Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Do Jumento ao Parlamento quinta, 26 de janeiro de 2017

O FOGO DE MARIBONDO

O FOGO DE MARIBONDO

Raimundo Floriano 

 

O Maranhão é um Estado interessante!

 

         Mas não por causa da gestação da miríade de eleitores capazes de o rotular como o único Estado a eleger, no pleito de 15 de novembro de 1985, para prefeito de sua capital, um candidato do PDS. Nem por ter gerado, para a honra e glória da humanidade, nomes da magnitude de Graça Aranha, Gonçalves Dias, Ferreira Gullar, João do Vale, Alcione e Maestro Zuza; de fundadores da Academia Brasileira de Letras, como Aluízio Azevedo, Coelho Neto, Raimundo Correia e Artur Azevedo, e ilustres membros daquela Casa de Chá, do quilate de Viriato Correia, Odilo Costa Filho e Josué Montello. Também em nada contribuiu para seu louvor a particularidade de ter dado à luz um filho que chegou à Vice-Presidência da República, tendo assumido a Presidência. Falo do douto intelectual, habilíssimo político, deputado e senador Urbano Santos, único maranhense eleito vice-presidente da República pelo voto direto, tendo substituído o presidente Venceslau Braz, em setembro e outubro de 1917. Tais nomes engrandeceram o Maranhão e projetaram, nas artes, na ciência e na cultura o nome do Brasil no concerto das nações artística, científica e culturalmente evoluídas.

 

         Interrompo-me para responder a alguém que me pergunta:

 

         – Mas esse aí, douto intelectual, habilidoso político que foi deputado, senador, vice e assumiu no lugar do presidente da República e também escreveu O Fogo de Maribondo não é o Sarney?

 

         E eu rebato:

 

         – Não, meu camarada, o presidente José Sarney assumiu em caráter efetivo, governará por cinco anos, de cabo a rabo, é o maior nome da política e cultura do Novo Maranhão, também membro da ABL, e o nome de um de seus best-sellers é Os Maribondos de Fogo. O título deste meu trabalho é uma paródia a essa obra-prima e uma homenagem ao nobre coestaduano, que estudou em Balsas, no Educandário Coelho Neto, do lendário professor Joca Rego.

 

         O Maranhão é grande porque a terra é boa, e seu ventre, mesmo em nada nele se plantando, tudo dá. A soja e o arroz, se bem cultivados, dão na colheita, na soca, na ressoca e na contrassoca, fazendo com que o Estado, mais precisamente sua região sul, cujo centro cultural, econômico e financeiro é a cidade de Balsas, seja, hoje, o maior produtor brasileiro de grãos por hectare.

 

         Essa admirável fecundidade é alcançada por meio de métodos racionais e modernos processos de plantio, com o emprego de tratores, colheitadeiras, adubos, fumigação aérea e tudo o mais que a tecnologia possa conceber para diminuir o trabalho e aumentar a rentabilidade dos agricultores. Há, ali radicada, uma população de gaúchos – calculada em mais de mil famílias – que trouxe consigo as novas técnicas e deu aos sul-maranhenses um inesperado tempo de progresso e prosperidade. Enquanto seu Philipsen, de origem holandesa, planta trinta mil hectares de soja, os balsenses Chico Coelho, Luiz Pires, Odilon Botelho e Antônio Pires semeiam quarenta mil hectares de arroz.

 

         Nem sempre foi assim. Há coisa de vinte anos, pouco mais ou menos, predominava por lá uma lavoura de subsistência, tocada a cabo de enxada. Não havia estradas vicinais, e o transporte da parca produção excedente, da roça para os centros consumidores, era feito em costa de jumento, único semovente capaz de vencer qualquer tipo de terreno. Para tanto, havia grandes transportadoras, compostas de até pra mais de cinquenta jegues, cujos proprietários eram os magnatas da paróquia, donos do dinheiro e senhores dos destinos de seus serviçais, quer asininos, quer humanos.

 

         Deles, o mais conhecido era Luiz Otávio da Silva, fazendeiro rico, lavrador bem-provido, transportador de alto coturno. Esse coronel começara do nada. Pedreiro de profissão, começou construindo muros, aplicando emboços, caiando paredes, tirando goteiras, andou bancando a Loteria Esportiva por uns tempos, fez 13 pontos num bolão, aforou alguns terrenos lá pras bandas do bairro Catumbi, onde furou poço, plantou verduras e outras hortaliças, diversificou sua lavoura e finalmente, alcançou a tão almejada fortuna. Por ser o homem mais alto da cidade, passaram a chamá-lo de coronel Luizão.

 

         Esse coronel mantinha sob sua paga, como chefe-de-tropa, um cabra que, por ter sempre à mão um ferrão – pau comprido, roliço e fino, com uma extremidade metálica pontiaguda – para açular os jumentos preguiçosos a ele subordinados, desde cedo ficou conhecido pela alcunha de Maribondo, dele não se sabendo outro denominativo.

 

         Maribondo não gostava de usar o ferrão, carregava-o apenas como símbolo de autoridade, como preventivo, e cada agulhada que aplicava nalgum de seus comandados, isso em caso de extrema necessidade, lhe doía fundo, porque ele amava aqueles asnos, ajudantes fiéis, fontes de seu sustento, amados como o seriam os filhos que até então não conseguira ter, pois nem casado era.

 

         Aí, chegaram os gaúchos, com sua mecanização e maquinização. Qualquer dos grandes tratores de lâmina fazia, num só dia, o trabalho de uma centena de homens. As colheitadeiras dispensavam os apanhadores e catadores, geralmente mulheres e meninos, e os pequenos tratores CBT 2105 – fabricados pela Companhia Brasileira de Tratores – rebocavam imensas carretas, transportando, numa só carrada, a produção de dez ou mais das antigas roças.

 

         Decretou-se a aposentadoria do jumento, e o CBT, por substituí-lo, ganhou logo o apelido de jerico. De fácil manejo, o jerico pode ser conduzido por qualquer criança, ou por qualquer mão-de-obra desqualificada, o que faz com que seus maquinistas sejam os que menor salário percebem, somente indicados para a função quando não há coisa pior a executar. No advento do CBT, era comum esta frase dos escabreados balsenses que se enfileiravam diante da Agência da SAGRIMA – Secretaria de Agricultura do Maranhão –, à procura de emprego:

 

         – Me diga que eu sou corno, mas não me chame de “jeriqueiro”!

 

         Foi, então, que se sucedeu a desgraça! Coronel Luizão, vendo o ar afortunoso dos gaúchos, bem como dos balsenses que lhes seguiram o exemplo, resolvera, de uma hora para a outra, desativar a frota de jumentos e equipar sua lavoura e a transportadora com as coisas da modernice. Assim, na manhã de um dia comum, igualzinho aos demais, quando Maribondo chegou na sede da fazenda, para iniciar mais uma jornada, recebeu um positivo a cavalo, do Coronel Luizão, que o chamava para uma conversa em sua residência na cidade. Maribondo previu coisa séria, medonha, a ponto de obrigá-lo a interromper, pela primeira vez na vida, aquela rotina que há tantos anos executava. Seguiu, juntamente com o positivo, na garupa do quadrúpede. Nem menos deu bons-dias, e coronel Luizão foi direto ao assunto, como é consuetudinário aos que arrotam poder:

 

         – Maribondo, junte todo o elenco de jegues e leve até uma jamanta estacionada em frente ao Mercado. Já ajustei o preço. É só embarcar!

 

         –Oxente, seu coronel Luizão, eu nunca tinha visto levar jumento para passear de caminhão! Eu posso ir junto?

 

         – Não é para passear, sua cavalgadura! O homem da jamanta vai levá-los para um frigorífico, e de lá para o Japão, onde o povo é doido por salsicha de carne de jumento!

 

         – Mas seu coronel Luizão, e eu, o que será de mim?

 

         – Volte aqui à tardinha, pra aprender a pilotar um jerico que acabei de comprar.

 

         Maribondo dali se retirou, amargurando um tríplice sofrimento: separar-se de suas alimárias, sabê-las destinadas ao abate, transformar-se em jeriqueiro. Rumando para a sede, remoía sua dor e, para amenizá-la, comprou um litro de pinga na primeira quitanda com que deparou. Bebendo e chorando, chorando e entornando, já chegou na sede meio adernado. Foi ao potreiro e, munido de seu ferrão, reuniu as azêmolas, reencetando o percurso para a cidade, o último que faria acompanhado de seus amados bocas-empoadas.

 

         Palmilhando seu calvário, danou-se a sorver, em solenes goles, seu cálice de fel, última homenagem àqueles diletos auxiliares. Brandia o ferrão, tomava uma lapada e gritava:

 

         – Pra você, Mão-de-Pilão!

 

         O ferrão vibrava no ar, o gargalo adentrava sua boca, e o brado ecoava:

 

         – Badalo, meu filho, até o Dia do Juízo!

 

         Na entrada da cidade, comprou outro litro de cana, dando continuidade ao adeus derradeiro a seus beiçudos, uma brandida do aguilhão e um gole em despedida a cada qual:

 

         – Alavanca!... Chaminé!... Mangará!... Três Palmos!... Sax-Tenor!... Mangueirão!... Cinco-Pernas!...

 

         Nem bem chegou à Praça do Mercado, pôs em debandada seu esquadrão de orelhudos e, bambeando e tropeçando, ferrão em punho, botou-se para a casa do patrão. Acompanhavam-no, agora, os desocupados, os gozadores, alguns cabungueiros – limpadores de penico – e a indefectível cambada de meninos, um dos quais se adiantou, na carreira, para anunciar a novidade:

 

         – Coronel Luizão, o Maribondo tá de fogo, largou os jumentos na rua e vem aí, de ferrão na mão, arremetendo que nem anta bravia!

 

         – Chame a polícia! – gritou o coronel para um de seus caseiros.

Maribondo chegou e viu. Estacionado junto à calçada, cheirando a óleo queimado, rebrilhando aos tênues raios do sol que se escondia, quedava-se o jerico, em posição de desafio.

 

         Rente com Maribondo, chegou o coronel, já garantido por uma patrulha da Força Pública. Bancando o diplomata, muito jeitoso, coronel Luizão falou para Maribondo:

 

         – Rapaz, eu estava mesmo a esperá-lo. Suba logo no jerico, que o técnico da SAGRIMA vai deixar você bem traquejado!

 

         – Subo não, seu coronel Luizão! Não vejo aqui homem capaz de fazer eu trepar nesse excomungado!

 

         Folgazão, o coronel quis levar o negócio na base da brincadeira e gritou para os fardados:

 

         – Peguem ele, botem-no lá em riba, no assento. Quem sabe, assim ele se anima e muda de ideia!

 

         No que os praças avançaram, Maribondo, qual um gladiador romano, enristou o ferrão e passou a se defender como podia, dando estocadas e pauladas a torto e a direito. Vendo que o caldo podia entornar, o coronel ordenou à guarnição:

 

         – Vão de facão no homem, e piniquem esse ferrão!

 

         Maribondo, tendo à frente os meganhas com seus metais desembainhados, prontos para o bote, bramiu:

 

         – Seu coronel Luizão, podem me arrebentar, mas em jerico eu não monto!

 

         Os homens foram nele. Maribondo fez finca-pé. Tomaram-lhe o ferrão. Maribondo reagiu, embolando-se com os cabras, numa luta desigual. Quando deu fé, um facão trespassou-lhe o bucho, rasgando-lhe as tripas.

 

         E ali, sem jamais trair a devoção a seus amados jegues, Maribondo se findou.

 

         Ao longe, um jumento preto zurrava em funeral!

 

              Maribondo e seus queridos jumentos: último adeus

 


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