso jogar, sinto uma ânsia, não posso mais." - "Estás doido!" Não estou, Clô, não estou, fez ele arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se vendes a casaca ficas sem roupa para o enterro. Ele parou. "Para o enterro? para o meu enterro? É melhor mesmo, é melhor mesmo, eu não posso mais!" E, de repente, desesperado, começou a bater com a cabeça pelas paredes. Praxedes! Praxedes! Não faças isso! Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio com mais força de encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda o ouço! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agarrei-o. Arrastou-me até à janela, voltou-se, deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o pescoço desesperadamente e rodou...

"Oh! o horror! salve-me! salve-me!"

Abri o grupo dos agentes, fui ver Praxedes. Estava cor-de-cera, com a cabeça fendida e os lábios coagulados de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada, pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.

Esse record de emoção desesperada prostrou-me. Nunca vi sentir tão vertiginosamente.

O carro parara. O barão saltou, subiu devagar as escadas de mármore, enquanto no interior do palacete retiniam campainhas elétricas.

- Preciso sentir vendo os outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só assim tenho emoções. Garanto-te que o Oswaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro meio - com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir demais!

E fomos jantar tranqüilamente na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.


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