Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis domingo, 25 de dezembro de 2022

UMA MULHER, UM NOCAUTE! (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

UMA MULHER, UM NOCAUTE!

Marcos Mairton

 

No dia 11 de fevereiro de 1990, James “Buster” Douglas, um boxeador até então praticamente desconhecido, surpreendeu o mundo: venceu o aparentemente imbatível Mike Tyson, detentor dos títulos mundiais de pesos pesados dos três principais organismos internacionais do boxe.

Tyson era um fenômeno. Destruía os adversários que encontrava pela frente. Suas lutas eram garantia de estádios lotados e picos de audiência na TV.

Mas, como a luta com Douglas aconteceu no Japão, muita gente no Brasil ficou sem assistir, por causa do fuso horário. Foi o que ocorreu comigo: fui a uma festa naquela noite de sábado e só no domingo pela manhã fiquei sabendo do resultado. Apaixonado que sempre fui pelo boxe, lamentei não ter visto o combate.

Calhou, porém, de acontecer que, no dia seguinte, eu passava pelo calçadão da Rua Liberato Barroso, no centro de Fortaleza, quando vi a luta sendo exibida em um televisor, na vitrine de uma loja de eletrodomésticos. A venda de videocassetes no Brasil estava em plena expansão, então o gerente havia gravado a luta e a estava exibindo como forma de atrair clientes.

Naquele tempo, eu era bancário e trabalhava das doze às dezoito horas, com quinze minutos de intervalo para o lanche. Havia saído para fazer uso dessa pausa, quando me deparei com a chance de ver a luta que havia perdido no fim de semana. Fiz um rápido cálculo da relação custo-benefício de me demorar por ali e decidi: ficaria sem meu repasto e ainda voltaria atrasado para o trabalho, mas veria a queda de Tyson. Afinal, em um tempo em que não tínhamos acesso a facilidades como TV a cabo e YouTube, quando é que eu teria oportunidade de ver aquela luta de novo?

Havia mais gente interessada em ver os dois lutadores trocando jabs, ganchos e cruzados. Logo se formou um grupo de espectadores na frente da vitrine. Embora naquele ponto do calçadão houvesse apenas um banco de praça, que não comportava mais que três pessoas, cada um ia se acomodando como podia. Dois jovens sentaram-se no chão, à frente do dito banco, enquanto outros três encostaram-se a um cesto de lixo. A maioria contava apenas com o apoio das próprias pernas. Com muito jeito, consegui um lugar escorado ao tal banco de praça, de três lugares, no qual, àquela altura, já estavam sentados cinco rapazes.

À medida que a luta continuava, muitas pessoas paravam para ver o que estava acontecendo, mas logo seguiam adiante. Apenas alguns homens, principalmente os mais jovens, é que acabavam ficando para ver o final. De qualquer modo, a cada round, o grupo de telespectadores aumentava.

Perto do final do oitavo assalto, já éramos mais de vinte. Um office-boy desatento cometeu o erro de passar entre nós e a vitrine, bem na hora em que Douglas pressionava Tyson contra as cordas. O protesto foi geral:

– Sai daí, abestado!

– Transparente!

– Vai passar na frente do cabaré da tua mãe!

O rapaz percebeu que estava incomodando e saiu dali rapidinho, ao som de uma sonora vaia. Não ficou claro se a vaia era para ele ou para Buster Douglas, que acabava de ir à lona, depois de receber um violento uppercut no queixo.

Agora já éramos mais de trinta. O office-boy seguiu o seu caminho e Douglas conseguiu se recuperar. A pequena multidão estava inquieta, os níveis de testosterona altos e subindo. O round nove já havia começado e a cada golpe dos lutadores, ouviam-se murmúrios, impropérios, choques de uma mão fechada contra a palma da outra mão. Parecia até uma transmissão ao vivo.

A expectativa aumentava. Enquanto os treinadores estavam novamente cuidando de seus pupilos e dando-lhes instruções, alguém lembrou que Tyson cairia no próximo assalto. Muitos de nós conversávamos sobre a luta como se fôssemos velhos amigos, embora nunca houvéssemos nos encontrado antes. Éramos como meninos desconhecidos a quem se entrega uma bola de futebol, capazes de passar horas jogando sem sequer saber os nomes uns dos outros.

Soou o gongo para o décimo assalto. Os lutadores levantaram de seus corners, aproximaram-se e trocaram alguns golpes. Douglas parecia mais determinado. Toda a nossa atenção estava voltada para a luta, quando, de repente…

Ela apareceu… Saindo, assim, do nada, como se houvesse se materializado ali mesmo… Veio andando lentamente, com o olhar voltado para a vitrine na qual assistíamos à luta, de forma que não dava para ver direito o seu rosto.

Mas quem estava preocupado com seu rosto, se havia tanto para admirar no restante do corpo? Corpo? Era um monumento! Tudo eram pernas, nádegas, peitos e sensualidade. Ainda mais com aquela blusa curtinha deixando à mostra a barriga, o umbigo… Uma sainha mais curta ainda, nos permitia admirar tudo o que podia ser visto das coxas para baixo e deduzir o que ficava encoberto dali para cima…

Aliás, que paradoxo ver que aquele pedaço de tecido era pequeno o suficiente para deixar tanta coisa à mostra, e grande o bastante para deixar tanta coisa oculta, a provocar nossa imaginação!

Mas, não me dedicarei a maiores detalhes quanto a descrições físicas. Dizer que era morena seria uma indelicadeza com as loiras, as negras, as ruivas… E vice-versa. Além do mais, o que importa a cor de sua pele ou a forma de seus cabelos? Era uma mulher fantástica e pronto, quem quiser que imagine a sua!

O que interessa é que continuou caminhando lentamente por aquele espaço sagrado que separava os lutadores de sua platéia, como se ignorasse totalmente nossa presença e não desse a menor importância para Mike Tyson e Buster Douglas.

Parecia concentrada em algo logo abaixo da TV, no chão da vitrine talvez. Parou e inclinou o tronco em uns quarenta e cinco graus, como se tentasse enxergar melhor algum detalhe do objeto de sua atenção, o qual até hoje não sei o que era. Lembro apenas que a inclinação de seu corpo fez com que a saia parecesse ainda mais curta.

Em pleno centro da cidade, no meio da tarde de uma segunda-feira, fez-se por alguns instantes um silêncio de igreja vazia. Até uma folha que caísse no chão seria ouvida naquele momento.

Mas nenhuma folha caiu. E nenhum de nós se moveu. Ficamos paralisados, vendo-a passar. Tenho certeza que muitos suspenderam a respiração por todo o tempo em que deslizou à nossa frente.

Alheia a tudo, ela continuou o seu caminho. Lentamente, despreocupadamente. Quando faltava apenas um passo para chegar à outra extremidade da vitrine, um engraçadinho saiu do transe em que se encontrava e soltou a voz:

– Aí tá certo, né? Pode é ficar passando pra lá e pra cá o dia todo que ninguém diz nada!

Foi o suficiente para nos libertar a todos. Uns gargalhavam, outros vaiavam, outros tantos aplaudiam. Um rapaz deu um tapa no ombro do outro e exclamou:

– Puta que pariu! O que é aquilo, meu irmão!?

O amigo limitou-se a abrir os braços e arregalar os olhos. Alguns chegaram a bater palmas cadenciadas e iniciar um coro de “Volta! Volta!”.

Acho que nessa hora ela percebeu que era a causadora daquele rebuliço, pois apressou o passo e afastou-se dali.

Então, quando nossa musa já praticamente sumia na multidão, olhei novamente para a TV e vi Mike Tyson caído. Engatinhava no ringue, em movimentos vacilantes como os de um bebê. Apoiou-se na mão esquerda, enquanto, com a direita, tentava recolocar o protetor na boca, mas o movimento era patético e inútil. A contagem chegava a dez. Estava derrotado. Restava-lhe como consolo apenas o abraço carinhoso do mediador do combate.

Quanto a mim, sabia que o melhor a fazer era voltar correndo para o trabalho e torcer para que meu chefe não houvesse percebido que eu havia prolongado demais o intervalo para o lanche.

(*) Escrevi essa crônica em 2010. Está no meu livro “Contos, crônicas e cordéis“, de 2012. Ao ver os anúncios da volta de Mike Tyson, em luta contra Roy Jones Jr., resolvi postá-lo novamente.


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