Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

De Balsas Para o Mundo sábado, 22 de abril de 2017

FIDELES E O PACOTÃO

FIDELES E O PACOTÃO

Raimundo Floriano

 

Fideles e seu trombone

 

            Francisco Fideles da Silva, funcionário do Ministério das Minas e Energia, era um caboclo cearense baixinho, pele de índio, bigodinho à la Cantinflas, idade indefinida, maestro, clarinetista, trombonista, compositor e arranjador. O trombone era seu instrumento preferido.

 

            Conheci-o na noite de 24 de junho de 1972, na Festa dos Estados, quando, por acaso, se incorporou à Banda da Capital Federal, que eu acabara de fundar, sendo ele seu primeiro músico de sopro. Seis meses depois, eu também tocava trombone de vara.

 

            Dali em diante, estivemos sempre juntos, quer na Banda da Capital Federal, quer no Pacotão, bloco fundado por jornalistas, em 1978, quer em qualquer manifestação carnavalesca de rua.

 

            Fideles era um bamba para ajudar os compositores nas introduções que bolava e nos arranjos que criava para as músicas que acabavam de fazer, como no caso das competições no Pacotão, quando a turma inventava na hora qualquer marchinha para derrubar um adversário que se afigurava forte na disputa.

 

            Fizemos muitos carnavais desfilando pelas superquadras, passando por debaixo dos blocos e arrebatando multidões de homens, mulheres e crianças, até que reclamações junto à polícia acabassem com essa nossa curtição.

 

            Com a Banda da Capital Federal, comemoramos os 30 anos de sua fundação, o Tetra e o Pentacampeonato de Futebol.

 

            Na Copa de 1998, fizemos a festa nas ruas em todas as partidas jogadas pelo Brasil. Na semifinal, Brasil x Holanda, dia 7 de julho, uma terça-feira, como eu estava arrumando uma viagem para os Estados Unidos, resolvi que a Banda da Capital Federal não sairia.

 

            O jogo terminou empatado em 1 x 1 mas, na cobrança de pênaltis, o Brasil venceu por 4 x 2.

 

            Acabado esse jogo, meu amigo Humberto Pimentel, residente no Condomínio Jardim Botânico, eufórico com a nossa classificação, convidou-me para uma passeata nas ruas de lá. Disse-lhe que iria fazer o possível.

 

            Com o Fideles era assim, se ele me chamava, eu ia, se eu o chamava, ele vinha. Liguei para ele, que veio imediatamente, em que pese o fato de sua casa ficar em Sobradinho. Chegou de táxi, sozinho, pois os outros músicos não foram localizados.

 

            Naquela noite, pressenti que o Brasil iria perder a Final quando constatei a frieza dos moradores daquele bairro. Saímos a pé da casa do Humberto, com ele no repenique; Neuzinha, sua mulher, com o isopor de bebidas; Danielle, sua filha, no surdão; Fideles e eu nos trombones, além de Veroni, minha mulher, Elba e Mara, nossas filhas, e Tatiana Formiga, coleguinha da Elba, e rumamos para a quadra comercial um quilômetro adiante. Tocamos nos bares, e o povo sentado, tô nem aí! Retornamos à casa do Humberto tomados de certa tristeza, ao vermos que, no percurso de ida e de volta, ninguém nos acompanhara.

 

            Viajei na noite de sábado para domingo, dia 12, e assisti à Decisão em Orlando, num galpão alugado pela companhia de turismo que nos levara, junto a mais de mil brasileiros, todos uniformizados com a camisa amarelinha. Ainda bem que foi num local afastado do centro, sem outras testemunhas para gozarem da nossa cara! E o pior: depois dos 3 x 0 para a França, caiu uma chuva torrencial, daquelas típicas da Flórida, em que cada pingo mata um sapo.

 

            Na manhã seguinte, já nos parques da Disney, tivemos de suportar as piadinhas das caravanas argentinas, tirando sarro com a nossa cara.

 

            Na Copa de 2002, Fideles compôs minha banda, na grande comemoração que montei aqui na 215 Sul, começando às 08h00, muito antes de iniciar o jogo, pois tínhamos a certeza da vitória.

 

            No Carnaval de 2003, foi até engraçado. Fideles pegara um contrato para tocar com seu grupo no trio elétrico do bloco Nós Também Queremos, formado por trabalhadores ligados a um sindicato da área de pesquisa agropecuária. Ele me chamou, eu fui.

 

            Mas vejam o contraste. Na Banda da Capital Federal, não tratávamos de política. No Pacotão, onde ambos também tocávamos, o ambiente era de gozação e irreverência a tudo quanto é autoridade. Pois bem, no bloco Nós Também Queremos, todas as músicas cantadas, assim como as camisas dos seus componentes, teciam elogios ao petista recém-empossado como Presidente da República. Saia-justa era aquilo dali!

 

            Além do esmero dedicado a qualquer bloco em que saía, ele tocava, muitas vezes, apenas por uns trocados, umas cervejas e uns tira-gostos.  Minha presença ali, sem nada lhe cobrar, representava a economia do dinheirinho que teria de pagar a mais um trombonista.

 

            Destarte, estoicamente, vesti a camisa petista e compareci às duas saídas, no domingo e na terça-feira, ajudando o Fideles a ganhar o seu caraminguá. O que uma amizade não faz!

 

No bloco Nós Também Queremos: Raimundo Floriano, Fideles, Albino e Jean

 

            Essa foi a última vez em que tocamos juntos!

 

            O Maestro Celso Martins foi o primeiro líder da Banda do Pacotão. Depois dele, Fideles assumiu o posto.

 

            No dia 31 de janeiro de 2004, o Pacotão iria escolher a marcha-enredo para o Carnaval daquele ano. O concurso teria início às 12h00, no Clube da Imprensa, conforme anunciado na mídia. Sabendo como as coisas no Pacotão sempre foram muito bagunçadas, resolvi dar uma passada por lá às 14h00, apenas para dar um abraço no Fideles, saber qual seria a armação para o período momesco e também para conhecer a marchinha vencedora.

 

 

            Em lá chegando, encontrei no estacionamento o Valério Bernardo, o Carioca, do Sindilegis, todo nervoso, sobraçando um bolo de camisas identificadoras dos membros do júri. Ao ver-me, suspirou de alívio:

 

            – Raimundo, parece que foi Deus quem te mandou aqui! Lá dentro tá a maior balbúrdia e ninguém quer assumir a Presidência da Comissão Julgadora, com medo das ameaças. Será que tu podias quebrar esse galho pra nós? – Pimenta nos olhos dos outros...

 

            Respondi-lhe que não, pois teria de voltar logo para a festinha dos dois anos de minha neta, no início da noite. Mas, vendo a aflição do Carioca, e diante da sua insistência, resolvi aceitar o encargo. O que uma amizade não faz! Ato contínuo, ele me entregou uma das camisas, para que já entrasse lá uniformizado como autoridade. Tão logo penetrei no salão, atopetado de foliões e, principalmente, de compositores e as respectivas torcidas, o Carioca pegou o microfone e anunciou:

 

            – Pronto, o Presidente do Júri chegou! Vamos começar!

 

            Passei uma olhada em volta e não vi o Fideles. Perguntei por ele, informaram-me que naquele ano era outra a banda a contratada. Mal sinal!

 

            A Comissão era composta por jornalistas do Estadão, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, Correio Braziliense, radialistas, gente da TV, pesquisadores e sindicalistas de ambos os sexos. Todos foram afáveis para comigo e aceitaram minha chefia com satisfação.

 

            Dando início aos trabalhos, examinei as composições a nós submetidas, ficando pasmo com os motivos ultrapassados de algumas: FHC, Bill Clinton, Monica Levisnky, Saddam, tudo fósforo queimado. De comum acordo com a Comissão, resolvi dar uma peneirada e apenas aceitar músicas que versassem sobre temas atuais, notadamente sobre os governantes de plantão. Essa sempre fora a trilha do bloco. Ao anunciar a decisão, quase fui espancado.

 

            A massa se lançou furiosa em minha direção e só foi contida, a muito custo, pelo Carioca, que pegou o microfone e esclareceu a todos:

 

            – O Raimundo Floriano sabe o que faz! É trombonista, Mestre da Banda da Capital Federal, escritor, cordelista e um dos maiores colecionadores e pesquisadores da MPB e do Carnaval Brasileiro!

 

            Isso acalmou os ânimos, e a turma desclassificada tratou logo de criar novas composições, na hora, no peito e na raça. Naquele momento, a falta do Fideles se fez notar por demais. Se ele ali estivesse, auxiliaria todos, como sempre foi do seu feitio.

 

            Enquanto isso, os cantores e cantoras se revezavam, interpretando as marchinhas concorrentes, acompanhados pela excelente banda.

 

            Quando eu pensava que as coisas se encaminhavam para um final feliz, eis que surgiram do nada três sujeitos parrudões, barbudos, cabeleiras caindo por riba dos ombros, parecendo ter saído de algum filme do Asterix. Os três, desde que chegaram, não pararam de reclamar, de gritar, gesticular, ao mesmo tempo em que enchiam a cara de cerveja.

 

            Na boquinha da noite, chegou o momento tão esperado pela turba e temido pela Comissão: divulgar o resultado final!

 

            Dirigi-me para o centro do salão, peguei o microfone e anunciei:

 

            – Terceiro lugar: Charles, Meu Rei, de Rosa de Windsor e Joka Pavaroti!

 

            Gritos, impropérios, ameaças. Alguém gritou:

 

            – Não podemos aceitar esse resultado pra mais de duvidoso! O Presidente da Comissão foi comprado com bebida!

 

            O Carioca tomou o microfone e rebateu:

 

            – Como comprado, se ele só bebeu aqui um guaraná diet, pago do seu próprio bolso?

 

            Voltei a anunciar:

 

            – Segundo lugar: O Buraco É Mais Embaixo, de Joka Pavaroti, Dedé de Olinda, Cicinho e Amâncio do Teclado.

 

            Outra vez, corri perigo de bordoadas! Os três Asterix estrondavam que nem trovão! Depois de muito bate-boca, foi superado mais esse obstáculo!

 

            Fez-se silêncio sepulcral na hora de declarar a marchinha vencedora! A escolhida se referia, em tom jocoso, à metamorfose pela qual se dizia por aí ter passado o Presidente da República.

 

             Peguei novamente o microfone e, temendo o pior, firmemente bradei:

 

            – Primeiro lugar: O Homem da ALCA Atrás, de Paulão de Varadero!

 

            A onda de protestos e inconformismo só foi contida pelo Carioca, sempre o Carioca, que me tomou o microfone e vociferou:

 

            – Quero avisar a todos que o Presidente da Comissão é também Tenente da Reserva do Exército Brasileiro!

 

            Mal ele fechara a boca, o Asterix-mor levantou-se de sua mesa e se projetou célere em minha direção. Gelei! Ao chegar perto de mim, perguntou:

 

            – Você sabe quem tá falando?

 

            Naquele momento, agradeci aos céus pelo amor que tenho devotado à MPB e pela atenção dispensada a todos os seus intérpretes, famosos ou desconhecidos. Sem titubear, respondi:

 

            – Sei, sim, você é o Márcio, que toca gaita de boca e serviu comigo na CPP-1 do 12º Regimento de Infantaria, em Belo Horizonte!

 

            Aí, o Asterix-mor, cheio de cana, me abraçou, me beijou nas bochechas e gritou para os seus companheiros:

 

            – Eu não disse! Este aqui é o meu Tenente Floriano!

 

            Depois dessa, fiquei na maior moral e, terminada a festa, fui cumprimentado por todos, membros da Comissão Julgadora, vencedores e vencidos, porque, se existe um órgão onde tudo acaba em pizza, esse só pode ser o anárquico Pacotão.

 

            Prova disso é que, no Carnaval, a marchinha do Paulão foi cantada por todos, na maior empolgação e na contramão, como são todos os desfiles dos pacoteiros. Naquele ano, em 2005 e 2006, não pude sair no seu trio elétrico, devido a problemas ortopédicos, os quais até hoje persistem.

 

            Voltemos ao Fideles!

 

            Topava qualquer parada. Organizava sua bandinha para tocar em portas de lojas, bailes sociais, bloco de sujos, boteco de ponta de rua, feira de qualquer coisa. E vestia a camisa da hora, não importando o matiz, o credo, a classe social ou a opção sexual. Por isso, era muito requisitado, tinha sempre serviços a seu dispor.

 

            O exemplo que dele fica é o de um nordestino culto e, ao mesmo tempo, humilde, bom e valoroso.

 

            Na foto a seguir, uma atuação de Fideles e sua turma em campanha publicitária da Disney:

 

Pato Preto, Faustino, Sarampo, Fideles e Levy

 

            No Carnaval de 2006, Fideles saiu normalmente com o Pacotão, fazendo o que seria sua última tocata, no dia 28 de fevereiro, terça-feira. No dia 7 de março, exatamente uma semana depois, um infarto agudo o fulminou! Compareci com minha mulher à sua Missa de Sétimo Dia, e isso foi um consolo para sua família, por ver ali, orando por ele, um amigo que com ele viveu muitos momentos de alegria e felicidade.

 

            Até agora, falou aqui o amigo, o companheiro de muitas armações. Faltava a palavra de um membro do Pacotão.

 

             Deixo-a com o compositor Paulão do Varadero. Ele é um dos fundadores do bloco, jornalista, meu colega na Câmara dos Deputados e campeoníssimo de vários carnavais. Devidamente por ele autorizado, transcrevo a belíssima crônica que escreveu em homenagem a esse grande músico que perdemos, publicada no Correio Braziliense e em outros jornais e revistas.

 

            “FIDELES SE FOI À FRANCESA

 

            “Como se dizia antigamente, ele pegou o bonde andando. Não foi fundador do bloco mas, nos últimos sete anos, onde estivesse o pessoal lá estava ele com sua turma de músicos, metaleiros e percussionistas da ‘Banda Podre’ do Pacotão. Em qualquer ensaio ou apresentação, na rua ou nas prévias do Conic, na Avenida W-3, embaixo do viaduto entre as duas Asas (monumento apoteótico do carnaval brasiliense), sempre na contramão, como é a marca registrada da Sociedade Armorial Patafísica e Rusticana. O nosso maestro mambembe, figura mansa, meiga, que parecia zangado, mas era uma ternura, se agigantava com majestade regendo a sua orquestra brancaleônica de bloco de sujo ou soprando sonoras notas com seu trombone de vara, que dominava e fazia gemer.

 

            “Clave de fá ou de sol, bemóis e sustenidos, mínima e semínima, marcha-rancho, marcha-frevo, maracatus maxixes, mambos, o maestro navegava como um timoneiro que conhece muito bem e domina o mar e sabe que ‘quem é do mar não enjoa’. Fideles no Pacotão estava em sua praia. Na primeira ‘Picarecandanga’, que fizemos em setembro ou outubro, não sei precisar a data, o Fideles inovou e, em pleno ritmo de carnaval fora de época, jogou um Siboney no mais requintado estilo Perez Prado e, pra espanto de muitos, mandou ver vários boleros, rumbas e salsas, de deixar a massa de queixo caído.

 

            “Escrevo essa triste e melancólica nota ainda sob o impacto e susto da notícia de seu passamento. Terça-feira, 7 de março, justamente uma semana depois da terça-feira gorda em que ‘arrebentou’ na avenida, sentiu uma forte dor no peito às 11h00. Seu coração arrebentou. Ao meio-dia, o surdo do Pacotão estremecia, anunciando seu silêncio.

 

            “Fideles não soprará mais. Não vai reger mais a ‘Banda Podre’ do Pacotão, nem fará mais arranjos para Varadero, pra Joka Pavaroti, pra Cicinho Filisteu, pra Dedé de Olinda, pra Mestre Soares, pra Wilsinho Rastafári, nos concursos que já se tornaram célebres pra escolha da música-enredo do bloco. A acirrada pugna não contará mais com a presença do grande Fideles. 2006 foi seu último carnaval. Não vai assistir ao trigésimo aniversário do Pacotão, ano que vem. Eu, que também já não ando muito bem nos mais de seis quilômetros do percurso de desfile do bloco, se vivo estiver, vou sentir muito sua falta. Sinceramente, já estou sentindo.

 

            “Fideles saiu sem se despedir e nem disse, como os foliões do bloco carioca congênere do Pacotão: ‘Vou ali e volto já!’ Fideles subiu pra soprar seu trombone no céu. Silêncio rotundo e retumbante no Pacotão. Que saudade, meu velho! (a) Paulão de Varadero.”

 

Estandarte do Pacotão


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