Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis segunda, 14 de outubro de 2019

UMA CONVERSA SOBRE VIDA OU MORTE

 

 

UMA CONVERSA SOBRE VIDA E MORTE

Certo dia, dei carona a Shayeubad(*), em uma das muitas vezes em que dirigi meu carro no percurso de cento e poucos quilômetros entre Quixadá e Fortaleza. Depois de alguns quilômetros na estrada, encontramos um jumento que acabara de ser atropelado.

Parei o carro perto do animal e pudemos ver que ele ainda agonizava. Estirado ao chão, já não se debatia, apenas tremia. De vez em quando tinha espasmos. Permaneceu assim por alguns minutos, até que uma lufada de ar lhe saiu pelas narinas, levantando poeira do acostamento. A partir daí, ficou imóvel. Estava morto.

Depois de retomarmos a jornada, Shayeubad abriu o debate sobre o ocorrido:

– Para onde você acha que foi a vida dele?

– Como assim? – perguntei, preparando-me para o que viria a seguir. Shayeubad sempre faz reflexões interessantes sobre situações como aquela.

Ele prosseguiu:

– Antes de aquele animal ser atropelado e morrer, havia algo nele que o fazia se mover, se alimentar, buscar uma parceira para se reproduzir. Ele tinha vida. Mesmo depois de ferido, dava para ver sua luta para continuar vivendo. Mas, isso foi se apagando aos poucos, até o suspiro final. Para onde vai a vida de um animal que morre?

– Sabe, Shay, a impressão que eu tenho é a de que a vida é como o fogo… O fogo é uma combinação de calor, oxigênio e combustível. Se faltar um dos três, o fogo apaga. Penso que… quando um animal morre… a vida dele simplesmente acaba… não vai a lugar nenhum…

Percebendo que eu estava hesitante em minha argumentação, Shayeubad interrompeu o meu discurso, fazendo mais uma pergunta, que já era o começo de sua própria análise para aquela questão:

– E se eu lhe disser que não era aquele animal que tinha vida, mas a vida é que o tinha? Você já imaginou que a vida pode ser algo que fica disperso no universo, e, quando encontra uma estrutura molecular adequada, instala-se ali e faz com que essa estrutura funcione, com as características que identificamos nos seres vivos?

– Como uma espécie de energia, que seria captada pelos corpos dos seres vivos?

– Mais ou menos isso…

– É um ponto de vista interessante. Acho que ainda não havia pensado assim…

– Então, pensemos – prosseguiu Shayeubad. – Pensemos que a vida já vinha rondando a Terra há muito tempo, atuando sobre os elementos, até que algumas moléculas se uniram e formaram um todo em condições de ser animado por ela. Pode ter surgido assim a primeira célula, o primeiro organismo unicelular. Impulsionado pela vida, esse organismo dividiu-se, multiplicou-se, tornou-se mais complexo e passou a se reproduzir. Desse ponto para a multiplicidade das formas e a formação das espécies seria um pulo.

Já não me surpreendo quando Shayeubad, diante de um fato qualquer da vida, começa a refletir sobre a origem do universo ou os grandes desafios da humanidade. Mesmo assim, achei engraçado que a morte de um jumento o levasse a falar daquele jeito. Meio sorrindo, desafiei:

– Boa! Mas dá para avançar um pouco no tempo e chegar à morte do jumento que vimos na estrada?

– Claro! – continuou ele, animado. – Mas é que, para chegar a esse ponto, é preciso considerar que a própria vida, ao animar a matéria, passa a consumir a estrutura material que ocupa. Se quisesse ser dramático eu diria que a vida já traz em si a semente da morte. Pelo fato de estar se desgastando, o organismo animado precisa se alimentar, na tentativa da vida de mantê-lo apto a sustentá-la. Ocorre que a alimentação nunca é suficiente para manter o organismo perpetuamente em condições de acolher a vida. Por isso, ele envelhece e morre. Chegamos, assim, ao jumento, que, antes de sofrer o desgaste natural dos corpos vivos, teve alguma parte essencial a esse funcionamento inviabilizada pelo trauma sofrido. Conclusão: o corpo morre porque já não tem condições de abrigar a vida; assim, ela vai embora.

– Mas, nesse caso… – interrompi. – se um animal morrer asfixiado, por exemplo, não bastaria restituir-lhe o oxigênio, para que a vida voltasse a animá-lo?

– Não! A falta de oxigênio causa a morte dos neurônios. Os danos são irreversíveis. Mesmo assim, considere a possibilidade de a vida só conseguir se instalar em estruturas orgânicas mais simples, como corpos unicelulares. Isso explicaria porque ela se liga a um embrião, mas não a um animal com o corpo já completo.

– Verdade! Pensando assim, os chamados procedimentos de ressuscitação somente fazem sentido enquanto ainda há alguma vida no corpo. Pelo menos, algum resquício.

– Exato! E tem mais. Considere nossa premissa de que o fato de um corpo abrigar a vida faz com ele se desgaste; que, mesmo gerando novas células, a partir da matéria orgânica obtida pela alimentação, esse desgaste leva à destruição desse corpo; essa pode ser a causa para outro fenômeno vital: a reprodução!

– Como assim?

– Acompanhe meu raciocínio: a morte inevitável dos seres vivos acarreta a necessidade de se gerarem outros organismos vivos. É aí que entra a reprodução, sexuada ou não. Ou seja, se a vida está tendo sucesso em se manter em determinado organismo, ela, a vida, fará com que ele se mantenha, como indivíduo, mas também que se multiplique. Assim, à medida que esses organismos vão sendo usados e se esgotando, morrendo, a vida vai se instalando nos novos que vão sendo criados. Cada vez que um corpo está muito danificado, pelo esgotamento ao qual chamamos velhice, por um trauma, ou por uma doença qualquer, a vida o deixa e vai procurar outro. Como ela prefere, ou precisa, se instalar em um corpo simples, a vida faz com que os corpos usem suas células para criar embriões, ou sementes, no caso dos vegetais.

– Isso dá uma teoria realmente interessante – reconheci. – Mas, considerando que os micro-organismos que causam as doenças são também seres vivos, não estaria havendo um confronto da vida contra a vida?

– Veja bem: apesar de a vida ser um todo único, cada organismo funciona como uma unidade independente. Logo, confrontos entre esses corpos fazem parte da lógica do sistema, porque a vida contida em um ser vivo faz com que ele busque nutrientes em outro ser vivo. Para a vida, não há muita diferença entre um mosquito se alimentar do seu sangue ou um leão comer a sua carne. Ela fará com que tanto o mosquito quanto o leão busquem em outro ser vivo a matéria da qual precisam, para manter seus corpos funcionando, ou seja, podendo abrigar a vida, além de gerar outros corpos com essa possibilidade.

– Bom, pra mim faz muita diferença ser comido mosquito ou por um leão!
Rimos um pouco do que eu acabava de dizer. Depois, fui eu quem retomou a conversa:

– Mas, voltando ao jumento que estava morrendo na estrada, quer dizer então que não era o animal que lutava para se manter vivo, mas era a vida que tentava manter aquele corpo funcionando, para continuar instalada nele?…

– Exatamente! Ela faz isso até com um homem que tente prender a respiração para morrer asfixiado. Antes que o homem morra, a vida o obrigará a respirar. Você já ouviu falar de alguém que tenha cometido suicídio apertando o próprio pescoço com as mãos? Não. Mesmo em uma pessoa que dispara um tiro contra o próprio coração, a vida continuará fazendo aquele corpo lutar para se manter vivo. Porque mesmo corpos complexos como os nossos estão submetidos aos desígnios da vida. E a finalidade da vida é viver.

Tive que concordar com ele que todas as formas de eliminação da vida das quais já ouvira falar voltam-se contra o corpo, nunca contra a energia vital que o anima. Cogitamos de casos graves de depressão, quando a pessoa perde totalmente a vontade de viver, mas concordamos que, somente depois que o corpo se debilita e órgãos importantes param de funcionar, a vida o deixa.

A essa altura, já havíamos entrado em Fortaleza. Shayeubad avisou-me que desembarcaria em um shopping center, em frente ao qual passaríamos dali a alguns minutos. Antes de nos despedirmos, ainda intrigado com toda aquela conversa, levantei uma última questão:

– Shay… Você sempre me pareceu ser espiritualista. Essa teoria da vida, como algo disperso no universo, e que se apropria dos corpos, não seria um tanto materialista?

– Quem tem tendência para o materialismo sempre encontrará razões para ser materialista – respondeu ele, de imediato, como se já esperasse a pergunta. – Não será a ideia da vida como algo independente dos corpos que irá mudar isso. Quanto a você, que tem formação cristã, não esqueça que, segundo a Bíblia, depois de fazer o homem do pó da terra, Deus soprou em seus narizes o fôlego da vida.

– Gênesis!

– Capítulo dois, versículo sete.

E desembarcou.

(*) Shayeubad é um amigo que há muitos anos aparece para conversar quando estou sozinho, mas costuma dizer algumas coisas que não entendo direito. Quando eu era criança, minha mãe dizia que ele era meu amigo imaginário e antes do final da minha adolescência deixaria de aparecer.


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