Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas quarta, 26 de janeiro de 2022

LADRÃO!... (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

LADRÃO!...

Humberto de Campos

 

 

A sala do júri da cidade provinciana enchera-se, desde o amanhecer, da melhor gente, não só do lugar, do perímetro urbano, como de todo o município e, ainda, dos municípios vizinhos. O processo que naquele dia se ia julgar, era, talvez, o mais sensacional formado na comarca. Tratava-se, na opinião geral, de um desses casos de degradação pela miséria ou pelo vício, da queda inesperada de um rapaz ainda novo, e dos mais considerados na sociedade local, da revelação, em suma, de um caráter baixo e depravado, que se disfarçara, até então, sob a roupagem do brio, da honra e das boas maneiras.

Amplo e simples, o salão do tribunal era uma grande peça com doze janelas, na ala direita do andar térreo e único da Câmara Municipal. Sobre um estrado, a mesa pesada e tradicional, para o juiz e os auxiliares. Em frente ao magistrado, o tosco banco dos réus. Ao lado, separado por uma grade convencional, os membros do conselho de sentença. Do lado oposto, a tribuna, pequeno púlpito de roça. E atrás, como no recinto de um cinema, os bancos para os espectadores, nos quais a multidão se comprimia, abanando-se com os leques, com os lenços, com os chapéus. Pintadas recentemente, as paredes eram brancas, de cal. Nestas, uma nódoa única, e essa mesma, sagrada: a imagem do Crucificado, a cabeça pendente, os braços abertos e flácidos ao peso do corpo, como num conforto triste aos que fossem, como ele, vitimas da justiça dos homens.

Embrulhado na sua toga, o juiz apareceu, cercado pelo silêncio geral. Era um homem alto, seco, de tez tostada, bigode curto e grisalho. Houve um movimento de cadeiras. A campainha soou, como nos atos litúrgicos. E a uma ordem do magistrado, entrou o réu, entre dois soldados.

Abelardo Padilha Porto era acadêmico de medicina no Rio quando, com a morte do pai, teve de interromper os estudos e regressar precipitadamente à sua cidade natal. Os negócios do velho agricultor não tinham corrido bem, nos últimos tempos. Endividado, os credores, logo após a morte do devedor, haviam-se apossado da fazenda, da casa, do gado, das plantações. E se ele, e a velha mãe, ainda viviam na propriedade, era apenas enquanto esta não era vendida, para rateio judiciário do produto. Era esta a sua situação de pobreza, e de vergonha iminente, quando se deu o crime, que espantara a cidade.

Entre os estabelecimentos mais movimentados da rua do Sal, estava o do português Antônio Rocha, constituído por uma casa de secos e molhados, cujo comércio diário subia a várias centenas de mil réis. A casa de negócio do gordo comerciante era, como em geral sucede no interior, o desdobramento, apenas, da sua casa de moradia. Com quatro portas de frente, três pertenciam ao armazém, e uma, apenas, à família, instalada nos fundos do prédio. A entrada para a casa de residência era, assim, independente; e feita por um corredor, comunicando-se, embora, a sala de jantar com o armazém, para o trânsito dos moradores.

Era aí, segregada do mundo, sem uma janela por onde olhasse a rua, que vivia, há dois anos, uma das moças mais bonitas da modesta cidade provinciana. Casada por necessidade, escondera no seu coração, ao entregar-se para sempre ao homem que era o seu marido, uma afeição que lhe nascera na infância, e que sabia correspondida. Por vários anos relutara, na esperança de uma longínqua felicidade. E quando não pudera mais, quando a velha mãe, já tuberculosa, lhe anunciou que não duraria muito na terra, foi que resolveu aceder ao pedido de casamento do vendeiro português, entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua alma.

A chegada de Abelardo Padilha ao município, para liquidar os negócios paternos, havia abalado, fundo, o coração de Santinha Rocha. Amava-o como nos tempos de menina, e, se a sua virtude, a sua condição de mulher honesta, lhe não permitiam mais a realização de um sonho que alimentara desde criança, restava-lhe, pelo menos, o consolo de dar-lhe, na situação que atravessava, uma demonstração concreta, e pura, da sua amizade de irmã. Possuía economias, feitas pouco a pouco, possuía jóias, que o marido lhe havia dado; e tudo aquilo seria dele, do homem a quem amara sempre, daquele que fora, na vida, a única esperança do seu destino irremediável. E se ela possuía meios, recursos sem aplicação, por que não o socorria, evitando-lhe uma vergonha, e, com a vergonha, a miséria, a fome, e, quem sabe? o suicídio aos olhos da pobre mãe entrevada? Urgia, pois, chamá-lo, falar com ele, socorrê-lo. Procurá-lo, não ser ia possível, pois que o marido não a deixava sair desacompanhada. O remédio, era, portanto, fazê-lo vir à sua casa, sem testemunhas, na noite em que Antônio estivesse ausente.

O processo era perigoso, mas era o único. Ademais, onde a estrada escura e coberta de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores? E foi instado, solicitado, insistido, por dois, cinco, dez bilhetes de coração, que o Abelardo aquiescera em penetrar, naquela noite triste, na casa do comerciante.

Antônio da Rocha havia saído, já há meia hora, em visita a um amigo, quando o vulto do antigo estudante surgiu à esquina, à claridade medrosa do pequeno lampião solitário. Parou, olhou em torno, examinando a rua. Não havia ninguém. Cauteloso, mergulhou de novo na sombra, e caminhava cosido com a parede, quando, em frente, exatamente, à porta do Antônio da Rocha, ouviu o seu nome, num sussurro, que o fizera estremecer:

- Abelardo... Entra!...

E logo duas mãos esguias, geladas, que apertavam as suas no escuro, e que, posta a porta no trinco, pois que o marido havia levado a chave, o conduziam, amigas, para a sala de jantar.

Pondo o coração nas palavras, a moça contou-lhe, nervosa, os olhos cheios dágua, o motivo daquela temeridade. Que ele não fizesse mau juízo da sua virtude, da sua seriedade de mulher. Amava-o, sem dúvida; mas amava-o com saudade, não com esperança. Quem o havia chamado ali, não era a noiva, era a irmã, a companheira dos outros tempos. Queria-o de todo o coração. E não consentiria que ele, e principalmente sua mãe, tão idosa e tão santa, passassem pela vergonha de serem postos na rua, sem um abrigo ou um pedaço de pão.

- Não é uma esmola que te dou, Abelardo; é um empréstimo que te faço! - disse, estendendo-lhe um maço de cédulas, que o rapaz, com a vergonha no rosto, recusava aceitar.

Nesse momento, porém, a porta estalou na fechadura.

- Meu Deus!... O Antônio!... - gemeu a moça, com olhos de terror.

E como alucinada, empurrando o rapaz pela porta que dava para o armazém:

- Foge!... Foge!... Pelo amor de Deus!...

E enfiando-lhe o dinheiro no bolso do casaco, às pressas:

- Toma!... Foge!...

Pesado e mole, com a atenção emaranhada nas cifras, o vendeiro levou, ainda, alguns minutos para limpar os pés no capacho, trancar a porta, experimentar os ferrolhos; e minutos tão longos que, quando chegou à sala de jantar, a mulher já estava no quarto de dormir, simulando o primeiro sono.

Antônio da Rocha fora criado, porém, com espírito de prudência e sentido de previsão. Três vezes por semana, antes de deitar-se, tomava de uma vela e percorria, examinando meticulosamente os menores recantos, os dois compartimentos do armazém. E naquela noite, mandava-lhe a consciência, mecanicamente, que cumprisse aquela obrigação.

A vela na mão esquerda, a direita no bolso da calça, o comerciante caminhava, despreocupado, entre pilhas de charque e sacos de arroz, quando ouviu, de súbito, um rumor de papéis remexidos. Estacou desconfiado e, depois de prestar melhor ouvido ao barulho, regressou ao quarto de dormir, apanhando o revólver e dizendo, para a mulher:

- Temos ladrão em casa... Vem cá!

- Antônio!... - exclamou a moça, sentando-se repentinamente na cama, as mãos na cabeça.

Tomando aquela exclamação como um grito de medo, Antônio da Rocha marchou, resoluto, para o armazém. E, à porta do compartimento das vendas, gritou:

- Quem está aí?

E outra vez:

- Se não responder, eu atiro!

E esse tempo, o comerciante, que apagara a vela, havia já alcançado o comutador da eletricidade. E quando uma onda de claridade se espalhou pela casa, iluminando tudo, Antônio da Rocha estacou, estarrecido: diante dele, encostado a uma das prateleiras, estava o "doutor" Abelardo Padilha, corretamente vestido, a fisionomia serena, tendo nas mãos, amontoadas em pilhas, várias mercadorias apanhadas apressadamente no escuro: latas de leite condensado, vidros de conserva, maços de fósforos, um queijo, um pequeno embrulho de café.

- O senhor... um ladrão!... - exclamou o vendeiro, a boca torcida, em uma ironia que era, ao mesmo tempo, de raiva e prazer.

A essas palavras, Abelardo Padilha estremeceu. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto, cegando-o. Teve ímpetos de atirar tudo aquilo para o lado, e estrangular o miserável que assim o insultava. Lembrou-se, porém, de Santinha, da sua reputação, do seu destino, do dever, que lhe cabia, de salvá-la, dando a sua honra de homem pela sua honra de mulher. E, baixando a cabeça, deixou cair, tudo aquilo, com estrondo, no chão.

E ali estava, agora, diante da cidade toda, para ser julgado.

- O acusado - indagou o juiz, a voz pausada e serena, - o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas... Que motivo o levou ali?

- O roubo, sr. juiz! - declarou Padilha, a voz trêmula.

E mergulhando a cabeça entre os braços desatou a chorar...


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