Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado domingo, 26 de março de 2017

UMA CRÔNICA ROUBADA
 

– Você tem uma crônica para me emprestar?

Quem me contou dessa prática foi Fernando Sabino. O mineiro disse-me que, no sufoco do prazo e diante da total e absoluta falta de assunto, costumava ligar para os amigos – Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos eram os, digamos, agiotas mais requisitados – solicitando o empréstimo de uma crônica. A recíproca também era verdadeira. Várias vezes teve que ceder breves histórias que serviram de brilhantes textos dos amigos.

Eles somente não ousavam incomodar o velho Rubem Braga. Paulo Mendes até que tentou. Apanhou o telefone e fez o desesperado pedido.

– E eu lá tenho crônica para emprestar a vagabundo! – respondeu um vetusto cronista batendo o telefone.

Desesperado para voltar a ocupar este espaço fubânico, e na ausência de cronistas a quem ligar e de um assunto qualquer que fugisse de nossa política prenhe de largas emoções, apelei para o roubo. Isso mesmo, roubei uma crônica e confesso o crime.

No final do ano passado, querendo prestar uma homenagem à Rádio Cultura dos Palmares, o editor Arnaldo Ferreira, das Edições Bagaço, me ligou. Tencionava fazer uma agenda para o ínclito sistema de comunicação. E pediu-me um texto. Escrevi uma crônica.

As condicionantes da vida, no entanto, murcharam o projeto e a crônica ficou quicando nos arquivos de meu computador.

Hoje lembrei da coitada.

Destarte, impoluto leitor, eu, ladrão de mim mesmo, apresentou-lhe a crônica roubada.

* * *

Palmares Falando com o Mundo

A rua se chamava Coronel Izácio, mas a gente só falava no Caminho Para Treze de Maio. Entre a repressão militar que se insinuava na possível bravura de um coronel que até hoje não sei de quem se trata e a liberdade da data festiva, vivíamos num Palmares lúdico, em um terreno de descobertas. E o edifício avermelhado, de fachada alta, com amplo auditório nos levava a imaginar o mundo que estava para além do horizonte de canaviais, para além da ponte de Japaranduba.

Todas as manhãs despertávamos às oito horas com o prefixo da Rádio Cultura dos Palmares, que não chegava a ser uma rádio, mas um serviço de alto-falante. Naquelas primeiras horas vinham as notícias lidas das páginas do Diário de Pernambuco. E ficávamos sabendo de mortes e tragédias e esperanças e tudo mais que o mundo podia oferecer às imaginações soltas e perdidas naquele microcosmo com cheiro e sabor permanentes de açúcar e injustiças e possibilidades de futuro.

Depois vinham as músicas de Marinês e sua Gente, Roberto Carlos e todos os outros ritmos que nos embalavam. Serra Grande era a melhor das aguardentes, mas eu Pitu e tu Pitu, todo mundo a se servir nas farras que então ensaiávamos, e a festa subitamente era interrompida. Todas as vezes que morria alguém de escol, para nosso desgosto, a rádio passava o dia a tocar música clássica. Uma chatice.

Então passávamos, carrancudos, naquele quase feriado, em frente ao prédio avermelhado na direção de Pirangi. Eu ainda não sabia o tanto que me deliciavam os acordes de Beethoven, Mozart, Bach.

Mas logo vinham outras festas.

O auditório, certa feita, abriu as portas para receber Waldick Soriano. Ele bebia durante a apresentação e soltava a voz em infinitos boleros. Ensaiávamos vaias e ríamos de tudo e de nada. Outro dia foi Nelson Gonçalves quem tomou conta do palco bebericando uma caneca que dizia ser café enquanto cantava largos sambas-canção. Teve uma senhora que se desentendeu com o cantor já não sei porque. Pouca atenção prestávamos a tudo. A vida era feita de outros prazeres e eu não sabia que havia um belo Brasil profundo embalado por vozeirões e boleros e canções e mágoas infindas. Vínhamos de três raças muito tristes, mas eu desconhecia tal fato.

Com prazer e expectativa fui ao auditório para ouvir de viva voz o Coronel Ludugero, um artista de Caruaru que ganhava o mundo falando com alegria de um Nordeste abissal, lírico e despido de tristezas. Um Nordeste que, adverso em suas configurações tradicionais, transformava homens em gênios artísticos. O Coronel passou mal e não conseguiu se apresentar. Saí dali frustrado e talvez indignado com quem dizia horrores do artista. Eu era tão somente um menino, mas começava a entender melhor o mundo à minha volta. E a compreensão foi tão concreta que protestei, anos depois, contra a vaia dada a Luís Gonzaga pelos medíocres de plantão na quadra do Colégio Diocesano.

Quando a Rádio Cultura se tornou de fato em uma rádio, destituindo os velhos alto-falantes e se enfronhando pelas ondas do Padre Landel de Moura, eu já não estava mais em Palmares, mas, como todo criminoso volta à cena do crime, sempre volto à cidade, as vezes apenas em memória e coração.

Numa dessas voltas ouvi Do Rego, logo de manhã cedo, despertando o povo com um chocalho, transpirando Nordeste por todos os poros. E ao meio-dia se ouvia o programa Combate caminhado à toa pelas ruas, pois todas as casas respiravam as notícias policiais.

Hoje não sei o que toca em suas ondas, mas lembro do espanto de seu Luiz, pai do escritor Luiz Berto, diante daquelas salas geladas e cheias de microfones. “Pra mim essa é a melhor rádio do mundo, mas eu também só conheça essa.” Para mim, que conheço outras tantas rádios, a Rádio Cultura dos Palmares é a melhor do mundo, pois trago na alma a herança que ela me legou.

Não chegava a ser uma rádio, era um serviço de alto-falante, mas nos emprenhava de cultura. Minha árvore de hoje é um tanto da semente que ela ontem regou.


Escreva seu comentário

Busca


Leitores on-line

Carregando

Arquivos


Colunistas e assuntos


Parceiros