Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis quarta, 10 de março de 2021

O ÚLTIMO CORDEL (FOLHETO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

 

O ÚLTIMO CORDEL
Marcos Mairton
 
 
 
 
 
Já havia alguns meses que o velho poeta estava prostrado naquela cama de hospital. Muitas foram as vezes em que as enfermeiras comentaram que daquele dia ele não passaria. Mas o dia terminava e ele continuava firme. Quando dava a impressão de que não veria o amanhecer, acordava melhor. 
 
E o mais incrível era que, apesar da saúde tão debilitada, todo dia o velho poeta aparecia com versos novos. Às vezes uma simples quadrinha, falando da luz do sol que entrava pela janela; outras vezes um romance inteiro de cordel, em sextilhas, septilhas ou décimas; outras ainda, decassílabos elogiando os dotes físicos de alguma das enfermeiras ou reclamando da comida.
 
Ele escrevia os versos em um caderno e depois os declamava, geralmente depois do jantar. Quando estava muito abatido e não conseguia ler em voz alta, pedia a alguma enfermeira que fizesse a leitura. As pessoas que trabalhavam ali, e até os outros doentes daquela enfermaria, divertiam-se com aquilo e afeiçoavam-se ao velho poeta.
 
Com o tempo, a doença foi se agravando e ele não pôde mais escrever. Pediu então, a um de seus filhos, um gravador, para que pudesse continuar criando seus versos sabendo que depois alguém os passaria para o papel. Isto fez com que o velho poeta se tornasse uma atração ainda mais especial daquele lugar. Gente que trabalhava nas outras enfermarias - e até em outros andares do prédio - passava por lá e se demorava perto do seu leito para ouvi-lo gravando as declamações de seus versos.
 
Um dia ele recebeu a visita de um repórter. O jovem jornalista queria saber da sua vida, das suas obras, mas, principalmente, da sua capacidade criativa, estando tão doente. Afinal de contas, a história de seus dias fazendo versos no hospital havia se espalhado e agora ele estava bem mais famoso do que fora em toda a sua vida.
 
O velho poeta respondia com boa vontade - e até com alegria - cada uma das perguntas. A certa altura, o repórter perguntou, como quem encaminhava a entrevista para o final:
 
- Depois de tantos cordéis, tantos poemas, tantas histórias de heróis, fadas e amores proibidos, ainda ficou faltando algum assunto que você gostaria de tratar em seus versos?
 
O velho olhou para a porta da enfermaria por alguns segundos, pensativo. Os olhos fixos no vazio, como se observasse imagens que só ele via. Depois, ligou o gravador e pediu ao repórter que também ligasse o dele, pois tinha mais uma história para contar. E começou.
 
O velho poeta estava
Na cama de um hospital
Dando uma entrevista
Ao repórter de um jornal,
Mas, no meio dessa prosa,
Uma mulher bem formosa
Chegou naquele local.
 
Ela estava bem vestida,
Elegante e perfumada,
Entrou sem fazer barulho,
Discreta e muito educada.
Em seguida, aquela dama
Postou-se ao lado da cama
E ficou sem dizer nada.
 
O velho continuou
O que já estava fazendo.
Às perguntas do repórter
Prosseguia respondendo.
E, enquanto o tempo passava,
A mulher observava
O que ia acontecendo.
 
A verdade é que o poeta
Desde cedo esperava
A chegada da mulher
Que agora ali estava.
Pois há meses ela ia
Ver o velho todo dia
E ali horas ficava.
 
Apesar disso, o poeta
Não lhe deu muita atenção.
Falava com o repórter,
Dando mesmo a impressão
De que estava incomodado
Com a mulher ao seu lado,
Feito um anjo guardião.
 
O tempo ia passando
E o velho não se calava.
Até mesmo o repórter
Nada mais lhe perguntava,
Pois o poeta dizia,
Em forma de poesia,
Cada coisa que lembrava.
 
Até que, uma certa hora,
A mulher se irritou.
Ficou de frente pro velho
E nos seus olhos olhou,
Disse: “Não quero ser rude.
Esperei tudo o que pude,
Mas agora terminou”.
 
“Faz meses que todo dia
Venho aqui pra lhe buscar,
Mas você encontra um jeito
De eu nunca lhe levar.
Pede sempre mais um dia,
Para alguma poesia
Que ainda tem de terminar”.
 
“Eu, que não sei fazer versos,
Mas acho lindo quem faz,
Sem querer vou lhe deixando
Ficar sempre um dia a mais,
E você, espertamente,
Usa desse expediente
Para me passar pra trás”.
 
“Agora é essa entrevista
Que parece não ter fim.
Que poeta embromador!
Nunca vi alguém assim.
Mas, chega desse tormento,
Não vou mais dar cabimento
Pra você zombar de mim”.
 
O velho fez uma pausa e pediu um pouco d’água. Respirava com dificuldade. A voz estava fraquinha, abafada, como se saísse de dentro de uma mala fechada. 
 
O repórter olhava espantado. Será que todos aqueles versos estavam sendo recitados de improviso? Ou o poeta já os havia criado antes, os guardou na memória e agora estava apenas declamando? De um jeito de outro, aquele homem velho e moribundo era um verdadeiro gênio.
 
Enquanto o repórter fazia essas conjecturas, o poeta respirou fundo e prosseguiu, falando pausadamente.
 
Então o velho entendeu
Que não adiantaria 
Encompridar a conversa
Nem fazer mais poesia.
Era hora da partida,
Desta para a outra vida,
Chegara enfim o seu dia.
 
De partir nessa viagem
O velho ficou com medo,
Mas a mulher disse a ele:
“Vou lhe contar um segredo:
Se você tivesse visto
Pra onde vai, eu insisto,
Tinha ido bem mais cedo”.
 
“O lugar do seu destino
Tem paz e tem alegria,
Tem amizade de todos,
Tem amor, tem harmonia
E uma turma preparada
Pra fazer, na sua chegada,
Uma grande cantoria”.
 
O velho inda duvidava
Que ela falasse a verdade,
Mas, ia fazer o quê,
Doente e naquela idade?
O jeito, então foi seguir,
E finalmente partir
Em busca da eternidade.
 
A mulher de quem eu falo,
O senhor já percebeu,
É a morte, que, nesse instante,
A sua mão me estendeu.
Então, o velho, cansado,
Naquela cama deitado,
Deu um suspiro...
 
E a voz do velho se calou para sempre, pelo menos por estas bandas. Não conseguiu pronunciar as últimas palavras do último verso, mas elas ecoaram na mente do repórter, das enfermeiras, dos médicos e dos outros empregados do hospital que se haviam aglomerado em redor de seu leito. 
 
A partir de certo ponto, todos haviam percebido que aquele seria o seu último cordel.

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