Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Do Jumento ao Parlamento sábado, 14 de janeiro de 2017

SERTANEJIDADES

SERTANEJIDADES

Raimundo Floriano

 

 

         A 15 de agosto de 1974, o consagrado jornalista Ari Cunha, do Correio Braziliense, publicou em sua coluna Visto, Lido e Ouvido, a matéria, que, com a necessária atualização gramatical, ora reproduzo: 

A PACA MAL CAÇADA - Certa vez, eu passei pelo restaurante dele e recebi um pedido: “Homem, dê uma nota em sua coluna. Eu fiquei dentro desse mato, pago um caçador para matar pacas para vocês virem comer aqui, e ninguém procura divulgar meu trabalho pioneiro. Imagine que aqui temos um caçador profissional, com carteira assinada, ganhando um salário mínimo por mês só para matar pacas para o restaurante. Isso pode ser uma boa notícia!”

 

No dia seguinte, eu fiz uma nota. No domingo, o restaurante ficou cheio. Foi paca a não mais valer.

 

Na outra semana, chega um cidadão à minha porta e entrega uma carne temperada: “Tome, foi seu Geraldo que mandou. É paca, e já vem temperada, pronta para assar.”

 

Em casa, não deu outra coisa no almoço. Paca assada. E que delícia! Era um pernil, gordo, bonito, e o tempero espalhava cheiro de alho por toda a cozinha. Na hora de servir, uma faca longa me ajudava a cortar fatias finas e perfumadas. Em meio caminho, uma esfera de chumbo. Outra mais. O pernil estava todo crivado pela carga da espingarda.

 

Foi uma alegria, afinal, comer a parte da caça atingida pelos tiros, é privilégio e dá boa sorte. Reunimos todos os carocinhos de chumbo. Aquilo seria sinal de boa sorte. Estava uma beleza o pernil de paca.

 

Passam-se os meses, vou sabendo da verdade. O caçador não caçava nada, coisa alguma. A sua carteira marcava uma profissão que ele não conhecia. Era uma espécie de “farol da casa”.

 

E a verdade era mais crua ainda. Aquele pernil não era de paca. Era de cabrito, e um tiro proposital dado na carne servia apenas para registrar uma marca que nem o dono conhecia.

****** 

                         – Essa, não! – Pensei ao ler a coluna. Um deputado pode ser tomado por senador; uma loura, por ruiva; uma carroça, por charrete; um jumento, por burro; mas isso, não! 

                        E o resultado de minhas divagações se fez consignado na edição do dia 27, quando o nobre Ari Cunha usou todo o seu espaço para estampar o texto que adiante reproduzo: 

Sem querer esnobar o Raimundo Floriano, transcrevo sua carta para mostrar que não entendo nada de paca. É que, na verdade, para mim, saindo de javali, só mesmo carne de boi... Eis a carta: 

Meu Caro Ari Cunha, 

Dizer que sou leitor viciado do Correio Braziliense, seria chover no molhado, já que, morador nesta Brasília desde os seus primeiros anos, me acostumei à marca, além da qualidade e do conteúdo. É com avidez que procuro a coluna Visto, Lido e Ouvido, por ser a que mais se identifica com nossas coisas, a que mais se dedica a nossos pitorescos assuntos mesmo quando sérios o são.

 

Você, estimado Ari, já chegou às raias da perfeição na difícil arte de escrever e, principalmente, de descrever. Foi com lágrimas, de certa feita, que cheguei ao final de sua coluna, aquela em que descrevia os meninos assando castanhas de caju na lata ou testo furado, mexendo-as com uma vara de comprimento suficientemente calculado, para livrá-los do leite quente que, invariavelmente, provocava nas partes atingidas do corpo umas pintinhas pretas, indeléveis. Tenho-as ao longo dos meus braços, ainda vivas, para comprovar, mesmo decorridas décadas após a marcação. E a cambada jogando terra sobre as castanhas em chamas? Naquela leitura, eu me transportei a um quintal bem distante lá no meu Maranhão, onde tinha instalada minha trempe (existe algum garoto em Brasília que sabe o que é uma trempe?) de pedras, e o pilão para, depois de quebradas as castanhas, fazer aquela inesquecível paçoca, adicionando farinha seca, rapadura e sal, o eterno e indispensável tempero, mesmo para as coisas doces. Foi uma página de saudade, que reavivou a lembrança de momentos outros arquivados na memória deste nordestino por nascimento, sotaque e querer.

 

Mas amigo Ari, hoje, dia 15 em A Paca Mal Caçada, você se machucou. Das duas, uma: ou você não é cearense, como acreditei o fosse, e aí tem razão no que escreveu; ou, sendo um pau-de-arara, teve a rara e inacreditável infelicidade de nunca ter comido paca em sua vida.

 

Conhece você aquele modo popular de se dizer que o Fulano comeu gato por lebre, quando lhe passaram os pés? É que, mesmo com a diferença de gosto só ligeiramente perceptível, é possível que uma vítima não desconfie, caso o cozinheiro seja um bom temperador. No mais, gato e lebre, tirados o couro, a cabeça e as unhas, são idênticos, com pequenas diferenças apenas na espessura dos ossos. O que vulgarmente acontece, neste Brasil em que os bichos comestíveis estão a se extinguir, pela guerra indiscriminada e intempestiva, aliada à tecnologia cada vez mais sofisticada na arte do extermínio, é ver-se o neófito comer cuandu por caititu (conhece-os?) rato por preá, bode por veado, peba por tatu, teiú por camaleão e leitoa por paca.

 

Em 1961, consegui enganar algumas pessoas, dentre elas um aparentado meu, doutor Adelmar Neiva de Souza, hoje Delegado Regional do Trabalho em Fortaleza, fazendo-as comer uma leitoa bem temperada com leite de coco e outros ingredientes, cabendo aqui o mérito da preparação a minha irmã Maria Isaura que, supondo também tratar-se de paca, se esmerou em seus tantas vezes reconhecidos e elogiados dotes culinários. Nem mesmo o doutor Adelmar, conhecedor juramentado do dito roedor no sertão maranhense, principalmente no tempo das anajás, desconfiou, pois fácil lhe seria descobrir o engodo, estivesse ele de sobreaviso: os ossos da paca são mais finos que os da leitoa. Isso é apenas um exemplo, que relembro com saudade.

 

Mas prezado Ari, comer cabrito por paca, é patada das grandes. É o mesmo que comer, por falar em patada, pato por ema, piau por bacalhau, tilápia por bagre, mandacaru por palmito. Paca e cabrito são fundamentalmente diferentes nos seguintes aspectos: ossada, tamanho, conformidade, cheiro, cor e, principalmente, gosto. E tem mais, muito mais.

 

Para ser sucinto, termino dizendo que cabrito é bicho de couro tirável, muito usado no Carnaval, para a confecção de tamborins e outros instrumentos de percussão. Paca, dileto Ari, é bicho do qual se pela o couro, tal como se lhe fizesse a barba, usando, em vez de sabão, água quente. O couro da paca é parte inerente à carne, pregado nela.

E, meu caro Ari, couro de paca, bem temperado, é bom paca! 

Sinceramente seu, 

Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva 

 O bode e a paca: diferenças milenares

 

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