Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

De Balsas Para o Mundo quinta, 23 de março de 2017

MORENINHA, A RAINHA SANTA DO FESTEJO

MORENINHA, A RAINHA SANTA DO FESTEJO

Raimundo Floriano 

 

Moreninha, a Rainha Santa: partida par o firmamento

 

            Aconteceu há mais de sessenta anos!

 

            Em 1946, o Festejo de Santo Antônio, nosso Padroeiro, prometia! Acabara-se o Governo Vargas, e a palavra mais ouvida em Balsas era “constituinte”, termo que para nós, crianças filhotes da ditadura, se associava a “vinho reconstituinte”, um milagroso medicamento vendido nas farmácias. E se constituinte era remédio, só podia ser coisa boa. Os reflexos econômicos e progressistas do fim da Segunda Guerra Mundial se faziam presentes nas mercadorias que chegavam em profusão. Vivia-se a euforia do consumo e da gastança, tão refreada no período belicoso, a população impregnada de inexcedível otimismo e esperança.

 

            Os botequins, todos de palha, armados em frente à Igreja Matriz, exibiam, além das frutas da época, miudezas desconhecidas para muitos, a maioria importada e, segundo voz corrente, resultado da indenização que os Estados Unidos fizeram ao Brasil por sua participação na guerra. Iniciava-se o domínio do plástico e do náilon. Eram cintos, linhas de pesca, sapatos, chapéus, utensílios domésticos, lanternas, bijuterias, espelhos, bugigangas diversas e, sobressaindo-se, o maravilhoso brinquedo, coqueluche daquele Festejo: o ioiô.

 

            O romeiro já não se aproximava do marreteiro e, timidamente, perguntava:

 

            – Tem pente pra homem de chifre?

 

            Agora, era diferente. O matuto, nó-cego, bico-largo, capiau, como queiram, chegava no botequim, todo empolgado, e mandava:

 

            – Bote um cinturão pra menino de matéria plástica!

 

            Em adição aos itens já citados, os botequineiros vendiam comidas e bebidas, destacando-se a gengibirra – produto regional –, conhaque e cachaça, muita cachaça. Cerveja, só nos raros botequins que possuíam geladeira a querosene. Não fazia diferença se a bebida fosse quente ou fria. No Festejo, Balsas transformava-se no maior exportador brasileiro de garrafas vazias.

 

            Também havia vários tipos de jogo, como o do bicho, na roleta, e o do caipira, esse bancado pelo Cadete, simpático e popular cidadão conterrâneo, que apregoava:

 

            – Olha o jogo do caipira, quem mais bota, menos tira!

 

            Na barba-de-são-severino, certo tipo de pescaria, com um molhe de linhas, cada qual amarrada a objetos de pequeno valor, mas, no meio deles, um grande prêmio. O jogador pagava e escolhia a ponta da linha para puxar. Ganhava aquilo que tivesse a sina de arrastar. O marreteiro anunciava:

 

            – Aqui é a barba-de-são-severino, jogam homens, mulheres e meninos e o povo aviciado. O homem que apanha da mulher, não vai dar parte ao delegado!

 

            Ladeando a Matriz de Santo Antônio, as duas barracas da Paróquia, de madeira e tecido, no formato de lanchas. À esquerda, a lancha Marabá, homônima da ancorada no Porto da Rampa e pertencente ao Comandante Wenceslau Ribeiro. À direita, a representante de outra embarcação, propriedade de armadores piauienses, mas com o nome bem sugestivo e apropriado para o momento: Vitória! Nessas barracas, eram oferecidas comidas típicas, saladas de fruta, café, chocolate, bolos da região, cerveja, refrigerante e refresco, que nós chamávamos de “gelado”. A renda maior, toda revertida para a Matriz, provinha dos leilões e da venda de votos para a Rainha da Festa.

 

            Ao meio-dia, no patamar da igreja, realizava-se a retreta, animada por Martinho Mendes e Seu Conjunto. O repicar dos sinos e o estouro dos foguetes anunciavam a função. A música mais ouvida e cantada naquele Festejo era o samba Santo Antônio Amigo, de Pereira Matos, Neneco e A. Gomes, gravação do Ciro Monteiro:

 

Santo Antônio amigo,

Seja meu camarada

Queira me ajudar nas pazes

Com aquela que é minha amada

Vou tirar a sorte

Na noite de São João

Pra saber se me caso

Com ela, ou não

Ela é a dona, é,

Do meu coração, oi

 

Na sorte eu procuro

A minha felicidade

O amor sendo sincero

Não traz contrariedade

Por despeito ou por intriga

Não pode se acabar

Por isso eu peço a Santo Antônio

Para me ajudar, oi

 

            Amada, sorte, casamento, dona do meu coração, felicidade, amor, sinceridade, ajuda, palavras mágicas que tinham tudo a ver com o Festejo do santo casamenteiro. No decorrer dos 13 dias de devoção, tudo respirava o amor e a esperança de um enlace abençoado. E, coincidentemente, já se anunciava, durante a trezena, aquele que seria o casamento do ano.

 

            Acabara de chegar para o Festejo um filho da terra, que fizera fortuna lá pras bandas de Goiás, jovem formoso, cavalgando montaria ricamente ajaezada com arreios jamais vistos no nosso sertão, sela primorosa, toda enfeitada com adereços de prata, rédea finamente trabalhada, configurando-se esse mancebo como um verdadeiro Príncipe Encantado, excelente partido existente apenas nas quimeras das adolescentes. E a mais bela de todas, a Moreninha, flor em botão, de apenas 16 aninhos, era candidata a Rainha da Festa. O romance entre os dois estava escrito nas tortuosas páginas do Destino e surgiu como decorrência natural do Festejo. Foi um namoro pelo qual toda a cidade torcia e ansiava no devaneio de um desfecho glorioso, que seria a realização do enlace matrimonial.

 

            Moreninha foi eleita, e sua coroação constituiu-se na mais majestosa solenidade desse tipo a que presenciei em toda a minha vida.

 

            Terminado o Festejo, a cidade não amanhecera, como nos anos anteriores, com aquele ar de tristeza, a sensação de algo irremediavelmente perdido. Todos tinham o pensamento voltado para a apoteose, que seria o dia do casamento do Príncipe Encantado com a Moreninha, Rainha do Festejo.

 

            As tortuosas linhas do Destino, porém, continham roteiro trágico, epílogo tétrico e sanguinário.

 

            Cinco dias após a coroação, no final da tarde, quando voltava do trabalho para casa, Moreninha teve seu último encontro com o Príncipe Encantado que, naquele momento, se transfigurara em Mensageiro da Morte. Até hoje não se sabe ao certo o motivo. Dizem que transtornado por ter contas a acertar com a Justiça Goiana, algo a ver com a riqueza que ostentava, e também por nunca ter conseguido de Moreninha a submissão a seus ousados avanços amorosos. O certo é que o Mensageiro da Morte, ao defrontar-se com ela, sacou de um revólver e o descarregou em seu peito. Seis tiros fatais! Depois, correu, remuniciando a arma e, ao chegar à casa de parentes onde se hospedava, deu um tiro no ouvido. O Destino quis que o assassino apenas cumprisse seu papel ao tirar a vida da Moreninha. O tiro que dera em si saiu pela boca, e ele, em pouco tempo, já recuperado do ferimento, foi transferido para São Luís, onde, julgado e condenado a 30 anos de prisão, quase nada cumpriu, visto que, em curto espaço de tempo, se evadiu da cadeia e sumiu no oco do mundo.

 

            Assim se narra essa triste história. Para nós, da Moreninha ficou aquela indelével imagem do seu corpo esvaído em sangue, o rosto celestialmente sereno, deixando-nos para sempre a impressão de que acabáramos de perder a doce menina que, expirando, se tornara a Rainha Santa do Festejo.

 

            Seu nome era Maria da Conceição!

 

            Meu irmão Pedro Silva, em crônica publicada no jornal A Tarde, de Carolina, pranteou nossa saudade, em bonita e emocionante página, da qual perdemos o inteiro teor, mas que continha como ideia central este pensamento:

 

            – Quando morre uma virgem, aparece mais uma estrela no céu!

 

 


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