Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Leonardo Dantas - Esquina quarta, 22 de novembro de 2017

ZUMBI DOS PALMARES E OUTRAS RELIGIÕES NEGRAS DE PERNAMBUCO

A data comemorativa do Dia da Consciência Negra, em vinte de novembro, nos leva, forçosamente, a meditar sobre os horrores da escravidão e suas origens.

Desde os tempos bíblicos, como nos informa o livro do Gênesis, os vencidos eram tornados à condição de escravos, em troca de suas vidas. A escravidão era dessa forma, vista como um gesto “humanitário”, chegando a fazer parte de todos os grandes códigos da antiguidade, como o de Hamurabi, com especial enfoque no Direito Romano e nas Ordenações do Reino, que serviram de norma escrita ao mundo português até o século XIX.

Depois que Antão Gonçalves e Nunes Tristão capturaram os azenegues do Rio do Ouro, em 1441, a serviço do Infante D. Henrique de Portugal, as expedições portuguesas e espanholas transformaram-se em verdadeiras empresas, com objetivo de incrementar o comércio escravo, fixando na Costa da África várias feitorias, especialmente na região do Cabo Branco, estabelecendo-se posteriormente na ilha de Arguim (1448) e no Senegal (1460), com a finalidade de adquirir prisioneiros de tribos africanas, para transformá-los em escravos.

Na estimativa de Vitorino Magalhães Godinho, in Os descobrimentos e a economia mundial v. IV (Lisboa, 1981-83), citado por José Ramos Tinhorão, in. Os negros em Portugal – Essa presença silenciosa (Lisboa, 1988), foram importados como escravos berberes, árabes e negros africanos, entre 1448 e 1505, de 136.000 a 151.000 indivíduos.¹
Em Portugal, foram os escravos, inicialmente, destinados aos serviços domésticos e logo em seguida passaram a ser usados na florescente lavoura da cana-de-açúcar nas ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde.

Na América, a escravidão foi introduzida pelos espanhóis com os descobrimentos, havendo indícios de que nas naus comandadas por Cristóvão Colombo, em 1492, já houvesse escravo;² com regularidade, porém, a importação de negros só foi introduzida pelos espanhóis, a partir de 1501, em São Domingos. No Brasil, se comprova a existência de escravos a partir de 1531, na Capitania de São Vicente. Em Pernambuco, em carta escrita em 1539, dirigida ao rei D. João III, o donatário Duarte Coelho Pereira solicita autorização para a importação direta da costa da Guiné de 24 negros, a cada ano, quantidade que seria aumentada por D. Catarina, em 1559, para 120, mediante o pagamento de uma taxa reduzida, nada impedindo que outros negros aqui chegassem por outros caminhos. No testemunho dos jesuítas Antônio Pires (4.6.1552) e José Anchieta (1548), era comum a existência de escravos negros e índios em Pernambuco; a escravidão dos índios durou até o século XVII, quando foi extinta pela Bula do Papa Urbano VIII, de 22 de abril de 1639.

1. A Escravidão em Pernambuco

Escrevendo de Olinda, em 1584, o padre Fernão Cardim diz possuir Pernambuco 66 engenhos, com produção de açúcar estimada em 200 arrobas, sendo o porto do Recife visitado anualmente por 45 navios, o que proporcionava às famílias aqui residentes um fausto por vezes superior ao de Lisboa. Todos os demais cronistas do século XVI e início do século XVII são unânimes em confirmar o crescente progresso da Capitania Duartina, chegando frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, escrita na primeira metade do século XVII, a afirmar que era Pernambuco o mais nomeado e frequentado porto do Brasil, (1618), devendo render “perto de vinte mil cruzados e os direitos do açúcar” – produção estimada por Ambrósio Fernandes Brandão, in Diálogo das grandezas do Brasil, em 500 mil arrobas e cujo transporte para Europa era feito por cem naus fretadas por particulares.

 

Quando da invasão holandesa, em 14 de fevereiro de 1630, existiam em Pernambuco 121 engenhos, sendo o porto do Recife o mais frequentado da América Portuguesa.

Toda essa economia era naturalmente sustentada por braços cativos, introduzidos pelo colonizador com o beneplácito dos Reis de Castela e da Igreja Católica. Os escravos eram todos vistos como mouros e, como tais “infiéis”, para os quais o Papa Eugênio IV autorizou o “direito” de cativar. Justificava a Igreja de então, através de seus teólogos, que sobre os africanos de todas as raças recaía o preceito bíblico que, descendendo de Cã, estariam condenados à escravidão; como acentua o padre Manuel da Nóbrega:

Nasceram com este destino “que lhes veio por maldição de seus avós, porque estes cremos serem descendentes de Cã, filho de Noé, que descobriu as vergonhas de seu pai bêbado, e em maldição e por isso ficaram nus e têm outras mais misérias”, in Diário sobre a conversão do gentio, ed. do padre Serafim Leite, Lisboa 1954

Joaquim Nabuco, aos vinte anos, quando estudante da Faculdade de Direito do Recife, ao escrever o seu primeiro livro em 1870, A Escravidão, editado dentro desta Série Abolição, dá o seu testemunho:

… “eis como a religião penetra na vida do escravo; eis o resumido papel que desempenha casualmente o padre que atravessa a propriedade agrícola, que se senta à mesa do senhor, que se serve gratuitamente do serviço dos escravos, a quem não fala, a quem despreza. Em sua cumplicidade, tudo isto é horrível. E dizer-se que nos habituámos de tal forma ao crime, que ele nos parece uma condição natural da existência das duas raças. Eis o que se tornou o catolicismo abraçando a escravidão; os mosteiros encheram-se de escravos, não perseguidos, mas comprados; os bens das comunidades religiosas contaram-se por cabeças de homens e de gado. E, no entanto, eles, os frades, acreditam ainda que servem a Deus; seu misticismo todo aparente, é nenhum, porque não é só a corrupção que reina nos claustros, é também a ignorância, e o misticismo ainda que uma dedicação é também um sistema, não lhes deixa ver que ao passo que pretendem absorver-se em Deus pelo espírito… martiriza o próximo. Quantas vítimas não fizeram os conventos? Pactuando com a pirataria, quantas famílias inteiras não tiveram sob seu poder e não têm ainda hoje? Nem se nos diga que os escravos são bem tratados; não, as fazendas são arrendadas a diversos, eles têm escravos para alugá-los a senhores despóticos. Nem se exalte a caridade de certos conventos que libertam escravos… eles libertam os velhos, talvez libertem as crianças: mas o crime tem se perpetuado: hoje a mancha é muito negra, e a igreja brasileira do seio da qual Vieira advogara a liberdade dos Gentios, não devia manchar-se no comércio de carne humana; não devia arrastar seu manto puro das cinzas dos grandes crimes do catolicismo, a Inquisição e a noite de 24 de agosto de 1572, por entre as misérias da escravidão; hoje ela está poluída, e por isso é que nos ajuntamos àqueles que querem a extinção das ordens religiosas, enquanto a igreja não estiver separada do Estado: sim, porque os claustros que se tinham contaminado com a corrupção, que se tinham desprestigiado com a ignorância, tornaram-se diante de Deus e da civilização réus de um crime que não tem perdão, por vir dos ministros de Jesus, do grande mártir da liberdade. O crime todos o sabem. É a escravidão” (p.37).

É de Pedro Calmon o comentário:

Tudo era começar. Engenhos e tráfico. Canaviais e fabrico. Casas-grandes e escravidão. A partir dessa época [séc. XVI], muitos amadores se especializaram no negócio, as águas da Guiné e Angola se encheram de barcos ‘tumbeiros’ e o Brasil teve os escravos que quis. Inundação deles. Grossa e ininterrupta imigração de pau e corda. Milhares ao ano, e em número crescente. Negros adultos e crianças; mulheres, para produzir, e homens invalidados cedo pelas atrozes moléstias do seu e do nosso clima. A nódoa que se alastrava. Horror da navegação negreira. Crime organizado, pela forma da pilhagem. Desumanidade inaudita, pela torpeza da viagem. Deslocamento metódico de populações. A passagem, para a América, das sobras da África apanhadas um tanto ao acaso, desde o Senegal até Moçambique, para o lucro do vendedor, príncipe da costa, empresa de portugueses, ou as próprias famílias dos escravos, para a fortuna do traficante, que espantosamente ganhava, para a lavra e a conquista do Brasil”… 4

Era tanta a importância do trabalho escravo que o padre Antônio Vieira, em carta dirigida ao Marquês de Niza, datada de 12 de agosto de 1648, chega a afirmar:

– Sem negros não há Pernambuco!

Por essa época não somente as Américas, mas toda a Europa se entregara ao comércio de escravos da Costa da África. Nenhuma grande nação européia estava isenta da mancha da escravidão, no dizer de Augustin Cochin5, estendendo-se esta situação até os fins do século XVIII, às vésperas da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793).

2. A Escravidão no Brasil holandês

Os holandeses, a exemplo dos franceses e ingleses, já em 1612, eram grandes comerciantes de escravos, com feitorias instaladas na Guiné e em Mouree, onde levantaram o forte Nassau, tomado pelos ingleses em 1872. Os pastores da Igreja Reformada, a exemplo da Igreja Católica Romana, nunca tomaram qualquer posição contrária à escravidão dos de raça negra e, em que pesem as sucessivas recomendações do conselho eclesiástico, nunca se importaram com a instrução dos escravos nos ensinamentos da religião cristã.6

Instalados no Brasil, a partir de 1630, os holandeses procuraram intensificar o comércio negreiro, conquistando as fortalezas de São Jorge da Mina (1637) e São Paulo de Luanda (1641), em Angola, onde adquiriam os seus escravos na maioria das vezes em troca de gêneros e utensílios diversos. Segundo Hermann Wätjen, in Der Negerhandel in Westindien und Suedamerika, citado por José Antônio Gonsalves de Mello, os negros eram comprados na Guiné por quantias que variavam entre 12 e 75 florins e em Angola entre 38 e 55 florins, sendo vendidos no Brasil por 200 a 300 florins por peça – alguns por vezes alcançavam o dobro desses preços -; acrescentando ainda, o autor de Tempo dos Flamengos, uma informação deveras curiosa:

Os negros eram adquiridos, também, por meio de ‘certo buziozinho’ que tinha valor de dinheiro em Angola, onde eram chamados de ‘sumba’ (talvez o que os negros de Pernambuco chamam de ‘ofás’): carta do Conselho dos XIX ao Conde e Supremo Conselho, datada de Amsterdam, 4 de abril de 1640”7

Segundo a mesma fonte, as precárias condições de higiene, espaço (navios com o triplo de sua capacidade de lotação), de alimentação (faltava a água e a comida necessárias às longas travessias), transformavam os barcos usados no tráfico “em verdadeiros túmulos de pobres negros”, citando carta datada de 12 de junho de 1643, escrita no Recife e endereçada ao conselho dos XIX da Companhia das Índias Ocidentais, em Amsterdam, em que dos 554 negros embarcados no de Regenboge, faleceram 172 e dos 350 embarcados no Bruynyis, 109 faleceram.

A mortalidade dos negros trazidos como escravos da África pelos holandeses chegou a preocupar o conde João Maurício de Nassau que, segundo a mesma fonte, presta esta informação:

Vejo pelos registros, que embarcaram para o Brasil 6.468 escravos, no período de 7 de fevereiro de 1642 a 23 de julho de 1643, dos quais 1.524 faleceram; aproximadamente uma quarta parte dos embarcados. Resultado das más acomodações e da falta que se deve considerar indispensável”; in Relatório aos Estados Gerais (1644).8

Segundo Wätjen, o número de negros importados entre 1636 e 1645, pela Companhia das Índias Ocidentais, que detinha o monopólio desse comércio e tinha nele uma de suas maiores rendas, foi da ordem de 23.163 indivíduos.

3. A Guerra dos Palmares

Porém, não se pense que o negro aceitou a condição de escravo, por vezes imposta pelos seus próprios pais ou familiares, sem qualquer revolta. Muito pelo contrário, já em 1602 ao assumir o governo da Capitania de Pernambuco, nomeado que fora por Felipe III de Espanha com um salário anual de três mil cruzados (1:200$000), Diogo Botelho se preocupa com os negros dos Palmares e contra este envia uma força comandada por Bartolomeu Bezerra.9 Com a invasão holandesa e o consequente abandono dos engenhos pelos portugueses, aumentou o número de fugas de escravos, tornando-se os quilombos uma presença constante na documentação da época.

Havia, também, pequenos aldeamentos ou bandos de negros que roubavam e matavam pelos caminhos: os ‘boschnegeers’, contra os quais eram empregados capitães de campo brasileiros, já que os holandeses eram considerados incapazes para tal função […] Vários capitães de campo foram empregados a soldo. O próprio João Fernandes Vieira, então em plena ação para fazer fortuna, contratou com o governo holandês a captura de negros fugidos, ‘trazendo todos os que apanhar à presença dos membros desse Conselho e lhes serão vendidos à razão de 130 reais a peça’”10

Para com os fugitivos, o governo holandês sempre agiu com muita severidade, chegando a utilizar, a exemplo dos portugueses do século XVI, índios bravios no seu encalço, “mateiros e cruéis, senão nas caçadas ao homem – às vezes antropófagas…”11, a exemplo da expedição do capitão Roelof Baro, que se utilizou de cerca de cem tapuias na destruição do “grande Palmares”, conforme carta datada de Porto Calvo, 25 de janeiro de 1644, enviada ao conde de Nassau.

Contava ele que, pretendendo atacar o ‘pequeno Palmares’, achou-se imprevistamente em frente ao ‘grande Palmares’, que investiu em seguida. A luta pela posse do quilombo foi dura, tendo Baro contado cem negros quilombolas mortos. Do seu lado houve um morto e quatro feridos. O sítio foi incendiado, tendo sido feitos ali 31 prisioneiros, entre os quais sete índios tupis (brasileiros) e alguns mulatinhos (‘mulaetjens’). O quilombo estava cercado por duas ordens de estacadas e ‘era tão grande que nele moravam quase 1.000 famílias, além dos negros solteiros’. Em volta da estacada, havia muitas plantações de mandioca e um número prodigioso (‘wonderbaer’) de galináceos, embora não possuíssem qualquer outro animal de maior vulto, sendo que ‘os negros viviam ali do mesmo modo que viviam em Angola’ ”12

Outra expedição foi empreendida contra o quilombo dos Palmares em 1645, pelo capitão Jan Blaer, cujo diário, traduzido por Alfredo de Carvalho (RIAP nº 56, Recife 1902), foi publicado pelo autor destas notas in. Alguns documentos para a história da escravidão, Recife: Editora Massangana, 1988 (Série Abolição 11), com as correções que lhe foram feitas por José Antônio Gonsalves de Mello. Os quilombolas presos eram condenados pelos holandeses a penas de enforcamento, ou queimados vivos, como exemplo aos demais escravos.

Expulsos os holandeses em 1654, o quilombo dos Palmares, dominando a serra da Barriga no atual estado de Alagoas, voltou a crescer e a pôr em pânico os senhores rurais. Ocupava uma área, segundo Pereira da Costa, de 360 quilômetros, tendo por capital Macaco, com uma população estimada em 20.000 habitantes, o que obrigou o governador de Pernambuco, João da Cunha Souto Maior, a contratar os serviços do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, que se encontrava estabelecido na região, fazendo-se este representar pelo religioso carmelita frei André da Anunciação e pelo sargento-mor Cristóvão de Mendonça Arrais, em 3 de março de l687. Como envolvia compromissos da coroa portuguesa para com o “governador dos paulistas”, que pela cláusula quarta este teria “os quintos que das presas tocarem à Sua Majestade” ficando ainda, pela cláusula nona, com o direito de receber do rei de Portugal “quatro hábitos das três ordens”, o contrato teve que ser submetido à sanção real, o que veio a acontecer em Lisboa, em 7 de abril de 1693, sendo transcrito nos livros da Secretaria de Pernambuco em 29 de julho do mesmo ano.

Dom Domingos do Loreto Couto, em sua obra Desagravos do Brasil Glórias de Pernambuco, concluída em 1757, é dos nossos clássicos o que melhor descreve a guerra contra a República dos Palmares, sob a ótica dos vencedores, dizendo ter esta começado em 1631 e relacionando uma série de nomes de portugueses, brasileiros, índios e negros que tiveram destaque nos combates, muitos dos quais contemplados com mercês pela coroa portuguesa. Em sua obra, reeditada pelo autor destas linhas em 1981 (Coleção Recife, v. XI), o beneditino descreve com as cores próprias da época a batalha final, ocorrida em 14 de maio de 1695 entre as forças legalistas e os negros que defendiam a sua república, muitos dos quais ali nascidos em liberdade, como se estivessem sob o céu da África, a ela dedicando todo o capítulo 4º do Livro Oitavo (p. 539-546), extraindo-se dele a seguinte descrição:

Foram trazidos para o Recife os negros onde entraram a representar a sua desgraça o nosso triunfo. Todos os que eram capazes de fugir ou se rebelar, os transportaram para outras províncias do Brasil, e alguns se remeteram a Portugal. As mulheres, e crianças em quem não cabia a suspeita, ficaram em Pernambuco, chegando a todos o merecido castigo da sua rebelião, passando de uma vida liberta, a arrastar nas misérias de cativos, as cadeias de escravo” (p.545)13

4. O fim dos Palmares

Em carta datada de 14 de março de 1696, o governador de Pernambuco, Caetano de Mello e Castro, comunica a D. Pedro II, Rei de Portugal, “a notícia de haver conseguido a morte do Zombi” (sic), segundo documento do Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa) transcrito por Ernesto Ennes, in As Guerras dos Palmares (Rio: Ed. Nacional, 1938. p. 258), utilizando-se para isso de informes obtidos de pelo capitão André Furtado de Mendonça de um mulato a quem foi prometido o perdão em troca da denúncia do local onde se encontrava o líder negro.

Segundo o documento, Zumbi encontrava-se sem sua família, acompanhado tão somente de “vinte negros, dos quais mandou catorze para os postos das emboscadas que esta gente usa no seu modo de guerra, e indo com os seis que lhe restaram a se ocultar no sumidouro que artificiosamente havia fabricado, achou tomada a passagem; pelejou valerosa ou desesperadamente matando um homem, ferindo alguns e não querendo render-se nem os companheiros, foi preciso matá-los e só a um se apanhou vivo; enviou sê-me a cabeça do Zumbi que determinei se pusesse em um pau no lugar mais público desta Praça [Recife] a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam este imortal; pelo que se entende que nesta empresa se acabou de todo com os Palmares“…14

A escaramuça em que se deu a morte do líder negro aconteceu em 20 de novembro de 1695 (op. cit. p. 104-105), sendo as tropas repressoras comandadas pelo capitão André Furtado de Mendonça. A dificuldade nas comunicações fez com que a carta do governador de Pernambuco ao Rei de Portugal somente fosse enviada, em 14 de março do ano seguinte, por “um patacho que se destinava à Ilha da Madeira, e considerando que naquele porto pode estar navio que com maior brevidade chegue a essa Corte me pareceu não dilatar a Vossa Majestade a notícia de haver conseguido a morte do Zombi” (sic).

O “lugar mais público” da então povoação do Recife em 1695 era o Largo do Corpo Santo, onde se localizava a igreja-matriz da mesma invocação que, juntamente com aquele logradouro, veio desaparecer em 1913, quando das obras de remodelação do porto. Anos depois, naquele local, em 15 de fevereiro de 1710, veio a ser erguido o pelourinho da Vila de Santo Antônio do Recife, criada por carta régia em 19 de novembro do ano anterior. A hipótese de que a cabeça do Zumbi haveria sido exposta no atual Pátio do Carmo, como foi divulgado recentemente pela imprensa local, carece pois de fundamentação documental: Em 1695, o atual logradouro, ainda não urbanizado, era parte de “uma sesmaria de cem braças de salgado que cercavam em redondo”, local onde se construía o novo convento e igreja do Carmo, sob a direção do mestre Antônio Fernandes de Matos, obras que só vieram a ser concluídas em 1767 15.

Mas, a guerra contra os quilombos dos Palmares não havia terminado. O próprio Loreto Couto nos traz informações – op. cit. p. 458-461 -, sobre a destruição de um núcleo desses insurretos em 1697 e a ordem régia de 12 de janeiro de 1700, mandando fazer guerra a outros quilombos remanescentes.

No início do século XIX, o viajante inglês Henry Koster, então radicado em Pernambuco, anota a presença de escravos foragidos, cujos bandos punham a população em sobressalto, até nas proximidades do centro urbano do Recife.16

Glacyra Lazzari Leite estudando os antecedentes sociais da Revolução Republicana de 1817, ao tratar da problemática do elemento servil, conclui: “As histórias de assassinatos de proprietários por escravos faziam parte da vida quotidiana das pessoas e o medo pairava como algo ameaçador”; in Pernambuco 1817, Editora Massangana, Recife 1988, p. 106.

A presença dos quilombos em nossa região foi uma constante até os últimos dias da escravidão, como anteriormente demonstramos quando da publicação de Alguns documentos para a história da escravidão (op. cit.), nos relatórios sobre o quilombo de Goiana e a presença dos quilombos de Catucás.

Este último foi responsável, entre outros fatores, pela não fixação da primeira colônia de imigrantes alemães no Nordeste. Os colonos alemães, cujo desembarque fora desviado de Santa Catarina para o Rio Grande do Norte, vieram para o Recife, onde o então presidente da província, Tomás Xavier Garcia de Almeida, cumprindo o Aviso Ministerial de 28 de setembro de 1829, os localizou nas terras de Cova de Onça e Ferraz, situadas pouco depois da então povoação do Beberibe, bem próximas às matas do Catucá, onde estavam homiziados alguns escravos fugidos. A colônia, então com 200 pessoas, veio a ser dirigida pelo engenheiro alemão aqui radicado, João Bloem, que acomodou os colonos em seus respectivos lotes, em 1º de dezembro daquele ano. A colônia recebeu o nome de Santa Amélia, em homenagem à imperatriz Amélia de Leuthemberg, recentemente casada com o imperador D. Pedro I.

Sempre assediada pelos quilombolas das matas do Catucá, desprovida de homens em sua defesa, os colonos terminaram por ver assassinada a família Cristiani, em 1837, que residia em Cova de Onça. Em pânico, as famílias deixaram suas terras e retornaram ao Recife, retirando-se em sua maioria para o Rio Grande do Sul, onde voltaram a se estabelecer em São Leopoldo.17

Notas de Referência:

1 – TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal – Uma presença silenciosa. Lisboa: Ed. Caminho, 1988. p. 79-80.
2 – Cristóbal Colón: Los cuatro viajes. Testamento. Madri: Ed. de Consuelo Varela, Alianza Editorial, 1986. p. 12.
3 – Gênesis, IX, 27. Nabuco, Joaquim. A Escravidão. Recife: Editora Massangana, 1988. p. 71. Sobre o assunto consultar ainda: ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica da Guiné. Ed. Porto, 1837 e Lisboa, 1973, que, escrevendo no século XV, ao tempo do Rei D. Afonso V, avança na justificativa de que se impregnam os teólogos da Igreja Católica Romana de então e assim aceitar, pacificamente, a escravidão até o século XIX, quando o ex-bispo de Olinda e então arcebispo de Elvas, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo COUTINHO, afirmava que “os negros são condenados por Deus a serem escravos dos brancos”, in Analyse sobre a justiça do commercio do resgate dos escravos da costa da África, novamente revista e acrescentada pelo seu autor. Lisboa: Nova Oficina de João Rodrigues Neves, 1808.
4 – CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio, 1979. v. II. p. 346.
5 – COCHIN, Augustin. L’Abolition de l’esclavage. Paris, 1851, v. II p. 281.
6 – MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos – Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. 3ª ed. Recife: Ed. Massangana, 1987. p. 183: “Em 1638 não se punha mais resistência à escravidão de negros; o Conselho Eclesiástico ao pretender educar os escravos na religião reformada, achou dispensável ‘cogitar-se atualmente se é lícito a um cristão comprar e vender negros para escravizá-los’. E no mesmo ano já se diz: ‘sem escravo não é possível fazer alguma coisa no Brasil… e por nenhum modo podem ser dispensados: se alguém sentir-se nisto agravado, será um escrúpulo inútil’”.
7 – op. cit. p. 183. nota 27.
8 – op. cit. p. 181. nota 23.
9 – COSTA, F.A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Aditamentos e correções de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: FUNDARPE, 1983-1985. v. VII. p. 195 (Coleção Pernambucana 2ª fase).
10 – MELLO, José Antônio Gonsalves de. op. cit. p. 184.
11 – CALMON, Pedro. op. cit. p. 347.
12 – MELLO, José Antônio Gonsalves de. op. cit. p. 185-186. Vide ainda a obra de Gaspar BARLAEUS, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil etc., impressa em Amsterdam em 1647, traduzida para o português por Cláudio Brandão, que às p. 253-254 nos dá pormenorizada descrição dos quilombos dos Palmares. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980. (Coleção Recife v IV).
13 – COUTO, Domingos de Loreto (c 1696 – c 1762). Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 545 (Coleção Recife v. XI).
14 – ENNES, Ernesto. As Guerras nos Palmares – Subsídios para sua história. Rio: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 257-258; as circunstâncias e data precisa da morte do Zumbi, são abordadas pelo mesmo autor às p. 103-105, desmistificando assim a lenda do suicídio do líder negro (Brasiliana v. 127).
15 – MENEZES, José Luiz da Mota. (Org.) Atlas histórico e cartográfico da cidade do Recife. Recife: Prefeitura do Recife, FUNDAJ-Ed. Massangana, 1988. Vide ainda, sobre a construção do Convento do Carmo do Recife: MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um mascate e o Recife – A vida de Antônio Fernandes de Matos no período de 1671-1701. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 25-33 (Coleção Recife v. IX).
16 – KOSTER, Henry. Travels in Brazil. Londres, 1816. Esta obra foi traduzida para o português por Luiz da Câmara Cascudo e sua reedição publicada sob o título Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: SEC-Departamento de Cultura, 1978. v. XVII. (Coleção Pernambucana, 1ª fase).
17 – COSTA, F.A. Pereira da. op. cit. v. IX. p. 313-317.


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