Joaquim Nabuco
O Recife, apesar de todos os atentados que vem sofrendo ao longo dos anos, quer na grafia do seu locativo (sem o artigo que obrigatoriamente o antecede), quer no seu patrimônio histórico e paisagístico, continua a ser, para os que nele nasceram, ou o adotaram como pátria-mãe, um imenso e multifacetado brilhante. São tantas as cores, tantos os sabores, diversos os sons, curiosas as ruas e recônditos pátios, escondendo os seus monumentos e acariciados pelos alísios vindos do alto-mar, que não dá para calar esta paixão latente e sempre presente na alma de todo recifense ou recifensisado: Sou do Recife, com orgulho e com saudade; (Antônio Maria)
O fascínio que exerce a paisagem desta nossa cidade, sobre os naturais e visitantes, foi sempre uma constante ao longo dos quatro séculos de sua história; como fizemos ver em O Recife quatro séculos de sua paisagem (Ed. Massangana, 1992).
Desde Gabriel Soares de Souza e Ambrósio Fernandes Brandão, no século XVI, até os cronistas de nossos dias, o Recife se transforma num verdadeiro caleidoscópio a despertar as atenções do olhar do observador; ele se revela num simples abrir de janelas, como aconteceu com Gilberto Amado:
Abrir as janelas do sobrado alto sobre a foz do rio [o escritor estava hospedado no antigo Grande Hotel] para que um novo alumbramento se produzisse e a singular de outrora revelasse, com a graça maliciosa de quem entreabre um manto, o que guardava de encantos secretos e renovados.
Uma das descrições mais felizes da paisagem da cidade do Recife nos chega através da pena do recifense Joaquim Nabuco, em artigo publicado no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), em sua edição de 30 de novembro de 1887.
Nabuco, ao servir de cicerone ao escritor português Ramalho Ortigão, pinta, com a mão de um mestre, as belezas do seu torrão natal, utilizando-se das mais contagiantes cores de sua palheta. Observando a planície do terraço da Sé de Olinda, enfatiza:
Não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão abaixo aos pés de espectador, que perde o movimento e a vida […] O que faz a grande beleza deste nosso torrão pernambucano é em primeiro lugar o seu céu, que muda a cada instante, leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas, e que não é o mesmo um minuto; é depois o nosso mar, verde, vibrátil e luminoso, as nossas areias tépidas e cobertas de relva, os nossos coqueiros, que se vergam desde o soco até ao espanador de um brilho metálico e dourado, com que parecem ao longe sacudir as nuvens brancas, as jaqueiras e mangueiras cuja sombra rendada é um oásis de frescura e abundância.
O que mais impressionava ao visitante e a seu cicerone era a limpeza da cidade:
“O que primeiro fere a vista no Recife é a limpeza da cidade, a brancura de toda ela. Vê-se bem a cidade de um povo de rio, que vive n’água, como o pernambucano. É um reflexo da Holanda, que brilha aqui!”.
O branco era a cor predominante da cidade de então, que logo despertava as atenções dos viajantes e fazia do Recife “a mais bela do Brasil”.
Ramalho Ortigão viu esse branco nas casas, nas pontes, nos edifícios, nos navios, nas velas e nas nuvens, sob luz forte de um sol tropical, “que lhe dá o poder calcinante dos espelhos de Arquimedes, quando ele só é irresistivelmente belo ao luar, que dá a essa cal crua e reverberante um tom de pérola que faz a cidade parecer toda de mármore, mas de um mármore tirado das jazidas dos sonhos e da alvura imaterial dos fantasmas. . .”
E continua Nabuco, “eu verdadeiramente sinto que o eminente artista não se tenha demorado aqui à noite, para ver esse Recife, onde a imaginação de Castro Alves se povoou de todos os seus sonhos de poesia, de liberdade e de grandeza, o Recife do seu [poema a] ‘Pedro Ivo’, …dormindo imensa ao luar!”
Possuído do orgulho de ser do Recife, enfatiza Joaquim Nabuco, com o seu poder de observador:
Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do contemplador e a do lugar, cheguem a entender-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam! Não é a todos que a natureza conta os seus segredos e inspira o seu amor, mas mesmo com os poucos de quem ela tem prazer em fazer pulsar o coração é preciso que eles se aproximem dela sem pressa de a deixar, com tempo para ouvi-la. Os viajantes nunca estão nessa disposição de espírito em que é possível estabelecer-se o magnetismo da paisagem sobre os sentidos, de fato sobre o coração. Felizmente Ramalho Ortigão é uma máquina fotográfica instantânea, que apanha num segundo o seu objetivo todo, e acontece que hoje as boas máquinas percebem e notam sombras na pele, que não se vêem a olho nu, e que servem para conhecer a enfermidade latente. Ele não terá sentido os eflúvios desta nossa terra, os quais talvez seja preciso ser pernambucano para sentir e que podem não ter realidade e magia senão para nós mesmos, mas a impressão que lhe causou a nossa Veneza há-de render-nos uma pintura que durará como as gravuras holandesas do Século XVII.