Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas domingo, 09 de janeiro de 2022

UM DÍSTICO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM DÍSTICO

Machado de Assis

 

 

 

Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por inteiro.

 

Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na Rua de S. José, entre onze horas e meio-dia. Vi a alguma distância parado um homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata, pedinte de alguma irmandade, que era das Almas ou do Santíssimo Sacramento. Tal encontro era muito comum naqueles anos, tão comum que não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.

 

A primeira é que o pedinte falava com um pequeno, ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos passos, cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho — o pedinte era um velho, — mostrou então em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.

 

Não direi o assombro que me causou a vista do homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar, era a mesma fisionomia obsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever, sentada à porta da platéia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada, sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de lances, durante anos eternos.

 

Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:

 

Le matin catholique et le soir idolâtre,

Il dîne de l’église et soupe du théâtre.

 

Ri-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o jeito dos ombros do pai e do filho. O pequeno teria oito ou nove anos. Até os olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.

 

É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, le matin catholique, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço; mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai ele para a porta do deus Momo: et le soir idolâtre.

 

Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que merecesse ser posta em letra de impressão.

 

Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes. Não esqueçamos que era de manhã; le matin catholique. Fisicamente tirava duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me duas; o que não posso dizer é se eram de um ou dois mil-réis; podia ser até que cada uma tivesse o seu valor, e fossem três mil-réis, ao todo: ou seis, se uma fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos questões problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.

 

Fui andando e sorrindo de pena, porque estava adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui andando, mas duas vezes, voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava; da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua, depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: Para a missa...

 

Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do Sacramento, por não ter ouvido o resto, e não me lembrar também se a opa era encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais que textualmente esta parte do dístico: il dîne de l’église et soupe du théâtre.

 

De noite fui ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco, sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes, na mão, grave, calado, e sem remorsos.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 08 de janeiro de 2022

A PÉROLA ( CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A PÉROLA

Humberto de Campos

 

 

 

(APÓLOGO PERSA

 

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Em que se demonstra que a fraqueza humilde é mais proveitosa do que a grandeza arrogante.

 

Rugiam, lá em cima, os ventos tempestuosos do inverno, quando a gota d'água, trêmula e pura, se sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por um sopro mais forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina, voava a mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de súbito, precipitando-se na mesma direção, mugindo, rolando, redemoinhando, uma enorme tromba marinha, que abalava o céu com a fúria da sua carreira. Ao perceber a límpida gota assustada, a tromba monstruosa, — equóreo traço de união colocado entre o mar e as nuvens, — parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou, irônica:

 

— Aonde vais tu, miserável poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos perigosos do espaço, arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos ventos?

 

Trêmula, encolhida, assaltada por diferentes ondas de ventania, a gota límpida não pôde, sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:

 

— Já pensaste, acaso, no destino que te espera? O vento que nos conduz a ambas, arrasta-nos, furioso, para o oceano largo, que reboa, lá embaixo, clamando por nós. Ouves?

 

A gota d'água prestou atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria a terra, embaixo, reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como um bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas de encontro às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos braços da tempestade, chorava, gemia, guaiava, num tumulto de vozes desesperadas.

 

Percebendo o susto da gota humilde, a tromba insistiu:

 

— Lá embaixo, estão o meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um destino que é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu constituirei uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus vagalhões, as minhas espumas. Serão necessários dias talvez uma semana, para que as minhas águas sejam absorvidas pelo mar. E tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço de vaga, em um simples floco de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre, sem que fique, na terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!

 

— Meu Deus!... gemeu a gota d'água, apavorada, pálida, trêmula, no horror daquele extermínio próximo.

 

Nesse instante, um trovão contínuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do oceano. Rajadas formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a, abalando-a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido contrário, tomaram com o seu hálito a gota humilde, a mísera poeira de chuva, e, horas depois, serenada a tempestade, aparecia, de novo, ao sol, a face tranquila do mar.

 

Dias passaram-se, porém. E uma tarde, quando da tromba marinha já não existia, sequer, na memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na praia, dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota d'água do céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara das águas...


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 06 de janeiro de 2022

O DICIONÁRIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O DICIONÁRIO

Machado de Assis

 

 

 

Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.

- Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; - nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.

Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súbditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que reveleu igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súbditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, - comparação que o lisonjeou muito, - o segundo ministro, Omega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.

Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém resistia à sedução.

Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.

Concorreram ao certame, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.

Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.

Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:

- Nós, Alfa e Omega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.

Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado, as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.

- Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.

Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como assou? - Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.

Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:

 

O raro Apeles,

Rubens e Rafael, inimitáveis

Não se fizeram pela cor das tintas;

A mistura elegante os fez eternos.

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 05 de janeiro de 2022

A VIRGEM (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A VIRGEM

Humberto de Campos

 

 

 

 

Após aquela noite de festa, em que dançara desesperadamente com todos os rapazes que lhe pediam essa honra, amanheceu mademoiselle Beatriz com febre alta, e uma tosse forte, com grandes dores no peito. Chamados os Drs. Miguel Couto, Austregésilo e Aluísio de Castro, foi debalde que eles recorreram, em conjunto, às possibilidades da ciência: ao segundo dia a encantadora brasileirinha falecia, fazendo desfilar pela rua D. Mariana o mais suntuoso enterro de virgem que já se viu no bairro de Botafogo.

 

Quebrados, assim, os grilhões que a prendiam a este mundo de "fox-trots" e "maxixes", foi mlle. Beatriz tão alva como a de Dante, bater, sorrindo, à luminosa porta do céu. E foi um alvoroço, como dificilmente se imagina. Tratando-se de um acontecimento raro, e que se torna cada vez menos frequente, a recepção das virgens se reveste, no céu, de uma suntuosidade excepcional. Para ver, e saudar, de perto, a heroína, juntam-se no vestíbulo dos empíreo, agitando palmas de rosas, todos os bem-aventurados. E mal a recém-chegada põe o pé no batente florido, rompe por todo o Paraíso o coro dos anjos, cujas vozes se misturam, doces, meigas, comoventes, às das onze mil companheiras de Santa Úrsula.

 

Era essa a recepção que aguardava mlle. Beatriz, quando ia ficando tudo inutilizado por um incidente imprevisto. Anunciada pelos serafins, de longe, do carro de ouro das nuvens, a aproximação da venturosa, ordenou São Pedro que Santa Cecília e Santa Matilde o ajudassem no reconhecimento da nova eleita de Deus, estabelecendo a sua identidade. Para isso era preciso, entretanto, despojá-la da sua grinalda, dos seus enfeites, das suas complexas roupas terrenas, deixando patente, com a pureza do seu corpo, a inocência do seu coração.

 

Assim, porém, que principiou este serviço delicado, as santas recuaram, escandalizadas. E, entreolhando-se, chamaram São Pedro.

 

— A moça não é esta, meu santo!

 

O chaveiro correu, aflito, e fixando os olhos puros no corpo virginíssimo de Beatriz, indagou, espantado:

 

— De que foi que você morreu, minha filha?

 

— De pneumonia, meu santo!

 

O apostolo encarou-a, incrédulo, e insistiu:

 

— Você não está enganada, não?

 

— Não, senhor.

 

— Você não morreu em algum desastre de estrada de ferro, de alguma queda de aeroplano, de algum encontro de automóveis?

 

— Não, senhor! — teimou a moça, firme, sacudindo a cabeça.

 

— Que significam, então, — tornou o santo, — essas equimoses no seu colo, no seu estômago, no seu ventre, nas suas pernas como quem foi arrastada de bruços pelo calçamento?

 

Beatriz baixou os olhos negros pelo seu claro corpo maravilhoso, e, sorrindo:

 

— Ahn! Não é nada, não!

 

E explicou, com graça:

 

— É que eu morri, dois dias depois de um grande baile, em que dancei o tango com os rapazes mais elegantes do Rio de janeiro!

 

E, desatando a rir, entrou, entre os anjos, no céu...


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 03 de janeiro de 2022

O DESTINADO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O DESTINADO

Machado de Assis

 

 

 

 

Ao entrar no carro, cerca das quatro horas da manhã, Delfina trazia consigo uma preocupação grave, que eram ao mesmo tempo duas. Isto pede alguma explicação. Voltemos à primeira valsa.

 

A primeira valsa que Delfina executou no salão do coronel foi um puro ato de complacência. O irmão dela apresentou-lhe um amigo, o bacharel Soares, seu companheiro de casa no último ano da academia, uma pérola, um talento, etc. Só não acrescentou que era dono de um rico par de bigodes, e aliás podia dizê-lo sem mentir nem exagerar nada. Curvo, gracioso, com os bigodes espetados no ar, o bacharel Soares pediu à moça uma roda de valsa; e esta, depois de três segundos de hesitação, respondeu que sim. Por que hesitação? Por que complacência? Voltemos à primeira quadrilha.

 

Na primeira quadrilha o par de Delfina fora outro bacharel, o bacharel Antunes, tão elegante como o valsista, embora não tivesse o rico par de bigodes, que ele substituía por um par de olhos mansos. Delfina gostou dos olhos mansos; e, como se eles não bastassem a dominar o espírito da moça, o bacharel Antunes juntava a esse mérito o de uma linguagem doce, canora, todas as seduções da conversação. Em poucas palavras, acabada a quadrilha, Delfina achou no bacharel Antunes os característicos de um namorado.

 

— Agora vou sentar-me um pouco, disse-lhe ela depois de passear alguns minutos.

 

O Antunes acudiu com uma frase tão piegas, que não a ponho aqui para não desconcertar o estilo; mas, realmente, foi coisa que deu à moça uma idéia avantajada do rapaz. Verdade é que Delfina não tinha o espírito muito exigente; era um bom coração, excelente índole, educada a primor, amiga de bailar, mas sem largos horizontes intelectuais: — quando muito, um pedaço de azul visto da janela de um sótão.

 

Contentou-se, portanto, com a frase do bacharel Antunes, e sentou-se pensativa. Quanto ao bacharel, ao longe, defronte, conversando aqui e ali, não tirava os olhos da bela Delfina. Gostava dos olhos dela, dos seus modos, elegância, graça...

 

— É a flor do baile, dizia ele a um parente da família.

 

— A rainha, emendou este.

 

— Não, a flor, teimou o primeiro; e, com um tom adocicado: — Rainha dá idéia de domínio e imposição, ao passo que a flor traz a sensação de uma celeste embriaguez de aromas.

 

Delfina, logo que teve notícia desta frase, declarou de si para si que o bacharel Antunes era um moço de grande merecimento, e um digníssimo marido. Note-se que ela partilhava a mesma opinião acerca da distinção entre rainha e flor; e, posto aceitasse qualquer das duas definições, todavia achou que a escolha da flor e a sua explicação eram obra acertada e profundamente sutil.

 

Ora, em tais circunstâncias, é que o bacharel Soares pediu-lhe uma valsa. A primeira valsa era sua intenção dá-la ao bacharel Antunes; mas ele não apareceu então, ou porque estivesse no buffet, ou porque realmente não gostasse de valsar. Que remédio senão dá-la ao outro? Levantou-se, aceitou o braço do par, ele cingiu-lhe delicadamente a cintura, e ei-los no turbilhão. Pararam daí a pouco; o bacharel Soares teve a delicada audácia de lhe chamar sílfide.

 

— Na verdade, acrescentou ele, é valsista de primeira ordem.

 

Delfina sorriu, com os olhos baixos, não espantada do cumprimento, mas satisfeita de o ouvir. Deram outra volta, e o bacharel Soares, com muita delicadeza, repetiu o elogio. Não é preciso dizer que ele a conchegava ao corpo com certa pressão respeitosa e amorosa ao mesmo tempo. Valsaram mais, valsaram muito, ele dizendo-lhe coisas amáveis ao ouvido, ela escutando-o corada e delirante...

 

Aí está explicada a preocupação de Delfina, aliás duas, porque tanto os bigodes de um como os olhos mansos do outro iam com ela dentro do carro, às quatro horas da manhã. A mãe achou que ela estava com sono; e Delfina explorou o erro, deixando cair a cabeça para trás, cerrando os olhos e pensando nos dois namorados. Sim, dois namorados. A moça tentava sinceramente escolher um deles, mas o preterido sorria-lhe com tanta graça que era pena deixá-lo; elegia então esse, mas o outro dizia-lhe coisas tão doces, que não mereciam tal desprezo. O melhor seria fundi-los ambos, unir os bigodes de um aos olhos de outro, e meter esse conjunto divino no coração; mas como? Um era um, outro era outro. Ou um, ou outro.

 

Assim entrou ela em casa; assim recolheu-se aos aposentos. Antes de se despir, deixou-se cair em uma cadeira, com os olhos no ar; tinha a alma longe, dividida em duas partes, uma parte nas mãos de Antunes, outra nas de Soares. Cinco horas! era tempo de repousar. Delfina começou a despir-se e despentear-se, lentamente, ouvindo as palavras do Antunes, sentindo a pressão do Soares, encantada, cheia de uma sensação extraordinária. No espelho, pareceu-lhe ver os dois rapazes, e involuntariamente voltou a cabeça; era ilusão! Enfim, rezou, deitou-se, e dormiu.

 

Que a primeira idéia da donzela, ao acordar, fosse para os dois pares da véspera, nada há que admirar, desde que na noite anterior, ou velando ou sonhando, não pensou em outra coisa. Assim ao vestir, assim ao almoçar.

 

— Fifina ontem conversou muito com um moço de bigodes grandes, disse uma das irmãzinhas.

 

— Boas! foi com aquele que dançou a primeira quadrilha, emendou a outra irmã.

 

Delfina zangou-se; mas vê-se que as pequenas acertaram. Os dois cavalheiros tinham tomado conta dela, do seu espírito, do seu coração; a tal ponto que as pequenas deram por isso. O que se pergunta é se o fato de um amor assim duplo é possível; talvez que sim, desde que não haja saído da fase preparatória, inicial; e esse era o caso de Delfina. Mas enfim, cumpria escolher um deles.

 

Devine, si tu peux, et choisis, si tu l'oses.

 

Delfina achou que a eleição não era urgente, e fez um cálculo que prova da parte dela certa sagacidade e observação; disse consigo que o próprio tempo excluiria o condenado, em proveito do destinado. “Quando eu menos pensar, disse ela, estou amando deveras ao escolhido.”

 

Escusado é acrescentar que não disse nada ao irmão, em primeiro lugar porque não são coisas que se digam aos irmãos, e em segundo lugar porque ele conhecia um dos concorrentes. Demais, o irmão, que era advogado novo, e trabalhava muito, estava nessa manhã tão ocupado no gabinete, que nem veio almoçar.

 

— Está com gente de fora, disse-lhe uma das pequenas.

 

— Quem é?

 

— Um moço.

 

Delfina sentiu bater-lhe o coração. Se fosse o Antunes! Era cedo, é verdade, nove horas apenas; mas podia ser ele que viesse buscar o outro para almoçar. Imaginou logo um acordo feito na véspera, entre duas quadrilhas, e atribuiu ao Antunes o plano luminoso de ter assim entrada na família...

 

E foi, foi, devagarinho, até à porta do gabinete do irmão. Não podia ver de fora; as cortinas ficavam naturalmente por dentro. Não ouvia falar, mas um ou outro rumor de pés ou de cadeiras. Que diabo! Teve uma idéia audaciosa: empurrar devagarinho a porta e espiar pela fresta. Fê-lo; e que desilusão! viu ao lado do irmão um rapaz seco, murcho, acanhado, sem bigodes nem olhos mansos, com o chapéu nos joelhos, e um ar modesto, quase pedinte. Era um cliente do jovem advogado. Delfina recuou lentamente, comparando a figura do pobre-diabo com a dos dois concorrentes da véspera, e rindo da ilusão. Por que rir? Coisas de moça. A verdade é que ela casou daí a um ano justamente com o pobre-diabo. Leiam os jornais do tempo; lá está a notícia do consórcio, da igreja, dos padrinhos, etc. Não digo o ano, porque eles querem guardar o incógnito, mas procurem que hão de achar.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 02 de janeiro de 2022

VIOLETA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

VIOLETA

Raul Pompéia

 

 

 

Romance original brasileiro

... Étre maitre du bien et du mal, régler la vie, régler la societé, resoudre à la longue tous los problèmes du socialisme, apporter surtout des bases solides à la justice, en résolvant par l'expérience les questions de criminalité, n'est ce pas là étre les ouvriers les plus utiles et les pias moraux du travail humain?

E. ZOLA (Le Roman Experimental)

I

Um dia, sumiu-se a pequena Eva.

O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.

Tempo perdido, esforço baldado.

Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.

Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:

- Sabe da Vevinha?...

- Já ia perguntar isso mesmo...

E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.

Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma cousa que... devia contar ao sobrinho.

Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.

O marceneiro não se apercebia disso.

O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.

Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre. Estava abatido.

Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.

Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.

A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.

- Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!

Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido.

A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.

Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muchocho, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.

Entretanto a dor de Eduardo era maior.

O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.

A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro.

Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.

A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:

- De que ri-se?...

Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.

A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.

Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida.

Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.

Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia.

Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:

- Como sabe, minha tia?...

- O meu moleque viu...

- Será possível?...

- ... Viu...

Ah! se isto é verdade!

- ... O moleque viu...

O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dous parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:

- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...

- Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.

- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...

- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua...

O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...

O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.

Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.

- Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...

E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.

Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:

- ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...

- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...

- Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..

- Como?... perguntou-lhe esta.

- Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...

- O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...

- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...

- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...

- Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginásticos furtando uma criança, fraca, imprestável!...

Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.

- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...

- Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos.

O que está dizendo é um insulto.

- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor?

Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...

- Então, cale a boca... Se o seu moleque...

- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...

- Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!...

Não me demoro nem uma hora!...

Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja.

O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.

- São minhas! murmurou.

Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...

E fez um gesto com o punho cerrado.

II

No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma cousa curiosa. Depois da filha, o pai...

O que teria sucedido?

Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...

Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses.

Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.

Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia inda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.

- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.

Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.

Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.

Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha.

Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio.

Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.

Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.

Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.

- O Eduardo partiu...

Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito.

Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.

Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regímen) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.

Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro?

O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se cousa inútil.

Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:

"Querida Juliana."

"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.

Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...

Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos.

Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...

Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.

Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...

A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!

Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.

Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me tr9uxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.

Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha."

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 01 de janeiro de 2022

O LIMO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O LIMO

Humberto de Campos

 

 

 

Madame Costa Mafra particulariza-se na sociedade carioca pela originalidade das suas perguntas, que lhe colocam o marido, de vez em quando, nas piores situações. Roda em que ela se encontre, dissolve-se invariavelmente com uma das suas consultas inesperadas, a mais simples das quais poria em dificuldades, talvez, o mais hábil dos sofistas. Como, porém, todo veneno possui um antídoto, Dona Arabela tem, para neutralizar as suas perguntas indiscretas, as respostas irretorquíveis do conselheiro Brasilino do Amaral.

 

Desse duelo entre a inocência e a esperteza, ou, melhor, entre a ingenuidade e a experiência, fui eu próprio testemunha, há dias, no salão de chá do Jockey— Club, quando, a propósito do Sr. deputado José Bonifácio, que havíamos encontrado à porta, Madame Costa Mafra perguntou:

 

— Mas, é verdade, conselheiro: por que é que os homens têm o rosto ponteado de barba, de pelos irritantes e incomodatícios, quando as mulheres possuem, em geral, o delas macio, liso, limpo, sem um fio de cabelo?

 

O conselheiro olhou o Dr. Mafra, que o fitava suplicante, passou a mão pelas barbas veneráveis, e começou a explicar, com os olhos na toalha:

 

— Como a senhora sabe, o homem foi feito de barro, e a mulher foi tirada da sua costela.

 

— Isto eu sei.

 

— Pois, bem. Feito em primeiro lugar, com alguns punhados de barro umedecido, o homem foi posto a secar ao sol, como todas as obras de cerâmica. A senhora sabe, porém, que, todo barro molhado, quando não apanha sol convenientemente, cria limo; e foi o que aconteceu ao homem, cujo rosto, na ocasião de ser o corpo submetido ao fogo solar, ficou sombreado por um ramo de árvore, na oficina do Paraíso.

 

— E a mulher?

 

— A mulher, não. Tirada da costela do homem, e posta com o rosto para o sol, ficou naturalmente, com o cabelo apenas na cabeça, posta à sombra, mas, em compensação, sem o limo na face.

 

  1. Arabela descansou o queixo de bonequinha alemã no polegar e no indicador da mão esquerda, e, ao dar com os olhos no próprio braço de mármore posto a descoberto até a "avenida da ligação", insistiu:

 

— E em toda a parte aonde o sol não chegou, criou limo?

 

O conselheiro ia responder, mas, ao abrir a boca, fechou-a, de novo. É que, defronte dele, com a xícara suspensa e os olhos fuzilantes, o Dr. Mafra intimava, com significativos tremores na voz:

 

— Conselheiro, tome o seu chá...


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 30 de dezembro de 2021

O CONTRATO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O CONTRATO

Machado de Assis

 

 

Quem quiser celebrar um consórcio, examine primeiro as condições, depois as forças próprias, e, finalmente, faça um cálculo de probabilidades. Foi o que não cumpriram estas duas meninas de colégio, cuja história vou contar em três folhas de almaço. Eram amigas, e não se conheciam antes. Conheceram-se ali, simpatizaram uma com a outra, e travaram uma dessas amizades que resistem aos anos, e são muita vez a melhor recordação do passado. Josefa tinha mais um ano que Laura; era a diferença. No mais as mesmas. Igual estatura, igual índole, iguais olhos e igual nascimento. Eram filhas de funcionários públicos, ambas dispondo de um certo legado, que lhes deixara o padrinho. Para que a semelhança seja completa, o padrinho era o mesmo, um certo Comendador Brás, capitalista.

 

Com tal ajuste de condições e circunstâncias, não precisavam mais nada para serem amigas. O colégio ligou-as desde tenros anos. No fim de poucos meses de freqüência, eram as mais unidas criaturas de todo ele, a ponto de causar inveja às outras, e até desconfiança, porque como cochichavam muita vez sozinhas, as outras imaginavam que diziam mal das companheiras. Naturalmente, as relações continuaram cá fora, durante o colégio, e as famílias vieram a ligar-se, graças às meninas. Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu prometi escrever isto em três folhas de almaço; basta saber que tinham ainda pai e mãe. Um dia, no colégio, contavam elas onze e doze anos, lembrou-se Laura de propor à outra, adivinhem o quê? Vamos ver se são capazes de adivinhar o que foi. Falavam do casamento de uma prima de Josefa, e que há de lembrar a outra?

 

— Vamos fazer um contrato?

 

— Que é?

 

— Mas diga se você quer...

 

— Mas se eu não sei o que é?

 

— Vamos fazer um contrato: — casar no mesmo dia, na mesma igreja...

 

— Valeu! nem você casa primeiro nem eu; mas há de ser no mesmo dia.

 

— Justamente.

 

Bem pouco valor teria este convênio, celebrado aos onze anos, no jardim do colégio, se ficasse naquilo; mas não ficou. Elas foram crescendo e aludindo a ele. Antes dos treze anos já o tinham ratificado sete ou oito vezes. Aos quinze, aos dezesseis, aos dezessete tornavam às cláusulas, com uma certa insistência que era tanto da amizade que as unia como do próprio objeto da conversação, que deleita naturalmente os corações de dezessete anos. Daí um efeito certo. Não só a conversação as ia obrigando uma para a outra como consigo mesmas. Aos dezoito anos, cada uma delas tinha aquele acordo infantil como um preceito religioso.

 

Não digo se elas andavam ansiosas de cumpri-lo, porque uma tal disposição de ânimo pertence ao número das coisas prováveis e quase certas; de maneira que, no espírito do leitor, podemos crer que é uma questão vencida. Restava só que aparecessem os noivos, e eles não apareciam; mas, aos dezenove anos é fácil esperar, e elas esperavam. No entanto, andavam sempre juntas, iam juntas ao teatro, aos bailes, aos passeios; Josefa ia passar com Laura oito dias, quinze dias; Laura ia depois passá-los com Josefa. Dormiam juntas. Tinham confidências íntimas; uma referia à outra a impressão que lhe causara um certo bigode, e ouvia a narração que a outra lhe fazia do mundo de coisas que achara em tais ou tais olhos masculinos. Deste modo punham em comum as impressões e partiam entre si o fruto da experiência.

 

Um dia, um dos tais bigodes deteve-se alguns instantes, espetou as guias no coração de Josefa, que desfaleceu, e não era para menos; quero dizer, deixou-se apaixonar. Pela comoção dela ao contar o caso, pareceu a Laura que era uma impressão mais profunda e duradoura do que as do costume. Com efeito, o bigode voltou com as guias ainda mais agudas, e deu outro golpe ainda maior que o primeiro. Laura recebeu a amiga, beijou-lhe as feridas, talvez com a idéia de sorver o mal com o sangue, e animou-a muito a pedir ao céu muitos mais golpes como aquele.

 

— Eu cá, acrescentou ela; quero ver se me acontece a mesma coisa...

 

— Com o Caetano?

 

— Qual Caetano!

 

— Outro?

 

— Outro, sim, senhora.

 

— Ingrata! Mas você não me disse nada?

 

— Como, se é fresquinho de ontem?

 

— Quem é?

 

Laura contou à outra o encontro de uns certos olhos pretos, muito bonitos, mas um tanto distraídos, pertencentes a um corpo muito elegante, e tudo junto fazendo um bacharel. Estava encantada; não sonhava outra coisa. Josefa (falemos a verdade) não ouviu nada do que a amiga lhe dissera; pôs os olhos no bigode assassino e deixou-a falar. No fim disse distintamente:

 

— Muito bem.

 

— De maneira que pode ser que em breve estejamos cumprindo o nosso contrato. No mesmo dia, na mesma igreja...

 

— Justamente, murmurou Josefa.

 

A outra dentro de poucos dias perdeu a confiança nos olhos negros. Ou eles não tinham pensado nela, ou eram distraídos, ou volúveis. A verdade é que Laura tirou-os do pensamento, e espreitou outros. Não os achou logo; mas os primeiros que achou, prendeu-os bem, e cuidou que eram para toda a eternidade; a prova de que era ilusão é que, tendo eles de ir à Europa, em comissão do governo, não choraram uma lágrima de saudade; Laura entendeu trocá-los por outros, e raros, dois olhos azuis muito bonitos. Estes, sim, eram dóceis, fiéis, amigos e prometiam ir até o fim, se a doença os não colhe, — uma tuberculose galopante que os levou aos Campos do Jordão, e dali ao cemitério.

 

Em tudo isso, gastou a moça uns seis meses. Durante o mesmo prazo, a amiga não mudou de bigode, trocou muitas cartas com ele, ele relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia um laço íntimo. O bigode perguntou-lhe muita vez se lhe dava autorização de a pedir, ao que Josefa respondia que não, que esperasse um pouco.

 

— Mas esperar, o quê? inquiria ele, sem entender nada.

 

— Uma coisa.

 

Sabemos o que era a coisa; era o convênio colegial. Josefa ia contar à amiga as impaciências do namorado, e dizia-lhe rindo:

 

— Você apresse-se...

 

Laura apressava-se. Olhava para a direita, para a esquerda, mas não via nada, e o tempo ia passando seis, sete, oito meses. No fim de oito meses, Josefa estava impaciente; tinha gasto cinqüenta dias a dizer ao namorado que esperasse, e a outra não adiantou coisa nenhuma. Erro de Josefa; a outra adiantou alguma coisa. No meio daquele tempo apareceu uma gravata no horizonte com todos os visos conjugais. Laura confiou a notícia à amiga, que exultou muito ou mais que ela; mostrou-lhe a gravata, e Josefa aprovou-a, tanto pela cor, como pelo laço, que era uma perfeição.

 

— Havemos de ser dois casais...

 

— Acaba: dois casais lindos.

 

— Eu ia dizer lindíssimos.

 

E riam ambas. Uma tratava de conter as impaciências do bigode, outra de animar o acanhamento da gravata, uma das mais tímidas gravatas que tem andado por este mundo. Não se atrevia a nada, ou atrevia-se pouco. Josefa esperou, esperou, cansou de esperar; parecia-lhe brincadeira de criança; mandou a outra ao diabo, arrependeu-se do convênio, achou-o estúpido, tolo, coisa de criança; esfriou com a amiga, brigou com ela por causa de uma fita ou de um chapéu; um mês depois estava casada.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 29 de dezembro de 2021

ÚLTIMO CASTELO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

ÚLTIMO CASTELO

Raum Pompéia

 

 

 

Álvaro, o grande Álvaro devia realmente sucumbir, esmagado sob as ruínas d'alguma das soberbas construções levantadas à força de imaginação, em meio da noute dos seus sonhos.

Passava através da vida, absorto em concepções estranhas, olhar vago, observando sempre uma aparição espantosa, que ninguém via e que, para o sonhador, brotava do chão, viva, colorida, vibrante; e voava-lhe em torno, às vezes como um bando de pombas risonhas e festivas, às vezes como tristes pterodátilos infernais de pesado vôo e vastas asas negras! Com a variedade das aparições, variava igualmente a expressão do semblante do poeta, ora doce sorriso inexplicável de louco satisfeito, ora profundo pavor de visionário em êxtase de contemplações horrendas...

Pobre Álvaro!

A rua do Ouvidor conhecia bem os esgares extravagantes, os bracejamentos exagerados, espécie de caricatura violenta e inimitável de alta tragédia, que o saudoso Álvaro desempenhava febricitante em qualquer esquina, ao correr da palestra, como um desalmado, tomando os assuntos pelos cabelos, apunhalando-os no ar, com a fúria de uma eloqüência sanguinária, funambulesca, apoplética e atirando-os afinal, remoídos exangues, aos pés dos ouvintes, horrorizados e deslumbrados.

Álvaro dispunha verdadeiramente de um gênero de elocução como nunca se conheceu.

Criticava os dias e os fatos, evocando brutalmente as concepções poéticas do passado e os heroísmos arcaicos adormecidos nos museus da história. Verberava um ministro, atroando-lhe os ouvidos com o fragor épico das armaduras de Homero, ou pegava-lhe nas abas douradas do fardão e o lançava por cima de uma boa distância de séculos, coberto de motejos, ao riso escancarado dos crocodilos de Ganges.

E não somente nessa eloqüência tempestuosa irrompiam os vulcões do seu espírito. Ele era um poeta trovejante e indomável, que sabia talhar estrofes imortais em blocos de lava ainda quente, transpirando ainda a vitalidade renitente da ignição das crateras!

Liam-se aqueles versos, como se o livro escaldasse, como se as linhas do poema exalassem incêndio; e o leitor ofegava, sentindo na fronte a cálida irradiação da estranha obra, simultaneamente maravilhado e exausto.

Um cérebro construído desta sorte não pode necessariamente fraternizar com a parvoice poderosa e grosseira das misérias da vida. Há de viver em esfera superior, à parte, ou sucumbir, afogado em vulgaridade, nessa vulgaridade uniforme, imensa, que enche o quadro social e que é rasa como um pântano, estéril como um deserto...

O grande Álvaro, devia acabar, esmagado pelos escombros rodianos d'algum dos castelos da sua imaginação...

Álvaro sonhara muito, mesmo porque sonhará sempre. E vira muitos dos seus sonhos, sem mais a tinta azul e os nevoeiros da simples idealidade, palpara muitas das suas visões, acorrentando com uma força de vontade exaustiva e rara as dificuldades brutas do mundo hipogrifo possante da imaginação que possuía...

Uma vez, saciado da boêmia, sonhou ardentemente as alegrias do lar, as doçuras da família, os poemas vivos do amor conjugal, a paternidade e todos os enlevos que advêm...

Foi este castelo o mais rico que lhe agitou o espírito em toda a sua vida... Ter uma filha, que lhe dissesse a cada instante: papai! papai!, saltando-lhe aos joelhos, vestidinha de branco, com uma fita ao cabelo, ruidosa como as aves e meiga como os anjos!... Ter uma esposa adorável e adorada, que lhe prometesse, através de uma crepitação de beijos, outras filhinhas, uma ninhada de criaturas como a primeira... E toda aquela multidão de louros pequenos, cercando-o com o seu amor e com as suas risadas cândidas, bulhentas!

Álvaro entrou em campanha, para concretizar este sonho. Foi uma campanha memorável de ardor e entusiasmo.

E triunfou!

Uma bela manhã, as folhas noticiaram o casamento do poeta, desejando todas, uníssonas que, diante dos passos dos felizes noivos, houvesse sempre, interminável e franca, uma estrada de rosas e prosperidades.

Veio realmente a estrada; houve muitas rosas, muitas prosperidades...

Álvaro gozou a suprema doçura de ter um filho, um lindo filho corado e forte. Não se descrevem as explosões do poeta, os delírios, as febres que lhe acendeu n'alma aquele acontecimento. Já tinha um filho!...

Cada vez que narrava o caso a um amigo, uma ode faiscante fugia-lhe dos lábios, espantando os transeuntes, como o escândalo dum meteoro.

Infelizmente passaram as rosas, deixando apenas a coroa de espinhos dos entrelaçados galhos; e das prosperidades, apenas a saudosa recordação...

Álvaro descobriu que a esposa adorada o traía...

Pela primeira vez em sua acidentada existência o expansivo e estrepitoso rapaz conteve natural tendência do temperamento. Encarcerou heroicamente, no fundo do espírito, a tempestade rábida do desespero. Todas as erupções foram refreadas e passou-se no íntimo do poeta a convulsão incalculável que se daria, se um vulcão engolisse para as entranhas da terra os vômitos de fogo que lhe ferviam na boca.

Foi uma espécie de calcinação pelo abrasamento concentrado. O poeta sucumbiu.

A loquacidade vertiginosa do pobre Álvaro extinguiu-se de súbito. Sobre a mobilidade dramática do seu rosto, passou uma refrega de vento glacial, que lhe fixou na fisionomia um rictos congelado de espanto inalterável, profundo, e uma palidez fantástica de morto.

Ninguém houve que penetrasse o mistério daquela transformação. Álvaro sepultara em sua alma a desventura, como o cadáver duma ilusão trucidada. E os vermes deste cadáver roíam a vida ao poeta, e o poeta ocultava as dores no silêncio absoluto, como sob a discrição duma lápide de mármore.

Macerava-lhe, sobretudo, o espírito a fatalidade que resultava da catástrofe.

Sonhara viagens extraordinárias ao Egito, à Palestina, às Índias; e as tinha realizado; visitara as areias amarelas, cálidas e sem termo da planície africana, por onde trota o camelo, fustigado pelo sol, aspirando sôfrego as emanações do oásis distante; fora às florestas da Ásia, que o elefante percorre, dominado pelo cornaca, levando adiante a tromba poderosa, como uma serpente colossal cativa; vira o teatro das grandes cousas do passado, nas ruínas venerandas do oriente!... Sonhara deleitosas amantes, que soubessem abraçar como os polvos e como as deusas, amando e devorando, sequiosas e insaciáveis; sonhara o luxo europeu, abundante e caprichoso, o convívio dos grandes espíritos, a supremacia literária; e tudo tivera à mão, concreto e tangível...

Só aquele doce ideal da família, das venturas tranqüilas da paternidade, o mais santo enlevo do seu espírito sonhador e altaneiro é que havia de degenerar miseravelmente, numa vergonha atroz; só este ideal lhe havia de cair aos pés como um anjo prostituído!

Álvaro, desalentado, pediu socorro ao vício. Era mister aturdir-se. O jogo, a crápula, o vinho, qualquer cousa que atordoasse e aniquilasse! Contanto que lhe não fosse dado assistir em si mesmo ao desmoronamento que lhe destroçava as boas ilusões antigas.

Abandonou a casa. Vinha só de tempos a tempos, abraçar o filho.

Mais desembaraçada, então, dos tropeços que sempre aduz a presença do cônjuge, a esposa dava largas aos seus instintos alegres de borboleta.

Raciocinava, em satisfação à consciência, que era bien triste o marido. E tinha melancolias. Alguns amigos do tirano, compadecidos até à lágrima, dispensavam à vítima a mais terna e desinteressada proteção...

Extenuado de excesso e sofrimentos, o infeliz Álvaro enfermou gravemente. Foi bater a um hospital.

— Tem família? perguntaram-lhe.

— Não tenho família!

Numa triste enfermaria, povoada de gemidos e emanações infectas, esteve o doente algum tempo. Tinha delírios, de quando em quando, durante os quais relampeava por momentos um ou outro clarão do seu espírito, mortiço reflexo,. apenas, de sol posto.

E lá morreu.

Antes de morrer, ergueu-se; quis abandonar o leito. Contiveram-no. Estava mais branco que os lençóis, crescido os cabelos, a barba abundante. Barba e cabelo cercavam-lhe o rosto d'uma moldura negra, contrastando fortemente com o alvor da cútis e acentuando mais aquela palidez espantosa.

Olhou em roda do leito, movendo a cabeça, mas com os olhos parados.

Os enfermeiros em grupo observavam com assombro a atitude do extraordinário doente.

Álvaro sem articular um som, fez grande gesto com a mão, imperioso e solene, mandando embora os enfermeiros.

Os empregados do hospital afastaram-se dous passos e continuaram a ver.

O enfermo levantou a fronte, baixou-a depois lentamente, cravando um olhar, de través, terrível, num ponto do espaço; encolheu os ombros, contraiu os braços, crispando medonhamente os dedos. E descarregou toda essa violenta retração muscular num gesto único e supremo...

...............................................................

Ficou assim longamente, o braço direito, estendido para a frente, hirto, rijo e inexorável, apontando com o indicador nodoso e descarnado aquele objeto invisível que o seu olhar magnetizava e fulminava!...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 28 de dezembro de 2021

FORTUNATO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

FORTUNATO

Humbertode Campos

 

 

 

Em luta permanente com a adversidade, Fortunato segurou uma noite, entre as mãos, a cabeça da mulher e confessou o seu propósito:

- A fome, como tu vês, bate-nos à porta. Sem pão e sem amigos, a vida neste povoado é a mim de todo impossível. É preciso, pois, que eu me prive do teu carinho, e parta sozinho pelo mundo em busca de terra menos ingrata. Tudo que possuímos dar-te-á com certeza para uns vinte ou trinta meses. Com o teu trabalho honesto, poderás dilatar a utilidade desses recursos, fazendo-os durar cinco anos. Se dentro desse prazo, eu não tornar aos teus braços e ao teu amor, considera-te viúva, porque decerto eu morri.

Na manhã seguinte, após um esforço inaudito para libertar-se das cadeias de cristal e mármore que eram as lágrimas e os braços da esposa jovem, Fortunato punha às costas, preso ao seu cajado de caminhante uma trouxa com a roupa indispensável e desaparecia, limpando os olhos úmidos na manga da camisa grosseira na curva da estrada por onde passara há um ano, trazendo a noiva pela mão.

Errando de terra em terra, de fazenda em fazenda, eram-lhe companheiros por toda a parte o infortúnio impiedoso, a má sorte inclemente, os contratempos inevitáveis. Debalde se esforçava, infatigável, para juntar um pecúlio, amontoando algumas moedas com que levasse ao lar um pouco de felicidade e fartura. As suas tentativas mais tímidas, mais simples, mais modestas, eram sempre como uma árvore infeliz, cujas folhas fossem dispersadas ainda tenras por um sopro de tempestade.

Ao fim de quatro anos, porém, como por um milagre, tudo mudou. As moedas multiplicaram-se em seu bolso, acumulando-se, amontoando-se, como se a fortuna arrependida de tanta avareza se tivesse predisposto a compensar a usura anterior com um gesto de espantosa prodigalidade.

Meses depois, nas vésperas, quase, do prazo concedido à mulher, Fortunato encheu de moedas o seu grande surrão de couro, prendeu-o à cintura e, velho, barbado, desfigurado pelos sofrimentos inomináveis tomou a pé o caminho da terra natal. Ao cabo de quatro semanas, com os pés sangrando viu enfim, da curva da estrada por onde se fora cinco anos antes, a sua aldeia e o seu lar. Trôpego, magro, faminto, mas disposto mesmo assim a dar uma sensação de alegria à companheira querida, encaminhou-se de manso para a porta e bateu. Uma criança de quatro anos, linda e forte, em quem se repetiam os traços inolvidáveis da esposa, surgiu na sala pequenina e chamou para dentro:

- Papai!

- Heim? - respondeu do compartimento contíguo uma voz masculina.

- Aqui está um homem - informou alto a pequenita.

Fortunato cambaleou numa síncope, encostando-se ao portal para não cair. Antes que o dono da casa aparecesse, entregou o saco de ouro à criança, retomou o seu bordão de peregrino e partiu...


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 26 de dezembro de 2021

A CAUSA SECRETA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A CAUSA SECRETA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.

Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.

- Já aí vem um, acudiu alguém.

Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.

- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.

- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.

- Não, nunca o vi. Quem é?

- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.

- Não sei quem é.

Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.

Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.

- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.

Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.

O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.

Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.

Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.

- Sabe que estou casado?

- Não sabia.

- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.

- Domingo?

- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.

Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.

- Não, respondeu a moça.

- Vai ouvir uma ação bonita.

- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.

Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.

" Singular homem!" pensou Garcia.

Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

- Valeu? perguntou Fortunato.

- Valeu o quê?

- Vamos fundar uma casa de saúde?

- Não valeu nada; estou brincando.

- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.

Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.

Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.

- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.

No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.

- Mas a senhora mesma...

Maria Luísa acudiu, sorrindo:

- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...

Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.

- Deixe ver o pulso.

- Não tenho nada.

Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.

Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.

- Que é? perguntou-lhe.

- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

- Mate-o logo! disse-lhe.

- Já vai.

E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha  medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.

Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".

Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

- Fracalhona!

E voltando-se para o médico:

- Há de crer que quase desmaiou?

Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.

Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.

Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.

De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.

- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.

Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.

Olhou assombrado, mordendo os beiços.

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 25 de dezembro de 2021

TILBURI DE PRAÇA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

TILBURI DE PRAÇA

Raul Pompéia

 

 

 

Não encontraram por aí minha mulher?... É original. Desde que me casei... Eu por uma porta, ela por outra. Só nos encontramos uma vez frente a frente com vontade. Eu entrava por um lado, ela entrava por outro...

A nossa vida de casados é uma verdadeira questão aberta. Entrar e sair é tudo a mesma cousa. Acontece, porém, que ela está sempre fora e eu nunca estou dentro.

Já me disseram: Cuidado, João, tua mulher tem amantes... Eu estou de olho... Não há perigo. Olhem, aqui em casa eles não me passam a perna...

Na rua eu a espio... Onde ela entra entro eu atrás.

Casei, todos sabem, não foi por dinheiro: tenho os meus prédios. Casei por paixão, ou antes, por compaixão. Vi-a no seu véu tristezinho de viúva, com uns olhos pretos por baixo, que não tinham nada de luto, valha a verdade. Olhou para mim docemente. Eu tenho os meus prédios... Lembrei-me deles com orgulho, diante daquela formosíssima soledade. Comecei a gostar dela. Um homem depois de cinqüenta não namora; os dedos estão perros para o bandolim das serenatas, o luar dos balcões tem reumatismos. Desde que há meia dúzia de prédios, é logo casamento...

 

Foi o diabo... Logo na igreja, dei com a viuvinha olhando um convidado... Eu, viúvo de uma mulher como eu tive, boa, gorda, pacata, amiga do rapé e dos seus cômodos, casar com aquela figurinha saltitante, de olhos pretos, que logo ali, começava a pular-me fora do matrimônio... Estive quase a desmanchar tudo, na hora do recebo a vás... Não faz mal, pensei porém, gosto dela... que diabo! se casar com outra, não poderá suceder a mesma cousa? Vá! é um gosto ao menos. E atirei-me de cabeça no abismo... Matrimônio é assim. A primeira cousa que um marido deve comprometer é a cabeça... Para ficar logo atordoado. Senão, não casa...

Eu cravei um olhar na minha noiva.

Ia divina, num simples vestido roxo, que a vestia como se a despisse. Sorriu-me. Pareceu-me sentir, ao redor de mim, um turbilhão de abelhas douradas, brilhando e zumbindo. Casei-me...

Pois bem, daí para cá, é isto... eu por uma porta, ela por outra, em cabra-cega.

Às vezes, passamos um pelo outro. Ela a caminhar na sua vida, eu, na minha, espiando.

Ela sorri-me; eu disfarço, coro e vou seguindo para adiante.

Ora, meus senhores, não me dirão como hei de pegar minha mulher? ~ isto: Tempo-será-de-min-c-o-có!... Toda a vida.

Quanto a amantes, ela não tem. Isto eu lhes juro...

Vem cá em casa o tipo da igreja, o tal convidado do olhar... Mas eu estou de olho... Ele é bonitote, correto, conversa, graceja, tem uma maneirazinha faceira de não fazer caso de cousa nenhuma, como um filósofo.

Fuma um charuto de primeira qualidade, de linda fumaça azul, que faz letras no ar... Às vezes mesmo, em minha casa, ele recosta-se no terraço e fica a ler com uma expressão faceira, meio adormecido, as letras de fumo na atmosfera calma da tarde.

Até eu fico seduzido e aceito um charuto dos dele, e fico a fumar, ouvindo os bambus, as cigarras... Minha mulher, calada, ao nosso lado, ouve, como eu, as cigarras, e os bambus, conjugalmente. Mas eu conheço que ela gosta mais, extraconjugalmente, de ver as letras azuis do meu amigo. Assim ficamos, os três, recostados nas chaises-longues, bebendo crepúsculo.

Ela é a primeira que se levanta.

- Que insipidez! exclama. Ora a gente aqui calada, a ver fumaça de charuto!

E, então, agita-se como uma pata que sai da água, como um belo cisne, devia eu dizer, que acabasse de sair daquele imenso lago de morbidez em que nos perdíamos.

- Vamos passear! Vamos passear!

E, então, com uma graça que não sei com que comparar, põe-se a desfazer com o leque as letras azuis dos charutos.

Ah! a diabinha adorável! e não haver meio de eu encontrá-la!... Ora, será porque eu não lhe agrado? Mas há agrado que eu, mesmo de longe, não lhe faço... Será porque eu não sou bastante?... Mas, que diabo! ela daquele tamaninho...

Mas, reatando, o tal amigo, das letras azuis, namora-a, namora-a, não há dúvida: mas é só namoro garanto-lhes... Depois, depois...

Depois eu estou de olho...

Não tenho repartição que me prenda... não tenho obrigação de hora certa... tenho os meus prédios... Posso espiá-la dia e noite... Não! amante ela não tem, posso afirmar... Pois se nem a mim mesmo ela quer!... É o seu mal... Quanto ao mais, é só passear, passear. O que a perde é o passeio.

Mas por que não nos encontramos nós no matrimônio? Por que diabo ela quebra esquina, quando me vê em frente e deixa-me com cara de burro em plena rua-da-amargura, em plena rua-do-sacramento, devera eu dizer?!...

 

Já visitei uma sonâmbula:

Por que não há meio de encontrar minha mulher?

- Espie, disse-me ela.

- Tenho espiado... Ainda, outro dia, entrou ali numa modista, onde vai muito... Perguntei por ela. Acabava de sair pelo outro lado. A casa tem duas frentes. Examinei... O lugar mais sério deste mundo!... Daí a pouco, um amigo, (o mesmo das fumaças, por sinal) disse-me que tinha estado ali com ela, que a vira ensaiando um chapéu...

Contei à cartomante a nossa vida, mais ou menos, a minha vigilância...

A tal pitonisa era uma esperta gorducha, de bochechas vermelhas e grande pasta de cosmético na testa como uma aba de boné... Sorriu-se. Retirou-se a deitar cartas, num gabinete obscuro. De volta, falou-me simbolicamente, com alguma pimenta de malícia na voz.

- Meu senhor, o coração da mulher é uma cousa complicada. Não se pode estudar e definir de uma só maneira, mas no ponto da sua consulta, eu creio que não erro, com esta exposição da minha experiência: Há corações fechados que são como portas de que se perde a chave. Ninguém lhes entra, sem que um milagre da sorte ensine como. Então, é a imensa ventura. Há corações de uma só porta, como as casas seguras, onde a gente entra, sem custo instala-se, faz família dentro, e aí chega a netos tranqüilamente. Há corações de duas portas, que dão entrada a um afeto pela frente, diante da sociedade; a outro afeto pelos fundos, diante da indiscrição da Candinha e seus filhos. O segredo destes amores de acordo é possível; mas, às vezes, mesmo sem segredo eles são felizes. Há corações hotéis, onde todo o mundo entra, escandalosamente, quase simultaneamente, pagando à parte o seu cômodo, sem grande intriga, nem ciúmes. Há corações bodegas, que é um horror...

Mas, há uma espécie curiosa de corações, um produto das sociedades desenvolvidas, para a qual chamo a sua atenção: é o coração volante, e o coração rodante, que aceita amor, mas que não fixa, daqui para ali, a tanto por hora, a tanto por mês, o coração tílburi de praça, que aceita o passageiro em qualquer canto, que dobra a esquina, que corre, que pára, que vem, que desaparece, que passa pela gente às vezes, juntinho, sem que se possa ver quem vai dentro...

Eu compreendi vagamente. A cartomante queria chamar minha mulher de tílburi. Ora minha mulher um tílburi!...

Pedi que esclarecesse.

- Nada mais lhe digo. Saiba entender...

Ora bolas!... E, fiquei na mesma, com a metáfora da consulta e com a minha querida mulher que eu não tenho, que é entrar eu por uma porta ela sair por outra, como um fim de história de meninos.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 24 de dezembro de 2021

A BARONESA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A BARONESA

Humberto de Campos

 

 

 

Um médico ilustre, de incontestável influência no seio da família carioca, está utilizando, ultimamente, o seu prestigio pessoal para que as senhoras eliminem, de uma vez, o hábito de pintar os cabelos. Acha ele que uma cabeça alva, ou, pelo menos, polvilhada de prata, é um sinal de insubstituível respeitabilidade, que se não pode, de modo nenhum, esconder ou disfarçar. E tamanho tem sido o resultado dessa campanha metódica, persistente, silenciosa, contra a vaidade feminina, que sobem a dezenas, já, as senhoras que se reconciliaram com o destino, conformando-se com as consequências inevitáveis da idade.

 

Esse costume de mudar a cor dos cabelos não é, entretanto, um vício dos nossos tempos. As atenienses conheceram-no, conheceram-no as mulheres de Veneza, criadoras do "louro veneziano", e não houve corte européia posterior à Renascença em que não se procurasse um processo de ocultar à curiosidade do mundo, sempre impiedoso, a neve que nos avisa, alvejando-nos a cabeça, que é chegado, enfim, o triste inverno da vida... Há trinta anos, ainda, era isso em voga no Rio de janeiro. E era sobre isso mesmo que eu meditava, uma destas tardes, ao despedir-me da minha veneranda amiga a Sra. Baronesa de Caçapava, cujos oitenta e seis anos constituem, em nossos dias, uma das relíquias mais preciosas da mais alta sociedade do Império.

 

Estendida na sua "chaise-longue", com os pés, pequeninos e engelhados como duas flores murchas, abrigados sob uma delicada toalha de seda, a boníssima titular sorria, carinhosa, com a sua boca muito pequena, escondida em um dos vales do rosto recortado de rugas, quando eu lhe falei nos inícios do nosso conhecimento.

 

— O senhor andava pelos trinta anos; não era, conselheiro?

 

Eu fiz as contas, mentalmente, embaraçando-me nos algarismos.

 

— Não estou certo, Sra. Baronesa; não estou certo — respondi. — Recordo-me, porém, que, certa vez, ao vê-la, fiquei impressionadíssimo com a sua figura. A Sra. Baronesa, nesse tempo, lembro-me bem, tinha o rosto ainda moço, mas apresentava na cabeça, já, acentuando a sua beleza, numerosos fios de prata.

 

— Foi em 1871, — confirmou a velha fidalga, sorrindo benevolamente com a sua boquita de criança, encolhida e funda, privada de todos os dentes. — Foi em 1871; eu tinha, então, trinta e sete anos.

 

— De outra vez que a vi, — tornei, — o que mais me impressionou foi, ainda, a beleza do seu cabelo. A sua cabeleira, sempre farta, abundante, maravilhosa, era, ainda, inteiramente negra.

 

A Baronesa olhou-me novamente, com um sorriso de saudade, que era um doce perdão para nós ambos, e acentuou, bondosa:

 

— Foi em 1880; eu tinha quarenta e seis...

 

E, olhando-me significativamente, pediu-me, com a vergonha brilhando, como uma brasa, na cinza fria dos olhos:

 

— Cubra-me os pés, conselheiro; sim?


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 22 de dezembro de 2021

O CASO DO ROMUALDO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O CASO DO ROMUALDO

Machado de Assis

 

 

 

Um dia, de manhã, D. Maria Soares, que estava em casa, descansando de um baile para ir a outro, foi procurada por D. Carlota, companheira antiga de colégio, e sócia agora da vida elegante. Considerou isso um benefício do acaso, ou antes um favor do céu, com o fim único de lhe matar as horas aborrecidas. E merecia esse favor, pois de madrugada, ao voltar do baile, não deixou de cumprir as rezas do costume, e, logo à noite, antes de ir para o outro, não deixará de persignar-se.

 

  1. Carlota entrou. Ao pé uma da outra pareciam irmãs; a dona da casa era, talvez, um pouco mais alta, e tinha os olhos de outra cor; eram castanhos, os de D. Carlota pretos. Outra diferença: esta era casada, D. Maria Soares, viúva: — ambas possuíam alguma coisa, e não chegavam a trinta anos; parece que a viúva contava apenas vinte e nove, posto confessasse vinte e sete, e a casada andava nos vinte e oito. Agora, como é que uma viúva de tal idade, bonita e abastada, não contraía segundas núpcias é o que toda a gente ignorou sempre. Não se pode supor que fosse fidelidade ao morto, pois é sabido que ela não o amava muito nem pouco; foi um casamento de arranjo. Talvez não se pode crer que lhe faltassem pretendentes; tinha-os às dúzias.

 

— Você chegou muito a propósito, disse a viúva a Carlota; vamos falar de ontem... Mas que é isso? que cara é essa?

 

Na verdade, a cara de Carlota trazia impressa uma tempestade interior; os olhos faiscavam, e as narinas moviam-se deixando passar uma respiração violenta e colérica. A viúva insistiu na pergunta, mas a outra não lhe disse nada; atirou-se a um sofá, e só no fim de uns dez segundos, proferiu algumas palavras que explicaram a agitação. Tratava-se de um arrufo, não briga com o marido, por causa de um homem. Ciúmes? Não, não, nada de ciúmes. Era um homem, com que ela antipatizava profundamente, e que ele queria fazer amigo da casa. Nada menos, nada mais, e antes assim. Mas por que é que ele queria relacioná-lo com a mulher?

 

Custa dizê-lo: ambição política. Vieira quer ser deputado por um distrito do Ceará, e Romualdo tem ali influência, e trata de fazer vingar a candidatura do amigo. Então este, não só quer metê-lo em casa — e já ali o levou duas vezes — como tem o plano de lhe dar um jantar solene, em despedida, porque o Romualdo embarca para o Norte dentro de uma semana. Aí está todo o motivo do dissentimento.

 

— Mas, Carlota, dizia ele à mulher, repara que é a minha carreira. Romualdo é trunfo no distrito. E depois não sei que embirração é essa, não entendo...

 

Carlota não dizia nada; torcia a ponta de uma franja.

 

— O que é que achas nele?

 

— Acho-o antipático, aborrecido...

 

— Nunca trocaram mais de oito palavras, se tanto, e já o achas aborrecido!

 

— Tanto pior. Se ele é aborrecido calado, imagina o que será falando. E depois...

 

— Bem, mas não podes sacrificar-me alguma coisa? Que diabo é uma ou duas horas de constrangimento, em benefício meu? E mesmo teu, porque, eu na Câmara, tu ficas sendo mulher de deputado, e pode ser... quem sabe? Pode ser até que de ministro, um dia. Desta massa é que eles se fazem.

 

Vieira gastou uns dez minutos em sacudir diante da mulher as pompas de um grande cargo, uma pasta, ordenanças, fardão ministerial, correios do paço, e as audiências, e os pretendentes, e as cerimônias... Carlota não se abalava. Afinal, exasperada, fez ao marido uma revelação.

 

— Ouviu bem? O tal seu amigo persegue-me com os olhos de mosca morta, e das oito palavras que me disse, três, pelo menos, foram atrevidas.

 

Vieira ficou alguns instantes sem dizer nada; depois começou a mexer com a corrente do relógio, afinal acendeu um charuto. Estes três gestos correspondiam a três momentos do espírito. O primeiro foi de pasmo e raiva. Vieira amava a mulher, e, por outro lado, cria que os intuitos do Romualdo eram puramente políticos. A descoberta de que a proteção da candidatura tinha uma paga, e paga adiantada, foi para ele um assombro. Veio depois o segundo momento, que foi o da ambição, a cadeira na Câmara, a reputação parlamentar, a influência, um ministério... Tudo isso atenuou a primeira impressão. Então ele perguntou a si mesmo, se, estando certo da mulher, não era já uma grande habilidade política explorar o favor do amigo, e deixá-lo ir-se de cabeça baixa. Em rigor, a pretensão do Romualdo não seria única; Carlota teria outros namorados in petto. Não se havia de brigar com o mundo inteiro. Aqui entrou o terceiro momento, o da resolução. Vieira determinou-se a aproveitar o favor político do outro, e assim o declarou à mulher, mas começou por dissuadi-la.

 

— Pode ser que você se engane. As moças bonitas estão expostas a serem olhadas muita vez por admiração, e se cuidarem que já isso é amor, então nem podem mais aparecer.

 

Carlota sorriu com desdém.

 

— As palavras? disse o marido. Não podiam ser palavras de cumprimento? Podiam, decerto...

 

E, depois de um instante, como lhe visse persistir o ar desdenhoso:

 

— Juro que se tivesse a certeza do que me dizes, castigava-o... Mas, por outro lado, é justamente a vingança melhor; faço-o trabalhar, e... justamente! Querem saber uma coisa? A vida é uma combinação de interesses... O que eu quero é fazer-te ministra de Estado, e...

 

Carlota deixou-o falar, à toa. Como ele insistisse, ela prorrompeu e disse-lhe coisas duras. Estava sinceramente irritada. Gostava muito do marido, não era loureira, e nada podia agravá-la mais do que o acordo que o marido procurava entre a conveniência política e os sentimentos dela. Ele, afinal, saiu zangado; ela vestiu-se e foi para a casa da amiga.

 

Hão de perguntar-me como se explica que, tendo mediado algumas horas, entre a briga e a chegada à casa da amiga, Carlota ainda estava no grau agudo da exasperação. Respondo que em alguma coisa há de uma moça ser faceira, e pode ser que a nossa Carlota gostasse de ostentar os seus sentimentos de amor ao marido e de honra conjugal, como outras mostram de preferência os olhos e o método de mexer com eles. Digo que pode ser; não afianço nada.

 

Ouvida a história, D. Maria Soares concordou em parte com a amiga, em parte com o marido, posto que, realmente, só concordasse consigo mesma, e acreditasse piamente que o maior desastre que podia suceder a uma criatura humana, depois de uma noite de baile, era entrar-lhe em casa uma questão daquelas.

 

Carlota tratou de provar que tinha razão em tudo, e não parcialmente; e a viúva diante da ameaça de maior desastre, foi admitindo que sim, que afinal quem tinha toda a razão era ela, mas que o melhor de tudo era deixar andar o marido.

 

— É o melhor, Carlota; você não está certa de si? Pois então deixe-o andar... Vamos nós à Rua do Ouvidor? ou vamos mais perto, um passeiozinho...

 

Era um meio de acabar com o assunto; Carlota aceitou, D. Maria foi vestir-se, e daí a pouco saíram ambas. Vieram à Rua do Ouvidor, onde não foi difícil esquecer o assunto, e tudo acabou ou ficou adiado. Contribuiu para isso o baile da véspera; a viúva alcançou finalmente que falassem das impressões trazidas, falaram por muito tempo, esquecidas do resto, e para não voltar logo para a casa, foram comprar alguma coisa a uma loja. Que coisa? Nunca se soube claramente o que foi; há razões para crer que foi um metro de fita, outros dizem que dois, alguns opinam por uma dúzia de lenços. O único ponto liquidado é que estiveram na loja até quatro horas.

                                                                                                                                 

Ao voltar para casa, perto da Rua Gonçalves Dias, Carlota disse precipitadamente à amiga:

 

— Lá está ele!

 

— Quem?

 

— O Romualdo.

 

— Onde está?

 

— É aquele de barbas grandes, que está coçando o queixo com a bengala, explicou a moça olhando para outra parte.

 

  1. Maria Soares relanceou os olhos pelo grupo, disfarçadamente, e viu o Romualdo. Não ocultou a impressão; confessou que era, na verdade, um sujeito antipático; podia ser trunfo em política; em amor, devia ser carta branca. Mas, além de antipático, tinha um certo ar de matuto, que não convidava a amá-lo. Elas foram andando, e não escaparam ao Romualdo, que vira Carlota e veio cumprimentá-la, afetuoso, posto que também acanhado; perguntou-lhe pelo marido, e se ia naquela noite, ao baile, disse também que o dia estava fresco, que tinha visto umas senhoras conhecidas de Carlota, e que a rua parecia mais animada naquele dia do que na véspera. Carlota foi respondendo com palavras frouxas, entre dentes.

 

— Exagerei? perguntou ela à viúva no bond.

 

— Qual exageraste! O sujeito é insuportável, acudiu a viúva; mas, Carlota, não te acho razão na zanga. Pareces criança! Um sujeito assim não faz zangar ninguém. A gente ouve o que ele diz, não lhe responde nada, ou fala do sol e da lua, e está acabado; é até um divertimento. Já tive muitos do mesmo gênero...

 

— Sim, mas não tens um marido que...

 

— Não tenho, mas tive; o Alberto era do mesmo gênero; eu é que não brigava, nem lhe revelava nada; ria-me. Faze a mesma coisa; vai rindo... Realmente, o sujeito tem um olhar espantado, e quando sorri fica mesmo com uma cara de poucos amigos; parece que sério é menos carrancudo.

 

— E é...

 

— Bem vi que era. Ora zangar-se a gente por tão pouca coisa! Demais, ele não vai embora esta semana? Que te custa suportá-lo?

 

  1. Maria Soares tinha aplacado inteiramente a amiga; enfim, o tempo e a rua perfizeram a melhor parte da obra. Para o fim da viagem, riam ambas, não só da figura do Romualdo, mas também das palavras que ele dissera a Carlota, as tais palavras atrevidas, que não ponho aqui por não haver notícia exata delas; estas, porém, confiou-as à viúva, não as tendo dito ao marido. A viúva opinou que elas eram menos atrevidas que burlescas. E ditas por ele deviam ser ainda piores. Era mordaz esta viúva, e amiga de rir e brincar como se tivesse vinte anos.

 

A verdade é que Carlota voltou para casa tranqüila, e disposta ao banquete. Vieira, que esperava a continuação da luta, não pôde encobrir o contentamento de a ver mudada. Confessou que ela tinha razão em mortificar-se, e que ele, se não estivessem as coisas em andamento, abriria mão da candidatura; já o não podia fazer sem escândalo.

 

Chegou o dia do jantar, que foi esplêndido, assistindo a ele vários personagens políticos e outros. De senhoras, apenas duas, Carlota e D. Maria Soares. Um dos brindes de Romualdo foi feito a ela; — um longo discurso, arrastado, cantado, assoprado, cheio de anjos, de um ou dois sacrários, de caras esposas, acabando tudo por um cumprimento ao nosso venturoso amigo. Vieira interiormente mandou-o ao diabo; mas, levantou o copo e agradeceu sorrindo.

 

Dias depois, seguia Romualdo para o Norte. A noite da véspera foi passada em casa do Vieira, que se desfez em demonstrações de aparente consideração. De manhã, levantou-se este cedo para ir a bordo, acompanhá-lo; recebeu muitos cumprimentos para a mulher, à despedida, e prometeu que daí a pouco iria ter com ele. O aperto de mão foi significativo; um tremia de esperanças, outro de saudades, ambos pareciam pôr naquele arranco final todo o coração, e punham tão-somente o interesse, — ou de amor ou de política, — mas o velho interesse, tão amigo da gente e tão caluniado.

 

Pouco tempo depois, seguiu o Vieira para o Norte, a cuidar da eleição. As despedidas foram naturalmente chorosas, e por pouco, esteve Carlota disposta a seguir também com ele; mas a viagem não duraria muito tempo, e depois, ele teria de percorrer o distrito, cuidar de coisas que tornavam difícil a condução da família.

 

Ficando só, Carlota cuidou de matar o tempo, para torná-lo mais curto. Não foi a teatros nem bailes; mas visitas e passeios eram com ela. D. Maria Soares continuava a ser a melhor das companheiras, rindo muito, reparando em tudo, e mordendo sem piedade. Naturalmente, o Romualdo foi esquecido; Carlota chegou mesmo a arrepender-se de ter ido confiar à amiga uma coisa, que agora lhe parecia mínima. Demais, a idéia de ver o marido deputado, e provavelmente ministro, começava a dominá-la, e a quem o deveria, senão ao Romualdo? Tanto bastava para não torná-lo odioso nem ridículo. A segunda carta do marido confirmou-a nesse sentimento de indulgência; dizia que a candidatura tinha esbarrado num grande obstáculo, que o Romualdo destruíra, graças a um imenso esforço, em que até perdeu um amigo de vinte anos.

 

Tudo caminhou assim, enquanto Carlota, aqui na corte, ia matando o tempo, segundo ficou dito. Já disse também que D. Maria Soares ajudava-a nessa empresa. Resta dizer, que não sempre, mas às vezes, tinham ambas um parceiro, que era o Dr. Andrade, companheiro de escritório do Vieira, e encarregado de todos os seus negócios, durante a ausência. Este era um advogado recente, vinte e cinco anos, não deselegante, nem feio. Tinha talento, era ativo, instruído, e não pouco sagaz, em negócios do foro; para o resto das coisas, conservava a ingenuidade primitiva.

 

Corria que ele gostava de Carlota, e mal se compreende um tal boato, pois a ninguém confiou nada, nem mesmo a ela, por palavras ou obras. Pouco ia lá; e quando ia procedia de modo que não desse azo a nenhuma suspeita. É certo, porém, que ele gostava dela, e muito, e se nunca lho declarou, menos o faria agora. Evitava até ir lá; mas Carlota convidou-o algumas vezes a jantar, com outras pessoas; D. Maria Soares, que o viu ali, também o convidou, e foi assim que ele achou-se mais vezes do que pretendia em contato com a senhora do outro.

 

  1. Maria Soares desconfiou previamente do amor do Andrade. Era um dos seus princípios desconfiar dos corações de vinte e cinco a trinta e quatro anos. Antes de ver nada, suspeitou que o Andrade amava a amiga, e só tratou de ver se a amiga lhe correspondia. Não viu nada; mas concluiu alguma coisa. Então considerou que esse coração abandonado, tiritando de frio na rua, podia ela recebê-lo, agasalhá-lo, dar-lhe o principal lugar, numa palavra, casar com ele. Pensou nisto um dia; no dia seguinte, acordou apaixonada. Já? Já, e explica-se. D. Maria Soares gostava da vida brilhante, ruidosa, dispendiosa, e o Andrade, além das outras qualidades, não viera a este mundo sem uma avó, nem esta avó se deixara viver até aos setenta e quatro anos, na fazenda sem uns oitocentos contos. Constava estar na dependura; e foi a própria Carlota que lho disse a ela.

 

— Parece que até já está pateta.

 

— Oitocentos contos? repetiu D. Maria Soares.

 

— Oitocentos; é uma boa fortuna.

 

  1. Maria Soares olhou para um dos quadros que Carlota tinha na saleta: uma paisagem da Suíça. Bela terra é a Suíça! disse ela. Carlota admitiu que o fosse, mas confessou que preferia viver em Paris, na grande cidade de Paris... D. Maria Soares suspirou, e olhou para o espelho. O espelho respondeu-lhe sem cumprimento: “Pode tentar a empresa, ainda está muito bonita”.

 

Assim se explica o primeiro convite de D. Maria Soares ao Andrade, para ir jantar à casa dela, com a amiga, e outras pessoas. Andrade foi, jantou, conversou, tocou piano, — pois também sabia tocar piano, — e recebeu da viúva os mais ardentes encômios. Realmente, nunca tinha visto tocar assim; não conhecia amador que pudesse competir com ele. Andrade gostou de ouvir isto, principalmente porque era dito ao pé de Carlota. Para provar que a viúva não elogiava a um ingrato, voltou ao piano, e deu sonatas, barcarolas, rêveries, Mozart, Schubert, nomes novos e antigos. D. Maria Soares estava encantada.

 

Carlota percebeu que ela começava a cortejá-lo, e sentiu não ter intimidade com ele, que lhe permitisse dizer-lho por brinco; era um modo de os casar mais depressa, e Carlota estimaria ver a amiga em segundas núpcias, com oitocentos contos à porta. Em compensação disse-o à amiga, que pela regra eterna das coisas negou-o a pés juntos.

 

— Pode negar, mas eu bem vejo que você anda ferida, insistiu Carlota.

 

— Então é ferida que não dói, porque eu não sinto nada, replicou a viúva.

 

Em casa, porém, advertiu que Carlota lhe falara com tal ingenuidade e interesse, que era melhor dizer tudo, e utilizá-la na conquista do advogado. Na primeira ocasião, negou sorrindo e vexada; depois, abriu o coração, previamente aparelhado para recebê-lo, cheio de amor por todos os cantos. Carlota viu tudo, andou por ele, e saiu convencida de que, apesar da diferença de idade, nem ele podia ter melhor esposa, nem ela melhor marido. A questão era uni-los, e Carlota dispôs-se à obra.

 

Eram então passados dois meses depois da saída do Vieira, e chegou uma carta dele com a notícia de estar de cama. A letra pareceu tão trêmula, e a carta era tão curta, que lançou o espírito de Carlota na maior perturbação. No primeiro instante, a sua idéia foi embarcar e ir ter com o marido; mas o advogado e a viúva procuravam aquietá-la, dizendo-lhe que não era caso disso, e que provavelmente já estaria bom; em todo caso, era melhor esperar outra carta.

 

Veio outra carta, mas do Romualdo, dizendo que o estado do Vieira era grave, não desesperado; os médicos aconselhavam que tornasse para o Rio de Janeiro; eles viriam na primeira ocasião.

 

Carlota ficou desesperada. Começou por não crer na carta. “Meu marido morreu, soluçava ela; estão me enganando”. Entretanto, veio terceira carta do Romualdo, mais esperançada. O doente já podia embarcar, e viria no vapor que dali sairia dois dias depois; ele o acompanharia com todas as cautelas, e a mulher podia não ter cuidado nenhum. A carta era simples, verdadeira, dedicada e pôs um calmante no espírito da moça.

 

Com efeito, Romualdo embarcou, acompanhando o doente, que passou bem o primeiro dia de mar. No segundo piorou, e o estado agravou-se de modo que, ao chegar à Bahia, pensou o Romualdo que era melhor desembarcar; mas o Vieira recusou formalmente uma e muitas vezes, dizendo que se tivesse de morrer, preferia vir morrer ao pé da família. Não houve remédio senão ceder, e por mal dele, expirou vinte e quatro horas depois.

 

Poucas horas antes de morrer, o advogado sentiu que era chegado o termo fatal, e fez algumas recomendações ao Romualdo, relativamente a negócios de família e do foro; umas deviam ser transmitidas à mulher; outras ao Andrade, companheiro de escritório, outras a parentes. Só uma importa ao nosso caso.

 

— Diga à minha mulher que a última prova de amor que lhe peço é que não se case...

 

— Sim... sim...

 

— Mas, se ela, a todo o transe entender que se deve casar, peça-lhe que a escolha do marido recaia no Andrade, meu amigo e companheiro, e...

 

Romualdo não entendeu essa preocupação da última hora, nem provavelmente o leitor, nem eu, — e o melhor, em tal caso, é contar e ouvir a coisa sem pedir explicação. Foi o que ele fez; ouviu, disse que sim, e poucas horas depois, expirava o Vieira. No dia seguinte, entrava o vapor no porto, trazendo a Carlota um cadáver, em vez do marido que daqui partira. Imaginem a dor da pobre moça, que aliás receava isso mesmo, desde a última carta de Romualdo. Chorara em todo esse tempo, e rezou muito, e prometeu missas, se o pobre Vieira lhe chegasse vivo e são: mas nem rezas, nem promessas, nem lágrimas.

 

Romualdo veio à terra, e correu à casa de D. Maria Soares, pedindo a sua intervenção para preparar a recente viúva a receber a fatal notícia; e ambos passaram à casa de Carlota, que adivinhou tudo, apenas os viu. O golpe foi o que devia ser, não é preciso narrá-lo. Nem o golpe, nem o enterro, nem os primeiros dias. Saiba-se que Carlota retirou-se da cidade por algumas semanas, e só voltou à antiga casa, quando a dor lhe consentiu vê-la, mas não pôde vê-la sem lágrimas. Ainda assim não quis outra; preferia padecer, mas queria as mesmas paredes e lugares que tinham visto o marido e a sua felicidade.

 

Passados três meses, Romualdo tratou de desempenhar-se da incumbência que o Vieira lhe dera, à última hora, e nada mais difícil para ele, não porque amasse a viúva do amigo, — realmente, tinha sido uma coisa passageira, — mas pela natureza mesmo da incumbência. Entretanto, era forçoso fazê-lo. Escreveu-lhe uma carta, dizendo que tinha de dizer-lhe, em particular, coisas graves que ouvira ao marido, poucas horas antes de morrer. Carlota respondeu-lhe com este bilhete:

 

Pode vir quanto antes, e se quiser hoje mesmo, ou amanhã, depois do meio-dia; mas prefiro que seja hoje. Desejo saber o que é, e ainda uma vez agradecer-lhe a dedicação que mostrou ao meu infeliz marido.

 

Romualdo foi nesse mesmo dia, entre três e quatro horas. Achou ali D. Maria Soares, que não se demorou muito, e os deixou sós. Eram duas viúvas, e ambas de preto, e Romualdo pôde compará-las, e achou que a diferença era imensa; D. Maria Soares dava a sensação de uma pessoa que escolhera a viuvez por ofício e comodidade. Carlota estava ainda acabrunhada, pálida e séria. Diferença de data ou de temperamento? Romualdo não pôde averiguá-lo, não chegou sequer a formular a questão. Medíocre de espírito, este homem tinha uma dose grande de sensibilidade, e a figura de Carlota impressionou-o de modo, que não lhe deu lugar a mais do que à comparação das pessoas. Houve mesmo da parte de D. Maria Soares duas ou três frases que pareceram ao Romualdo um tanto esquisitas. Uma delas foi esta:

 

— Veja se persuade a nossa amiga a conformar-se com a sorte; lágrimas não ressuscitam ninguém.

 

Carlota sorriu sem vontade, para responder alguma coisa, e Romualdo rufou com os dedos sobre o joelho, olhando para o chão. D. Maria Soares levantou-se afinal, e saiu. Carlota, que a acompanhou até à porta, voltou ansiosa ao Romualdo, e pediu que lhe dissesse tudo, tudo, as palavras dele, e a doença, e como foi que começou, e os cuidados que lhe deu, e que ela soube aqui e lhe agradecia muito. Tinha visto uma carta de pessoa da província, dizendo que a dedicação dele não podia ser maior. Carlota falava às pressas, cheia de comoção, sem ordem nas idéias.

 

— Não falemos do que fiz, disse o Romualdo; cumpri um dever natural.

 

— Bem, mas eu agradeço-lhe por ele e por mim, replicou ela estendendo-lhe a mão.

 

Romualdo apertou-lhe a mão, que estava trêmula, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Ao mesmo tempo, olhou para ela e viu que a cor pálida ia-lhe bem, e com o vestido preto, tinha um tom ascético e particularmente interessante. Os olhos cansados de chorar não traziam o mesmo fulgor de outro tempo, mas eram muito melhores assim, como uma espécie de meia-luz de alcova, abafada pelas cortinas e venezianas fechadas.

 

Nisto pensou na comissão que o levava ali, e estremeceu. Começava a palpitar, outra vez, por ela, e agora que a achava livre, ia levantar duas barreiras entre ambos: — que se não casasse, e que, a fazê-lo, casasse com outro, uma pessoa determinada. Era exigir demais. Romualdo pensou em não dizer nada, ou dizer outra coisa qualquer. Que coisa? Qualquer coisa. Podia atribuir ao marido uma recomendação de ordem geral, que se lembrasse dele, que lhe sufragasse a alma por certa maneira. Tudo era crível, e não prenderia assim o futuro com uma palavra. Carlota, sentada defronte, esperava que ele falasse; chegou a repetir o pedido. Romualdo sentiu um repelão da consciência. No momento de formular a recomendação falsa, recuou, teve vergonha, e dispôs-se à verdade. Ninguém sabia o que se passara entre ele e o finado, senão a consciência dele, mas a consciência bastava, e ele obedeceu. Paciência! era esquecer o passado, e adeus.

 

— Seu marido, — começou —, no mesmo dia em que morreu, disse-me que tinha um grande favor que pedir-me, e fez-me prometer que cumpriria tudo. Respondi-lhe que sim. Então, disse-me ele que era um grande benefício que a senhora lhe fazia, se se conservasse viúva, e que lhe pedisse isto, como um desejo da hora da morte. Entretanto, dado que não pudesse fazê-lo...

 

Carlota interrompeu-o com o gesto: não queria ouvir nada, era penoso. Mas o Romualdo insistiu, tinha de cumprir...

 

Foram interrompidos por um criado; o Dr. Andrade acabava de chegar, trazendo à viúva uma comunicação urgente.

 

Andrade entrou, e pediu a Carlota para lhe falar em particular.

 

— Não é preciso, retorquiu a moça, este senhor é nosso amigo, pode ouvir tudo.

 

Andrade obedeceu e disse ao que vinha; este incidente é sem valor para o nosso caso. Depois, conversaram os três durante alguns minutos. Romualdo olhava para o Andrade com inveja, e tornou a perguntar a si mesmo se lhe convinha dizer alguma coisa. A idéia de dizer outra coisa qualquer começou a turvar-lhe novamente o espírito. Ao ver o jovem advogado tão gracioso, tão atraente, Romualdo concluiu, — e não concluiu mal, — que o pedido do morto era um incitamento; e se Carlota nunca pensara em casar, era ocasião de fazê-lo. O pedido chegou a parecer-lhe tão absurdo, que a idéia de alguma desconfiança do marido veio naturalmente, e atribuiu-lhe assim a intenção de punir moralmente a mulher: — conclusão, por outro lado, não menos absurda, à vista do amor que ele testemunhara no casal.

 

Carlota, na conversação, manifestou o desejo de retirar-se para a fazenda de uma tia, logo que acabasse o inventário; mas, se demorasse muito tempo iria em breve.

 

— Farei o que puder para ir depressa, disse o Andrade.

 

Daí a pouco saiu este, e Carlota, que o acompanhara até a porta, voltou ao Romualdo, para dizer-lhe:

 

— Não quero saber o que foi que meu marido lhe confiou. Ele pede-me o que por mim mesmo faria: — ficarei viúva...

 

Romualdo podia não ir adiante, e desejou isso mesmo. Estava certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo do Andrade com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no cérebro. Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um pacto que se havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um meio-termo: obedecer à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse disposta a contrair segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou em ver que isto era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia morrer antes, ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia ser que lhe falasse, quando ela estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.

 

— Como ia dizendo, continuava ele, seu marido...

 

— Não diga mais nada, interrompeu Carlota; para quê?

 

— Será inútil, mas devo cumprir o que prometi ao meu pobre amigo. A senhora pode dispensá-lo, eu é que não. Pede-lhe que se conserve viúva; mas que, no caso de não lhe ser possível, pedir-lhe-ia bem que a sua escolha recaísse no... Dr. Andrade...

 

Carlota não pôde ocultar o espanto, e não teve só um, mas dois, um atrás do outro. Quando Romualdo concluía o pedido, antes de dizer o nome do Andrade, Carlota imaginou que ia citar o dele mesmo; e, rápido, tanto lhe pareceu um desejo do marido como uma astúcia do portador, que a cortejara antes. Esta segunda suspeita entornou-lhe na alma um grande desgosto e desprezo. Tudo isso passou como um relâmpago, e quando chegou ao fim, ao nome do Andrade, mudou de espanto, e não foi menor. Esteve calada alguns segundos, olhando à toa; depois, repetiu o que já dissera.

 

— Não pretendo casar.

 

— Tanto melhor, disse ele, para os desejos últimos de seu marido. Não lhe nego que o pedido me pareceu exceder do direito de um moribundo; mas não me cabe discuti-lo: é questão entre a senhora e a sua consciência.

 

Romualdo levantou-se.

 

— Já? disse ela.

 

— Já.

 

— Jante comigo.

 

— Peço-lhe que não; virei outro dia, disse ele estendendo-lhe a mão.

 

Carlota estendeu-lhe a mão. Pode ser que se ela estivesse com o espírito quieto, percebesse nos modos do Romualdo alguma coisa que não era a audácia de outrora. Na verdade, ele estava agora acanhado, comovido, e a mão tremia-lhe um tanto. Carlota apertou-lha cheia de agradecimento; ele saiu.

 

Ficando só, Carlota refletiu em tudo o que se passara. A lembrança do marido pareceu-lhe também extraordinária; e, não tendo ela jamais pensado no Andrade, não pôde furtar-se a pensar nele e na simples indicação do moribundo. Tanto pensou em tudo isso, que lhe ocorreu finalmente a posição do Romualdo. Esse homem tinha-a cortejado, parecia querê-la, recebeu do marido, prestes a expirar, a confidência última, o pedido da viuvez e a designação de um sucessor, que não era ele, mas outro; e, não obstante, cumpriu tudo fielmente. O procedimento pareceu-lhe heróico. E daí pode ser que já não a amasse: e foi, talvez, um capricho de momento; estava acabado; nada mais natural.

 

No dia seguinte, ocorreu a Carlota a idéia de que Romualdo, sabendo da amizade do marido com o Andrade, podia ir comunicar a este o pedido do moribundo, se já o não tinha feito. Mais que depressa, lembrou-se de mandar chamá-lo, e pedir-lhe que viesse vê-la; chegou mesmo a escrever-lhe um bilhete, mas mudou de idéia, e, em vez de pedir-lho de viva voz, determinou fazê-lo por escrito. Eis o que escreveu:

 

Estou certa de que as últimas palavras de meu marido foram apenas repetidas a mim e a ninguém mais; entretanto, como há outra pessoa, que poderia ter interesse em saber...

 

Chegando a este ponto da carta, releu-a, e rasgou-a. Parecia-lhe que a frase tinha um tom misterioso, inconveniente na situação. Começou outra, e não lhe agradou também; ia escrever terceira, quando vieram anunciar-lhe a presença do Romualdo; correu à sala.

 

— Escrevia-lhe agora mesmo, disse ela logo depois.

 

— Para quê?

 

— Referiu aquelas palavras de meu marido a alguém?

 

— A ninguém. Não podia fazê-lo.

 

— Sei que não o faria; entretanto, nós, as mulheres, somos naturalmente medrosas, e o receio de que alguém mais, quem quer que seja, saiba do que se passou, peço-lhe que por nenhuma coisa refira a outra pessoa...

 

— Certamente que não.

 

— Era isto o que lhe dizia a carta.

 

Romualdo vinha despedir-se; seguia daí três dias para o Norte. Pedia-lhe desculpa de não ter aceitado o convite de jantar, mas na volta...

 

— Volta? interrompeu ela.

 

— Conto voltar.

 

— Quando?

 

— Daqui a dois meses ou dois anos.

 

— Cortemos ao meio; seja daqui a quatro meses.

 

— Depende.

 

— Mas, então, sem jantar comigo uma vez? Hoje, por exemplo...

 

— Hoje estou comprometido.

 

— E amanhã?

 

— Amanhã vou a Juiz de Fora.

 

Carlota fez um gesto de resignação; depois perguntou-lhe se na volta do Norte.

 

— Na volta.

 

— Daqui a quatro meses?

 

— Não posso afirmar nada.

 

Romualdo saiu; Carlota ficou pensativa algum tempo.

 

“Singular homem! pensou ela. Achei-lhe a mão fria e, entretanto...”

 

Depressa passou a Carlota a impressão que lhe deixara o Romualdo. Este seguiu, e ela retirou-se à fazenda da tia, enquanto o Dr. Andrade continuou o inventário. Quatro meses depois, voltou Carlota a esta corte, mais curada das saudades, e em todo caso cheia de resignação. A amiga encarregou-se de acabar a cura, e não lhe foi difícil.

 

Carlota não esquecera o marido; ele estava presente ao coração, mas o coração também cansa de chorar. Andrade que a freqüentava, não pensara em substituir o finado marido; ao contrário, parece que principalmente gostava da outra. Pode ser também que fosse mais cortesão com ela, por ela ser menos recente viúva. O que toda a gente cria é que dali, qualquer que fosse a escolhida, tinha de nascer um casamento com ele. Não tardou que as pretensões de Andrade se inclinassem puramente à outra.

 

“Tanto melhor” pensou Carlota, logo que o percebeu.

 

A idéia de Carlota é que, sendo assim, não ficava ela obrigada a desposá-lo; mas esta idéia não a formulou inteiramente; era confessar que estaria inclinada a casar.

 

Passaram-se ainda algumas semanas, oito ou dez, até que um dia anunciaram os jornais a chegada de Romualdo. Ela mandou-lhe um cartão de cumprimento, e ele deu-se pressa em pagar-lhe a visita. Acharam-se mudados; ela pareceu-lhe menos pálida, um pouco mais tranqüila, para não dizer alegre; ele menos áspero no aspecto, e até mais gracioso. Carlota convidou-o a jantar com ela daí a dias. A amiga estava presente.

 

Romualdo foi circunspecto com ambas, e, posto que trivial, conseguia pôr nas palavras uma nota de interesse. O que, porém, realçava a pessoa dele era, — em relação a uma, a transmissão do recado do marido, e a respeito da outra a paixão que sentira pela primeira, e a possibilidade de vir a desposá-la. A verdade é que ele passou uma noite excelente, e saiu de lá encantado. A segunda convidou-o também para jantar daí a dias, e os três reuniram-se outra vez.

 

— Ele ainda gosta de ti? perguntava uma.

 

— Não, acabou.

 

— Não acabou.

 

— Por que não? Há tanto tempo.

 

— Que importa o tempo?

 

E teimava que o tempo era coisa importante, mas também não valia nada, principalmente em certos casos. Romualdo parecia pertencer à família dos apaixonados sérios. Enquanto dizia isso, olhava para ela a ver se lhe descobria alguma coisa; mas era difícil ou impossível. Carlota levantava os ombros.

 

Andrade supôs também alguma coisa, por insinuação da outra viúva, e tratou de ver se descobria a verdade; não descobriu coisa nenhuma. O amor de Andrade ia crescendo. Não tardou que o ciúme viesse fazer-lhe cortejo. Pareceu-lhe que a amada via o Romualdo com olhos singulares; e a verdade é que estava muita vez com ele.

 

Para quem se lembra das primeiras impressões das duas viúvas, há de ser difícil ver na observação do nosso Andrade; mas eu sou historiador fiel, e a verdade antes de tudo. A verdade é que ambas as viúvas começavam a cercá-lo de especiais atenções.

 

Romualdo não o percebeu logo, porque era modesto, apesar de audaz, às vezes; e da parte de Carlota não chegou mesmo a perceber nada; a outra, porém, houve-se de maneira que não tardou em descobrir-se. Era certo que o cortejava.

 

Daqui nasceram os primeiros elementos de um drama. Romualdo não acudiu ao chamado da bela dama, e esse procedimento não fez mais do que irritá-la e dar-lhe o gosto de teimar e vencer. Andrade, ao ver-se posto de lado, ou quase, determinou lutar também e destruir o rival nascente, que podia ser em breve triunfante. Já isso bastava; mas eis que Carlota, curiosa da alma do Romualdo, sentiu que este objeto de estudo podia escapar-se-lhe, desde que a outra o quisesse para si. Já então eram passados treze meses da morte do marido, o luto estava aliviado, e a beleza dela, com ou sem luto, fechado ou aliviado, estava no cume.

 

A luta que então começou teve diferentes fases, e durou cerca de cinco meses mais. Carlota, no meio dela, sentiu que alguma coisa batia no coração de Romualdo. As duas viúvas em breve descobriram as baterias; Romualdo solicitado por ambas, não se demorou na escolha; mas o desejo do morto? No fim de cinco meses as duas viúvas estavam brigadas, para sempre; e no fim de mais três (custa-me dizê-lo, mas é verdade), no fim de mais três meses, Romualdo e Carlota iam meditar juntos e unidos sobre a desvantagem de morrer primeiro.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 21 de dezembro de 2021

ROGÉRIO, O RUDE (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

ROGÉRIO, O RUDE

Raul Pompéia

 

 

 

E um velho apareceu. Muito velho; os cabelos brancos, encacheada coma desciam-lhe aos ombros, tão brancos, tão realmente prata, que todo o ouro do dia nascente não conseguia dourar. Perdia-se sobre aquele inverno, todo o esforço de um sol pujante de primavera.

 

— Vens, talvez ao meu apelo? Ninguém me pode valer. Queixo-me do passado irrevogável que me preparou esta vida de amarguras. Não há remédio.

 

— Nada desejo, entretanto, para mim; meu filho são as minhas aspirações e o infeliz, tão moço, é já um condenado. Eu o quisera iluminado e a escola o repeliu. Cresceu-lhe pelos à beira da testa como orelhas de onagro e eu lhe quisera um perfil de medalha. Indico-lhe a cidade, o caminho largo do sucesso e o selvagem reclama o campo, o campo. Quisera vê-lo calcando aos pés o galanteio das princesas, tapete de corações!... e vou surpreendê-lo a desabotoar amor às virtudes campônias cheirando a estrume e a feno...

 

— Tranquiliza-te. Teu filho está grande. Mas é preciso que me ouças. Deixa cair a foice; o trabalho é a escravidão. Míseros, aqueles que se escravizam à gleba. O pedreiro acumula a alvenaria, sobrepondo custosamente as lascas de rocha; edifica o fundamento e o esqueleto da muralha. Vem o pintor e encobre a valia de todo aquele trabalho com a ligeira camada das tintas. E o arquiteto vem e debuxa a linha aristocrática do arabesco, que é como uma inscrição em que se recomenda ao futuro e à glória. E o estatuário sobre o monumento do pintor e do arquiteto apoia uma grande estátua, asas de bronze abertas para o céu, como um anjo insolente de gênio, presto a escapar-se para a apoteose. Quem vai lembrar-se, diante desta grandeza, do obscuro operário da muralha? O pedreiro trabalha; é o servo; os outros triunfam. Triunfar é fabricar aparências. O melhor pedestal da nossa vitória é o despeito da concorrência. A evidência fere o despeito com um deslumbramento. Fabrica a evidência e verás.

 

"Nada me perguntes. Bem sei do que digo. Sou muito velho. Chamam-me zombando o Experiência, e eu me chamo Século. Sou filho do Tempo e vou... meu destino é ir. Os dias são os meus irmãos; passam por mim, conheço-lhes o sorriso. Toma. Este é o cofre dos meus recursos. Retira a mão, cheia quanto precisares. Tudo terás para teu filho. O condão misterioso da caixa guarda expedientes contados pelos teus desejos. Tudo terá teu filho. Será grande, iluminado, poderoso. Vencerá distâncias sociais e altitudes de prestígio. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Ele será Papa! Chamar-se-á - Leão."

 

E o velho extinguiu-se numa evasão de sonho, desfeito em névoa, em nada, como uma forma de vapores no espaço, deixando apenas por momentos a impressão lúcida das alvas barbas, como a lembrança de um meteoro.

 

"Fabrica a evidência e verás, dissera o velho, fabrica e evidencia. Mas é incrível! A alma latente do mundo não se revela assim... mas este cofre é real, é positivo. Uma ilusão palpável?! E o que será então a realidade? Abramo-lo e ensaiemos."

 

Aberto o cofre, foi como um derramamento de Paraíso. Expandiu-se no ambiente uma sensação de ventura que chegou até às flores. Os pedúnculos dobraram-se vencidos, ternos da morbidez langue do ar.

 

— Que meu filho apareça.

 

E mal fora este desejo enunciado, que surgiu em pessoa Rogério, o rude, olhos oblíquos de selvagem, pelos fartos à beira da testa, como orelhas de onagro:

 

— Que me quereis, pai?

 

— Que sejas nutrido...

 

E ali mesmo, a olhos vistos Rogério inchou como um balão, arredondou-se de plástica; exibiu-se às ambições paternas, bochechudo como um sopro de Éolo, alteadas as protuberâncias da carne em polpas de ádipe, avançando e ostensivo o umbigo em próspero ventre de Sileno jovem.

 

— Que sejas belo.

 

E no mesmo instante, sobre a gorda prosperidade de Rogério, abriram-se as rosas da formosura. Esvaíram-se os pelos do onagro; o olhar oblíquo do selvagem endireitou-se em franca perpendicular, temperada de atrevimento. Fossem lá reconhecê-lo dentro daquela frescura macia de cores e de carnes, esgaravatar-lhe a minguadíssima parcela de boçalidade agreste que lhe servia de alma, nos interstícios da Ironia daquele sorriso de bailarina petulante.

 

— Que detestes convictamente o campo e todas as suas tentações.

 

E no coração de Rogério nasceu de súbito estranho mal-estar, a febre dos predestinados; espécie de saudade absurda de coisas desconhecidas, grandes ruas, vastas praças, tumulto e movimento durante o dia, luz e festas durante a noite; sede de viagens e fome de aventuras, avidez intensa por grandes tentativas e maiores êxitos. Apagou-se a memória dos primeiros anos, a meninice de poldro, a adolescência de bode farto. Fugiu-lhe de vez o aferradíssimo apego aos idílios do estrume e dos fenos.

 

"Parte, meu filho, e vai pelo mundo. Grande hás de ser, iluminado e poderoso. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Tu serás Papa! Chamar-te-ás Leão. Parte!"

 

E tantas vezes abriu-se o cofre dos recursos que, Rogério o rude subiu ao trono pontifical.

 

Mordei-vos, despeitados! Invejosos, imitadores e plagiários, basbaques das honrarias que levais a vida olhando para o alto, impotentes de todas as categorias, e de todas as ambições, mordei-vos! Ele triunfou. Entronizou-se no superlativo da pose. Tudo que se arma na terra de brocardo e ouro, tudo ele foi; hoje, é Papa e chama-se Leão. Dobrai o joelho; beijai-lhe as pegadas, que cada prego de seu calçado grava no chão um selo de santidade. O favor de um só dos seus olhares exalta-nos e nos enche com a munificência de Assuerus. Que se há de fazer ao homem a quem el-rei quer honrar? Ele olha e basta. Aquele olhar veste-nos do linho real, e, sobre opulentos jaezes de um corcel altivo, passeia-nos através dos aplausos de uma capital em delírio.

 

Roma é o cenário do seu triunfo, a herdeira universal do esplendor artístico das idades, do aparato ostentoso da humana vaidade no passado, metrópole arrogante de todas as ênfases do catolicismo, orgulhosa da glória dinástica das próprias tradições.

 

Lá está.

 

Diante, rojam-se os cardeais, fazendo agitar-se em mar de sangue a multidão dos ombros em cabeções vermelhos. Mais baixo, no escuro, a massa miserável de uma população prostrada. Dessa humilhação e dessa sombra, eleva-se apenas, medroso ainda assim de se elevar, um murmúrio de prece. Ao redor do trono, sob o dossel, vistosa homenagem da Arte, imagens que passam com a expressão celestial dos rostos de Fra-Angélico, visões da capela Sixtina, academias funambulescas que se contorcem, acrobatas do terror, que se despenham de toda a altura do céu e da Fé - povoando o espaço de aspectos contraditórios em grandiosa desordem, enquanto vibra e avulta, solene na cúpula enorme, a música dos êxtases de Santa Cecília.

 

E ele no centro, Rogério, hoje Leão, nutrido e belo, em seda branca da cor das transfigurações, sob a tiara de ouro, pasmado de se ver tão grande, mal avistando ao longe, na multidão, o pai que o adora de baixo, acaçapado e satisfeito!

 

Até que um dia, notando-se-lhe espantosa imobilidade, como se pela magia transformadora das grandezas, acabasse por se consubstanciar o entronizado com o trono, alguém ousado subiu até a eminência a verificar...

 

Levantaram-lhe a tiara como uma tampa, e viram, maravilha! e viram, no fundo, seco, mirrado e reduzido...

 

Rogério, o rude, morrera havia muito, dentro daquela armadura de esplendor e de aparência, da nostalgia dos seus campos, represália terrível da boçalidade ludibriada.

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 20 de dezembro de 2021

OS SUSPENSÓRIOS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OS SUSPENSÓRIOS

Humberto de Campos

 

 

 

Um advogado ilustre, pessoa da minha estima, contava-me, há dias, um caso curioso que o impressionara profundamente. Procurado por uma senhora, que desejava divorciar-se, fizera ele a petição competente, com todo o segredo, e foi levá-la ao juiz. E regozijava-se com a surpresa que ia causar ao péssimo esposo da sua cliente, quando abriu a boca estupefato: no cartório havia, já, uma petição do marido, que apelava para o mesmo recurso judiciário apoiado nas mesmas razões em que se apoiava a mulher. E, como conversa puxa conversa, contou-me o ilustre causídico uma história interessante, que ele havia lido, poucos dias antes, em certa revista estrangeira.

 

Homem de gênio desigual, o Sr. Fabiano preparava-se para sair, quando, de repente, começou a perder a paciência. Faltava-lhe o suspensório, que devia estar preso à calça vestida na véspera, e era com indignação que ele berrava, com as mãos segurando o cós:

 

— Não o viste, Maria?

 

A criada respondia-lhe negativamente e ele trovejava para a mulher:

 

— Não o viste, Marcela?

 

De repente, coordenando as ideias, ajustando o "puzzle" das lembranças recentes, calou-se, acalmando completamente a tempestade. E ia fazer o possível para que ninguém falasse mais em tal coisa, quando a mulher chegou à porta do quarto, avisando:

 

— Fabiano, aí tem uma pessoa que quer falar contigo, com urgência.

 

— Quem é?

 

— O Sr. Otaviano, da farmácia.

 

Um minuto depois, mostrando nas olheiras escuras as infinitas torturas de uma noite de insônia, entrava no quarto, usando da intimidade que ligava as duas famílias, o Sr. Otaviano, farmacêutico de renome. Estava soturno, grave, circunspecto, e, sentindo-se a sós com o amigo, explicou, misterioso, o motivo daquela visita matinal:

 

— Você sabe — começou, — que eu tinha absoluta confiança em minha mulher. Em minha casa não entrava, jamais, outro homem. Entretanto, ao penetrar, ontem, no nosso quarto de dormir, encontrei isto debaixo da cama. Veja!

 

E, dizendo isso, arrancou do bolso do sobretudo, que não tirara, um par de suspensórios azul, com fivelas de prata, que exibiu, confiante, aos olhos espantados do amigo.

 

A essas vozes, porém, a porta escancara-se e, de um pulo, aparece no meio do quarto uma figura de mulher. Era D. Marcela que, tendo visto e ouvido tudo pela fechadura, bradava, branca de cólera:

 

— Mas, que é isso, afinal? Esse suspensório é o teu, que estas procurando há meia hora!

 

E cerrando os punhos, no rumo do esposo:

 

— Indigno! Canalha! Miserável! Não fico nesta casa mais, nem um minuto! Cachorro!...

 

E prorrompendo em soluços:

 

— Bandido! Infame! Desgraçado!...

 

Atarantado com o que acabava de ouvir, o Sr. Otaviano recuara até à parede, boquiaberto. Pálido, tonto, desorientado, o Sr. Fabiano fizera outro tanto, em sentido contrário. E ia a comédia por essa altura, com a moça a arrancar furiosamente os cabelos no meio do quarto, quando apareceu à porta a criada, trazendo alguma coisa nas mãos.

 

— Patrão, achei os seus suspensórios.

 

A patroa parou de chorar, estacando, de olhos escancarados, pálida, de cera. E a criada continuou:

 

— Estavam na secretária da senhora, ao lado do canapé.

 

Recobrando ânimo, o Sr. Fabiano encaminhou-se, rápido, para a rapariga, e vendo que os suspensórios eram cinzentos, e não azuis, como os seus, trovejou, furibundo:

 

— De quem são estes suspensórios, senhora?

 

Mas não obteve resposta. D. Marcela, apavorada havia saído pela porta dos fundos.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 18 de dezembro de 2021

NOITE DE ALMIRANTE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

NOITE DE ALMIRANTE

Machado de Assis

 

 

 

Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:

- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.

A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.

- Juro por Deus que está no céu. E você?

- Eu também.

- Diz direito.

- Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.

Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.

Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.

- Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.

- Mas que foi? que foi?

A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...

- Mas virada por quê?

- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.

- Onde mora ela?

- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.

Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.

- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.

E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.

- Sei tudo, disse ele.

- Quem lhe contou?

Deolindo levantou os ombros.

- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?

- Disseram.

- Disseram a verdade.

Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.

- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.

Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...

- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...

- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...

- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...

- A que horas volta José Diogo?

- Não volta hoje.

- Não?

- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?

Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?

A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?

Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.

- Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.

Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?

A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.

- Realmente, são muito bonitos.

Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.

Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.

Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.

- Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?

- Que foi?

- Que vai matar-se.

- Jesus!

- Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.

- Eu aqui ainda não vi destes.

- Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...

A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 17 de dezembro de 2021

QUASE TRAGÉDIA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

QUASE TRAGÉDIA

Raul Plmpéia

(Grafia original)

 

 

 

Conto da Lua-de-Mel

Quando se é recém-casado por esses primeiros dias velozes que fogem para o passado, com uma rapidez incrível; em que almeja-se ardentemente que a noute desça, porque se ama o recato das sombras; em que suspira-se pela manhã, porque a manhã traz aquela preciosa luz fresca que convida a esses passeios ricos de efusões e mútuas expansões amorosas; nesses rápidos dias que os europeus gostam de saborear à beira do Adriático, cobrindo-se com o céu da Itália, ou no meio dos lagos da Suíça, entre os nevoeiros que descem das cumeadas glaciais e brancas; nesse fragmento de vida que os Fluminenses passam refugiados nas alturas verdes e saudáveis da Tijuca, nos saborosos dias da lua-de-mel, há certas confidências murmuradas docemente entre os esposos, confissões muito em segredo, que só entre os dous pombinhos se dizem, e como arrulhos se perdem na ventania que a floresta manda...

E assim deve ser. Tal é a doçura estranha dessas conversações, tal é a intimidade religiosa, em que se confundem a expansão e a reserva, num mistério tão delicado, que é melhor, muito melhor que se percam no espaço, longe dos ouvidos indiscretos como o canto do pássaro na mata virgem...

Foi numa dessas entrevistas meigas e misteriosas, que a pequena Adélia pôde saber porque motivo, pouco antes do seu casamento, Eduardo deixara dous dias em seguida de ir vê-la à casa do pai e soubera também o motivo daquela palidez cruel com que ele reaparecera, rindo muito, jurando que aquilo fora um ligeiro incômodo; que já estava perfeitamente bem, sem conseguir entretanto, ocultar absolutamente que sofria.

Haviam se casado.

Aqueles dous dias e aquela palidez, foram a tristeza da sua alegria no casamento.

Eduardo estava pálido, dentro da casaca preta que mais pálido o fazia. Adélia ficara também pálida e melancólica.

Quando ela soube o motivo, quando descobriu a cicatriz recente que ele tinha pouco acima do calcanhar direito, foi então que a melancolia desapareceu-lhe; mas como não sofreu ainda de vê-lo doente da ferida que mal acabava de fechar-se!

Pôs-se a refletir no fato.

Teve medo de interrogar positivamente Eduardo. Fez conjeturas, todas as conjeturas, e tratou muito dele, maternalmente como uma irmã, como uma filha, muito empenhada em vê-lo completamente restabelecido...

Eduardo pelo contrário inebriado de amor por ela, não cuidava de si. Só queria beijá-la. Cobria-lhe de beijos as pálpebras, ambas as faces, os lábios, beijava-lhe até, cousa incrível! beijava-lhe a concha das orelhinhas rosadas de veludo! Pobre Eduardo!...

Afinal Adélia veio a conhecer tudo. Tudo... que poema! Escapara de ver na candura nívea das asas do seu amor uma triste mancha de sangue. A história do seu noivado por um triz que dava em tragédia e todos os sorrisos e juras por uma linha que não degeneraram em pranto e desespero.

Felizmente tudo ficara em riso, o sangue se reduzia a salpicos vermelhinhos, pontuando as asas de neve dos seus Cupidos.

Parece invenção. Entretanto, a cicatriz lá estava, pouco acima do calcanhar de Eduardo, como a prova palpitante.

Foi assim.

Moravam em Santa Teresa. Da casa de Adélia, no alto, avistava-se embaixo, numa das ruas da encosta do morro, a casa onde morava Eduardo.

Todas as tardes, depois que ele a pediu em casamento, o moço subia a ver a noiva e visitar a família do futuro sogro.

Raramente faltava. Quando ficou determinado o dia do casamento, as visitas de Eduardo tomaram-se infalíveis. Em todo o lugar falava-se do próximo enlace.

Repentinamente, com grande espanto de todos da casa de Adélia e principalmente desta, Eduardo falta um dia. Mandaram saber porque.

- Estava incomodado.

Falta segunda vez...

Duas vezes... Era incrível...

Um noivo como ele faltar duas vezes... era grave.

Nova visita.

- Vai melhor... mas...

Todos ficaram sobressaltados.

Quanto caiporismo!

Havia alguns dias que tudo acontecia naquela casa. Um telegrama viera, noticiando moléstia grave de um parente que estava em Cabo Frio, o padrinho de Adélia, para sinal; a estouvada da Joana quebrara uma dúzia de pratos, por querer carregá-los todos duma vez em pilha; ainda mais, entrara pelas janelas da frente, uma grande borboleta preta que fora pousar exatamente na caixa do enxoval da menina...

O cão do vizinho uivara toda a noute...

Acontecia tudo. Até na véspera mesmo da doença de Eduardo, a casa fora visitada à noute, pelos ladrões que haviam espatifado a hera de um muro que dava para a ribanceira de um morro por onde naturalmente os gatunos haviam passado. E isso não fora uma vez só. Primeiro, o pai de Adélia muito escrupuloso dos seus penates, examinando o jardim, como de costume vira o caminho aberto na hera. No outro dia achou a planta mais estragada... já começavam a desaparecer peças de roupa do quintal, por exemplo um lenço de Adélia que ficara no coradouro...

No outro dia, o velho esperou.

Pôde, apenas, distinguir uma sombra escorregando para o lado da ribanceira. Correu ao jardim com a decrépita espingarda, que representava a derradeira segurança do seu lar, mas não viu nada.

Ainda uma vez, esperou o tratante (que afinal parecia não ser tão bandido como se supusera a princípio, porque as galinhas não desapareciam do galinheiro, nem as roupas do coradouro). O velho pai de Adélia escorou-o, dedo no gatilho e olho na hera do muro. Logo que percebeu a sombra... fogo!...

Não se ouviu nem um grito, através da noute, mas o pai de Adélia não teve ânimo de ir verificar se acabava de fazer um cadáver...

Na manhã seguinte, achou-se sangue pela hera e pelo chão.

Contudo a preocupação de Adélia não era a borboleta preta na caixa do enxoval, nem o cão do vizinho uivando à noute, nem mesmo as suspeitas verificadas de que os ladrões visitavam o quintal... A sua preocupação era outra.

Havia dias, que ela encontrava, todas as manhãs, uma flor, no peitoril da janela do seu quarto.

Não acreditava em duendes, mas tinha medo de verificar qual era a mão misteriosa que depunha ali o matutino brinde. Depois, era tão bom não saber cousa alguma e adorar todo o dia aquela rosa, aquele cravo, ou aquele raminho de violetas que dir-se-iam cair do céu com o orvalho!...

Repentinamente deixam de aparecer as flores!...

E esta desgraça, que ela amargava de si para si intimamente, como nos dias anteriores, saboreara a contemplação dos brindes misteriosos, acabrunhava-a, mortificava-a.

Uma suspeita que minava-lhe o cérebro, avultou, ocupou-lhe o espírito todo... Aqueles ladrões... aqueles ramos de hera quebrada no muro da ribanceira... o sangue... o sangue sobretudo!...

.................................................................

Uma daquelas entrevistas deliciosas de mel veio trazer luz às apreensões. O gatuno era ele. Levara o lenço de Adélia com que santa intenção! o pobre... As flores era ele o duende que as depunha todas as noutes no peitoril...

E o tiro! o horrível tiro da paternal vigilância fora também para Eduardo!...

Eis aí como o noivado de Adélia teve uma quase tragédia e como os Cupidos do seu amor tiveram salpicos rubros na brancura das asas.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 16 de dezembro de 2021

MODAS...(CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

MODAS

Humberto de Campos

 

 

 

A imprensa carioca tem mostrado, nestes últimos tempos, um desusado interesse pelo Japão. "A Noite" mantém em Tóquio um correspondente epistolar, o Sr. Carlos Abreu, e não há quem não tenha lido, e quem não admire, no Rio, as crônicas deliciosas que o nosso cônsul em Kobe, o Sr. Osório Dutra, está mandando para "O Imparcial". Despertada assim a fome de pitoresco do público, não há, hoje, quem não deseje conhecer a terra do Mikado, com as suas "gueixas", os seus crisântemos, as suas cegonhas azuis e as suas cerejeiras cor de rosa, enfim, o Japão verídico ou de legenda, com os seus pequenos leques de seda e os seus grandes templos de porcelana.

 

Entre os curiosos desse gênero está, como era natural, o antigo engenheiro da Central do Brasil, Dr. Guilherme Viana, cuja velhice decorre, hoje, no meio da melhor prosperidade econômica, ao lado da esposa, a virtuosa Dona Saturnina, da filha viúva, D. Odete Meireles, e da sua encantadora sobrinha Maria Otávia, botão de rosa de dezoito pétalas, que é, pode-se dizer, uma segunda filha do casal. Interessado, dessa forma, pelo Império do Sol Nascente, o velho engenheiro perguntou-me, outro dia, se eu possuía nas minhas estantes alguma obra sobre o Japão. Eu lhe falei em cinco ou seis, entre as quais as dos nossos patrícios Drs. Oliveira Lima, Luiz Guimarães e padre Feitosa, e o meu amigo escolheu:

 

— Mande-me o livro do padre; deve ser mais fiel, mais de acordo com a verdade. E mande-me outro qualquer, de autor estrangeiro.

 

No dia seguinte remetia-lhe eu a "Viagem ao Japão", de monsenhor Feitosa, e uma obra de Mabel Bacon, americana, traduzida, há anos, para o francês, com o título de "Jeunes filles et femmes au Japon". E ontem fui visitar o meu velho amigo, a quem encontrei com os dois volumes em cima da mesa, rodeado das três senhoras que lhe compõem a totalidade da família.

 

— Excelente livro, o do padre; — observou-me, de supetão, o meu velho camarada. — Achei apenas um pouco exagerado, naquela parte em que ele diz ter visto os soldados de um destacamento tirarem a farda, e descansarem, nus, à vista de toda gente, ao lado das baionetas.

 

— E o outro livro, o da americana? — indaguei.

 

— Também tem exageros, excessos abomináveis, como, por exemplo, esse em que a autora conta que, no interior do país, as camponesas trabalham ao sol, cultivando a terra, tendo sobre o corpo unicamente um chapéu de abas largas, e, à cintura, um leque, amarrado por um cordão.

 

— Como é essa vestimenta? — indagou

 

  1. Odete, intervindo.

 

— Um chapéu de palha, e um leque à cintura, — repetiu o pai.

 

— E nada mais! — acentuou.

 

A essa informação, D. Saturnina juntou as gordas mãos sobre o estômago, espantada:

 

— Meu Deus! Parece até "toilette" do Municipal!

 

Mas não terminou. Escandalizada com aquela heresia, a viúva interrompeu-a, protestando, logo, não em nome da decência, mas em nome do bom gosto:

 

— Oh, mamãe, assim, também, não!

 

E acrescentou, com horror:

 

— Onde a senhora já viu a gente ir ao Municipal de chapéu?!...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 14 de dezembro de 2021

UMA NOITE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UMA NOITE

Machado de Assis

 

 

 

 

Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:

- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.

A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.

- Juro por Deus que está no céu. E você?

- Eu também.

- Diz direito.

- Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.

Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.

Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.

- Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.

- Mas que foi? que foi?

A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...

- Mas virada por quê?

- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.

- Onde mora ela?

- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.

Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.

- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.

E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.

- Sei tudo, disse ele.

- Quem lhe contou?

Deolindo levantou os ombros.

- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?

- Disseram.

- Disseram a verdade.

Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.

- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.

Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...

- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...

- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...

- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...

- A que horas volta José Diogo?

- Não volta hoje.

- Não?

- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?

Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?

A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?

Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.

- Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.

Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?

A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.

- Realmente, são muito bonitos.

Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.

Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.

Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.

- Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?

- Que foi?

- Que vai matar-se.

- Jesus!

- Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.

- Eu aqui ainda não vi destes.

- Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...

A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 13 de dezembro de 2021

OS PARRICIDAS (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

OS PARRICIDAS

Raul Pompéia

 

 

 

De um livro de M. Fornari, Professor de Filosofia Hermética de Milão.
 
Atufado no grande leito, grande e suntuoso como um catafalco, do sombrio aposento, eu revia, na indecisão imaginativa que precede o sono, os incidentes da festa, meditando a legenda de mistério que envolvia o castelo, que o fazia negro, mais do que os anos, sobre os alcantis da encosta.
 
A câmara a que me tinham conduzido ficava situada num dos ângulos mais afastados do edifício. Era uma espécie de cela enorme de abadia, paredes de pedra, ladrilhada de pedra e cheia da atmosfera especial dos lugares fechados e baixos. Do teto, construído em abóbada de um mosaico colossal de madeira, pendia fixamente uma lâmpada de ferro. Apagada. Os clarões da lareira divagavam pelas imensas paredes, escuras de umidade, adamascadas de mofo, e, batendo por baixo as vergas de talha dos portais, formavam sinistras esculturas e lances de sombra que subiam obliquamente.
 
As cortinas do leito defendiam-me em parte da grandeza lúgubre do dormitório; mas era impossível que não sofressem as ideias do influxo daquela encenação.
 
Pelo menos a isso quis atribuir a impertinência de pesadelo com que me perseguia uma lembrança.
 
Correram, entretanto, animadíssimas as bodas e parecia voltar para sempre a alegria à vivenda principesca, por tanto tempo adormecida no encerramento secular e no silêncio, abrindo então as janelas incendiadas de luz, acima da massa de arvoredo da planície, esturgindo ao clamor festivo das músicas e dos brindes.
 
Pelos salões, a jovem noiva distribuía-se, feita a graça, o encanto, o movimento do prazer de todos. O noivo, o altivo de Sainville, distinto, correto, era apontado ao passar, e passava sobre um tapete de comentários amáveis. E bem certo merecia a sorte venturosa de possuir o coração e o futuro da criatura adorável que desposara.
 
Uma coisa, porém, observei que envenenava para mim a cordialidade das expansões: a expressão do rosto de Vildac, o senhor do castelo e pai da noiva. Mau humor talvez de hipocondria; era, contudo, insuportável aquele retraimento da testa, crispada de pequeninas rugas verticais, geralmente fixas, às vezes móveis como víboras, aquele olhar, relâmpago acerbo fuzilando a espaços, percorrendo a casa como a brisa da meia-noite nas festas macabras. Dir-se-ia odiar a alegria, aquele homem. A própria filha, a cândida noiva, não escapava à irradiação do olhar satânico detido mesmo sobre ela frequentemente, como um auspício de maldições.
 
Bailava-me ainda no espírito o turbilhão dos pares sob os lustres, vertigem de cores e pedraria iluminada; mas a impressão dominante na memória era o olhar, aquele olhar duro e cruel.
 
As condições do aposento, vasto, onde os reflexos do fogão perdiam-se como fantasmas, frio, que mal podiam aquecer os toros em brasa, frio da umidade das lájeas, crescendo do chão, transpirando das paredes, ilimitado para cima com o teto de trevas donde a lâmpada saía como solta no ar, o pavor templário que eu sentia fora dos cortinados fazia avultar a indisposição nervosa que me criara a maneira fisiognomônica do estranho hóspede.
 
Pesava-me felizmente o sono e breve repousaria da obsessão incômoda.
 
Esquecia-me já a acompanhar visões mais raras, mais calmas, extintas e difusas, que me falavam ao ouvido a voz carinhosa da noiva, que desmanchavam coroas brancas, coando sorrisos num véu, que desfilavam silenciosas, parecendo-me ver a procissão austera dos antigos habitadores do solar, velhos fidalgos mortos, um depois de outro lívidos e majestosos, um depois de outro, infinitamente, cada vez mais vagos.
 
Ia adormecer, quando um rumor despertou-me. Excitação nervosa sem dúvida, julguei.
 
Não. Era por cima do leito, dentro da abóbada de madeira. Acentuava-se sensivelmente. Prestei ouvidos com a respiração suspensa.
 
Exatamente sobre o teto de meu aposento ficava a torre grande do castelo.
 
O rumor cresceu. Descia no interior da muralha de pedra. Era como passos por uma escada e um barulho de ferros ao mesmo tempo.
 
Instantes depois percebia mover-se uma porta. O ruído dos passos e dos ferros tornou-se distinto. Violenta horripilação sacudiu-me os membros. Levei instintivamente a mão à espada que deixara à cabeceira e esperei a visita.
 
A nesga do cortinado deixava-me ver. Naquele momento, acendiam-se pequeninas chamas na lareira perto da cama. Eu via adiantar-se um grande velho, descabelado, curvo, de barbas abundantes, sobre a nudez do peito espantosamente magro; o estômago fugia-lhe sob as costelas como um buraco, um andrajo inqualificável pendia-lhe dos rins. Trazia correntes nos pulsos e nos tornozelos. Pensei nas almas penadas.
 
O singular personagem, com um andar difícil, doloroso, acercou-se do braseiro, tiritando. Estendeu os braços para o fogo. Tinha frio o espectro.
 
— Ah! exclamou, este calor!... Há que tempo... Há que tempo não me aqueço!...
 
A voz cavernosa tremia-lhe como um gorjeio de sensualidade inexprimível, debilíssima voz que parecia vir da terra ou de longe, do fundo de um século.
 
Donde chegava, com efeito, aquele desgraçado? Ao meu primeiro abalo de temor sucedera a compaixão.
 
Vi-o olhar para o lado donde surgira sentidamente e longamente. Olhou depois para o chão, entregando-se a uma dor profunda. Ajoelhou-se e bateu muitas vezes com a fronte no ladrilho, soluçando como um louco.
 
— Meu Deus! meu Deus! repetia com angústia.
 
A um movimento que fiz no leito, houve um estalido. O velho ergueu-se.
 
— Quem está aí? gritou assustado. Há alguém nessa cama?
 
Respondi sentando-me e arredando bruscamente o cortinado:
 
— E quem me fala?
 
A minha presença foi de um efeito incrível.
 
Convulso, estrangulado pelos soluços, asfixiado pelas lágrimas, o velho ficou muito tempo impossibilitado de falar. Pediu-me com um gesto que esperasse. Faltava-lhe a voz.
 
— Sou, disse afinal, o mais desgraçado dos homens, o mais desgraçado... Nada mais devia dizer. Mas é tão bom falar... Há tanto tempo que não vejo ninguém... Ah! eu devia calar-me; mas é tão grande a ventura de falar a um dos meus semelhantes!...
 
Não é possível caracterizar o sentimento, a miséria daquelas palavras naquela voz hesitante e longínqua.
 
— Nada tema, disse-me. Venha sentar-se ao pé do fogo... Compadeça-se de mim, de um miserável. Seria um alívio ouvir-me os infortúnios.
 
Sem hesitação fui sentar-me à lareira, bem perto do velho. Esta prova de confiança comoveu-o. Tomou-me as mãos e cobriu-as de pranto ardente.
 
— Homem de coração... Por que veio dormir nesta sala onde ninguém habita?... E que rumores foram os desta manhã e desta noite?... Que músicas?... Que novidade houve hoje no castelo?...
 
Quando informei que fora o casamento da filha de Vildac, o velho ergueu os braços.
 
— Então Vildac tem uma filha?! E hoje casou?!... Grande Deus! fazei-a feliz para sempre e... que sempre o seu: pobre coração ignore o crime!...
 
Saiba agora quem sou... Eu sou o pai de Vildac!... do bárbaro Vildac... Mas terei direito de queixar-me? Ah! Não me cabe a mim acusá-lo...
 
— Como! exclamei com espanto. Como, pois?!... Vildac é seu filho e o monstro o conserva preso?... Sem falar a ninguém... carregado de ferros?!
 
— A cobiça! a cobiça! Ah! não sabe o que pode a cobiça... Nunca houve sentimentos no coração selvagem do meu desgraçado filho! Insensível à amizade, foi surdo até à voz da natureza. Para tomar-me a fortuna, carregou-me de ferros...
 
Foi um dia visitar um dos nossos vizinhos que perdera o pai. Achou-o no meio dos vassalos, muito atarefado a receber o produto das rendas e das safras. Um pensamento diabólico apoderou-se-lhe da vontade. Fechou-me o rosto. Notei-lhe uma transformação sombria. Um mês mais tarde, alguns homens mascarados agarraram-me brutalmente, à noite, e seminu trancaram-me na torre.
 
No outro dia, os sinos dobraram, por minha morte. Aqui, do meu cárcere, ouvi os cânticos fúnebres, as preces, ai de mim que pediam ao céu o descanso de minha alma...
 
Ah! Como me penetraram de tristeza aquelas cerimônias!... Ao menos os outros mortos não ouvem... De então por diante, eu não existia mais... E há vinte anos represento a triste comédia... Só não sei para que algemas... Os mortos não fogem...
 
— Não! disse eu possuído de indignação, não há de ser assim!
 
O velho prisioneiro interrompeu-me:
 
— Não desejo fugir... Quisera apenas dizer a meu filho duas palavras... Os que trazem a comida consideram-me um criminoso condenado a acabar nesta torre... E assim deve ser.
 
— Não! Há de deixar o cárcere... Fui destinado pelo céu... hei de salvá-lo... Partamos... Todos dormem... Serei o seu amparo, a sua defesa...
 
— Ah! meu bom senhor, mudaram-se muito os meus princípios e as minhas ideias nesta soledade em que vivo. Tudo é opinião... Agora, que me conformei com o que a situação tem de mais cruel, para que trocar por outra? Que iria eu fazer pelo mundo?... Está lançada a sorte...
 
— Reflita! reflita bem! O dia vai romper... Não sobra o tempo... Venha! vamos!...
 
— Comove-me este zelo, mas tão poucos dias tenho para viver... a liberdade já não tenta... De mais gozá-la fora desonrar o nome de meu filho...
 
— Ele é que se desonrou!...
 
— Mas essa inocente, que dorme agora nos braços do esposo... Eu iria cobri-la de infâmia... Ah! quanto preferia eu apertá-la ao peito, cobri-la de lágrimas. Por desgraça minha não hei de vê-la nunca!... Adeus, generoso amigo... Vai amanhecer... Podiam ver-nos... Eu volto à prisão.
 
— Impossível! protestei, detendo-o. Não posso consentir. A reclusão enfraqueceu-vos o cérebro... Eu darei ânimo... Mais tarde veremos se convém dar-se a conhecer... primeiro... Ninguém saberá; ocultarei ao mundo o crime de Vildac... Medo de quê?!
 
— Nada! Eu agradeço penetrado de reconhecimento... Eu o admiro; mas tudo é inútil. Não posso acompanhá-lo.
 
— Pois bem!... Escolha... Prefere que eu recorra ao governador da província. Revelarei tudo... Viremos arrancá-lo pelas armas à desumanidade de seu filho!
 
— Oh! não abuse jamais da minha revelação! Deixe-me morrer aqui...
 
E repentinamente, disforme, agitado, com uma voz medonha, concluiu:
 
— Saiba... Sou um monstro indigno da luz do dia! Há um crime, um crime que devo expiar... um crime infame... horroroso... Veja o chão... Está vendo essas pedras... têm manchas de sangue... as paredes também... Sangue por toda parte!...
 
Este sangue... é o sangue de meu pai... Eu o assassinei... Queria também como Vildac!!!... Ah! estou a vê-lo... ali! ali! Estende-me as mãos, os braços em sangue... Quer deter-me a fúria... Cai na pedra! Oh! visão horrível! Oh! desespero!...
 
O velho preso arremessou-se às lájeas, tirando punhados de cabelos brancos, contorcendo-se em convulsões de cólica, sacudindo o rumor tilintante dos elos. Não ousava mais encarar-me...
 
O terror aniquilou-me.
 
— Está agora horrorizado, disse o pai de Vildac, de pé, olhando-me atravessado. Adeus!...
 
E, com uma calma fantástica:
 
— Fuja de mim! Eu torno a subir para a torre...
 
Quando mais sereno busquei combinar as ideias e verificar se me iludira uma alucinação, o velho tinha desaparecido.
 
Ouvi ainda, mas quase imperceptível, na abóbada, o último rumor das correntes.
 
Clareavam-se as vidraças com a polidez azul das madrugadas de inverno.
 
Eu fugi do castelo, levando para toda a vida o espanto desta aventura sem nome.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 12 de dezembro de 2021

ALTRUÍSMO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

ALTRUÍSMO

Humberto de Campos

 

 

 

"Domingo, 6. Regresso, enfim, à pátria querida, e aos braços do meu marido. Após dois anos de ausência, embarquei, ontem, às 5 horas da tarde, em Lisboa, aonde cheguei anteontem, de Paris. O navio vai repleto de passageiros, principalmente de emigrantes, embarcados em Vigo e no Porto. O mar apresenta-se bem, e a viagem está sendo feita sem novidade.

 

Segunda-feira, 7. — Tudo continua bem a bordo. Os passageiros de 1ª classe, na sua maior parte argentinos, bebem e jogam, no "bar". No tombadilho, alguns ingleses, que se dirigem ao Rio e a Buenos— Aires, fumando displicentemente. Algumas francesas que conduzem vestidos feitos para a sociedade carioca; e três ou quatro famílias brasileiras, que se conservam nos seus camarotes.

 

Terça-feira, 8. — A viagem continua excelente. Em palestra com o imediato, este me informou que vão a bordo, para o Rio, Santos, Montevidéu e Buenos-Aires, 1.275 passageiros. Uma verdadeira cidade flutuante, em que não há cinco pessoas que reciprocamente se conheçam!

 

Quarta-feira, 9. — O mar permanece calmo, e o céu prenuncia bom tempo. À mesa do almoço, notei que o comandante olhava insistentemente para mim, distinguindo-me entre as outras senhoras. Achei esquisita a insistência, e fiz-me de desentendida. À noite, não desci para o jantar.

 

Quinta-feira, 10. — O comandante continuou, hoje, à mesa, a olhar-me com desusado atrevimento, a ponto de esquecer-se do talher e do whisky. É um inglesão alto, robusto, de quarenta e poucos anos presumíveis, bigode louro, tez corada e fina, olhos azuis como o oceano. Um verdadeiro tipo de marujo britânico. Entretanto, a sua insistência irrita-me. Por quem me tomará ele?

 

Sexta-feira, 11. — Após o jantar, o comandante Wiliam desceu da casa de comando ao tombadilho, procurando conversar comigo, em inglês. Fiz todo o possível para impedir uma declaração indelicada, não o conseguindo. Não é que o homem está mesmo apaixonado?

 

Sábado, 12. — Esta situação começa a incomodar-me. O comandante passou o dia quase todo a perseguir-me, insistindo em declarar-me a sua paixão desordenada. Tenho a impressão de que o homem enlouqueceu. E eu, sozinha, sem um amigo, sem um conhecido que me defenda! Como é perigoso para uma senhora viajar só!...

 

Domingo, 13. — O comandante enlouqueceu, positivamente. Hoje, à tarde, aproveitando um momento em que ficamos sós no salão de música, apertou-me os pulsos com violência, dizendo-me que não lhe é possível resistir mais. Diz ele que, se eu me não entregar à sua paixão louca, ele meterá o navio a pique em pleno oceano, fazendo perecer todos que nele viajam. Dai-me forças, meu Deus! Dai-me coragem!

 

Segunda-feira, 14. — Que dia horrível, este! Como um louco, o cabelo e o bigode revoltos, os olhos inchados pela insônia e pelo desejo, o comandante declarou-me, trêmulo sob palavra de honra, que, se eu não for à meia-noite de hoje, ao seu camarote, meia hora depois ele fará explodir o navio, em uma catástrofe de que se não salvará ninguém. Que situação a minha! Tende piedade de mim, minha Nossa Senhora da Penha! Iluminai-me, minha Virgem Maria!

 

Terça-feira, 15. — Salvei da morte 1.275 passageiros! Não haverá outros navios correndo perigo no mar?"


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 10 de dezembro de 2021

METAFÍSICA DAS ROSAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

METAFÍSICA DAS ROSAS

Machado de Assis

 

 

 

LIVRO PRIMEIRO

 

No princípio era o Jardineiro. E o Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para glória e contemplação das Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas, os galhos, os troncos e botões. Criou a terra e o estrume. Criou as árvores grandes para que amparassem o toldo azul que cobre o jardim e a chácara, e ele não caísse e esmagasse as Rosas. Criou as borboletas e os vermes. Criou o sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.

 

Grande é o Jardineiro! Suas longas pernas são feitas de tronco eterno. Os braços são galhos que nunca morrem; a espádua é como um forte muro por onde a erva trepa. As mãos, largas, espalham benefícios às Rosas.

 

Vede agora mesmo. A noite voou, amanhã clareia o céu, cruzam-se as borboletas e os passarinhos, há uma chuva de pipilos e trinados no ar. Mas a terra estremece. É o pé do Jardineiro que caminha para as Rosas. Vede: traz nas mãos o regador que borrifa sobre as Rosas a água fresca e pura, e assim também sobre as outras plantas, todas criadas para glória das Rosas. Ele o formou no dia em que, tendo criado o sol, que dá vida às Rosas, este começou a arder sobre a terra. Ele o enche de água todas as manhãs, uma, duas, cinco, dez vezes. Para a noite, pôs ele no ar um grande regador invisível que peneira orvalho; e quando a terra seca e o calor abafa, enche o grande regador das chuvas que alagam a terra de água e de vida.

 

 

 

LIVRO II

 

Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:

 

— Que tendes vós, que inclinais as pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o jardim; criei o sol e os ventos frescos; derramo sobre vós o orvalho e a chuva; criei todas as plantas para que vos amem e vos contemplem. A minha mão detém no meio do ar os grandes pássaros para que vos não esmaguem ou devorem. Sois as princesas da terra. Por que inclinais as pétalas para o chão?

 

Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse.

 

O Jardineiro sacudiu a cabeça com um gesto terrível; o jardim e a chácara estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que trazia:

 

— Dei-vos tudo e não estais satisfeitas? Criei tudo para vós e pedis mais? Pedis a contemplação de outros olhos; ides tê-la. Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e ame.

 

E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão. No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos, mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto, soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.

 

E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:

 

— Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores, as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras.

 

 

 

LIVRO III

 

O homem e a mulher tiveram filhos e os filhos outros filhos, e disseram eles entre si:

 

— O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres.

 

Então vieram à chácara e ao jardim, e bailaram e riram, e giraram em volta das Rosas, cortejando-as e sorrindo para elas. Vieram também outros e cantaram em verso os merecimentos da Rosas. E quando queriam falar da beleza de alguma filha das mulheres faziam comparação com as Rosas, porque as Rosas são as maiores belezas do universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e respira.

 

Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o Jardineiro disse-lhes: — Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um lugar de delícias que vos indicarei.

 

Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. E levando-as para fora do jardim, foram com elas a um lugar de delícias, misterioso e remoto, onde todos os filhos dos homens e todas as filhas das mulheres as adoram prostrados no chão. E depois que o Jardineiro manda embora o sol, pega das Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e uma por uma prega-as no toldo azul que cobre a chácara e o jardim, onde elas ficam cintilantes durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem a noite quando o sol vai descansar por trás das grandes árvores do ocaso.

 

Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os ventos, nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas sublimes.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 09 de dezembro de 2021

O MODELO DO ANJO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA

O MODELO DO ANJO

Raul Pompéia

 

 

 

Estava aberta a exposição.

O bonito frontispício da Academia de Belas-Artes arregalava as janelas, como grandes olhos satisfeitos, e, com fome pantagruélica, ia devorando a multidão que se lhe enfiava pelo pórtico. A fachada despia-se de sua melancolia de pedra, e parecia abrir-se num vasto sorriso. E as flâmulas e bandeiras fincadas nas cornijas, com que atiravam das suas dobras multicores punhados de alegria sobre os que entravam.

Na área semicircular que existe diante do edifício apertava-se o povo, arquejando aos calores da mais límpida soalheira. Ali suava a impaciência, debatendo-se aos empurrões.

Acabava de ser franqueado ao público o ingresso no edifício.

O imperador, que assistira à abertura da exposição acompanhado dos visitantes de convite especial, tinha já ido embora, feita a sua visita às salas de trabalhos. Chegara a vez de todos. Todos queriam entrar.

Um homem, entretanto, se conservava à distância, e estava parado junto de uma das paredes do conservatório, olhando para o povo.

Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho. Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisticamente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica, e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de prata. Semeava olhares por aquela multidão sufocando-se para entrar no templo das artes. Um sorriso vago passeava-lhe nos lábios:

- Que entusiasmo! murmurou, não me é possível entrar hoje...

Estas palavras, ditas distraidamente, foram ouvidas pelas pessoas mais próximas, que viram-no depois retirar-se andando compassadamente, e desaparecer no Rocio.

O interessante personagem encaminhou-se para a rua do Ouvidor. No adro de S. Francisco de Paula um moço que passava, saudou-o, tirando o chapéu:

- Sr. comendador!...

Pouco mais adiante um homem parou-lhe em frente.

Era Vítor Meireles.

O nosso comendador fez um gracioso cumprimento ao pintor, que, sem preâmbulos, perguntou-lhe:

Então, caro mio, como vai a sua Visão?

- Apenas desenhada...

- Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime... Já se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de rosas, meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, vai dar ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da menina e a túnica abundante e leve do anjo que arrebata a criança através da luz, prestam-se para um ensamble majestoso, não falando nas lindas combinações de reflexos que virão por .... Oh! eu imagino!.. O seu quadro vai fazer barulho... Vamos ver aqui no Rio um painel religioso digno da Renascença...

- Ora, Vítor!...

Qual ora!... Eu não o conheço e você não me conhece?... Quer ouvir o que eu digo?... Entusiasmo e perseverança, que você terá um sucesso...

- Qual! Não espero grande cousa..

- Verá... E depois mande-o à Itália, para experimentar...

- Que homem para dizer cousas bonitas!... Verdade é que você me está animando... Eu hei de trabalhar com gosto, fique certo... Olhe... além do croquis do schizzo que você viu... já executei estudos especiais das figuras... já fiz na tela o desenho do conjunto... Encontrei, porém, uma dificuldade. Falta-me um modelo... Quero dar ao meu anjo um rosto que seja ao mesmo tempo um reflexo deste mundo e do outro; um meio termo entre o idealismo do sobrenatural e a realidade terrena, que faça sentir que o anjo é do céu, mas acha-se na terra; em suma, a fusão da beleza etérea com a beleza que se apalpa. Quero um rosto que preste para receber os toques do meu ideal, uma carinha própria...

- Uma carinha de matar a gente, observou, rindo, Vítor Meireles...

- E não encontro...

- Não é fácil... não é fácil...

- Bem o vejo... Na Itália fora menos difícil. Há muita mocinha para modelo... Aqui está-se como num deserto... muita moça bonita... modelo... nenhum! Ninguém quer ser...

- Eu tenho um... talvez...

- Bonita?

- Admirável... da cabeça aos pés...

- Que idade?

- Vinte e três anos.

- É muito velha... Em todo o caso, se ela quiser...

- Pagando-se bem, ela quer.

- Se quiser e servir... Onde mora ela?

- Rua... número...

- Hei de vê-la... Preciso ver tudo... Ando sequioso como um conquistador...

- Tem motivos.

Algumas palavras mais trocaram os pintores; depois, cada um foi para sua banda.

O comendador, ou Giacometo, como o chamara Vítor Meireles, entrou na rua do Ouvidor e desceu até à dos Ourives, examinando com interesse o semblante das jovens transeuntes.

Pela rua dos Ourives dirigiu-se à da Ajuda, e lá entrou em um corredor do lado esquerdo.

 

II

 

Entremos. Tem-se primeiro que subir uma escada. No alto da escada há uma pequena sala de recepção, forrada de azul, bem arranjada, que dá para uma outra sala muito clara, muito arejada, com janelas para a rua e fisionomia de atelier. Grande mesa ao centro, coberta de pincéis, palhetas, tintas, rolos de tela, frascos de óleo e aguarrás, em ativa confusão. Por volta, as paredes encobertas sob uma nuvem de quadros bem acabados, mas sem moldura. Nos cantos, diversos cavaletes com pinturas por concluir, dos quais destacava-se um maior sobre o qual se via uma grande tela já riscada e com algumas pinceladas a esmo... Era a casa de Carlo Giacometo, um valente pintor, educado em Roma e Milão, que vira o dia na cidade do paganismo formidável e do catolicismo dos Papas, à sombra inspiradora do zimbório de S. Pedro.

Estava no Brasil, havia dois anos somente. O seu coração de artista o trouxera. Haviam-lhe falado de um grande país, onde o homem se compreende pequeno ante a grandeza esmagadora de tudo o que o cerca. Nesse país não se sonha o ideal, porque o ideal palpita no céu profundo e azul, nas matas ínvias, na rocha esfolada pelas cachoeiras e no sol que dá fulgurações a tudo. Ele quisera ver.

Sim, que Giacometo era um artista.

Tinha maneiras de olhar e movimentos que pareciam estudados à vista de um ensaiador. Estava sempre como que apertado num círculo de conveniências artísticas com que se dava perfeitamente. As próprias dobras do vestuário amarrotavam-se-lhe graciosas, tal qual se fossem corrigidas a dedo. Um artista, da periferia até o âmago.

Não admira, pois, que ele houvesse feito viagem para o Brasil por amor do belo.

Graças aos auxílios de Júlio Mill, um notável paisagista francês, que aqui viveu obscuramente e na obscuridade morreu, Giacometo estabeleceu-se. Fez relações com os artistas mais distintos da nossa roda de pintores; arranjou discípulos e encomendas, que davam-lhe bastante para levar a vida sem tocar na pequena fortuna que possuía na Itália..

Até à época da nossa narrativa, Giacometo não tinha executado senão pequenos quadros e retratos, muito apreciados pelos conhecedores, mas impróprios para fazer sensação. O seu sucesso devia ser a Visão, o belo projeto que conhecemos.

Era encomenda de um rico visconde, que queria ter no seu gabinete a lembrança viva de uma filhinha que perdera havia tempo. O visconde tomava imenso interesse pelo quadro, e não apertava os cordões da sua generosidade para recompensar o artista.

O motivo do quadro era delicadamente arrebatador, para uma alma como a de Cario Giacometo.

A recompensa era deslumbrante. Tudo convidava.

Carlo atirou-se à empresa com toda a vontade, com todo o fervor, com toda a consciência.

Não era para menos. Tratava-se da sua reputação em país estrangeiro, da sua glorificação talvez. Away!

Em pouco tempo estavam feitas as despesas urgentes: tintas, tela, pincéis novos. E Carlo preparava croquis, ensaiando-se para a grande execução. O fogo do seu entusiasmo foi vivamente atiçado pelo aplauso dos artistas de nota que examinaram os croquis. Houve até um pintor que pediu-lhe antecipadamente o pincel que rematasse o trabalho.

Giacometo começou. Traçou o desenho na tela. Apareceu-lhe então um sério embaraço. Faltava um modelo. Para a criança que ele queria pintar levada para o céu, possuía excelentes fotografias e as informações do visconde. Mas o anjo?...

Carlo daria à menina a expressão da felicidade metafísica de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível e doce das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos nos pequeninos sonos do berço...

A dificuldade era o anjo.

Para o rosto do anjo convergiam os esforços de Giacometo. Aí a sua verdadeira criação. Aí o momento estético da concepção, por assim dizer. Carecia-se de um modelo excepcional.

Giacometo saiu à caça.

Apesar dos seus cinqüenta anos e das suas octogenárias cãs, o pintor desenvolveu uma atividade de fanático.

Percorria as ruas observando atentamente, varava rótulas e sacadas com uns olhares sedentos. Nem uma só moça escapava-lhe. Era como D. Juan de barbas brancas.

Uma vez, andou escandalosamente atrás de uma criadinha. Não pôde falar-l. A criadinha desconfiou e apressou o passo para casa. Cano não insistiu. A criadinha, conquanto bonita, não era exatamente o seu ideal; além disso, não pareceu-lhe de um branco muito puro... Não servia.

Em outra ocasião, parou muito à vontade diante de uma jovem senhora, que na sua janela via os bondes e abanava vagarosamente um leque. Quando a moça deu com aquele sujeito todo elegante, de barbas cor de espuma, ficou admirada, e, retirando-se vivamente atirou-lhe uma risada. Giacometo não percebeu a desfeita, mas sentiu... Aquela rapariga aproximava-se bem...

Passou-lhe pelo cérebro o pensamento de apresentar-se à moça.

Por que não? O que lhe faltava era simplesmente uma pessoa que se quisesse deixar retratar em uma grande tela. Não se tratava exatamente de um modelo vivo... Que dúvida haveria...

Refletindo mais, lembrou-se da dificuldade em que se veria, caso um exame de perto lhe mostrasse que a moça não prestava. Com que cara havia de dizer:

- V. Exa. não serve para meu anjo...

Giacometo desistiu.

Desistir não é desanimar. E o pintor procurava... Visitou os arrabaldes, as ilhas da baía, fez mesmo algumas viagenzinhas... Entretanto, quando alguém que sabia da sua empresa perguntava-lhe:

- E o anjo?

- Não achei ainda!... respondia.

 

III

 

Por esse tempo abriu-se a exposição de Belas Artes. Giacometo mandara alguns quadros. Para ver que figura fazia o seu trabalho, no meio do dos demais expositores, Cano Giacometo foi visitá-la. No primeiro dia não pôde entrar. Três dias depois voltou à carga. Não havia a mesma afluência do primeiro dia. O pintor entrou...

Passou rapidamente os olhos pelas pinturas expostas na saleta fronteira à entrada, nessa onde se vê uma estátua de Pedro II, muito branca, de espada pendente à esquerda, fitando tranqüilo um cavaleiro de bronze, que galopa nos ares ao longe e acena-lhe com um rolo de papel.

Seguiu depois pelo corredor que leva à pinacoteca, e, na porta da primeira sala à direita parou. Tinha avistado um dos seus quadros.

Giacometo foi vê-lo de perto.

Entretanto, a vista encontrou-lhe uma grande tela pendurada à esquerda.

Um assunto delicado. Representava uma bela rapariguinha de quatorze ou quinze anos, braços e ombros nus, debruçada numa janela, tentando quebrar com os dedos o pedúnculo de uma rosa. A janela ou trapeira era do tamanho da moldura, de sorte que a figura parecia inclinar-se para fora do painel. Tinha uma execução magistral esse trabalho.

Giacometo sentiu-se preso pelo quadro. Esqueceu completamente os sentidos. Era o maravilhoso semblante da rapariguinha que quebrava o pedúnculo e ria para o espectador...

O pintor consultou o catálogo que lhe haviam oferecido na porta do edifício. Rezava assim:

- Sessenta e quatro. Cópia do natural; trabalho do Sr F.C. Rua da Ajuda n. ...

Que felicidade! F. C. era um pintor seu vizinho, que o tinha em muita consideração e se mostrava seu amigo...

Giacometo contemplou por mais algum tempo o belo quadro, e depois, esquecendo completamente a exposição, retirou-se apressado.

Um conhecido, que o viu andando muito precipitado, perguntou-lhe:

- Onde vai tão apressado, comendador?

- Já tenho o anjo! respondeu ele, sem saber se falava a uma pessoa que tivesse notícia de sua empresa.

Em poucos minutos chegava à rua da Ajuda e batia à porta de F.C.

Veio recebê-lo uma espécie de criada, raquítica, sem sangue e sem carne, metida em uma saia cheia de rugas verticais, que escapava-se-lhe dos ossudos quadris como de dous cabides. Parecia bem moça. Tinha, porém, o rosto escalavrado, o que duplicava-lhe a idade.

- O Sr. F. C. está em casa? perguntou Giacometo.

- Sim, senhor...

- Quero falar-lhe.

- Entre...

E a magra porteira, retirando-se pata um lado, deu caminho ao pintor.

Giacometo encaminhou-se logo para o atelier de F.C. e foi surpreendê-lo em trabalho.

- Oh! meu grande Giacometo, o que significa esta visita? Você custa tanto a aparecer...

- Sabe?... Venho aqui por causa do meu anjo...

- Ainda o teu anjo...

- É exato... Com certeza os do céu não custaram tanto trabalho a quem os fez...

- Mas em que posso eu servir-lhe...

- Vai dar-me o modelo...

- Como?!

- É muito simples... Quem é o autor do quadro n. 64 da exposição?...

- Oh!... Mas você não é homem de copiar...

- Sei... sei... O que eu quero não é o seu lindo quadro; é o precioso modelo que lhe serviu... Deve ser uma perfeição.

- É impossível achar-se cousa que mais satisfaça... É quase o meu sonho... Com algum fulgor mais na fisionomia... está feito o meu anjo... Diga-me quem foi o seu modelo... Juro-lhe que qualquer despesa que haja de fazer não me amedronta...

Um sorriso amargo, inexplicável, traçou-se no rosto de F.C.

- Ai, meu caro Giacometo, eu vou apresentar-te o meu modelo... É minha sobrinha, uma órfã que minha mulher acolheu... Está comigo há meses... Talvez você a tenha visto...

- Nunca! protestou fortemente Carlo... O meu anjo não passaria despercebido!

- Pobre anjo!...

- Não o compreendo...

- Vai compreender... Espere um pouco...

F. C. afastou-se da tela diante da qual conversava com Giacometo, e, oferecendo-lhe uma cadeira, desapareceu no interior da casa.

Instantes após, voltava, impelindo delicadamente pelos ombros a mesma pessoa que recebera o nosso comendador.

- Aqui está o modelo... disse em tom de tristeza.

- O modelo? perguntou Giacometo de um modo estranho.

F. C. afirmou com a cabeça.

A pobre mocinha curvava a cabeça com um acanhamento doloroso.

Esta cena foi de efeito fulminante para Carlo Giacometo. O desgraçado fixava na moça um olhar de louco.

- Ah! meu bom Carlo, as bexigas podem arruinar um modelo...

O artista da Visão deixou pender a cabeça e cobriu o rosto com a mão...

Parecia um condenado. As lágrimas passavam-se por entre os dedos e iam desaparecer-lhe na longa barba.

 

No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo encomenda da Visão recebeu uma cartinha:

"Meu caro Sr. visconde. - Com profundo pesar declaro a V. Exa. que não me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incumbência...

"Etc. - Cano Giacometo."

O visconde recorreu a outro.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 09 de dezembro de 2021

O MODELO DE ANJO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA

 

 

 

 

Estava aberta a exposição.

O bonito frontispício da Academia de Belas-Artes arregalava as janelas, como grandes olhos satisfeitos, e, com fome pantagruélica, ia devorando a multidão que se lhe enfiava pelo pórtico. A fachada despia-se de sua melancolia de pedra, e parecia abrir-se num vasto sorriso. E as flâmulas e bandeiras fincadas nas cornijas, com que atiravam das suas dobras multicores punhados de alegria sobre os que entravam.

Na área semicircular que existe diante do edifício apertava-se o povo, arquejando aos calores da mais límpida soalheira. Ali suava a impaciência, debatendo-se aos empurrões.

Acabava de ser franqueado ao público o ingresso no edifício.

O imperador, que assistira à abertura da exposição acompanhado dos visitantes de convite especial, tinha já ido embora, feita a sua visita às salas de trabalhos. Chegara a vez de todos. Todos queriam entrar.

Um homem, entretanto, se conservava à distância, e estava parado junto de uma das paredes do conservatório, olhando para o povo.

Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho. Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisticamente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica, e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de prata. Semeava olhares por aquela multidão sufocando-se para entrar no templo das artes. Um sorriso vago passeava-lhe nos lábios:

- Que entusiasmo! murmurou, não me é possível entrar hoje...

Estas palavras, ditas distraidamente, foram ouvidas pelas pessoas mais próximas, que viram-no depois retirar-se andando compassadamente, e desaparecer no Rocio.

O interessante personagem encaminhou-se para a rua do Ouvidor. No adro de S. Francisco de Paula um moço que passava, saudou-o, tirando o chapéu:

- Sr. comendador!...

Pouco mais adiante um homem parou-lhe em frente.

Era Vítor Meireles.

O nosso comendador fez um gracioso cumprimento ao pintor, que, sem preâmbulos, perguntou-lhe:

Então, caro mio, como vai a sua Visão?

- Apenas desenhada...

- Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime... Já se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de rosas, meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, vai dar ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da menina e a túnica abundante e leve do anjo que arrebata a criança através da luz, prestam-se para um ensamble majestoso, não falando nas lindas combinações de reflexos que virão por .... Oh! eu imagino!.. O seu quadro vai fazer barulho... Vamos ver aqui no Rio um painel religioso digno da Renascença...

- Ora, Vítor!...

Qual ora!... Eu não o conheço e você não me conhece?... Quer ouvir o que eu digo?... Entusiasmo e perseverança, que você terá um sucesso...

- Qual! Não espero grande cousa..

- Verá... E depois mande-o à Itália, para experimentar...

- Que homem para dizer cousas bonitas!... Verdade é que você me está animando... Eu hei de trabalhar com gosto, fique certo... Olhe... além do croquis do schizzo que você viu... já executei estudos especiais das figuras... já fiz na tela o desenho do conjunto... Encontrei, porém, uma dificuldade. Falta-me um modelo... Quero dar ao meu anjo um rosto que seja ao mesmo tempo um reflexo deste mundo e do outro; um meio termo entre o idealismo do sobrenatural e a realidade terrena, que faça sentir que o anjo é do céu, mas acha-se na terra; em suma, a fusão da beleza etérea com a beleza que se apalpa. Quero um rosto que preste para receber os toques do meu ideal, uma carinha própria...

- Uma carinha de matar a gente, observou, rindo, Vítor Meireles...

- E não encontro...

- Não é fácil... não é fácil...

- Bem o vejo... Na Itália fora menos difícil. Há muita mocinha para modelo... Aqui está-se como num deserto... muita moça bonita... modelo... nenhum! Ninguém quer ser...

- Eu tenho um... talvez...

- Bonita?

- Admirável... da cabeça aos pés...

- Que idade?

- Vinte e três anos.

- É muito velha... Em todo o caso, se ela quiser...

- Pagando-se bem, ela quer.

- Se quiser e servir... Onde mora ela?

- Rua... número...

- Hei de vê-la... Preciso ver tudo... Ando sequioso como um conquistador...

- Tem motivos.

Algumas palavras mais trocaram os pintores; depois, cada um foi para sua banda.

O comendador, ou Giacometo, como o chamara Vítor Meireles, entrou na rua do Ouvidor e desceu até à dos Ourives, examinando com interesse o semblante das jovens transeuntes.

Pela rua dos Ourives dirigiu-se à da Ajuda, e lá entrou em um corredor do lado esquerdo.

 

II

 

Entremos. Tem-se primeiro que subir uma escada. No alto da escada há uma pequena sala de recepção, forrada de azul, bem arranjada, que dá para uma outra sala muito clara, muito arejada, com janelas para a rua e fisionomia de atelier. Grande mesa ao centro, coberta de pincéis, palhetas, tintas, rolos de tela, frascos de óleo e aguarrás, em ativa confusão. Por volta, as paredes encobertas sob uma nuvem de quadros bem acabados, mas sem moldura. Nos cantos, diversos cavaletes com pinturas por concluir, dos quais destacava-se um maior sobre o qual se via uma grande tela já riscada e com algumas pinceladas a esmo... Era a casa de Carlo Giacometo, um valente pintor, educado em Roma e Milão, que vira o dia na cidade do paganismo formidável e do catolicismo dos Papas, à sombra inspiradora do zimbório de S. Pedro.

Estava no Brasil, havia dois anos somente. O seu coração de artista o trouxera. Haviam-lhe falado de um grande país, onde o homem se compreende pequeno ante a grandeza esmagadora de tudo o que o cerca. Nesse país não se sonha o ideal, porque o ideal palpita no céu profundo e azul, nas matas ínvias, na rocha esfolada pelas cachoeiras e no sol que dá fulgurações a tudo. Ele quisera ver.

Sim, que Giacometo era um artista.

Tinha maneiras de olhar e movimentos que pareciam estudados à vista de um ensaiador. Estava sempre como que apertado num círculo de conveniências artísticas com que se dava perfeitamente. As próprias dobras do vestuário amarrotavam-se-lhe graciosas, tal qual se fossem corrigidas a dedo. Um artista, da periferia até o âmago.

Não admira, pois, que ele houvesse feito viagem para o Brasil por amor do belo.

Graças aos auxílios de Júlio Mill, um notável paisagista francês, que aqui viveu obscuramente e na obscuridade morreu, Giacometo estabeleceu-se. Fez relações com os artistas mais distintos da nossa roda de pintores; arranjou discípulos e encomendas, que davam-lhe bastante para levar a vida sem tocar na pequena fortuna que possuía na Itália..

Até à época da nossa narrativa, Giacometo não tinha executado senão pequenos quadros e retratos, muito apreciados pelos conhecedores, mas impróprios para fazer sensação. O seu sucesso devia ser a Visão, o belo projeto que conhecemos.

Era encomenda de um rico visconde, que queria ter no seu gabinete a lembrança viva de uma filhinha que perdera havia tempo. O visconde tomava imenso interesse pelo quadro, e não apertava os cordões da sua generosidade para recompensar o artista.

O motivo do quadro era delicadamente arrebatador, para uma alma como a de Cario Giacometo.

A recompensa era deslumbrante. Tudo convidava.

Carlo atirou-se à empresa com toda a vontade, com todo o fervor, com toda a consciência.

Não era para menos. Tratava-se da sua reputação em país estrangeiro, da sua glorificação talvez. Away!

Em pouco tempo estavam feitas as despesas urgentes: tintas, tela, pincéis novos. E Carlo preparava croquis, ensaiando-se para a grande execução. O fogo do seu entusiasmo foi vivamente atiçado pelo aplauso dos artistas de nota que examinaram os croquis. Houve até um pintor que pediu-lhe antecipadamente o pincel que rematasse o trabalho.

Giacometo começou. Traçou o desenho na tela. Apareceu-lhe então um sério embaraço. Faltava um modelo. Para a criança que ele queria pintar levada para o céu, possuía excelentes fotografias e as informações do visconde. Mas o anjo?...

Carlo daria à menina a expressão da felicidade metafísica de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível e doce das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos nos pequeninos sonos do berço...

A dificuldade era o anjo.

Para o rosto do anjo convergiam os esforços de Giacometo. Aí a sua verdadeira criação. Aí o momento estético da concepção, por assim dizer. Carecia-se de um modelo excepcional.

Giacometo saiu à caça.

Apesar dos seus cinqüenta anos e das suas octogenárias cãs, o pintor desenvolveu uma atividade de fanático.

Percorria as ruas observando atentamente, varava rótulas e sacadas com uns olhares sedentos. Nem uma só moça escapava-lhe. Era como D. Juan de barbas brancas.

Uma vez, andou escandalosamente atrás de uma criadinha. Não pôde falar-l. A criadinha desconfiou e apressou o passo para casa. Cano não insistiu. A criadinha, conquanto bonita, não era exatamente o seu ideal; além disso, não pareceu-lhe de um branco muito puro... Não servia.

Em outra ocasião, parou muito à vontade diante de uma jovem senhora, que na sua janela via os bondes e abanava vagarosamente um leque. Quando a moça deu com aquele sujeito todo elegante, de barbas cor de espuma, ficou admirada, e, retirando-se vivamente atirou-lhe uma risada. Giacometo não percebeu a desfeita, mas sentiu... Aquela rapariga aproximava-se bem...

Passou-lhe pelo cérebro o pensamento de apresentar-se à moça.

Por que não? O que lhe faltava era simplesmente uma pessoa que se quisesse deixar retratar em uma grande tela. Não se tratava exatamente de um modelo vivo... Que dúvida haveria...

Refletindo mais, lembrou-se da dificuldade em que se veria, caso um exame de perto lhe mostrasse que a moça não prestava. Com que cara havia de dizer:

- V. Exa. não serve para meu anjo...

Giacometo desistiu.

Desistir não é desanimar. E o pintor procurava... Visitou os arrabaldes, as ilhas da baía, fez mesmo algumas viagenzinhas... Entretanto, quando alguém que sabia da sua empresa perguntava-lhe:

- E o anjo?

- Não achei ainda!... respondia.

 

III

 

Por esse tempo abriu-se a exposição de Belas Artes. Giacometo mandara alguns quadros. Para ver que figura fazia o seu trabalho, no meio do dos demais expositores, Cano Giacometo foi visitá-la. No primeiro dia não pôde entrar. Três dias depois voltou à carga. Não havia a mesma afluência do primeiro dia. O pintor entrou...

Passou rapidamente os olhos pelas pinturas expostas na saleta fronteira à entrada, nessa onde se vê uma estátua de Pedro II, muito branca, de espada pendente à esquerda, fitando tranqüilo um cavaleiro de bronze, que galopa nos ares ao longe e acena-lhe com um rolo de papel.

Seguiu depois pelo corredor que leva à pinacoteca, e, na porta da primeira sala à direita parou. Tinha avistado um dos seus quadros.

Giacometo foi vê-lo de perto.

Entretanto, a vista encontrou-lhe uma grande tela pendurada à esquerda.

Um assunto delicado. Representava uma bela rapariguinha de quatorze ou quinze anos, braços e ombros nus, debruçada numa janela, tentando quebrar com os dedos o pedúnculo de uma rosa. A janela ou trapeira era do tamanho da moldura, de sorte que a figura parecia inclinar-se para fora do painel. Tinha uma execução magistral esse trabalho.

Giacometo sentiu-se preso pelo quadro. Esqueceu completamente os sentidos. Era o maravilhoso semblante da rapariguinha que quebrava o pedúnculo e ria para o espectador...

O pintor consultou o catálogo que lhe haviam oferecido na porta do edifício. Rezava assim:

- Sessenta e quatro. Cópia do natural; trabalho do Sr F.C. Rua da Ajuda n. ...

Que felicidade! F. C. era um pintor seu vizinho, que o tinha em muita consideração e se mostrava seu amigo...

Giacometo contemplou por mais algum tempo o belo quadro, e depois, esquecendo completamente a exposição, retirou-se apressado.

Um conhecido, que o viu andando muito precipitado, perguntou-lhe:

- Onde vai tão apressado, comendador?

- Já tenho o anjo! respondeu ele, sem saber se falava a uma pessoa que tivesse notícia de sua empresa.

Em poucos minutos chegava à rua da Ajuda e batia à porta de F.C.

Veio recebê-lo uma espécie de criada, raquítica, sem sangue e sem carne, metida em uma saia cheia de rugas verticais, que escapava-se-lhe dos ossudos quadris como de dous cabides. Parecia bem moça. Tinha, porém, o rosto escalavrado, o que duplicava-lhe a idade.

- O Sr. F. C. está em casa? perguntou Giacometo.

- Sim, senhor...

- Quero falar-lhe.

- Entre...

E a magra porteira, retirando-se pata um lado, deu caminho ao pintor.

Giacometo encaminhou-se logo para o atelier de F.C. e foi surpreendê-lo em trabalho.

- Oh! meu grande Giacometo, o que significa esta visita? Você custa tanto a aparecer...

- Sabe?... Venho aqui por causa do meu anjo...

- Ainda o teu anjo...

- É exato... Com certeza os do céu não custaram tanto trabalho a quem os fez...

- Mas em que posso eu servir-lhe...

- Vai dar-me o modelo...

- Como?!

- É muito simples... Quem é o autor do quadro n. 64 da exposição?...

- Oh!... Mas você não é homem de copiar...

- Sei... sei... O que eu quero não é o seu lindo quadro; é o precioso modelo que lhe serviu... Deve ser uma perfeição.

- É impossível achar-se cousa que mais satisfaça... É quase o meu sonho... Com algum fulgor mais na fisionomia... está feito o meu anjo... Diga-me quem foi o seu modelo... Juro-lhe que qualquer despesa que haja de fazer não me amedronta...

Um sorriso amargo, inexplicável, traçou-se no rosto de F.C.

- Ai, meu caro Giacometo, eu vou apresentar-te o meu modelo... É minha sobrinha, uma órfã que minha mulher acolheu... Está comigo há meses... Talvez você a tenha visto...

- Nunca! protestou fortemente Carlo... O meu anjo não passaria despercebido!

- Pobre anjo!...

- Não o compreendo...

- Vai compreender... Espere um pouco...

F. C. afastou-se da tela diante da qual conversava com Giacometo, e, oferecendo-lhe uma cadeira, desapareceu no interior da casa.

Instantes após, voltava, impelindo delicadamente pelos ombros a mesma pessoa que recebera o nosso comendador.

- Aqui está o modelo... disse em tom de tristeza.

- O modelo? perguntou Giacometo de um modo estranho.

F. C. afirmou com a cabeça.

A pobre mocinha curvava a cabeça com um acanhamento doloroso.

Esta cena foi de efeito fulminante para Carlo Giacometo. O desgraçado fixava na moça um olhar de louco.

- Ah! meu bom Carlo, as bexigas podem arruinar um modelo...

O artista da Visão deixou pender a cabeça e cobriu o rosto com a mão...

Parecia um condenado. As lágrimas passavam-se por entre os dedos e iam desaparecer-lhe na longa barba.

 

No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo encomenda da Visão recebeu uma cartinha:

"Meu caro Sr. visconde. - Com profundo pesar declaro a V. Exa. que não me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incumbência...

"Etc. - Cano Giacometo."

O visconde recorreu a outro.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 08 de dezembro de 2021

A VINGANÇA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A VINGANÇA

Humberto de Campos

 

 

 

Quando o caboclo Amâncio tomou por arrendamento as últimas quatro estradas de seringueiras do major Nataniel, Francisco das Chagas, cearense chegado há três anos do Canindé, já se achava estabelecido nas quatro outras que lhe ficavam vizinhas, e que faziam parte, todas, do seringal "Bom Sucesso". As madeiras que ele ia sangrar haviam descansado dois cortes e deviam dar bastante leite naquele verão. Essa vantagem ia custar-lhe, todavia, duplo trabalho inicial, com a limpa dos vãos obstruídos pela vegetação, e com a construção de outra barraca, por haver tombado, já, transformando-se em um monte de palha podre, aquela em que vivera o seu antecessor. Levantá-la-ia, entretanto, no mesmo lugar, para aproveitar o porto e os pés de cará, tornados selvagens pelo abandono. Dois dias de foice, desbastando os arbustos novos, poupar-lhe-iam quatro semanas de machado.

Ao fim de uma quinzena, quando as chuvas deixaram de fustigar a floresta, e o rio começou a baixar, estava o Amâncio na sua barraca de bossú a paxiuba, cujas paredes e cobertura de palha nova, a transformavam, quando batida de sol, em uma caixa de ouro, arrepiada de arabescos bizarros. Amarrada à frondosa e torta gameleira do porto, a "montaria" dançava ao sabor da correnteza e do vento, afrouxando e esticando a corda. E na barraca, ou no terreiro, a Mariana, cantarolando ininteligivelmente o dia todo, e a encher com a sedução bárbara do sexo aquele verde palmo do Deserto.

A mudança, do seringal "Maranguape" para o "Bom Sucesso", a que se abalançara o Amâncio, fora involuntariamente causada pela rapariga. Legitimamente casada, por um padre em desobriga, com o velho índio Martinho, ficara, quando este morreu, em mãos do mulato Isidoro, que assumira perante o coronel Dondon, proprietário das estradas que o índio ocupava, a responsabilidade da dívida do defunto. Quando o mulato foi assassinado pelo preto Leôncio, o coronel Dondon recolheu a rapariga ao barracão, como garantia da conta do finado. E como ele, Amâncio, possuía saldo na casa, ficou com a Mariana, e, para evitar a continuação das relações estabelecidas entre ela e o coronel, encerrou as suas transações com este, e mudou de patrão, levando a cabocla.

Mariana não era, positivamente, nem bonita, nem moça. Índia de raça pura, era gorda, e baixa, com a mesma largura nos ombros e nos quadris, e devia andar pelos quarenta anos. O rosto redondo, sombreado e gorduroso, apresentava uma testa estreita, coroada de cabelos lisos e luzidios, que lhe desciam até à cintura. Tinha nariz chato, e olhos pequenos e negros, ligeiramente convergentes. A boca de tamanho regular e lábios finos, deixava em exposição, quando ria, as gengivas arroxeadas, em cuja orla corria uma fieira de dentes pontiagudos, cortados em bico de serra. Vestia, quase sempre, por gosto hereditário, saia e casaco de chita vermelha, os quais, anunciando-a de longe, davam a impressão de uma guará de penas rubras, pousando na proa das "montarias" ou pescando à beira do rio. Não tinha beleza nem graça. Mas era mulher, naquelas regiões em que há uma para dois mil homens, e, só por isso, era desejada, e por ser desejada, vivia contente, exprimindo o seu contentamento em melopéias, cujas palavras só ela entendia.

Achava-se o Amâncio instalado, já, há uma semana, na sua barraca nova, quando, uma tarde, o Chagas passou pelo seu porto, remando sozinho. A Mariana estava à margem do rio, de cócoras, lavando roupa, e, como de costume, cantarolando para si mesma. A saia, arregaçada até os joelhos, deixava à mostra as pernas morenas e grossas, iguais e sólidas como dois toros de madeira cortados no mesmo tronco. Ao defrontar o porto, levou o cearense a mão ao chapéu de carnaúba, em sinal de respeito. A cabocla respondeu ao cumprimento, e continuou a esfregar a roupa, mas sem olhar para o sabão. O jacumã do seringueiro roncou forte, rasgando a água. E quando a "montaria" do Chagas desapareceu na curva do rio, em que as margens eram dois muros de vegetação compacta, Mariana ainda esfregava o mesmo punho de camisa. Os seus olhos tortos acompanhavam o remador como dois novelos de linha preta cujas pontas se achassem amarradas à popa da embarcação, a qual, na sua marcha, os fosse pouco a pouco desenrolando.

Nessa tarde, até à noite, Mariana não cantarolou mais. No dia seguinte, porém, ao entardecer, passou a cantar alto, sentiu-se mais contente do que dantes. Soturno e desconfiado, o Amâncio, em quem não haviam desaparecido ainda a agudeza e perspicácia do selvagem primitivo, não custou a adivinhar o que se passava nas horas em que se achava ausente. Rara era a tarde em que não descobria, na ribanceira do porto, marca de uma proa de "montaria". E rara, também, a em que não encontrava a chaleira quente, com os vestígios de que, pouco antes da sua chegada, se tinha feito café. E se os olhos não lhe dissessem essas cousas, a alma lhe teria dito outras equivalentes, pois que, ao chegar à barraca, não encontrava mais as mesmas carícias gulosas, os mesmos abraços vibrantes de animalidade. Antes de descobrir os passos do Chagas na areia molhada do seu porto, ou a terra frouxa do seu terreiro, já o caboclo os havia adivinhado no coração de Mariana. O coração das mulheres que amam em segredo e pecado é como os troncos que têm abelhas: basta que alguém lhes chegue o ouvido para escutar a zoada lá dentro.

Dias depois dessa descoberta, o Amâncio começou a aproximar-se, com boas maneiras, do Francisco das Chagas. Ao encontrá-lo no rio, parava de remar, detinha a marcha da "montaria" e, cofiando no queixo a barbicha escura e rala, punha-se a conversar sobre o tempo, sobre o rendimento das seringueiras, ou sobre a queda crescente do preço da borracha no barracão, dando sinais inequívocos de que lhe era agradável a sua camaradagem. Convidado por mais de uma vez, o cearense começou a freqüentar a barraca do Amâncio, com a presença deste, que se mostrava sempre comunicativo e obsequioso, servindo-lhe, conforme a demora, uma xícara de café ou um gole de aguardente. Até que, um dia, ficou combinada entre os dois aquela "espera" aos veados no igarapé dos Mutuns.

- Você vem mesmo, homem de Deus? - indagou o caboclo, como quem duvida.

- Venho, "seu" compadre; eu já não disse? Só se Deus Noss'enhor e São Francisco das Chagas do Canindé não quiserem.

E tocou no chapéu, num sinal de devoção.

Ao entardecer do dia aprazado, armado cada um com o seu rifle e levando a tiracolo a corda com que deviam trazer a caça graúda, meteram-se ambos na "montaria" Chagas e penetraram, meia légua rio acima, no estreito caminho dágua, remando com lentidão. A floresta começava a mergulhar na noite, e parecia em êxtase para esse mistério. A quietação era absoluta. Ouvia-se o estalar dos ramos secos, a queda dos açaís maduros no espelho dágua, e o ruído dos jacumãs, ferindo a superfície lisa do igarapé. Há uma hora de transição, na selva, em que os animais do dia já se recolheram e em que os da noite ainda não estão acordados. Hora de trégua; hora de armistício dos seres e das coisas selvagens. E era essa hora que soava no relógio imenso da Natureza quando o Chagas e o Amâncio encalharam a "montaria" numa sapopemba, e percorreram os cem metros que os separavam da árvore em cuja fronde se deviam esconder, à espera dos veados que aí vinham comer as frutas miúdas caídas durante o dia. Só um pouco mais tarde, com o aparecimento da primeira estrela, os sapos romperam com a sua orquestra, enchendo a noite de milhões de vozes confusas, como se todos os troncos, todos os galhos, todas as raízes, todas as folhas, se transformassem de súbito em bárbaros instrumentos musicais.

Vencendo a vegetação rasteira e luxuriante das terras baixas e quase alagadas, chegaram os caçadores a um lugar mais alto, onde um bacurizeiro erguia a fronde elegante no meio de outras árvores de porte menor, cujo fruto era particularmente procurado pelos veados da região. Subiram, o Amâncio primeiro, o Chagas em seguida. Escolheram, para refúgio, um galho alto e sólido, aberto em forquilha e afogado em folhagem densa, de outra árvore que invadia com as suas ramagens a sombra do bacurizeiro. E a escuridão envolveu tudo, aumentando os rumores circunstantes.

Escachados no galho escolhido, os dois caçadores trocavam apenas uma ou outra palavra. Sentia-se, porém, que um e outro estendiam por longe os fios do próprio pensamento, à semelhança de cigarras que lançassem o canto através do espaço, levando-o a distâncias que desconhecem. E o pensamento do nordestino errava, às vezes, tão distante dali, que ele nem se apercebia do movimento leve das mãos do companheiro, o qual acabava de amarrar uma das pontas da sua corda ao galho da árvore, e começava a experimentar, entre as folhas, um laço corredio e seguro, que havia na outra extremidade.

Noite alta, já, escutaram, os dois, o urro de uma onça, do lado oposto ao igarapé. E logo duas brasas esverdeadas se acenderam na treva. Duas outras fulgiram, pouco atrás. E a selva como que se calou apavorada, com a presença dos felinos sanguinários e hostis. Aproveitando a atenção com que o companheiro perscrutava a escuridão ameaçadora, o Amâncio aproximou-se dele e, docente, passou-lhe por um dos pés, apertando-o de leve, o laço que havia feito na corda. De súbito, reunindo toda a sua força nos braços, o caboclo levou as mãos ambas aos peitos do cearense, lançando-o fora do galho. Um berro de surpresa e de dor alarmou a solidão, a corda esticou num estalo, o bacurizeiro estremeceu sacudido, e um corpo ficou bailando no ar, no escuro, a pouco mais de dois metros acima do solo. Ao grito apavorado e apavorante do homem, as onças fugiram, espantadas, em saltos elásticos, entre o estrépito seco de galhos e cipós rebentados na passagem.

- Ai!... Ai!... Ai!... Amâncio... Pelo amor de Deus... me salve!... Ai!... ai!... Amâncio, por que você fez isso?... Que é que eu lhe fiz, Amâncio .... Ai, meu São Francisco do Canindé!...

Quieto, o caboclo conservou-se calado. Os dois rifles, que se achavam entre a folhagem, estavam nas suas mãos. Podia descer, e ir-se embora; a sua vingança ainda não estava, entretanto, terminada. O Chagas soltou alguns gritos estrangulados, pedindo socorro. Compreendendo, porém, a inutilidade desse esforço naquela solidão em que o homem era a mais estranha das sombras, voltou a gemer, espaçadamente. Estava de cabeça para baixo e, com o deslocamento da perna, impossibilitado de alcançar a corda com as mãos, para salvar-se. E gemia há mais de uma hora quando luziram, de novo, a treva, os olhos da onça. Chagas gritou, para afugentá-la; mas a ameaça, em vez de amedrontar, incentivou o felino, que marchou, agachando-se, na direção do bacurizeiro. Outras onças urraram perto. Seis, oito, dez olhos verdes luziram na escuridão. De súbito, a primeira onça deu um salto, alcançando com os dentes e com uma das patas o corpo do seringueiro. Um grito de terror e de angústia espalhou-se pela mata. Mas as feras não fugiram. Pelo contrário, acorreram em bando, como se tivessem adivinhado, pela voz estrangulada da vítima, que ela estava sem defesa. E foi horrível, então, o que Amâncio presenciou, ou, antes. percebeu, imóvel, do seu esconderijo. As ouças, em saltos enormes, disputavam-se os pedaços da carne do Chagas. Numa dança de corpos que se chocavam no ar, e de urros de raiva, estraçalhavam elas, no espaço, os membros do seringueiro. O galho em que se achava o Amâncio era sacudido, abalado pelas feras, quando estas alcançavam a corda, nos seus saltos rápidos e seguros, que se cruzavam na sombra. Segurando-se para não cair, o caboclo ouvia a queda do sangue na terra, como de um pote pequeno cuja água se derrama. Em certo momento, a corda parou de esticar, e o galho de ser agitado pelos felinos. Arrastando membros inteiros para as moitas próximas, as onças devoravam, rosnando, os pedaços que haviam arrebatado umas às outras. O Amâncio ouvia, perfeitamente, o roer dos ossos. Ao fim de algumas horas, os sapos deixaram de coaxar. As onças, satisfeitas, afastaram-se, para beber e dormir. A selva aquietava-se, como se lhe passassem a mão pelo imenso dorso verde, numa grande carícia voluptuosa. Uma claridade tênue varou as folhas. Pipilou o primeiro pássaro. Outros responderam. Com os dois rifles a tiracolo o Amâncio desceu do bacurizeiro. Ao chegar em baixo, olhou a corda.

Da extremidade desta, preso pelo tornozelo, pendia, sangrento e sujo, esfiapando as cartilagens, o pé esquerdo do Chagas, cuja roupa, reduzida a farrapos estraçalhados e sangrentos, jazia espalhada em torno, entre folhas machucadas e empapadas de sangue, de mistura com fragmentos de carne e pedaços de ossos roídos.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 06 de dezembro de 2021

O MELHOR REMÉDIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O MELHOR REMÉDIO

Machado de Assis

 

 

 

O que se vai ler passa-se num bond. D. CLARA está sentada; vê D. AMÉLIA que procura um lugar; e oferece-lhe um ao pé de si.

 

  1. CLA. Suba aqui, Amélia. Como passa?  

 

  1. AMÉ. Como hei de passar?

 

  1. CLA. Doente?

 

  1. AMÉ. (suspirando) Antes fosse doente!

 

  1. CLA. (com discrição) Que aconteceu?

 

  1. AMÉ. Coisas minhas! Você é bem feliz, Clara. Digo muita vez comigo que você é bem feliz. Realmente, eu não sei para que vim ao mundo.

 

  1. CLA. Feliz, eu? (Olhando melancolicamente para as borlas do leque) Feliz! feliz! feliz!

 

  1. AMÉ. Não tente a Deus, Clara. Pois você quer comparar-se a mim nesse particular? Sabe por que é que saí hoje?

 

  1. CLA. E eu por que é que saí?

 

  1. AMÉ. Saí, porque já não posso com esta vida: um dia morro de desespero. Olhe, digo-lhe tudo: saí até com idéias... Não, não digo. Mas imagine, imagine.

 

  1. CLA. Fúnebres?

 

  1. AMÉ. Fúnebres. Sou nervosa, e tenho momentos em que me sinto capaz de dar um tiro em mim ou atirar-me de um segundo andar. Imagine você que o senhor meu marido teve idéia... Olhe que isto é muito particular.

 

  1. CLA. Pelo amor de Deus!

 

  1. AMÉ. Teve idéia de ir este ano para Minas; até aqui vai bem. Eu gosto de Minas. Estivemos lá dois meses, logo depois que casamos. Comecei a arranjar tudo; disse a todas as pessoas que ia para Minas..

 

  1. CLA. Lembro-me que me disse.

 

  1. AMÉ. Disse. Mamãe achou esquisito, e pediu-me que não fosse, dizendo que, para ela visitar-nos de quando em quando, era-lhe mais fácil se estivéssemos em Petrópolis. E era verdade; mas ainda assim não falei logo ao Conrado. Só quando ela teimou muito é que eu contei ao Conrado o que mamãe me tinha dito. Ele não respondeu; ouviu, levantou os ombros, e saiu. Mamãe teimava; afinal declarou-me que ia ela mesma falar a meu marido; pedi-lhe que não, ela porém respondeu-me que não era uma bicha de sete cabeças. Petrópolis ou Minas, tudo era passar o verão fora, com a diferença que, para ela, Petrópolis ficava mais perto. E não era assim mesmo?

 

  1. CLA. Sem dúvida.

 

  1. AMÉ. Pois ouça. Mamãe falou-lhe; foi ele mesmo quem me disse, entrando em casa, no sábado, muito sombrio e aborrecido. Perguntei-lhe o que é que tinha; respondeu-me com mau modo; afinal disse-me que mamãe lhe fora pedir para não ir a Minas. “Foi você quem se agarrou com ela!” — “Eu, Conrado? Mamãe mesma é que me anda falando nisto, e eu até lhe disse que não lhe pedia nada.” Não houve explicação que valesse; ele declarou que não iríamos em caso nenhum a Petrópolis. “Para mim é o mesmo, disse eu; estou pronta até a não ir a parte nenhuma.” Sabe o que é que ele me respondeu?

 

  1. CLA. Que foi?

 

  1. AMÉ. “Isto queria você!” Veja só!

 

  1. CLA. Mas... não entendo.

 

  1. AMÉ. Eu disse a mamãe que não pedisse mais nada; não valia a pena, era perder tempo e zangar o Conrado. Mamãe concordou comigo; mas, daí a dois dias, tornou a falar na mudança; e afinal ontem o Conrado entrou em casa com os olhos cheios de raiva. Não me disse nada, por mais que lhe rogasse. Hoje de manhã, depois do almoço, declarou-me que mamãe tinha ido procurá-lo ao escritório e lhe pediria pela terceira vez para não ir a Minas, mas, a Petrópolis; que ele afinal consentira em dividir o tempo, um mês em Minas e outro em Petrópolis. E depois pegou-me no pulso, e disse-me que tomasse cuidado; que ele bem sabia por que é que eu queria ir para Petrópolis, que era para andar de olhadelas com... Nem lhe quero dizer o nome, um sujeito de quem não faço caso... Diga-me se não é para ficar maluca.

 

  1. CLA. Não acho.

 

  1. AMÉ. Não acha?

 

  1. CLA. Não: é um episódio sem valor. Maluca havia de ficar se se desse o que se deu hoje comigo.

 

  1. AMÉ. Que foi?

 

  1. CLA. Vai ver. Conhece o Albernaz?

 

  1. AMÉ. O do olho de vidro?

 

  1. CLA. Justamente. Damo-nos com a família dele, a mulher, que é uma boa senhora, e as filhas que são muito galantes...

 

  1. AMÉ. Muito galantes.

 

  1. CLA. Há mês e meio fez anos uma delas, e nós fomos lá jantar. Comprei um presente no Farani, um broche muito bonito; e na mesma ocasião comprei outro para mim. Mandei fazer um vestido, e fiz umas compras mais. Isto foi há mês e meio. Oito dias depois deu-se a reunião do Baltasar. Já tinha o vestido encomendado, e não precisava mais nada; mas, passando pela Rua do Ouvidor, vi outro broche muito bonito e tive vontade de comprá-lo. Não comprei, e fui andando. No dia seguinte torno a passar, vejo o broche, fui andando, mas na volta... Realmente, era muito bonito; e com o meu vestido ia muito bem. Comprei-o. O Lucas viu-me com ele, no dia da reunião, mas você sabe como ele é, não repara em nada; pensou que era antigo. Não reparou mesmo no primeiro, o do jantar do Albernaz. Vai então hoje de manhã, estando para sair, recebeu a conta. Você não imagina o que houve; ficou como uma cobra.

 

  1. AMÉ. Por causa dos dois broches?

 

  1. CLA. Por causa dos dois broches, dos vestidos que faço, das rendas que compro, que sou uma gastadeira, que só gosto de andar na rua, fazendo contas, o diabo. Você não imagina o que ouvi. Chorei, chorei, como nunca chorei em minha vida. Se tivesse ânimo, matava-me hoje mesmo. Pois então... E concordo, concordo que não era preciso outro broche mas isto faz-se, Amélia?

 

  1. AMÉ. Realmente...

 

  1. CLA. Eu até sou econômica. Você, que se dá comigo há tantos anos, sabe se não vivo com economia. Um barulho por causa de nada, uns miseráveis broches...

 

  1. AMÉ. Há de ser sempre assim. (Chegando à Rua do Ouvidor.) Você desce ou sobe?

 

  1. CLA. Eu subo, vou àGlace Elegante; depois desço. Vou ver uma gravura muito bonita, inglesa...

 

  1. AMÉ. Já vi; muito bonita. Vamos juntas.

 

  1. CLA. Há hoje muita gente na Rua do Ouvidor.

 

  1. AMÉ. Olha a Costinha... Ela não fala com você?

 

  1. CLA. Estamos assim um pouco...

 

  1. AMÉ. E... e depois...

 

  1. CLA. Sim... mas... luvas brancas.

 

  1. AMÉ. ..................?

 

  1. CLA. ...................!

 

AMBAS (sorrindo) Uma coisa muito engraçada; vou contar-lhe...

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 05 de dezembro de 2021

O MAL DE COM QUIXOTE (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

O MAL DE COM QUIXOTE

Raul Pompéia

 

 

 

Foi um dia apresentado ao Dr. X..., alienista notável do Rio de Janeiro, um curioso enfermo, vítima de uma singular mania.

Singulares são, em última análise, todas as manias de louco; entretanto, a do caso a que aludo, possuía a notável qualidade de consistir numa cousa que tinha seus ares de teoria, através da qual uma sólida corrente de argumentação arrastava o espírito demente ao mais estranho disparate.

- É preciso extraí-lo, raciocinava o louco... O coração é uma víscera perfeitamente tola... Não passa de um estúpido fole, soprando sangue pelas artérias, em vez de ar... A ciência pode trocá-lo por um aparelho qualquer, que o substitua na função de centro circulatório, evitando, contudo, as regalias morais que goza a tal víscera da minha implicância.

"Ne sutor ultra crepidam, ouvi sempre dizer. Se o coração se contentasse com o papel fisiológico de fole, de bomba de compressão, e lá se conservasse modestamente, no fundo da sua gaiola de costelas, a trabalhar obscuro e honrado, nas suas diástoles e sístoles, eu não exigiria que mo extraísse como um obstáculo que estraga-me o organismo e a vida; mas o intruso esquece que nasceu para fole; mete-se pelos domínios da existência moral, a fazer concorrência com os sisudos miolos, e deita, então, quanta tolice pode fazer o sapateiro de Horácio.

"Talvez eu passe por doido, mas afirmo que, se tenho tentado arrancar esse músculo e se exijo a extirpação desse órgão nocivo, ainda que me arrisque a sucumbir, é que muito tenho refletido no assunto, e as minhas convicções contra o coração vêm de longa data, penetraram com valentes raízes no meu espírito.

"A vida dos homens é o positivo. Fora do positivo, existe, apenas, o vasto mar do ridículo. A pilotagem da vida consiste em evitar o naufrágio no grande mar.

"Todavia, o naufrágio é quase inevitável, porque o navio leva uma carga enorme e irrequieta, que faz variar constantemente o centro de gravidade e perturba a todo o momento a flutuação regular.

"Esta carga é a tal víscera.

"Carga ao mar, pois! libertemos a nau!...

"O positivo é o sério, é o grave, é o normal, é o burguês, é o vulgar, é o comum, é o tranqüilo, é o prudente, é o fecundo; é o almoço de todas as manhãs e o jantar de todas as tardes; é a herança para a prole. Fora disso, o exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idealista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente; o pão nosso de cada dia, no mais restrito sentido dominical; o tolo, o desfrutável, em suma.

"É sempre o mesmo abismo de ridículo, ameaçando o sério e o positivo.

"E procuremos o que nos faz pender constantemente para o abismo do desfrute... É a víscera; é a víscera fatal!...

"O coração produz, na família, o enamorado, um tolo; na sociedade, o herói, outro tolo; na literatura, o sentimental, outro tolo; na filosofia, o melancólico, mais um tolo...

"Enamorado, herói, sentimental, melancólico, tudo gira numa vertigem de ridículo, debaixo do grande olho positivo, que ri, como quem vê arder a barba do vizinho, e vai deduzindo em silêncio as gordas e proveitosas normas da experiência.

- "Savoir vivre!...

"O coração é o pai do ridículo pungente. Há quem ache graça no idiotismo e na asneira. Isto é o ridículo banal e fútil.

"Ridículo miserável, profundo, é o das vítimas do coração. É o ridículo propriamente dito; é o ridículo humano.

"Pôr um termo a este mal parece-me um dever elementar da ciência. Sabe-se que a origem do mal aí está palpitando, por entre a quarta costela e a quinta.

"A medicina reflita...

"Tanto mais que não é só o fato objetivo do ridículo que condena o coração. É, ainda mais, o fato subjetivo dos sofrimentos rudes que causa a víscera a quem a traz, cada vez que dá em espetáculo às gargalhadas positivas uma fraqueza e uma tolice da criatura humana.

"Não há nada mais salutar do que o riso. Entre outras vantagens, tem a grande vantagem de não ser a lágrima.

"O riso é a mais agradável manifestação do positivo.

"Quem solta a gargalhada, tem a superioridade de não ser o palhaço.

"Riamos, com os diabos!... Vale mais mofar do que ser mofado.

"No circo da vida, a gargalhada ocupa as arquibancadas anfiteatrais. No meio, faz caretas e macaquices o grotesco, o ridículo, o náufrago da víscera.

"O homem que ri, está fora do picadeiro. Cuidado com a víscera, que ainda leva-te para dentro!...

"É preciso, portanto, que se resolva um meio de abolir o risco de rolar da arquibancada.

"É o que eu procuro.

"Quem sabe bem rir, não cria tropeços à própria liberdade.

"Há uma cousa que chama-se o amor, e uma cousa que apelida-se o ódio. A liberdade positiva tem os pulsos ligados por essas duas algemas. Descubram a outra ponta da cadeia, que hão de encontrá-la soldada ao maldito fole do sangue.

"O amor faz a fidelidade, a dedicação, o cativeiro voluntário e outras cousas que a linguagem, com o seu modo astucioso de resolver as dificuldades, denomina virtudes; faz também, transformando-se por movimentos reflexos, ou paralelos de espírito, o que se chama a indignação, a revolta, o ciúme, a vingança, o ódio, enfim; e certas cousinhas que ainda a linguagem, sem grandes argumentos, especializa com o rótulo de vícios.

"Tudo isso é uma série de algemas, que prendem duma ou doutra sorte. Apaixonado significa acorrentado. Quem ama, prende-se; quem odeia, prende-se. Só é livre quem ri.

"Por isso é que o riso é salutar e raro.

"A gargalhada é essencialmente filha do cérebro. É livre como o sátiro do bosque.

"Viva a gargalhada!

"Quem dá vaias, não as leva.

"É a grande garantia da gargalhada. Contra esta garantia existe a víscera-fole. Risque-se a víscera, em nome da liberdade, ou ao menos em nome da seriedade positiva da vida.

"Dizem que Molière é a comédia... Eu não penso assim. Moliêre escreveu o drama dos idiotas, encenou a parvoice fútil. Para mim, a comédia, a comédia real veio de Inglaterra com aquele pobre Romeu, que passava noutes a cantar serenatas embaixo da varanda da namorada, entoando com os galos; ou ia de madrugada subir por escadas de corda, sem pensar no papel que faria, se a polícia o agarrasse como um gatuno.

"Cômico, para mim, é o furibundo barba-azul do Otelo, que seria um tanto mais brando, se temesse o código. Cômicas são todas essas caricaturas de malucos, engendradas pelo poeta psicólogo inglês.

"A comédia de Shakespeare é na verdade triste. Mas é triste, porque é real; e é triste somente para quem não sabe rir dessa cousa tola chamada paixão.

"Comparados Romeu e D. Juan, o nosso Romeu não passa de um principiante, que não entende do riscado, e que ainda suspira, à luz de alvoradas, como a gata ao cio.

"É que D. Juan sabe rir.

"Certo é também que na comédia de Shakespeare há sangue; mas isso não obscurece o grotesco.

"Triboulet, que começa por fazer rir, acaba por fazer chorar.

"De mais, o sangue da comédia inglesa é a última conseqüência da ridícula soberania do fole circulatório. É requinte sui generis do desfruto.

"Quando aquela gente suicida-se, ou cai assassinada e mesmo quando assassina, ouve-se o bom senso positivo, burguês e prático dizer: - pobres diabos!

"O positivo é que é o verdadeiro. É preciso conciliar-se tudo com ele.

"As nevroses constituem a praga da humanidade.

- Guerra às nevroses!

"A cidadela das nevroses é a famosa víscera.

"Arrasemos a cidadela!

"Sim, meu caro doutor, já é tempo de lançar-se mão aos freios da estafada cavalgadura de D. Quixote, que vai desastradamente passeando a gesticulação ossuda do seu entusiasmo cavalheiresco, por entre a vaia das gerações!

"Já é tempo de suspender-se este espetáculo do cavalheiro da Mancha, eternamente bom, mas eternamente tolo!..."

...................................................................

O médico, que acompanhava extasiado a estranha dissertação do louco, concentrou-se por momentos, e disse-lhe:

- Esteja tranqüilo, meu amigo, não pense mais nisto; eu vou extirpar-lhe o coração... vou curá-lo.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 04 de dezembro de 2021

AS LOÇÕES MIRACULOSAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

AS LOÇÕES MIRACULOSAS

Humberto de Campos

 

 

 

 

A coisa mais fácil de inventar, é, neste mundo, o tônico para cabelo. Não há barbeiro por mais modesto e preguiçoso, que não possua a sua fórmula prestigiosa, destinada a fazer rebentar uma cabeleira encaracolada na calva mais rebelde e, se possível, numa bola de bilhar. Quanto à utilidade real dessas loções, desses tônicos, dessas tinturas miraculosas, prova-a o número, sempre crescente, de carecas, existente no Rio de janeiro.

 

O mais curioso é, no entanto, o entusiasmo, a fé, a convicção, com que os "fígaros" fazem a propaganda do seu preparado. Concluída a barba do freguês, o bárbaro, empunhando ainda a navalha, propõe à vítima:

 

— Vamos, agora, a uma fricção do nosso tônico?

 

Agredido assim, o freguês encara o agressor, medindo-o de alto a baixo, com raiva; ao dar, porém, com os olhos na lâmina faiscante, aberta a dois palmos do seu pescoço, capitula, forçosamente, concordando, desarmado:

 

— Ponha!

 

Autorizado a cometer o crime nefando, o barbeiro passa, então, a fazer o elogio do seu remédio.

 

— É um prodígio, senhor doutor! — assegura. — Se ele caísse numa pedra, no chão, a pedra criaria cabelo!...

 

O mais curioso propagandista desse gênero foi, entretanto, o de que deu notícia, há muitos anos, na imprensa do norte, um saudoso jornalista paraense. Apanhado, certa vez, de surpresa, em uma cadeira de barbearia, esse mártir foi intimado, de súbito, pelo homem da navalha:

 

— Então, uma loçãozinha para nascer o cabelo; não?

 

O desventurado ia recusar terminantemente a proposta, mas o barbeiro atalhou, abrindo a navalha:

 

— É um verdadeiro milagre, o meu preparado. Basta cair na calva, para o cabelo começar, logo, a nascer. É assombroso! É prodigioso! É formidável!

 

E enquanto esfregava na cabeça do freguês a água do pote perfumada, contou:

 

— O senhor quer ver o que é a minha loção? Uma vez, estando eu a fabricar este preparado, peguei um jarro, que estava cheio dele, e coloquei-o em uma prateleira, pregada à parede. Debaixo da prateleira, que é alta, ficava o meu baú, um baú grande, de couro curtido, todo pregueado, daqueles antigos, sólidos, enormes, que se faziam em Portugal. Pois, bem; o jarro, que estava rachado, começou a vazar o líquido na prateleira, que o fazia cair, por seu turno, sobre o baú; e de tal forma que, na dia seguinte, ao abrir a porta encontrei o baú...

 

— Molhado, não? — interrompeu o jornalista.

 

E o fígaro, sério:

 

— Não, senhor; coberto de cabelo!

 

E esfregou-lhe a careca, com força.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 02 de dezembro de 2021

MÉDICO É REMÉDIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

MÉDICO É REMÉDIO

Machado de Assis

 

 

 

Em que diabo conversam estas duas moças metidas na alcova? Conversam do Miranda, um rapaz engenheiro, que vai casar com uma amiga delas. Este Miranda é um noivo como qualquer outro, e não inventou o quadrado da hipotenusa; é bonito, mas não é um Apolo. Também não é rico. Tem mocidade, alguma instrução e um bom emprego. São vantagens, mas não explicam que as duas moças se fechem na alcova para falar dele, e muito menos que uma delas, a Julieta, chore às bandeiras despregadas.

Para compreender ambas as coisas, e principalmente a segunda, é preciso saber que o nosso Miranda e Julieta amaram-se algum tempo. Pode ser mesmo que ele não a amasse; ela é que com certeza morria por ele. Trocaram muitas cartas, as dele um pouco secas como um problema, as dela enfeitadas de todos os retalhos de frases que lhe lembravam dos romances. Creio mesmo que juraram entre si um amor eterno, não limitado à existência do sol, no máximo, mas eterno, eterno como o próprio amor. Vai então o miserável, aproveita-se da intimidade de Julieta com Malvina, namora a Malvina e pede-a em casamento. O que ainda agrava este fato é que Malvina não tinha melhor amiga que Julieta; andaram no colégio, eram da mesma idade e trocavam as suas mais íntimas confidências. Um dia Julieta notou certa frieza na outra, escassez de visitas, poucas cartas; e tão pouco advertiu na causa que, achando também alguma diferença no Miranda, confiou à amiga as suas tristezas amorosas. Não tardou, porém, que a verdade aparecesse. Julieta disse à amiga coisas duras, nomes feios, que a outra ouviu com a placidez que dá a vitória, e perdoou com magnanimidade. Não é Otávio o demente, é Augusto.

Casam na quarta-feira próxima. O pai da noiva, amigo do pai de Julieta, mandou-lhe um convite. O ponto especial da consulta de Julieta a esta outra amiga Maria Leocádia, é se ela deve confessar tudo à mãe para que não a leve ao casamento. Maria Leocádia reflete.

— Não, respondeu ela finalmente: acho que você não deve dizer nada. Estas coisas não se dizem; e, demais, sua mãe não fará caso, e você tem sempre de ir…

— Não vou, não vou… Só amarrada!

— Ora, Julieta; deixa disso. Você não indo, dá um gosto a ela. Eu, no caso de você, ia; assistia a tudo, muito quietinha, como se não fosse nada.

— Velhaca! falsa! interrompia-se Julieta, dirigindo-se mentalmente à outra.

Maria Leocádia confessou que era uma perfídia, e, para ajudar a consolação, disse que o noivo não valia nada, ou muito pouco. Mas a ferida era recente, o amor subsistia e Julieta desatou a chorar. A amiga abraçou-a muito, beijou-a, murmurou-lhe ao ouvido as palavras mais cordiais; falou-lhe ao brio. Julieta enxugou as lágrimas; daí a pouco saía de carro, ao lado da mãe, com quem viera visitar a família da amiga.

O que aí fica passa-se no Rio de Janeiro, onde residem todas as pessoas que figuram no episódio. Há mesmo uma circunstância curiosa: — o pai de Julieta é um oficial de marinha, o de Malvina outro, e o de Maria Leocádia outro. Este último sucumbiu na guerra do Paraguai.

A indiscrição era o pecado venial de Maria Leocádia. Tão depressa falou com o namorado dela, o bacharel José Augusto, como lhe referiu tudo o que se passara. Estava indignada; mas o José Augusto, filósofo e pacato, achou que não era caso de indignação. Concordava que a outra chorasse; mas tudo passa, e eles ainda teriam de assistir ao casamento de Julieta.

— Também o que faltava era ela ficar solteira toda a vida, replicou Maria Leocádia.

— Logo…

Cinco minutos depois, metiam o assunto na algibeira, e falavam de si mesmos. Ninguém ignora que os assuntos mais interessantes derrubam os que o são menos; foi o que aconteceu aos dois namorados.

Na rua, porém, José Augusto tornou a pensar na amiga da namorada, e achou que era naturalmente triste a situação. Considerou que Julieta não era bonita, nem rica; tinha uma certa graça e algumas prendas; mas os noivos não andavam a rodo, e a pobrezinha ia entrar em nova campanha. Neste ponto da reflexão, sentiu que estava com fome. Tomara apenas uma xícara de chá, e foi comer. Mal se sentou aparece-lhe um colega de academia, formado dois anos, que esperava por dias uma nomeação de juiz municipal para o interior. José Augusto fê-lo sentar; depois, olhou para ele, e, como ferido de uma idéia súbita, desfechou-lhe esta pergunta:

— Marcos, tu queres uma noiva?

Marcos respondeu que preferia um bife sangrento. Estava com fome… Veio o bife, veio pão, vinho, chá, anedotas, pilhérias, até que o José Augusto perguntou-lhe se conhecia Julieta ou a família.

— Nem uma nem outra.

— Hás de gostar dela; é interessantíssima.

— Mas que interesse…?

— Sou amigo da família.

— Pois casa-te.

— Não posso, retorquiu José Augusto rindo; tenho outras idéias, atirei o lenço a outra odalisca… Mas, sério; lembrei-me hoje de ti a propósito dela. Crê que era um bom casamento.

— Tem alguma coisa?

— Não, não tem; mas é só o que lhe falta. Simpática, bem-educada, inteligente, muito meiga; uma excelente criatura… Não te peço que te obrigues a nada; se não gostares ou tiveres outras idéias, acabou-se. Para começar vai sábado a um casamento.

— Não posso, tenho outro.

— De quem?

— Do Miranda.

— Mas é o mesmo casamento. Conheces a noiva?

— Não; só conheço o Miranda.

— Pois muito bem; lá verás a tua.

Chegou o sábado. O céu trouxe duas cores: uma azul para Malvina, outra feia e horrenda para Julieta. Imagine-se com que dor se vestiu esta, que lágrimas lhe não arrancou a obrigação de ir assistir à felicidade da outra. Duas ou três vezes, esteve para dizer que não ia, ou simplesmente adoecer. Afinal, resolveu ir e mostrar-se forte. O conselho de Maria Leocádia era o mais sensato.

Ao mesmo tempo, o bacharel Marcos dizia consigo, atando a gravata ao espelho:

— Que interesse tem o José Augusto de me fazer casar, e logo com a tal moça que não conheço? Esquisito, realmente… Se, ao menos, fosse alguma coisa que merecesse e pudesse…

Enfiou o colete, e continuou:

— Enfim, veremos. Às vezes estas coisas nascem assim, quando menos se espera… Está feito; não me custa dizer-lhe algumas palavrinhas amáveis… Terá o nariz torto?

Na véspera, o José Augusto dizia a Maria Leocádia:

— Queria guardar o segredo, mas já agora digo tudo. Ando vendo se arranjo um noivo para Julieta.

— Sim?

— É verdade; já dei uns toques. Creio que a coisa pode fazer-se.

— Quem é?

— Segredo.

— Segredo comigo?

— Está bom, mas não passe daqui; é um amigo, o bacharel Marcos, um bonito rapaz. Não diga nada a Julieta; é muito orgulhosa, pode recusar, se entender que lhe estamos fazendo algum favor.

Maria Leocádia prometeu que seria muda como um peixe; mas, sem dúvida, há peixes que falam, porque tão depressa entrou no salão e viu Julieta, perguntou-lhe se conhecia um bacharel Marcos, assim e assim…Julieta respondeu que não, e a amiga sorriu. Por que é que sorria? Por um motivo singular, explicou ela, porque alguma coisa lhe dizia que ele podia e viria a ser a consolação e a desforra.

Julieta estava linda e triste, e a tristeza era o que mais lhe realçava as graças naturais. Ela tratava de dominá-la, e conseguia-o às vezes; mas nem disfarçava tanto, que se não conhecesse por baixo da crosta alegre uma camada de melancolia, nem por tanto tempo que não caísse de espaço a espaço no mais profundo abatimento.

Isto mesmo, por outra forma, e com algumas precauções oratórias, lhe foi dito por José Augusto, ao pedir-lhe uma quadrilha, durante a quadrilha e depois da quadrilha. Começou por lhe declarar francamente que estava linda, lindíssima. Julieta sorriu; o elogio fez-lhe bem. José Augusto, sempre filósofo e pacato, foi além e confessou-lhe em segredo que achava a noiva ridícula.

— Não é verdade? disse vivamente Julieta.

E depois, emendando a mão:

— Está acanhada.

— Não, não; ridícula é que ela está! Todas as noivas ficam bem. Olhe a cintura do vestido: está mais levantada de um lado que de outro…

— O senhor é muito reparador, disse Julieta sorrindo.

Evidentemente, estava gloriosa. Ouvia proclamar-se bela, e a noiva ridícula. Duas vitórias enormes. E o José Augusto não disse aquilo para cumprimentá-la. Pode ser que carregasse a mão no juízo que fez da noiva; mas em relação a Julieta disse a verdade, tal qual a sentia, e continuava a sentir fitando os lindos olhos da abandonada. Daí a pouco apresentou-lhe o Marcos, que lhe pediu uma valsa.

Julieta lembrou-se do que lhe dissera Maria Leocádia a respeito deste Marcos, e, posto não o achasse mau, não o achou tão especialmente belo que merecesse o papel que a amiga lhe atribuiu. Marcos, ao contrário, achou-a divina. Acabada a valsa, foi ter com José Augusto, entusiasmado.

— Realmente, disse ele, a tua recomendada é uma sílfide.

— Ainda bem. Bonita, não?

— Lindíssima, graciosa, elegante, e conversando muito bem.

— Já vês que te não enganei.

— Não; e, realmente, é pena.

— O quê?

— É pena que eu não ouse.

— Que não ouses? Mas, ousa, peralta. O que é que te impede de ousar?

— Ajudas-me?

— Se eu mesmo te propus!

José Augusto ainda nessa noite falou a Julieta acerca do amigo, louvou-lhe as qualidades sólidas e brilhantes, disse-lhe que tinha um grande futuro. Também falou a Maria Leocádia; contou-lhe o entusiasmo do Marcos, e a possibilidade de fazê-lo aceitar pela outra; pediu-lhe o auxílio. Que ela trabalhasse e ele, e tudo se arranjaria. Conseguiu ainda dançar uma vez com Julieta, e falou-lhe da conveniência de casar. Há de haver algum coração nesta sala, reflexionou ele, que sangre muito de amor.

— Por que não diz isso com mais simplicidade? redargüiu ela sorrindo.

A verdade é que Julieta estava irritada com o trabalho empregado em fazê-la aceitar um noivo, naquela ocasião, principalmente, em que era obrigada a fazer cortejo à felicidade da outra. Não falei desta nem do noivo; para quê? Valem como antecedentes da ação. Mas que sejam bonitos ou feios, que estejam ou não felizes, é o que não importa. O que importa unicamente é o que vai suceder com a rival vencida. Esta retirou-se para casa aborrecida, abatida, dizendo mentalmente as coisas mais duras à outra; até a madrugada não pôde dormir. Afinal, passou por uma breve madorna, acordou nervosa e com sono.

— Que mulherzinha! pensava o José Augusto indo para casa. Embatucou-me com as tais palavras: — Por que não diz isso com mais simplicidade? Foi um epigrama fino, e inesperado. E o ladrão estava bonita! Realmente, quem é que deixa a Julieta para escolher a Malvina! A Malvina é uma massa de carne, sem feitio…

Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também. Julieta não dava esperanças; e, coisa singular, era menos expressiva com a amiga do que o namorado desta. Tinha vergonha de falar com a outra em tais matérias. Por outro lado, a linguagem de José Augusto era mais própria a fazer-lhe nascer o amor, que ela sinceramente desejava sentir pelo Marcos. Não queria casar sem amor. José Augusto, posto que filósofo e pacato, adoçava as suas reflexões de uma certa cor íntima; além disso, dava-lhes o prestígio do sexo. Julieta chegou a pedir-lhe perdão da resposta que lhe dera no dia das bodas de Malvina.

— Confesso, disse ela, que o amor não pode falar com simplicidade.

José Augusto concordou com esse parecer; e ambos entraram por uma tal floresta de estilo, que se perderam inteiramente. Ao cabo de muitos dias, foram achar-se à porta de uma caverna, de onde saiu um dragão azul, que os tomou e voou com eles pelos ares fora até à porta da matriz do Sacramento. Ninguém ignora o que estes dragões vão fazer às igrejas. Maria Leocádia teve de repetir contra Julieta tudo o que esta disse de Malvina. Plagiária!


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 01 de dezembro de 2021

OS GATOS E OS CÃES (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

OS CÃES E OS GAROS

Raul Pompéia

 

 

 

Desde o histórico amigo do bíblico Tobias, que acompanhou-lhe o filho à miraculosa torrente d'onde devia sair o peixe destinado a curar a cegueira do patriarca, até os celebrados cães de S. Bemardo, passando pelo cão que lambia as chagas de Jó e pelo desrabado animal de Alcebiades; desde o heróico e selvagem companheiro dos esquimaus, que arrosta as temperaturas, levando em turbilhão o trenó, por meio das regiões brancas e frias do ártico, até o mole e macio King-charles, saboroso companheiro dos longos ócios tropicais das cocottes, tudo tem sido poemas em louvor do cão.


    Decantam-lhe a bravura; decantam-lhe a fidelidade; incensam-lhe a beleza; elogiam-lhe a obediência; apologiam-lhe a dedicação. Companhias de seguro gravam-lhe a efigie em douradas placas, para garantia contra o fogo; honrados burgueses erigem-lhe estátuas de barro vidrado sobre os capitéis de pedra e caldos portões da chácara: tudo é um aplauso unànime e universal.

    Entretanto, o gato, o bravo vigilante das horas mortas, sentinela perdida da meia-noite, passeando à luz misteriosa do luar com os olhos faiscantes como baionetas, para tranqüilidade dos armários e para desgraça dos roedores caseiros; entretanto, o digno gato, o honrado gato, deixam-no de lado, no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas; caluniam-no, excomungam-no e o desamparam, quando muito, aos esqueléticos carinhos de alguma velha bruxa semifantástica, amiga dos morcegos, dos mochos e das caveiras de burro fatídicas.
   

    Pobre gato!

   Nos seus minutos de cisma, quando, pousado no peitoril claro de uma janela da casa que habita, lambendo as patinhas e as munhecas asseadas, o gato reflete nos destinos da vida, talvez esteja a pensar consigo, que muito pouco lhe custaria apanhar a glória do cão. Bastava-lhe o sacrificio da própria dignidade; bastava-lhe alienar a sua autonomia felina e pôr de lado os seus orgulhos de sangue.
   

    A glória do cão vem somente disto; o cão escravizou-se.

    O gato nunca teve um dono.

   Nestor de Roqueplan escreveu que o gato não é animal doméstico do homem: o homem é que é o animal doméstico do gato.

   Tinha razão o perspicaz e fino Roqueplan.

   Quando se diz: - este gato é meu, diz-se: - eu sou deste gato.
   

   E o motivo é límpido: quando o dono não agrada ao gato, o digno animalzinho deixa-o como quem abandona um traste velho.
   

   Toda a fanfarronice trovejante do cão pode-se-lhe domar a chicote. Ensaie-se a violência com o gato ...

    O cão dedica-se, sacrifica-se por conta do seu dono, nunca por conta própria. O cão é fiel, bravo, dedicado, sublime; mas infamemente. Tem a dedicação, a bravura, a fidelidade, a sublimidade do infame, do escravo. No fundo das suas ações acha-se a vontade do dono; nas suas decantadas bravuras, o cão não existe.
   

    O gato, ao contrário, é autonomista. É valente, heróico, sagaz, cheio de inteligência, mais talvez do que o cão, e tudo nobremente, convictamente; certo de que, antes de tudo, ele é Feliz.

    Sente nas veias o sangue quente do tigre; lembra-se que os da sua raça terrivel vagam pelas florestas, como reis, em guerra de morte com o homem, que lhes invade o império; recorda-se talvez do bafejo quente das soalheiras de Bengala, onde rejubilam-se os seus congêneres, olhando de frente, através da ramaria, o perfil religioso e enorme dos pagodes, arraial dos homens; esperando bravamente o combate, na mata virgem no arraial das feras.
 

    O gato sabe que é um pequeno tigre; que podia embriagar-se de floresta como os seus irmãos de raça, e que, menos inflexível que os outros, quis entrar em aliança com o homem, por iguais interesses das partes contratantes. Possuída desta convicção, é que a digna criatura desenvolve os seus talentos, na casa dos homens. Incapaz de uma baixeza, vai vivendo à medida dos seus recursos. Se alguém o acaricia, ele aproxima-se, contorcendo-se mansamente, em afetuosas ondeações de espinha, e entrega-se confiado ao amigo ...

    Despreza solenemente o cão, ama lascivamente o sol e as claridões. Quando roça-lhe o pêlo de cetim um feixe de luz solar, enrodilha-se todo, dorme e ressona como um prior satisfeito. Não treme, à beira dos precipícios, como os cães.

     A vertigem das cimalhas é o seu prazer. Não se deixa levar às feiras como qualquer botocudo idiota, ou qualquer cãozinho pretensioso e fútil. Tem habilidade, mas para o seu uso.

     Não sabe cair grotescamente como um burguês gordo que tropeça, ou como um rei velho que escorrega A sua queda é elegante como a de César. Cai sempre firme, sobre as quatro patas, venha de que altura for. Não conhece o estigma da coleira, nem a perseguição aviltante do fiscal.

    Tudo diverso do cão.


    A cadela é a charra odaliscazinha das Sarjetas. O cão é o bandalho de esquina que vai, de pontapé em pontapé, acabar com lepra num cano de esgoto.

    Entretanto, os amores do gato são trágicos como as punhaladas dos Bórgias. Passam-se à noute, como os grandes meteoros do céu e as cousas fantásticas da terra.
 

    Podem ter por confidentes a estrela dalva e a cotovia matinal, como os amores de Romeu. Os gatos batem-se pela sua dama como os heróis da cavalaria e como os tigres da mata. São bravos e apaixonados até o sangue.

    Os sete fólegos que lhe atribuem, ele os despende sem avareza, quando em proveito da própria dignidade ou da própria paixão.

    A morte do gato é quase sempre um mistério. Não morre; desaparece como o Rómulo sagrado da lenda. Não dá-se ao luxo canino de apodrecer nas praias.


    Assim é que bem se consola o gato, nos tácitos queixumes das suas cismas ...

    O cão tem incensadores que o exploram e que o infamam.

    Tem golilha, como um forçado; como um escravocrata, não tem vergonha.

    Esta falta de brio e essa coleira levam-no a toda a parte, encadeado ao homem. Penetra no convento com a mesma cara com que barafusta pelo teatro; segue a trote miúdo o préstito triunfal das ovações, e vai depois acompanhar a mula do carvoeiro; visita os templos da virtude e os gineceus da vergonha, sorrindo sempre, baixamente, com a cauda e com a língua.

    Adula sem fazer questão de lugar.

    Ambiciona só isto: - um osso. Mas não desdenha os bons bocados dos banquetes, nem o sebo nauseabundo dos trilhos da rua ...

    Glória por tal preço ... Antes a secular obscuridade nobre do gato. Faltam-lhe tradições, porque falta-lhe a escravidão e a infâmia.

    Em última análise, o cão é um miserável.

    Fora da linha dos animais, por uma degradante domesticidade, não conseguiu entrar pela fileira dos homens. O gato conserva orgulhoso o seu tipo definido de fera dócil. Não balança nas oscilações da natureza humana, porque tem as suas próprias, da natureza felina

    O cão, seja lícito dizer-se, é o homem através do temperamento canino.
o gato é simplesmente, nobremente, - o gato.

    Por isso é que nas alegorias, entra o gato como pilhéria e o cão como insulto.

    Enquanto um atravessa, risonho, à disparada, por uma página de caricatura, vai o outro de envolta com uma panela de lama para a cara de um tratante.

    Há uma cousa entre os homens que chama-se cinismo: é a arte de ser cão. A arte de ser gato ainda não foi inventada; nem há de ser.

    Em suma derradeira indenização do sempre olvidado gato - de todas as criaturas que podem ser atreladas a uma verrina crepitante e vingadora, burro, jumento, touro, tigre, hiena ... nenhuma, nem uma só, leva mais longe do que o glorioso inimigo do gato.

    - Cão!

    Este insulto tem mais alguma cousa do que três letras; tem três pontas como o chicote siberiano.

    Esta palavrinha curta, áspera, rápida, se ainda não é o faz o mesmo escarro, já passou de articulação.
   

    Digam-na para ver se a garganta não quando cospe-a e quando cospe um escarro:
- Cão!

                    *********************
     Damos publicidade a estas estranhas considerações que o acaso entregou-nos, para não desesperarem da justiça os raros amigos do simpático e sempre olvidado povoador dos telhados.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 30 de novembro de 2021

OBEDIÊNCIA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OBEDIÊNCIA

Humberto de Campos

 

 

 

Mal saída do colégio, para onde entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o Comendador Anacleto, enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo. Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:

 

— Olha, minha filha; esta casa é tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os vizinhos.

 

E beijando-lhe a testa clara, coroada por uns lindos cabelos castanhos:

 

— Muito juizinho; ouviu?

 

Duas semanas não se tinham passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões, vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia, resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do Comendador. Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de joias, carregando, enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado capitalista.

 

À noite, ao abrir a porta, de regresso ao lar, o Comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida, precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela menina:

 

— Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde estás, minha filha?

 

No último quarto da casa, esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.

 

— Minha filha da minh'alma! — gemeu o velho, atirando-se para ela. — Que foi isso?

 

— Os ladrões!... — explicou a moça, num gemido.

 

E enxugando os olhos;

 

— Levaram tudo: as roupas, as joias, a louça, tudo, enfim. Depois...

 

— Depois?... — rugiu o velho, com os olhos esbugalhados.

 

— Desgraçaram-me!... — concluiu a moça, prorrompendo em soluços.

 

— Desgraçaram-te?... — gritou o velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera atingida no coração.

 

E após um instante de silêncio desesperado:

 

— E como foi? Amarraram-te?

 

— Não, senhor.

 

— Subjugaram-te?

 

— Não, senhor.

 

— Taparam-te a boca?

 

— Não, senhor.

 

— E por que não gritaste? — berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.

 

E a moça, levantando para ele, num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:

 

— Papai não disse que eu não incomodasse os vizinhos?


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 28 de novembro de 2021

MARIANA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

MARIANA 

Machado de Assis

 

 

 

Voltei de Europa depois de uma ausência de quinze anos. Era quanto bastava para vir achar muita coisa mudada. Alguns amigos tinham morrido, outros estavam casados, outros viúvos. Quatro ou cinco tinham-se feito homens públicos, e um deles acabava de ser ministro de Estado. Sobre todos eles pesavam quinze anos de desilusões e cansaço. Eu, entretanto, vinha tão moço como fora, não no rosto e nos cabelos, que começavam a embranquecer, mas na alma e no coração que estavam em flor. Foi essa a vantagem que tirei das minhas constantes viagens. Não há decepções possíveis para um viajante, que apenas vê de passagem o lado belo da natureza humana e não ganha tempo de conhecer-lhe o lado feio. Mas deixemos estas filosofias inúteis.

 

Também achei mudado o nosso Rio de Janeiro, e mudado para melhor. O jardim do Rocio, o boulevard Carceller, cinco ou seis hotéis novos, novos prédios, grande movimento comercial e popular, tudo isso fez em meu espírito uma agradável impressão.

 

Fui hospedar-me no Hotel Damiani. Chamo-lhe assim para conservar um nome que tem para mim recordações saudosas. Agora o hotel chama-se Ravot. Tem defronte uma grande casa de modas e um escritório de jornal político. Dizem-me que a casa de modas faz mais negócio que o jornal. Não admira; poucos lêem, mas todos se vestem.

 

Estava eu justamente a contemplar o espetáculo novo que a rua me oferecia quando vi passar um indivíduo cuja fisionomia me não era estranha. Desci logo à rua e cheguei à porta quando ele passava defronte.

 

— Coutinho! exclamei.

 

— Macedo! disse o interpelado correndo a mim.

 

Entramos no corredor e aí demos aberta às nossas primeiras expansões.

 

— Que milagre é este? por que estás aqui? quando chegaste?

 

Estas e outras perguntas fazia-me o meu amigo entre repetidos abraços. Convidei-o a subir e a almoçar comigo, o que aceitou, com a condição porém de que iria buscar mais dois amigos nossos, que eu estimaria ver. Eram efetivamente dois excelentes companheiros de outro tempo. Um deles estava à frente de uma grande casa comercial; o outro, depois de algumas vicissitudes, fizera-se escrivão de uma vara cível.

 

Reunidos os quatro na minha sala do hotel, foi servido um suculento almoço, em que aliás eu e o Coutinho tomamos parte. Os outros limitavam-se a fazer a razão de alguns brindes e a propor outros.

 

Quiseram que eu lhes contasse as minhas viagens; cedi francamente a este desejo natural. Não lhes ocultei nada. Contei-lhes o que havia visto desde o Tejo até o Danúbio, desde Paris até Jerusalém. Fi-los assistir na imaginação às corridas de Chantilly e às jornadas das caravanas no deserto; falei do céu nevoento de Londres e do céu azul da Itália. Nada me escapou; tudo lhes referi.

 

Cada qual fez as suas confissões. O negociante não hesitou em dizer tudo quanto sofrera antes de alcançar a posição atual. Deu-me notícia de que estava casado, e tinha uma filha de dez anos no colégio. O escrivão achou-se um tanto envergonhado quando lhe tocou a vez de dizer a sua vida; todos nós tivemos a delicadeza de não insistir nesse ponto.

 

Coutinho não hesitou em dizer que era mais ou menos o que era outrora a respeito da ociosidade; sentia-se entretanto mudado e entrevia ao longe idéias de casamento.

 

— Não te casaste? perguntei eu.

 

— Com a prima Amélia? disse ele; não.

 

— Por quê?

 

— Porque não foi possível.

 

— Mas continuaste a vida solta que levavas?

 

— Que pergunta! exclamou o negociante. É a mesma coisa que era há quinze anos. Não mudou nada.

 

— Não digas isso; mudei.

 

— Para pior? perguntei eu rindo.

 

— Não, disse Coutinho, não sou pior do que era; mudei nos sentimentos; acho que hoje não me vale a pena cuidar de ser mais feliz do que sou.

 

— E podias sê-lo, se te houvesse casado com tua prima. Amava-te muito aquela moça; ainda me lembro das lágrimas que lhes vi derramar em um dia de entrudo. Lembras-te?

 

— Não me lembra, disse Coutinho ficando mais sério do que estava; mais creio que deve ter sido isso.

 

— E o que é feito dela?

 

— Casou.

 

— Ah!

 

— É hoje fazendeira; e dá-se perfeitamente com o marido. Mas não falemos nisto, acrescentou Coutinho, enchendo um cálix de cognac; o que lá vai, lá vai!

 

Houve alguns instantes de silêncio, que eu não quis interromper, por me parecer que o nome da moça trouxera ao rapaz alguma recordação dolorosa.

 

Rapaz é uma maneira de dizer. Coutinho contava já seus trinta e nove anos e tinha alguns fios brancos na cabeça e na barba. Mas apesar desse evidente sinal do tempo, eu aprazia-me em ver os meus amigos pelo prisma da recordação que levara deles.

 

Coutinho foi o primeiro que rompeu o silêncio.

 

— Pois que estamos aqui reunidos, disse ele, ao cabo de quinze anos, deixem que, sem exemplo, e para completar as nossas confidências recíprocas, eu lhes confesse uma coisa, que nunca saiu de mim.

 

— Bravo! disse eu; ouçamos a confidência de Coutinho.

 

Acendemos nossos charutos. Coutinho começou a falar:

 

— Eu namorava a prima Amélia, como sabem; o nosso casamento devia efetuar-se um ano depois que daqui saíste. Não se efetuou por circunstâncias que ocorreram depois, e com grande mágoa minha, pois gostava dela. Antes e depois amei e fui amado muitas vezes; mas nem depois nem antes, e por nenhuma mulher fui amado jamais como fui...

 

— Por tua prima? perguntei eu.

 

— Não; por uma cria de casa.

 

Olhamos todos espantados um para outro. Ignorávamos esta circunstância, e estávamos a cem léguas de semelhante conclusão. Coutinho não parece atender ao nosso espanto; sacudia distraidamente a cinza do charuto e parecia absorto na recordação que o seu espírito evocava.

 

— Chamava-se Mariana, continuou ele alguns minutos depois, e era uma gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo de minha mãe os mesmos afagos que ela dispensava às outras filhas. Não se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre, e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da sua situação, e não abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que na situação em que se achava só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora.

 

A sua educação não fora tão completa como a de minhas irmãs; contudo, Mariana sabia mais do que outras mulheres em igual caso. Além dos trabalhos de agulha que lhe foram ensinados com extremo zelo, aprendera a ler e a escrever. Quando chegou aos 15 anos teve desejo de saber francês, e minha irmã mais moça lho ensinou com tanta paciência e felicidade, que Mariana em pouco tempo ficou sabendo tanto como ela.

 

Como tinha inteligência natural, todas estas coisas lhe foram fáceis. O desenvolvimento do seu espírito não prejudicava o desenvolvimento de seus encantos. Mariana aos 18 anos era o tipo mais completo da sua raça. Sentia-se-lhe o fogo através da tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que lhe rompia dos olhos negros e rasgados. Tinha os cabelos naturalmente encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo voluptuoso, pé pequeno e mãos de senhora. É impossível que eu esteja a idealizar esta criatura que no entanto me desapareceu dos olhos; mas não estarei muito longe da verdade.

 

Mariana era apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e senhoras. Meu tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: — “Por que diabo está tua mãe guardando aqui em casa esta flor peregrina? A rapariga precisa de tomar ar”.

 

Posso dizer, agora que já passou muito tempo, esta preocupação do tio nunca me passou pela cabeça; acostumado a ver Mariana bem tratada parecia-me ver nela uma pessoa da família, e além disso, ser-me-ia doloroso contribuir para causar tristeza a minha mãe.

 

Amélia ia lá a casa algumas vezes; mas era o princípio, e antes que nenhum namoro houvesse entre nós. Cuido, porém, que foi Mariana quem chamou a atenção da moça para mim. Amélia deu-mo a entender um dia. O certo é que uma tarde, depois de jantar, estávamos a tomar café no terraço, e eu reparei na beleza de Amélia com uma atenção mais demorada que de costume. Fosse acaso ou fenômeno magnético, a moça olhava também para mim. Prolongaram-se os nossos olhares... ficamos a amar um ao outro. Todos os amores começam pouco mais ou menos assim.

 

Acho inútil contar minuciosamente este namoro de rapaz, que vocês em parte conhecem, e que não apresentou episódio notável. Meus pais aprovaram a minha escolha; os pais de Amélia fizeram o mesmo. Nada se opunha à nossa felicidade. Preparei-me um dia de ponto em branco e fui pedir a meu tio a mão da filha. Foi-me ela concedida, com a condição apenas de que o casamento seria efetuado alguns meses depois, quando o irmão de Amélia tivesse completado os estudos, e pudesse assistir à cerimônia com a sua carta de bacharel.

 

Durante este tempo Mariana estava em casa de uma parenta nossa que nô-la foi pedir para costurar uns vestidos. Mariana era excelente costureira. Quando ela voltou para casa, estava assentado o meu casamento com Amélia; e, como era natural, eu passava a maior parte do tempo em casa da prima, saboreando aquelas castas efusões de amor e ternura que antecedem o casamento. Mariana notou as minhas prolongadas ausências, e, com uma dissimulação assaz inteligente, indagou de minha irmã Josefa a causa delas. Disse-lho Josefa. Que se passou então no espírito de Mariana? Não sei; mas no dia seguinte, depois do almoço quando eu me dispunha a ir vestir-me, Mariana veio encontrar-me no corredor que ia ter ao meu quarto, com o pretexto de entregar-me um maço de charuto que me caíra do bolso. O maço fora previamente tirado da caixa que eu tinha no quarto.

 

— Aqui tem, disse ela com voz trêmula.

 

— O que é? perguntei.

 

— Estes charutos... caíram do bolso de senhor moço.

 

— Ah!

 

Recebi o maço de charutos e guardei-o no bolso do casaco; mas durante esse tempo, Mariana conservou-se diante de mim. Olhei para ela; tinha os olhos postos no chão.

 

— Então, que fazes tu? disse eu em tom de galhofa.

 

— Nada, respondeu ela levantando os olhos para mim. Estavam rasos de lágrimas.

 

Admirou-me essa manifestação inesperada da parte de uma rapariga que todos estavam acostumados a ver alegre e descuidosa da vida. Supus que houvesse cometido alguma falta e recorresse a mim para protegê-la junto de minha mãe. Nesse caso a falta devia ser grande, porque minha mãe era a bondade em pessoa, e tudo perdoava às suas amadas crias.

 

— Que tens, Mariana? perguntei.

 

E como ela não respondesse e continuasse a olhar para mim, chamei em voz alta por minha mãe. Mariana apressou-se a tapar-me a boca, e esquivando-se às minhas mãos fugiu pelo corredor fora.

 

Fiquei a olhar ainda alguns instantes para ela, sem compreender nem as lágrimas, nem o gesto, nem a fuga. O meu principal cuidado era outro; a lembrança do incidente passou depressa, fui vestir-me e saí.

 

Quando voltei à casa não vi Mariana, nem reparei na falta dela. Acontecia isso muitas vezes. Mas depois de jantar lembrou-me o incidente da véspera e perguntei a Josefa o que haveria magoado a rapariga que tão romanescamente me falara no corredor.

 

— Não sei, disse Josefa, mas alguma coisa haverá porque Mariana anda triste desde anteontem. Que supões tu?

 

— Alguma coisa faria e tem medo da mamãe.

 

— Não, disse Josefa; pode ser antes algum namoro.

 

— Ah! tu pensas quê?

 

— Pode ser.

 

— E quem será o namorado da senhora Mariana, perguntei rindo. O copeiro ou o cocheiro?

 

— Tanto não sei eu; mas seja quem for, será alguém que lhe inspirasse amor; é quanto basta para que se mereçam um ao outro.

 

— Filosofia humanitária!

 

— Filosofia de mulher, respondeu Josefa com um ar tão sério que me impôs silêncio.

 

Mariana não me apareceu nos três dias seguintes. No quarto dia, estávamos almoçando, quando ela atravessou a sala de jantar, tomou a bênção a todos e foi para dentro. O meu quarto ficava além da sala de jantar e tinha uma janela que dava para o pátio e enfrentava com a janela do gabinete de costura. Quando fui para o meu quarto, Mariana estava nesse gabinete ocupada em preparar vários objetos para uns trabalhos de agulha. Não tinha os olhos em mim, mas eu percebia que o seu olhar acompanhava os meus movimentos. Aproximei-me da janela e disse-lhe:

 

— Estás mais alegre, Mariana?

 

A mulatinha assustou-se, voltou a cara para diversos lados, como se tivesse medo de que as minhas palavras fossem ouvidas, e finalmente impôs-me silêncio com o dedo na boca.

 

— Mas que é? perguntei eu dando à minha voz a moderação compatível com a distância.

 

Sua única resposta foi repetir-me o mesmo gesto.

 

Era evidente que a tristeza de Mariana tinha uma causa misteriosa, pois que ela receava revelar nada a esse respeito.

 

Que seria senão algum namoro como minha irmã supunha? Convencido disto, e querendo continuar uma investigação curiosa, aproveitei a primeira ocasião que se me ofereceu.

 

— Que tens tu, Mariana? disse eu; andas triste e misteriosa. É algum namorico? Anda, fala; tu és estimada por todos cá de casa. Se gostas de alguém poderás ser feliz com ele porque ninguém te oporá obstáculos aos teus desejos.

 

— Ninguém? perguntou ela com singular expressão de incredulidade.

 

— Quem teria interesse nisso?

 

— Não falemos nisso, nhonhô. Não se trata de amores, que eu não posso ter amores. Sou uma simples escrava.

 

— Escrava, é verdade, mas escrava quase senhora. És tratada aqui como filha da casa. Esqueces esses benefícios?

 

— Não os esqueço; mas tenho grande pena em havê-los recebido.

 

— Que dizes, insolente?

 

— Insolente? disse Mariana com altivez. Perdão! continuou ela voltando à sua humildade natural e ajoelhando-se a meus pés; perdão, se disse aquilo; não foi por querer: eu sei o que sou; mas se nhonhô soubesse a razão estou certa que me perdoaria.

 

Comoveu-me esta linguagem da rapariga. Não sou mau; compreendi que alguma grande preocupação teria feito com que Mariana esquecesse por instantes a sua condição e o respeito que nos devia a todos.

 

— Está bom, disse eu, levanta-te e vai-te embora; mas não tornes a dizer coisas dessas que me obrigas a contar tudo à senhora velha.

 

Mariana levantou-se, agarrou-me na mão, beijou-a repetidas vezes entre lágrimas e desapareceu.

 

Todos estes acontecimentos tinham chamado a minha atenção para a mulatinha. Parecia-me evidente que ela sentia alguma coisa por alguém, e ao mesmo tempo que o sentia, certa elevação e nobreza. Tais sentimentos contrastavam com a fatalidade da sua condição social. Que seria uma paixão daquela pobre escrava educada com mimos de senhora? Refleti longamente nisto tudo, e concebi um projeto romântico: obter a confissão franca de Mariana e, no caso em que se tratasse de um amor que a pudesse tornar feliz, pedir a minha mãe a liberdade da escrava.

 

Josefa aprovou a minha idéia, e incumbiu-se de interrogar a rapariga e alcançar pela confiança aquilo que me seria mais difícil obter pela imposição ou sequer pelo conselho.

 

Mariana recusou dizer coisa nenhuma a minha irmã. Debalde empregou esta todos os meios de sedução possíveis entre uma senhora e uma escrava. Mariana respondia invariavelmente que nada havia que confessar. Josefa comunicou-me o que se passara entre ambas.

 

—Tentarei eu, respondi; verei se sou mais feliz.

 

Mariana resistiu às minhas interrogações repetidas, asseverando que nada sentia e rindo de que se pudesse supor semelhante coisa. Mas era um riso forçado, que antes confirmava a suspeita do que a negativa.

 

— Bem, disse eu, quando me convenci de que nada podia alcançar; bem, tu negas o que te pergunto. Minha mãe saberá interrogar-te.

 

Mariana estremeceu.

 

— Mas, disse ela, por que razão sinhá velha há de saber disto? Eu já disse a verdade.

 

— Não disseste, respondi eu; e não sei por que recusas dizê-la quando tratamos todos da tua felicidade.

 

— Bem, disse Mariana com resolução, promete que se eu disser a verdade não me interrogará mais?

 

— Prometo, disse eu rindo.

 

— Pois bem; é verdade que eu gosto de uma pessoa...

 

— Quem é?

 

— Não posso dizer.

 

— Por quê?

 

— Porque é um amor impossível.

 

— Impossível? Sabes o que são amores impossíveis?

 

Roçou pelos lábios da mulatinha um sorriso de amargura e dor.

 

— Sei! disse ela.

 

Nem pedidos, nem ameaças conseguiram de Mariana uma declaração positiva a este respeito. Josefa foi mais feliz do que eu; conseguiu não arrancar-lhe o segredo, mas suspeitar-lho, e veio dizer-me o que lhe parecia.

 

— Que seja eu o querido de Mariana? perguntei-lhe com um riso de mofa e incredulidade. Estás louca, Josefa. Pois ela atrever-se-ia!...

 

— Parece que se atreveu.

 

— A descoberta é galante; e realmente não sei o que pense disto...

 

Não continuei, disse a Josefa que não falasse em semelhante coisa e desistisse de maiores explorações. Na minha opinião o caso tomava outro caráter; tratava-se de uma simples exaltação de sentidos.

 

Enganei-me.

 

Cerca de cinco semanas antes do dia marcado para o casamento, Mariana adoeceu. O médico deu à moléstia um nome bárbaro, mas na opinião de Josefa era doença de amor. A doente recusou tomar nenhum remédio; minha mãe estava louca de pena; minhas irmãs sentiam deveras a moléstia da escrava. Esta ficava cada vez mais abatida; não comia, nem se medicava; era de recear que morresse. Foi nestas circunstâncias que eu resolvi fazer um ato de caridade. Fui ter em Mariana e pedi-lhe que vivesse.

 

— Manda-me viver? perguntou ela.

 

— Sim.

 

Foi eficaz a lembrança; Mariana restabeleceu-se em pouco tempo. Quinze dias depois estava completamente de pé.

 

Que esperanças concebera ela com as minhas palavras, não sei; cuido que elas só tiveram efeito por lhe acharem o espírito abatido. Acaso contaria ela que eu desistisse do casamento projetado e do amor que tinha à prima, para satisfazer os seus amores impossíveis? Não sei; o certo é que não só se lhe restaurou a saúde como também lhe voltou a alegria primitiva.

 

Confesso, entretanto que, apesar de não competir de modo nenhum os sentimentos de Mariana, entrei a olhar para ela com outros olhos. A rapariga tornara-se interessante para mim, e qualquer que seja a condição de uma mulher, há sempre dentro de nós um fundo de vaidade que se lisonjeia com a afeição que ela nos vote. Além disto, surgiu em meu espírito uma idéia que a razão pode condenar, mas que nossos costumes aceitam perfeitamente. Mariana encarregara-se de provar que estava acima das veleidades. Um dia de manhã fui acordado pelo alvoroço que havia em casa. Vesti-me à pressa e fui saber o que era. Mariana tinha desaparecido de casa. Achei minha mãe desconsoladíssima: estava triste e indignada ao mesmo tempo. Doía-lhe a ingratidão da escrava. Josefa veio ter comigo.

 

— Eu suspeitava, disse ela, que alguma coisa acontecesse. Mariana andava alegre demais; parecia-me contentamento fingido para encobrir algum plano. O plano foi este. Que te parece?

 

— Creio que devemos fazer esforços para capturá-la, e uma vez restituída à casa, colocá-la na situação verdadeira do cativeiro.

 

Disse isto por me estar a doer o desespero de minha mãe. A verdade é que, por simples egoísmo, eu desculpava o ato da rapariga.

 

Parecia-me natural, e agradava-me ao espírito, que a rapariga tivesse fugido para não assistir à minha ventura, que seria realidade daí a oito dias. Mas a idéia de suicídio veio aguar-me o gosto; estremeci com a suspeita de ser involuntariamente causa de um crime dessa ordem; impelido pelo remorso, saí apressadamente em busca de Mariana.

 

Achei-me na rua sem saber o que devia fazer. Andei cerca de vinte minutos inutilmente, até que me ocorreu a idéia natural de recorrer à polícia; era prosaica a intervenção da polícia, mas eu não fazia romance; ia simplesmente em cata de uma fugitiva.

 

A polícia nada sabia de Mariana; mas lá deixei a nota competente; correram agentes em todas as direções: fui eu mesmo saber nos arrabaldes se havia notícia de Mariana. Tudo foi inútil; às três horas da tarde voltei para casa sem poder tranqüilizar minha família. Na minha opinião tudo estava perdido.

 

Fui à noite à casa de Amélia, aonde não fora de tarde, motivo pelo qual havia recebido um recado em carta a uma de minhas irmãs. A casa de minha prima ficava em uma esquina. Eram oito horas da noite quando cheguei à porta da casa. A três ou quatro passos estava um vulto de mulher cosido com a parede. Aproximei-me: era Mariana.

 

— Que fazes aqui? perguntei eu.

 

— Perdão, nhonhô; vinha vê-lo.

 

— Ver-me? mas por que saíste de casa, onde eras tão bem tratada, e donde não tinhas o direito de sair, porque és cativa?

 

— Nhonhô, eu saí porque sofria muito...

 

— Sofrias muito! Tratavam-te mal? Bem sei o que é; são os resultados da educação que minha mãe te deu. Já te supões senhora e livre. Pois enganas-te; hás de voltar já, e já, para casa. Sofrerás as conseqüências da tua ingratidão. Vamos...

 

— Não! disse ela; não irei.

 

— Mariana, tu abusas da afeição que todos temos por ti. Eu não tolero essa recusa, e se me repetes isso...

 

— Que fará?

 

— Irás à força - irás com dois soldados.

 

— Nhonhô fará isso? disse ela com voz trêmula. Não quero obrigá-lo a incomodar os soldados, iremos juntos, ou irei só. O que eu queria, é que nhonhô não fosse tão cruel... porque enfim eu não tenho culpa se... Paciência! vamos... eu vou.

 

Mariana começou a chorar. Tive pena dela.

 

— Tranqüiliza-te, Mariana, disse-lhe; eu intercederei por ti. Mamãe não te fará mal.

 

— Que importa que faça? Eu estou disposta a tudo... Ninguém tem que ver com as minhas desgraças... Estou pronta; podemos ir.

 

— Saibamos outra coisa, disse eu, alguém te seduziu para fugir?

 

Esta pergunta era astuciosa; eu desejava apenas desviar do espírito da rapariga qualquer suspeita de que eu soubesse dos seus amores por mim. Foi desastrada a astúcia. O único efeito da pergunta foi indigná-la.

 

— Se alguém me seduziu? perguntou ela; não, ninguém; fugi porque eu o amo, e não posso ser amada, eu sou uma infeliz escrava. Aqui está por que eu fugi. Podemos ir; já disse tudo. Estou pronta a carregar com as conseqüências disto.

 

Não pude arrancar mais nada à rapariga. Apenas quando lhe perguntei se havia comido, respondeu-me que não, mas que não tinha fome.

 

Chegamos à casa eu e ela perto das nove horas da noite. Minha mãe já não tinha esperanças de tornar a ver Mariana; o prazer que a vista da escrava lhe deu foi maior que a indignação pelo seu procedimento. Começou por invectivá-la. Intercedi a tempo de acalmar a justa indignação de minha mãe e Mariana foi dormir tranqüilamente.

 

Não sei se tranqüilamente. No dia seguinte tinha os olhos inchados e estava triste. A situação da pobre rapariga interessara-me bastante, o que era natural, sendo eu a causa indireta daquela dor profunda. Falei muito nesse episódio em casa de minha prima. O tio João Luís disse-me em particular que eu fora um asno e um ingrato.

 

— Por quê? perguntei-lhe.

 

— Porque devias ter posto Mariana debaixo da minha proteção, a fim de livrá-la do mau tratamento que vai ter.

 

— Ah! não, minha mãe já lhe perdoou.

 

— Nunca lhe perdoará como eu.

 

Falei tanto em Mariana que minha prima entrou a sentir um disparatado ciúme. Protestei-lhe que era loucura e abatimento ter zelos de uma cria de casa, e que o meu interesse era simples sentimento de piedade. Parece que as minhas palavras não lhe fizeram grande impressão.

 

Extremamente leviana, Amélia não soube conservar a necessária dignidade, quando foi a minha casa. Conversou muito na necessidade de tratar severamente as escravas, e achou que era dar mau exemplo mandar-lhes ensinar alguma coisa.

 

Minha mãe admirou-se muito desta linguagem na boca de Amélia e redarguiu com aspereza o que lhe dava direito a sua vontade. Amélia insistiu; minhas irmãs combateram as suas opiniões: Amélia ficou amuada. Não havia pior posição para uma senhora.

 

Nada escapara a Mariana desta conversa entre Amélia e minha família; mas ela era dissimulada e nada disse que pudesse trair os seus sentimentos. Pelo contrário redobrou de esforços para agradar a minha prima; desfez-se em agrados e respeitos. Amélia recebia todas essas demonstrações com visível sobranceria em vez de as receber com fria dignidade.

 

Na primeira ocasião em que pude falar a minha prima, chamei a sua atenção para esta situação absurda e ridícula. Disse-lhe que, sem o querer, estava a humilhar-se diante de uma escrava. Amélia não compreendeu o sentimento que me ditou estas palavras, nem a procedência das minhas palavras. Viu naquilo uma defesa de Mariana; respondeu-me com algumas palavras duras e retirou-se para os aposentos de minhas irmãs onde chorou à vontade. Finalmente tudo se acalmou e Amélia voltou tranqüila para casa.

 

Quatro dias antes do dia marcado para o meu casamento, era a festa do natal. Minha mãe costumava dar festas às escravas. Era um costume que lhe deixara minha avó. As festas consistiam em dinheiro ou algum objeto de pouco valor. Mariana recebia ambas as coisas por uma especial graça. De tarde tiveram gente em casa para jantar: alguns amigos e parentes. Amélia estava presente. Meu tio João Luís era grande amador de discursos à sobremesa. Mal começavam a entrar os doces, quando ele se levantou e começou um discurso que a julgar pelo intróito, devia ser extenso. Como ele tinha suma graça, eram gerais as risadas desde que empunhou o copo. Foi no meio dessa geral alegria que uma das escravas veio dar parte de que Mariana havia desaparecido.

 

Este segundo ato de rebeldia da mulatinha produziu a mais furiosa impressão em todos. Da primeira vez houve alguma mágoa e saudade de mistura com a indignação. Desta vez houve indignação apenas. Que sentimento devia inspirar a todos a insistência dessa rapariga em fugir de uma casa onde era tratada como filha? Ninguém duvidou mais que Mariana era seduzida por alguém, idéia que na primeira vez se desvaneceu mediante uma piedosa mentira da minha parte; como duvidar agora?

 

Tais não eram as minhas impressões. Senhor do funesto segredo da escrava, sentia-me penalizado por ser causa indireta das loucuras dela e das tristezas de minha mãe. Ficou assentado que se procuraria a fugitiva e se lhe daria o castigo competente. Deixei que esse momento de cólera se consumasse, e levantei-me para ir procurar Mariana.

 

Amélia ficou desgostosa com esta resolução, e bem o revelou no olhar; mas eu fingi que a não percebia e saí.

 

Dei os primeiros passos necessários e usuais. A polícia nada sabia, mas ficou avisada e empregou meios para alcançar a fugitiva. Eu suspeitava que desta vez ela tivesse cometido suicídio; fiz neste sentido as diligências necessárias para ter alguma notícia dela viva ou morta.

 

Tudo foi inútil.

 

Quando voltei à casa eram dez horas da noite; todos estavam à minha espera, menos o tio e a prima que já se haviam retirado.

 

Minha irmã contou-me que Amélia saíra furiosa, porque achava que eu estava dando maior atenção do que devia a uma escrava, embora bonita, acrescentou ela.

 

Confesso que naquele momento o que me preocupava mais era Mariana; não porque eu correspondesse aos seus sentimentos por mim, mas porque eu sentia sérios remorsos de ser causa de um crime. Fui sempre pouco amante de aventuras e lances arriscados e não podia pensar sem algum terror na possibilidade de morrer alguém por mim.

 

Minha vaidade não era tamanha que me abafasse os sentimentos de piedade cristã. Neste estado as invectivas da minha noiva não me fizeram grande impressão, e não foi por causa delas que eu passei a noite em claro.

 

Continuei no dia seguinte as minhas pesquisas, mas nem eu nem a polícia fomos felizes.

 

Tendo andado muito, já a pé, já de tílburi, achei-me às cinco horas da tarde no Largo de S. Francisco de Paula, com alguma vontade de comer; a casa ficava um pouco longe e eu queria continuar depois as minhas averiguações. Fui jantar a um hotel que então havia na antiga Rua dos Latoeiros.

 

Comecei a comer distraído e ruminando mil idéias contrárias, mil suposições absurdas. Estava no meio do jantar quando vi descer do segundo andar da casa um criado com uma bandeja onde havia vários pratos cobertos.

 

— Não quer jantar, disse o criado ao dono do hotel que se achava no balcão.

 

— Não quer? perguntou este; mas então... não sei o que faça... reparaste se... Eu acho bom ir chamar a polícia.

 

Levantei-me da mesa e aproximei-me do balcão.

 

— De que se trata? perguntei eu.

 

— De uma moça que aqui apareceu ontem, e que ainda não comeu até hoje...

 

Pedi-lhe os sinais da pessoa misteriosa. Não havia dúvida. Era Mariana.

 

— Creio que sei quem é, disse eu, e ando justamente em procura dela. Deixe-me subir.

 

O homem hesitou; mas a consideração de que não lhe podia convir continuar a ter em casa uma pessoa por cuja causa viesse a ter questões com a polícia, fez com que me deixasse o caminho livre.

 

Acompanhou-me o criado, a quem incumbi de chamar por ela, porque se conhecesse a minha voz, supunha eu que me não quisesse abrir.

 

Assim se fez. Mariana abriu a porta e eu apareci. Deu um grito estridente e lançou-se-me nos braços. Repeli aquela demonstração com toda a brandura que a situação exigia.

 

— Não venho aqui para receber-te abraços, disse eu; venho pela segunda vez buscar-te para casa, donde pela segunda vez fugiste.

 

A palavra fugiste escapou-me dos lábios; todavia, não lhe dei importância senão quando vi a impressão que ela produziu em Mariana. Confesso que devera ter alguma caridade mais; mas eu queria conciliar os meus sentimentos com os meus deveres, e não fazer com que a mulher não se esquecesse de que era escrava. Mariana parecia disposta a sofrer tudo dos outros, contanto que obtivesse a minha compaixão. Compaixão tinha-lhe eu; mas não lho manifestava, e era esse todo o mal.

 

Quando a fugitiva recobrou a fala, depois das emoções diversas por que passara desde que me viu chegar, declarou positivamente que era sua intenção não sair dali. Insisti com ela dizendo-lhe que poderia ganhar tudo procedendo bem, ao passo que tudo perderia continuando naquela situação.

 

— Pouco importa, disse ela; estou disposta a tudo.

 

— A matar-te, talvez? perguntei eu.

 

— Talvez, disse ela sorrindo melancolicamente; confesso-lhe até que a minha intenção era morrer na hora do seu casamento, a fim de que fossemos ambos felizes, — nhonhô casando-se, eu morrendo.

 

— Mas desgraçada, tu não vês que...

 

— Eu bem sei o que vejo, disse ela; descanse; era essa a minha intenção, mas pode ser que o não faça...

 

Compreendi que era melhor levá-la pelos meios brandos; entrei a empregá-los sem esquecer nunca a reserva que me impunha a minha posição. Mariana estava resolvida a não voltar. Depois de gastar cerca de uma hora, sem nada obter, declarei-lhe positivamente que ia recorrer aos meios violentos, e que já lhe não era possível resistir. Perguntou-me que meios eram; disse-lhe que eram os agentes policiais.

 

— Bem vês, Mariana, acrescentei, sempre hás de ir para casa; é melhor que me não obrigues a um ato que me causaria alguma dor.

 

— Sim? perguntou ela com ânsia; teria dor em levar-me assim para casa?

 

— Alguma pena teria decerto, respondi; porque tu foste sempre boa rapariga; mas que farei eu se continuas a insistir em ficar aqui?

 

Mariana encostou a cabeça à parede e começou a soluçar; procurei acalmá-la; foi impossível. Não havia remédio; era necessário empregar o meio heróico. Saí ao corredor para chamar pelo criado que tinha descido logo depois que a porta se abriu.

 

Quando voltei ao quarto, Mariana acabava de fazer um movimento suspeito. Parecia-me que guardava alguma coisa no bolso. Seria alguma arma?

 

— Que escondeste aí? perguntei eu.

 

— Nada, disse ela.

 

— Mariana, tu tens alguma idéia terrível no espírito... Isso é alguma arma...

 

— Não, respondeu ela.

 

Chegou o criado e o dono da casa. Expus-lhes em voz baixa o que queria; o criado saiu, o dono da casa ficou.

 

— Eu suspeito que ela tem alguma arma no bolso para matar-se; cumpre arrancar-lha.

 

Dizendo isto ao dono da casa, aproximei-me de Mariana.

 

— Dá-me o que tens aí.

 

Ela contraiu um pouco o rosto. Depois, metendo a mão no bolso, entregou-me o objeto que lá havia guardado.

 

Era um vidro vazio.

 

— Que é isto, Mariana? perguntei eu, assustado.

 

— Nada, disse ela; eu queria matar-me depois d’amanhã. Nhonhô apressou a minha morte, nada mais.

 

— Mariana! exclamei eu aterrado.

 

— Oh! continuou ela com voz fraca; não lhe quero mal por isso. Nhonhô não tem culpa: a culpa é da natureza. Só o que eu lhe peço é que não me tenha raiva, e que se lembre algumas vezes de mim...

 

Mariana caiu sobre a cama. Pouco depois entrava o inspetor. Chamou-se à pressa um médico; mas era tarde. O veneno era violento; Mariana morreu às 8 horas da noite.

 

Sofri muito com este acontecimento; mas alcancei que minha mãe perdoasse à infeliz, confessando-lhe a causa da morte dela. Amélia nada soube, mas nem por isso deixou o fato de influir em seu espírito. O interesse com que eu procurei a rapariga, e a dor que a sua morte me causou, transtornaram a tal ponto os sentimentos da minha noiva, que ela rompeu o casamento dizendo ao pai que havia mudado de resolução.

 

Tal foi, meus amigos, este incidente da minha vida. Creio que posso dizer ainda hoje que todas as mulheres de quem tenho sido amado, nenhuma me amou mais do que aquela. Sem alimentar-se de nenhuma esperança, entregou-se alegremente ao fogo do martírio; amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas no fundo, amor imenso e profundo, sincero e inalterável.

 

Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela Rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos restituído a mocidade.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 27 de novembro de 2021

O PERFUME DOS BOLOS (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

O PERFUME DOS BOLOS

Raul Pompéia

 

 

 

Já lá vão seis anos...

Eu via sempre, por volta das dez horas, passar-me pela porta a pequena Berta.

Era a filha mais nova do meu vizinho confeiteiro.

Que linda Berta! Chamavam-na, por graça, a menina azul. Dava razão a isso o saiote azul, que ela trajava sempre, e o corpete de cabeção, azul ainda como a saia, e os olhos cor de céu e os louros cabelos quase brancos, com brilhos metálicos anilados, e, ainda mais, a coloração fina que sombreava-lhe a alvura da face, reflexo não sei se do corpete azul, se do azul luminoso dos olhos.

Perfeitamente encantadora, a criança...

À pequenina da minha rua, um freguês do confeiteiro comia bolos ao almoço.

Berta os levava.

Eu gostava de vê-la passar, trazendo nas mãos, à altura dos ombros, uma pequena bandeja, coberta por um guardanapo alvíssimo. Mais lindos sete anos, nunca vi, nem mais perfumosos bolos.

A menina passava, caminhando rápido; altiva e tímida como uma antílope. Os cabelos cortados rente, deixavam-lhe descoberta a nuca, móvel e branca como um pescoço de cisne. Após ela, ia o apetitoso perfume da massa tostada dos bolos, quentes e fumegantes ainda.

Berta atirava-me um sorriso de malícia inocente e ficava logo muito séria, quase ameaçadora. Eu lançava-lhe punhados de violetas, só para vê-la pisar as flores com o seu adorável desdém...

De repente, Berta desapareceu. Perguntei por ela. Morrera.

............................................................

O freguês da esquina ainda come bolos, ao almoço, como há seis anos.

O meu vizinho confeiteiro ainda os fornece como outrora.

Apenas já não os leva a menina azul.

Há seis anos que os portadores variam.

Atualmente, quem passa com os bolos, é um garotinho maltrapilho, que anda de cabeça baixa, desconfiado, olhando de través, com uns modos de cãozinho escorraçado...

Para mim, entretanto, apesar dos meus olhos, é Berta ainda quem os leva.

Quando o garotinho passa é a menina azul que eu vejo.

Aquele perfume de massa tostada e quente desperta-me ao vivo o risonho quadro das boas manhãs doutro tempo.

Distingo o olhar e o sorriso de Berta, os seus movimentos tímidos e altivos de antílope; vejo-a ainda pisando com o seu adorável desdém as minhas pobres violetas...

O garotinho, com certeza não sabe porque sorrio-me para ele, quando ele passa.

Responde ao meu sorriso com uma careta amável, ingênua e idiota...

Um destes dias, pediu-me um vintém...

Apesar de tudo, para mim, a portadora dos bolos continua a ser Berta, a menina azul.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 26 de novembro de 2021

VIVER! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VIVER!

Machado de Assis

 

 

 

Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o horizonte, onde passam duas águias cruzando-se. Medita, depois sonha. Vai declinando o dia.

 

AHASVERUS. - Chego à cláusula dos tempos; este é o limiar da eternidade. A terra está deserta; nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o último; posso morrer. Morrer! Deliciosa idéia! Séculos de séculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me. Aquela montanha é áspera como a minha dor; aquelas águias, que ali passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis também, águias divinas?

 

PROMETEU. - Certo que os homens acabaram; a terra está nua deles.

 

AHASVERUS. - Ouço ainda uma voz... Voz de homem? Céus implacáveis, não sou então o último? Ei-lo que se aproxima... Quem és tu? Há em teus grandes olhos alguma coisa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos de Israel; não és homem...

 

PROMETEU. - Não.

 

AHASVERUS. - Raça divina?

 

PROMETEU. - Tu o disseste.

 

AHASVERUS. - Não te conheço; mas que importa que te não conheça? Não és homem; posso então morrer; pois sou o último, e fecho a porta da vida.

 

PROMETEU. - A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma, outras se abrirão. És o último da tua espécie? Virá outra espécie melhor, não feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem derradeiro, toda a plebe dos espíritos perecerá para sempre; a flor deles é que voltará à terra para reger as coisas. Os tempos serão retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça...

 

AHASVERUS. - Que importa à espécie que vai morrer comigo toda essa delícia póstuma? Crê-me, tu que és imortal, para os ossos que apodrecem na terra as púrpuras de Sidônia não valem nada. O que tu me contas é ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade deste havia delitos e enfermidades; a tua exclui todas as lesões morais e físicas. O Senhor te ouça! Mas deixa-me ir morrer.

 

PROMETEU. - Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias?

 

AHASVERUS. - A pressa de um homem que tem vivido milheiros de anos. Sim, milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as gerações e todas as ruínas, para experimentar esse profundo fastio da existência.

 

PROMETEU. - Milheiros de anos?

 

AHASVERUS. - Meu nome é Ahasverus: vivia em Jerusalém, ao tempo em que iam crucificar Jesus Cristo. Quando ele passou pela minha porta, afrouxou ao peso do madeiro que levava aos ombros, e eu empurrei-o, bradando-lhe que não parasse, que não descansasse, que fosse andando até à colina, onde tinha de ser crucificado... Então uma voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre, continuamente, até o fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para com aquele que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os fariseus diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matá-lo; eu, pobre ignorante, quis realçar o meu zelo e daí a ação daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa irremissível.

 

PROMETEU. - Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benévola. Os outros homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capítulo de outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. Há páginas melancólicas? Há outras joviais e felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-lo inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, não dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a aflição da alma, e a alegria da alma suprindo à desolação das coisas; dança alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo.

 

AHASVERUS. - Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana.

 

PROMETEU. - Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perpétuo, explica-te. Conta-me tudo; saíste de Jerusalém...

 

AHASVERUS. - Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem aí respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava comigo a moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em capítulo? Os que se foram, à nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes tu o que é ver as mesmas coisas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre ocasos?

 

PROMETEU. - Mas não padeceste, creio; é alguma coisa não padecer nada.

 

AHASVERUS. - Sim, mas vi padecer os outros homens, e para o fim o espetáculo da alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doido. Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada.

 

PROMETEU. - Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos inúmeros o efeito da cólera divina?

 

AHASVERUS. - Tu?

 

PROMETEU. - Prometeu é o meu nome.

 

AHASVERUS. - Tu Prometeu?

 

PROMETEU. - E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e água os primeiros homens, e depois, compadecido, roubei para eles o fogo do céu. Tal foi o meu crime. Júpiter, que então regia o Olimpo, condenou-me ao mais cruel suplício. Anda, sobe comigo a este rochedo.

 

AHASVERUS. - Contas-me uma fábula. Conheço esse sonho helênico.

 

PROMETEU. - Velho incrédulo! Anda ver as próprias correntes que me agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindade orgulhosa e terrível... Chegamos, olha, aqui estão elas...

 

AHASVERUS. - O tempo que tudo rói não as quis então?

 

PROMETEU. - Eram de mão divina; fabricou-as Vulcano. Dois emissários do céu vieram atar-me ao rochedo, e uma águia, como aquela que lá corta o horizonte, comia-me o fígado, sem consumi-lo nunca. Durou isto tempos que não contei. Não, não podes imaginar este suplício...

 

AHASVERUS. - Não me iludes? Tu Prometeu? Não foi então um sonho da imaginação antiga?

 

PROMETEU. - Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo.

 

AHASVERUS. - Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens?

 

PROMETEU. - Foi o meu crime.

 

AHASVERUS. - Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime inexpiável. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, é certo; mas tu, que me trouxeste à existência, divindade perversa, foste a causa original de tudo.

 

PROMETEU. - A morte próxima obscurece-te a razão.

 

AHASVERUS. - Sim, és tu mesmo, tens a fronte olímpica, forte e belo titão: és tu mesmo... São estas as cadeias? Não vejo o sinal das tuas lágrimas.

 

PROMETEU. - Chorei-as pela tua raça.

 

AHASVERUS. - Ela chorou muito mais por tua culpa.

 

PROMETEU. - Ouve, último homem, último ingrato!

 

AHASVERUS. - Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade perversa. Aqui estão as cadeias. Vê como as levanto nas mãos; ouve o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outrora?

 

PROMETEU. - Hércules.

 

AHASVERUS. - Hércules... Vê se ele te presta igual serviço, agora que vais ser novamente agrilhoado.

 

PROMETEU. - Deliras.

 

AHASVERUS. - O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitáfio de um mundo. Chamarei a águia, e ela virá; dir-lhe-ei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses.

 

PROMETEU. - Pobre ignorante, que rejeitas um trono! Não, não podes mesmo rejeitá-lo.

 

AHASVERUS. - És tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os braços. Assim, bem, não resistirás mais; arqueja para aí. Agora as pernas...

 

PROMETEU. - Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contra mim; mas eu, que não sou homem, não conheço a ingratidão. Não arrancarás uma letra ao teu destino, ele se cumprirá inteiro. Tu mesmo serás o novo Hércules. Eu, que anunciei a glória do outro, anuncio a tua; e não serás menos generoso que ele.

 

AHASVERUS. - Deliras tu?

 

PROMETEU. - A verdade ignota aos homens é o delírio de quem a anuncia. Anda, acaba.

 

AHASVERUS. - A glória não paga nada,

e extingue-se.

 

PROMETEU. - Esta não se extinguirá. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da águia como me há de devorar a entranha; mas escuta... Não, não escutes nada; não podes entender-me.

 

AHASVERUS. - Fala, fala.

 

PROMETEU. - O mundo passageiro não pode entender o mundo eterno; mas tu serás o elo entre ambos.

 

AHASVERUS. - Dize tudo.

 

PROMETEU. - Não digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu não fuja, para que me aches aqui à tua volta. Que te diga tudo? Já te disse que uma raça nova povoará a terra, feita dos melhores espíritos da raça extinta; a multidão dos outros perecerá. Nobre família, lúcida e poderosa, será perfeita comunhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo é preciso, e esse elo és tu.

 

AHASVERUS. - Eu?

 

PROMETEU. - Tu mesmo, tu eleito, tu, rei. Sim, Ahasverus, tu serás rei. O errante pousará. O desprezado dos homens governará os homens.

 

AHASVERUS. - Titão artificioso, iludes-me... Rei, eu?

 

PROMETEU. - Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradição do mundo velho, e ninguém pode falar de um a outro como tu. Assim não haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito procederá do imperfeito, e a tua boca dir-lhe-á as suas origens. Contarás aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Reviverás assim como a árvore a que cortaram as folhas secas, e conserva tão-somente as viçosas; mas aqui o viço é eterno.

 

AHASVERUS. - Visão luminosa! Eu mesmo?

 

PROMETEU. - Tu mesmo.

 

AHASVERUS. - Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é a remissão gloriosa do meu pecado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e melhor? Não, tu mofas de mim.

 

PROMETEU. - Bem, deixa-me, voltarás um dia, quando este imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova. Aqui me acharás tranqüilo. Vai.

 

AHASVERUS. - Saudarei outra vez o sol?

 

PROMETEU. - Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca mais se fechará a tua pálpebra. Fita-o, se podes.

 

AHASVERUS. - Não posso.

 

PROMETEU. - Podê-lo-ás depois quando as condições da vida houverem mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem futuro ficará concentrado tudo o que há melhor na natureza, enérgico ou sutil, cintilante ou puro.

 

AHASVERUS. - Jura que me não mentes.

 

PROMETEU. - Verás se minto.

 

AHASVERUS. - Fala, fala mais, conta-me tudo.

 

PROMETEU. - A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás prodigiosa. O seio de Abraão das tuas velhas Escrituras não é senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os profetas. Lá contarás à gente estupefata não só as grandes ações do mundo extinto, como também os males que ela não há de conhecer, lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinável toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma túnica incorruptível.

 

AHASVERUS. - Verei ainda este imenso céu azul!

 

PROMETEU. - Olha como é belo.

 

AHASVERUS. - Belo e sereno como a eterna justiça. Céu magnífico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meus pensamentos, como outrora; tu me darás os dias claros e as noites amigas...

 

PROMETEU. - Auroras sobre auroras.

 

AHASVERUS. - Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias...

 

PROMETEU. - Desata-as, Hércules novo, homem derradeiro de um mundo, que vás ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguém poderá mudá-lo. És mais ainda que o teu Moisés. Do alto do Nebo, viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jericó, que ia pertencer à sua posteridade; e o Senhor lhe disse: "Tu a viste com teus olhos, e não passarás a ela." Tu passarás a ela, Ahasverus; tu habitarás Jericó.

 

AHASVERUS. - Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena... Rei disseste?

 

PROMETEU. - Rei eleito de uma raça eleita.

 

AHASVERUS. - Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas águias aproximam-se.)

 

UMA ÁGUIA. - Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.

 

A OUTRA. - Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 25 de novembro de 2021

A ADÚLTERA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A ADÚLTERA

Humberto de Campos

 

 

 

Regressava Jesus, naquela tarde, do monte das Oliveiras, quando, em meio do caminho, com o sol a esconder-se, ao longe, no leito de fogo das montanhas, foi rodeado por um pequeno grupo de fariseus, que traziam de rastros, pálida e desgrenhada, uma pobre mulher que se debatia entre eles. Supondo confundir o Rabino com a sua consulta inesperada, um escriba, de nome Barachias, adiantou-se dois passos, e pediu, com fingida humildade:

 

— Mestre, esta mulher foi surpreendida a trair o esposo, a quem jurara fidelidade. A lei de Moisés determina que ela seja apedrejada, e morta pela multidão. Que devemos fazer?

 

Jesus, que lhe ouvira o coração antes de lhe escutar a palavra, baixou-se na areia da estrada, e pôs-se, com o dedo, a escrever.

 

— Mestre — tornou o fariseu, — esta mulher foi apanhada em flagrante, traindo o seu esposo. Devemos matá-la à pedrada, como estabelece a lei de Moisés?

 

Jesus, em silêncio, continuava a escrever sobre a areia, quando, de repente, erguendo-se, respondeu:

 

— Só o justo pode punir o pecador. Aquele, pois, que, dentre vós nunca pecou, atire a primeira pedra!

 

A estas palavras, Barachias desapareceu, e, com ele, um a um, aqueles que o acompanhavam, ficando no caminho, apenas, Jesus e a pecadora. Agradecida e assustada, ia a mísera atirar-se de joelhos para beijar as sandálias do Mestre, quando o Rabino a deteve pelos braços, dizendo-lhe, severo:

 

— Nada me deves, mulher. Em verdade te digo, que as leis de meu Pai são mais implacáveis do que as leis de Moisés. Poupei-te a vida porque a própria morte não puniria a tua falta!

 

E, repelindo-a com a mão, suavemente:

 

— Anda; vai! A vergonha do teu crime, na tua velhice, será, na terra, o teu castigo!

 

E, baixando os olhos, continuou, sozinho, a caminho de Jerusalém...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 23 de novembro de 2021

MARCHA FÚNEBRE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

MARCHA FÚNEBRE

Machado de Assis

 

 

 

DEPUTADO Cordovil não podia pregar olho uma noite de agosto de 186… Vieracedo do Cassino Fluminense, depois da retirada do Imperador, e durante o baile nãotivera o mínimo incômodo moral nem físico. Ao contrário, a noite foi excelente, tãoexcelente que um inimigo seu, que padecia do coração, faleceu antes das dez horas, e anotícia chegou ao Cassino pouco depois das onze.Naturalmente concluis que ele ficou alegre com a morte do homem, espécie de vingançaque os corações adversos e fracos tomam em falta de outra. Digo-te que concluis mal;não foi alegria, foi desabafo. A morte vinha de meses, era daquelas que não acabammais, e moem, mordem, comem, trituram a pobre criatura humana. Cordovil sabia dospadecimentos do adversário. Alguns amigos, para o consolar de antigas injúrias, iamcontar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de braços, vivendoas noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem esperanças, nem as tardesdesenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra de compaixão, que o alvissareiroadotava, e repetia, e era mais sincera naquele que neste. Enfim acabara de padecer; daí odesabafo.

Este sentimento pegava com a piedade humana. Cordovil, salvo em política, nãogostava do mal alheio. Quando rezava, ao levantar da cama: “Padre Nosso, que estás nocéu, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assimna terra como no céu, o pão nosso de cada dia nos dá hoje, perdoa as nossas dívidas,como nós perdoamos aos nossos devedores”… não imitava um de seus amigos querezava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de língua; essechegava a cobrar além do que eles lhe deviam, isto é, se ouvia maldizer de alguém,decorava tudo e mais alguma cousa e ia repeti-lo a outra parte. No dia seguinte, porém,a bela oração de Jesus tornava a sair dos lábios da véspera com a mesma caridade deofício.Cordovil não ia nas águas desse amigo; perdoava deveras. Que entrasse no perdão umtantinho de preguiça, é possível, sem aliás ser evidente. Preguiça amamenta muitavirtude. Sempre é alguma cousa minguar força à ação do mal. Não esqueça que odeputado só gostava do mal alheio em política, e o inimigo morto era inimigo pessoal.Quanto à causa da inimizade, não a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida.– Coitado! descansou, disse Cordovil.Conversaram da longa doença do finado . Também falaram das várias mortes destemundo, dizendo Cordovil que a todas preferia a de César, não por motivo do ferro, maspor inesperada e rápida.– Tu quoque? perguntou-lhe um colega rindo.Ao que ele, apanhando a alusão, replicou:– Eu, se tivesse um filho, quisera morrer às mãos dele. O parricídio, estando fora docomum, faria a tragédia mais trágica.Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu do baile com sono, e foi cochilando no carro,apesar do mal calçado das ruas. Perto de casa. sentiu parar o carro e ouviu rumor devozes. Era o caso de um defunto, que duas praças de polícia estavam levantando do chão.

— Assassinado? perguntou ele ao lacaio, que descera da almofada para saber o que era.– Não sei, não, senhor.– Pergunta o que é.– Este moço sabe como foi, disse o lacaio, indicando um desconhecido, que falava aoutros.O moço aproximou-se da portinhola, antes que o deputado recusasse ouvi-lo. Referiu-lhe então em poucas palavras o acidente a que assistira.– Vínhamos andando, ele adiante, eu atrás. Parece que assobiava uma polca. Indo aatravessar a rua para o lado do Mangue, vi que estacou o passo, a modo que torceu ocorpo, não sei bem, e caiu sem sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de umsobradinho, examinou o homem e disse que “morreu de repente”. Foi-se juntando gente,a patrulha levou muito tempo a chegar. Agora pegou dele. Quer ver o defunto?– Não, obrigado. Já se pode passar?– Pode.– Obrigado. Vamos, Domingos.Domingos trepou à almofada, o cocheiro tocou os animais, e o carro seguiu até à Rua deS. Cristóvão, onde morava Cordovil.Antes de chegar à casa , Cordovil foi pensando na morte do desconhecido. Em simesma, era boa; comparada à do inimigo pessoal, excelente. Ia a assobiar, cuidandosabe Deus em que delícia passada ou em que esperança futura; revivia o que vivera, ouantevia o que podia viver, senão quando, a morte pegou da delícia ou da esperança, e lá
se foi o homem ao eterno repouso.

Morreu sem dor, ou, se alguma teve, foi acasobrevíssima, como um relâmpago que deixa a escuridão mais escura.Então pôs o caso em si. Se lhe tem acontecido no Cassino a morte do Aterrado? Nãoseria dançando; os seus quarenta anos não dançavam. Podia até dizer que ele só dançouaté aos vinte. Não era dado a moças, tivera um afeição única na vida, — aos vinte ecinco anos, casou e enviuvou ao cabo de cinco semanas para não casar mais. Não é quelhe faltassem noivas, — mormente depois de perder o avô, que lhe deixou duas fazendas.Vendeu-as ambas e passou a viver consigo, fez duas viagens à Europa, continuou apolítica e a sociedade. Ultimamente parecia enojado de uma e de outra, mas não tendoem que matar o tempo, não abriu mão delas. Chegou a ser ministro uma vez, creio queda Marinha, não passou de sete meses. Nem a pasta lhe deu glória, nem a demissãodesgosto. Não era ambicioso, e mais puxava para a quietação que para o movimento.Mas se lhe tivesse sucedido morrer de repente no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha,entre duas portas? Podia ser muito bem. Cordovil compôs de imaginação a cena, elecaído de bruços ou de costas, o prazer turbado, a dança interrompida… e dali podia serque não; um pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens animando as damas, aorquestra continuando por instantes a oposição do compasso e da confusão. Nãofaltariam braços que o levassem para um gabinete, já morto, totalmente morto.”Tal qual a morte de César”, ia dizendo consigo.E logo emendou:”Não, melhor que ela; sem ameaça, nem armas, nem sangue, uma simples queda e ofim. Não sentiria nada.”Cordovil deu consigo a rir ou a sorrir, alguma cousa que afastava o terror e deixava asensação da liberdade. Em verdade, antes a morte assim que após longos dias ou longosmeses e anos, como o adversário que perdera algumas horas antes. Nem era morrer; eraum gesto de chapéu, que se perdia no ar com a própria mão e a alma que lhe deramovimento. Um cochilo e o sono eterno. Achava-lhe um só defeito, — o aparato. Essamorte no meio de um baile defronte do Imperador, ao som de Strauss, contada, pintada, enfeitada nas folhas públicas, essa morte pareceria de encomenda.

Paciência, uma vezque fosse repentina.Também pensou que podia ser na Câmara, no dia seguinte, ao começar o debate doorçamento. Tinha a palavra; já andava cheio de algarismos e citações. Não quisimaginar o caso, não valia a pena; mas o caso teimou e apareceu de si mesmo. O salãoda Câmara, em vez do do Cassino, sem damas ou com poucas, nas tribunas. Vastosilêncio. Cordovil em pé começaria o discurso, depois de circular os olhos pela casa,fitar o ministro e fitar o presidente: “Releve-me a Câmara que lhe tome algum tempo,serei breve, buscarei ser justo…” Aqui uma nuvem lhe taparia os olhos, a língua pararia,o coração também, e ele cairia de golpe no chão. Câmara, galerias, tribunas ficariamassombradas. Muitos deputados correriam a erguê-lo; um, que era médico, verificaria amorte; não diria que fora de repente, como o do sobradinho do Aterrado, mas por outroestilo mais técnico. Os trabalhos seriam suspensos, depois de algumas palavras dopresidente e escolha da comissão que acompanharia o finado ao cemitério …Cordovil quis rir da circunstância de imaginar além da morte, o movimento e osaimento, as próprias notícias dos jornais, que ele leu de cor e depressa. Quis rir, maspreferia cochilar; os olhos é que, estando já perto de casa e da cama, não quiseramdesperdiçar o sono, e ficaram arregalados.Então a morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no diaseguinte em plena sessão da Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, aoabrirem-lhe a portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de uma noite ruidosapara outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma deluta ou resistência. O estremeção que teve fez-lhe ver que não era verdade.Efetivamente, o carro entrou na chácara, estacou, e Domingos saltou da almofada paravir abrir-lhe a portinhola. Cordovil desceu com as pernas e a alma vivas, e entrou pelaporta lateral, onde o aguardava com um castiçal e vela acesa o escravo Florindo. Subiu aescada, e os pés sentiam que os degraus eram deste mundo; se fossem do outro,desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no quarto, olhou para a cama; era a mesmados sonos quietos e demorados.– Veio alguém?

— Não, senhor, respondeu o escravo distraído, mas corrigiu logo: Veio, sim, senhor;veio aquele doutor que almoçou com meu senhor domingo passado.– Queria alguma cousa?– Disse que vinha dar a meu senhor uma boa notícia, e deixou este bilhete — que eubotei ao pé da cama.O bilhete referia a morte do inimigo; era de um dos amigos que usavam contar-lhe amarcha da moléstia. Quis ser o primeiro a anunciar o desenlace, um alegrão, com umabraço apertado. Enfim, morrera o patife. Não disse a cousa assim por esses termosclaros, mas os que empregou vinham a dar neles, acrescendo que não atribuiu esse únicoobjeto à visita. Vinha passar a noite; só ali soube que Cordovil fora ao Cassino. Ia a sair,quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe deixasse escrever duas linhas.Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia do outro. Fez umgesto de melancolia e exclamou a meia voz:– Coitado! Vivam as mortes súbitas!Florindo, se referisse o gesto e a frase ao doutor do bilhete, talvez o fizesse arrependerda canseira. Nem pensou nisso; ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu asúltimas ordens e despediu-se. Cordovil deitou-se.– Ah! suspirou ele estirando o corpo cansado.Teve então uma idéia, a de amanhecer morto. Esta hipótese, a melhor de todas, porque oapanharia meio morto, trouxe consigo mil fantasias que lhe arredaram o sono dos olhos.Em parte, era a repetição das outras, a participação à Câmara, as palavras do presidente,comissão para o saimento, e o resto. Ouviu lástimas de amigos e de fâmulos, viunotícias impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era já sonho.Não era. Chamou-se ao quarto, à cama, a si mesmo: estava acordado.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 22 de novembro de 2021

OLHOS (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

OLHOS

Raul Pompéia

 

 

 

Era um comprido velho, magro, de longos braços, pendentes como esses ramos dos pinheiros, que as gravuras representam debruçados às escarpas, sobre catadupas, ou sobre abismos. Rigorosamente trajado de preto, cismador e melancólico, produzia-me o mesmo efeito das lutuosas árvores das paisagens setentrionais.

Ao lado dele, em violento contraste de cor, vestida de branco, numa toilette refolhada de musselina, com um laço negro, a prender os cabelos, caminhava uma menina.

O velho acariciava a criança, sob um olhar de ternura; a menina com a cabeça muito voltada, porque o velho era alto, sorria para ele e segurava-lhe a grande mão descarnada nas suas pequeninas, alisando-lhe com amor os dedos, delicadamente.

Aproximaram-se.

O velho, apesar dos cabelos brancos, não o era tanto, de perto, como me parecera, à distância. Dir-se-ia encanecido pelas neves de um inverno precoce, adiantado pelos dissabores da vida; a que resistira, entretanto, a relativa frescura da fisionomia.

A menina era graciosa, mas feia. Devia ter sete anos. Aparentava trinta, com aquele arzinho de senhora e o rosto moreno, magro, de maçãs pronunciadas e os olhos rasgados, pensadores, como desiludidos há muito dos enganos da infância.

Passaram por mim; o velho cortesmente, cumprimentou-me com uma inclinação de cabeça. A criança imitou com graça a cortesia do velho. À primeira curva da alameda, sumiram-se, devorados por uma escura garganta de bosque.

Vi-os, essa vez, no Passeio Público. Tornei a vê-los no dia seguinte. Vi-os depois, todos os dias, por muito tempo, até que, mudando-me para longe, deixei de visitar, pela manhã, o deleitoso Jardim do Boqueirão.

 

Agora, há dias, dez anos decorridos, passando casualmente, de bonde pela rua do Passeio, às 8 horas, às horas do flânerie matinal do outro tempo, deu-me vontade de entrar no jardim.

Caminhando ao acaso, satisfeito de sentir a brisa do mar, que chegava muito fresca, através das árvores; e o festivo sol domingueiro peneirado dos ramos, traçando arabescos dançantes na areia, ao acaso, fui dar com o banco de pedra onde outrora sentava-me e do qual via passar o velho alto, de braços pendentes e ar melancólico de pinheiro das montanhas, com a criança de branco, de sete anos e grandes olhos pensadores...

Como fazia, outrora, sentei-me e fiquei a pensar nas cousas todas do meu passado que se ligavam à recordação dos passeios, tornando a ver, em toda a realidade representativa da cisma, o velho de preto a passar e a criança.

Assim estava eu, quando senti que alguém pousava a mão sobre o meu ombro.

Volto-me bruscamente. Um homem estava ao meu lado. Sentado como eu, olhava-me.

E quem havia de ser?! O velho!... o velho dos meus antigos passeios! O mesmo homem de preto, magro e alto com a mesma expressão desolada das árvores dos montes!...

- O senhor! exclamei, com um espanto fácil de calcular.

- Eu mesmo, caro senhor... Reconheço-o, tal qual o senhor me reconhece.

- Parabéns ao acaso, que me fez encontrá-lo... uma pessoa que conheci em dias agradáveis do meu passado!...

- O seu encontro, infelizmente a mim, só me desperta recordações amargas...

- Recordações amargas...

- Recordações dolorosas... Tão dolorosas que me levaram a importuná-lo... É quase doçura a confidência dos pesares... E o senhor que me viu com ela bem pode compreender-me... Lembra-se da menina?...

- Lembro-me... aquela gentil criança...

- Tão meiga, tão boa... morreu!... A minha Ema...

"Quando, outrora, nos encontrávamos aqui, eu vinha com ela a passeio... Queria distraí-la da lembrança da mãe, que tudo, tudo em casa recordava... a pobre morta que me deixara a inocente... Aquela filha era a minha vida. A luz daqueles olhos bania as sombras da minha sorte. Minha pobre alma vivia naquele raio de olhar como vivem as cores do íris, numa réstea de sol.

"Nasci na roça, muito longe do torvelinho detestável das praças... Os olhos da criança, profundo espelho das minhas saudades, mostravam-me o brilho das manhãs da minha mocidade... Eu via-lhe dentro das negras pupilas, a vivenda alegre de meus pais, a verde paisagem onde correram os meus folguedos de menino, a revoada das narcejas sobre a lagoa...

"Morava solitário e triste numa rua estreita e escura. Nos dias chuvosos, vivíamos num crepúsculo desagradável. A lembrança de minha mulher e dos dias felizes da família, cruciava-me especialmente, nesses dias anuviados... Pois, era bastante um olhar da minha adorada Ema, um olhar! e as tristezas fugiam; das nuvens de chuva coava-se para mim um dia claro... Que se espessasse a valer o teto de chumbo da borrasca!... Para mim fazia sol!... No ar vibravam sutilmente, ao longe, notas de música, oscilantes e vagas... Nos olhos dela eu via o céu imenso e as andorinhas, muito alto, em chusma, brincando como sorrisos no azul.

"Ema valia todo o meu passado... Eu que apreciei a leitura e que fui amigo de acompanhar, do meu sossego, a novidade dos acontecimentos, o rumor da vida, nada mais lia que os poemas daquele olhar, nada mais observava que a vida intensa daqueles olhos queridos... Ema era a minha vida presente, como o meu passado...

"Morreu!...

"Também foi bom... A pobrezinha era feia... Morreu aos dezesseis anos. Vivia triste de se achar feia: ninguém havia de amá-la; tinha-lhe amor o pai; mas, pobres das que não são belas! era isso bastante?... Ema gostou de morrer: morreu sorrindo...

"Entretanto, Deus sabe, que magia celeste lhes morava nos olhos, que paraíso inefável Ema guardava ali nas pálpebras, onde eu às vezes me perdia extasiado, como se, realmente, se me soltasse o espírito para uma região alheia a este mundo, vasta, ilimitada, suavemente iluminada por um clarão difuso de estrelas."


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 21 de novembro de 2021

UM HOMEM CÉLEBRE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM HOMEM CÉLEBRE

Machado de Assis

 

 

 

- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

- Diga, minha senhora.

- É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

- Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

- Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

- A bengala.

- Mas parece que hoje chove.

- Chove, repetiu Pestana maquinalmente.

- Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

- Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

- Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, - ou por alusão a algum sucesso do dia, - ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

- Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.

- Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

- E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...

- As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

- Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.

- Vai casar com uma viúva.

- Velha?

- Vinte e sete anos.

- Bonita?

- Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, - mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

- Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

- Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, - uma clara e fresca manhã de maio de 1876, - eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

- Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

- Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?

- Nada.

- Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

- Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.

- Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

- Adeus.

- Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 20 de novembro de 2021

PARÁBOLAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

PARÁBOLAS

Humberto de Campos

 

 

Em matéria de parábolas, eu conhecia, apenas, as que o Nazareno arquitetou para edificação dos seus discípulos: a do bom samaritano, a do filho pródigo, a do semeador, e três ou quatro outras, igualmente profundas e morais. Agora, acabo de conhecer mais umas duzentas, contidas em um volume encantador, publicado há dois dias pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto.

 

As "Parábolas" do brilhante romancista da "Maria Bonita" e da "Esfinge" são, como todas as parábolas bem urdidas e meditadas, um excelente repositório de "ensinamentos, de exemplo", de lições adaptáveis à vida dos homens. E entre elas nenhuma é, talvez, tão humana, tão sábia, nem tão oportuna, como a do melro e do tico-tico. "Descobri num arbusto, quase à beira do caminho, no meu jardim — escreve o autor, — um ninho de tico-tico. Vi-o voar, quando me aproximava, e pude notar três ovinhos depostos na fofa cama bem feita. Pareceu-me que um dos ovos era diferente na forma e na cor, dos outros dois, mas não insisti na minha malícia. Seria lá com o tico-tico. Não perturbei mais o mistério dessa maternidade com a minha indiscrição. Muitos dias depois, distraído, vou pelas mesmas bandas e ouço inquieto pipilar. Pé, ante pé, chego à espreita: o tico-tico depois de saltitar de galho em galho, acerca-se do ninho, trazendo no bico a nutrição para a ninhada que o chamava sôfrega. Olho paro o ninho e vejo um passarinho só, grande, bem maior que o outro, vestido de penugem negra, de amplo bico aberto, à espera de alimento... O filho do tico-tico era um melro!"

 

Entusiasmado com essa página de Afrânio Peixoto, eu acabava de lê-la para a admiração do desembargador Bernardo Meireles quando o velho político do Império me interrompeu, indagando:

 

— Como se chama essa história?

 

— Parábola, desembargador.

 

— Parábola? — trovejou o ancião, fazendo ressoar no soalho o seu bengalão de maçaranduba, e agitando, num tremor subitâneo, as barbas veneráveis. — Que parábola, o quê!?...

 

E acentuou, indignado:

 

— Uma grande patifaria, é que é!

 

E chamando os oito netinhos, filhos da mesma filha, começou a distribuir biscoitos por esse pequeno viveiro humano, em que havia, cantando, pipilando chilreando, melros, canários, tico-ticos, cambachirras, curiós...


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 18 de novembro de 2021

MANUSCRITO DE UM SACRISTÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

MANUSCRITO DE UM SACRISTÃO

Machado de Assis

 

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

Ao dar com o padre Teófilo falando a uma senhora, ambos sentadinhos no banco da igreja, e a igreja deserta, confesso que fiquei espantado. Note-se que conversavam em voz tão baixa e discreta, que eu, por mais que afiasse o ouvido e me demorasse a apagar as velas do altar, não podia apanhar nada, nada, nada. Não tive remédio senão adivinhar alguma coisa. Que eu sou um sacristão filósofo. Ninguém me julgue pela sobrepeliz rota e amarrotada nem pelo uso clandestino das galhetas. Sou um filósofo sacristão. Tive estudos eclesiásticos, que interrompi por causa de uma doença e que inteiramente deixei por outro motivo, uma paixão violenta, que me trouxe à miséria. Como o seminário deixa sempre um certo vinco, fiz-me sacristão aos trinta anos, para ganhar a vida. Venhamos, porém, ao nosso padre e à nossa dama.

CAPÍTULO II

Antes de ir adiante, direi que eram primos. Soube depois que eram primos, nascidos em Vassouras. Os pais dela mudaram-se para a Corte, tendo Eulália (é o seu nome) sete anos. Teófilo veio depois. Na família era uso antigo que um dos rapazes fosse padre. Vivia ainda na Bahia um tio dele, cônego. Cabendo-lhe nesta geração envergar a batina, veio para o seminário de S. José, no ano de mil oitocentos e cinqüenta e tantos, e foi aí que o conheci. Compreende-se o sentimento de discrição que me leva a deixar a data no ar.

CAPÍTULO III

No seminário, dizia-nos o lente de retórica:

— A teologia é a cabeça do gênero humano, o latim a perna esquerda, e a retórica a perna direita.

Justamente da perna direita é que o Teófilo coxeava. Sabia muito as outras coisas: teologia, filosofia, latim, história sagrada; mas a retórica é que lhe não entrava no cérebro. Ele, para desculpar-se, dizia que a palavra divina não precisava de adornos. Tinha então vinte ou vinte e dois anos de idade, e era lindo como S. João.

Já nesse tempo era um místico; achava em todas as coisas uma significação recôndita. A vida era uma eterna missa, em que o mundo servia de altar, a alma de sacerdote e o corpo de acólito; nada respondia à realidade exterior. Vivia ansioso de tomar ordens para sair a pregar grandes coisas, espertar as almas, chamar os corações à Igreja, e renovar o gênero humano. Entre todos os apóstolos, amava principalmente São Paulo.

Não sei se o leitor é da minha opinião; eu cuido que se pode avaliar um homem pelas suas simpatias históricas; tu serás mais ou menos da família dos personagens que amares deveras. Aplico assim aquela lei de Helvetius: “O grau de espírito que nos deleita dá a medida exata do grau de espírito que possuímos”. No nosso caso, ao menos, a regra não falhou. Teófilo amava São Paulo, adorava-o, estudava-o dia e noite, parecia viver daquele converso que ia de cidade em cidade, à custa de um ofício mecânico, espalhando a boa nova aos homens. Nem tinha somente esse modelo, tinha mais dois: Hildebrando e Loiola. Daqui podeis concluir que nasceu com a fibra da peleja e do apostolado. Era um faminto de ideal e criação, olhando todas as coisas correntes por cima da cabeça do século. Na opinião de um cônego, que lá ia ao seminário, o amor dos dois modelos últimos temperava o que pudesse haver perigoso em relação ao primeiro.

— Não vá o senhor cair no excesso e no exclusivo, disse-lhe um dia com brandura; não pareça que, exaltando somente a Paulo, intenta diminuir Pedro. A igreja, que os comemora ao lado um do outro, meteu-os ambos no Credo; mas veneremos Paulo e obedeçamos a Pedro. Super hanc petram…

Os seminaristas gostavam do Teófilo, principalmente três, um Vasconcelos, um Soares e um Veloso, todos excelentes retóricos. Eram também bons rapazes, alegres por natureza, graves por necessidade e ambiciosos. Vasconcelos jurava que seria bispo; Soares contentava-se com algum grande cargo; Veloso cobiçava as meias roxas de cônego e um púlpito. Teófilo tentou repartir com eles o pão místico dos seus sonhos, mas reconheceu depressa que era manjar leve ou pesado demais, e passou a devorá-lo sozinho. Até aqui o padre; vamos agora à dama.

CAPÍTULO IV

Agora a dama. No momento em que os vi falar baixinho na igreja, Eulália contava trinta e oito anos de idade. Juro-lhes que era ainda bonita. Não era pobre; os pais deixaram-lhe alguma coisa. Nem casada; recusou cinco ou seis pretendentes.

Este ponto nunca foi entendido pelas amigas. Nenhuma delas era capaz de repelir um noivo. Creio até que não pediam outra coisa, quando rezavam antes de entrar na cama, e ao domingo, à missa, no momento de levantar a Deus. Por que é que Eulália recusava-os todos? Vou dizer desde já o que soube depois. Supuseram-lhe, a princípio, um simples desdém, — nariz torcido, dizia uma delas; — mas, no fim da terceira recusa, inclinaram-se a crer que havia namoro encoberto, e esta explicação prevaleceu. A própria mãe de Eulália não aceitou outra. Não lhe importaram as primeiras recusas; mas, repetindo-se, ela começou a assustar-se. Um dia, voltando de um casamento, perguntou à filha, no carro em que vinham, se não se lembrava que tinha de ficar só.

— Ficar só?

— Sim, um dia hei de morrer. Por ora tudo são flores; cá estou para governar a casa; e você é só ler, cismar, tocar e brincar; mas eu tenho de morrer, Eulália, e você tem de ficar só…

Eulália apertou-lhe muito a mão, sem poder dizer palavra. Nunca pensara na morte da mãe; perdê-la era perder metade de si mesma. Na expansão de momento, a mãe atreveu-se a perguntar-lhe se amava alguém e não era correspondida. Eulália respondeu que não. Não simpatizara com os candidatos. A boa velha abanou a cabeça; falou dos vinte e sete anos da filha, procurou aterrá-la com os trinta, disse-lhe que, se nem todos os noivos a mereciam igualmente, alguns eram dignos de ser aceitos, e que importava a falta de amor? O amor conjugal podia ser assim mesmo; podia nascer depois, como um fruto da convivência. Conhecera pessoas que se casaram por simples interesse de família e acabaram amando-se muito. Esperar uma grande paixão para casar era arriscar-se a morrer esperando.

— Pois sim, mamãe, deixe estar…

E, reclinando a cabeça, fechou um pouco os olhos para espiar alguém, para ver o namorado encoberto, que não era só encoberto, mas também e principalmente impalpável. Concordo que isto agora é obscuro; não tenho dúvida em dizer que entramos em pleno sonho.

Eulália era uma esquisita, para usarmos a linguagem da mãe, ou romanesca, para empregarmos a definição das amigas. Tinha, em verdade, uma singular organização. Saiu ao pai. O pai nascera com o amor do enigmático, do arriscado e do obscuro; morreu quando aparelhava uma expedição para ir à Bahia descobrir a “cidade abandonada”. Eulália recebeu essa herança moral, modificada ou agravada pela natureza feminil. Nela dominava principalmente a contemplação. Era na cabeça que ela descobria as cidades abandonadas. Tinha os olhos dispostos de maneira que não podiam apanhar integralmente os contornos da vida. Começou idealizando as coisas, e, se não acabou negando-as, é certo que o sentimento da realidade esgarçou-se-lhe até chegar à transparência fina em que o tecido parece confundir-se com o ar.

Aos dezoito anos, recusou o primeiro casamento. A razão é que esperava outro, um marido extraordinário, que ela viu e conversou, em sonho ou alucinação, a mais radiosa figura do universo, a mais sublime e rara, uma criatura em que não havia falha ou quebra, verdadeira gramática sem irregularidades, pura língua sem solecismos.

Perdão, interrompe-me uma senhora, esse noivo não é obra exclusiva de Eulália, é o marido de todas as virgens de dezessete anos. Perdão, digo-lhe eu, há uma diferença entre Eulália e as outras, é que as outras trocam finalmente o original esperado por uma cópia gravada, antes ou depois da letra, e às vezes por uma simples fotografia ou litografia, ao passo que Eulália continuou a esperar o painel autêntico. Vinham as gravuras, vinham as litografias, algumas muito bem acabadas, obra de artista e grande artista, mas para ela traziam o defeito de ser cópias. Tinha fome e sede de originalidade. A vida comum parecia-lhe uma cópia eterna. As pessoas do seu conhecimento caprichavam em repetir as idéias umas das outras, com iguais palavras, e às vezes sem diferente inflexão, à semelhança do vestuário que usavam, e que era do mesmo gosto e feitio. Se ela visse alvejar na rua um turbante mourisco ou flutuar um penacho, pode ser que perdoasse o resto; mas nada, coisa nenhuma, uma constante uniformidade de idéias e coletes. Não era outro o pecado mortal das coisas. Mas, como tinha a faculdade de viver tudo o que sonhava, continuou a esperar uma vida nova e um marido único.

Enquanto esperava, as outras iam casando. Assim perdeu ela as três principais amigas: Júlia Costinha, Josefa e Mariana. Viu-as todas casadas, viu-as mães, a princípio de um filho, depois de dois, de quatro e de cinco. Visitava-as, assistia ao viver delas, sereno e alegre, medíocre, vulgar, sem sonhos nem quedas, mais ou menos feliz. Assim se passaram os anos; assim chegou aos trinta, aos trinta e três, aos trinta e cinco, e finalmente aos trinta e oito em que a vemos na igreja, conversando com o padre Teófilo.

CAPÍTULO V

Naquele dia mandara dizer uma missa por alma da mãe, que morrera um ano antes. Não convidou ninguém: foi ouvi-la sozinha. Ouviu-a, rezou, depois sentou-se no banco.

Eu, depois de ajudar à missa, voltei para a sacristia, e vi ali o padre Teófilo, que viera da roça duas semanas antes e andava à cata de alguma missa para comer. Parece que ele ouviu do outro sacristão ou do mesmo padre oficiante o nome da pessoa sufragada; viu que era o da tia e correu à igreja, onde ainda achou a prima no banco. Sentou-se ao pé dela, esquecido do lugar e das posições, e falaram naturalmente de si mesmos. Não se viam desde longos anos. Teófilo visitara-as logo depois de ordenado padre; mas saiu para o interior e nunca mais soube delas, nem elas dele.

Já disse que não pude ouvir nada. Estiveram assim perto de meia hora. O coadjutor veio espiar, deu com eles e ficou justamente escandalizado. A notícia do caso chegou, dois dias depois, ao bispo. Teófilo recebeu uma advertência amiga, subiu à Conceição e explicou tudo: era uma prima, a quem não via desde muito. O padre coadjutor, quando soube da explicação, exclamou com muito critério que o ser parente não lhe trocava o sexo nem supria o escândalo.

Entretanto, como eu tinha sido companheiro do Teófilo no seminário e gostava dele, defendi-o com muito calor e fiz chegar o meu testemunho ao Palácio da Conceição. Ele ficou-me grato por isso, e daí veio a intimidade de nossas relações. Como os dois primos podiam ver-se em casa, Teófilo passou a visitá-la, e ela a recebê-lo com muito prazer. No fim de oito dias, recebeu-me também; ao cabo de duas semanas era eu um dos seus familiares.

Dois patrícios que se encontram em plaga estrangeira e podem finalmente trocar as palavras mamadas na infância não sentem maior alvoroço do que estes dois primos, que eram mais que primos: moralmente eram gêmeos. Ele contou-lhe a vida e, como os acontecimentos acarretassem os sentimentos, ela olhou para dentro da alma do primo e achou que era a sua mesma alma e que, em substância, a vida de ambos era a mesma. A diferença é que uma esperou quieta o que o outro andou buscando por montes e vales; no mais, igual equívoco, igual conflito com a realidade, idêntico diálogo de árabe e japonês.

— Tudo o que me cerca é trivial e chocho, dizia-lhe ele.

Com efeito, gastara o aço da mocidade em divulgar uma concepção que ninguém lhe entendeu. Enquanto os três amigos mais chegados do seminário passavam adiante, trabalhando e servindo, afinados pela nota do século, Veloso cônego e pregador, Soares com uma grande vigararia, Vasconcelos a caminho de bispar, ele Teófilo era o mesmo apóstolo e místico dos primeiros anos, em plena aurora cristã e metafísica. Vivia miseravelmente, costeando a fome, pão magro e batina surrada; tinha instantes e horas de tristeza e de abatimento: confessou-os à prima…

— Também o senhor? perguntou ela.

E as suas mãos apertaram-se com energia: entendiam-se. Não tendo achado um astro na loja de um relojoeiro, a culpa era do relojoeiro; tal era a lógica de ambos. Olharam-se com a simpatia de náufragos, — náufragos e não desenganados, — porque não o eram. Crusoé, na ilha deserta, inventa e trabalha; eles não; lançados à ilha, estendiam os olhos para o mar ilimitado, esperando a águia que viria buscá-los com as suas grandes asas abertas. Uma era a eterna noiva sem noivo, outro o eterno profeta sem Israel; ambos punidos e obstinados.

Já disse que Eulália era ainda bonita. Resta dizer que o padre Teófilo, com quarenta e dois anos, tinha os cabelos grisalhos e as feições cansadas; as mãos não possuíam nem a maciez nem o aroma da sacristia, eram magras e calosas e cheiravam ao mato. Os olhos é que conservavam o fogo antigo, era por ali que a mocidade interior falava cá para fora, e força é dizer que eles valiam só por si todo o resto.

As visitas amiudaram-se. Afinal íamos passar ali as tardes e as noites e jantar aos domingos. A convivência produziu dois efeitos, e até três. O primeiro foi que os dois primos, freqüentando-se, deram força e vida um ao outro; relevem-me esta expressão familiar: — fizeram um pique-nique de ilusões. O segundo é que Eulália, cansada de esperar um noivo humano, volveu os olhos para o noivo divino e, assim como ao primo viera a ambição de S. Paulo, veio-lhe a ela a de Santa Teresa. O terceiro efeito é o que o leitor já adivinhou.

Já adivinhou. O terceiro foi o caminho de Damasco, — um caminho às avessas, porque a voz não baixou do céu, mas subiu da terra; não chamava a pregar Deus, mas a pregar o homem. Sem metáfora, amavam-se. Outra diferença é que a vocação aqui não foi súbita como em relação ao apóstolo das gentes; foi vagarosa, muito vagarosa, cochichada, insinuada, bafejada pelas asas da pomba mística.

Note-se que a fama precedeu ao amor. Sussurrava-se desde muito que as visitas do padre eram menos de confessor que de pecador. Era mentira; eu juro que era mentira. Via-os, acompanhava-os, estudava esses dois temperamentos tão espirituais, tão cheios de si mesmos, que nem sabiam da fama, nem cogitavam no perigo da aparência. Um dia vi-lhes os primeiros sinais do amor. Será o que quiserem, uma paixão quarentona, rosa outoniça e pálida, mas era, existia, crescia, ia tomá-los inteiramente. Pensei em avisar o padre, não por mim, mas por ele mesmo; mas era difícil, e talvez perigoso. Demais, eu era e sou gastrônomo e psicólogo; avisá-lo era botar fora uma fina matéria de estudo e perder os jantares dominicais. A psicologia, ao menos, merecia um sacrifício: calei-me.

Calei-me à toa. O que eu não quis dizer, publicou-o o coração de ambos. Se o leitor me leu de corrida, conclui por si mesmo a anedota, conjugando os dois primos; mas, se me leu devagar, adivinha o que sucedeu. Os dois místicos recuaram; não tiveram horror um do outro nem de si mesmos, porque essa sensação estava excluída de ambos, mas recuaram, agitados de medo e de desejo.

— Volto para a roça, disse-me o padre.

— Mas por quê?

— Volto para a roça.

Voltou para a roça e nunca mais cá veio. Ela, é claro que tinha achado o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou. Eu, gastrônomo e psicólogo, continuei a ir jantar com Eulália aos domingos. Considero que alguma coisa deve subsistir debaixo do sol, ou o amor ou o jantar, se é certo, como quer Schiller, que o amor e a fome governam este mundo.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 17 de novembro de 2021

HINO AURIVERDE (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

HINO AURIVERDE

Raul Pompéia

 

 

 

Era pelas últimas horas de uma tarde admirável.

A estrada torcia-se como uma serpente enorme, recolhendo-se cuidadosa às sombras vertidas pelo chão juntamente com as folhas secas escapadas aos fartos penachos do arvoredo.

O sol passava por cima da floresta, vergastando com chibatadas de fogo os grelos tenros da ramaria e os grelos deixavam-se cair exaustos sob o suplício.

Apareceu então na estrada uma espécie de mendigo. Seguia lento, cabeça inclinada; amparava-se a um pau mal desgalhado e trazia na mão um pedaço de corda. De vez em quando o sol furava os ramos e jogava-lhe à nuca um punhado de fogo.

 

II

 

O mendigo não sentia as garotadas do sol. Ia refletindo, remordendo meias palavras, nessa reflexão difícil de um espírito obscuro e selvagem. Pensava naquela infâmia de pele preta, que lhe haviam colado à carne; naquela robustez maldita, que parecia querer eternizar-lhe o suplício do cativeiro; recordava-se das chicotadas do cafezal, daquele trabalho cruel que mal rendia-lhe a farinha abjeta da ração... E que tempo havia!... Dantes, ele tinha o cabelo preto e a pele lisa; agora os cabelos estavam como paina, brancos, brancos, e a pele riscada de rugas... Só ficara-lhe dos primeiros anos o pulso rijo para o eito e a canela forte para as pernadas. O tormento da força.

 

III

De súbito, no meio dos sussurros indistintos do mato, feitos de chilros de pássaros e de marulho de folhas, ouviu-se um acorde que não era o canto das folhas, nem a conversa dos passarinhos.

O mendigo preto parou. Pôs-se a ouvir aquela música melancólica e agradável, que entrava religiosamente na mata, como a nota de um órgão.

A povoação estava perto. A música era um realejo que se tocava.

- Aqui está bom, disse o velho escravo.

E preparou com a corda um laço.

O realejo executava, então, uma outra peça. Tinha o mesmo tom vagaroso e triste, como se estivesse combinado para acompanhar os preparativos sombrios do escravo.

 

IV

 

À beira do caminho havia um tronco notável, que estendia acima da estrada um galho musculoso como um braço enorme, terminando como um punho colossal, fechado e ameaçador.

O escravo subiu e sentou-se tristemente sobre os músculos magníficos desse braço hercúleo. Lançou alguns olhares para o seu bastão, que ficara lá embaixo. O único companheiro e o derradeiro amigo.

Enfiou depois o pescoço no colar sinistro da sua corda. Prendeu-lhe a outra ponta ao punho arrogante, fechado para o céu...

V

O céu brilhava azul, como um pensamento de criança: e, no meio das bonanças harmoniosas daquela tarde serena, voava, macia como uma nuvem tênue, a solfa queixosa do realejo.

Aquela música!... aquela tarde...

O velho escravo levantou os olhos, do bastão, para o espaço; foi, sem tremer, até a ponta do galho que o sustinha, e escorregou...

VI

Naquele instante, o realejo tocava para os meninos da povoação as harmonias patrióticas do hino nacional...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 16 de novembro de 2021

UM DIA DE ENTRUDO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM DIA DE ENTRUDO

Machado de Assis

 

 

 

Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas dágua, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores.

Dois dias antes de chegar o entrudo já a família de D. Angélica Sanches estava entregue aos profundos trabalhos de fabricar limões de cheiro. Era de ver como as moças, as mucamas, os rapazes e os moleques, sentados à volta de uma grande mesa compunham as laranjas e limões que deviam no domingo próximo molhar o paciente transeunte ou confiado amigo da casa.

  1. Angélica tinha nessa época seus cinqüenta e nove anos. Nascera mais ou menos no tempo da conjuração de Tiradentes. Criada por um lavrador de Minas, D. Angélica adquiriu certos princípios liberais, mas perdeu-os em 1808, quando veio ao Rio de Janeiro e assistiu à entrada da corte real. Ainda que esta mudança nos princípios políticos de D. Angélica foi resultado de uma paixão por um arqueiro ou quer que seja da guarda real. D. Angélica pertencia, fisicamente falando, a essa classe de mulheres, capazes de matar um porco de uma cajadada. Além de possuir um par de espáduas atléticas, tinha um gênio de arremeter contra qualquer obstáculo e vencê-lo. Parece que o namorado desdenhava as mulheres alfenins, as criaturas quebradiças e moles. Gostava de uma robustez que indicava saúde e disposição para trabalhar. Angélica resumia tudo isso. Amaram-se e no fim de algum tempo celebrou-se o casamento, com aplauso de amigos e conhecidos. Pouco importa saber que fim levou o Sr. Tomás Sanches no tempo em que se passam as cenas que vou relatar. Basta saber que morreu quando de todo se lhe extinguiu a vida, coisa que provavelmente não lhe aconteceu sem perder a saúde. Demais, não é bom falar do finado Tomás Sanches ao pé de D. Angélica; a pobre senhora ainda hoje o chora. Mas não lhe falem de homem que mereça o respeito, o amor e a consideração, porque D. Angélica cita logo um caso do marido, que entre parêntesis, enriqueceu em pouco tempo.

Não ficou estéril a aliança de Sanches e Angélica. Cinco foram os frutos de tão abençoada união, dois do sexo masculino e três do sexo feminino.

Carlos e Benjamim se chamaram os rapazes; as raparigas receberam os nomes de Teresa, Ermelinda e Joana. Os sinais particulares desta prole eram os seguintes: Joana tinha o nariz muito comprido, Ermelinda era muita pequena, Teresa era alta e cheia. Quanto aos rapazes, a única diferença entre Carlos e Benjamim era que o primeiro ria à cara do segundo regularmente uma vez por semana, sem que o outro tirasse nunca desforra de semelhante afronta.

Ultimamente a afronta tinha sido tal que Benjamim achou prudente deixar de falar ao irmão. Havia já cinco dias que reinava entre ambos essa interrupção de relações diplomáticas, quando a festa do entrudo veio reconciliar tudo. No momento em que tomamos conhecimento com a família Sanches estão eles em boa harmonia despejando cera dentro das fôrmas de limões ou enchendo os que já estão prontos com água de cheiro.

Fora injustificável esquecimento deixar de mencionar entre os fabricantes de limões o jovem Batista, rapaz alegre e magro, dono de um armarinho na mesma rua em que moravam os Sanches, amigo de moças e até, dizem, namorado de Teresa. Citarei do mesmo modo uma prima de D. Angélica (42 anos) e uma sobrinha da dita (26), sendo que esta (D. Lucinda) era filha daquela (D. Maria).

Vinham para a mesa as caçarolas cheias de cera derretida, e todos aqueles operários mergulhavam nelas os limões e as laranjas, ou despejavam cera dentro de fôrmas de pau.

- Olhe, prima; este saiu bem bom, diz Lucinda.

- Já viu os meus? pergunta Teresa.

- Quantos tem você?

- Doze.

- Eu tenho nove.

- Eu cá já fiz vinte e quatro, exclama Carlos. O Benjamim só fez cinco.

- Mas é que eu não sei o que tem a minha fôrma, redargúi o pobre Benjamim envergonhado

- És um desastrado! não passas disto!

- Carlos! que é isso? Eu não quero bulha.

Estas palavras foram ditas por D. Angélica que nesse momento, tendo vindo de dentro com a prima D. Maria, contava-lhe não sei que história de legumes e escravos.

- Tia Maria hoje não tem feito nada, exclamam as raparigas Sanches.

- Pois já não fiz dois limões?

- Dois só! está bem aviada!

- Está bom, raparigas, dêem cá uma fôrma, não quero parecer que sou vadia.

  1. Maria sentou-se e fez vagarosamente alguns limões. Houve algum tempo de silêncio, só interrompido pelo andar das escravas, a campainha da cancela da escada, o som do nariz do Batista que estava endefluxado, e nada mais.
  2. Angélica, que andava de um lado para outro, aproximou-se da mesa e disse:

- Bem, acabem com isso por enquanto, que é preciso pôr a mesa.

- Já, mamãe! exclamaram as filhas.

- Pois então? são duas horas e meia.

Carlos aprovou in-petto a idéia de pôr a mesa, e D. Maria, que costumava jantar à uma hora, achou a resolução de D. Angélica acertadíssima.

- Tem razão, prima, se deixarmos estas meninas aqui, são capazes de ficar até amanhã.

- Não é conveniente, disse Batista com uma voz entrecortada pelas urgências do defluxo, não é conveniente interromper o trabalho enquanto há cera liquida. A cera é um produto que...

- Que não dá de jantar! interrompeu brutalmente Carlos pondo a fôrma de lado e levantando-se da mesa.

As moças insistiram e ficaram ainda um quarto de hora fazendo limões. Benjamim queria levantar-se também, mas um olhar de Lucinda o deteve e desde já qualquer leitor, ainda que não seja mais perspicaz que um chapéu, terá compreendido que os dois jovens se amavam.

A saída de Carlos agradou geralmente à sociedade, o filho mais velho de D. Angélica era um verdadeiro perturbador de festas. Ausente, reinou mais tranqüilidade; Batista pôde olhar mais vezes para Teresa, e Benjamim piscar mais livremente os olhos a Lucinda. Se Carlos estivesse presente, não hesitaria em dizer:

- Temos namoro! não?... Que é isso, Sr. Batista?... Olá prima, então?...

- Dizia eu que em 7 de Abril...

E outras frases como estas reduziam as faces dos culpados a verdadeiras inflamações de vergonha.

Batista sentiu-se até mais livre da voz, e proferiu a propósito do entrudo dois ou três axiomas, um dos quais declarou tê-lo ouvido de um padre, que era o homem mais sensato que conhecera.

- Sensato era o meu Tomás, acudiu D. Angélica; que juízo tinha ele! que cabeça de homem! Deus lhe fale n'alma. Contarei o seguinte caso. No tempo do 7 de Abril...

Nesse instante entrou na sala o esfomeado Carlos e vendo iminente uma história que provavelmente já conhecia, exclamou:

- Oh! mamãe? não se janta hoje?

- Eu sei, respondeu D. Angélica, estas meninas ainda aqui estão.

- Pois acabem com isso...

Carlos atirou-se à mesa e tal bulha fez que impediu o trabalho e a anedota. D. Angélica adiou a prova do bom juízo do finado Tomás Sanches, as moças deixaram a mesa, e a mucama veio pôr a mesa do jantar.

Aproveitando o intervalo, pois aceitara o oferecimento de D. Angélica para jantar, foi Batista alguns instantes ao armarinho para saber se havia novidade. Teresa foi logo à janela e trocou um sorriso com o namorado.

  1. Maria sentou-se com Ermelinda a um canto para indagar se alguma coisa havia entre Teresa e Batista.

- Eu creio que há alguma coisa. Tu não sabes nada?

Ermelinda respondeu:

- Eu nada, titia.

- Mas é impossível que não haja, e se é exato falarei disto a tua mãe.

- Por que? perguntou Ermelinda sobressaltada.

- Não convém que tua irmã se case com um dono de armarinho... um pax vobis, uma posição inferior.

Ermelinda calou-se prometendo a si mesma ir contar tudo à irmã.

Carlos passeava pela sala de jantar, atirando de quando em quando bolas de papel ao irmão, que, por prudência, fingia estar contando as tábuas do assoalho.

Joana contava a Lucinda um namoro que tivera com um rapaz da rua do Piolho, enquanto a prima lançava de quando em quando um olhar a Benjamim.

- Muito custa a vir este jantar. Parece que nunca mais se acaba de pôr esta mesa. Tia Maria, já há de estar com uma fome!

Carlos dizia estas palavras tirando da mesa um pedaço de pão e mastigando para enganar o estômago.

- Não te pareça! disse D. Maria, por certo que estou com fome...

Finalmente ficou o jantar na mesa.

- Bem, vamos entrar em serviço.

- Não, senhor! disse D. Angélica, esperemos o Batistinha.

- Onde foi ele?

- Foi à casa.

- Esta agora! Havemos de estar em casa à espera de um estranho! e logo quem!

- Carlos! exclamou a mãe, tu hás de ser sempre um...

  1. Angélica mastigou o epíteto. Carlos pondo as mãos nos bolsos da calça entrou a passear como um homem chegado ao último grau do desespero.

- Estou capaz de ir jantar a uma casa de pasto.

- Pois vai!

Nesse momento ouviram-se passos na escada.

- Graças! disse Carlos. Chega o desejado.

Não era o desejado. Era o Sr. Tibúrcio Mendes, negociante de negros novos, homem taludo e bojudo, vermelho e asseado.

- Dá licença, D. Angélica? disse ele parando na escada.

- Entre, Sr. Tibúrcio. Bons olhos o vejam.

Na entrada o Sr. Tibúrcio foi cumprimentando rasgadamente a companhia.

- Faltava este cágado! disse entre si Carlos.

E já ruminava seriamente o projeto, anteriormente indicado, de ir jantar à casa de pasto, quando apareceu o dono do armarinho. Batista explicou a demora dizendo que a causa fora uma altercação com um sujeito a propósito de agulhas n. 5, coisa que não interessava absolutamente a ninguém, mas que todos ouviram com paciência cristã.

O jantar nada ofereceu de notável; os dois namoros continuaram como antes, isto é, dirigidos sempre com a máxima precaução por causa do grande desmancha-prazeres da casa. A única coisa que causou certa estranheza a Batista, que pela primeira vez se encontrava com Tibúrcio, foi a voracidade que este sujeito desenvolveu, a ponto de o deixar sem assado nem arroz.

Foi por ocasião do jantar que Tibúrcio declarou que fazia anos na terça-feira do entrudo, e, como fosse solteiro, D. Angélica convidou-o a festejar o dia jantando lá em casa. Tibúrcio não viu um olhar trocado entre Carlos e as irmãs. Prometeu que viria jantar.

Toda a tarde, manhã e a tarde do dia seguinte foram consagradas ao fabrico dos limões de cheiro, Tibúrcio assistiu até à noite ao trabalho das moças e dos rapazes. Como ele era amigo de conversar com mulheres, dificilmente se despregou da sala de trabalho. Foi muito contra a vontade que cedeu ao convite de D. Angélica que tinha a mania de jogar o solo. D. Maria também jogava e aceitou o convite. A mesa foi posta ao pé da mesa dos limões de cheiro.

Jogava-se o solo a grãos de milho, que é para os jogadores de profissão, o mesmo que, para os bêbados, beber água simples.

- Mas eu peço licença, disse Tibúrcio, para retirar-me as nove horas.

- É a hora em que tomamos chá, respondeu D. Angélica dando as cartas.

Passaram todos naquela mão. Como todos conversavam, o diálogo apresentava alguma curiosidade.

- Bolo?

- Pode vir!

- Dá cá cera!

- Dê-me o ás de paus.

- Onde está a fôrma?

- É furado?

- É seguro.

- Mano, não me quebre o limão.

- Corto.

- Olha, Lucinda, que bonito limão saiu este!...

- Rei...

- Água de cheiro?

- Valete...

- Não me pise os pés, Sr. Batista.

- É dama... Paguem!

- Dá cá o tabuleiro. Quem dá cartas?

- Pois eu cuidei que o solo estivesse furado, dizia Tibúrcio no fim deste diálogo. Os ouros estavam com a Sra. D. Maria, e se não se descarta do valete, bem podia ser que eu o encontrasse em quarto, e estava perdido.

- A prima jogou mal, dizia D. Angélica. Devia esperá-lo nos outros.

- Eu esperava nas copas.

- As copas estavam seguras.

Às nove horas terminou o jogo, serviu-se o chá, saiu Tibúrcio, e todos foram dormir.

Amanheceu o dia de domingo com um belíssimo sol; era um verdadeiro dia de entrudo. Desde manhã puseram-se os tabuleiros em ordem para a batalha. Carlos e Benjamim preparavam as caldeiradas dágua e duas panelas que mandaram para a cocheira. Nessa ocasião houve uma pequena altercação entre os dois irmãos; Carlos acabou puxando as orelhas a Benjamim, o qual, por dizer alguma coisa, disse que lhe daria uma facada, o que lhe valeu outro puxão de orelhas do irmão.

Triste inspiração foi a de Batista que marcou esse dia para pedir a mão de D. Teresa. A moça entendia que se devia aproveitar um dia alegre para achar D. Angélica de bom humor, verdadeiro engano porque D. Angélica, conquanto não jogasse o entrudo, achava prazer em ver brincar as raparigas e não prestava grande atenção a outras coisas.

O dia começou bem; alguns sujeitos que passavam foram alvo de meia dúzia de limões de cheiro que os deixaram um tanto úmidos; e mais nada.

Jantou-se mais cedo.

Às três horas e meia estavam as moças vestidas e prontas à janela; a sala estava cheia de tabuleiros com limões de cheiro.

Os rapazes ausentaram-se.

Correu assim uma hora sem incidente notável. Constante fogo de água trazia a rua agitada. Os gamenhos, munidos de limões iam atirando às senhoras que estavam às janelas, e estas correspondiam ao ataque com um vigor nunca visto.

Havia em casa de D. Angélica cerca de 1.200 limões; imaginem se o combate podia fraquear.

Ao cabo duma hora de combate, desapareceu Lucinda pelo interior da casa. D. Maria e D. Angélica que estavam assentadas na sala conversavam sobre os sucessos da sua mocidade. De quando em quando algum limão ia bater numa e noutra, o que as fazia rir.

  1. Maria quis ir ao interior da casa e saiu por alguns instantes. Daí a pouco voltou espavorida.

- Jesus! Acuda-me prima Angélica! Credo! Vingança!

Surpresa geral. As moças voltaram-se para dentro e os rapazes vendo aquela muralha de costas fizeram uma descarga em regra.

- Que é? perguntou D. Angélica espantada. Será o canhoto?

- Qual, canhoto! quero vingança! que desaforo!

- Mas que é?

  1. Maria estava sufocada; sentou-se, bebeu um pouco dágua e falou:

- Ia eu agora lá dentro, quando encontrei na sala de jantar a um canto, adivinhem o que? Encontrei seu filho Benjamim quebrando limões no ombro de minha filha! Que desaforo! Fiquei sem saber de mim... Isto se atura, prima? Cão! Ter o atrevimento de... Prima, manda dar uma sova no seu pequeno...

Neste tempo já Lucinda tinha entrado na sala e ouviu a narração da mãe com um espanto tão fingido que parecia um diplomata.

- Estás ai!... exclamou D. Maria. Deixe estar que me pagarás lá em casa!

- Mas que é?...

  1. Angélica mandou chamar Benjamim.

O rapaz que estava na cocheira, correu ao chamado da mãe.

- Que é isso, Benjamim? pois então tu tens o desaforo, o atrevimento de não respeitar tua tia nem a minha casa...

Benjamim ficou mais admirado que se visse a cascata de Paulo Afonso; olhou para todos que tinham os olhos nele e perguntou:

- Mas que é mamãe? eu não sei de que fala.

  1. Angélica referiu a acusação que lhe fazia D. Maria; o rapaz negou alegando que não saíra debaixo e apelou para o testemunho de um moleque, o qual, como era o portador das cartas entre os dois namorados, não teve dúvida em dizer que o jovem Benjamim desde que descera para a cocheira, não saíra de lá ocupado como estava em seringar os homens que passavam.
  2. Angélica voltou-se para a prima.

- Você enganou-se, prima.

- Mas se eu vi!...

Carlos tinha subido também, e, ou para salvar o irmão a quem não tinha raiva, ou para terminar um incidente que perturbaria a festa, confirmou o dito do moleque.

Mas D. Maria que tinha visto, insistia e punha em dúvida a asserção dos sobrinhos e do moleque.

- Foi engano! diziam uns.

- Titia estava preocupada e pareceu-lhe ver...

- Qual engano nem preocupação! Pois eu vi.

Entrara no meio desta bulha o jovem Batista, trajando casaca, luvas de pelica, e gravata branca. Veio de sege para chegar intacto, apesar de morar perto Ouviu a discussão, informou-se do que era e concluiu que devia ser engano de D. Maria. Esta insistiu na afirmativa.

- Dá-se muitas vezes, disse Batistinha sentenciosamente, que a nossa imaginação figura objetos reais quando eles são simplesmente hipotéticos... A história tem um exemplo: Brutus dizem que viu a sombra de César. Foi naturalmente a impressão imaginária que lhe produziu a espécie de presença real. O órgão visual tem fenômenos extravagantes; os recentes trabalhos da ciência...

As moças voltaram as costas e foram para a janela, exceto Teresa que ficou ouvindo o discurso do namorado. Os rapazes desceram à cocheira.

Batista continuou o discurso. Como tinha lido uns livros de ciência, explicou às senhoras qual a organização do nervo ótico, e como por acaso falasse em olhos bonitos, lembrou-se D. Angélica de contar uma anedota acerca dos olhos do finado Sanches em 1834.

O incidente acabou assim, D. Maria convencida de que realmente fora imaginação sua.

- Agora, se D. Angélica quiser dar-me a honra de uma palavra em particular, disse Batista, ficar-lhe-ei sumamente penhorado.

- Agora reparo, disse D. Angélica. Que trajo para dia de entrudo!

- Minha senhora, respondeu Batista, os grandes sentimentos não conhecem entrudo

- Fala muito bem este moço, pensou D Maria.

A dona da casa foi com Batista para o interior.

- Minha senhora, disse Batista arrestando-se na sala diante de D. Angélica, muito há que eu nutro, dentro do meu coração, um destes sentimentos que, mal aplicados, podem produzir não só os infortúnios domésticos como até a ruína dos impérios, e, bem aplicados, são a verdadeira bem-aventurança deste mundo. O amor, minha senhora, é o que o bordão é para os cegos, o vento para os navegantes, a saúde para os enfermos, o espaço para os passarinhos...

- Então, ama?

- Loucamente. Seria um inferno este amor se não fosse retribuído. O que é um amor sem retribuição? É o abutre de Prometeu. Sou recompensado com igual amor ao meu: amor amore, diz a sentença latina.

- Que deseja de mim?

- A luz. A senhora tem a minha luz nas suas mãos; pode dar-ma se quiser. Amo sua filha D. Teresa, e desejo unir-me a ela pelos laços matrimoniais...

  1. Angélica tinha percebido algum namoro entre a filha e o Batista, mas não cuidou que estivessem tão próximos do casamento. O que sobretudo a fez pasmar foi a escolha do dia. A este respeito observou Batista que, vindo a palavraentrudodo latim entroito, que quer dizer entrada, estava ele de acordo com o dia desejando entrar na família. O trocadilho despertou as recordações conjugais da Sra. D. Angélica, que citou mais uma anedota do finado Tomás Sanches.

- Quanto ao que me pede, concluiu ela, se Teresa quiser, não tenho razão que opor a uma união que desejo ver feliz e tranqüila.

- A senhora chega ao sublime! disse Batista.

Depois abrindo os braços:

- Minha mãe! exclamou ele.

  1. Angélica abraçou-o cerimoniosamente, porque achava o rapaz romântico demais.

- Quando poderei ter resposta definitiva?

- Já, se quer; mas é melhor logo... Quando lhe...

Neste momento ouviu-se um grande grito, depois outro e outro; depois um barulho infernal. D. Angélica correu à sala para saber o que era; Batista foi atrás dela.

Na sala ninguém sabia a causa do barulho.

O barulho vinha da cocheira.

- Há de ser algum sujeito que os rapazes meteram no banho, disse D. Angélica trêmula. Ah! meu Deus! estes pequenos ainda me hão de dar algum desgosto grande!

Quis descer; mas Batista a impediu alegando gravemente que uma senhora nunca deve descer.

Os gritos continuaram ainda algum tempo. Depois cessaram; ouviu-se uma voz trêmula de frio lançar uma imprecação aos rapazes.

- Ah! meu Deus! que rapazes! que desgostos!

Subiu alguém a escada; daí a alguns segundos, entrava na sala o Sr. Tibúrcio, vestido de branco, mas todo molhado como se saísse do mar. Entrou respingando a sala toda.

- Jesus! que é isso?

- Ah! minha senhora, eis o estado em que me puseram os seus rapazes! Veja se isto não é um desaforo! Entrei com toda a confiança em sua casa, e os seus meninos, sem que eu lhes houvesse feito mal, agarram-me, metem-me dentro de uma gamela e despejam-me um barril de água por cima, ajudados por dois moleques!

A narração fez enraivecer D. Angélica e rir as raparigas. Efetivamente a figura do Tibúrcio era mais para rir que outra coisa. O homem bufava que parecia uma baleia.

Batista agradeceu ao céu ter vindo em ocasião em que encontrou os rapazes em cima, escapando assim a alguma caçoada.

Assentou-se o Tibúrcio, enquanto D. Angélica ia ver se havia roupa em casa que lhe servisse para mudar aquela.

Tibúrcio contava as suas impressões do banho a D. Maria, e Batista conversava com D. Teresa a quem deu a agradável notícia de que tudo estava arranjado.

De repente aparece Carlos à porta da sala, armado de uma grande seringa de folha de Flandres, pede silêncio às moças com um sinal, e deita um esguicho à nuca do Tibúrcio.

Tibúrcio soltou um grito, pegou na cadeira e removeu como pôde o corpo até à porta da sala; mas Carlos, que sabia o sistema dos antigos Partos, fugiu dando-lhe mais um esguicho pela cara.

- Não se zangue, disse D. Maria acalmando Tibúrcio que prometeu desancar o rapaz; isto afinal são brincadeiras de rapazes... Todos eles o respeitam muito.

- Não está mau o respeito!

  1. Angélica voltou à sala.

- Sr. Tibúrcio, vá lá para o quarto da sala de costura; já lá mandei pôr alguma roupa.

Tibúrcio obedeceu.

  1. Angélica mandou ordem terminante aos filhos que subissem.

Subiram.

- Que desaforo é esse, rapazes? disse ela.

- O que é mamãe? perguntaram ambos.

- Pois então vocês não respeitam um homem velho e sério, que nos visita? Isto é bonito?

- Mas foi uma brincadeira.

- Pois eu não quero mais essa brincadeira... Brinquem lá com quem quiserem mas não com as pessoas que vêm à minha casa.

Interveio o futuro genro de D. Angélica.

- Minha Senhora, eu estou convencido que estes dignos moços brincam como todos os da nossa idade, sem nenhuma intenção de ofensa. São jovens dignos de toda a estima; incapazes de ofender a quem quer que seja, mormente às pessoas que têm a honra de freqüentar esta casa.

- É verdade! disse Carlos...

- Portanto, continuou o advogado dos rapazes. releve-se-lhes um ato próprio do dia.

- Muito bem! exclamaram os dois rapazes aproximando-se de Batista para lhe agradecer a defesa.

Batista estendeu-lhes a mão.

Mas quando menos o esperava, viu-se agarrado pelos quatro braços vigorosos dos rapazes e levado pela sala fora e depois pela escada abaixo. O pobre moço gritava e protestava contra a perfídia e a ingratidão dos seus clientes, mas embalde! A voz de D. Angélica perdeu-se no meio do barulho; Teresa deitou a chorar; D. Maria benzeu-se; e no meio do tumulto apareceu na sala Tibúrcio; apertadíssimo numas calças de Carlos que lhe ficavam acima do tornozelo e numa jaqueta de Benjamim que lhe batia pelo meio das costas.

A figura fez rir ainda mais do que quando Tibúrcio apareceu molhado da cabeça até os pés.

- Que há de novo? Alguma nova travessura?

- Ah! Sr. Tibúrcio, exclamou D. Angélica; o senhor me há de embarcar estes dois rapazes que me põem doida; meta-os na presiganga!

- Pois não, D. Angélica! Mas que fizeram eles agora?

- Levaram para baixo o Sr. Batista.

- Que! pois tiveram também a audácia? Não admira! não me meteram no banho?

Tibúrcio sentiu uma espécie de satisfação em ver que não era a única vitima.

Pouco tempo depois subiu Batista, e, sem ousar aparecer na sala, pediu a D. Angélica que lhe desse alguma roupa que vestir.

Foi satisfeito.

  1. Angélica mandou vir o bacalhau com que se castigavam os escravos e foi abaixo em pessoa.

- Andem! lá para cima! quando não... vai tudo a vergalho.

Os rapazes obedeceram.

  1. Angélica não era só mulher de prometer; era mulher de cumprir.

A tarde caia; os rapazes adiaram a festa para os dias seguintes. Mudaram também de roupa e deixaram-se ficar na sala de jantar.

Batista voltou à sala um pouco envergonhado. Tibúrcio já estava mais calmo; D. Maria começou a rir e D. Angélica encaixou uma anedota a respeito de Sanches. As moças sentaram-se também.

- Gastaram todos os limões? perguntou D. Maria sem ver dois tabuleiros cheios.

- Todos, não, disse Ermelinda; ainda temos para amanhã.

- Isso, sim, disse Tibúrcio, isso é brincadeira que eu aprovo; o limão é delicado e diverte a gente.

- Diz muito bem, assentiu Batista. Mas o banho!

- É selvagem!

- É brutal!

- Deve acabar!

- E há de acabar!

- A civilização não comporta...

- Apoiado!

Os rapazes voltaram à sala. Tibúrcio dirigiu-se a D. Maria para dizer alguma coisa que o impedisse de olhar para os seus algozes; ao passo que Batista tirou o relógio, trouxe-o ao ouvido, deu-lhe corda, etc...., tudo para evitar o primeiro olhar dos filhos de D. Angélica.

Ninguém reparou que os rapazes traziam as mãos nos bolsos grandes dos paletós de brim.

Sentaram-se ambos a conversar. Ao principio nem Tibúrcio nem Batista lhes dirigiu a palavra; mas, convindo evitar o ridículo do amuo depois de banho, pouco e pouco foram conversando com eles e restabeleceu-se a confiança.

Não tardou porém que Carlos pregasse em Tibúrcio um rabo de papel, e Benjamim outro em Batista. O de Batista não foi visto logo pelas outras pessoas. Mas como Tibúrcio estava de costas para o grupo das moças, viram estas logo o apêndice posto por Carlos e riram alegremente. Tibúrcio desconfiou. Olhou para Carlos; este ficou sério.

- De que se riem as moças? perguntou Tibúrcio.

- Não sei, respondeu Carlos; deixe ver. Ah! é uma mancha de cal no seu paletó, deixe limpá-la.

Tibúrcio consentiu de boa-fé; e Carlos fingindo que limpava o paletó, quebrou-lhe um ovo nas costas.

Sentiu Tibúrcio que o rapaz não o limpava, antes o sujava, a gema entornou-se parte no chão, D. Angélica correra para Carlos, este correu pela sala, levantou-se Batista para intervir, mas arrastando também um rabo de papel; Benjamim aproveitou a ocasião e quebrou um ovo nas costas de Batista.

Não tenho forças para descrever o barulho que se seguiu a esta cena. O tumulto foi geral; só se acalmou indo os dois rapazes para um quarto onde D. Angélica os fechou a chave.

Com a noite veio o descanso. As visitas se foram embora, exceto D. Maria e a filha que resolveram ficar até quarta feira de Cinzas.

Pelas 9 horas da noite, D. Angélica foi soltar os prisioneiros. Achou-os jogando as cartas. Anunciou-se o chá e eles vieram para mesa, onde foram recebidos com um olhar furibundo da parte de Teresa, cujo namorado fora vitima das suas travessuras.

Quando se iam deitar o moleque que servia de intermediário entre Benjamim e Lucinda, foi aos dois rapazes e disse-lhes que precisava dizer uma coisa.

Levado ao quarto, disse que Batista tinha por costume pular de noite os quintais até o da casa de D. Angélica e conversar aí para a janela onde a sinhá moça Teresa ficava até muito tarde.

Esta comunicação inesperada tinha a seguinte explicação.

O moleque servia também de corretor entre Teresa e Batista; mas não tendo obtido deste as vantagens que esperava, e principalmente tendo-lhe ele recusado uma jaqueta nova que lhe pedira, entendeu que devia vingar-se assim.

Realmente, Batista podia dar-lhe uma ou duas jaquetas; mas como era muito econômico, entreteve o moleque na esperança e esse foi o seu mal.

Carlos ficou espantado com a notícia.

- Será verdade? perguntou ele a Benjamim.

- É nhonhô, insistiu o moleque, ele quer casar com sinhá moça Teresa, mas é um sovina...

- Virá ele hoje?

- Parece que vem.

Idéia infernal surdiu no espírito de Carlos. Era esperar o Romeu dos quintais e pregar-lhe nova peça.

- Um banho! disse o moleque quando Carlos consultava o irmão.

- Sim, um banho! disse Benjamim.

- Não, disse Carlos, coisa melhor; pensemos nisso. Enquanto os dois estavam em conciliábulo, as raparigas foram deitar-se.

Dormiam no mesmo quarto Lucinda e Teresa.

- Estou muito zangada com o Benjamim, disse Lucinda; não gostei que fizesse aquilo no teu... noivo.

- Cala a boca! não fales alto! Não foi ele só, foi o Carlos, que é sempre o autor destas idéias.

- Amanhã hei de passar uma sarabanda nos dois.

- Não digas nada, é melhor.

- Por que?

- Porque...

- Vais casar, bem sei.

Teresa sorriu.

- Depende de mim, disse ela.

- Titia já te perguntou alguma coisa?

- Nada.

- Mas há de falar...

- Amanhã, talvez.

- Sim, amanhã...

- Que é isto? Isto o que?

- Não ouviste um grito?

- Não; é uma coruja; estás medrosa.

- Pareceu-me.

As duas sentaram-se na cama.

- Que é que tu hás de dizer quando titia te perguntar se queres casar com o Batistinha?

- Velhaca! disse Teresa sorrindo.

- Por que, meu Deus?

- Quero saber também o que hás de dizer quando...

- Quando o que?

- Quando tua mãe te perguntar se queres casar com Benjamim...

- Ora, qual!... Mas vamos lá, dize...

- Eu responderei que é de meu gosto.

- Só isso?

- Pois então?

- Mas isso só não é bonito; é preciso dizer: Com toda a minha alma!

- Deixemos disso; é romântico demais.

Desta vez ouviu-se um sussurro no quintal. As duas chegaram à janela mas não viram ninguém.

- Não é nada, disse Lucinda.

Entraram outra vez e continuaram a conversar. No fim de dez minutos ouviu-se um assobio.

Teresa estremeceu.

- É ele!

Lucinda começou a despir-se.

- Pois então, disse ela, vai conversar enquanto eu me deito.

Teresa chegou à janela e agitou um lenço branco; Batista que já vinha pulando o último quintal, saltou à terra, aproximou-se do poço e começou a conversar debaixo com a namorada.

- Por que veio hoje? perguntou Teresa.

- Acha que fiz mal? disse Batista.

- Deve estar cansado.

- De que?

Teresa quis aludir ao banho mas receou envergonhar o rapaz. Por isso, sem responder à pergunta continuou:

- Mamãe ainda me não falou.

- Quando falará?

- Talvez amanhã.

- Que pretende dizer?

- Ora! que sim! diga-me outra vez; está certo de que foi bem recebido por ela?

- Perfeitamente; vi que ela compreendeu o meu amor; e como não, se é essa alma digna, essa alma celeste, todo cheia dos perfumes do paraíso?

Esta rajada lírica produziu um riso sufocado, que Batista atribuiu a Teresa, e esta a Lucinda. Mas Lucinda já dormia nessa ocasião.

- Riu-se de mim? perguntou Batista.

- Que pergunta!

- Parece...

- Ah! não insulte aquela que vai ser sua esposa.

- Insultá-la? jamais... Não; eu daria o meu sangue para vingar aquele que a insultasse... Mas diga-me, Teresa, você está contente casando comigo?

- Oh! muito feliz!

- Eu também! Havemos de ter uma bela vida!

- Eu espero.

- Contanto que nos não visitem indiscretos, ah! principalmente seus irmãos. Que par de pelintras!

- Deixe-os.

- Oh! se os deixo! São dois pelintras sem iguais. Não compreendem que a dignidade da vida humana é respeitar os outros, porque o homem é feito à imagem de Deus, e quem insulta um homem e o desconceitua, ofende a Deus. Não acha. D. Teresa?

- Parece que sim; disse a moça já um pouco aborrecida com o ar tétrico que o namorado ia dando à conversa.

- Mas eu perdôo a esses rapazes; só o que desejo é que me não visitem...

- Será o que você quiser...

- Teresa, você me ama?

- Muito.

- Para sempre?

- Para sempre. E você?

- Oh! eu! pergunta ao mar se ama a praia; ao zéfiro se ama a flor; à abelha se ama...

Não acabou a frase. Um esguicho anônimo lhe inundou a cara. Batista deu um pulo.

- Que é? perguntou a moça.

- Não sei... respondeu ele suspeitando estar descoberto.

- Mas que foi?

Batista não respondeu; imaginou logo que estava espiado e achou conveniente não dizer palavra e safar-se. Infelizmente, a noite estava escura e podia ele esbarrar-se com algum dos rapazes.

- Meu Deus! exclamou a moça. Que é?

- Nada...

- Alguma coisa há de ser.

- Descanse. Foi um espirro. Como ia dizendo, este momento aqueles seus manos são moços alegres mas dignos... Que galante idéia tiveram de me meter no banho!

- Isso é irônico, disse Teresa.

- Qual! é sincero! eu só me zango no momento; mas depois, reconheço logo que não há intenção de caçoar comigo...

Desta vez recebeu um esguicho por trás.

- Aí! disse ele.

- Mas que tem você? perguntou a namorada aflita...

- Nada! é um calo. São excelentes aqueles moços...

Outro esguicho nas pernas.

- São excelentes; continuou Batista tremendo de frio e de medo. Eu, se os encontrasse agora, abraçava-os.

Desta vez foram dois grandes esguichos. Batista teve idéia de pedir perdão; mas por um resto de pudor, não quis fazer figura triste diante da namorada.

Esta cada vez compreendia menos o rapaz. Os esguichos continuaram; ele falava entrecortando as frases; ela chegou a suspeitar que ele estivesse doido.

- Há de perdoar-me, disse ele, está fazendo um frio; vou-me embora.

- Já?

- Já.

- Adeus.

- Adeus!

- Até amanhã.

Teresa fechou a janela; Batista olhou à roda de si, não viu ninguém e procurou aproximar-se do muro para saltar.

Nesse momento caiu-lhe sobre as costas uma caldeirada dágua.

- Ai! ai! gritou ele.

E saltou o muro.

Mas antes que pudesse segurar-se bem, sentiu as pernas presas por quatro braços vigorosos. Caiu arranhando as mãos no muro.

- Que me quereis? disse ele tremendo.

Abriu-se a janela e apareceu Teresa.

O rapaz foi arrastado berrando para uma grande gamela, já cheia dágua. A moça entrou dando um grito. Acordou Lucinda e ambas foram acordar o resto da família.

- Hão de ser os endiabrados! Que pecado cometi eu? exclamou D. Angélica saltando fora da cama.

Dentro de pouco tempo estavam todos a pé, com velas acesas na mão, e dirigiram-se para o fundo, abrindo as janelas que davam para o quintal.

  1. Angélica, desceu munida de um vergalho, e apareceu no quintal onde se passava atragicomédia.

Batista esperneava dentro da gamela. Os dois irmãos o prendiam enquanto o moleque lhe despejava baldes dágua.

- Que é isto? perguntou D. Angélica.

E avançou brandindo o vergalho.

O perigo era iminente.

Os dois rapazes agarraram em Batista.

Carlos sentiu uma vergalhada nas costas; outra vergalhada foi diretamente a Benjamim. Que fazer? Os dois pegam do corpo de Batista e fizeram dele escudo, de maneira que as vergalhadas que D. Angélica, cega de furor, cuidava dar nos filhos, quem as apanhava era o futuro genro.

Teresa desceu abaixo; e suspendeu o braço da mãe, quando já Batista sentira todo o peso do braço da viúva Sanches.

Cessou a pancadaria; Batista foi levado para cima, e D. Angélica perguntou como é que os dois rapazes tinham podido pilhar Batista no quintal para maltrata-lo assim.

Aqui estava o nó da situação.

Batista, não querendo confessar que fora conversar com a futura noiva, e temendo as revelações dos rapazes, disse que fora lá para tratar com eles uma caçoada, e que aquilo era uma brincadeira.

Ao mesmo tempo dirigiu um olhar suplicante aos moços, que confirmaram a história, escapando assim a uma infalível correção.

Nessa noite todos dormiram mal.

Quando no dia seguinte, Tibúrcio soube do fato, sorriu dizendo que também o Batista merecia a presiganga.

Acabou o entrudo, felizmente para o Batista, e a quaresma felizmente para ele e a noiva, que se casaram e dão-se muito bem.

Batista vendeu o armarinho, e joga o gamão numa botica todas as tardes.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 15 de novembro de 2021

O TROPEIRO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O TROPEIRO

Humberto de Campos

 

 

 

O casamento do Sr. Antônio Moreira, comerciante e fazendeiro em São Bernardo das Russas, cidade cearense a duzentos e quarenta quilômetros de Fortaleza, estava anunciado para a véspera de Natal, que distava, apenas, oito dias. Há um mês, quase, não se falava em outra coisa. A festa devia ser estrondosa, com banda de música e danças por uma semana, e o que era mais, com uma abundância de comidas e bebidas como não havia notícia de outra na redondeza. Antegozando o sucesso daquele acontecimento, o Sr. Antônio chamou, uma tarde, um antigo tropeiro, e ordenou:

 

— João, você vai, amanhã, à capital. Daqui lá são quarenta léguas, das grandes. Você ponha a cangalha na burra preta; escanche, em cima, o jogo de malas, e, chegando à cidade, receba, na casa da modista para quem vai esta carta, o vestido da noiva.

 

E olhando o tropeiro, significativamente:

 

Mas, olhe: você deve estar aqui no sábado, à tarde. Se não, já sabe!

 

O caboclo correu ao cercado, pôs a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o jogo das malas de couro, e partiu. Chegando a Fortaleza, recebeu a encomenda, e, para estar em São Bernardo no dia determinado, retrocedeu na mesma hora.

 

O prazo que o Sr. Moreira lhe havia dado para a viagem era, francamente, curto. O caminho não era bom, a burra era velha, e, sexta-feira, à tardinha, faltando ainda dezoito léguas, estava completamente estropiada. Debalde o caboclo, sacudindo o cabresto, lhe metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as forças, tentava um choto manhoso, e voltava ao mesmo passo triste, lento, fatigado.

 

De repente, surgiu à margem da estrada uma palhoça de lavrador. João bateu:

 

— Ôi, de casa!

 

— Ôi, de fora!

 

E apareceu à porta de esteira um sertanejo cobreado, dando as "boas-tardes".

 

O tropeiro, que era mais ou menos conhecido por ali, perguntou, interessado, se não havia um cavalo, um burro, um jumento, que lhe pudessem alugar. O dono da casa foi franco: animais, não tinha; informado, porém, do compromisso do viajante, lembrou-lhe, experiente, um remédio:

 

— Homem, você quer um conselho? E ensinou:

 

— Olhe, ali, atrás da casa, tem uma pimenteira. Está encarnada de pimenta. Você apanha uma porção delas, machuca num caco, faz uma bolota de pano, e... e... passa!

 

O João aceitou a receita: machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à ponta de um pau, ensopou-os no molho, e passou.

 

Passou e despediu-se.

 

Daí a pouco, a burra começou a aumentar a marcha. Momentos depois, principiou a trotar; e, finalmente, largou, de malas às costas, numa carreira brutal, furiosa, desabalada, caminho em fora.

 

Seguro à ponta do cabresto, o caboclo, a princípio, acompanhou o quadrúpede. Quando, porém, este abalou na correria desbragada pela estrada silenciosa, não houve mais recurso: estava, ele também, cansado, fatigado, estropiado. Mas, recordando-se que tinha prometido estar com o animal em São Bernardo das Russas, e este se podia transviar com a roupa da noiva, reuniu, num supremo esforço todas as suas energias de inteligência e de músculos, arrancou, num movimento rápido, o cinturão de couro, e, fazendo em si mesmo o que havia feito com a burra, largou-se, também, pelo caminho soturno, numa carreira desenfreada!

 

No dia seguinte, pela manhã, oito horas antes da que lhe fora marcada, atravessavam os dois, o tropeiro e a burra, em disparada, as últimas ruas de São Bernardo das Russas.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 13 de novembro de 2021

O MACHETE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O MACHETE

Machado de Assis

 

 

 

Inácio Ramos contava apenas dez anos quando manifestou decidida vocação musical. Seu pai, músico da imperial capela, ensinou-lhe os primeiros rudimentos da sua arte, de envolta com os da gramática de que pouco sabia. Era um pobre artista cujo único mérito estava na voz de tenor e na arte com que executava a música sacra. Inácio, conseguintemente, aprendeu melhor a música do que a língua, e aos quinze anos sabia mais dos bemóis que dos verbos. Ainda assim sabia quanto bastava para ler a história da música e dos grandes mestres. A leitura seduziu-o ainda mais; atirou-se o rapaz com todas as forças da alma à arte do seu coração, e ficou dentro de pouco tempo um rabequista de primeira categoria.

 

A rabeca foi o primeiro instrumento escolhido por ele, como o que melhor podia corresponder às sensações de sua alma. Não o satisfazia, entretanto, e ele sonhava alguma coisa melhor. Um dia veio ao Rio de Janeiro um velho alemão, que arrebatou o público tocando violoncelo. Inácio foi ouvi-lo. Seu entusiasmo foi imenso; não somente a alma do artista comunicava com a sua como lhe dera a chave do segredo que ele procurara.

 

Inácio nascera para o violoncelo.

 

Daquele dia em diante, o violoncelo foi o sonho do artista fluminense. Aproveitando a passagem do artista germânico, Inácio recebeu dele algumas lições, que mais tarde aproveitou quando, mediante economias de longo tempo, conseguiu possuir o sonhado instrumento.

 

Já a esse tempo seu pai era morto. — Restava-lhe sua mãe, boa e santa senhora, cuja alma parecia superior à condição em que nascera, tão elevada tinha a concepção do belo. Inácio contava vinte anos, uma figura artística, uns olhos cheios de vida e de futuro. Vivia de algumas lições que dava e de alguns meios que lhe advinham das circunstâncias, tocando ora num teatro, ora num salão, ora numa igreja. Restavam-lhe algumas horas, que ele empregava ao estudo do violoncelo.

 

Havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos. A rabeca, que ele ainda amava como o primeiro veículo de seus sentimentos de artista, não lhe inspirava mais o entusiasmo antigo. Passara a ser um simples meio de vida; não a tocava com a alma, mas com as mãos; não era a sua arte, mas o seu ofício. O violoncelo sim; para esse guardava Inácio as melhores das suas aspirações íntimas, os sentimentos mais puros, a imaginação, o fervor, o entusiasmo. Tocava a rabeca para os outros, o violoncelo para si, quando muito para sua velha mãe.

 

Moravam ambos em lugar afastado, em um dos recantos da cidade, alheios à sociedade que os cercava e que os não entendia. Nas horas de lazer, tratava Inácio do querido instrumento e fazia vibrar todas as cordas do coração, derramando as suas harmonias interiores, e fazendo chorar a boa velha de melancolia e gosto, que ambos estes sentimentos lhe inspirava a música do filho. Os serões caseiros quando Inácio não tinha de cumprir nenhuma obrigação fora de casa, eram assim passados; sós os dois, com o instrumento e o céu de permeio.

 

A boa velha adoeceu e morreu. Inácio sentiu o vácuo que lhe ficava na vida. Quando o caixão, levado por meia dúzia de artistas seus colegas, saiu da casa, Inácio viu ir ali dentro todo o passado, e presente, e não sabia se também o futuro. Acreditou que o fosse. A noite do enterro foi pouca para o repouso que o corpo lhe pedia depois do profundo abalo; a seguinte porém foi a data da sua primeira composição musical. Escreveu para o violoncelo uma elegia que não seria sublime como perfeição de arte, mas que o era sem dúvida como inspiração pessoal. Compô-la para si; durante dois anos ninguém a ouviu nem sequer soube dela.

 

A primeira vez que ele troou aquele suspiro fúnebre foi oito dias depois de casado, um dia em que se achava a sós com a mulher, na mesma casa em que morrera sua mãe, na mesma sala em que ambos costumavam passar algumas horas da noite. Era a primeira vez que a mulher o ouvia tocar violoncelo. Ele quis que a lembrança da mãe se casasse àquela revelação que ele fazia à esposa do seu coração: vinculava de algum modo o passado ao presente.

 

— Toca um pouco de violoncelo, tinha-lhe dito a mulher duas vezes depois do consórcio; tua mãe me dizia que tocavas tão bem!

 

— Bem, não sei, respondia Inácio; mas tenho satisfação em tocá-lo.

 

— Pois sim, desejo ouvir-te!

 

— Por hora, não, deixa-me contemplar-te primeiro.

 

Ao cabo de oito dias, Inácio satisfez o desejo de Carlotinha. Era de tarde, — uma tarde fria e deliciosa. O artista travou do instrumento, empunhou o arco e as cordas gemeram ao impulso da mão inspirada. Não via a mulher, nem o lugar, nem o instrumento sequer: via a imagem da mãe e embebia-se todo em um mundo de harmonias celestiais. A execução durou vinte minutos. Quando a última nota expirou nas cordas do violoncelo, o braço do artista tombou, não de fadiga, mas porque todo o corpo cedia ao abalo moral que a recordação e a obra lhe produziam.

 

— Oh! lindo! lindo! exclamou Carlotinha levantando-se e indo ter com o marido.

 

Inácio estremeceu e olhou pasmado para a mulher. Aquela exclamação de entusiasmo destoara-lhe, em primeiro lugar porque o trecho que acabava de executar não era lindo, como ela dizia, mas severo e melancólico e depois porque, em vez de um aplauso ruidoso, ele preferia ver outro mais consentâneo com a natureza da obra, — duas lágrimas que fossem, — duas, mas exprimidas do coração, como as que naquele momento lhe sulcavam o rosto.

 

Seu primeiro movimento foi de despeito, — despeito de artista, que nele dominava tudo. Pegou silencioso no instrumento e foi pô-lo a um canto. A moça viu-lhe então as lágrimas; comoveu-se e estendeu-lhe os braços.

 

Inácio apertou-a ao coração.

 

Carlotinha sentou-se então, com ele, ao pé da janela, donde viam surdir no céu as primeiras estrelas. Era uma mocinha de dezessete anos, parecendo dezenove, mais baixa que alta, rosto amorenado, olhos negros e travessos. Aqueles olhos, expressão fiel da alma de Carlota, contrastavam com o olhar brando e velado do marido. Os movimentos da moça eram vivos e rápidos, a voz argentina, a palavra fácil e correntia, toda ela uma índole, mundana e jovial. Inácio gostava de ouvi-la e vê-la; amava-a muito, e, além disso, como que precisava às vezes daquela expressão de vida exterior para entregar-se todo às especulações do seu espírito.

 

Carlota era filha de um negociante de pequena escala, homem que trabalhou a vida toda como um mouro para morrer pobre, porque a pouca fazenda que deixou, mal pôde chegar para satisfazer alguns empenhos. Toda a riqueza da filha era a beleza, que a tinha, ainda que sem poesia nem ideal. Inácio conhecera-a ainda em vida do pai, quando ela ia com este visitar sua velha mãe; mas só a amou deveras, depois que ela ficou órfã e quando a alma lhe pediu um afeto para suprir o que a morte lhe levara.

 

A moça aceitou com prazer a mão que Inácio lhe oferecia. Casaram-se a aprazimento dos parentes da moça e das pessoas que os conheciam a ambos. O vácuo fora preenchido.

 

Apesar do episódio acima narrado, os dias, as semanas e os meses correram tecidos de ouro para o esposo artista. Carlotinha era naturalmente faceira e amiga de brilhar; mas contentava-se com pouco, e não se mostrava exigente nem extravagante. As posses de Inácio Ramos eram poucas; ainda assim ele sabia dirigir a vida de modo que nem o necessário lhe faltava nem deixava de satisfazer algum dos desejos mais modestos da moça. A sociedade deles não era certamente dispendiosa nem vivia de ostentação; mas qualquer que seja o centro social há nele exigências a que não podem chegar todas as bolsas. Carlotinha vivera de festas e passatempos; a vida conjugal exigia dela hábitos menos frívolos, e ela soube curvar-se à lei que de coração aceitara.

 

Demais, que há aí que verdadeiramente resista ao amor? Os dois amavam-se; por maior que fosse o contraste entre a índole de um e outro, ligava-os e irmanava-os o afeto verdadeiro que os aproximara. O primeiro milagre do amor fora a aceitação por parte da moça do famoso violoncelo. Carlotinha não experimentava decerto as sensações que o violoncelo produzia no marido, e estava longe daquela paixão silenciosa e profunda que vinculava Inácio Ramos ao instrumento; mas acostumara-se a ouvi-lo, apreciava-o, e chegara a entendê-lo alguma vez.

 

A esposa concebeu. No dia em que o marido ouviu esta notícia sentiu um abalo profundo; seu amor cresceu de intensidade.

 

— Quando o nosso filho nascer, disse ele, eu comporei o meu segundo canto.

 

— O terceiro será quando eu morrer, não? perguntou a moça com um leve tom de despeito.

 

— Oh! não digas isso!

 

Inácio Ramos compreendeu a censura da mulher; recolheu-se durante algumas horas, e trouxe uma composição nova, a segunda que lhe saía da alma, dedicada à esposa. A música entusiasmou Carlotinha, antes por vaidade satisfeita do que porque verdadeiramente a penetrasse. Carlotinha abraçou o marido com todas as forças de que podia dispor, e um beijo foi o prêmio da inspiração. A felicidade de Inácio não podia ser maior; ele tinha tido o que ambicionava: vida de arte, paz e ventura doméstica, e enfim esperanças de paternidade.

 

— Se for menino, dizia ele à mulher, aprenderá violoncelo; se for menina, aprenderá harpa. São os únicos instrumentos capazes de traduzir as impressões mais sublimes do espírito.

 

Nasceu um menino. Esta nova criatura deu uma feição nova ao lar doméstico. A felicidade do artista era imensa; sentiu-se com mais força para o trabalho, e ao mesmo tempo como que se lhe apurou a inspiração.

 

A prometida composição ao nascimento do filho foi realizada e executada, não já entre ele e a mulher, mas em presença de algumas pessoas de amizade. Inácio Ramos recusou a princípio fazê-lo; mas a mulher alcançou dele que repartisse com estranhos aquela nova produção de um talento. Inácio sabia que a sociedade não chegaria talvez a compreendê-lo como ele desejava ser compreendido; todavia cedeu. Se acertara aos seus receios não o soube ele, porque dessa vez, como das outras, não viu ninguém; viu-se e ouviu-se a si próprio, sendo cada nota um eco das harmonias santas e elevadas que a paternidade acordara nele.

 

A vida correria assim monotonamente bela, e não valeria a pena escrevê-la, a não ser um incidente, ocorrido naquela mesma ocasião.

 

A casa em que eles moravam era baixa, ainda que assaz larga e airosa. Dois transeuntes, atraídos pelos sons do violoncelo, aproximaram-se das janelas entrefechadas, e ouviram do lado de fora cerca de metade da composição. Um deles, entusiasmado com a composição e a execução, rompeu em aplausos ruidosos quando Inácio acabou, abriu violentamente as portas da janela e curvou-se para dentro gritando.

 

— Bravo, artista divino!

 

A exclamação inesperada chamou a atenção dos que estavam na sala; voltaram-se todos os olhos e viram duas figuras de homem, um tranqüilo, outro alvoroçado de prazer. A porta foi aberta aos dois estranhos. O mais entusiasmado deles correu a abraçar o artista.

 

— Oh! alma de anjo! exclamava ele. Como é que um artista destes está aqui escondido dos olhos do mundo?

 

O outro personagem fez igualmente cumprimentos de louvor ao mestre do violoncelo; mas, como ficou dito, seus aplausos eram menos entusiásticos; e não era difícil achar a explicação da frieza na vulgaridade de expressão do rosto.

 

Estes dois personagens assim entrados na sala eram dois amigos que o acaso ali conduzira. Eram ambos estudantes de direito, em férias; o entusiasta, todo arte e literatura, tinha a alma cheia de música alemã e poesia romântica, e era nada menos que um exemplar daquela falange acadêmica fervorosa e moça animada de todas as paixões, sonhos, delírios e efusões da geração moderna; o companheiro era apenas um espírito medíocre, avesso a todas essas coisas, não menos que ao direito que aliás forcejava por meter na cabeça.

 

Aquele chamava-se Amaral, este Barbosa.

 

Amaral pediu a Inácio Ramos para lá voltar mais vezes. Voltou; o artista de coração gastava o tempo a ouvir o de profissão fazer falar as cordas do instrumento. Eram cinco pessoas; eles, Barbosa, Carlotinha, e a criança, o futuro violoncelista. Um dia, menos de uma semana depois, Amaral descobriu a Inácio que o seu companheiro era músico.

 

— Também! exclamou o artista.

 

— É verdade; mas um pouco menos sublime do que o senhor, acrescentou ele sorrindo.

 

— Que instrumento toca?

 

— Adivinhe.

 

— Talvez piano...

 

— Não.

 

— Flauta?

 

— Qual!

 

— É instrumento de cordas?

 

— É.

 

— Não sendo rabeca... disse Inácio olhando como a esperar uma confirmação.

 

— Não é rabeca; é machete.

 

Inácio sorriu; e estas últimas palavras chegaram aos ouvidos de Barbosa, que confirmou a notícia do amigo.

 

— Deixe estar, disse este baixo a Inácio, que eu o hei de fazer tocar um dia. É outro gênero...

 

— Quando queira.

 

Era efetivamente outro gênero, como o leitor facilmente compreenderá. Ali postos os quatro, numa noite da seguinte semana, sentou-se Barbosa no centro da sala, afinou o machete e pôs em execução toda a sua perícia. A perícia era, na verdade, grande; o instrumento é que era pequeno. O que ele tocou não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua, obra de ocasião. Barbosa tocou-a, não dizer com alma, mas com nervos. Todo ele acompanhava a gradação e variações das notas; inclinava-se sobre o instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora a um lado, ora a outro, alçava a perna, sorria, derretia os olhos ou fechava-os nos lugares que lhe pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o menos; vê-lo era o mais. Quem somente o ouvisse não poderia compreendê-lo.

 

Foi um sucesso, — um sucesso de outro gênero, mas perigoso, porque, tão depressa Barbosa ouviu os cumprimentos de Carlotinha e Inácio, começou segunda execução, e iria a terceira, se Amaral não interviesse, dizendo:

 

— Agora o violoncelo.

 

O machete de Barbosa não ficou escondido entre as quatro partes da sala de Inácio Ramos; dentro em pouco era conhecida a forma dele no bairro em que morava o artista, e toda a sociedade deste ansiava por ouvi-lo.

 

Carlotinha foi a denunciadora; ela achara infinita graça e vida naquela outra música, e não cessava de o elogiar em toda a parte. As famílias do lugar tinham ainda saudades de um célebre machete que ali tocara anos antes o atual subdelegado, cujas funções elevadas não lhe permitiram cultivar a arte. Ouvir o machete de Barbosa era reviver uma página do passado.

 

— Pois eu farei com que o ouçam, dizia a moça.

 

Não foi difícil.

 

Houve dali a pouco reunião em casa de uma família da vizinhança. Barbosa acedeu ao convite que lhe foi feito e lá foi com o seu instrumento. Amaral acompanhou-o.

 

— Não te lastimes, meu divino artista; dizia ele a Inácio; e ajuda-me no sucesso do machete.

 

Riam-se os dois, e mais do que eles se ria Barbosa, riso de triunfo e satisfação porque o sucesso não podia ser mais completo.

 

— Magnífico!

 

— Bravo!

 

— Soberbo!

 

— Bravíssimo!

 

O machete foi o herói da noite. Carlota repetia às pessoas que a cercavam:

 

— Não lhes dizia eu? é um portento.

 

— Realmente, dizia um crítico do lugar, assim nem o Fagundes...

 

Fagundes era o subdelegado.

 

Pode-se dizer que Inácio e Amaral foram os únicos alheios ao entusiasmo do machete. Conversavam eles, ao pé de uma janela, dos grandes mestres e das grandes obras da arte.

 

— Você por que não dá um concerto? perguntou Amaral ao artista.

 

— Oh! não.

 

— Por quê?

 

— Tenho medo...

 

— Ora, medo!

 

— Medo de nao agradar...

 

— Há de agradar por força!

 

— Além disso, o violoncelo está tão ligado aos sucessos mais íntimos da minha vida, que eu o considero antes como a minha arte doméstica...

 

Amaral combatia estas objeções de Inácio Ramos; e este fazia-se cada vez mais forte nelas. A conversa foi prolongada, repetiu-se daí a dois dias, até que no fim de uma semana, Inácio deixou-se vencer.

 

— Você verá, dizia-lhe o estudante, e verá como todo o público vai ficar delirante.

 

Assentou-se que o concerto seria dali a dois meses. Inácio tocaria uma das peças já compostas por ele, e duas de dois mestres que escolheu dentre as muitas.

 

Barbosa não foi dos menos entusiastas da idéia do concerto. Ele parecia tomar agora mais interesse nos sucessos do artista, ouvia com prazer, ao menos aparente, os serões de violoncelo, que eram duas vezes por semana. Carlotinha propôs que os serões fossem três; mas Inácio nada concedeu além dos dois. Aquelas noites eram passadas somente em família; e o machete acabava muita vez o que o violoncelo começava. Era uma condescendência para com a dona da casa e o artista! — o artista do machete.

 

Um dia Amaral olhou Inácio preocupado e triste. Não quis perguntar-lhe nada; mas como a preocupação continuasse nos dias subseqüentes, não se pôde ter e interrogou-o. Inácio respondeu-lhe com evasivas.

 

— Não, dizia o estudante; você tem alguma coisa que o incomoda certamente.

 

— Coisa nenhuma!

 

E depois de um instante de silêncio:

 

— O que tenho é que estou arrependido do violoncelo; se eu tivesse estudado o machete!

 

Amaral ouviu admirado estas palavras; depois sorriu e abanou a cabeça. Seu entusiasmo recebera um grande abalo. A que vinha aquele ciúme por causa do efeito diferente que os dois instrumentos tinham produzido? Que rivalidade era aquela entre a arte e o passatempo?

 

— Não podias ser perfeito, dizia Amaral consigo; tinhas por força um ponto fraco; infelizmente para ti o ponto é ridículo.

 

Daí em diante os serões foram menos amiudados. A preocupação de Inácio Ramos continuava; Amaral sentia que o seu entusiasmo ia cada vez a menos, o entusiasmo em relação ao homem, porque bastava ouvi-lo tocar para acordarem-se-lhe as primeiras impressões.

 

A melancolia de Inácio era cada vez maior. Sua mulher só reparou nela quando absolutamente se lhe meteu pelos olhos.

 

— Que tens? perguntou-lhe Carlotinha.

 

— Nada, respondia Inácio.

 

— Aposto que está pensando em alguma composição nova, disse Barbosa que dessas ocasiões estava presente.

 

— Talvez, respondeu Inácio; penso em fazer uma coisa inteiramente nova; um concerto para violoncelo e machete.

 

— Por que não? disse Barbosa com simplicidade. Faça isso, e veremos o efeito que há de ser delicioso.

 

— Eu creio que sim, murmurou Inácio.

 

Não houve concerto no teatro, como se havia assentado; porque Inácio Ramos de todo se recusou. Acabaram-se as férias e os dois estudantes voltaram para S. Paulo.

 

— Virei vê-lo daqui a pouco, disse Amaral. Virei até cá somente para ouvi-lo.

 

Efetivamente vieram os dois, sendo a viagem anunciada por carta de ambos.

 

Inácio deu a notícia à mulher, que a recebeu com alegria.

 

— Vêm ficar muitos dias? disse ela.

 

— Parece que somente três.

 

— Três!

 

— É pouco, disse Inácio; mas nas férias que vêm, desejo aprender o machete.

 

Carlotinha sorriu, mas de um sorriso acanhado, que o marido viu e guardou consigo.

 

Os dois estudantes foram recebidos como se fossem de casa. Inácio e Carlotinha desfaziam-se em obséquios. Na noite do mesmo dia, houve serão musical; só violoncelo, a instâncias de Amaral, que dizia:

 

— Não profanemos a arte!

 

Três dias vinham eles demorar-se, mas não se retiraram no fim deles.

 

— Vamos daqui a dois dias.

 

— O melhor é completar a semana, observou Carlotinha.

 

— Pode ser.

 

No fim de uma semana, Amaral despediu-se e voltou a S. Paulo; Barbosa não voltou; ficara doente. A doença durou somente dois dias, no fim dos quais ele foi visitar o violoncelista.

 

— Vai agora? perguntou este.

 

— Não, disse o acadêmico; recebi uma carta que me obriga a ficar algum tempo.

 

Carlotinha ouvira alegre a notícia; o rosto de Inácio não tinha nenhuma expressão.

 

Inácio não quis prosseguir nos serões musicais, apesar de lho pedir algumas vezes Barbosa, e não quis porque, dizia ele, não queria ficar mal com Amaral, do mesmo modo que não quereria ficar mal com Barbosa, se fosse este o ausente.

 

— Nada impede, porém, concluiu o artista, que ouçamos o seu machete.

 

Que tempo duraram aqueles serões de machete? Não chegou tal notícia ao conhecimento do escritor destas linhas. O que ele sabe apenas é que o machete deve ser instrumento triste, porque a melancolia de Inácio tornou-se cada vez mais profunda. Seus companheiros nunca o tinham visto imensamente alegre; contudo a diferença entre o que tinha sido e era agora entrava pelos olhos dentro. A mudança manifestava-se até no trajar, que era desleixado, ao contrário do que sempre fora antes. Inácio tinha grandes silêncios, durante os quais era inútil falar-lhe, porque ele a nada respondia, ou respondia sem compreender.

 

— O violoncelo há de levá-lo ao hospício, dizia um vizinho compadecido e filósofo.

 

Nas férias seguintes, Amaral foi visitar o seu amigo Inácio, logo no dia seguinte àquele em que desembarcou. Chegou alvoroçado à casa dele; uma preta veio abri-la.

 

— Onde está ele? Onde está ele? perguntou alegre e em altas vozes o estudante.

 

A preta desatou a chorar.

 

Amaral interrogou-a, mas não obtendo resposta, ou obtendo-a intercortada de soluços, correu para o interior da casa com a familiaridade do amigo e a liberdade que lhe dava a ocasião.

 

Na sala do concerto, que era nos fundos, olhou ele Inácio Ramos, de pé, com o violoncelo nas mãos preparando-se para tocar. Ao pé dele brincava um menino de alguns meses.

 

Amaral parou sem compreender nada. Inácio não o viu entrar; empunhara o arco e tocou, — tocou como nunca, — uma elegia plangente, que o estudante ouviu com lágrimas nos olhos. A criança, dominada ao que parece pela música, olhava quieta para o instrumento. Durou a cena cerca de vinte minutos.

 

Quando a música acabou, Amaral correu a Inácio.

 

— Oh! meu divino artista! exclamou ele.

 

Inácio apertou-o nos braços; mas logo o deixou e foi sentar-se numa cadeira com os olhos no chão. Amaral nada compreendia; sentia porém que algum abalo moral se dera nele.

 

— Que tens? disse.

 

— Nada, respondeu Inácio.

 

E ergueu-se e tocou de novo o violoncelo. Não acabou porém; no meio de uma arcada, interrompeu a música, e disse a Amaral:

 

— É bonito, não?

 

— Sublime! respondeu o outro.

 

— Não; machete é melhor.

 

E deixou o violoncelo, e correu a abraçar o filho.

 

— Sim, meu filho, exclamava ele, hás de aprender machete; machete é muito melhor.

 

— Mas que há? articulou o estudante.

 

— Oh! nada, disse Inácio, ela foi-se embora, foi-se com o machete. Não quis o violoncelo, que é grave demais. Tem razão; machete é melhor.

 

A alma do marido chorava mas os olhos estavam secos. Uma hora depois enlouqueceu.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 12 de novembro de 2021

O FRUTO DA FORMOSURA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

O FRUTO DA FORMOSURA

Raul Pompéia

 

 

Em princípio, ele era pequenino; uma ligeira elevação de carne infantil, macia como a polpa de um fruto esquisito; tinha um biquinho, rubro como uma cereja microscópica; tinha dous anos, então: recebia as carícias maternas de uns lábios ardentes e amorosos.

Foi crescendo... crescendo...

Já lhe notavam tendências para a bela forma redonda. A carne branca, polpuda, elevava-se pouco a pouco.

Foram-no cobrindo, zelosamente de cambraias e fitas.

Em pequenino, andava tantas vezes nu, gozando o contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme. Exatamente quando mais lindo ficava, é que o queriam esconder como uma cousa indigna.

Este escrúpulo avultava com o tempo.

Esconderam-no cada vez mais, e cada vez mais, do fundo do seu retiro de linhos e cambraias finíssimas, o indiscreto erguia-se, cercado de rubores incertos e nômades, que percorriam-lhe a epiderme, semeando calor; erguia-se como quem sabe que vai a fazer-se sedutor e deseja que o vejam e o adorem...

Mas a cruel cambraia subia também, com uma impertinência ciosa e avara; o pobre via-se condenado àquela prisão cálida e escura, que o sufocava ferozmente.

Ah! quem lhe dera sentir as auras frescas da tarde e os orvalhos da madrugada; viver à luz dos sóis e dos luares, despido, desembaraçado e nu, como os jambos rosados e venturosos!...

Despiam-no, é certo, mas unicamente para respirar o ambiente morno e viciado das alcovas.

Era nessas ocasiões que ele via como estava belo; mirava-se nas banheiras e nos espelhos, namorava-se como um narciso, o pobre...

E como torturavam-no, depois, aquelas faixas com que o comprimiam!

Parece que havia empenho em deformá-lo, contrariando a natureza que o aviventava. Entretanto, ele resistia e triunfava!

A delicada forma cônica dilatava-se-lhe, encurvava-se, sobressaía com a íntima energia de um botão de magnólia que vai desabrochar em largas pétalas. Sedutor cada vez mais.

Tornou-se tímido. O recato da cambraia que o contrariava agrada-lhe então.

O próprio ambiente morno da alcova parece feri-lo com um contato sacrílego.

O sofrimento que então o tortura já não é a contrariedade daqueles panos que o abafavam.

O sofrimento consiste em pancadas íntimas, violentas, que o agitam e mortificam.

Está amando, o pobre...

Por fim, expande-se.

Rasgam-se os linhos e as cambraias, e dous lábios impetuosos, sedentos, vão lá ao fundo violar o recato do amante misterioso e invisível.

Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena maturidade.

Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele como a parasita que vive da vitalidade alheia...

..................................................................

Então começa a decadência.

O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...

Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos, húmus fecundos da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das novas primaveras, vorazes, egoístas...

É quase a história comum de todos os frutos.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 11 de novembro de 2021

TEMPO DE CRISE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

TEMPO DE CRISE

Machado de Assis

 

 

Queres tu saber, meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso completas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nato. Aqui a coisa é diversa, assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.

 

Quando desembarquei estava o C. à minha espera na Praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:

 

— Caiu o ministério!

 

Tu sabes que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C. quem eram os novos ministros.

 

— Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?

 

— Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.

 

— Há de haver.

 

Seguimos para o Hotel da Europa que é na Rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.

 

À porta perguntei-lhe eu:

 

— Onde saberemos notícias?

 

— Aqui mesmo na Rua do Ouvidor.

 

— Pois então na Rua do Ouvidor é que?

 

— Sim; a Rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.

 

Ouvi silenciosamente as explicações do C. e segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito fumando, e conversando com o caixeiro.

 

— A que horas esteve ela aqui? perguntava o sujeito.

 

— Às dez.

 

Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.

 

— Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C.

 

— Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão; alguma rosa de Citera.

 

— Qual! disse eu.

 

— Por quê?

 

— Os jardins de Citera são francos; ninguém espreita as rosas por fora...

 

— Provinciano! disse o C. com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa honra para o jardineiro... Anda sentar-te.

 

— Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.

 

— Com razão, respondeu o C. Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os sentimentos e todas as idéias...

 

— Continua, meu Virgílio.

 

— Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense. Aqui acharás a flor da sociedade, — as senhoras que vêm escolher jóias ao Valais ou sedas a Notre Dame, — os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Commercio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um coupé à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilante de riqueza, — porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, — é que a simples vista consola.

 

Saiu-me o C. tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.

 

O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.

 

— Cansou de esperar, disse eu.

 

— Sentemo-nos.

 

Sentamo-nos.

 

— Fala-se então de tudo aqui?

 

— De tudo.

 

— Bem e mal?

 

— Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...

 

Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C. a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.

 

— Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...

 

Estas últimas palavras revelaram no C. um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor de morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso Padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.

 

— Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...

 

— Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.

 

O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C. perguntou-lhe o que sabia da crise.

 

— Nada, respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...

 

— Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C.

 

— É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve Câmara?

 

— Não.

 

— Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à Câmara...

 

— Para quê? Aqui mesmo saberemos.

 

O Dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.

 

Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.

 

— Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C. passando algum tempo.

 

— Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.

 

— Mas por quê? perguntei eu.

 

— Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...

 

— Ah!

 

— O Ministro do Império quer o Valadares, e o da fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?

 

— Ora, vivam! Então já sabem da crise?

 

Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.

 

— Crise formal? perguntamos todos.

 

— Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a S. Cristóvão...

 

— É o que dizia, observou o Dr. Abreu.

 

— Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C.

 

— O verdadeiro motivo foi uma questão da guerra.

 

— Não creia nisso!

 

O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:

 

— Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do Ministro da Guerra?

 

A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...

 

— Seja qual for o motivo, disse o C., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?

 

— Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).

 

— Quem sabe?

 

Ferreira tomou a palavra:

 

— A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem a Câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança...

 

Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.

 

— Mas então não estão todos em S. Cristóvão? observou o C.

 

— Este vai naturalmente para lá.

 

Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco aumentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.

 

Afirmamos que sim.

 

— Qual seria a causa? perguntou ele.

 

O Abreu, que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.

 

— Está certo disso? perguntou o desembargador.

 

— Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do Ministro da Guerra.

 

Nunca vi maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois o C. que me respondeu:

 

— Não te espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem infocrmado.

 

Dos presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Bruto diante do cadáver de César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor nem excessiva paixão.

 

Cada personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.

 

Vimos ao longe um homem de 35 anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência política.

 

— Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C.

 

Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.

 

A influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.

 

— Venha cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?

 

— O que há?

 

— Sim.

 

— Há crise.

 

— Bem; mas os homens saem ou ficam?

 

Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.

 

Olhei atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os ocultava de nós.

 

— Diga o que sabe, Sr. Mendonça, disse o desembargador.

 

— Eu já disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...

 

Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.

 

— Sabem que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.

 

— Qual é a causa?

 

— A nomeação de um juiz de direito.

 

— Só!

 

— Só.

 

— Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.

 

— Foi isso. Os homens lá foram ao paço.

 

— Será aceita a demissão? perguntei eu.

 

Mendonça abaixou a voz.

 

— Creio que é.

 

Depois apertou a mão ao desembargador, ao C. e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.

 

— Pois, senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.

 

Passa defronte um sujeito.

 

— Anda cá, Lima, gritou Abreu.

 

O Lima aproximou-se.

 

— Estás convidado para o ministério?

 

— Estou; você quer alguma pasta?

 

Não penses que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.

 

A única preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares, — a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C. e o Lima, e seguiram viagem.

 

— São lindas estas moças, disse um dos circunstantes.

 

— Eu era capaz de as nomear para o ministério.

 

— Sendo eu presidente do conselho.

 

— Também eu.

 

— A mais gorda devia ser Ministro da Marinha.

 

— Por quê?

 

— Porque parece mesmo uma fragata.

 

Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.

 

— Quem será? Algum ministro?

 

— Vejamos.

 

— Não; é a A...

 

— Como vai bonita!

 

— Pudera!

 

— Ela já tem carro?

 

— Há muito tempo.

 

— Olhem, ali vem o Mendonça.

 

— Vem com outro. Quem é?

 

— É um deputado.

 

Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.

 

Houve outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do tom.

 

Finalmente surgiu de longe o já citado Ferreira.

 

— Que há? perguntamos quando ele chegou.

 

— Foi aceita a demissão.

 

— Quem é o chamado?

 

— Não se sabe.

 

— Por quê?

 

— Dizem que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.

 

Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.

 

— Mas donde sabe isso? disse o desembargador.

 

— Soube na Câmara.

 

— Não me parece natural.

 

— Por quê?

 

— Que força moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?

 

— Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do Ministro da Fazenda.

 

Ferreira tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.

 

— Quem será chamado?

 

— Naturalmente o N.

 

— Ou o P.

 

— Já hoje de manhã se dizia que era o K.

 

Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.

 

— Então, Sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.

 

— O B.

 

— Com certeza?

 

— É o que se diz.

 

— Eu ouvi que só na segunda-feira se organizará ministério novo.

 

— Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B. foi ao paço.

 

— Viu-o?

 

— Não, mas disseram-mo.

 

— Pois acredite que até segunda-feira...

 

A conversa ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.

 

Cada qual expôs a sua conjetura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:

 

— Está enganado; pode o F. ficar com a pasta da Justiça, o M. com a da Guerra, K. Marinha, T. Obras Públicas, V. Fazenda, X. Império, e C. Estrangeiros.

 

— Não é possível; o V. é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.

 

— Mas o V. não pode entrar nessa combinação.

 

— Por quê?

 

— É inimigo do F.

 

— Sim; mas a deputação da Bahia?

 

Aqui coçava o outro a orelha.

 

— A deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N.

 

— O N. não aceita.

 

— Por quê?

 

— Não quer ministério de transição.

 

— Chama a isto ministério de transição?

 

— Pois que é mais?

 

Este diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C. e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.

 

Desta vez íamos ter notícias frescas.

 

Efetivamente soubemos pelo deputado que o V. tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.

 

— Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V.; o seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?

 

— Por ora, disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.

 

— Quem são?

 

— Não sei, respondeu o deputado.

 

Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.

 

Houve um pequeno silêncio. Conjeturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.

 

O Abreu dirigiu-se ao deputado.

 

— V. Ex.a acredita que o ministério fique organizado hoje?

 

— Creio que sim; mas daí pode ser que não...

 

— A situação não é boa, observou Ferreira.

 

— Admira-me que V. Ex.a não seja convidado...

 

Estas palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:

 

— Pois não me admira nada disso; deixo o lugar aos componentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.

 

— Perdão, é muito digno!

 

Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:

 

— Podes dar-me uma palavra?

 

— Que é? perguntou o deputado levantando-se.

 

— Vem cá.

 

Foram até à porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.

 

— Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.

 

— Acredita? perguntei eu.

 

— Sem dúvida.

 

Mendonça foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.

 

Eram duas horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Um desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.

 

Às três horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.

 

Determinamos não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C.) andar na Rua do Ouvidor às 5 horas da tarde.

 

— Mas qual será o meio de saber? perguntei eu.

 

— Eu vou ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.

 

Vários incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma jóia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.

 

Nada se soube nessa tarde.

 

Voltei para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C. jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos voltar à Rua do Ouvidor.

 

— Não era melhor irmos à casa do V., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.

 

— Principalmente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu o C.; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.

 

A Rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.

 

Confesso que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da Rua do Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que os freqüentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os ministros todos.

 

Encontramos os mesmos amigos da manhã.

 

Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.

 

— Que há?

 

— Está organizado.

 

— Mas quem são?

 

O desembargador tirou do bolso uma lista.

 

— São estes.

 

Lemos os nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.

 

— Mas isto é certo? perguntei eu.

 

— Deram-me agora esta lista; creio que é autêntica.

 

— O que é? perguntou por trás de mim uma voz.

 

Era um sujeito moreno e bigode grisalho.

 

— Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.

 

— Tenho uma lista.

 

— Vejamos se combina com esta.

 

Costearam-se as listas; havia engano num nome.

 

Mais adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma deles, deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às 9 horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da Rua do Ouvidor, qual era o gabinete.

 

O Mendonça ficou alegre com o resultado da crise.

 

Perguntaram-lhe por que razão.

 

— Tenho dois compadres no ministério! respondeu ele.

 

Aqui tens o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 10 de novembro de 2021

RESOSTA DIFÍCIL (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

RESPOSTA DIFÍCIL

Humberto de Campos

 

 

 

Rosto em fogo, cabelos em desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas uma carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele, uma punhalada no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro, tauxiado de prata polida, a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no horror daquela situação.

 

— E dizer-se que eu confiava em ti, tua honra, no teu amor, e que estava em São Paulo tranquilo, sereno, na certeza de que procedias, aqui, com seriedade, com dignidade, com a correção que me havias jurado, de joelhos, diante de Deus!... — geme, quase chorando, o pobre esposo desesperado.

 

Madame procura, como um náufrago na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o marido atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de novo, a cabeça entre as mãos:

 

— Que vergonha, meu Deus! que vergonha, agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o rosto diante desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou, impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...

 

Enfiando os dedos na cabeleira grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais nervoso, a extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos, quando, de repente, para, e reclama, cerrando os punhos:

 

— Confessa-me, afinal: quando foi que aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha ausência, penetrou nesta casa?

 

Adivinhando nessa pergunta um caminho para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado de lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes do marido, indaga, apenas, pronta para uma explicação:

 

— Qual?


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 08 de novembro de 2021

LETRA VENCIDA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

LETRA VENCIDA

Machado de Assis

 

 

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

Eduardo B. embarca amanhã para a Europa. Amanhã quer dizer 24 de abril de 1861, pois estamos a 23, à noite, uma triste noite para ele, e para Beatriz.

 

— Beatriz! repetia ele, no jardim, ao pé da janela donde a moça se debruçava estendendo-lhe a mão.

 

De cima, — porque a janela ficava a cinco palmos da cabeça de Eduardo, — de cima respondia a moça com lágrimas, verdadeiras lágrimas de dor. Era a primeira grande dor moral que padecia, e, contando apenas dezoito anos, começava cedo. Não falavam alto; poderiam chamar a atenção da gente da casa. Note-se que Eduardo despedira-se da família de Beatriz naquela mesma noite, e que a mãe dela e o pai, ao vê-lo sair, estavam longe de pensar que entre onze horas e meia-noite, voltaria o moço ao jardim para fazer uma despedida mais formal. Além disso, os dois cães da casa impediriam a entrada de algum intruso. Se tal supuseram é que não advertiram na tendência corruptora do amor. O amor peitou o jardineiro, e os cães foram recolhidos modestamente para não interromper o último diálogo de dois corações aflitos.

 

Último? Não é último; não pode ser último. Eduardo vai completar os estudos, e tirar carta de doutor em Heidelberg; a família vai com ele, disposta a ficar algum tempo, um ano, em França; ele voltará depois. Tem vinte e um anos, ela dezoito: podem esperar. Não, não é o último diálogo. Basta ouvir os protestos que eles murmuram, baixinho, entre si e Deus, para crer que esses dois corações podem ficar separados pelo mar, mas que o amor os uniu moralmente e eternamente. Eduardo jura que a levará consigo, que não pensará em outra coisa, que a amará sempre, sempre, sempre, de longe ou de perto, mais do que aos próprios pais.

 

— Adeus, Beatriz!

 

— Não, não vá já!

 

Tinha batido uma hora em alguns relógios da vizinhança, e esse golpe seco, soturno, pingando de pêndula em pêndula, advertiu ao moço de que era tempo de sair; podiam ser descobertos. Mas ficou; ela pediu-lhe que não fosse logo, e ele deixou-se estar, cosido à parede, com os pés num canteiro de murta e os olhos no peitoril da janela. Foi então que ela lhe desceu uma carta; era a resposta de outra, em que ele lhe dava certas indicações necessárias à correspondência secreta, que iam continuar através do oceano. Ele insistiu verbalmente em algumas das recomendações; ela pediu certos esclarecimentos. O diálogo interrompia-se; os intervalos de silêncio eram suspirados e longos. Enfim bateram duas horas: era o rouxinol? Era a cotovia? Romeu preparou-se para ir embora; Julieta pediu alguns minutos.

 

— Agora, adeus, Beatriz; é preciso! murmurou ele dali a meia hora.

 

— Adeus! Jura que não se esquecerá de mim?

 

— Juro. E você?

 

— Juro também, por minha mãe, por Deus!

 

— Olhe, Beatriz! Aconteça o que acontecer, não me casarei com outra; ou com você, ou com a morte. Você é capaz de jurar a mesma coisa?

 

— A mesma coisa; juro pela salvação de minh’alma! Meu marido é você; e Deus que me ouve há de ajudar-nos. Crê em Deus, Eduardo; reza a Deus, pede a Deus por nós.

 

Apertaram as mãos. Mas um aperto de mão era bastante para selar tão grave escritura? Eduardo teve a idéia de trepar à parede; mas faltava-lhe o ponto de apoio. Lembrou-se de um dos bancos do jardim, que tinha dois, do lado da frente; foi a ele, trouxe-o, encostou-o à parede, e subiu; depois levantou as mãos ao peitoril; e suspendeu o corpo; Beatriz inclinou-se, e o eterno beijo de Verona conjugou os dois infelizes. Era o primeiro. Deram três horas; desta vez era a cotovia.

 

— Adeus!

 

— Adeus!

 

Eduardo saltou ao chão; pegou do banco, e foi repô-lo no lugar próprio. Depois tornou à janela, levantou a mão, Beatriz desceu a sua, e um enérgico e derradeiro aperto terminou essa despedida, que era também uma catástrofe. Eduardo afastou-se da parede, caminhou para a portinha lateral do jardim, que estava apenas cerrada, e saiu. Na rua, a vinte ou trinta passos, ficara de vigia o obsequioso jardineiro, que unira ao favor a discrição, colocando-se a distância tal, que nenhuma palavra pudesse chegar-lhe aos ouvidos. Eduardo, embora já lhe houvesse pago a cumplicidade, quis deixar-lhe ainda uma lembrança de última hora, e meteu-lhe na mão uma nota de cinco mil-réis.

 

No dia seguinte verificou-se o embarque. A família de Eduardo compunha-se dos pais e uma irmã de doze anos. O pai era comerciante e rico; ia passear alguns meses e fazer completar os estudos do filho em Heidelberg. Esta idéia de Heidelberg parecerá um pouco estranha nos projetos de um homem, como João B., pouco ou nada lido em coisas de geografia científica e universitária; mas sabendo-se que um sobrinho dele, em viagem na Europa, desde 1857, entusiasmado com a Alemanha, escrevera de Heidelberg algumas cartas exaltando o ensino daquela Universidade, ter-se-á compreendido essa resolução.

 

Para Eduardo, ou Heidelberg ou Hong-Kong, era a mesma coisa, uma vez que o arrancavam do único ponto do globo em que ele podia aprender a primeira das ciências, que era contemplar os olhos de Beatriz. Quando o paquete deu as primeiras rodadas na água e começou a mover-se para a barra, Eduardo não pôde reter as lágrimas, e foi escondê-las no camarote. Voltou logo acima, para ver ainda a cidade, perdê-la pouco a pouco, por uma ilusão da dor, que se contentava de um retalho, tirado à purpura da felicidade moribunda. E a cidade, se tivesse olhos para vê-lo, podia também despedir-se dele com pesar e orgulho, pois era um esbelto rapaz, inteligente e bom. Convém dizer que a tristeza de deixar o Rio de Janeiro também lhe doía no coração. Era fluminense, não saíra nunca deste ninho paterno, e a saudade local vinha casar-se à saudade pessoal. Em que proporções, não sei. Há aí uma análise difícil, mormente agora, que não podemos mais distinguir a figura do rapaz. Ele está ainda na amurada; mas o paquete transpôs a barra, e vai perder-se no horizonte.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

Para que hei de dizer que Beatriz deixou de dormir o resto da noite? Subentende-se que as últimas horas dessa triste noite de 23 de abril foram para ela de vigília e desespero. Direi somente que também foram de devoção. Beatriz, logo que Eduardo transpôs a porta do jardim, atirou-se à cama soluçando e sufocando os soluços, para não ser ouvida. Quando a dor amorteceu um pouco, levantou-se e foi ao oratório de suas rezas noturnas e matinais; ajoelhou-se e encomendou a Deus, não a felicidade, mas a consolação de ambos.

 

A manhã viu-a tão triste como a noite. O sol, na forma usual, mandou um dos seus raios mais jucundos e vivos ao rosto de Beatriz, que desta vez o recebeu sem ternura nem gratidão. De costume, ela dava a esse raio amado todas as expansões de uma alma nova. O sol, pasmado da indiferença, não interrompeu todavia o seu curso; tinha outras Beatrizes que saudar, umas risonhas, outras lacrimosas, outras apáticas, mas todas Beatrizes... E lá se foi o D. João do azul, espalhando no ar um milhão daquelas missivas radiosas.

 

Não menos pasmada ficou a mãe ao almoço. Beatriz mal podia disfarçar os olhos cansados de chorar; e sorria, é verdade, mas um sorriso tão forçado, tão de obséquio e dissimulação, que realmente faria descobrir tudo, se desde alguns dias antes, as maneiras de Beatriz não tivessem revelado tal ou qual alteração. A mãe supunha alguma moléstia; agora, sobretudo, que os olhos da moça tinham um ar febril, pareceu-lhe que era caso de doença incubada.

 

— Beatriz, você não está boa, disse ela à mesa.

 

— Sinto-me assim não sei como...

 

— Pois tome só chá. Vou mandar vir o doutor...

 

— Não é preciso; se continuar amanhã, sim.

 

Beatriz tomou chá, nada mais do que chá. Como não tinha vontade de outra coisa, tudo se combinou assim, e a hipótese da doença foi aparentemente confirmada. Ela aproveitou-a para meter-se no quarto o dia inteiro, falar pouco, não fazer toilette, etc. Não chamaram o médico, mas ele veio por si mesmo, o Tempo, que com uma de suas velhas poções abrandou a vivacidade da dor, e tornou o organismo ao estado anterior, tendo de mais uma saudade profunda, e a imortal esperança.

 

Realmente, só sendo imortal a esperança, pois tudo conspirava contra ela. Os pais de ambos os namorados tinham a seu respeito projetos diferentes. O de Eduardo meditava para este a filha de um fazendeiro, seu amigo, moça prendada, capaz de o fazer feliz, e digna de o ser também; e não meditava só consigo, porque o fazendeiro nutria iguais idéias. João B. chegara mesmo a insinuá-lo ao filho, dizendo-lhe que na Europa iria vê-lo alguém que provavelmente o ajudaria a concluir os estudos. Este foi, com efeito, o plano dos dois pais; seis meses depois, iria o fazendeiro com a família à Alemanha, onde casariam os filhos.

 

Quanto ao pai de Beatriz, os seus projetos eram ainda mais definitivos, se é possível. Tratava de aliar a filha a um jovem político, moço de futuro, e tão digno de ser marido de Beatriz, como a filha do fazendeiro era digna de ser mulher de Eduardo. Esse candidato, Amaral, freqüentava a casa, era aceito a todos, e tratado como pessoa de família, e com um tal respeito e carinho, um desejo tão intenso de o mesclar ao sangue da casa, que realmente faria rir ao rapaz, se ele próprio não estivesse namorado de Beatriz. Mas estava-o, e grandemente namorado; e tudo isso aumentava o perigo da situação.

 

Não obstante, a esperança subsistia no coração de ambos. Nem a distância, nem os cuidados diversos, nem o tempo, nem os pais, nada diminuía o viço dessa flor misteriosa e constante. Não disseram outra coisa as primeiras cartas, recebidas por um modo tão engenhoso e tão simples, que vale a pena contá-lo aqui, para uso de outros desgraçados. Eduardo mandava as cartas a um amigo; este passava-as a uma irmã, que as entregava a Beatriz, de quem era amiga e companheira de colégio. Geralmente as companheiras de colégio não se recusam a estes pequenos obséquios, que podem ser recíprocos; em todo o caso, — são humanos. As duas primeiras cartas, assim recebidas, foram a transcrição dos protestos feitos naquela noite de 23 de abril de 1861; transcrição feita com tinta, mas não menos valiosa e sincera do que se o fora com sangue. O mar, que deixou passar essas vozes concordes de duas almas violentamente separadas, continuou o perpétuo movimento da sua instabilidade.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Beatriz voltou aos hábitos anteriores, aos passeios, saraus e teatros do costume. A tristeza, de aguda que era e manifesta, tornou-se escondida e crônica. No rosto era a mesma Beatriz, e tanto bastava à sociedade. Naturalmente não tinha a mesma paixão da dança, nem a mesma vivacidade de maneiras; mas a idade explicava a atenuação. Os dezoito anos estavam feitos; a mulher completara-se.

 

Quatro meses depois da partida de Eduardo, entendeu a família da moça apressar o casamento desta; e eis aqui as circunstâncias da resolução.

 

Amaral cortejava a moça ostensivamente, dizia-lhe as finezas usuais, freqüentava a casa, ia onde ela fosse; punha o coração em todas as ações e palavras. Beatriz entendia tudo e não respondia a nada. Usou duas políticas diferentes. A primeira foi mostrar-se de uma tal ignorância que o pretendente achasse mais razoável esquecê-la. Pouco durou esta; era improfícua, tratando-se de um homem verdadeiramente apaixonado. Amaral teimou; vendo-se desentendido, passou a linguagem mais direta e clara. Então começou a segunda política; Beatriz mostrou que entendia, mas deixou ver que nada era possível entre ambos. Não importa; ele teimou ainda mais. Nem por isso venceu. Foi então que o pai de Beatriz interveio.

 

— Beatriz, disse-lhe o pai, tenho um marido para ti, e estou certo que vais aceitá-lo...

 

— Papai...

 

— Mas ainda que, a princípio recuses, não por ser indigno de nós; não é indigno, ao contrário; é pessoa muito respeitável... Mas, como ia dizendo, ainda que a tua primeira palavra seja contra o noivo, previno-te que é desejo meu e há de cumprir-se.

 

Beatriz fez um movimento de cabeça, rápido, espantado. Não estava acostumada àquele modo, não esperava a intimação.

 

— Digo-te que é um moço sério e digno, repetiu. Que respondes?

 

— Nada.

 

— Aceitas então?

 

— Não, senhor.

 

Desta vez foi o pai que teve um sobressalto; não por causa da recusa; ele esperava-a, e estava resolvido a vencê-la, segundo a avisou desde logo. Mas o que o espantou foi a prontidão da resposta.

 

— Não? disse ele daí a um instante.

 

— Não, senhor.

 

— Sabes o que estás dizendo?

 

— Sei, sim, senhor.

 

— Veremos se não, bradou o pai levantando-se, e batendo com a cadeira no chão; veremos se não! Tem graça! Não, a mim! Quem sou eu? Não! E por que não? Naturalmente, anda aí algum petimetre sem presente nem futuro, algum bailarino, ou estafermo. Pois veremos...

 

E ia de um lado para outro, metendo as mãos nas algibeiras da calça, tirando-as, passando-as pelos cabelos, abotoando e desabotoando o paletó, fora de si, irritado.

 

Beatriz deixara-se estar sentada com os olhos no chão, tranqüila, resoluta. Em certo momento, como o pai lhe parecesse exasperado demais, levantou-se e foi a ele para aquietá-lo um pouco; mas ele repeliu-a.

 

— Vá-se embora, disse-lhe; vá refletir no seu procedimento, e volte quando estiver disposta a pedir-me perdão.

 

— Isso já; peço-lhe perdão já, papai... Não quis ofendê-lo; nunca o ofendi... Perdoe-me; vamos, perdoe-me.

 

— Mas recusas?

 

— Não posso aceitar.

 

— Sabes quem é?

 

— Sei: o Dr. Amaral.

 

— Que tens contra ele?

 

— Nada; é um moço distinto.

 

O pai passou a mão pelas barbas.

 

— Gostas de outro.

 

Beatriz calou-se.

 

— Vejo que sim; está bem. Quem quer que seja, não terá nunca a minha aprovação. Ou o Dr. Amaral, ou nenhum mais.

 

— Nesse caso, nenhum mais, respondeu ela.

 

— Veremos.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

Não percamos tempo. Beatriz não casou com o noivo que lhe davam; não aceitou outro que apareceu no ano seguinte; mostrou uma tal firmeza e decisão, que encheu o pai de assombro.

 

Assim se passaram os dois primeiros anos. A família de Eduardo voltou da Europa; este ficou, para tornar quando acabasse os estudos. “Se me parecesse, ia já (dizia ele em uma carta à moça), mas quero conceder isto, ao menos, a meu pai: concluir os estudos.”

 

Que ele estudava, é certo, e não menos certo é que estudava muito. Tinha vontade de saber, além do desejo de cumprir, naquela parte, as ordens do pai. A Europa oferecia-lhe também alguns recreios de diversa espécie. Ele ia nas férias à França e à Itália, ver as belas-artes e os grandes monumentos. Não é impossível que, algumas vezes, incluísse no capítulo das artes e na classe dos monumentos algum namoro de ordem passageira; creio mesmo que é negócio liquidado. Mas, em que é que essas pequenas excursões em terra estranha lhe faziam perder o amor da pátria, ou, menos figuradamente, em que é que essas expansões miúdas do sentimento diminuíam o número e a paixão das cartas que mandava a Beatriz?

 

Com efeito, as cartas eram as mesmas de ambos os lados, escritas com igual ardor às das primeiras semanas, e nenhum outro método. O método era o de um diário. As cartas eram compostas dia por dia, como uma nota dos sentimentos e dos pensamentos de cada um deles, confissão de alma para alma. Parecerá admirável que este uso fosse constante no espaço de um, dois, três anos; que diremos cinco anos, sete anos! Sete, sim, senhora; sete, e mais. Mas fiquemos nos sete, que é a data do rompimento entre as duas famílias.

 

Não importa saber por que brigaram as duas famílias. Brigaram; é o essencial. Antes do rompimento desconfiaram os dois pais que os filhos tinham-se jurado alguma coisa antes da separação, e não estavam longe de concordar em que se casassem. Os projetos de cada um deles tinham naufragado; eles estimavam-se; nada havia mais natural do que aliarem-se mais intimamente. Mas brigaram; veio não sei que incidente estranho, e a amizade converteu-se em ódio.

 

Naturalmente um e outro pensaram logo na possibilidade do consórcio dos filhos, e trataram de afastá-los. O pai de Eduardo escreveu a este, já diplomado, dizendo que o esperasse na Europa; o de Beatriz inventou um pretendente, um rapaz desambicioso que jamais pensaria em pedi-la, mas que o fez, animado pelo pai.

 

— Não, foi a resposta de Beatriz.

 

O pai ameaçou-a; a mãe pediu-lhe por tudo o que havia de mais sagrado, que aceitasse o noivo; mostrou-lhe que eles estavam velhos, e que ela precisava ficar amparada. Foi tudo inútil. Nem esse pretendente nem outros que vieram, uns por mão do pai, outros por mão alheia. Beatriz não iludia ninguém, ia dizendo a todos que não.

 

Um desses pretendentes chegou a crer-se vencedor. Tinha qualidades pessoais distintas, e ela não desgostava dele, tratava-o com muito carinho, e pode ser que sentisse algum princípio de inclinação. Mas a imagem de Eduardo vencia tudo. As cartas dele eram o prolongamento de uma alma querida e amante; e aquele candidato, como os outros, teve de recuar vencido.

 

— Beatriz, vou morrer dentro de poucos dias, disse-lhe um dia o pai; por que me não dás o gosto de deixar-te casada?

 

— Qual, morrer!

 

E não respondia à outra parte das palavras do pai. Eram já passados nove anos da separação. Beatriz tinha então vinte e sete. Via chegar os trinta com tranqüilidade e a pena na mão. Não seriam já diárias as cartas, mas eram ainda e sempre pontuais; se algum paquete não as trazia ou levava, a culpa era do correio, não deles. Realmente, a constância era digna de nota e admiração. O mar separava-os, e agora o ódio das famílias; e além desse obstáculo, deviam contar com o tempo, que tudo afrouxa, e as tentações que eram muitas de um e outro lado. Mas apesar de tudo, resistiam.

 

O pai de Beatriz morreu dali a algumas semanas. Beatriz ficou com a mãe, senhora achacada de moléstias, e cuja vida naturalmente não iria também muito longe. Esta consideração deu-lhe ânimo para tentar os últimos esforços, e ver se morria deixando a filha casada. Empregou os que pôde; mas o resultado não foi melhor.

 

Eduardo na Europa sabia tudo. A família dele trasladou-se para lá, definitivamente, para o fim de o reter, e tornar impossível o encontro dos dois. Mas, como as cartas continuavam, ele sabia tudo o que se passava no Brasil. Teve notícia da morte do pai de Beatriz, e dos esforços empregados por ele e depois pela mulher, viúva, para estabelecer a filha; e soube (pode imaginar-se com que satisfação) da resistência da moça. O juramento da noite de 23 de abril de 1861 estava de pé, cumprido, observado à risca, como um preceito religioso, e, o que é mais, sem que lhes custasse mais do que a pena da separação.

 

Na Europa, morreu a mãe de Eduardo; e o pai teve um instante idéias de voltar ao Brasil; mas era odiento, e a idéia de que o filho podia então casar com Beatriz, fixou-o em Paris.

 

“Verdade é que ela não deve estar muito tenra...” dizia ele consigo.

 

Eram então passados quinze anos. Passaram-se mais alguns meses, e a mãe de Beatriz morreu. Beatriz ficou só, com trinta e quatro anos. Teve idéia de ir para Europa, com alguma dama de companhia; mas Eduardo contava então vir ao Rio de Janeiro arranjar alguns negócios do pai, que estava doente. Beatriz esperou; mas Eduardo não veio. Uma amiga dela, confidente dos amores, dizia-lhe:

 

— Realmente, Beatriz, você tem uma paciência!

 

— Não me custa nada.

 

— Mas esperar tanto tempo! Quinze anos!

 

— Nada mais natural, respondia a moça; eu suponho que estamos casados, e que ele anda em viagem de negócios. É a mesma coisa.

 

Essa amiga estava casada; tinha já dois filhos. Outras amigas e companheiras de colégio tinham casado também. Beatriz era a única solteira, e solteira abastada e pretendida. Agora mesmo, não lhe faltavam candidatos; mas a fiel Beatriz conservava-se como dantes.

 

Eduardo não veio ao Brasil, segundo contava, nem naquele nem no ano seguinte. As doenças do pai agravaram-se, tornaram-se longas; e nisto correram mais dois anos. Só então o pai de Eduardo morreu, em Nice, no fim de 1878. O filho arranjou os primeiros negócios e embarcou para o Rio de Janeiro.

 

— Enfim!

 

Tinham passado dezoito anos. Posto que eles tivessem trocado os retratos, mais de uma vez durante esse lapso de tempo, acharam-se diferentes do que eram na noite da separação. Tinham passado a idade dos primeiros ardores; o sentimento que os animava era brando, embora tenaz.

 

Vencida a letra, era razoável pagar; era mesmo obrigatório. Trataram dos papéis; e dentro de poucas semanas, nos fins de 1878, cumpriu-se o juramento de 1861. Casaram-se, e foram para Minas, donde voltaram três meses depois.

 

— São felizes? perguntei a um amigo íntimo deles, em 1879.

 

— Eu lhe digo, respondeu esse amigo observador. Não são felizes nem infelizes; um e outro receberam do tempo a fisionomia definitiva, apuraram as suas qualidades boas e não boas, deram-se a outros interesses e hábitos, colheram o fastio e a marca da experiência, além da surdina que os anos trazem aos movimentos do coração. E não viram essa transformação operar-se dia por dia. Despediram-se uma noite, em plena florescência da alma, para encontrarem-se carregados de fruto, tomados de ervas parasitas, e com certo ar fatigado. Junte a isto o despeito de não achar o sonho de outrora, e o de o não trazer consigo; pois cada um deles sente que não pode dar a espécie de cônjuge que aliás deseja achar no outro; pense mais no arrependimento possível e secreto de não terem aceitado outras alianças, em melhor quadra; e diga-me se podemos dizê-los totalmente felizes.

 

— Então infelizes?

 

— Também não. Vivem, respeitam-se; não são infelizes, nem podemos dizer que são felizes. Vivem, respeitam-se, vão ao teatro...


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 07 de novembro de 2021

AS SINAGOGAS (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO

AS SINAGOGAS

João do Rio

 

 

Ontem, 14 de Hadar de 1664, eu assisti às cerimônias do carnaval nas sinagogas da Sion fluminense. O esperto Mardocheu, que tudo conseguira com a perfumada beleza de Ester, ao comunicar de Suza a sua luminosa vitória, ordenara para todo o sempre diversões e alegria nesse dia. Os filhos de Israel obedecem e, como a pátria de Israel é o mundo, nenhuma cidade ainda sofreu por não festejar data tão preciosa. No Rio, também ontem, cerca de quatro mil famílias divertiram, riram e beberam. Divertiram com discrição, é certo, beberam sem violência, riram com calma, exatamente porque a gente do país de Judá tem a tristeza nalma e a tenacidade na vida.

As festas do peisan foram copiadas dos persas pelos romanos. Os povos modernos copiaram dos romanos, aumentando os dias de prazer e destruindo a intenção cultual da cerimônia. Quem assistiu à orgia continua dos batuques carnavalescos, talvez não possa compreender como cerca de dez mil judeus comemoram o 14 de Hadar, com tanta modéstia e tanta correção.

Esses dez mil judeus divertiram-se, trocaram presentes, cantaram, ouviram mais uma vez a história da linda Ester, lida pela hhasàn nos sagrados livros, e cada um recolheu um momento o espírito para pensar em Mardocheu, no rei Assuéro e na maneira por que 60 milhões de antepassados foram salvos da morte e do patíbulo.

Entretanto, pela vasta cidade, ninguém desconfiou que tanta gente tivesse a alegria nalma.

É que os olhos de Israel são receosos, sempre curvados ao sopro das perseguições, sempre sábios. Festejaram sem que ninguém desse por tal...

O Rio tem uma vasta colônia semita ligada à nossa vida econômica, presa ao alto comércio, com diferentes classes sem relações entre elas e diferentes ritos.

Há os judeus ricos, a colônia densa dos judeus armênios e a parte exótica; a gente ambígua, os centros onde o lenocínio, mulheres da vida airada e caftens, cresce e aumenta; há israelitas franceses, quase todos da Alsácia Lorena; marroquinos, russos, ingleses, turcos, árabes, que se dividem em seitas diversas, e há os Asknenazi comuns na Rússia, na Alemanha, na Áustria, os falachas da África, os rabbanitas, os Karaitas, que só admitem o Antigo Testamento, os argônicos e muitos outros.

Os semitas ricos não têm no Rio ligação com os humildes nem os protegem como em Paris e Londres os grandes banqueiros da força de Hirsch e dos Rottchilds. São todos negociantes, jogam na Bolsa, veraneiam em Petrópolis, vestem-se bem.

Muitos são joalheiros, com a arte de fazer brilhar mais as jóias e de serem amáveis. Franceses, ingleses, alemães, o culto desses cavalheiros apresentáveis e mundanos reveste-se de uma discrição absoluta. Uns praticam o culto íntimo, outros não precisam do hhasan e fazem juntos apenas as duas grandes cerimônias: a Ion-Kipur ou dia das lamentações e do perdão, e o ano novo ou Rasch-Haschana.

Algumas sinagogas já têm sido estabelecidas nas salas de prédios centrais para receber esses senhores. Atualmente não há nenhuma, estando na Europa quem mais se preocupava com isso.

As riquezas das nações estão nas mãos dos judeus, brada o anti-semita Drumont, ao vociferar os seus artigos. A nossa também está, não porém nas dos judeus daqui, que são apenas homens ricos bem instalados nos bancos e na vida.

O outro meio, extraordinariamente numeroso, é onde vicejam o vício e a inconsciência, os rufiões e as simples mulheres que fazem profissão do meretrício. Essa gente vem em grandes levas da Áustria, da Rússia, de Marselha, de Buenos Aires, e habita na maior parte na praça Tiradentes, nas ruas Luís de Camões, Tobias Barreto, Sete de Setembro, Espírito Santo, Senhor dos Passos e nas ruelas transversais à rua da Constituição. Comem quase todas numas pensões especiais dessas ruas equivocas, pensões sujas em que se reúnem homens e mulheres discutindo, bradando, gritando. O alarido é às vezes infernal, porque, quase sempre numa briga de casal, ela explorada por ele, todos intervêm, dão razão, estabelecem contendas. Nestas casas guardam não raro uma sala para costura e outra destinada à sinagoga.

Há mais mulheres do que homens. Os homens são inteligentes, espertos, sabem e explicam com clareza, as mulheres são profundamente ignorantes da própria crença. Quase nenhuma sabe a data exata das festas, a sua duração, a sua razão de ser. É interessante interrogá-las, gastar algumas horas visitando as alfurjas apartadas desta babel americana.

- Então vai à sinagoga?

- Oh! aqui não há nada direito; em Buenos Aires sim.

- Mas você vai sempre a estas reuniões?

- Vou. Então podia deixar de ir?

- Por que vai?

- Porque tenho que ir. Quando saio de casa, deixo uma vela acesa.

- Por quê?

- É costume.

- A festa do ano novo quantos dias dura?

Uma nos diz três dias, outra oito, outras respondem vagamente. Entretanto, russas, inglesas, francesas fazem questão de se dizer judias e obedecem á fé. No dia do Kipur, ou dia do perdão, do arrependimento e das lamentações, fecham-se os prostíbulos, todas elas vão às sinagogas improvisadas soluçar os pecados do ano inteiro, os pecados sem conta. Às 4 da tarde fazem uma refeição sem pão, sem carne e desde que no céu palpita a primeira estrela, até ao outro dia, quando de novo Lúcifer brilha, não se alimentam mais, limpas de todos os desejos e de todas as necessidades humanas.

Estes judeus reúnem-se em qualquer parte, o mais letrado lê a história no tópico necessário, e choram e riem ou cantam, conforme é necessário, crentes ignorantes. As sinagogas ambulantes estão cada ano numa rua. As últimas reuniões deram-se na rua do Espírito Santo, na rua da Constituição, e na rua do Hospício. É chefe do culto, dirigindo os convites e organizando as festas, uma meretriz, a Norma, que ultimamente introduziu no Rio o entôlage, o roubo aos fregueses.

A outra sociedade, a mais densa, é a dos armênios e dos marroquinos. Essa fez-se de grandes levas de imigração para o amanho de terra, em que o Brasil gastou muito dinheiro. Os agentes em Gibraltar aceitavam não só famílias como homens solteiros. As colônias não deram resultados; no Iguaçu os colonos fugiam aos poucos, e em outros lugares foi impossível estabelecê-los, porque o povo até os julgava com chifres de luz como Moisés.

Os judeus árabes apareceram por aqui na miséria, mas aos poucos, pela própria energia, tomaram o comércio ambulante, viraram camelots, montaram armarinhos e acabaram prosperando. Há ruas inteiras ocupadas por eles, naturalmente ligados aos turcos maometanos, aos gregos cismáticos e a outras religiões e ritos degenerados, que pululam nos quarteirões centrais.

Nas levas de imigrantes vieram homens inteligentes e cultos. O hhasan David Hornstein é um exemplo. Esse homem cursou doze anos a Universidade Talmúdica, é poliglota, professor, correspondente de vários jornais escritos em hebreu e rabino diplomado da religião judaica. David estava na Palestina, na colônia Rishon l'Sion, uma espécie de companhia que o falecido barão B. Rothschild instalara em terrenos comprados ao sultão, com grande ódio dos beduínos. Nessa colônia havia médicos, advogados, russos niilistas. O resultado foi a sublevação, que o amável barão, depois da morte do administrador, acabou, dispersando-os amotinados. Vinte e dois desses homens, entre os quais David e o erudito Kulekóf, que acabou rico em São Paulo, partiram para Beirute, depois para Paris. Hirsch deu-lhe 500 francos, fazendo um discurso camarário.

Os judeus revolucionários foram para Gibraltar e aí embarcaram para o Brasil. Todos acabaram com fortuna, menos o rabino, que ficou ensinando línguas, porque o sacerdote judeu não vive do seu culto.

E esta parte densa da colônia judaica que tem duas sinagogas estáveis, uma na rua Luís de Camões, 59 e outra na rua da Alfândega, 369.

A sinagoga da rua Luis de Camões é do rito argônico. Entra-se num corredor sujo, onde crianças brincam. Aos fundos fica a residência da família. Na sala da frente está o templo, que quase sempre tem camas e redes por todos os lados.

As tábuas de Moisés negrejam na parede; a um canto está o altar, e na extremidade oposta fica a arca onde se guarda a sagrada história, resumo de toda a ciência universal, escrita em pele de carneiro e enrolada em formidáveis rolos de carvalho. Só nos dias solenes se transforma o templo. David Hornstein faz as cerimônias no meio da sala, no altar, envolto na sua túnica branca riscada nas extremidades de vivos negros, com um gorro de veludo enterrado na cabeça. Muito míope, o hhasan é acompanhado por três pequenos que entoam o coro.

No altar David retira a capa de veludo roxo dos rolos, abre-os da esquerda para a direita. Ao lado guiam-lhe a leitura com uma mão de prata. Aí, imóvel, sem se mexer, faz a oração secreta para que Deus o atenda e o perdoe de ser enviado e ousar rogar pelo seu povo.

Jeová naturalmente atende e perdoa. O hhasan infatigável já tem desenhado cento e cinqüenta sepulturas, já praticou a circuncisão em cerca de setecentos pequenos, já batizou, mergulhando em três banhos consecutivos, muitas meninas, já casou muitos judeus e prospera falando dos nossos políticos e citando os deputados com familiaridade.

A sinagoga da rua da Alfândega é muito mais interessante. Ocupa todo o sobrado do prédio 363, que é vulgar e acanhado, como em geral os do fim daquela rua. Sobe-se uma escada íngreme, dá-se num corredor que tem na parede as tábuas de Moisés.

Aí vive outro Moisés, o hhasan, com uma face espanhola e um ar bondoso. Na sala de jantar estão as paredes ornadas de símbolos, representando as doze tribos de Judá, e aí passam Moisés, ela de lenço na cabeça, ele com um chapéu de palha velho.

A sala da frente é destinada às cerimônias. Quase não se pode a gente mover, tão cheia está de bancos. No meio colocam o altar de vinhático envernizado, em que o hhasan fica de pé lendo ou cantando.

Nas paredes apenas as tábuas, ao fundo a arca com cortinas de seda, onde se guarda o sagrado livro. Do teto pendem presos de correntes brancas vasos de vidros, cheios de água onde 1amparinas colossais queimam crepitando. Sobre o altar desce o lustre de cristal, chispando luzes nos seus múltiplos pingentes. Além de Moisés, há outro sacerdote, Salomão, tão devoto, que é o hhassidim...

Foi nesta sinagoga, indicada por um negro falacha, cuja origem vem dos tempos de Salomão e da rainha de Sabá, que eu assisti ao peisan.

- Oh! eles são bons e se protegem uns aos outros - dizia o negro assombroso. - A vida do judeu pobre é a do pouco comer, do pouco gozar, do muito sofrer. Agora, fizeram a Irmandade de Proteção Israelita.

Eu olhava a turba colorida, a série de perfis exóticos, de caras espanholas e árabes, de olhos luminosos brilhando à luz dos lampadários. Havia gente morena, gente clara; mulheres vestidas à moda hebraica de túnica e alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus enterrados na cabeça, caras femininas de lenço amarrado na testa e crianças lindas. O hhasan, paramentado, lia solenemente e toda aquela esquisita iluminação de baldes de vidro, fazendo halos de luz e mergulhando na água translúcida as mechas das lamparinas, aquele lustre, onde as luzes ardiam, eram como uma visão de sonho estranho.

Enquanto o hhasan lia, com os pés juntos, sem mover sequer os olhos, com uma voz ácida tremendo no ar, todos tinham nas faces sorrisos de satisfação.

As cidades serão destruídas a ferro e fogo se não festejarem este dia no mês de Hadar. Nós festejamos. E diante das lâmpadas, para aquele punhado de judeus, a história desenrolava a maravilha de Assuero, que reinou desde a Índia até à Etiópia sobre cento e vinte cidades. Era Suza, a capital maravilhosa, Ester suave e cândida, substituindo a rainha Vashi, Mardocheu sentado à porta do templo sem adorar Aman, a quem Assuero tudo dava, Aman forçado a levar Mardocheu em triunfo, tudo por causa de uma mulher trêmula e tímida, que desmaiava, salvando 60 milhões de judeus e mandava matar quinhentos inimigos, pedindo concessões idênticas para as províncias.

Era a data dessa matança; festejava-se o dia em que Aman foi para o patíbulo que preparara para Mardocheu, e o momento em que se espatifara Arisai Frasandata, Delfon, Ebata, Forata, Adalia, Aridata, Fermesta, Aridai e Jerata.

Mas daquele livro sagrado, entre aquelas iluminações, a fé destilava a suprema delícia. Era como se cada palavra recordasse os banquetes dados aos príncipes nos átrios do palácio ornado de pavilhões da cor do céu da cor do jacinto e da cor da açucena; era como se cada período abrisse a visão das colunas de mármore, dos leitos de prata e ouro e dos pavimentos embutidos, onde esmeraldas rolavam...

Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de sinagoga, no fim da rua da Alfândega.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 06 de novembro de 2021

NO MAR (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

NO MAR

Raul Pompéia

 

 

 

I

 

Em volta de nós alargava-se um círculo d'água contornado pelo horizonte.

Era o Atlântico.

A noute caíra, uma noute esplêndida. O céu, recamado de cetim azul, cavava-se no alto, profundo e luminoso. Umas estrelas, de luz mortiça apareciam cintilando como cabeças de alfinete de prata e a lua desfigurada e enorme pela refração saía do oriente.

Havia oito dias que estávamos no mar, e cada noute fora para mim um espetáculo incomparável; nenhuma, porém, como a última. A pureza da atmosfera, o sossego das ondas, a tranqüilidade de bordo e o luar casavam-se tanto com o bem-estar de espírito em que me achava que eu me sentia impregnado de romantismo.

Estava sentado na coberta do vapor, sobre um caixão, que tinha (lembro-me ainda) as iniciais C.R. borradas com tinta preta. Levantei-me e me acerquei da amurada.

Firmei no parapeito os cotovelos e pus-me a olhar e a meditar. Por um tapete deslumbrante desenrolado por cima d'água, vinham até o vapor os raios de um luar branco delicioso.

Comecei a ver nesse tapete uns rostos conhecidos, digo, uns semblantes que havia gravados no meu coração. Eram as minhas recordações.

Reconhecia minha mãe, reconhecia meu pai, reconhecia meus irmãos.

Pensei neles e refleti que, dentro de uma semana, estaria eu na Europa, longe, longe dos seus carinhos. Entristeci-me. Súbito, porém, como que senti no cérebro uma chuva de estrelas; principiei a distinguir em meio da noute as grandezas que eu ia encontrar no velho mundo, tão novo para mim. O Brasil e a Europa apresentavam-se distintos na esfera das minhas reflexões. De uma parte, um hemisfério escuro, mergulhado na sombria tristeza da saudade; de outra, um hemisfério radioso iluminado pela minha sede do desconhecido.

O tempo que levei nessas cismas não sei. Fato é que, ao despertar-me delas, vi a lua elevada bastante e o isolamento em torno de mim. Os passageiros, que por ali andavam passeando ao luar, se tinham recolhido; um ou outro marinheiro necessário às manobras mostrava-se, neste ou naquele ponto, como uma sombra...

Ouvi, então, um suspiro abafado.

Cousa esquisita! Um suspiro ali pertinho, um suspiro que me pareceu escapado a um peito amante e a uns lábios formosos de moça poética...

Voltei-me para ver quem era.

A uns oito passos de mim, estava alguém, encostado à amurada como eu e olhando para o mar como eu estivera. Sonhei logo mil romances. O luar clareava um rosto de mulher, não deixando contudo ver-lhe a beleza. Do corpo, pouca cousa aparecia, oculto como se achava na sombra da amurada. Dirigi-me para a suspiradora.

Ela não mostrou perceber o meu movimento. Possível me foi examiná-la.

Era uma linda jovem de dezesseis anos presumíveis. Tinha uns olhos grandes, encantadores, voltados para o mar e uma pequenina mão encostada ao veludo rosado da face.

Trajava de azul, pareceu-me.

Lembrei-me de que, nas minhas cismas, não se me afigurava um rosto como o dessa visão, desse anjo.

É que meu coração não fora ainda penetrado pelas ternuras do amor e eu me habituara no Brasil a ver, nas mulheres, mulheres. Entretanto, naquela que ali estava eu via um anjo.

Esse anjo voltou os olhos para mim.

Vi de frente o mais belo rosto de menina que pudera idealizar.

Tinha cabelos castanhos e a tez entre o moreno e o alvo, isto é, da cor mais simpática do mundo.

O anjo sorriu-me furtivamente...

Eu vira aquela mulher uma única vez a bordo. Fora no dia seguinte ao do nosso embarque. Notara-lhe a beleza simplesmente. Desta vez, entretanto, um interesse excepcional levava-me para ela.

Sorri-me ao seu sorriso.

A linda criança envergonhou-se. Baixou o rosto. Eu estendi o braço e tomei-lhe a cintura. Ela não se ofendeu.

- Como se chama o senhor? perguntou com a voz comprida, balbuciante.

- Júlio, disse eu... E a senhora?

- Júlia, disse-me ela.

Oh! que não sei como referir ao leitor a doçura que me derramou no peito esta coincidência.

Júlia gozou também, com isso. Senti-lhe o braço redondo apertado pela manga do vestido cingir-me o pescoço com força. O meu corpo e o dela estavam achegados um do outro. As palpitações do meu coração encontravam-se com as palpitações do seu coração.

Saboreei num instante todas as alegrias de um amante feliz; e perante a presença da lua, como um namorado da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa Júlia um beijo... demoradamente...

Mais um aperto de mão e separei-me do meu anjo...

 

II

 

Dous longos dias se passaram, sem que eu tornasse a ver a minha Júlia, o meu primeiro amor...

Comecei a ter remorsos de não haver perguntado à mocinha quem eram seus pais, quem era ela, dizendo-lhe quem era eu também. Não quis informar-me para não despertar suspeitas. Resolvi esperar.

Debalde porém, postei-me à noute no lugar da minha entrevista.

Júlia não voltou.

Na terceira noute depois do momento mais feliz que tive na minha viagem, vi um homem dirigir-se para mim. Um marinheiro.

Vinha sério e como que tímido.

Cumprimentou-me, cumprimentei-o.

Eu estava à proa do vapor, vendo as ondas passearem à luz do luar, que continuava admirável como na noute de meu beijo. Era tarde.

- Sr. Júlio, disse o marujo, chamando-me pelo meu nome, sem querer, eu o vi, noutro dia, beijar uma moça... Queira acompanhar-me... vai ver uma cousa interessante talvez para o senhor...

Fui com o marinheiro para o tombadilho.

- Fique aqui e espere, mandou ele, indicando a entrada do beliche de um meu amigo de bordo... solteiro e folião...

Mal acabara o homem de falar, vi sair do beliche uma mulher...

Júlia!

O marinheiro olhava-me com um ar compadecido. Juro que tive ímpetos de dar uma bofetada neste homem de bem.

 

III

 

Momentos depois, pensa o leitor que estava eu resolvido a suicidar-me?...

Dei uma gargalhada.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 05 de novembro de 2021

SUJE-SE. GORDO! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SUJE-SE, GORDO!

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

- Fui sempre contrário ao júri, - disse-me aquele amigo, - não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, - proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, - chamava-se Lopes, - replicou com aborrecimento:

- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer Sujar-se? Suje-se gordo!

"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

- Como se chama? perguntou o presidente.

- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com um pontinha de riso nos cantos da boca.

Seguiu-se a leitura do processo. Era um falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito. os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes. os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Enquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: "Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer- lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

v


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 04 de novembro de 2021

REVELAÇÃO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

REVELAÇÃO

Humberto de Campos

 

 

 

"A recordação de um primeiro beijo de homem, mesmo quando recebido contragosto, transforma-se no espírito da mulher virgem em desejo tenaz, absorvente, imperioso de o repetir, de renovar a sensação daquele delicioso pecado” — COLETTE WILLY

  

Com os olhos vermelhos de chorar, e com tremores de susto por todo o corpo delicado, a loura Mariazinha penetrou no gabinete do pai, em cujos braços se atirou, desatando em soluços. Trazido um copo d’água, e serenados os seus nervos exaltados, ainda, pelo terror, a moça contou, a custo, com o rosto nas mãos, o caso inominável.

 

— Eu vinha, — soluçava, entrecortando as palavras, — eu vinha da aula de música, sozinha, com a pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto da praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas, e, pondo o braço no meu pescoço, curvou-me para trás, e...

 

— E... — interrompeu o pai, com a agonia no coração.

 

E a moça, terminando, com dificuldade:

 

— Deu-me um beijo na boca, e correu, no rumo da praia!

 

O caso havia sido, realmente, assim, mas o Comendador insistiu na explicação:

 

— E tu não o conheces?

 

— Não, senhor. É um rapaz alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não sei quem é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei. Intimamente aborrecido com aquela aventura da filha, o Comendador deliberou punir o atrevido, prometendo à menina, entre carícias afetuosas:

 

— Deixa estar, sossega. Esse patife há de ser castigado. De agora em diante eu passarei a acompanhar-te, e, onde o encontrares, eu quero que mo apontes.

 

E, entre dentes:

 

— Patife!

 

Passada a primeira emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a violência da pureza sem simulações, começou o instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da moça, entre cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na ocasião. À medida, porém, que o tempo se passava, parecia-lhe que aquela carícia brutal aflorava, de novo, na sua boca, numa fome angustiosa de repetição. Debalde, passando a mãozinha pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela lembrança. Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e de modo tal que ela própria já buscava conservá-la no pensamento, como se conserva uma flor encantada, cuja árvore se viu morrer no caminho.

 

No dia seguinte, após uma noite de angústias deliciosas, em que se casavam, substituindo-se, o pudor e o desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido, que a mocinha ouviu, recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o lindo chapéu de palha de Itália, o convite paterno:

 

— Mariazinha, estás pronta?

 

— Já vou, papai! — respondeu a moça, de dentro, dando os últimos retoques na "toilette", diante do toucador.

 

Durante uma semana o Comendador acompanhou a filha, acima e abaixo, da cidade até o palacete, e do palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu insolente desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com essas idas e vindas fatigantes, mais padecia, ainda, a menina, cujos olhos se foram cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de insônia.

 

Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a um passeio na praia Mariazinha tomou um susto, que a fez parar, branca, de cera, no gramado por onde ia: diante dela, em um grupo de rapazes, estava, de pé, o estroina, que lhe acordara a alma adormecida na inocência, furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso daquele ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio, não se conteve:

 

— É aquele, papai! gritou, batendo as mãos geladas pela emoção.

 

E, atirando-se ao pescoço do rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente, desesperadamente, de beijos...

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 02 de novembro de 2021

O LAPSO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O LAPSO

Machado de Assis

 

 

 

E vieram todos os officiaes... e o resto do povo, desde o pequeno
       até ao grande.
       E disseram ao propheta Jeremias: Seja aceita a nossa supplica
       na tua presença.
                                               JEREM. XLII, 1, 2.


Não me perguntem pela familia do Dr. Jeremias Halma, nem o que e que elle veiu fazer ao Rio de Janeiro, n'aquelle anno de 1768, governando o Conde de Azambuja, que a principio se disse o mandára buscar; esta versão durou pouco. Veiu, ficou e morreu com o seculo. Posso affirmar que era medico e hollandez. Viajára muito, sabia toda a chimica do tempo, e mais alguma; fallava correntemente cinco ou seis linguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma theoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos therapeuticos, e outras muitas cousas, que o recommendam á nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso. Ao contrario, a vida e a pessoa d'elle eram como a casa que um patricio lhe arranjou na rua do Piolho, casa singelissima, onde elle morreu pelo natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem do conto. Vamos ao principio.

No fim da rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Thomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas inducções, vereador da camara. Vereador ou não, este Thomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha tambem dividas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar os seus atrazos, a velhacaria tambem; mas quem opinasse por uma ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguem a tarefa de escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do seculo passado, um homem que, por velhacaria ou deleixo, deixava de pagar aos credores. A tradição affirma que este nosso concidadão era exacto em todas as cousas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que usava pagar), não lhe regateavam provas de affeição e apreço: e, se é certo que foi vereador, como tudo faz crer, póde-se jurar que o foi a contento da cidade.

Mas então...? La vou; nem é outra a materia do escripto, senão esse curioso phenomeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Thomé Gonçalves, trajado com o habito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do pallio, e caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguem. Nas janellas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na esquina do becco das Cancellas (a procissão descia a rua do Hospicio), depois de ajoelhados, resados, persignados e levantados, perguntaram um ao outro, se não era tempo de recorrer á justiça.

— Que é que me póde acontecer? dizia um d'elles. Se brigar commigo, melhor; não me levará mais nada de graça. Não brigando, não lhe posso negar o que me pedir, e na esperança de receber os atrasados, vou fiando... Não, senhor; não póde continuar assim.

— Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa da minha dona, que é medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa tão importante... Mas eu como ou bebo da importancia dos outros? E as minhas cabelleiras?

Este era um cabelleireiro da rua da Valla defronte da Sé, que vendera ao Thomé Gonçalves dez cabelleiras, em cinco annos, sem lhe haver nunca um real. O outro era alfaiate, e ainda maior credor que o primeiro. A procissão passára inteiramente; elles ficaram na esquina, ajustando o plano de mandar os meirinhos ao Thomé Gonçalves. O cabelleireiro advertiu que outros muitos credores só esperavam um signal para cahir em cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a conveniencia de metter na conjuração o Matta-sapateiro, que vivia desesperado. Só a elle devia o Thomé Gonçalves mais de oitenta mil reis. N'isso estavam, quando por traz d'elles ouviram uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando porque motivo conspiravam contra um homem doente. Voltaram-se, e, dando com o Dr. Jeremias, desbarretaram-se os dois credores, tornados de profunda veneração; em seguida disseram que tanto não era doente o devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma das varas do pallio.

— Que tem isso? interrompeu o medico; ninguem lhes diz que está doente dos braços, nem das pernas...

— Do coração? do estomago?

— Nem coração, nem estomago, respondeu o Dr. Jeremias. E continuou, com muita doçura, que se tratava de negocios altamente especulativos, que não podia dizer alli, na rua, nem sabia mesmo se elles chegariam a entendel-o. Se eu tiver de pentear uma cabelleira ou talhar um calção— accrescentou para os não affligir,— é provavel que não alcance as regras dos seus officios tão uteis, tão necessarios ao Estado... Eh! eh! eh!

Rindo assim, amigavelmente cortejou-os e foi andando. Os dois credores ficaram embascados. O cabelleireiro foi o primeiro que fallou, dizendo que a noticia do Dr. Jeremias não era tal que os devesse afrouxar no proposito de cobrar as dividas. Se até os mortos pagam, ou alguem por elles, reflexionou o cabelleireiro, não é muito exigir aos doentes igual obrigação. O alfaiate, invejoso da pilheria, fel-a sua cosendo-lhe este babado:— Pague e cure-se.

Não foi dessa opinião o Matta-sapateiro, que entendeu haver alguma razão secreta nas palavras do doutor Jeremias, e propoz que primeiro se examinasse bem o que era, e depois se resolvesse o mais idoneo. Convidaram então outros credores a um conciliabulo, no domingo proximo, em casa de uma D. Anninha, para as bandas do Rocio, a pretexto de um baptizado. A precaução era discreta, para não fazer suppor ao intendente da policia que se tratava de alguma tenebrosa machinação contra o Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em capotes, e, como a illuminação publica só veiu a principiar com o vice-reinado do conde de Rezende, levava cada qual uma lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim ao conciliabulo um rasgo pintoresco e theatral. Eram trinta e tantos, perto de quarenta— e não eram todos.

A theoria de Ch. Lamb ácerca da divisão do genero humano em duas grandes raças, é posterior ao conciliabulo do Rocio; mas nenhum outro exemplo a demonstraria melhor. Com effeito, o ar abatido ou afflicto d'aquelles homens, o desespero de alguns, a preoccupação de todos, estavam de antemão provando que a theoria do fino ensaista é verdadeira, e que das duas grandes raças humanas,— a dos homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado,— a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as maneiras rasgadas e francas da segunda, _the open, trusting, generous manners of the other_. Assim que, n'aquella mesma hora, o Thomé Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os vinhos e gallinhas que comprára fiado; ao passo que os credores estudavam ás escondidas, com um ar desenganado e amarello, algum meio de rehaver o dinheiro perdido.

Logo foi o debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espiritos. Uns inclinavam-se á demanda, outros á espera, não poucos aceitavam o alvitre de consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis partidarios d'este parecer não o defendiam senão com a intenção secreta e disfarçada de não fazer cousa nenhuma; eram os servos do medo e da esperanca. O cabelleireiro oppunha-se-lhe, e perguntava que molestia haveria que impedisse um homem de pagar o que deve. Mas o Matta-sapateiro:— «Sr. compadre, nos não entendemos d'esses negocios; lembre-se que o doutor é estrangeiro, e que nas terras estrangeiras sabem cousas que nunca lembraram ao diabo. Em todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais.» Venceu este parecer; deputaram o sapateiro, o alfaiate e o cabelleireiro para entenderem-se com o Dr. Jeremias, em nome de todos, e o conciliabulo dissolveu-se na patuscada. Terpsychore bracejou e perneou diante d'elles as suas graças jocundas, e tanto bastou para que alguns esquecessem a ulcera secreta que os roia. _Eheu! fugaces..._ Nem mesmo a dor é constante.

No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os tres credores, entre sete e oito horas da manha. «Entrem, entrem...» E com o seu largo carão hollandez, e o riso derramado pela bocca fóra, como um vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande medico veiu em pessoa abrir-lhes a porta. Estudava n'esse momento uma cobra, morta de vespera, no morro de Santo Antonio; mas a humanidade, costumava elle dizer, é anterior á sciencia. Convidou os tres a sentarem-se nas tres unicas cadeiras devolutas; a quarta era a d'elle; as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas de objectos de toda a casta.

Foi o Matta-sapateiro quem expoz a questão; era dos tres o que reunia maior cópia de talentos diplomaticos. Começou dizendo que o engenho do Sr. doutor ia salvar da miseria uma porção de familias, e não seria a primeira nem a ultima grande obra de um medico que, não desfazendo nos da terra, era o mais sabio de quantos cá havia desde o governo de Gomes Freire. Os credores de Thomé Gonçalves não tinham outra esperança. Sabendo que o Sr. doutor attribuia os atrazos d'aquelle cidadão a uma doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes de qualquer recurso á justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero. Era isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores; desejavam saber se era verdade que, além de outros achaques humanos, havia o de não pagar as dividas, se era mal incuravel, e, não o sendo, se as lagrimas de tantas familias...

— Ha uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente commovido, um lapso da memoria; o Thomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de proposito que elle deixa de saldar as contas; é porque esta idéa de pagar, de entregar o preço de uma cousa, varreu-se-lhe da cabeça. Conheci isto ha dois mezes, estando em casa d'elle, quando alli foi o prior do Carmo, dizendo que ia «pagar-lhe a fineza de uma visita». Thomé Gonçalves, apenas o prior se despediu, perguntou-me o que era _pagar_; accrescentou que, alguns dias antes, um boticario lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por ouvil-a da bocca do prior, suppunha ser latim. Comprehendi tudo; tinha estudado a molestia em varias partes do mundo, e comprehendi que elle estava atacado do lapso. Foi por isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem doente.

— Mas então, aventurou o Matta, pallido, o nosso dinheiro está completamente perdido...

— A molestia não é incuravel, disse o medico

— Ah!

— Não é; conheço e possuo a droga curativa, e já a empreguei em dous grandes casos: um barbeiro, que perdera a noção do espaço, e, á noite estendia a mão para arrancar as estrellas do céu, e uma senhora da Catalunha, que perdera a noção do marido. O barbeiro arriscou muitas vezes a vida, querendo sahir pelas janellas mais altas das casas, como se estivesse ao rez do chão...

— Santo Deus! exclamaram os tres credores.

— É o que lhes digo, continuou placidamente o medico. Quanto á dama catalã, a principio confundia o marido com um licenciado Mathias, alto e fino, quando o marido era grosso e baixo; depois com um capitão, D. Hermogenes, e, no tempo em que comecei a tratal-a com um clerigo. Em tres mezes ficou boa. Chamava-se D. Agostinha.

Realmente, era uma droga miraculosa. Os tres credores estavam radiantes de esperança; tudo fazia crer que o Thomé Gonçalves padecia do lapso, e, uma vez que a droga existia, e o medico a tinha em casa... Ah! mas aqui pegou o carro. O Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo, embora entretivesse relações com elle; não podia ir offerecer-lhe os seus prestimos. Thomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem a responsabilidade de convidar o medico, nem os credores podiam tomal-a a si. Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como os do cabelleiro, exprimiram este alvitre desesperado; cotisarem-se os credores, e, mediante uma quantia grossa e appetitosa, convidarem o Dr. Jeremias á cura; talvez o interesse... Mas o illustre Matta via o perigo de um tal proposito, porque o doente podia não ficar bom, e a perda seria dobrada. Grande era a angustia; tudo parecia perdido. O medico rolava entre os dedos a boceta de rapé, esperando que elles se fossem embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que o Matta, como um capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo; advertiu que as suas primeiras palavras tinham commovido o medico, e tornou ás lagrimas das familias, aos filhos sem pão, porque elles não eram senão uns tristes officiaes de officio ou mercadores de pouca fazenda, ao passo que o Thomé Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes, cabelleiras, tudo o que lhes custava dinheiro, tempo e saude... Saude, sim, senhor; os callos de suas mãos mostravam bem que o officio era duro; e o alfaiate, seu amigo, que alli estava presente, e que entisicava, ás noites, á luz de uma candeia, zas-que-darás, puchando a agulha...

Magnanimo Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos humidos de lagrimas. O acanho de suas maneiras era compensado pelas expansões de um coração pio e humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia pôr a sciencia ao serviço de uma causa justa. Demais, a vantagem era tambem e principalmente do proprio Thomé Gonçalves, cuja fama andava abocanhada, por um motivo em que elle tinha tanta culpa como o doudo que pratica uma iniquidade. Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se em rapa-pés infindos e grandes louvores aos insignes merecimentos do medico. Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidando-os a almoçar, obsequio que elles não aceitaram, mas agradeceram com palavras cordialissimas. E, na rua quando elle já os não podia ouvir, não se fartavam de elogiar-lhe a sciencia, a bondade, a generosidade, a delicadeza, os modos tão simples! tão naturaes!

Desde esse dia começou Thomé Gonçalves a notar a assiduidade do medico, e, não desejando outra cousa, porque lhe queria muito, fez tudo o que lhe lembrou por atal-o de vez aos seus penates. O lapso do infeliz era completo; tanto a ideia de _pagar_, como as ideias co-relatas de _credor_, _divida_, _saldo_, e outras tinham-se-lhe apagado da memoria, constituindo-lhe assim um largo furo no espirito. Temo que se me argua de comparações extraordinarias, mas o abysmo de Pascal é o que mais promptamente veiu ao bico da penna. Thomé Gonçalves tinha o abysmo de Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam n'elle mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger de dentes da Escriptura. Urgia extrahir todos esses infelizes e entulhar o buraco.

Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retemperal-o, começou a applicar-lhe a droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiario, porque a cura operava-se de dous modos:— o modo geral e abstracto, restauração da ideia de pagar, com todas as noções co-relatas— era a parte confiada á droga; e o modo particular e concreto, insinuação ou designação de uma certa divida e de um certo credor— era a parte do medico. Supponhamos que o credor escolhido era o sapateiro. O medico levava o doente ás lojas de sapatos, para assistir á compra e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a acção de pagar; fallava da fabricação e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado n'aquelle anno de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta annos antes; fazia com que o sapateiro fosse dez, vinte vezes a casa de Thomé Gonçalves levar a conta e pedir o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabelleireiro, o segeiro, o boticario, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os ultimos com o trabalho anterior, d'onde lhes vinha a compensação da demora.

Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos credores, não se transcrevem as bençãos com que elles encheram o nome do Dr. Jeremias. Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em toda a parte. Parece cousa de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao Thomé Gronçalves, asmado de tantas dividas velhas, não se fartava de elogiar a longanimidade dos credores, censurando-os ao mesmo tempo pela accumulação.

— Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.

— Nós é que lhe marcaremos o tempo, respondiam generosamente os credores.

Restava entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o proprio Dr. Jeremias, pelos honorarios d'aquelle serviço relevantes. Mas, ai delle! a modestia atou-lhe a lingua. Tão expansivo era de coração, como acanhado de maneiras; e planeou tres, cinco investidas, sem chegar a executar nada. E aliás era facil; bastava insinuar-lhe a divida pelo methodo usado em relação á dos outros; mas seria bonito? perguntava a si mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia esperando. Para não parecer que se lhe mettia á cara, entrou a rarear as visitas; mas o Thomé Gonçalves ia ao casebre da rua do Piolho, e trazia-o a jantar, a ceiar, a fallar de cousas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores... Mas os credores, ainda quando pudesse passar-lhes pela cabeça a ideia de ir lembrar a divida, não chegariam a fazel-o, porque a suppunham paga antes de todas. Era o que diziam uns aos outros, entre muitas formulas da sabedoria popular:— Matheus, primeiro os teus— A boa justiça começa por casa— Quem é tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a verdade é que o Thomé Gonçalves, no dia em que fallecera, tinha um só credor no mundo:— o Dr. Jeremias.

Este, nos fins do seculo, chegára á canonisação.

— «Adeus, grande homem!» dizia-lhe o Matta, ex-sapateiro, em 1798, de dentro da sege, que o levava á missa dos carmelitas. E o outro, curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés:

— Grande homem, mas pobre diabo.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 01 de novembro de 2021

OS EXPLORADORES (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

OS EXPLORADORES

João do Rio

 

 

 

False Sphinx! False Sphinx! by reedy Styx
 Old Charon, learning on his oar
 Waits for my coin. Go thou before...

 

Ao chegar à praça Onze, tomamos por uma das ruas transversais, escura e lôbrega. Ventava.

- É aqui - murmurou cansado o nosso amigo, parando à porta de um sobrado de aparência duvidosa.

Havia oito dias já andávamos nós em peregrinação pelo baixo espiritismo. Ele, inteligente e esclarecido, dissera:

- Há pelo menos cem mil espíritas no Rio. É preciso, porém, não confundir o espiritismo verdadeiro com a exploração, com a falsidade, com a crendice ignorante. O espiritismo data de 1873 entre nós, da criação da Sociedade de Confúcio. Talvez de antes; data de umas curiosas sessões da casa do Dr. Melo Morais Pai, a bondade personificada, um homem que andava de calções e sapatos com fivelas de prata. Mas, desde esse tempo, a religião sofre da incompreensão de quase todos, substitui a feitiçaria e a magia.

Foi então que começamos ambos a percorrer os centros, os focos dessa tristeza.

O Rio está minado de casas espíritas, de pequenas salas misteriosas onde se exploram a morte e o desconhecido. Esta pacata cidade, que há 50 anos festejava apenas a corte celeste e tinha como supremo mistério a mandinga, o preto escravo, é hoje como Bizâncio, a cidade das cem religiões, lembra a Roma de Heliogábalo, onde todas as seitas e todas as crenças existiam. O espiritismo difundiu-se na populaça, enraizou-se, substituindo o bruxedo e a feitiçaria. Além dos raros grupos onde se procede com relativa honestidade, os desbriados e os velhacos são os seus agentes. Os médiuns exploram a credulidade, as sessões mascaram coisas torpes e de cada um desses viveiros de fetichismo a loucura brota e a histeria surge. Os ingênuos e os sinceros, que se julgam com qualidades de mediunidade, acabam presas de patifes com armazéns de cura para a exploração dos crédulos; e a velhacaria e a sem-vergonhice encobrem as chagas vivas com a capa santa do espiritualismo. Quando se começa a estudar esse mundo de desequilibrados, é como se vagarosamente se descesse um abismo torturante sem fundo.

A polícia sabe mais ou menos as casas dessa gente suspeita, mas não as observa, não as ataca, porque a maioria das autoridades têm medo e fé. Ainda há tempos, um delegado moço freqüentava a casa de um espírita da praia Formosa para se curar da sífilis. Se os delegados são assim apavorados do futuro, reduzindo a mentalidade à crença numa panacéia misteriosa, o pessoal subalterno delira.

- Veja você - disse-nos o amigo espírita -, toda a nossa religião resume-se nas palavras de Cristo à Samaritana: "Deus é espírito e em espírito quer ser adorado". Essa gente não compreende nada disso, maravilha-se apenas com a parte fenomenal, com a canalhice e a magia. É horrível. Os proprietários dos estabelecimentos de cura anímica a preço reduzido exploram; o povaréu vai todo, aliando as crendices do novo às bagagens antigas. São católicos ou perdidos a servirem-se dos espíritos como de um baralho de cartomante.

Com efeito, todas as casas em que entramos, estavam sempre cheias. Na maioria freqüentam-nas pessoas de baixa classe, mas se pudéssemos citar as senhoras, as damas do high-lífe que se arriscam até lá, a lista abrangeria talvez metade das criaturas radiosas que freqüentam as récitas do Lírico. Alguns desses lugares equívocos não são só engodos da credulidade, servem de máscaras a outras conveniências. A sessão fica na sala da frente, mas o resto da casa, com camas largas, é alugado por hora a alguns pares de irmãos. O médium, nesses momentos, deixa o estado sonambúlico para servir o freguês, e um centro espírita revestido de mistério, com o aparato das portas fechadas, dos passes e das velas acesas, transforma a crença, cuja oblata é a virtude máxima, numa nódoa de descaro sem nome.

Nós visitamos uns cinqüenta desses milhares de centros. A cidade está coalhada deles. Há em algumas ruas dois e três. Estivemos no Andaraí Grande, na rua Formosa, na estação do Rocha, na rua da Imperatriz, no morro do Pinto, na praia Formosa, no Engenho de Dentro, na rua Frei Caneca, na rua Francisco Eugênio, assistindo às sessões e ouvindo a vizinhança, que é sempre o termômetro da moralidade de qualquer casa.

Um pouco de ceticismo ou de simples crença basta para compreender a pulhice dessas pantomimas lúgubres.

Assim, há uma tropa de mulheres, a Galdina da rua da Alfândega, a negra Rosalina da rua da América, a Aquilina da rua do Cunha, a Amélia do Aragão, a Zizinha Viúva da rua Senhor de Matozinhos, a Augusta da rua Presidente Barroso, a Tomásia da rua Torres Homem, n.0 14, que estabelecem o comércio com consultas de 500 réis para cima e praticam coisas horrendas, abortos, violações a preço fixo e têm trabalhos em que são acompanhadas de secretárias; há espíritas ambulantes, como o negro Samuel, que já foi cozinheiro, mora na rua Senador Pompeu, n.0 157, e vai de casa em casa fazer passes; há mulatos pernósticos, o Zizinho da rua de S. Januário, o Claudino da rua de Santana, o Joãozinho da rua Sorocaba, com consultas noturnas; há portugueses como um tal Sr. Carneiro, da Praia Formosa, e o Simões, da rua Visconde de Itaúna, que exigem 20$000 por consulta e mandam os doentes comprar uma vela de cera e tomar um banho de cevada. Há de tudo, até sinetas, rapazes de passinho rebolado, que quando não prestam mais para o comércio público estabelecem-se nas ruas do meretrício com adivinhações espíritas!

E nesse complexo notam-se os centros familiares, uma porção de centros, alguns dos quais dão bailes mensais e, quando não são casas de fabricação de loucuras levando à histeria senhoras indefesas, servem para a mais desfaçada imoralidade e a mais ousada exploração.

No morro do Pinto a feitiçaria impera. Numa sala baixa, iluminada a querosene, assentam-se os fiéis, mulheres desgrenhadas, mulatinhas bamboleantes, negras de lenço na cabeça com o olhar alcoólico, homens de calças abombachadas, valentes com medo das almas do outro mundo, que ao sair dali ou ali mesmo não trepidariam em enfiar a faca nas entranhas do próximo. As luzes deixam sombras nos cantos sujos. No momento em que entramos, o médium, em chinelas, é presa de um tremor convulso. Diante do estrado, uma portuguesa, com o olhar de gazela assustada na face velutínea, espera. A pobre casou, o marido deu para beber e, desgraça da vida! bate-lhe de manhã, à noite, deixa-a derreada.

É a mãe dessa mulher que está dentro do médium. Todos tremem, de olhos arregalados.

De repente, o médium estarrece e por trás dos seus dentes, ouve-se uma voz de palhaço:

- Como estás, minha filha, vais bem?

- A mãe! A mãe! - murmura a portuguesita infeliz, aterrada, em meio o palpitante silêncio.

- Que deve fazer sua filha? - pergunta o evocador.

- Ter confiança em Deus. Eu devia estar no inferno. A misordia perdoou a mãe dela. Toda a desgraça vem de um bruxedo que puseram na soleira da porta.

- Quem foi? - faz a portuguesa, numa voz de medo.

- Uma mulata escura que gosta do seu homem. Ele vai ficar bom. Dê-lhe o remédio que eu receitar e crave um punhal no travesseiro três noites a fio.

Um homem magro, parecido com o general Quintino, faz uns passes; o médium volta a si num sorriso imbecil.

- Está satisfeita? - pergunta o espertalhão dos passes.

- A mãe! a pobre da mãe tão boa! A portuguesa rebenta num choro convulso; uma negra epilética, velha, esquálida, começa a gritar numa crise tremenda, enquanto o homem magro brada:

- Está com o espírito mau! Está mesmo!

Essas cenas sinistras são compensadas por outras mais alegres. Num dos nossos bairros, o médium dá sessões de manhã, evoca os espíritos para saber qual é o bicho que ganha e, como é vidente, vê os espíritos com formas de animais.

- É o burro, é o burro! - grita em estado sonambúlico, e a rodinha toda joga no burro.

No Andaraí Grande o curandeiro é divertido e bailarino. Em vésperas de S. João dá um bródio de estalo com ceia copiosa e vinhaça de primeira. Este tem a especialidade das mulheres baratas. A rua de S. Jorge, a da Conceição, a do Senhor dos Passos, a do Visconde de Itaúna lá extravasam a alma sentimental das meretrizes, dos soldados e dos rufiões. O nosso homem cura tudo: dartros, feridas más, constipações, amores mal retribuídos, ódios. É fantástico! As mulheres têm-lhe uma fé doida. O espiritismo para elas é o milagre, a intervenção dos espíritos junto de um poder superior. Antes de ir à consulta, ajoelham no oratório e vão com todos os seus bentinhos, as figas de Guiné, o espanta mau-olhado das negras minas. Mas o cavalheiro do Andaraí é sagrado. Toda essa fé emana, dizem, de uma sua predição feliz. Uma mulher que voltava da Misericórdia recebeu por seu intermédio comunicação de que seria honesta; e três meses depois um homem sério levou-a. A suburra do Rio venera-o, freqüenta-lhe as festas e sustenta-o.

- São infames. O lema do espírita é: sem caridade não há salvação. Seja a caridade deles. Quando não são isso, fazem das sessões, como o Torterolli, sessões de orgia pública... Não posso mais!

Afinal, naquela noite tínhamos resolvido acabar a travessia pelos bas-fonds da crença, com a alma entristecida pela visão de salas idênticas, onde o espiritismo substituía a bisca, os espíritos servem de feiticeiros e dão remédios para pescar amantes; das salas que, como na rua de S. Diogo, mascaram as casas de quartos por hora. A casa da rua transversal à praça Onze seria a última a visitar.

- Entre - disse o meu amigo.

Enfiamos por um corredor escuro, subimos. No patamar um bico de gás silvava, batido pelo vento da rua.

- Papai, dois homens - bradou uma voz de criança.

Logo apareceu, em mangas de camisa, um mulato de bigodes compridos, que se desmanchou em riso e amabilidades para o meu companheiro.

- A que devo as honras? - disse sibilando os ss.

- As honras - como diz - deve-as ali ao irmão. É um simpático que quer crer e anda, na dúvida, à procura da verdade. Que diz você da verdade?

- Verdade? Ora esta! Verdade é o espírito!

- Bravo!

Fomos entrando para a sala de jantar, com móveis de vinhático e garrafas por todos os aparadores.

- Nem de prepósito - fez o cabra. - O médium está ali proseando com a gente.

O médium é um tipo de hébèté, de quase cretino. Lourinho, de um louro de estopa, com a face cor de oca e as gengivas sem dentes, é carteiro de 2.ª classe dos Correios. Tem a farda suja e a gravata de lado. Durante todo o tempo em que o mulato nos conta as suas curas, ele sopra monossílabos e remexe a cabeça, dolorosamente, como se lhe estivessem enterrando alfinetes na nuca.

Um mal-estar nos invade, como o anúncio de uma grande desgraça.

- Há tipos que usam ervas para fingir que é espírito - diz o curandeiro. - Eu não; cá comigo é a verdade. Um desses oraras põe noz-vômica na água para os doentes lançarem e diz que é o espírito limpando lá dentro. Pecado! Apre! Eu agora tenho um doentinho. Veio-lhe uma febre de queimar. A mãe não tem quase dinheiro, mas não o gasta na farmácia. Eu o curo logo...

De repente parou. Pela escada subia um tropel, e uma mulher magra, lívida, aos soluços, entrou na sala.

- Então que há?

- O pequeno está mal, muito mal, revirando os olhos. Salve-mo! Salve-mo!

- É o tal que eu lhes dizia. Não se assuste, D. Aninha. Eu já lhe disse que o pequeno ficava bom; os espíritos querem. E para nós: venham ver.

Levou-nos ao terraço, ao fundo, mergulhou um litro vazio numa tina de água, encheu-o, colocou-o em cima da mesa.

- Durma, Zezé, durma!

E esfregou as mãos na cara do carteiro, subitamente em pranto. O homem revirava os olhos, sacudia a cabeça.

- É o espírito; veio, quer que seu filho fique bom... E de repente o diabólico começou a estender as mãos do carteiro choroso ao gargalo do litro.

- Não está vendo o espírito entrar? Olhe... No litro cheio bolhas de oxigênio subiam vagarosamente e a pobre mulher, agarrando a mesa, com os olhos já enxutos, seguia ansiada o milagre que lhe ia salvar o filho.

De repente, porém, uma voz estalou embaixo, na ventania:

- Mamãe! Mamãe! Depressa! Joãozinho está morrendo, Joãozinho morre!

Essas palavras produziram um tal choque que nós saímos desvairados, de roldão, com o mulato e a mulher, sentindo um travor de morte nos lábios, angustiados, lembrando-nos dessa criança que a inconsciência deixara morrer. E na ventania cortada de chuva, entre as variadas recordações dessa vida de oito dias horrendos pelos antros escuros onde viceja o espiritismo falso, a visão dessa criança perseguia-nos cruciantemente, como o remorso de um grande e infinito mal.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 31 de outubro de 2021

NIENTE (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

NIENTE

Raul Pompéia

 

 

 

I

Ali num recanto esquecido, Elvira plantou, um dia, um galhozinho de rosa. O arbusto brotou viçoso e, bafejado pelo calor, enfeitou-se de folhas, engrinaldou-se de botões.

Elvira, cada manhã, cada tarde, visitava a plantinha. A roseira recebia o primeiro raio do sol e o primeiro sorriso de Elvira. À noutinha, a roseira tinha visto o derradeiro fulgor do sol, quando Elvira se vinha despedir dela, amparando com os dedos delicados um ramo que se inclinava demasiado, afugentando uma formiga de mau agouro.

Tanto afago e tanto sol era para fazer esperar uma florescência esplêndida.

Elvira esperava.

II

A primeira rosa já tinha dono.

Seria dele... Por que não?... Quem colhera o desabrochar do seu coração?... E Elvira estava convencida, vaidade de moça talvez, que o seu coraçãozinho valia mais que uma rosa.

III

O dia não estava longe.

As auroras influenciavam naquelas flores!... Os sepalozinhos dos botões como que estalavam, ao hálito da madrugada, e se preparavam para descolar-se.

Havia um então... Parecia-se com um amuo de criança prestes a dissolver-se em risos. Estava: abre... não abre...

Ah! quando abrisse!... Mas Elvira não sabia que alguém vinha mais cedo do que ela espiar o botãozinho.

IV

O sol semeava pela campina mil palhetas de ouro. As folhas de erva iriavam-se com as refrações multicores de infinitas gotazinhas de orvalho, estremecendo ao contato do frescor agradável que atravessava a manhã.

O botão, como a boquinha rubra do menino que se expande numa gargalhada franca e aberta, desabrochou a meio.

Em poucos momentos, o botão devia estar... rosa!

Uma linda mocinha, num alvo desalinho, veio correndo e espiou. Era Elvira.

— Até logo, disse à flor.

V

Quando voltou, a rosa não estava lá!...

Uma borboleta azul esvoaçava, batendo gentilmente no ar, com o pano das asas.

O bichinho cabriolava contente, dando viravoltas a esmo. Elvira estava bem irada...

Correu para a borboleta...

Fora essa malvadinha! Tambóm que não fosse pouco importava. O que Elvira queria era dar expansão ao seu desgosto. Mataria a borboleta... Pôs-se a correr pelo campo, agitando no ar o lenço, perseguindo o bichinho; a borboleta supunha que era graça e brincava, voando aqui e voando ali: borboleteando loucamente... Por fim, voou para cima e fugiu. Elvira mordeu o beiço com um gesto graciosamente estouvado e gritou imperiosamente:

— Borboleta!

A borboleta não voltou.

VI

Um mancebo que andava por perto correu à jovem e perguntou:

— Que queres com a borboleta?

Elvira deu um grito de admiração e, sorrindo, lançou-se aos ombros do moço.

— A rosa era tua! exclamou.

— Ah! pois eu te dou, respondeu o moço mostrando uma flor que trazia oculta.

— Então foste tu...?

— Para dar-te, furtei.

— Mau! tiraste-me o gosto... Pois vou dar-te outra

— Dá-me.

Elvira que enlaçava o pescoço do mancebo encostou-lhe à face os lábios e depôs longamente um ósculo.

O sol brilhava esplêndido e riam-se os prados.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 30 de outubro de 2021

POSSÍVEL E IMPOSSÍVEL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

POSSÍVEL E IMPOSSÍVEL 

Machado de Assis

 

 

 

É um lugar comum em quase todos os poetas novéis maldizer do destino e tecer elogios ao desânimo aos vinte anos de idade.

Resulta daqui que as verdadeiras dores, caindo no descrédito comum, não podem achar indulgência da parte de ninguém; e quando um poeta, na aurora da vida e nos primeiros movimentos da inspiração, lembra-se de traduzir, em um hino de sua lira, uma dor que o consome ou um desânimo que o abate, a multidão recebe o hino e o poeta com o mesmo sorriso de incredulidade reservado para todos.

Será entretanto impossível esta situação? A mocidade é o tempo das ilusões; a mocidade dos poetas ainda mais. A imaginação mais viva dá maior corpo e maior luz aos sonhos e às quimeras. Tanto mais vivas são, tanto maior é a dor de os ver desvanecidos. Ora, figure-se um coração ardente, uma imaginação exaltada, um espírito veemente, abrindo os olhos ao mundo fantástico das quimeras e dos sonhos. Figure-se tudo isto, e veja-se se, ao primeiro desencanto, ao primeiro obstáculo, esta criatura sensível não deve manifestar as suas dores e os seus desprazeres na linguagem veemente e franca que Deus lhe deu.

É certo que são comuns os poetas desiludidos aos vinte anos; mas entre uns e outros há a diferença do falso ao verdadeiro. Há nas dores sinceras um tom de verdade singela e pura ingenuidade que se não confunde com os arrebiques mal aplicados da poesia chorona por convenção.

Tinha vinte e dois anos o herói desta narrativa. Era poeta desde os dezesseis. Era-o mesmo desde antes. Aos doze anos, estando a passear, com a família, em uma campina junto à cidade em que nascera, foi surpreendido pelo espetáculo que oferecia o lugar na hora do por do sol. Era uma estrofe de poesia rústica, uma lauda das Geórgicas. O meu poeta, deixando a família e os rapazes com quem ia, parou extático a contemplar o espetáculo. Só muito adiante a família reparou na ausência do pequeno; voltaram buscá-lo. Daí em diante o pequeno caminhou maquinalmente.

Isto foi aos doze anos. Aos dezesseis metrificou a sua primeira inspiração. Eram umas quadras singelas tomando por assunto uma cena da natureza: duas rolas que se beijavam à margem de um riacho que atravessava o fundo da chácara em que morava. À noite leu a sua obra à família; mas ninguém lha entendeu, à exceção de um tio padre que sabia entremear as orações do breviário com os cantos de Virgilio e Petrarca. O jovem poeta, descontente com o mau efeito da obra, quis rasga-la; mas o tio padre interveio a tempo e convidou o rapaz, não só a conservar as suas primeiras estrofes, como ainda a metrificar outras, quando lhe fosse de vez a inspiração.

Teófilo chamava-se o nosso poeta. Era filho de uma das províncias do sul. O pai, major reformado, vivia da pensão que o Estado lhe dava e de alguns haveres que lhe deixara um parente. Era quanto bastava para sustentar modicamente a família. Esta era numerosa; constava da mulher, um filho, das duas filhas, um irmão cego, dois sobrinhos órfãos e uma agregada. O irmão padre era pobre e mal concorria com o estritamente necessário para a sua subsistência.

A educação que Teófilo recebeu foi proporcionada aos meios de seus pais. Aprendeu primeiras letras, rudimentos de latim e de francês. O latim e o francês aprendeu-os do tio padre. Findo isto, o pai entrou a cogitar em que havia de empregar o rapaz e não achou. Então como que se arrependeu do que lhe havia feito aprender. O talento natural de Teófilo, desenvolvido pelos primeiros estudos, impunha-lhe a obrigação de destiná-lo a alguma carreira em que pudesse ser aproveitado, estando na esfera que lhe competia. O bom do velho nada encontrava neste sentido.

No caso de morte do pai, quem sustentaria a família? Esta era a questão capital no espírito do pai de Teófilo.

Entretanto, Teófilo, que tomara gosto às letras, ia aproveitando as lições do padre e aumentava o cabedal da instrução. Desenvolveu-se no latim e no francês; estudou o inglês e o italiano. Quis conhecer a história e disse-o ao tio.

- Aprende primeiro geografia, respondeu-lhe o padre.

- É preciso, não?

- Sem dúvida. Como hás de tu saber do que houve na casa, sem conhecer antes das disposições da casa?

- É verdade.

E o rapaz atirou-se ao estudo da geografia, e depois ao de história, e depois ao de filosofia.

Não convém à nossa história acompanhar os passos da vida de Teófilo, nem os de sua família. Basta saber que na época em que esta narração começa Teófilo conta vinte e dois anos; está sem pai; as irmãs e os primos estão casados; o tio padre alcançou uma vigararia no norte; resta-lhe a velha mãe e a agregada, moça de dezoito anos. Vivem no Rio de Janeiro.

Teófilo ensina história e geografia em alguns colégios particulares: é a sua fonte de renda. Nas horas vagas faz versos que ninguém lê, porque ele os guarda cuidadosamente no fundo da gaveta.

Quando à mesa do almoço D. Tereza (é o nome da mãe do poeta) pergunta a seu filho que trabalho leva a fazer às vezes alta noite, Teófilo responde sorrindo:

- Estou fazendo um ponto de admiração.

D. Tereza não entende a metáfora, e seria de crer que a agregada também não entendesse, se um sorriso sonso e inteligente não lhe roçasse nos lábios a esta resposta de Teófilo.

É que o ponto de admiração que Teófilo preparava para a posteridade, guardando-lhe um poeta incógnito, não era mistério para a moça. Seria ela a musa dos versos? Não era. Teófilo não reparava no sorriso, e a mesma cena repetia-se dias depois.

Esta agregada era órfã. Os pais morreram pobríssimos e deixaram a filha aos cuidados da família do major, onde viveu no mais perfeito pé de igualdade com as filhas deste. Recebera a mesma educação, tinha as mesmas qualidades e sentimentos, e se era mais bonita que elas nem por isso se desvanecia, antes parecia afligir-se de uma superioridade que de algum modo humilhava as suas protetoras.

Imagine-se uma beleza suave e angélica, fazendo adivinhar a singeleza e a pureza do coração através das linhas puras e suaves do rosto e do brilho sereno e sincero dos olhos claros. Modesta no trajar, no gesto e nos sentimentos, Helena (tal era o seu nome) era admirada por todos, invejada por muitos, ambicionada... por ninguém.

Helena era a filha de coração de D. Tereza. Era a última que lhe restava, depois do casamento das suas próprias. A boa senhora estimava-a como estimava Teófilo; Helena, por seu lado, consagrava a D. Tereza um amor de filha, além do reconhecimento que lhe devia pelos benefícios que recebera dela. Teófilo amava Helena como irmã. Eram uma só família.

Como disse acima, Teófilo escrevia versos que guardava no cioso fundo da gaveta. Ninguém, nem sua mãe, nem Helena, nem os amigos mais íntimos, mereciam a confiança do poeta. Era um verdadeiro Harpagão, mas um Harpagão sublime que levava a avareza intelectual ao ponto de não confiar, nem dos mais insuspeitos, as impressões, as palpitações, as inspirações, os sonhos, as quimeras, isto é, toda a sua alma.

Era respeitável este sentimento. De que serve, muitas vezes, confiar à multidão o sentimento que nos domina, a aspiração que nos impele, a comoção que nos abala? Teófilo sentia-se puro no meio do silêncio e da obscuridade; parecia-lhe que, do momento em que abrisse a todos o íntimo do seu coração, murchava-lhe a flor do sentimento e a sua alma ficava menos pura.

Mas a que vinha o sorriso de Helena? Aqui vai a explicação.

Havia uma escrava que servia à família de D. Tereza. Todavia, Helena não consentia que os arranjos de certa natureza estivessem a cargo dessa escrava, e tomava a si a obrigação de cuidar deles. Assim, por exemplo, era Helena quem se encarregava de pôr em ordem o gabinete de Teófilo. Foi em uma dessas ocasiões, estando ausente o poeta, que Helena achou em cima de uma mesa um quarto de papel onde estavam escritas algumas linhas paralelas e de tamanho desigual. São versos, pensou a moça. Picada de curiosidade, pegou no papel e leu o que estava ali. Reconheceu a letra de Teófilo, e, mais ainda, reconheceu a alma dele. A moça tinha os olhos úmidos quando acabou de ler o papel; beijou-o e tornou a deixá-lo no mesmo lugar.

Quando o poeta voltou, reparou no esquecimento em que caíra de não guardar os versos; mas de modo algum suspeitou que os tivessem lido. Guardou-os onde guardava os outros.

Helena, uma vez descoberto o mistério, não parou aí. No dia seguinte cresceu-lhe a curiosidade.

- É impossível, pensava ela, que ele só tenha escrito estes versos; eu bem me lembro que ele fez alguns quando eu era criança e os leu; lá há de haver outros.

E deitou-se a procurar.

Tanto procurou, que encontrou em uma das gavetas uma pequena pasta cheia de autógrafos. Eram as inspirações do poeta traduzidas na linguagem de Petrarca, e ali deixadas sem que ainda o poeta as polisse da primitiva aspereza.

A moça leu e releu os versos; muitas vezes enxugou os olhos. Havia nas composições de Teófilo um eco às secretas aspirações da alma dela. Era que a situação de ambos era quase a mesma.

A moça, quando acabou de ler todos aqueles escritos poéticos, restituiu-os à pasta e colocou esta na gaveta de modo que não deixasse suspeitar a violação inocente que acabava de cometer.

Depois saiu.

Teófilo não reparou em nada.

Tal é a explicação do riso da moça, que, depois de ouvir muitas vezes a resposta misteriosa do poeta, chegou a compreender-lhe o alcance e ria-se à socapa, como quem dizia que o ponto de admiração de que falava o moço não o era para ela.

Estavam as coisas neste pé, quando uma tarde, ao voltar para casa, Teófilo encontrou no caminho um amigo que se chegou a ele e perguntou-lhe:

- Tens que fazer sábado?

- Não muito; por que?

- Então dá-me a tua palavra de honra que aceitas um convite meu.

- Convite para que?

- Convite para uma partida.

- Não posso.

- Por que?

- Porque não quero ir só a divertimento algum.

- Mas...

- E minha família não pode ir.

- Que singularidade!

- É a coisa mais que natural do mundo. O que é talvez singularidade é a franqueza com que te digo que minha família não pode ir por lhe faltarem os meios de ostentar o rigor que essas coisas requerem.

- Ora!

Teófilo sorriu-se.

Depois perguntou:

- Achas esquisito?

- Acho. É a tua última palavra?

- É.

- Bem.

E como o outro se afastasse tristemente, Teófilo deu um passo para ele e perguntou-lhe se esta escusa o magoava.

- Sim, respondeu o amigo. Vou ser indiscreto. Eu e alguns outros imaginamos convidar-te para esta partida a ver se te distraías e saías da tristeza em que andas. Era um serviço de amigo. Convencionamos nada dizer-te, mas eu sou forçado a isto. Não queres? Dou por finda a minha missão.

- Espera, disse Teófilo.

O moço deteve o passo.

Teófilo refletiu um bocado e respondeu:

- Pois sim, vou. Agradeço a vocês o cuidado que tomaram por mim.

- Muito bem.

- Onde é a partida?

- É em casa do comendador N... Conheces?

- Falamo-nos duas vezes.

- É quanto basta. Além de que ele próprio insta para que tu vás. A partida é sábado.

- Até sábado.

Separaram-se os dois.

Teófilo gastou uma noite inteira em construir as expressões com que devia dar parte à mãe de que ia à partida do comendador N... Parecia-lhe crime ir divertir-se e deixar em casa aquelas duas pessoas que estremecia.

D. Tereza, quando soube da resolução arrancada a seu filho pelas instâncias dos amigos, respondeu-lhe com palavras de verdadeira alegria.

- Ainda bem, dizia ela, que vais sair da vida monótona em que andas. Que mocidade a tua! Nem uma distração, nada! É preciso não estragar os melhores anos, Teófilo!

Quanto a Helena, se Teófilo reparasse melhor, viria que atrás do sorriso de prazer que a moça procurava desfolhar dos lábios vermelhos, havia outro sorriso de mágoa e de pesar. Seria mágoa e pesar de moça por não ir tomar parte igualmente no sarau?

Chegou o sábado aprazado.

Teófilo tinha pouco que fazer nesse dia. Voltou para casa cedo, afim de aproveitar, na companhia da família, as horas que ia perder no baile do comendador.

À hora marcada vestiu-se e saiu.

Em casa do comendador estavam reunidas algumas entidades políticas, outras literárias, outras elegantes; outras sem definição. Estes eram em maior número. Augusto, o amigo que convidara Teófilo, apresentou-o à família do comendador e a algumas das pessoas mais notáveis da reunião.

Teófilo tinha um ar modesto e discreto que não podia ajuda-lo nas relações com os outros. O grande talento da conversação é saber calar-se, diz A. Karr; Teófilo tinha esse talento, mas em excesso; não podia fazer fortuna.

Era a primeira vez que o poeta se achava em uma reunião de certa ordem. Tudo ali contribuía para fascina-lo. O esplendor das mulheres, a abundância das luzes e das flores, as condecorações, os nomes ilustres que se pronunciava de cada lado, o bulício, o perfume, tudo se acumulava para dar ao rapaz a idéia de um mundo novo e imaginário.

Augusto, como bom amigo, serviu a Teófilo de cicerone. Apresentou-o a algumas mulheres em quem fizera impressão o ar tímido e recatado do poeta. Augusto obrigou-o mesmo a dançar uma quadrilha.

No fim de uma hora, Augusto, Teófilo e alguns outros amigos estavam em uma sala contígua ao salão do baile, mas perfeitamente deserta naquela ocasião.

- Como achas o baile? perguntou um dos rapazes a Teófilo.

- Esplêndido!

- Bem, disse Augusto. Vamos agora à eleição. Nós somos os grandes eleitores da rainha do baile. Faço de presidente com um voto na matéria. Digam lá vocês quem lhes parece que seja a rainha.

- Mas falta uma que só vem às onze horas, disse um.

- Quem?

- A Sílvia.

- Venha ou não, disse outro, eu já achei a rainha.

- Quem é?

- É a Leocádia Martins.

- Não digas isso, exclamaram alguns rapazes.

- Por que?

- Porque é uma tolice!

- Tolice!

- Até o nome, disse Augusto. Ora vejam lá: a rainha Leocádia.

- São gostos.

Augusto voltou-se para Teófilo e perguntou-lhe:

- Mas independente de não estar completo este Olimpo, quem é Juno na tua opinião?

- Não sei: acho-as todas igualmente belas.

- Não reparaste bem. Há algumas superiores.

- Será por não reparar bem; mas até aqui pareceu-me que eram todas igualmente belas.

- Esperemos pela Sílvia. Que horas são?

- Falta um quarto para as onze.

- Esperemos.

Os rapazes conversaram sobre coisas diversas, apreciando minuciosamente as belezas do baile, e apreciando não menos minuciosamente alguns ridículos já observados durante a noite.

Teófilo não tomava grande parte na conversa. Estava absorto em reflexões. Recordava-lhe sua mãe e sua irmã de coração, talvez acordadas àquela hora trabalhando à roda da modesta mesa de família. Comparava aqueles esplendores do sarau com a simplicidade e a nudez da casa em que deixara as duas criaturas cuja felicidade buscava. Uma espécie de remorso doía-lhe na consciência e um peso lhe apertava o coração.

De repente estremeceu. Augusto reparou nisso e dirigiu-se ao poeta:

- Que tens?

Teófilo não respondeu. Tinha os olhos cravados na direção da sala de dança.

Todos olharam para lá.

- É Sílvia! exclamaram.

Com efeito, uma moça alta acabava de entrar e atravessava o salão, com a majestade com que Juno devia atravessar o Olimpo, nos tempos em que havia Olimpo e Juno.

- É a rainha, exclamaram todos, menos o eleitor da rainha Leocádia.

Teófilo também nada disse, mas tinha os olhos cravados na moça.

Quando Sílvia, continuando no caminho, desapareceu por trás da parede divisória das duas salas, Augusto voltou-se para o poeta e perguntou-lhe:

- É ou não a rainha?

- É, respondeu Teófilo.

Aqui começou um cântico com estrofes e epodos em louvor da beleza de Sílvia.

Teófilo voltou ao habitual silêncio.

Depois saíram da sala.

Augusto deu o braço a Teófilo.

- Queres que te apresente a Sílvia? perguntou-lhe.

- Quero.

Os dois moços dirigiram-se para o salão.

A recém-chegada estava então sentada junto à dona da casa, senhora de trinta e seis anos, ainda bela, mas dessa beleza do outono e do crepúsculo que ainda reúne elementos para impressionar.

Uma turba de adoradores tinha-se já reunido à roda de Sílvia. Ela respondia a todos com volubilidade e graça inefável. De todos os lados da sala os olhos estavam voltados para ela, e um observador sagaz podia apreciar a diferença da expressão que ia em todos esses olhares. Da parte dos homens era, admiração em uns, despeito de vencidos em outros; da parte das mulheres era certa vaidade mal contida e certa inveja mal disfarçada.

Sílvia sabia que era singularmente bela e tinha vaidade disso; era elegante por natureza e por educação; os homens a requestavam e repetiam-lhe a cada momento aquilo que o espelho lhe dizia durante o dia a cada hora.

Teófilo parou à porta vendo a turba que cercava a moça.

- Iremos depois, disse ele.

- Por que?

- Tanta gente...

- Não sejas tolo. Anda cá.

Teófilo deixou-se arrastar.

Augusto aproximou-se do grupo.

A moça apenas o viu fez-lhe um sinal com o olhar. O moço obedeceu aproximando-se.

- Não me acha um ar de filósofo? disse ele sem largar o braço de Teófilo.

- Talvez, disse ela.

- Sou um peripatético que vê correr as horas, olhando para o céu, à espera do momento em que deve aparecer Diana para vir empalidecer as estrelas...

- Deveras? disse ela movendo voluptuosamente o leque.

Augusto fez a apresentação de Teófilo.

Sílvia inclinou ligeiramente a cabeça à saudação de Teófilo. Os seus olhos puros e grandes fitaram-se no moço. Este não pôde desviar os seus.

A conversa continuou animada pelos ditos joviais e de algum modo familiares de Augusto. Teófilo tomava parte na conversação quanto lhe permitia o êxtase em que estava diante da singular beleza de Sílvia.

Sílvia era realmente bela no sentido amplo e elevado da palavra. Vinha à mente a idéia de Cleópatra, era um duplo efeito que o aspecto da moça produzira no espírito e nos sentidos. Quem amasse aquela moça desejaria que, como a Antônio, fosse trasladado para a campa o leito nupcial da vida; ela devia inspirar uma como que voluptuosidade ainda depois da morte.

Devo dizer, em honra de Teófilo, que a impressão produzida no moço não tinha esse caráter. O espírito do poeta só via e sentia o que havia de puro e adorável na mulher.

Sílvia era um tanto pálida, não dessa fria palidez de cera que não comove. Tinha a testa arredondada e polida, os olhos negros, profundos, rasgados, desferindo um olhar penetrante; um nariz ligeiramente aquilino, servindo de base a duas sobrancelhas arcadas, bastas e negras; a boca, graciosa e pequena, abria-se em dois lábios demasiadamente rosados, úmidos, voluptuosos; um pescoço perfeitamente contornado ligava a cabeça aos ombros e fazia descer o olhar fascinado para o colo e para as espáduas, nus até onde consentiam a vaidade e o decoro. Sobre aquele colo ideal fulgia uma pequena cruz de brilhantes em completa oscilação pelo arfar do seio.

Sílvia vestia com simplicidade e gosto, mas via-se nos maiores enfeites, como nos menores gestos, a consciência da beleza que procurava realçar o que recebeu do céu com o auxílio do que se inventou na terra.

Teófilo não podia desviar os olhos de Sílvia. O espírito do poeta sentia-se tomado de uma ebriedade celeste diante daquela beleza fascinante. Era o filtro mágico do amor que se lhe entornava nos olhos.

Até então o poeta conhecera a beleza pelo que a imaginação lhe figurava. Esta beleza estava ali, diante dele, palpável, visível, deslumbrante.

Sílvia conheceu o efeito que causara em Teófilo, ou antes supôs que ele não podia fugir à lei comum dos outros homens que a cercavam. Fitou um olhar fascinante no poeta, e depois retirou os olhos para dirigir a palavra à dona da casa.

Augusto esperou que a moca acabasse de falar, para interpor uma petição. Era a petição de ser contemplado entre os cavalheiros que deviam merecer a honra de acompanhá-la à dança. Sílvia deu-lhe uma quadrilha. Augusto intercedeu por Teófilo, e Teófilo obteve uma valsa.

Depois os dois moços separaram-se.

- É bela, não? perguntou ao poeta.

- Esplêndida! murmurou este.

Teófilo sentiu-se outro. Parecia-lhe que estava próximo a entrar na estância da felicidade. Era simples amava. O amor nasceu-lhe de súbito, como acontece quando é verdadeiro.

Quando chegou a vez da sua valsa, o nosso poeta estremeceu. Dirigiu-se para a moça. Sentia-se estranhamente comovido, e por duas vezes esteve para recuar e sair. Enfim Sílvia deu com os olhos no poeta, e era impossível escapar.

Sílvia era valsista consumada. Quando Teófilo sentiu palpitar junto a si aquele seio, e respirou o ambiente estranho que cercava aquela singular criatura, o coração palpitou-lhe mais forte; parecia-lhe um sonho. Que valsa foi aquela? Não foi valsa, foi delírio, delírio de poeta, delírio de fantasia escaldada.

Augusto acompanhou o par com os olhos e reparou na mudança que se operava em Teófilo. Quando pôde conversar com este interrogou-o acerca da impressão que lhe causava Sílvia.

- Aposto que estás apaixonado?

Teófilo olhou para ele silenciosamente e respondeu:

- Não!

Augusto insistiu.

- Queres conhecer o pai? É o conselheiro C...

Augusto apresentou Teófilo ao pai de Sílvia. Uma conversa de poucos minutos decidiu as simpatias do conselheiro pelo poeta. Teófilo saíra dos seus hábitos de extrema reserva e mostrou-se tão discreto quanto agradável. O conselheiro ofereceu os seus serviços a Teófilo.

Esta noite fez uma revolução na vida e no espírito de Teófilo. O poeta encontrara o seu ideal. Mas por que foi achá-lo tão alto? Esta pergunta foi feita ao poeta quando se achou a sós no gabinete de trabalho. Só então medira a distância que existia entre ele e Sílvia. Se o amor, a natureza, a lei divina, podiam aproximá-los, o preconceito social e a lei humana separavam-nos.

O poeta dormiu pouco e tarde. Antes, porém, de procurar o leito, traduziu na linguagem das musas as impressões de que estava possuído. Foi uma das suas poesias mais veementes. Era a um tempo um cântico e uma elegia. No cântico dizia como a encontrara e amara a beleza; na elegia chorava o infortúnio de tê-la visto tão elevada e ser impossível subir até ela.

- Impossível? pensava Teófilo na manhã seguinte relendo os versos. Não. Basta que ela me ame para que tudo desapareça. Que nos importará o resto?

Teófilo freqüentou a casa do conselheiro. Augusto, a quem Teófilo fez apenas meia confidência, servia de cicerone ao tímido amador.

Sílvia, com esse tato delicado das mulheres, reconheceu que era amada pelo poeta, e, longe de procurar dissuadi-lo, animou-o. Esta animação levou ao espírito do poeta a esperança de ser amado.

Todavia os meios empregados por Sílvia não comprometiam nada no futuro. Podiam dar esperanças, não podiam obrigar. Teófilo não reconheceu essa diferença; amava; tomava o mais insignificante olhar como um jubileu de venturas. Vivia dela, por ela, para ela.

Um dia Teófilo sentiu que não podia mais conter no coração o segredo do seu amor. Na amizade confia-se um segredo, diz La Bruyère, mas no amor o segredo escapa. É o que sucedeu a Teófilo.

Achava-se a sós com Sílvia. O conselheiro estava no gabinete em consulta de política, não de política militante, mas de política observadora; entendia o conselheiro que a situação caminhava mal; o amigo entendia que não. Sabe-se como estas discussões consomem tempo. Teófilo estava seguro de não ser perturbado.

Sílvia cantava ao piano a cavatina do 1.º ato do Trovador. Teófilo a dois passos ouvia enlevado aquelas notas que Sílvia reproduzia como saídas da alma. Tudo lhe esquecia: receios, temores, desconfianças do mundo. Parecia-lhe que era o senhor daquela mulher e daquele coração, e deixava-se embalar na doce ilusão da sua fantasia e do seu amor.

Sílvia, quando acabou, voltou o rosto e deu com os olhos em Teófilo. Depois, tomando de sobre o piano o leque de penas que ali depusera, levantou-se e dirigiu-se para o sofá onde estava Teófilo.

- Gostou? perguntou ela.

- Muito, disse o poeta adoçando a voz como se respondesse a um anjo.

Sílvia sentou-se em uma cadeira que ficava ao pé do sofá.

Teófilo fitou os olhos em Sílvia.

Tudo ali conspirava para a declaração do poeta. Estava diante de uma mulher esplêndida de beleza, de elegância e de graça. A luz, nem muita nem pouca, era suficiente para dar ao quadro um fundo vago e ideal.

Sílvia suportou o olhar amoroso do moço. Depois, abrindo os olhos em um sorriso divino, pronunciou estas palavras com um tom de curiosidade infantil:

- Por que me olha assim?

- Porque... disse o poeta.

E calou-se.

- Por que? disse a moça.

- Porque... ah! perdão!... não poderei guardar este segredo... Eu... amo-a...

Dizendo estas palavras Teófilo levantou-se e esperou de pé a resposta de Sílvia.

Sílvia baixou os olhos, deu uma volta ao leque, bateu com ele sobre o joelho, e olhou silenciosa para Teófilo.

O moço estava embaraçado. Que fazer diante daquele silêncio? Entretanto a sua felicidade dependia de uma palavra de afirmação da moça. Ela persistia calada. Teófilo fez um esforço e murmurou:

- Diga-me...

- Não lhe digo nada, disse Sílvia levantando-se.

- Por que?

- Porque... não sei. Ah!

Esta simples exclamação foi surda, e Sílvia mal pôde percebê-la.

A resposta da moça era dúbia. Podia afirmar, podia negar. Teófilo reparou nisto e sentiu um raio de esperança. Sílvia tinha dado alguns passos até a janela. Teófilo ia à janela quando a moça voltava.

- Prefiro a verdade, cruel embora, à dúvida, disse ele. Se me não pode amar é melhor que o diga francamente. Entretanto atenda bem para o estado do meu coração: é amor que eu sinto, amor puro, ardente, elevado. Sinto...

- Basta, disse Sílvia; serei franca: não o amo!

- Ah!

Teófilo encostou-se a um móvel.

- Não o amo. Talvez viesse a amá-lo. Mas como? Mal o conheço... Demais, este amor levaria a algum ato definitivo, e eu não estou disposta a casar-me...

Dizendo estas palavras, a moça foi sentar-se no sofá.

Teófilo estava atônito. Não eram as palavras de Sílvia que lhe pareceram estranhas; a moça podia não amá-lo. Mas o que lhe parecia estranho era o tom frio e indiferente com que elas foram ditas. Nem uma comoção, nem um pesar. E havia debaixo daquela frieza um desdém mal encoberto, talvez destinado a cortar de uma vez as esperanças do poeta.

A este curto diálogo dos dois seguiu-se um profundo silêncio, mal interrompido pelo leve ruído do leque com que Sílvia se abanava indolentemente.

Ouviu-se a voz do conselheiro que despedia o aliado político depois de assentar com ele em que a situação política não podia ser pior.

O conselheiro apareceu na sala pouco depois.

A presença do conselheiro era necessária na situação esquerda em que se achavam os dois. Sílvia levantou-se e foi ao pai, com um sorriso.

- Então, meu pai, já acabou as suas práticas de política?

- Já, já... E tu? Oh! não cuidei ter o prazer de encontrá-lo ainda aqui... Sr. Teófilo.

Teófilo, que se achava de pé, adiantou-se:

- É verdade, ainda aqui estava.

- Ora bem, há de tomar chá conosco.

- Desculpe, não posso... Já me ia embora.

- Já? Mas se não é negócio importante. Não tem mulher ciumenta...

- Tenho mãe, sr. conselheiro, mãe e irmã... ciumentas ambas... que me amam e a quem correspondo a estima e o amor que me têm.

Sílvia sorriu-se, batendo com o cabo do leque nos lábios...

Teófilo não reparou neste sorriso.

- Enfim, disse o conselheiro, se é assim, não quero ser a causa de dano algum a essas senhoras.

- Mas, até amanhã, não? Até... amanhã.

Teófilo apertou a mão ao conselheiro. Depois estendeu a sua a Sílvia, que lhe deu apenas as pontas dos dedos fazendo um leve sinal de cabeça... Mas quando retirou os seus dedos, Sílvia não pôde deixar de estremecer. Sentira que a mão de Teófilo estava fria de gelo.

O caminho entre a casa de Sílvia e a de Teófilo era longo. Teófilo venceu esse espaço absorto em amargos e dolorosos pensamentos. Palpitava-lhe o coração de dor, e no meio das torturas por que passava então, tinha grande parte do seu amor próprio ofendido.

Ao aproximar-se de casa viu um vulto à janela. Era Helena. O poeta não se admirou. Helena esperava-o sempre até ele chegar. Teófilo, que demorava sempre em trocar algumas palavras com a moça, nessa noite mal a cumprimentou, retirando-se logo para o quarto.

Helena estranhou isto, mas nada disse. Ficou na sala algum tempo e depois retirou-se para o seu quarto. Ao passar pela porta do quarto de Teófilo, Helena ouviu o som abafado de uns soluços. Parou e colou o ouvido à porta. A moça não se pôde conter: sentiu caírem-lhe as lágrimas e retirou-se apressadamente.

Com efeito, Teófilo apenas se viu só soltou livremente as suas lágrimas. Eram naturais estas lágrimas em uma natureza tão delicada e tão sensível. As lágrimas não são somente o apanágio da fraqueza, são também o sintoma da elevação e da delicadeza dos sentimentos. Teófilo chorava, como cantava: era uma maneira de exprimir as suas comoções.

Ora, estas comoções naquela ocasião eram das mais poderosas que podia sofrer o coração do poeta. Levara a construir um castelo de quimeras para vê-lo decaído com algumas palavras frias e desdenhosas de uma mulher. Reunira naquele amor todas as forças vivas da sua mocidade e do seu coração; e quando na plena confiança do amor em que ardia julgou receber a sentença da felicidade, ouvira pura e simplesmente a sentença de morte.

Mais ainda. Não era só o amor que ficara burlado: era o objeto do seu amor que se desonrava a seus olhos. Em sua fantasia de poeta e sua ignorância das coisas do mundo tinha imaginado na mulher que aluava uma alma tão pura como era pura a beleza física. Até esta ilusão se desvanecia. Aquela perfeição física era uma vulgaridade moral.

Quando se recebe uma dupla desilusão desta ordem, os olhos não têm vergonha de chorar sobre os sonhos desvanecidos. Os olhos do poeta choravam loucamente.

Mas a primeira explosão passou. Veio não a calma, mas o cansaço. Teófilo reuniu algumas idéias e pôde medir o horror da situação. De tal modo a viu que chegou a culpar-se de tudo o que ocorrera.

- Não vi eu, dizia ele consigo, que distância imensa me separava daquela mulher? Quem me levou a levantar olhos para tão alto? Era bem pensada a minha esquivança de outrora, e se eu nunca aceitasse o convite que me abriu as portas do mundo estaria agora tão calmo e tão tranqüilo como dantes. Volto agora com uma ilusão de menos e um remorso de mais. Eu devia ver desde logo que se ela me abria as portas de sua sala, não estava obrigada a abrir-me as do seu coração.

Teófilo resumiu estes sentimentos e estas reflexões em uma elegia que escreveu nessa mesma noite; soluço poético, solto no meio do devaneio da dor e na situação sombria do seu coração.

No dia seguinte a velha Tereza reparou no ar triste do filho e nos olhos pisados com que ele se levantou. Teófilo respondeu às solicitações da mãe, que esta última circunstância provinha de se ter deitado tarde; e quanto à tristeza, disse que nunca se achara de ânimo mais alegre.

Dizendo isto procurou sorrir.

D. Tereza acreditou.

Helena apareceu então apresentando o mesmo aspecto. As perguntas da mãe de Teófilo tiveram a mesma resposta.

Apesar de estranhar isto, D. Tereza não deu ao caso maior importância.

O almoço foi silencioso e triste.

Passaram-se alguns dias.

Teófilo continuou triste do mesmo modo, mas como não aparecia em casa senão tarde, não tinha ocasião de ser observado. As circunstâncias de Helena eram piores.

Helena no dia seguinte à noite em que ouvira soluçar Teófilo foi ao gabinete deste apenas o viu sair. Aí deu com os versos escritos na véspera.

Não eram os primeiros em que o nome de Sílvia aparecia a Helena. Já em poesias anteriores o mesmo nome deixava-lhe perceber no coração do poeta um amor desconhecido. A linguagem da última elegia deu a conhecer a Helena a situação do coração de Teófilo.

Helena deixou o gabinete enxugando as lágrimas.

Que sentia esta menina pelo poeta? Era simples amor de irmã ou amor de mulher? Não era o primeiro, e não se podia absolutamente dizer que fosse o segundo. O amor, dizem os moralistas, nasce de súbito. O que Helena tinha por Teófilo não era um sentimento de caráter semelhante.

Educados juntos, chegaram ambos à idade da adolescência e da mocidade sem que ela sentisse por ele mais do que uma simples afeição fraternal.

Essa afeição mudou de natureza com o andar dos tempos e a mudança das circunstâncias.

Quando o círculo das afeições de Helena se foi estreitando com a morte e a separação, a moça concentrava os sentimentos do seu coração até chegar a não ter para estima mais do que as duas criaturas com que a achamos agora: a velha Tereza e Teófilo

Concorreu outra circunstância para a mudança dos sentimentos de Helena relativamente ao filho de D. Tereza. Helena, no desenvolvimento completo da sua mocidade, não amara ainda. Ela olhou para o futuro e em redor de si. Não viu nenhum coração disposto a receber as primícias do seu.

Um dia, sem reparar, sentiu que se tivesse de escolher entre todos os homens um marido, era Teófilo aquele a quem daria a palma. A inteligência do moço, as suas qualidades, a estima que lhe tinha, tudo se reunia para trazê-lo à memória de Helena.

Desde então os seus pensamentos se voltaram para ele e uma revolução operou-se no espírito da moça. O que sentia era então mais terno que o afeto de irmã e menos ardente que o amor de mulher. Se este amor não era o resultado de uma simpatia íntima e súbita, tinha ao menos a qualidade de ter por fundamento a estima e o respeito, dois sentimentos bastantes para dar a felicidade a um casal.

Tal é a explicação da curiosidade de Helena relativamente às obras poéticas de Teófilo. A pobre moca compreendia que ali estava a alma do seu escolhido. Um dia, porém, não viu só a alma; viu a alma e viu uma página escrita da vida do poeta, página cor de rosa ao princípio, negra e sombria no fim.

Esta revelação trouxe o luto ao espírito de Helena. Era outra que ele amava. Se essa ao menos correspondesse ao amor de Teófilo, talvez a moça chorando o destino, não amaldiçoasse aquela que concorria com ela na escolha do mesmo homem. Mas não era assim. A amada do poeta não correspondia aos afetos dele.

D. Tereza notou a tristeza de ambos, como dissemos acima. Supôs ao princípio simples coincidência; mas afinal caiu-lhe uma suspeita no espírito. Talvez se amem de muito, talvez se arrufassem de pouco. Quis observar, mas nada conseguiu saber. Lembrou-lhe interrogar diretamente Helena; mas essa resolução não passou ao princípio de uma simples idéia. A questão era delicada.

Entretanto, uma noite em que Teófilo se achava em casa e procurava no estudo uma hora de distração, batem palmas à porta.

Era Augusto.

Teófilo recebeu-o no gabinete.

- Que me queres? perguntou ele ao amigo.

- Ouvem-nos? disse Augusto acendendo um charuto.

- Não.

- Bem.

- Que me queres?

- Sei tudo.

O que?

- Sei que amaste Sílvia, sei que lho disseste, sei que ela recusou o afeto do teu coração.

Teófilo empalideceu.

- Por que empalideces? perguntou Augusto.

- Por dois motivos: o primeiro é a recordação desse amor infeliz; o segundo é que esta derrota é para mim uma vergonha tal que eu quisera encobrir até aos meus mais íntimos amigos.

- Aceito o primeiro; quanto ao segundo...

- O segundo é igualmente aceitável.

- Não é. Seria a primeira derrota, mesmo com Sílvia?

- Creio que não é a primeira; mas não é derrota propriamente o que me dói e me envergonha; é que ela mostra o meu erro e a minha loucura em ter procurado vitória em terreno tão alto e tão difícil.

- Não digas isso...

- Por que não? Desejei o impossível; tive a paga do meu arrojo. Mas quem te disse tudo? Foi ela?

- Foi.

- Ah!

- Digo-to francamente para que avalies a namoradeira em cujos olhos puseste a estrela das tuas ambições amorosas. Contou-me ela ontem tudo o que se passou, isto entre um movimento de leque e uma escala do piano. Não te vingas isso?

- Não. Embora não aceitasse o meu coração, eu desejara que ela ficasse sendo a mulher nobre e elevada que eu sonhei nas minhas noites de febre.

- Vim dizer-to para que mais depressa esquecesses aquela mulher. Se o teu amor ficasse ofendido, era mau para ti e para nós: sucumbias. Mas se deste naufrágio só o teu amor próprio houver sofrido, é certo que viverás.

- É a primeira hipótese: eu já não vivo.

- Tenho a esperança de que há de ser a segunda.

- Desejos de amigo! disse Teófilo suspirando.

- Adeus, disse Augusto levantando-se e abraçando o poeta.

O poeta acompanhou Augusto até a porta.

Quando voltou para o quarto, Teófilo encontrou Helena na sala de jantar.

Ao principio não reparou, mas depois viu que a moça tinha os olhos rasos de lágrimas.

- Que tem, Helena? perguntou ele.

- Nada: dor de cabeça.

Teófilo olhou silenciosamente para a moça e retirou-se.

Causou-lhe estranheza aquilo. Que motivos terão aquelas lágrimas? perguntou ele consigo.

Procurou, e a sua primeira idéia foi que Helena amasse Augusto. Qualquer que fosse a singularidade desta explicação, todavia ela pareceu a Teófilo mais plausível do que a de que ele fosse o amado daquele jovem coração.

Dois dias passaram-se depois disto. No fim desses dois dias D. Tereza foi a primeira a romper o silêncio e a perguntar afoitamente a Teófilo a causa da tristeza de ambos.

Apanhado de surpresa, Teófilo não teve que responder. Não só esta pergunta recordou-lhe diretamente o triste amor por Sílvia, como aproximava em uma só causa a tristeza dele e a tristeza de Helena.

Está última circunstância calou-lhe no espírito.

- Eu nada tenho, disse ele depois de algum tempo. Quanto a Helena, não sei.

- Amam-se, talvez? perguntou D. Tereza.

E como Teófilo não respondesse, a boa velha acrescentou:

- Pois é o que podiam fazer de melhor. Eis o que me daria a mais completa felicidade.

Teófilo retirou-se pensativo.

Seria ele amado por Helena? Teria ele roçado cem vezes aquele amor ingênuo, respeitoso, sem dar por ele? Sofreria ela a dor que ele sentiu quando a indiferença de Sílvia cortou em flor as suas esperanças?

Estas perguntas foram feitas por Teófilo a si próprio sem que ele pudesse dar-lhes uma resposta completa.

Uma circunstância trouxe toda a luz à situação. Tendo saído de manhã voltou imediatamente em busca de um livro que esquecera e que lhe era necessário a lição que ia dar naquele dia.

Entrou sem ser sentido e foi ao gabinete. Ali estava Helena, diante da porta aberta, tendo na mão uma folha de papel.

Eram versos.

Helena quando o sentiu ficou sem saber o que fazia. Olhou para ele e conservou na mão o papel.

Tinha o semblante triste, mas procurou alegrá-lo com um sorriso. Não pôde. Era um sorriso que a traiu.

Teófilo encaminhou-se para ali e pegou na mão de Helena.

- Amas-me, Helena?

A moça abaixou os olhos.

Teófilo repetiu a pergunta.

- Sim; murmurou a moça.

- Quer ser minha mulher?

Helena fugiu sem dizer palavra.

Teófilo viu-a desaparecer e disse consigo:

- Sei o que são estes sofrimentos. Padeci; não quero que ela padeça. Serei dela. Este amor curar-me-á.

No dia seguinte Augusto recebia esta carta de Teófilo.

"Meu amigo. - Fui buscar o impossível, tendo o possível à mão. Vê como andava errado. Queres ser meu padrinho de casamento? Helena vai ser minha mulher".


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 29 de outubro de 2021

O PORCO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O PORCO

Humberto de Campos

 

 

 

A terra estava ainda mole do Dilúvio, mas começavam a rebentar, já, aqui e ali, as sementes das plantas resistentes. E como já houvesse, no solo libertado das águas alimento bastante para a bicharia salva da inundação, resolveu Noé, naquela manhã de grande sol e de grandes ventos, abrir as portas da arca, encalhada na areia.

 

— Primeiro os veados, — ordenou o Patriarca.

 

Jafet correu à proa da embarcação, espantou um casal de gamos que devorava uns restos de palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em disparada, estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.

 

— Agora, os leões.

 

Cham instigou, cauteloso, um leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a claridade intensa do sol, e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando com força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.

 

E assim foram saindo, dois a dois, os camelos, os cavalos, as zebras, as girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os castores, os cães, as águias, os milhafres, as cotovias, tudo, em suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra ou do ar.

 

Deserta a Arca, notou Noé, ao passar-lhe revista, que, no lugar em que estivera o elefante, ficara, empestando o ambiente, um monte de imundice, de lama pútrida, que repugnava.

 

— Sem? Cham? Jafet? — gritou o velho, chamando os filhos.

 

Os rapazes acudiram, tapando o nariz.

 

— Tirem daqui esta indignidade, — ordenou.

 

Os futuros construtores de Babel entreolharam-se, horripilados com aquela incumbência nauseante. E iam principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o pai, compreendendo-lhes o escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe acudido uma ideia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:

 

— Move-te!

 

A montanha de imundice estremeceu por si mesma, ergueu-se acima do soalho alguns centímetros, suspensa por quatro pés invisíveis.

 

O Patriarca estendeu os braços e, novamente, determinou:

 

— Retira-te!

 

O monte de lama podre partiu correndo, buscando misturar-se com a lama que ficara das águas.

 

Tinha nascido o porco.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 27 de outubro de 2021

LÁGRIMAS DE XERXES (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO


Literatura - Contos e Crônicas terça, 26 de outubro de 2021

O ESPIRITISMO ENTRE OS SINCEROS (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

O ESPIRITISMO ENTRE OS SINCEROS

João do Rio

 

 

 

O marechal Ewerton Quadros esperava um bonde para a cidade, quando um bonde passou inteiramente vazio.

- Por que não toma este? - perguntaram-lhe.

O marechal mergulhou mais a face adunca nas barbas matusalêmicas:

- Não é possível. Está cheio de espíritos maus! - e, como aparecesse outro inteiramente cheio, agarrou-se ao balaústre e veio de pé até à cidade.

Desde que se deixa a traficância do baixo espiritismo, que se conversa nas rodas intelectuais cultivadas, esse estado alucinante torna-se normal.

Ao subirmos as escadas da Federação, o meu amigo ia dizendo.

 

There are more things in heaven and earth, Horatio,
There are more dreams in your philosophy.

 

Esses melancólicos versos temerosos, do mundo invisível, resumem o nosso estado mental.

Muita coisa há no mundo de que não cuida a nossa vá filosofia, muita coisa há neste mundo invisível...

Já não se conta o número de espíritos ortodoxos, conta-se a atração dos nossos cérebros mais lúcidos pela ciência da revelação. A Marinha, o Exército, a advocacia, a medicina, o professorado, o grande mundo, a imprensa, o comércio têm milhares de espíritas. Há homens que não fazem mistério da sua crença. Os generais Girard e Piragibe, o major Ivo do Prado, o almirante Manhães Barreto, Quintino Bocaiúva, Eduardo Salamonde, os Drs. Geminiano Brasil, Celso dos Reis, Monte Godinho, Alberto Coelho, Maia Barreto, Oliveira Menezes, Alfredo Alexander proclamam a pureza da sua fé. A Federação tem 800 sócios e ainda o ano passado expediu 48 mil receitas.

Os que não praticam a moral, aceitam a parte fenomenal. E ao chegar a essa esfera que se começa a temer a frase do católico: "O espiritismo é um abismo encantador; foge ou de lá nunca mais sairás". Se na sociedade baixa, centenas de traficantes enganam a credulidade com uma inconsciente mistura de feitiçaria e catolicismo, entre a gente educada há um número talvez maior de salas onde estudam o fenômeno psíquico e a adivinhação do futuro, com correspondência para Londres e um ar superiormente convencido.

Decerto, em parte, a frivolidade que faz senhoras elegantes citarem poetas franceses e conversarem de ocultismo nos gutters invernais, faz de algumas dessas sessões um divertimento idêntico à lanterna mágica e ao laun-tennis; decerto há entre os mais convictos Bouvard, Pécuchet e mesmo o conselheiro Acácio; mas, frívolos e tolos foram sempre os meios inconscientes de expansão de uma crença, e o espiritismo científico deles se serve para triunfar.

Nas rodas mais elegantes, entre sportsmen inteligentes, lavra o desespero das comunicações espíritas, como em Paris o automobilismo.

Ainda há alguns meses senhores do tom, ao voltarem do Lírico, encasacados e de gardênia ao peito, comunicavam-se no Hotel dos Estrangeiros com as almas do outro mundo, por intermédio de uma cantora, medium ultra-assombroso.

À tarde na Colombo, esses senhores combinavam a partie de plaisir, e à noite nos corredores do Lírico, enquanto o Caruso rouxinoleava corpulentamente para encanto das almas sentimentais, eles prelibavam as revelações sonambúlicas da medium musical.

Esses fatos são raros, porém, e as experiências assombrosas multiplicam-se; os mediuns curam criaturas a morrer. Leôncio de Albuquerque, que tratava caridosamente a Saúde em peso, anuncia, sem tocar no doente, o primeiro caso de peste bubônica, e cada vez mais aumenta o número de crentes.

O meu amigo dizia-me:

- Nunca se viu uma crença que com tal rapidez assombrasse crentes. Se o Figaro dava para Paris cem mil espíritas, o Rio deve ter quase igual soma de fiéis. O Brasil, pela junção de uma raça de sonhadores como os portugueses com a fantasia dos negros e o pavor indiano do invisível, está fatalmente à beira dos abismos de onde se entreve o além. A Federação publicou uma estatística de jornais espíritas no inundo inteiro. Pois bem: existe no mundo 96 jornais e revistas, sendo que 56 em toda a Europa e 19 só no Brasil.

- Como se reconhecem as nossas aptidões literárias!

- Não ria. Tudo na terra tem a sua dupla significação.

- E quais são essas revistas e jornais?

- Mensageiro, em Manaus (Amazonas); Luz e Fé e Sofia, em Belém (Pará); A Cruz, em Amarante (Piauí); Doutrina de Jesus, em Maranguape (Ceará); A Semana (ciências e letras), no Recife (Pernambuco), A Verdade, em Palmares (Pernambuco); O Espírita Alagoano, A Ciência, em Maceió, (Alagoas); Revista Espírita, em S. Salvador (Bahia); Reformador, no Rio de Janeiro; Fraternização, Verdade e Luz, A Nova Revelação, O Alvião e A Doutrina, em Curitiba (Paraná); Revista Espírita, em Porto Alegre (Rio Grande do Sul); A Reencarnação, no Rio Grande; O Allan Kardec, em Cataguazes (Minas Gerais).

- Como começou esta propaganda no Brasil?

- Homem, o Sr. Catão da Cunha diz que os primeiros espíritas brasileiros apareceram no Ceará ao mesmo tempo que em França. A propaganda propriamente só começou na Bahia, no ano de 1865, com o Grupo Familiar do Espiritismo.

Era o espiritismo em família, ab ovo, porque aos quatro anos depois surgiu o primeiro jornal, dirigido pelo Dr. Luís Olímpio Teles de Menezes, membro do Instituto Histórico da Bahia. Esse jornal intitulava-se O Eco de Além Túmulo. A propaganda tem sido rápida.

Ainda em 1900 no seu relatório ao Congresso Espírita e Espiritualista de Paris, a Federação acusava adesões de setenta e nove associações e o aparecimento de trinta e dois jornais e revistas de propaganda, entre os quais o Reformador, que conta vinte e quatro anos de existência.

Basta esse relatório para afirmar a força latente da crença.

- Vamos à Federação, o centro onde se praticam todas as virtudes do espiritismo. Verá com os seus próprios olhos.

A Federação fica na rua do Rosário, 97. É um grande prédio, cheio de luz e de claridade. Cumprem-se aí os preceitos da ortodoxia espírita; não há remuneração de trabalho e nada se recebe pelas consultas. A diretoria gasta parte do dia a servir os irmãos, tratando da contabilidade, da biblioteca, do jornal, dos doentes. A instalação é magnífica. No primeiro pavimento ficam a biblioteca, a sala de entrega do receituário, a secretaria, o salão de espera dos consultantes e os consultórios. Seis mediuns psicográficos prestam-se duas horas por dia a receitar, e as salas conservam-se sempre cheias de uma multidão de doentes, mulheres, homens, crianças, figuras dolorosas com um laivo de esperança no olhar.

A casa está sonora do rumor contínuo, mas tudo é simples, caridoso e sem espalhafato. Quando entramos não se lhe altera a vida nervosa. A Federação parece um banco de caridade, instalado à beira do outro mundo. Os homens agitam-se, andam, conversam, os doentes esperam que os espíritas venham receitar pelo braço dos mediuns, sob a ação psicográfica, falam e conversam enquanto o braço escreve.

Atravessamos a sala dos clientes, entramos no consultório do Sr. Richard. Há, uma hora que esse honrado cavalheiro, espírita convencido, escreve e já receitou para quarenta e sete pessoas.

- Há curas? - perguntamos nós, olhando as fileiras de doentes.

- Muitas. Nós, porém, não tomamos nota.

- Mas o senhor não se lembra de ter curado ninguém?

- A mim me dizem que pus boa uma pessoa da família do general Argolo. Mas não sei nem devo dizer. É o preceito de Deus.

Deixamo-lo receitando, já perfeitamente normalizados com aquele ambiente estranho, e interrogamos. Há milhares de curas. A Sra. Georgina, esposa do Sr. César Pacheco, depois de louca e cega, ficou boa em dez dias; o Sr. Júlio César Gonçalves, morador à rua de Santana, n. 26, que tinha o corpo num só dartro, curou-se em dois meses com passes magnéticos; D. Jesuína de Andrade, viúva, quase tísica, em trinta dias salva, e outros muitos.

Que valor têm essas declarações? Os doentes enfileirados parece crerem e o Sr. Richard é a fé em pessoa. É quanto basta talvez.

No segundo pavimento, encontramos desenhos de homens ignorantes inspirados pelos grandes pintores. Rafael guia a mão de operários em movimentados quadros de batalhas, e outros pintores mortos, sob incógnito, fazem desenhos extraordinários por intermédio de maquinistas da Armada...

Essas coisas nos eram explicadas simplesmente, como se tratássemos de coisas naturais.

- Quando há sessão? - perguntou o nosso amigo.

- Hoje, às 7 horas. Podem ver, é a sessão de estudo.

Nós ainda olhamos fotografias de espíritos, o retrato de D. Romualdo, um sacerdote que de além-túmulo vem sempre visitar a Federação, e esperamos a sessão de estudo, atraídos, querendo ver, querendo ter a doce paz daqueles entes.

A sessão começou às 7½, na sala do 2.º andar, toda mobiliada de canela cirée com frisos de ouro. Nas cadeiras, cavalheiros de sobrecasaca, senhoras, demoiselles. Os bicos Auer acesos banhavam de luz clara toda a sala, e pelas janelas abertas ouviam-se na rua o estalar de chicotes e gritos de cocheiros.

Sem as visitas do irmão Samuel, ninguém diria uma sessão espírita. Depois de lida e aprovada a ata da sessão anterior, como na Câmara dos Deputados, Leopoldo Cirne, o presidente, que ao começo nos dissera um adeusinho, perfeitamente mundano, transfigura-se e a sua voz toma suavidades inéditas.

- Concentremo-nos, irmãos!

Imediatamente todos fechamos os olhos, como querendo concentrar o pensamento numa única idéia. As senhoras tapam o rosto com o leque e têm os olhos cerrados. De repente, como movida por todas aquelas vontades, a mão do psicógrafo cai, apanha o papel, o lápis, e escreve rapidamente linhas adelgadas. No silêncio ouve-se o lápis roçando o papel de leve; e é nesse silêncio que o lápis pára, o medium esfrega os olhos e começa a leitura da comunicação.

- "Paz! Irmãos. Deus seja convosco. As palavras do filósofo grego: conhece-te a ti mesmo...

É Samuel o espírito que fala, achando que para compreender a vida e o bem é necessário antes de tudo conhecermo-nos a nós mesmos. Leopoldo Cirne não se move.

Quando Samuel termina, ouve-se então a sua voz delicada, trêmula de humildade.

É ele quem faz o comentário.

- Meus irmãos, essas palavras que Sócrates mandou inserir no templo de Delfos...

E esse homem, que nós vemos tão correto e tão mundano, gostando de Eça de Queirós e lendo Verlaine, surge-nos o pastor, o rabi, o iniciador. O seu semblante espiritualiza-se em atitudes extáticas, a sua voz é a blandícia mesma que nos acaricia a alma pregando a bondade e a demolição das vaidades. As senhoras ouvem-no ansiosas; ao nosso lado dizem-no inspirado, atuado pelos espíritos. De tal forma é sutil o seu raciocínio, de tal forma desfaz velhas crenças no incensário de um Deus espiritual que, decerto, se o atuam espíritos, fala pela sua boca Ponce de Léon.

Ele cala, enxuga a face. Depois, no estudo do Evangelho, no trecho de Jesus com os escribas e fariseus sobre o alimento da alma, de novo a sua voz corre como um fio d'água entre sombras macias, sorvida por toda aquela gente atenta e sôfrega. Leopoldo Cirne acaba num sopro, tão baixo que mais parece uma vaga harmonia.

Em seguida fala o Sr. Richard, que condena alguns dos nossos males, entre os quais o patriotismo - porque não se pode amar uns mais do que outros, quando todos, são iguais perante Deus.

- Terminamos o nosso estudo. Não há mais quem queira falar?

Leopoldo Cirne ergueu a loira cabeça de Salvador, fixando os olhos na minha pobre pessoa. Era a atração do abismo, uma explicação indireta, feita como quem, muito cansado da travessia por mundos ignorados, viesse a conversar à beira da estrada com o viandante descrente.

"O Espiritismo, fez ele, ou revelação dos espíritos, sistematizada em doutrina por Allan Kardec, que recolheu os seus ensinos acerca do universo e da vida e das leis que os regem, e com os quais formou as obras ditas fundamentais O Livro dos Espíritos - O Livro dos médiuns - O Céu e o Inferno - A Gênese - O Evangelho segundo o Espiritismo, reúne o tríplice aspecto de ciência, filosofia e moral ou religião.

Como ciência de observação, estuda, não somente os fenômenos espíritas, desde os mais simples, como os ruídos e perturbações (casas mal-assombradas) e os efeitos físicos (deslocação de objetos sem contato) etc., até os mais transcendentes, como as materializações de espíritos (observações de Crookes, Aksakoff, Zoellner, Dr. Gibier etc.), como também todos os fenômenos da natureza, investigando a gênese de todos os seres, numa vasta síntese, e neles buscando a origem do princípio espiritual, dos estados mais rudimentares aos mais complexos pois que um germe, um esboço dessa natureza parece constituir a essência de toda forma. Em tais condições, relaciona-se com todos os ramos das ciências humanas: a física, a química, a biologia, a história natural etc., sem esquecer a própria astronomia, por isso que igualmente sonda o universo sideral, "as diversas moradas da casa do Pai" de que falou Jesus, e que são os mundos habitados, disseminados no infinito.

Ao lado de tais observações, procura fixar as leis do universo e da vida, das quais a da evolução é a chave, estando tudo submetido ao progresso, na ordem física, moral e intelectual.

Como filosofia, sobre esses dados da observação desdobra as mais lógicas induções, partindo do infinitamente pequeno e dos raciocínios mais elementares para o infinitamente grande e até às mais transcendentes conseqüências, isto é, até à demonstração da existência de Deus.

Sobre aquele princípio da evolução universal, prova com a pluralidade dos mundos a pluralidade das existências da alma, a imanência da lei eterna de justiça, em virtude da qual o espírito, depois de cada existência, colhe as lições da experiência (de resto, permanente na vida quotidiana) e sofre as conseqüências de seus atos bons ou maus, sendo assim feliz ou desgraçado, trazendo para a outra existência, em uma nova encarnação, as suas aquisições do passado, que se denunciam nas tendências e aptidões inatas, guardando assim latente a reminiscência substancial desse passado, com esquecimento apenas do circunstancial, isto é, dos fatos concretos e dos incidentes, além de tudo porque no cérebro atual só se acham gravadas as impressões dessa nova vida. Tudo o mais está guardado nas profundezas da subconsciência, podendo reaparecer nos estados de sonambulismo e, em geral, em todos os casos de desdobramento - experiência do magnetismo e de psicologia transcendental.

Assim prossegue, de vida em vida, a evolução insefinitae do espírito, sendo-lhe acessíveis todas as perfeições, que conquistará pelo próprio esforço.

Com a evolução dos indivíduos e, por conseguinte, das humanidades, coincide a evolução dos mundos fisicamente, devendo a nossa terra, como todas as do espaço, ao aperfeiçoamento já assinalado das épocas pré-históricas aos nossos dias acrescentar novos e constantes aperfeiçoamentos, em harmonia com essas maravilhosas leis da criação, que constituem o lado mais belo do estudo filosófico do Espiritismo.

Como moral ou religião e no sentido de favorecer a realização do seu ideal filosófico, o Espiritismo se propõe o restabelecimento do Evangelho de Jesus, que a igreja deturpou e fez cair no olvido.

O seu lema é: "Fora da caridade não há salvação..."

E por conseguinte tolerante e, fiel às máximas cristãs fundamentais: "Não faças aos outros o que não queres que te façam".

- "Ama o teu próximo como a ti mesmo", não hostiliza nenhuma crença, respeitando todas as convicções sinceras.

E, sob qualquer dos seus aspectos, partidário do livre exame, nada recomendando que seja aceito e admitido sem a sanção do raciocínio, porque sabe, com o Mestre Allan Kardec, que "a única fé inabalável é aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade".

O Espiritismo, em suma, sobre explicar todas as aparentes anomalias da vida, vem oferecer o conforto e a esperança aos que sofrem, aos que erram e se transviam no mal, cedendo às suas múltiplas ciladas; vem esclarecer acerca das suas responsabilidades, dando à vida um objetivo alto, nobre e digno, sobranceiro às torpes materialidades e às transitórias vicissitudes; aos que procuram lealmente a verdade proporciona um ideal que ultrapassa as mais exigentes aspirações da inteligência e da razão.

A todos oferece a calma interior, a paz, a resignação, a paciência e a fé inabalável no futuro. É, pois, o problema da regeneração e da felicidade humana que vem resolver.

Houve um longo silêncio. Um homem magro levanta-se e conta que veio da casa de um irmão agonizante. O irmão deseja uma oração e pede aos amigos não o deixem de ver.

- Concentremo-nos! - diz de novo a voz expirante do presidente.

As frontes curvam-se, o medium toma o lápis. É Samuel que volta.

- Paz! - diz ele - a vaidade é um monte que nos separa do bem. Entretanto, irmãos...

Com a presença do espírito de Samuel, levantam-se todos e Richard faz a oração pelo irmão agonizante para que o guarde em bons céus.

Depois um arrastar de cadeiras, apertos de mão, riso, conversa. Está acabada a sessão. Leopoldo Cirne volta da sua transfiguração, recobrando a voz habitual e a cortesia de sempre.

Faço, receoso, um cumprimento aos seus dotes sagrados.

- Ah! - sim? faz ele, pasmado, como se nunca se tivesse ouvido.

Então peguei no chapéu sorrateiramente. Esse constante estado flutuante entre a realidade e o invisível, essas fugidas ao espaço para conversar com os espíritos, a caridade evangélica do homem à beira do real eram alucinantes. Desci as escadas devagar, aquelas escadas por onde subia sempre a romaria dos enfermos; na rua enxuguei a fronte, olhando o edifício, menos misterioso que qualquer clube político. E como passasse um bonde inteiramente vazio, refleti que esse bonde podia ser como o do marechal Quadros e voltei, a pé, devagar, para não dar encontrões nas pessoas que talvez comigo tivessem passado todo aquele dia do outro mundo.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 25 de outubro de 2021

MILINA E O TURCO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

MILINA E O TURCO

Raul Pompéia

 

 

 

I

Estava a tarde feia, úmida, aborrecida.

Quem entrava, trazia os pés molhados; quem saia levava a certeza de se encharcar à porta. Dentro em pouco devia anoitecer. O sol caíra para lá das casas que fechavam a boca da rua ao ocidente...

Na estalagem, os quartos estavam já escuros, e esta escuridão vinha contaminando pouco a pouco o palco central, onde se amontoavam as tinas de lavagem e a roupa suja que ficara esquecida.

Emília, a pequenina Emília, com um saiote curto, que lhe deixava descobertos os joelhos, estava assentada na porta de um quartinho estreito e imundo. Aproveitava o luar do lusco-fusco para pegar na boneca. A pobre criança com os seus seis anos só trabalhava dia e noite. Feliz noite para ela, o lusco-fusco não é dia, nem é noite. A sua faina arrefecia naquela hora.

A boneca...

Digamos que boneca era: um saquinho de chita sem cor própria, cheio de trapos, comprido e apertado em uma das pontas por um cordão. Este cordão era a graça daquele miserável brinco. Representava de pescoço; era a beleza plástica forjada pela pobre imaginação de Emília para a sua Milina.

A boneca, ou antes Milina, caíra numa poça d'água e estava pingando...

A pequena, com o seu rostinho meigo e contristado, acariciava-a. Quem a visse teria pena.

- Emília! Emília! gritou uma voz arrotada.

A voz gritava de dentro do quarto. Lá na sombra entrevia-se o vulto de uma mulher espichada no chão sobre um monte de panos escuros e imundos, cheirando a vinho.

II

Emília, descalça, saiu da estalagem, correndo, com um regador amarrotado e ferrugento. Era tão grande para ela o regador que ia roçando pelos lajedos. Ia buscar água para a pocilga da senhora que a protegia.

E Milina?... Pobre Milina! Emília havia de lhe pedir perdão por tê-la deixado só, naquela hora que era a única em que a coitada dormia no colo de mamãe...

III

Um belo cão negro enfeitado de bastos pêlos reluzentes, orgulhoso em extremo, espécie de cão fidalgo, entrou pelo cortiço, com a cauda enroscada em penacho e as orelhas erguidas. Logo depois voltou, atirando ao ar as grandes patas, saltando alegre. De vez em quando, sacudia o focinho e via-se alguma coisa a balançar pendente. A pouca distância, o dono do cão, o filho do sr. Visconde, pequenote de calças curtas ainda, e já pelintra, soltava largas risadas, batendo com o pezinho bem calçado na soleira de mármore do palacete da família. Com um chicotinho fino fustigava o ar e ria-se... ria-se...

IV

Emília vinha da bica da esquina, arrastando o regador cheio a transbordar.

Aquele cachorro!...

Ao chegar à porta da estalagem viu o cão.

O animal galopava para o palacete e levava Milina nos dentes.

Emília fora de si atirou o regador, que tombou na sarjeta e voou sobre o animal...

V

O filho do Visconde tomou-lhe a frente continuando a rir-se da brincadeira do seu Turco.

- Mau! menino mau! gritou Emília, avançando para o pequeno.

O chicotinho zuniu três vezes...

Emília recuou, e levou as mãozinhas aos seus olhos tão belos e tão bons, soltando um longo:

-Ai!

Foi pungente.

Emília estava cega.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 24 de outubro de 2021

OS ÓCULOS DE PEDRO ANTÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

OS ÓCULOS DE PEDRO ANTÃO

Machado de Assis

 

 

 

Três causas diversas podem aconselhar o uso dos óculos. A primeira de todas é a debilidade do órgão visual, causa legítima, menos comum do que parece e mais vulgar do que devia ser. Vê-se hoje um rapaz entrado na puberdade e já adornado com um par de óculos, não por gosto, senão por necessidade. A natureza conspira para estabelecer o reinado dos míopes.

 

Outra causa do uso destes auxílios da vista é a moda, o capricho, ou, como diz Rodrigues Lobo, a galantaria. O ameno escritor exprime-se deste modo: “Assim é que até óculos, que se inventaram para remediar defeitos da natureza, vi eu já trazer a alguns por galantaria”. Efetivamente quem quiser passar por verdadeiro homem do tom deve trazer, não direi óculos fixos que é só próprio de sábios e estadistas, mas estas famosas lunetas-pênseis, que são úteis, cômodas e graciosas, dão bom aspecto, fascinam as mulheres, servem para os casos difíceis e duram muito.

 

Da terceira causa quem nos dá noticia é nem mais nem menos o gravíssimo Montesquieu. Diz ele: “Os óculos fazem ver demonstrativamente que o homem que os traz é consumado nas ciências, por modo que um nariz ornado com eles deve ser tido, sem contestação por nariz de sábio”. Conclui-se disto que a natureza é um causa secundária dos estragos da vista e que o desejo de parecer ou de brilhar produz o maior número dos casos em que é necessária a arte dos Reis.

 

Está já o leitor um pouco atrapalhado com este intróito que lhe parece mais de folhetim que de romance ou então pergunta consigo mesmo a qual destas coisas atribui eu os óculos de Pedro Antão. Isto não é folhetim, nem romance: é uma narração fiel do que me aconteceu há cerca de três anos: é crônica. Quanto a Pedro Antão é positivo que os seus óculos deviam ter por causa o enfraquecimento da vista; mas ainda assim não lhe posso afirmar nada, porque Pedro Antão, que eu não conheci, foi o homem mais singular das tais crônicas, viveu recluso durante a vida inteira e mal consta alguma coisa dos seus primeiros anos.

 

Há cerca de três anos, como dizia, recebi a seguinte carta do meu amigo Mendonça:

 

Pedro. Recebi hoje as chaves da casa de meu tio; vou abri-la. Queres acompanhar-me? Não penses que é por medo de lá entrar só; é porque eu sei que tu tens interesse e gosto em penetrar nos negócios misteriosos: e nada mais misterioso que a casa do famoso tio. Vem ao meio-dia. Teu Mendonça.

 

A minha resposta foi a seguinte:

 

José. — Vou, mas não ao meio-dia. Entrar em casa misteriosa, quando o sol está no zênite, é anacronismo. Irei às 11 horas da noite, e à meia-noite em ponto entraremos na casa do defunto. Teu Pedro.

 

Perto das 11 horas, depois de ter dito à família que ia ver um doente grave, por eu ser médico e costumo ver doentes à noite, investi para casa de Mendonça, que era na Rua do Areal.

 

Mendonça estava ceando; comi com ele um pouco de fiambre e de assado frio, engoli dois cálices de Madeira, tomei uma xícara de chá saboroso como aquele chá da comédia de Garção, e à meia-noite menos vinte minutos, saímos para ir ver a casa de Pedro Antão.

 

Pedro Antão tinha morrido dez meses antes; achou-se-lhe um testamento em que deixava a casa, os livros e mais objetos ao sobrinho Mendonça — com a condição de que só tomaria conta da casa dez meses depois. Mendonça estava então no boulevard dos Italianos, único sítio de Paris que conheceu e conhece a fundo, quando recebeu esta notícia. Riu muito da singularidade do tio, e veio ao Rio de Janeiro expressamente para tomar conta da casa. Aguardou religiosamente o termo da posse, e no dia 23 de março de manhã recebeu oficialmente as chaves que ansioso esperava.

 

A chave e a fechadura resistiram com força aos esforços que o Mendonça e eu fazíamos para abrir a porta. Felizmente vinha conosco um latagão, criado de Mendonça, sujeito que se gabava de não encontrar porta nem mulher que lhe resistisse. Arremeteu o sujeito com um denodo raro, e a porta gemeu e daí a alguns minutos estávamos no corredor. Aí despedimos o criado, depois de alguma oposição de Mendonça, que afirmava ser necessário ter mais alguém conosco. O criado saiu, e eu encostei a porta. Acendemos então uma das velas que trazíamos para o caso, e subimos uma escada velha e úmida que ia ter ao primeiro andar.

 

Não foi fácil a subida, porque, de quando em quando, surgia de um lado um rato, que esbarrava em nossas pernas e duas ou três baratas, assustadas com os inquilinos, voaram de um lado para outro, indo esbarrar nas paredes, e escorregando depois até o chão. Além disso, sentíamos aquele mau odor que exala de uma casa fechada durante muito tempo. Felizmente, Mendonça tivera a precaução de trazer consigo plantas e pós aromáticos, que queimamos na sala de visitas apenas lá entramos.

 

Mendonça achou-se mal ali dentro. Era um elegante de primeira classe, amigo do conforto, ao passo que eu, sem deixar de amar a comodidade e o asseio, estava disposto a aproveitar aquela página de romance tétrico que se me afigurava ver no interior da casa misteriosa.

 

— Vê lá, disse Mendonça, onde queres que nos sentemos?

 

— Nestas cadeiras.

 

— Sujas como estão?

 

— Limpam-se.

 

— Quem as há de limpar?

 

— Eu.

 

Mendonça levantou os ombros; eu tirei da algibeira dois lenços e com eles limpei o melhor que pude duas cadeiras das que ali se achavam.

 

Mendonça viu-me fazer esta operação com um sorriso de homem resignado a tudo.

 

— A casa não é má, disse eu, sentando-me em uma das cadeiras para lhe dar exemplo; e a mobília pode ser restaurada. Teu tio tinha gosto.

 

— Vamos ver o resto da casa, disse Mendonça.

 

— Espera.

 

— Esperar o quê? ficaremos agora a contemplar a sala?

 

— Pareces-me tolo, respondi; tu queres a herança do tio, e eu quero conhecer o homem. A sala é um primeiro indício. Vês este painel sobre a mesa?

 

Mendonça aproximou-se da mesa.

 

— Vejo, disse ele, é a Madona da cadeira.

 

— Cópia de Rafael. Já por aqui sabemos que o homem amava as artes. A cópia não é má, e a moldura é severa.

 

— Cá temos outro painel, disse Mendonça apontando para a parede.

 

Subi ao sofá e aproximei a luz do quadro.

 

— Não conheço este, disse eu.

 

— É um Velásquez, disse Mendonça; vi um igual em casa do conde de Chantilly.

 

— Que conde é esse?

 

— Não era conde, respondeu Mendonça acendendo um charuto; chamávamo-lo assim por ser um dos primeiros heróis das corridas de Chantilly.

 

— Aposto que morava no boulevard...

 

— Dos Italianos.

 

Acendi também um charuto enquanto Mendonça me contava uma aventura parisiense em que entravam ele, o conde e uma estrela do bosque de Bolonha. Deixei que a conversa levasse esse caminho, porque era o meio de reter o meu companheiro.

 

Já vês, disse eu voltando ao meu assunto, já vês que teu tio tinha gosto; Rafael e Velásquez são alguma coisa. Vamos ver o resto da casa.

 

Seguia-se outra sala menor que a primeira, onde nada havia que seja digno de nota. Apenas vimos sobre uma mesa um cachimbo alemão, que necessariamente devia ter pertencido ao Cavaleiro Teodoro Hoffmann, pois a sua forma era de todo fantástica. Representava uma figura do diabo, com chapéu de três bicos, cruzando as pernas, que eram de cabra.

 

— Olé! disse Mendonça; o tio fumava!

 

— Parece que sim; e o cachimbo não me parece ortodoxo.

 

— Pelo contrário, respondeu Mendonça; não pode ser mais ortodoxo do que é; meter fogo na cabeça do diabo não te parece digno de um servo de Deus?

 

— Tens razão! disse eu sorrindo.

 

Mendonça readquiria o seu bom humor e era isso justamente o que eu queria. Se não fosse assim, era provável que nos fôssemos embora dentro de dez minutos. Agora estava tranqüilo; quando Mendonça estava de bom humor obedecia a tudo.

 

Depois de examinarmos o cachimbo que, além daquela não oferecia nenhuma particularidade, seguimos por um corredor e fomos ter à sala de jantar. Esta como outras salas e quartos da casa, nada tinha que se parecesse com mistério. Passando por um dos corredores vimos uma escada que ia ter a um sótão. Subimos. No meio da escada, Mendonça estacou; ouvira um rumor em cima.

 

— São ratos, disse-lhe eu.

 

— Serão? perguntou Mendonça empalidecendo um pouco.

 

— Querias que fosse a alma do Antão?

 

Subi afoitamente; Mendonça, envergonhado, subiu também. A coragem de muita gente não tem outra explicação. Não é sempre por valentia que os homens são valentes, diz La Rochefoucauld.

 

Vasto era o sótão. Compunha-se de uma sala de estudo e de escrita, uma alcova na frente, e uma vasta sala no fundo. Era por assim dizer um segundo andar.

 

O que primeiro examinamos foi a sala da frente cuja mobília se compunha de algumas cadeiras, uma secretária, duas estantes, um sofá, tudo como qualquer mortal pode ter. Havia sobre a secretária dois bustos de mármore, e aqui começa o fantástico: uma era a cabeça de Cristo, outra a de Satanás. Cristo estava à direita, Satanás à esquerda.

 

— Bravo! exclamei; vou penetrando no homem. Achas ainda alguma ortodoxia nesta aproximação de bustos?

 

Mendonça, que estava enlevado no primor da escultura, respondeu:

 

— Toda.

 

— Explica-te.

 

— O tio juntava-os para emblema da vida humana, que se compõe do mal e do bem; o bem está aqui para corrigir o mal. É o Ceci tuera cela, de Vítor Hugo.

 

— Está feito; tu explicas tudo. Mas é porque aqui a simetria das coisas te favorece. Cristo e Satanás ao lado um do outro é uma simetria de poeta; mas eu creio que Pedro Antão era outra coisa. Olha aqui para o chão; vês esta reunião de coisas extravagantes? Um par de chinelas, uma imagem da Virgem, uma trança de cabelos amarelos, um baralho de cartas, uma cruz, uma página de hebraico; vês?...

 

À proporção que eu ia inventariando os objetos encontrados no chão, ia o Mendonça examinando atentamente, tendo previamente calçado um par de luvas a fim de não macular as mãos.

 

Abri uma janela a fim de que o ar penetrasse nos aposentos. Depois, sacudindo o pó de duas cadeiras, sentei-me numa delas, e disse a Mendonça:

 

— Sabes que mais? Já não vou daqui sem que me contes alguma coisa do tio. Que idade tinha ele?

 

— Quarenta anos.

 

— Viveu sempre recluso?

 

— Desde muito tempo. Nos últimos cinco anos nem saia de casa. Era um criado que lhe trazia o que precisava. Esse mesmo criado morreu na véspera de morrer o tio.

 

— Qual foi o motivo da morte do criado?

 

— Não sei; creio que uma apoplexia.

 

— Quem sabe? Talvez a morte do criado explique a morte do seu tio. Estou a ver aqui um assassinato e um suicídio. De que morreu o tio?

 

— De uma queda.

 

— Dentro de casa?

 

— Sim.

 

— Bem digo eu; aqui há coisa. Estes objetos dizem claramente que Pedro Antão era feiticeiro.

 

Mendonça sorriu com desdém; posto que fosse supersticioso e timorato, Mendonça não acreditava em sortilégios. Eu era então um pouco dado a essas crenças, e ainda hoje não deixo de as ter. Depois que os filósofos modernos, com a mania de destruir tudo, afirmaram que o criador era uma invenção dos homens, eu, que não dou ao acaso as honras de ter criado o universo, substituí Deus por um grande feiticeiro, autor de todas as coisas, e nem por isso sou mais absurdo que os filósofos.

 

— Que quer dizer, continuei eu, esta madeixa de cabelos amarelos?

 

— É uma madeixa de cabelos, respondeu Mendonça; amareleceram com o tempo.

 

— E esta página de hebraico não quer dizer alguma coisa?

 

— Não sei se é hebraico ou siríaco.

 

— Deve ser hebraico. Eu não conheço essas línguas, mas conheço os caracteres; estes são hebraicos. Quanto a esta cruz metida entre um baralho de cartas, creio que não dirás ser o bem e o mal, emblema da vida humana. Mas deixemos isto; que houve notável na vida do tio?

 

— Coisa nenhuma. Viveu aqui recluso sem procurar a família; nem recebê-la em casa. Ao princípio, correu que o tio tinha alguma beleza escondida, e meu pai procurou saber disso conversando com o criado, mas o criado disse que não havia ninguém. Verdade é que o primo Antônio disse que uma noite, passando por aqui, viu da rua uma sombra de mulher passeando na sala de visitas; mas eu o convenci logo de que seria o mesmo tio, embrulhado em um lençol.

 

— Que diziam os vizinhos?

 

— Apenas um afirmou ter ouvido uma noite gemidos lúgubres cá dentro; no dia seguinte, não sei se por humanidade, se por curiosidade, mandou o vizinho saber o que era; o tio correu o portador a pau. Queres que te diga a minha opinião?

 

— Não, não digas. Veremos se eu descubro...

 

— Não tens nada que descobrir: creio que o tio era doido.

 

— É o que te parece. Veremos isso. Talvez esta secretária nos diga alguma coisa; mas está fechada. Como abri-la?

 

— Arrombe-se amanhã.

 

— Pois sim; mas vamos ver o resto do sótão.

 

Peguei na vela e encaminhamo-nos para o interior. No corredor que separava as duas salas, bati com o pé num objeto que foi parar três passos adiante.

 

Era um par de óculos de ouro.

 

Examinamos os óculos que nada particular indicavam; tinham asas grossas e vidros azuis sem grau. Conheci que era uma quarta espécie de óculos; usava-os Pedro Antão para abrandar os raios da luz quando trabalhasse ou lesse de noite. Um dos vidros estava rachado.

 

Seguimos levando os óculos.

 

Nenhuma mobília tinha a sala do fundo. Ao fundo havia uma janela que dava para o telhado. Estava fechada com uma pequena aldraba.

 

— Aqui não há que ver, disse Mendonça querendo voltar.

 

— Pelo contrário, disse eu.

 

— Que é?

 

— Vês isto?

 

O objeto que eu mostrava a Mendonça era uma escada de seda atirada a um canto. Estava gasta pelo uso e estragada pelo desuso.

 

— Creio que isto é alguma. Vejamos a janela.

 

Abri a janela, que era baixa. Dava para o telhado da própria casa. Olhei em redor; todas as casas eram baixas, exceto uma que ficava à esquerda, que era um sobrado e tinha uma janela que dava para o telhado. Junto da janela do sótão havia algumas telhas quebradas.

 

Fechei a janela, e disse rindo a Mendonça:

 

— Já me não escapa o homem!

 

— És um visionário, foi a única resposta de Mendonça.

 

Quando íamos a sair, Mendonça deu um grito.

 

— Que é?

 

— Vê.

 

Olhei e vi a um canto da sala dois olhos verdes fitos sobre nós. Quis aproximar-me; Mendonça agarrou-me pelas abas do paletó. Fiz um esforço e fui até o canto ver o que eram aqueles olhos.

 

Dei uma gargalhada.

 

Era um gato preto que ali se achava, o qual, assustado com a gargalhada, deitou a correr, desceu a escada e não apareceu mais.

 

Começo a tremer, disse Mendonça; que quer dizer este gato aqui em cima?

 

— Uma destas duas coisas; ou era companheiro do homem nos sortilégios; ou é um gato da vizinhança que se acostumou a vir aqui passar a noite em procura de ratos.

 

— Será, será.

 

— Inclino-me à segunda hipótese, porque, ainda que eu suponha teu tio amante de feitiçarias, creio que não é essa a parte mais importante da vida dele.

 

— Qual será então?

 

— Meu caro, temos já todos os elementos de que compor um romance; vamos para a outra sala.

 

Quando ali chegamos, sentei-me tranqüilamente, acendi um charuto, e brincando com os óculos de Pedro Antão, comecei a falar.

 

— Viste aqui uma casa velha, trastes velhos, ares velhos, nada mais. Eu vi aqui dentro uma história misteriosa. Organizar no vácuo não é coisa que todos possam fazer. Vejamos se não me achas razão.

 

Mendonça sentou-se e eu comecei:

 

— Sabes a razão da reclusão do tio?

 

— Não, respondeu o meu companheiro.

 

— Foi uma paixão? Não te rias. Eu imagino que teu tio se apaixonou por alguma dama formosa. Sabes donde concluo isto? Do gosto pelas artes. As artes substituem os amores, quando estes são impossíveis. Amou, e não querendo ou não podendo casar com ela, retirou-se por aqui. A solidão e a paixão começaram a atuar na sua imaginação. Olha os livros que ele lia; vê estes dois bustos de Cristo e de Satanás; olha estes objetos de feitiçaria esparsos no chão; tudo isto quer dizer que a religião nem a filosofia bastavam à alma do tio e quando a filosofia e a religião não podem triunfar de uma alma, triunfa a superstição. Que te parece?

 

— Um conto para passar o tempo.

 

— Ouve o resto. Ao cabo de um ou dois anos, Pedro Antão recebeu uma pequena cartinha...

 

— Ah! onde está?

 

— Não sei; mas recebeu. Talvez a encontremos dentro desta secretária. O bilhete era da mulher amada, e dizia provavelmente que tendo ele fugido, vinha ela em busca dele.

 

— E veio?

 

— Veio morar na vizinhança, naquele sobrado cujos fundos vimos pela janela do sótão. O tio não respondeu à carta; a dama que eu chamarei Cecília esperou debalde a resposta. Nova carta: novo silêncio. Cecília, no furor da paixão, veste-se um dia com uma mantilha e entra por aqui a pretexto de vir buscar esmolas para os indigentes da paróquia. — Mande entrar quem é, disse Pedro Antão. A rapariga entrou, e quando se achou a sós com o tio, descobriu o rosto. — Céus! és tu! — Sim sou eu; vim porque me recusavas; amo-te... — Mas desgraçada! não sabes que o teu ato é uma loucura e um crime? — É uma virtude pois que amo. O tio pôs o rosto nas mãos; estava desesperado.

 

— Compreendo. E depois?

 

— Procurou dissuadi-la dos planos que ela concebera; a única coisa que conseguiu foi dar sua palavra de que iria vê-la à casa ou ao menos conversar de fora. — Mas eu não sei como possa lá ir, objetou Pedro Antão. — A janela do teu salão dá para os fundos da minha casa. Sobe ao telhado e eu conversarei da janela. — Pois sim respondeu teu tio.

 

— Supões que ele respondeu assim?

 

— Com certeza.

 

— O tio cumpriu então a promessa?

 

— Cumpriu. Quando toda a vizinhança estava recolhida, trepava ele ao telhado e ia conversar por baixo da janela de Cecília até que vinha a madrugada e Pedro Antão voltava para casa com o coração mais tranqüilo...

 

— E uma constipação no lombo.

 

— Não te rias, Mendonça; és um espírito fútil. Ouve o resto, e verás que tudo se explica; eu aprendi a arte de interpretar as coisas mais insignificantes. Ora, atende; atende e concordarás comigo.

 

— Continua.

 

— Assim se passaram os dias, as semanas, os meses; era um idílio renouvelé de Roméo. Um dia provavelmente o pai da moça percebeu que alguém costumava perlustrar os telhados, e tendo ouvido conjugar o verbo amar todas as noites sempre no indicativo do tempo presente, resolveu pôr em cena um quinto ato de Crebillon; comprou uma pistola...

 

— E matou o tio?

 

— Não!

 

— Felizmente.

 

— Pôs-se de emboscada; apenas apareceu um vulto, disparou a pistola... Dois gritos agudos acompanharam o som do tiro; Pedro Antão correu a meter-se em casa. Cecília caiu redondamente no chão.

 

— Morta?

 

— Desmaiada. Acudiu toda a família. O pai acudiu também; mandou chamar um médico e deram-se à pequena os primeiros cuidados que a situação exigia. Albuquerque (deve ser o nome do pai) era homem de costumes severos; guardou uma repreensão para a filha depois que ficasse boa. A menina ficou no quarto com a mãe e uma escrava velha, a tia Mônica. Aqui não te posso dizer quanto tempo esteve ela gravemente enferma; o que te afirmo é que, apenas tornou em si, e pôde lembrar-se do episódio do tiro, disse que tivera um grande pesadelo, e a isso devera o desmaio. A mãe engoliu a pílula; o pai achou-a amarga demais. Passaram-se os dias; Cecília sempre de cama, ficava então só com a escrava. Uma noite, disse-lhe a escrava: — Por que razão, sinhá-moça, quer sempre que eu vá à janela de noite? Cecília fitou nela os olhos, e com voz fraca disse: — Tia Mônica, você é capaz de guardar um segredo? — Sou, respondeu a preta. Cecília contou então tudo; e quando acabou, disse: — Eis aqui por que eu te mando à janela: é para ver se vês o meu querido Antão; morreria ele? — Não, sinhá, respondeu Mônica; está vivo. A moça respirou. Depois ouvindo rumor no telhado, disse à preta que fosse ver o que era. — É ele, disse Mônica. — Ah! diz-lhe que eu estou de cama, mas que preciso falar-lhe. A preta deu conta do recado; Pedro Antão voltou para casa. Meditou nos meios de subir à casa de Cecília e vê-la um minuto que fosse. Por honra dele, devo dizer que hesitou muito tempo em cumprir a promessa...

 

Mendonça neste ponto inclinou-se mais para mim e disse:

 

— Não ouves?

 

— O quê?

 

— Um rumor?

 

— São ratos. Deixa-te de vãos temores. Ouve a narração. Não te parece exata?

 

— Sim; parece. Tens uma penetração rara! Quem não dirá que isso não é a verdade?

 

— Ninguém pode dizê-lo.

 

— Continua.

 

— Assentou Pedro Antão em ir ver a enferma; para isso era preciso subir; para subir era necessário ter uma escada; e a escada só podia ser de seda. Por quem mandaria comprar uma escada de seda? Podia dizê-lo ao criado; mas isso era impossível; seria a vergonha. Pedro Antão resolveu sair ele mesmo...

 

— Sair?

 

— Foi a única vez que saiu depois da sua voluntária reclusão. Saiu, e foi encomendar uma escada de seda, a qual ficou pronta e veio daí a dias por mão do criado, mas enrolada de modo que o criado não soube o que era.

 

— Sim, o tio era prudente.

 

— Na primeira noite em que Pedro Antão subiu à casa houve na sua alma uma verdadeira luta. Eram os últimos lampejos da virtude; digo virtude, porque o ato de escalar uma janela constitui um crime para qualquer, quanto mais para um homem daquela força! Mas a paixão e a piedade venceram; teu tio atravessou o telhado com a escada debaixo do braço. A fiel Mônica lá estava e ajudou a preparar a escada; depois subiu Pedro Antão mais lesto que um menino trepando por uma mangueira acima. Não se descreve a cena do encontro dos dois amantes ao cabo de tanto tempo. Cecília estava mais pálida que o linho dos lençóis; o tio ajoelhou e derramou lágrimas de dor... Que cena aquela! oh! os que amaram sabem o que é aquilo!

 

Creio que fui tão patético nesta descrição, que o próprio Mendonça ficou comovido. Pela minha parte não o estava menos; davam então duas horas; tudo em volta de nós contribuía para a emoção de que nos achávamos possuídos.

 

— Vamos para casa, disse Mendonça.

 

— Ouve o resto. A visita do tio foi repetida nos seguintes dias. Parece que isso mesmo apressou o restabelecimento da moça. No dia em que Cecília ficou perfeitamente boa, disse-lhe Pedro Antão que era aquela a última visita. Cecília entrou a chorar. — “Não chores, disse teu tio; eu te amarei sempre; mas bem vês que é impossível a minha volta aqui. A tua doença explicava a minha audácia; a tua saúde...” — “Que temes tu? disse a moça; a opinião, quando vier a saber que nos amamos? Pois bem; Mônica assistirá as nossas entrevistas...” Teu tio mostrou-se severo e resoluto. A única coisa que lhe concedeu foi que viria conversar à janela: ficando ele pendurado na escada.

 

— Por que supões isto? perguntou-me Mendonça.

 

— Saberás adiante. Tudo o que até aqui tenho dito é a verdade; do estudo destes objetos que vemos a conclusão que tiro, é que só a minha narração pode explicar a vida de Pedro Antão.

 

— Continua.

 

— A promessa do tio foi cumprida. Todas as noites saía o homem de casa, levando a escada que era posta convenientemente para que ele subisse e fosse conversar com Cecília na posição em que Romeu e Julieta se separaram dando o último beijo e ouvindo o rouxinol... Queres ouvir o diálogo da despedida de Romeu?

 

— Não, vamos ao tio.

 

— Não descansou o pai de Cecília enquanto não lhe arranjou um casamento. Apresentou-lhe um dia um rapaz dizendo que era o seu noivo. Imagina o coração da pobre moça ao saber de semelhante notícia. Não ousou dizer abertamente ao pai que não queria o noivo; mas pediu para refletir três dias; e comunicou isso a teu tio. Imagina a dor do homem. Que luta aquela! O amor e o dever — luta terrível à qual teu tio teria sucumbido se não fora a grande alma que Deus lhe deu. Que diria à moça?

 

— Eu carregava com ela.

 

— Bem, mas ele hesitou; pareceu-lhe que não podia santificar uma união condenada pela sociedade. Não queria perturbar o destino da moça que talvez fosse melhor do que se lhe afigurava a ela. Que fez então? disse-lhe que se casasse. Cecília recusou o conselho; teu tio insistiu; ela chorou. Que fazer diante das lágrimas de uma mulher? O homem pediu um adiamento de vinte e quatro horas. Terrível foi a noite e o dia que se seguiu a esta entrevista. Jogava-se o destino de Antão e de Cecília. Raptando a moça, ele ia constituir-se réu perante Deus e os homens. O momento era solene. A crise da vida chegara ao seu auge. Sobre a tarde tomou ele uma resolução suprema; raptar a moça, isto é, salvá-la das garras de um noivo a quem ela não amava, e dar-lhe a felicidade que ela almejava neste mundo. Comunicou o seu plano à rapariga; e assentou-se que daí a três dias se executaria o plano. A moça dormiu alegre como se no dia seguinte devesse entrar na bem-aventurança. Oh! o amor é capaz de grandes coisas! e quanta vez se cometeu crime com alma alegre só porque é o amor que nos impele para o mal!

 

— Bonito! murmurou Mendonça.

 

Irritou-me a interrupção e levantei-me.

 

— Onde vais?

 

— Não me queres ouvir.

 

— Quero; continua. Aplaudi a tua exclamação. Quero saber em que parou tudo isso.

 

— Quando o tio voltou para casa, encontrou junto à janela o criado. Todo o corpo lhe tremeu; estava descoberto. O criado tinha ouvido bulha e supondo serem ladrões subiu ao sótão, viu a janela aberta, e espantado, viu um vulto ao longe, e esperou. Quando descobriu que era o tio, compreendeu que alguma coisa havia, e arrependeu-se de ter subido. Quanto ao tio, passado o primeiro momento, voltou em si, desceu tranqüilamente e disse ao criado que se fosse deitar. O criado desceu sem dizer palavra; o teu tio veio tranqüilamente para esta sala e entrou a meditar no que devia fazer. Era forçoso confessar tudo ao criado; estando descoberto, já lhe não aparentava a discrição; antes tê-lo por amigo mostrando confiança. Assentou nisso. Mas daí a pouco entrou o receio a torturar-lhe a alma. Podia acaso contar com a discrição de criado, ainda quando lhe mostrasse confiança? O medo de ver-se descoberto lhe obumbrou a razão; o crime chama o crime. O relâmpago do crime lhe fuzilou na alma...

 

— Que fez?

 

— Decretou a morte do criado. Quem poderá dizer que longos foram os instantes passados naquela combinação de um crime que era o primeiro na escala dos crimes futuros! Ao cabo de uma hora, tomou uma vela, desceu a escada de mansinho, encaminhou-se ao quarto do criado. Este dormia profundamente; Pedro Antão lembrou-se de que o melhor meio era sufocá-lo; subiu outra vez e foi buscar um travesseiro. Desceu; o criado ainda dormia. Teu tio pôs-lhe o travesseiro sobre o pescoço e calcou com todas as forças. Surpreendido no sono com este ataque, o criado procurou defender-se; quis lutar; impossível... por um movimento enérgico Pedro Antão concluiu a morte começada.

 

— Onde viste sinais desse crime?

 

— Não vi sinais; mas é um crime lógico. Por que razão morreria o criado logo na véspera do rapto? Teu tio quis arredar uma testemunha ou um cúmplice; mas vai ouvindo.

 

— Triste morte foi essa!

 

— Terrível; teu tio subiu, atirou-se à cama, mas não dormiu; a noite foi cruel; quando chegou a madrugada ele respirou; podia ao menos afastar a memória do fato terrível da véspera. Do quintal chamou um vizinho, e pediu-lhe que fosse cuidar do enterro do criado. À tarde foi este enterrado, levando para a sepultura o segredo do crime...

 

— Mas, Pedro, é impossível que tu não saibas disto por outro modo que não o conjectural. Estás falando de maneira que pareces ter assistido a tudo... Sabias alguma coisa?

 

— Nada.

 

— Mas então não compreendo.

 

— Meu amigo; chama-se a isto penetrar além da superfície dos fatos. Vai ouvindo. A noite do enterro do criado, era a noite do rapto de Cecília. Tudo estava preparado. Pedro Antão aguardou silenciosamente a hora marcada por ele, isto é, meia-noite. O leitor facilmente calculará...

 

— Que leitor?

 

— Foi engano. Quero dizer que tu facilmente calcularás as emoções do namorado antes de cometer o rapto. Entretanto chegou a hora; Pedro Antão, que estava lendo para passar o tempo, apenas ouviu bater meia-noite, foi ao quarto, pegou na escada... Aqui entram os óculos de Pedro. Estava lendo, e para ler punha os óculos a fim de quebrar os raios da luz. Com a pressa e a preocupação do ato que ia cometer nem se lembrou de tirar os óculos; foi com eles ate à outra sala, abriu a janela, saltou ao telhado e aproximou-se da casa de Cecília. Tudo estava silencioso; nenhum sinal de vida. Que aconteceria? Estaria descoberto o plano? Adoeceria a moça? Nesta incerteza esteve Pedro Antão durante dez mortais minutos. Abriu-se finalmente a janela, e a cabeça da moça apareceu. Teu tio deu sinal de que ele ali estava, e a preta disse-lhe que esperasse um pouquinho enquanto a ama completava os preparativos. Pedro Antão indagou a razão da demora. A preta respondeu que houvera visitas em casa, e que em virtude disso, Cecília não pôde sair da sala. Entrou a preta e teu tio esperou.

 

— Vê se pões a pequena cá para baixo.

 

— Ouve. Esperou teu tio outros dez minutos, ao cabo dos quais voltou a preta e o homem atirou a extremidade da escada que foi convenientemente presa em cima. Cecília apareceu e a vista da moça deu ânimo ao namorado. Disse-lhe ela que, para melhor efetuar a descida vestira umas calças do primo; e atirou para baixo duas trouxas. Continham roupa e vários objetos. Pedro Antão pôs as trouxas de lado, e disse à pequena que descesse. Ora, justamente quando a moça se preparava a descer, ouviu-se uma voz que dizia: Miserável! — Cecília deu um grito e entrou fechando a janela. Ficou em baixo Pedro Antão a procurar com os olhos de onde vinha a voz, até que um vulto se lhe aproximou. Era nem mais nem menos o pai de Cecília.

 

— De onde surgiu ele?

 

— Tinha percebido que a pequena tramava alguma coisa; foi espreitar pelo buraco da fechadura, e viu-a preparar as trouxas; desceu ao quintal e de lá ouviu a voz de teu tio; por meio de uma escada de mão trepou ao telhado no momento em que a moça ia pôr o pé fora da casa. Avalie-se o drama que se passou ali no telhado. O pai, armado com uma pistola, apontou-a ao peito de Pedro Antão; este viu iminente o seu fim. Quem poderia salvá-lo? — “Eu! gritou uma voz no meio das sombras”.

 

— Quem era?

 

— Espera. O vulto desarmou o pai de Cecília e intimou-lhe a retirada; o velho quis recalcitrar, mas teve de obedecer à voz imperiosa do salvador de Pedro Antão. Tendo escapado por milagre à morte que o esperava, o homem voltou-se para o vulto e agradeceu-lhe aquela intervenção providencial. Depois pediu que entrasse com ele em casa para lhe explicar a razão de achar-se ali. Pedro Antão meditava uma mentira. O vulto respondeu simplesmente. — Eu sei tudo! — Sabe tudo? — Quem é o senhor? — Ninguém.

 

— Parodiou o Garrett.

 

— Convidou teu tio ao vulto para ir descansar alguns minutos em casa. O vulto aceitou. Atravessaram o telhado e entraram pela janela. Como estivesse escuro, Pedro Antão tomou um fósforo, que levara consigo para a volta e à luz quem havia ele de ver?

 

— Quem?

 

— Adivinha.

 

— Não sei.

 

— O criado?

 

— Sim.

 

— O defunto?

 

— Nem mais nem menos, o defunto.

 

— Essa agora!...

 

— Imagina o rosto do pobre homem, deu um grito e correu; o criado segurou-o ainda pelas abas do paletó; Pedro Antão fez um esforço, escapou-se-lhe das mãos, caíram-lhe os óculos; e ele foi rolando pela escada abaixo até cair morto.

 

— Que horror!

 

— Aqui tens, concluí eu nem mais nem menos a história do tio, dos seus motivos de reclusão, e da sua morte desastrosa; aí tens explicados os óculos no corredor, a escada de seda na outra sala. Queres mais claro?

 

— Realmente, disse Mendonça, falas com uma segurança que pareces ter visto tudo isto!!

 

— Para que serviria a perspicácia então?

 

— Safa! Eras capaz de provar que eu ontem matei um homem!

 

— Questão de perspicácia; nada mais. Queres apostar uma coisa?

 

— O quê?

 

— Queres apostar que eu acho nesta secretária algum indício do que estive a referir?

 

— Então sabias alguma coisa?

 

— Eu, nada. Mas tenho um pressentimento de que aqui dentro acharei coisa que nos guie e me prove a veracidade do que te acabei de contar. Vamos abri-la.

 

— Com quê?

 

— Não tens nada?

 

— Nada. Sabes que mais? Vamos embora. Amanhã, abriremos isto.

 

— Não, agora mesmo.

 

— Qual olha; são três horas quase. Vamos dormir; amanhã voltarei contigo e de manhã, virá conosco um homem que entenda disto...

 

— Pois sim.

 

Saímos da casa de Pedro Antão; e eu confesso que não dormi a noite inteira, porque o pouco que dela restava, gastei-a eu a pensar na história do homem. Se eu achasse na secretária alguma coisa, uma cartinha de amores, uma lembrança de mulher, tinha ganho a glória de ter adivinhado uma história que ninguém descobriria nem exporia com tanta lucidez.

 

No dia seguinte às dez horas da manhã fui ter com o meu amigo Mendonça que ainda estava dormindo; esperei que acordasse e almoçasse, depois do que fomos buscar um ferreiro, encarregado de arrombar a secretária de Pedro Antão.

 

A fechadura não resistiu muito tempo.

 

Quando nos achamos sós, entramos a examinar o conteúdo daquele velho móvel, testemunha insuspeita da vida do tio.

 

Muitos objetos íamos encontrando que não serviam para o caso: papéis velhos, cartas de amigos, contas de credores, notas de leitura, etc.

 

Nada vimos que servisse ao caso.

 

— É impossível, disse eu; vejamos nas gavetinhas.

 

Nas gavetinhas também nada se encontrou que pudesse ter relação com a minha versão da morte de Pedro Antão.

 

De repente, disse-me Mendonça ter achado uns cabelos.

 

— Ah! exclamei, enfim!

 

— Mas são cabelos brancos, acrescentou Mendonça.

 

Em resumo, nada encontramos que nos pudesse guiar no assunto, e eu senti deveras porque o menor indício era naquele caso uma prova; ao menos eu assim o entendia.

 

No meio do trabalho em que estávamos, não demos por uma gaveta escondida por trás de uma tabuinha.

 

Abriu-se a gaveta por si e graças a um acaso. Querendo eu arrancar um folheto, apertei uma mola e a gaveta abriu-se.

 

Dentro havia um rolo fino de papel com esta nota por fora. “Para ser entregue a meu sobrinho Mendonça“.

 

— Vejamos.

 

Mendonça abriu o rolo. Continha uma folha de papel com as seguintes palavras:

 

Meu sobrinho. Deixo o mundo sem saudades. Vivo recluso tanto tempo para me acostumar à morte. Ultimamente li algumas obras de filosofia da história, e tais coisas vi, tais explicações encontrei de fatos até aqui reconhecidos, que tive uma idéia excêntrica. Deixei aí uma escada de seda, uns óculos verdes, que eu nunca usei, e outros objetos, a fim de que tu ou algum pascácio igual inventassem a meu respeito um romance, que toda a gente acreditaria até o achado deste papel. Livra-te da filosofia da história.

 

Calcule agora o leitor o efeito deste escrito, espécie de dedo invisível que me deitava por terra o edifício da minha interpretação!

 

Daí para cá não interpretei à primeira vista todas as aparências.

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 23 de outubro de 2021

A PEDRA DOS NAMORADOS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A PEDRA DOS NAMORADOS

Humberto de Campos

 

 

 

Fugindo ao clima intolerável da cidade, os dois amigos inseparáveis resolveram passar, este anuo, o verão em Paquetá. As dificuldades, como era natural, foram enormes. Ao fim de algum tempo encontraram, porém, duas casas na mesma praia, as quais se comunicavam pelo quintal, e foram alugadas, não só entre as demonstrações de alegria de D. Adalgiza, esposa do Dr. Archimedes, como entre as de D. Eleonora, mulher do tenente Pedreira.

- Magnifico! - aplaudiu a primeira, batendo as mãozinhas finas, brancas, de dedos afilados.

- Esplendido! - confirmou a segunda, com as mesmas demonstrações de contentamento.

Mudados para a ilha encantadora, saíram os dois casais, uma tarde, a passeio, juntando conchas pela praia, até que foram ter ao local em que se levanta, entre a terra e o mar, um penedo de três ou quatro metros de altura, em cujo cimo se amontoava uma infinidade de pedras pequeninas, equilibrando-se com dificuldade.

- Olha, ali! Que é aquilo? - exclamou D. Eleonora, radiante com aquela vida de liberdade, apontando, com a sombrinha fechada, no rumo da pedra.

- Ah! É a "pedra dos namorados"! - explicou o Dr. Archimedes. - Essa pedra tem uma história curiosa.

E contou:

- É corrente aqui, na ilha, que este rochedo anuncia os casamentos. Os namorados que passam por aqui, atiram-lhe ao cimo uma pedra pequena, uma concha, ou coisa semelhante. Se ficar lá em cima, a pessoa terá de casar-se; se não, se a pedra rejeitar o objeto atirado, fazendo-o rolar para o chão, é sinal de que a pessoa não se casará.

- Que graça! - rouxinoleou, rindo, Dona Adalgiza.

E, voltando-se para os companheiros:

- Vamos experimentar?

- Mas... nós já estamos casados! - obtemperou a amiga.

- Não faz mal. Vamos!

Apanhados quatro seixos, aproximaram-se do penedo, e atiraram, cada um por sua vez. O primeiro ficou. O segundo, igualmente. O terceiro, da mesma forma. O quarto, também.

- Todos ficaram! - exclamou, com a sua jovialidade infantil, a linda D. Eleonora.

E acentuou, espichando-se, nas pontas dos pés:

- Olhem: a minha pedrinha ficou junto da do Dr. Archimedes, e a da Aldagiza bem juntinho da do Pedreira!

O tenente olhou, sério, o bacharel. O bacharel fitou, grave, o tenente. Sorriram, os dois.

E continuaram, os quatro, o seu passeio, apanhando, felizes, na areia úmida, as pequeninas conchas da praia...


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 21 de outubro de 2021

JOGO DO BICHO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

JOGO DO BICHO

Machado de Assis

 

 

 

Camilo, — ou Camilinho, como lhe chamavam alguns por amizade, — ocupava em um dos arsenais do Rio de Janeiro (marinha ou guerra) um emprego de escrita. Ganhava duzentos mil-réis por mês, sujeitos ao desconto de taxa e montepio. Era solteiro, mas um dia, pelas férias, foi passar a noite de Natal com um amigo no subúrbio do Rocha; lá viu uma criaturinha modesta, vestido azul, olhos pedintes. Três meses depois estavam casados.

 

Nenhum tinha nada; ele, apenas o emprego, ela as mãos e as pernas para cuidar da casa toda, que era pequena, e ajudar a preta velha que a criou e a acompanhou sem ordenado. Foi esta preta que os fez casar mais depressa. Não que lhes desse tal conselho; a rigor, parecia-lhe melhor que ela ficasse com a tia viúva, sem obrigações, nem filhos. Mas ninguém lhe pediu opinião. Como, porém, dissesse um dia que, se sua filha de criação casasse, iria servi-la de graça, esta frase foi contada a Camilo, e Camilo resolveu casar dois meses depois. Se pensasse um pouco, talvez não casasse logo; a preta era velha, eles eram moços, etc. A idéia de que a preta os servia de graça, entrou por uma verba eterna no orçamento.

 

Germana, a preta, cumpriu a palavra dada.

 

— Um caco de gente sempre pode fazer uma panela de comida, disse ela.

 

Um ano depois o casal tinha um filho, e a alegria que trouxe compensou os ônus que traria. Joaninha, a esposa, dispensou ama, tanto era o leite, e tamanha a robustez, sem contar a falta de dinheiro; também é certo que nem pensaram nisto.

 

Tudo eram alegrias para o jovem empregado, tudo esperanças. Ia haver uma reforma no arsenal, e ele seria promovido. Enquanto não vinha a reforma, houve uma vaga por morte, e ele acompanhou o enterro do colega, quase a rir. Em casa não se conteve e riu. Expôs à mulher tudo o que se ia dar, os nomes dos promovidos, dois, um tal Botelho, protegido pelo general*** e ele. A promoção veio e apanhou Botelho e outro. Camilo chorou desesperadamente, deu murros na cama, na mesa e em si.

 

— Tem paciência, dizia-lhe Joaninha.

 

— Que paciência? Há cinco anos que marco passo...

 

Interrompeu-se. Aquela palavra, da técnica militar, aplicada por um empregado do arsenal, foi como água na fervura; consolou-o. Camilo gostou de si mesmo. Chegou a repeti-la aos companheiros íntimos. Daí a tempos, falando-se outra vez em reforma, Camilo foi ter com o ministro e disse:

 

— Veja V. Exª. que há mais de cinco anos vivo marcando passo.

 

O grifo é para exprimir a acentuação que ele deu ao final da frase. Pareceu-lhe que fazia boa impressão ao ministro, conquanto todas as classes usassem da mesma figura, funcionários, comerciantes, magistrados, industriais, etc., etc.

 

Não houve reforma; Camilo acomodou-se e foi vivendo. Já então tinha algumas dívidas, descontava os ordenados, buscava trabalhos particulares, às escondidas. Como eram moços e se amavam, o mau tempo trazia idéia de um céu perpetuamente azul.

 

Apesar desta explicação, houve uma semana em que a alegria de Camilo foi extraordinária. Ides ver. Que a posteridade me ouça. Camilo, pela primeira vez, jogou no bicho. Jogar no bicho não é um eufemismo como matar o bicho. O jogador escolhe um número, que convencionalmente representa um bicho, e se tal número acerta de ser o final da sorte grande, todos os que arriscaram nele os seus vinténs ganham, e todos os que fiaram dos outros perdem. Começou a vinténs e dizem que está em contos de réis; mas, vamos ao nosso caso.

 

Pela primeira vez Camilo jogou no bicho, escolheu o macaco, e, entrando com cinco tostões, ganhou não sei quantas vezes mais. Achou nisto tal despropósito que não quis crer, mas afinal foi obrigado a crer, ver e receber o dinheiro. Naturalmente tornou ao macaco, duas, três, quatro vezes, mas o animal, meio-homem, falhou às esperanças do primeiro dia. Camilo recorreu a outros bichos, sem melhor fortuna, e o lucro inteiro tornou à gaveta do bicheiro. Entendeu que era melhor descansar algum tempo; mas não há descanso eterno, nem ainda o das sepulturas. Um dia lá vem a mão do arqueólogo a pesquisar os ossos e as idades.

 

Camilo tinha fé. A fé abala as montanhas. Tentou o gato, depois o cão, depois o avestruz; não havendo jogado neles, podia ser que... Não pôde ser; a fortuna igualou os três animais em não lhes fazer dar nada. Não queria ir pelos palpites dos jornais, como faziam alguns amigos. Camilo perguntava como é que meia dúzia de pessoas, escrevendo notícias, podiam adivinhar os números da sorte grande. De uma feita, para provar o erro, concordou em aceitar um palpite, comprou no gato, e ganhou.

 

— Então? perguntaram-lhe os amigos.

 

— Nem sempre se há de perder, disse este.

 

— Acaba-se ganhando sempre, acudiu um; a questão é tenacidade, não afrouxar nunca.

 

Apesar disso, Camilo deixou-se ir com os seus cálculos. Quando muito, cedia a certas indicações que pareciam vir do céu, como um dito de criança de rua: “Mamãe, por que é que a senhora não joga hoje na cobra?” Ia-se à cobra e perdia; perdendo, explicava a si mesmo o fato com os melhores raciocínios deste mundo, e a razão fortalecia a fé.

 

Em vez de reforma da repartição veio um aumento de vencimentos, cerca de sessenta mil-réis mensais. Camilo resolveu batizar o filho, e escolheu para padrinho nada menos que o próprio sujeito que lhe vendia os bichos, o banqueiro certo. Não havia entre eles relações de família; parece até que o homem era um solteirão sem parentes. O convite era tão inopinado, que quase o fez rir, mas viu a sinceridade do moço, e achou tão honrosa a escolha que aceitou com prazer.

 

— Não é negócio de casaca?

 

— Qual, casaca! Coisa modesta.

 

— Nem carro?

 

— Carro...

 

— Para que carro?

 

— Sim, basta ir a pé. A igreja é perto, na outra rua.

 

— Pois a pé.

 

Qualquer pessoa atilada descobriu já que a idéia de Camilo é que o batizado fosse de carro. Também descobriu, à vista da hesitação e do modo, que entrava naquela idéia a de deixar que o carro fosse pago pelo padrinho; não pagando o padrinho, não pagaria ninguém. Fez-se o batizado, o padrinho deixou uma lembrança ao afilhado, e prometeu, rindo, que lhe daria um prêmio na águia.

 

Esta graçola explica a escolha do pai. Era desconfiança dele que o bicheiro entrava na boa fortuna dos bichos, e quis ligar-se-lhe por um laço espiritual. Não jogou logo na águia “para não espantar”, disse consigo, mas não esqueceu a promessa, e um dia, com ar de riso, lembrou ao bicheiro:

 

— Compadre, quando for a águia, diga.

 

— A águia?

 

Camilo recordou-lhe o dito; o bicheiro soltou uma gargalhada.

 

— Não, compadre; eu não posso adivinhar. Aquilo foi pura brincadeira. Oxalá que eu lhe pudesse dar um prêmio. A águia dá; não é comum, mas dá.

 

— Mas porque é que eu ainda não acertei com ela?

 

— Isso não sei; eu não posso dar conselhos, mas quero crer que você, compadre, não tem paciência no mesmo bicho, não joga com certa constância. Troca muito. É por isso que poucas vezes tem acertado. Diga-me cá: quantas vezes tem acertado?

 

— De cor, não posso dizer, mas trago tudo muito bem escrito no meu caderno.

 

— Pois veja, e há de descobrir que todo o seu mal está em não teimar algum tempo no mesmo bicho. Olhe, um preto, que há três meses joga na borboleta ganhou hoje e levou uma bolada...

 

Camilo escrevia efetivamente a despesa e a receita, mas não as comparava para não conhecer a diferença. Não queria saber do deficit. Posto que metódico, tinha o instinto de fechar os olhos à verdade, para não a ver e aborrecer. Entretanto, a sugestão do compadre era aceitável; talvez a inquietação, a impaciência, a falta de fixidez nos mesmos bichos fosse a causa de não tirar nunca nada.

 

Ao chegar à casa achou a mulher dividida entre a cozinha e a costura. Germana adoecera e ela fazia o jantar, ao mesmo tempo que acabava o vestido de uma freguesa. Cosia para fora, a fim de ajudar as despesas da casa e comprar algum vestido para si. O marido não ocultou o desgosto da situação. Correu a ver a preta; já a achou melhor da febre com o quinino que a mulher tinha em casa e lhe dera “por sua imaginação”; e a preta acrescentou sorrindo:

 

— Imaginação de nhã Joaninha é boa.

 

Jantou triste, por ver a mulher tão carregada de trabalho, mas a alegria dela era tal, apesar de tudo, que o fez alegre também. Depois do café, foi ao caderno que trazia fechado na gaveta e fez os seus cálculos. Somou as vezes e os bichos, tantas na cobra, tantas no galo, tantas no cão e no resto, uma fauna inteira, mas tão sem persistência, que era fácil desacertar. Não queria somar a despesa e a receita para não receber de cara um grande golpe, e fechou o caderno. Afinal não pôde, e somou lentamente, com cuidado para não errar; tinha gasto setecentos e sete mil-réis, e tinha ganho oitenta e quatro mil-réis, um deficit de seiscentos e vinte e três mil-réis. Ficou assombrado.

 

— Não é possível!

 

Contou outra vez, ainda mais lento, e chegou a uma diferença de cinco mil-réis para menos. Teve esperanças e novamente somou as quantias gastas, e achou o primitivo deficit de seiscentos e vinte e três mil-réis. Trancou o caderno na gaveta; Joaninha, que o vira jantar alegre, estranhou a mudança e perguntou o que é que tinha.

 

— Nada.

 

— Você tem alguma coisa; foi alguma lembrança...

 

— Não foi nada.

 

Como a mulher teimasse em saber, engendrou uma mentira, — uma turra com o chefe da seção, — coisa de nada.

 

— Mas você estava alegre...

 

— Prova de que não vale nada. Agora lembrou-me... e estava pensando no caso, mas não é nada. Vamos à bisca.

 

A bisca era o espetáculo deles, a Ópera, a Rua do Ouvidor, Petrópolis, Tijuca, tudo o que podia exprimir um recreio, um passeio, um repouso. A alegria da esposa voltou ao que era. Quanto ao marido, se não ficou tão expansivo como de costume, achou algum prazer e muita esperança nos números das cartas. Jogou a bisca fazendo cálculos, conforme a primeira carta que saísse, depois a segunda, depois a terceira; esperou a última; adotou outras combinações, a ver os bichos que correspondiam a elas, e viu muito deles, mas principalmente o macaco e a cobra; firmou-se nestes.

 

— O meu plano está feito, saiu pensando no dia seguinte, vou até aos setecentos mil-réis. Se não tirar quantia grossa que anime, não compro mais.

 

Firmou-se na cobra, por causa da astúcia, e caminhou para a casa do compadre. Confessou-lhe que aceitara o seu conselho, e começava a teimar na cobra.

 

— A cobra é boa, disse o compadre.

 

Camilo jogou uma semana inteira na cobra, sem tirar nada. Ao sétimo dia, lembrou-se de fixar mentalmente uma preferência, e escolheu a cobra-coral, perdeu; no dia seguinte, chamou-lhe cascavel, perdeu também; veio à surucucu, à jibóia, à jararaca, e nenhuma variedade saiu da mesma tristíssima fortuna. Mudou de rumo. Mudaria sem razão, apesar da promessa feita; mas o que propriamente o determinou a isto foi o encontro de um carro que ia matando um pobre menino. Correu gente, correu polícia, o menino foi levado à farmácia, o cocheiro ao posto da guarda. Camilo só reparou bem no número do carro, cuja terminação correspondia ao carneiro; adotou o carneiro. O carneiro não foi mais feliz que a cobra.

 

Não obstante, Camilo apoderou-se daquele processo de adotar um bicho, e jogar nele até estafá-lo: era ir pelos números adventícios. Por exemplo, entrava por uma rua com os olhos no chão, dava quarenta, sessenta, oitenta passos, erguia repentinamente os olhos e fitava a primeira casa à direita ou à esquerda, tomava o número e ia dali ao bicho correspondente. Tinha já gasto o processo de números escritos e postos dentro do chapéu, o de um bilhete do Tesouro, — coisa rara, — e cem outras formas, que se repetiam ou se completavam. Em todo caso, ia descambando na impaciência e variava muito. Um dia resolveu fixar-se no leão; o compadre, quando reconheceu que efetivamente não saía do rei dos animais, deu graças a Deus.

 

— Ora, graças a Deus que o vejo capaz de dar o grande bote. O leão tem andado esquivo, é provável que derrube tudo, mais hoje, mais amanhã.

 

— Esquivo? Mas então não quererá dizer...?

 

— Ao contrário.

 

Dizer quê? Ao contrário, quê? Palavras escuras, mas para quem tem fé e lida com números, nada mais claro. Camilo elevou ainda mais a soma da aposta. Faltava pouco para os setecentos mil-réis; ou vencia ou morria.

 

A jovem consorte mantinha a alegria da casa, por mais dura que fosse a vida, grossos os trabalhos, crescentes as dívidas e os empréstimos, e até não raras as fomes. Não lhe cabia culpa, mas tinha paciência. Ele, em chegando aos setecentos mil-réis, trancaria a porta. O leão não queria dar. Camilo pensou em trocá-lo por outro bicho, mas o compadre afligia-se tanto com essa frouxidão, que ele acabaria entre os braços da realeza. Faltava já pouco; enfim, pouquíssimo.

 

— Hoje respiro, disse Camilo à esposa. Aqui está a nota última.

 

Cerca das duas horas, estando à mesa da repartição, a copiar um grave documento, Camilo ia calculando os números e descrendo da sorte. O documento tinha algarismos; ele errou-os muita vez, por causa do atropelo em que uns e outros lhe andavam no cérebro. A troca era fácil; os seus vinham mais vezes ao papel que os do documento original. E o pior é que ele não dava por isso, escrevia o leão em vez de transcrever a soma exata das toneladas de pólvora...

 

De repente, entra na sala um contínuo, chega-se-lhe ao ouvido, e diz que o leão dera. Camilo deixou cair a pena, e a tinta inutilizou a cópia quase acabada. Se a ocasião fosse outra, era caso de dar um murro no papel e quebrar a pena, mas a ocasião era esta, e o papel e a pena escaparam às violências mais justas deste mundo; o leão dera. Mas, como a dúvida não morre:

 

— Quem é que disse que o leão deu? perguntou Camilo baixinho.

 

— O moço que me vendeu na cobra.

 

— Então foi a cobra que deu.

 

— Não, senhor; ele é que se enganou e veio trazer a notícia pensando que eu tinha comprado no leão, mas foi na cobra.

 

— Você está certo?

 

— Certíssimo.

 

Camilo quis deitar a correr, mas o papel borrado de tinta acenou-lhe que não. Foi ao chefe, contou-lhe o desastre e pediu para fazer a cópia no dia seguinte; viria mais cedo, ou levaria o original para casa...

 

— Que está dizendo? A cópia há de ficar pronta hoje.

 

— Mas são quase três horas.

 

— Prorrogo o expediente.

 

Camilo teve vontade de prorrogar o chefe até ao mar, se lhe era lícito dar tal uso ao verbo e ao regulamento. Voltou à mesa, pegou de uma folha de papel e começou a escrever o requerimento de demissão. O leão dera; podia mandar embora aquele inferno. Tudo isto em segundos rápidos, apenas um minuto e meio. Não tendo remédio, entrou a recopiar o documento, e antes das quatro horas estava acabado. A letra saiu tremida, desigual, raivosa, agora melancólica, pouco a pouco alegre, à medida que o leão dizia ao ouvido do amanuense, adoçando a voz: Eu dei! eu dei!

 

— Ora, chegue-se, dê cá um abraço, disse-lhe o compadre, quando ele ali apareceu. Afinal a sorte começa a protegê-lo.

 

— Quanto?

 

— Cento e cinco mil-réis.

 

Camilo pegou em si e nos cento e cinco mil-réis, e só na rua advertiu que não agradecera ao compadre; parou, hesitou, continuou. Cento e cinco mil-réis! Tinha ânsia de levar à mulher aquela notícia; mas, assim... só...?

 

— Sim, é preciso festejar esse acontecimento. Um dia não são dias. Devo agradecer ao céu a fortuna que me deu. Um pratinho melhor à mesa...

 

Viu perto uma confeitaria; entrou por ela e espraiou os olhos, sem escolher nada. O confeiteiro veio ajudá-lo, e, notando a incerteza de Camilo entre mesa e sobremesa, resolveu vender-lhe ambas as coisas. Começou por um pastelão, “um rico pastelão, que enchia os olhos, antes de encher a boca e o estômago”. A sobremesa foi “um rico pudim”, em que havia escrito, com letras de massa branca este viva eterno: “Viva a esperança!”. A alegria de Camilo foi tanta e tão estrepitosa que o homem não teve remédio senão oferecer-lhe vinho também, uma ou duas garrafas. Duas.

 

— Isto não vai sem Porto; eu lhe mando tudo por um menino. Não é longe?

 

Camilo aceitou e pagou. Entendeu-se com o menino acerca da casa e do que faria. Que lhe não batesse à porta; chegasse e esperasse por ele; podia ser que ainda não estivesse em casa; se estivesse, viria à janela, de quando em quando. Pagou dezesseis mil-réis e saiu.

 

Estava tão contente com o jantar que levava e o espanto da mulher, nem se lembrou de presentear Joaninha com alguma jóia. Esta idéia só o assaltou no bonde, andando; desceu e voltou a pé, a buscar um mimo de ouro, um broche que fosse, com uma pedra preciosa. Achou um broche nestas condições, tão modesto no preço, cinqüenta mil-réis — que ficou admirado; mas comprou-o assim mesmo, e voou para casa.

 

Ao chegar, estava à porta o menino, com cara de o haver já descomposto e mandado ao diabo. Tirou-lhe os embrulhos e ofereceu-lhe uma gorjeta.

 

— Não, senhor, o patrão não quer.

 

— Pois não diga ao patrão; pegue lá dez tostões; servem para comprar na cobra, compre na cobra.

 

Isto de lhe indicar o bicho que não dera, em vez do leão, que dera, não foi cálculo nem perversidade; foi talvez confusão. O menino recebeu os dez tostões, ele entrou para casa com os embrulhos e a alma nas mãos e trinta e oito mil-réis na algibeira.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 20 de outubro de 2021

O CULTO DO MAR (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

O CULTO DO MAR

João do Rio

 

 

 

O Culto do Mar é praticado pelos pescadores das nossas praias. É um culto variado, cosmólatra e fantasista, cm que entram a lua e alguns elementos divinizados.

- Não conhece os nossos pescadores? Gente tranqüila. Raramente se agridem e sempre por questão de pesca.

Os pescadores formam um corpo distinto, diverso dos catraeiros, dos marítimos, dessa população ambígua e viciada que anda no cais à beira das ondas perturbadoras. Não há canto da nossa baia que não tenha uma colônia de pescadores. Vivem todos muito calmos, sem saber do resto do mundo. Enfim, uma classe à parte, com festas próprias, que não se afasta do oceano e é unida pelo culto do mar. Os pescadores são os últimos idólatras das vagas. Conversar com eles é ter impressões absolutamente inéditas de moral, de filosofia e de religião.

- Mas essas colônias são brasileiras? - indaguei do meu informante.

- Não. Há colônias só de portugueses, como a de Santa Luzia e de Santo Cristo, de portugueses e brasileiros, como em Sepetiba, de italianos apenas, de brasileiros só. Uma série de núcleos ligados pela crença. São outros homens. Nascem de mães pescadoras, partejadas quase sempre por curiosas, vivem nas praias, nunca as abandonam. Aos quatro anos nadam, aos dez remam e acompanham os parentes às pescarias, e assim passam a existência, familiarizados apenas com as redes, os apetrechos de pesca e o calão, o pitoresco calão marítimo.

O oceano imprime-lhe um cunho especial, são propriedades do mar. Nunca reparaste nos pescadores? Têm os pés diferentes de todos, uns pés contráteis que se crispam nas pranchas como os dos macacos; andam a bambolear, balouçando como um barco, e a sua pele lustrosa tem o macio grosso dos veludos. A alma dessa gente conserva-se ondeante, maravilhosa e simples.

- Mas os pescadores são cristãos?

- Está claro. Mas cristãos puros é difícil encontrar hoje afora os evangelistas e os sírios.

- Lembro-me da festa de Nossa Senhora, na Lapa.

- É outra coisa.

- Vi em Santa Luzia a devoção de São Pedro.

- Era promessa de um rapaz que, por falta de meios não a continua. Deixemos N. Senhora e São Pedro. Falo de um culto que emana no intimo respeito das ondas. Todos os pesca-dores das praias e das ilhas próximas festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de devoção. Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os Tritões e não respeite a Lua. Conheço três manifestações desse culto. A Mãe-d'Água entre os pescadores de Santo Cristo e de Santa Luzia, a da Lua, e do Mar e a do Arco-Íris.

- O Arco-Íris?

- Em Sepetiba. É dos mais completos e dos mais belos, tendo como sacerdote uma mulher.

O Arco-Íris, a adoração de um deus que se curva nas nuvens policromo e vago, que ergue das ondas um facho de luzes brandas e desaparece, o terror daquilo que se desfaz, sem que se saiba como! Era uma fantasia! Mas os cosmólatras inventam tanta coisa para perfumar a sua ignorância, que bem podia ser.

- Não há dúvidas - disse o meu amigo. - O arco-íris, é uma antiqüíssima divindade, um anúncio dos céus. Lembra-te disso e acompanha-me.

Acompanhei-o, durante um inverno, muito úmido e muito estrelado. Os pescadores têm um temor incalculável da polícia. Desde que um curioso aparece, guardam segredo das suas crenças e negam toda e qualquer co-participação em religião que não seja a católica. Como são primitivos e rudimentares, porém, a bondade que têm é fundamental, transforma-os e não há nenhum que não acabe confiante e falador, exagerando para espantar os mistérios cosmológicos. Esses mistérios são de uma beleza delicada e antiga, de uma beleza de rapsodos que relembra as fantasias escandinavas e helenas, um montão de lendas e de ritos enervantes. Há nas práticas e nas idéias trechos de Hesíodo, de Cristo e dos pretos-minas e a gente afunda-se, quando os quer guardar, num banho de cristal batido pelo sol.

Quase sempre os diretores das festas, os sacerdotes não são pescadores. Em Santo Cristo é o padeiro Carvalho, homem de posses - diz o meu amigo. Os sacrifícios são feitos geralmente à noite.

Vamos os dois interrogar os pescadores. Essa gente teme a Mãe-d'Água, tendo a longínqua recordação de que ela aparece vestida de branco seguida de homens barbados de verde. A aparição feminina grita de repente, apaga as luzes na barca, faz as cerrações, afasta os peixes, e às vezes canta.

- Como a Darclée?

- Como as sereias meu caro. Os pescadores têm que cair no fundo da barca tapando os ouvidos. Ulisses amarrava-se...

Para aplacar a deusa do mar, ser impalpável e lindo, os pescadores fazem o sacrifício de um carneiro. Matam o bicho à beira do oceano; o sangue cai numa cova aberta na areia. Depois partem canoas levando pedaços do animal com presentes que deixam cair no fundo da baía com uma oração votiva.

Um rapazola, lindo como o Apolo do Belveder, responde às nossas perguntas:

- Eu fui batizado, patrão.

- Mas sabe a história da Mãe-d'Água?

- Sei, sim. Aqui, para Mãe-d'Água ser boa fazem-se despachos. Na ilha do Governador compram tudo do mais fino, põem a mesa à beira da praia, com talheres de prata, copos bonitos, a toalha alva e galinhas sem cabeça, para a santa comer.

- Que diferença há entre Nossa Senhora e a Mãe-d'Água? - indago interessado.

- Nossa Senhora está no céu. Mãe-d'Água é diferente; é a devoção, é como um santo do Mar... E sopra-me na cara uma baforada de fumo mau.

O meu amigo, cheio de literatura, declama logo:

- Não compreendes! A água é em toda a parte uma religião. O Nilo foi feito das lágrimas de Isis, o Ganges é o fator da crença da imortalidade, os gregos povoaram o mar de habitantes sagrados.

Lembra-te dos arías ao descer do planalto: - "ó mar, grande laboratório!..." Laboratório da vida da crença.

E leva-me a uma outra praia, a compreender como tudo depende do mar e da lua. Ele conhecia um velho pescador, José Belchior. O velho recebe-o com intimidade e conta-me o que pensa deste mundo. É curiosíssimo.

Para José o mar representa o homem, o princípio ativo. Por isso o mar é superior em tudo à terra, que como a mulher só serve para o descanso. O oceano circunda a terra num longo abraço. O mar só sofre uma influência, a da lua, que mostra a sua face de trinta em trinta dias e o faz inquieto e a arfar. Nela mora Nossa Senhora com o seu filho Jesus, e esse doce alampadário de ouro desencadeia os ventos, faz as tempestades, esconde os peixes, baixa as marés e guia as naves. Se Nossa Senhora quisesse, parava a lua quando ela vem cheia, e tudo seria então magnífico. Como as coisas não são assim, fazem-se promessas, pede-se aos santos para interceder e, nas noites de luar, fazem uma passeata em embarcações com velas de cera acesas na mão e rezando baixinho.

Todas essas pequenas modalidades reúnem-se em Sepetiba no culto geral do Arco-Íris. Há festas de três em três meses, despachos simples e uma grande solenidade, que já foi feita a 2 de fevereiro e atualmente se realiza em junho, no dia de S. Pedro.

Estive lá nesse dia. A sacerdotisa é uma portuguesa reforçada, que se chama Maria Matos da Silva. Só são permitidos na festa pescadores, e os pescadores vão de toda a parte ao culto singular. A casa de Maria da Silva fica mesmo no ponto dos bondes, e nos dias de festa está toda adornada de folhagens e galhardetes. Todos, lavados e de roupas claras, a dona da devoção manda buscar os negros feiticeiros para preparar os ebós e fazer a matança dos animais.

Ela própria deita as cartas para saber quem deve ir levar os sacrifícios e os desejos sutis do Arco-íris.

No interior da casa, onde ardem velas, é proibida a entrada com exceção das que tomam parte nos sacrifícios. Em frente os pescadores bebem, cantam e dançam o cateretê. Se por acaso no céu se curvam as cores do espectro, prosternam-se todos radiosos clamando pelo milagre. O milagre porém, como todo o milagre, é raro.

Maria da Silva tem sempre a seu lado o coronel Rodrigues, velho guarda nacional, que com os pés metidos em grossos tamancos, sentencia máximas morais para a assembléia. Os pescadores que apanham na rede um boto, levam-no à mulher do culto para preparo do azeite das festas sagradas.

Vou pela praia, alanhada por um vento álgido. No céu aparecem nuvens, na areia descansam três barcas enfeitadas. Um rapazola guarda-as. E ele quem nos dá informações a respeito da gente que dança. Reina entre estas criaturas uma perfeita amoralidade. Como não há barulhos graves, não se vai à polícia. Conselhos dão os velhos. A mulher serve para procriar, obedece cegamente ao homem, cose, trabalha, é inferior. O macho domina. O respeito aos anciãos existe, porque estes sabem das manhas dos peixes, anunciam as tempestades, ensinam. Quanto ao amor, deve ser muito diverso do nosso...

- E as festas, quem as faz?

- Para as festas concorrem todos.

Das três barcas que eu via, a primeira era para o Arco-íris, a segunda para a Mãe-d'Água e a terceira acompanharia as duas formando a trilogia, duas na frente e uma atrás.

O meu amigo, lembrando mitologias diversas, quis saber a razão desse triângulo. O rapaz respondeu apenas:

- É costume.

É costume também pagar em todas as religiões. Tanto os feiticeiros como os condutores das barcas recebem dinheiro. Os remadores pertencentes ao Arco-Íris têm seis mil réis, os da Mãe-d'Água três e os acompanhadores nove. À noite, já no céu negro o crescente lunar, depois dos búzios e dos baralhos terem indicado os dias em que não se poderá pescar, começa o sacrifício.

Forçado a ficar de longe, embrulhado num paletó em que tiritava, vi sair da casa da Maria uma teoria de camisolas brancas com as lanternas de azeite de boto na mão, acompanhando dois homens, um vestido de seda, outro de cetim.

O primeiro era o voga da canoa do Arco-íris, o segundo ia dirigir a da Mãe-d'Água. As canoas foram arrastadas para o mar. Na do Arco-Íris iam os mais finos presentes com os despachos, na da Mãe-d'Água objetos caros e femininos. Quando as canoas partiram em direção ao Norte, levando aqueles estranhos remadores vestidos de morim branco, os que ficaram na praia levantaram os braços, e a Maria da Silva, na turba, sorria como quem se desobriga de uma promessa sagrada.

- E ao voltarem, que há? - indaguei ao rapaz.

- Voltam de costas, de frente para o mar, entram assim em casa; os remadores, menos os do Arco-íris, batem com a cabeça no chão, e a festa continua.

- Mas que é o Arco-íris, afinal?

- O Arco-íris indica se a gente está bem com Deus. É um aviso, o sinal da união, o único meio por que o mar se deixa ver... e a crença.

Olhei mais o oceano soluçante sob o vento álgido.

As barcas todas acesas de luzes frouxas perdiam-se na fosforência lunar; os remadores cantavam, e eu ouvia como a copla de uma barcarola nostálgica. Em frente da casa de Maria, o cateretê delirava e sombras de adolescentes desciam a praia ágeis e finas.

A Maria, sentada, sorrindo, era indecifrável.

E para que decifrá-la? O seu culto era o culto de todas as épocas e de todos os homens. O mar continua a ser o grande mistério. Para os espíritos simples que temem o diabo e guardam na alma crenças acumuladas, só a Lua com a imagem de Nossa Senhora pode explicar a angústia do mar e só as sete cores do arco do céu podem simbolizar o vago mistério da união do oceano e do homem.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 19 de outubro de 2021

MOCINHA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

MOCINHA

Raul Pompéia

 

 

 

"Deus me dê forças para ser calmo", pensou Arsênio, sentando-se depois de não sei quantas voltas pelo gabinete. Atordoava-o a terrível certeza. Esteve alguns segundos à cadeira, mãos pendidas como em delíquio, olhar imóvel, magnetizado numa pausa de estupidez pelo brilho fixo, vivo do verniz da escrivaninha, num ângulo que a luz feria.

Por fim bruscamente, como sacudindo o entorpecimento, levantou-se e foi buscar ao guarda-relógio uma pequena chave de ouro que usava na corrente, talismã secreto de namorado e perene intriga dos amigos curiosos.

Sentado novamente, diante da pasta do trabalho, abriu com a chave uma gaveta à esquerda. Estava cheia de cartas, cartas em desordem, algumas abertas, mostrando nas folhas de cores pálidas estampas mínimas de pombos e flores, palavras de ternura que outras folhas truncavam encobrindo, cartas de amor d'onde evolava-se uma nuvem de perfumes muito tempo guardado, como a saudade dos antigos beijos.

Arsênio debruçou-se sobre as recordações.

 

Casara pela razão profunda de que eram vizinhos.

Era impossível afrontar o narcótico das ordenações e do Melo, amenizadas ainda pela comprovação textual que tem o incomparável atrativo de ser latim. Dormir diante da preleção era escandaloso. Ao menos, no tempo das chamadas o terror alertava.

Só havia um partido: ficar em casa. Ver passar o Capiberibe debaixo do sol e os matutos pelas pontes brancas, abalados sobre os jacás, ao chouto dos cavalinhos magros, valentes, encrustados de estrume seco nas ancas; ouvir do catre bambo de lona e pinho os gritos do cargueiro, as chicotadas no ar, ou a lamúria inacabável dos mendigos: "Pelas cinco chagas de Cristo! meu devoto... Uma esmolinha pelo divino amor de Deus!..." vozes de cegos no fulgor da luz, que com a temperatura das horas eram de um efeito de aborrecimento sem nome.

No principio lia, mas o clima venceu e a madraçaria acadêmica apoderou-se dele com todos os sintomas de morbidez incurável.

O companheiro de casa falava-lhe dos dias frios de S. Paulo. Como seria bom dormir num dia frio... Ele tinha de padecer o suplício único da preguiça quente, sob o cancã de reflexos espelhados do rio para o teto.

Erguia-se sobre o cotovelo para sorver o refrigério do coco verde e recaía.

De espaço a espaço, vibrava o silvo de uma locomotiva partindo; às vezes o rugido longo de um paquete ancorado diante da Lingueta. Era o tempo a correr. Bem lhe importava; a preguiça não tem horário.

- Mala para o Sul, dizia-lhe da janela o companheiro, olhando para o mastro dos sinais da navegação, sobre a cidade.

Ele com um bocejo, sem mesmo abrir os olhos:

- Mala para o Sul?...

 

Mas havia uma área nos fundos, espaçosa, ladrilhada de tijolo, partida ao meio por um muro. Metade era o quintal da casa; a outra metade era o lavadouro de uns vizinhos de frente para o lado oposto do quarteirão.

Antes do jantar, enquanto punham a mesa ou depois, esperando a noite para correr às cervejarias, ou às famosas visitas de um inolvidável corpinho azul de setineta, risonho e fácil, Arsênio cruzava os braços sobre o peitoril e olhava.

No pátio vizinho, diante de um tanque negro de limo, batia roupa uma velha escrava com a saia em nó sobre a barriga, requebrando-se a cada golpe das peças. Quando a roupa era demais, estendia-se sobre o telhado fronteiro, onde uma siriema aparecia a passear em cima, parando a períodos regulares para soltar o canto metálico.

Acontecia muito vir falar à lavadeira uma mocinha clara de cabelos pretos. Aparições fugitivas. Trazia alguma roupa ou dava um recado e sumia-se como o relâmpago. O tempo suficiente para deixar a impressão da graça rara dos seus modos e animar para Arsênio com um encanto permanente a vista insípida do ladrilho vermelho, do lavadouro, do melancólico passeio da siriema sobre as roupas úmidas.

"Mocinha" exatamente chamavam-lhe.

Arsênio modificou um pouco os seus hábitos de preguiça depois que notou as aparições. E agora estremecia quando chamavam "Mocinha!" na vizinhança. Acudia à janela como se por ele chamassem, como perguntando:

Que querem com o meu sossego?...

Falavam dela, que era namoradeira e leviana. O estudante poderia atestar que percorreu os transes da mais difícil escala de concessões.

Primeiro a concessão dos cabelos, pretos, abundantes, tempestuosos, destrançados sobre o paletó de tiras bordadas. Durante muito tempo só lhe pôde ver à vontade os esplêndidos cabelos. Mocinha sentava-se perto da janela, mas propositalmente voltada para um livro ou para o crochet; de costas como em recusa, oferecendo entretanto o espetáculo complacente do seu tesouro.

Arsênio apaixonou-se pelos cabelos como se apaixonara pelas aparições preliminares.

Mocinha passou a mostrar o rosto. Apresentava-se com os olhos baixos sobre o lavadouro. Ao retirar-se, fazia uma viagem com o olhar, de maneira que fosse para o vizinho exclusivamente o derradeiro relance.

Arsênio apaixonou-se pelo relance.

Prolongava-se a terceira fase da benevolência, quando ocorreu um transtorno.

Por uma madrugada de exceção entregava-se Arsênio à toilette rudimentar das ablusões em trajes menores, descuidoso, no pátio da casa, confiando na hora e no crepúsculo discreto. Inesperadamente cai-lhe da janela dos seus amores como se caísse do céu e da alvorada uma vaia de risos franca, argentina e cruel.

O rapaz voltou-se, a tempo de ver ainda escapando para dentro uma grande sombra de cabelos soltos.

Estava desmoralizado! Visto de ceroulas! Visto por ela! De ceroulas a lavar-se, imaginem, em plena situação idilial do seu romance!

Arsênio protestou não tornar ao posto de esperanças, à adoração parva dos favores da vizinha. Uma gargalhada assim era o rompimento afinal, ditado expressamente a um tolo

Mocinha percebeu o retraimento.

Junto do tanque de lavagem havia o banheiro. Todos os dias, cerca de onze horas, ela e a irmã, uma criança loura de dez anos, atravessavam o pátio com as toalhas. Momentos depois, da porta verde, por uma trama de sarrafos, ouviam-se gritos de prazer e um barulho fresco de chuveiro, de águas batidas. As irmãs saíam coradas, alegres, rindo, agitadas por um frêmito de penas de ave.

Uma vez que as sentiu passar, Arsênio chegou à janela.

Logo, como uma surpresa, abre-se a porta do banheiro e surge Mocinha. Cabelos soltos, como quase sempre, mas em saia branca e corpinho apenas, um apertado corpinho decotando-se sem reserva na pele virgem, rasgando-se aos alvos braços, inveja de Juno, que a sedutora criatura deixava que vissem.

Esquecera o lençol e o foi buscar. Passou tranqüila sem olhar para cima. Voltou enleada no lençol de feltro como uma túnica de arminho, d'onde escapavam-lhe os passos, os miúdos pés despidos, rosados de pisar assim, rápidos como um páreo de flores.

O estudante imaginou que fora proposital tudo aquilo; porque, antes mesmo das águas frescas, ouviu no quarto de banhos uma festa de galhofa.

Riam-se dele ainda, não há dúvida. Meditando, porém, no incidente, compreendeu que a saia branca fora a recíproca das ceroulas. Uma declaração positiva e originalíssima - a permuta dos ridículos de intimidade, sutilmente e ousadamente proposta para consolar da humilhação da madrugada.

Ou não fosse. Verdade é que três meses mais tarde, diante do altar de mármore da Penha de Santo Antônio, permutavam-se entre ambos os compromissos da intimidade consagrada.

 

Arsênio foi feliz. Fez-se ativo, formou-se, montou casa e começou a advogar no escritório do sogro, um dos mais procurados juristas no Recife.

Dous anos completos, recebeu ele uma carta de intriga anônima.

Veria logo que era uma calúnia infame quem soubesse a calma dos beijos da esposa, quando o advogado entrava do escritório, e o pressuroso carinho que provocava a mínima sombra de preocupação suspeitada e o longo abraço que o estreitava à noite, forte como a virtude, firme como a fidelidade.

Desvanecera-se a impressão do primeiro assalto. A carta de intriga voltou. Agora formulada com uma energia mais severa de boas intenções.

Arsênio ficou aterrado. Figurou-se o anônimo como uma individualidade fantástica, onipresente, demônio indivisível, elevando-se no caminho da vida para matar-lhe a ventura.

Acusavam-na, acusavam formalmente a querida companheira.

Não quis pensar; resolveu precipitar, arriscar-se ao desastramento, contanto que se libertasse do peso da angustiosa dúvida.

O carteiro veio às oito horas. Mocinha estava ainda na cama.

Arsênio foi vê-la. Dormia sobre a face direita, um pouco torcida, adiantando os lábios. As pálpebras desciam serenas, denunciando, na transparência escura, a cor negra do olhar velado. Uma das mãos pendia-lhe fora do leito. Tinha quase de costas o tronco, e a pele alvejava, do colo e dos ombros, tão branca sobre os lençóis, na meia claridade do aposento, tão cândida que parecia azul a candura do linho.

Arsênio abriu uma janela devagar que não despertasse a esposa. Os lençóis brilharam como prata amarrotada. Mocinha continuou a dormir na intensidade da luz.

Arsênio sentou-se à beira do colchão. A vista parou-lhe eventualmente sobre o tapete onde dormiam como a dona os exíguos pantufos de marroquim cor de bronze. No desenho da lã, fugia tempestuoso o galope de um búfalo das savanas de sólidos chifres curtos.

Olhou para Mocinha. A claridade violenta não conseguira despertar o repouso. Será possível que durmam assim os remorsos? Arsênio debruçado procurou-lhe na face branca, nas espáduas, no seio descoberto, o vestígio da traição, marca do beijo estranho, a cicatriz do adultério. Que imaculada pureza! Um busto de anjo, na inocência feita mármore.

O marido quis beijar a mão pendente, mas resistiu.

esposa agitou-se afinal, sentindo a cócega da luz. Um longo inteiriçamento estendeu-se sob as cobertas como um espasmo vibrante.

Abriu os olhos e fechou-os no mesmo instante, tocados pelo dia. Abriu-os de novo e teve um pequenino grito admirativo com a presença do marido. Bocejou, esfregando as pestanas, um adorável bocejo de romã de vez. Apoiou languidamente o braço na almofada e ergueu o corpo. Desatados num gracioso gesto, os cabelos correram-lhe sobre a atitude, suntuosamente.

A jovem persignou-se para a oração da manhã.

Arsênio deixou que ela orasse, segundo o precedente de Otelo.

- Rezaste? perguntou então.

Mocinha encarou-o com certo espanto de mau humor imperceptivelmente acentuado, mas que fez tremer ao marido.

- Que quer dizer esta pergunta?

- Lê esta carta, respondeu ele com brandura, entregando o papel anônimo. É curioso que haja indivíduos que se entretenham com estas revoltantes brincadeiras.

Fitava a mulher, falando. Mocinha leu e o enfrentou com os grandes olhos pacíficos. Um traço de amargura crispava-lhe um canto da boca.

- Tu não me devias mostrar... disse unicamente.

Uma lágrima saltou-lhe da pálpebra e escorreu pelo seio até à camisa. E, sem uma palavra mais, Mocinha atirou-se sobre a almofada com o rosto para a parede.

Arsênio despediu-se naturalmente; mas sem que lhe ocorresse a conveniência de atenuar de qualquer forma a desagradável colisão do seu expediente. Sentia-se atordoado. A desconfiança que esperava destruir, procedendo franco, parecia haver crescido. Qual a significação daquela lágrima? Seria a dor da injúria grosseira a uma consciência limpa? Mas supunha ter distinguido mais que simples desgosto na expressão queixosa. Dar-se-ia caso de ser aquilo uma confissão involuntária, colhida ali ao acordar-se, no descanso físico, no desalinho da alma, antes da dissimulação carinhosa que não fora lembrada na oportunidade?

A suspeita fixou-se-lhe formalmente no espírito.

 

A vigilância malvada do anônimo sobreveio para o remate.

Trouxeram-lhe misteriosamente ao escritório, surpreendida não sei como, uma carta da mulher, duas linhas:

"Não venha! não venha; porque estamos traídos."

A letra era a sua, absolutamente a sua, horrivelmente a sua!

Arsênio, trêmulo, agindo automaticamente como um sonâmbulo, correu à casa. Procurou a mulher e estendeu-lhe a mão com a carta aberta. Tentou um supremo esforço e pôde dizer:

- Não devia ainda mostrar...

Mocinha estava sentada diante da cesta de vime das costuras. O pano em que trabalhava desprendeu-se-lhe dos dedos. Cobriu-lhe o semblante uma palidez de morta. Nem um movimento, nem uma exclamação. Levantou, só para o marido, um olhar indefinível, esse olhar de aço simultaneamente límpido e mortífero, com que as mulheres se defendem na extrema emergência.

 

Arsênio trancou-se no seu gabinete.

Tratou de impor-se toda a possível calma para encarar a situação.

Lembrou-se das soluções literárias, sorrindo dolorosamente, as saídas apresentadas para o caso pelos dramas, pela teoria... Teses... Propor um código aos temperamentos!... A julgar pela vertigem que lhe obscurecia o cérebro, o seu temperamento reclamava a solução violenta, o desenlace sanguinário... Mas ponderou imediatamente que a simples observação do próprio temperamento provava que ele não era dos adequados ao rompante teatral.

Tomou então uma folha de papel e escreveu para mandar ao sogro:

"Restituo-lhe sua filha. Por ela saberá V. S. os motivos que me induzem a proceder assim. Não venha daí tristeza à sagrada velhice de um pai. Não há infâmia nos desvios irresponsáveis do coração. O casamento é a aliança da lei, mas é a confusão do sangue e do sentimento. Desfeita a sinceridade desta união, a infâmia é exatamente persistir a prostituição do registro civil."

Formulou ainda algumas frases de cortesia e assinou. Ao concluir, sentia-se abatido, como se se houvessem rasgado as veias.

Impeliu vagarosamente a gaveta das cartas restantes do seu amor, com o cuidado que se tem para o esquife de um cadáver querido. Abriu outra para tirar um envelope.

Achou dentro o revólver, um brilhante revólver americano, que nunca servira. Empunhou-o distraidamente... Estava carregado... como quem tem confiança no seu temperamento de homem avesso às soluções teatrais, certo de que era incapaz de matar alguém, a si muito menos..


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 18 de outubro de 2021

ONDA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ONDA

Machado de Assis

 

 

Na pia chamara-se Aurora; Onda era o nome que lhe deram nos salões.

Por que? A culpa era dela e de Shakespeare; dela, que o mereceu; de Shakespeare, que o aplicou à instabilidade dos corações femininos.

Tinha um coração capaz de abrigar seiscentos cavaleiros em dia de temporal, e até sem temporal. Batessem-lhe à porta, que a hospitaleira castelã abria sem maior indagação. Dava ao peregrino água para os pés, pão alvo e vinho puro para o estômago, leito macio e aquecido para o corpo. Mas, depois disto, fechava-se muito bem fechada em sua alcova, e, rezando a Deus pela paz dos viajantes alojados, dormia tranqüila em seu leito solitário.

De tais facilidades em dar asilo a uns, mesmo quando outros ainda estavam sob o teto hospitaleiro, é que lhe nasceu a denominação que serve de título a estas páginas.

Pérfida como a onda, disse um dia um dos enganados, vendo-a passar em um carro e indo parar à porta do Wallerstein.

O nome pegou.

Ora, vejamos, em minha imparcialidade de historiador, se esta denominação lhe quadrava.

Coitadinha! não precisava muito tempo para ler-lhe nos olhos, adivinhar-lhe os gestos, traduzir-lhe nos sorrisos, a vivacidade, a dissimulação, a afabilidade que constituem o tipo da moça namoradeira.

Via-se que ela conhecia a fundo esta arte de atrair e prender os corações e as vontades com um simples volver de olhos, um simples meneio de leque.

Dera-lhe Deus uma beleza que era a sua base de operações. Não é que a beleza seja absolutamente necessária. Sei de alguém que reconheceu uma mulher cujas feições examinadas, uma por uma, não tinham traço algum de beleza; mas que sabia mover uns olhos que Deus lhe deu e de que ela, seja dito em honra da verdade, fazia um mau uso. Tão mau, que este alguém em questão, depois de se apaixonar por eles, achou-se um dia sem coração e sem futuro.

Se era assim com aquela, o que não seria com esta, que, além de um par de olhos vivíssimos, formosíssimos, eloqüentíssimos, possuía as verdadeiras formas de beleza feminina?

Onda sabia que tinha os olhos bonitos: volvia-os a cada momento; sabia que possuía mãos de princesa: consertava os cabelos de minuto a minuto; sabia que possuía uns dentes e uma boca divinos: sorria a propósito de cada coisa; sabia que os seus pés eram dos mais perfeitos: procurava não sujar o vestido quando descia do carro.

De modo que, amigos ou estranhos, pobres ou ricos, poetas ou prosas, velhos ou moços, todas as criaturas que pertenciam ao sexo do autor e do leitor destas linhas, ficavam fascinados, presos, apaixonados.

Ela cuidava extremamente de pôr em relevo a sua beleza mediante os inventos da arte. Era assinante dos melhores jornais de modas e freguesa das melhores casas de novidades elegantes. Distinga-se porém: a minha heroína era casquilha para ser namoradeira, o que é alguma coisa diferente da casquilha por casquilhice. Se me é lícito aplicar uma fórmula séria, direi que há entre as duas espécies a diferença que vai do princípio de arte pela arte ao principio de arte pela moral.

Onda sabia que o espírito do homem deixa-se prender facilmente pelos atrativos artificiais juntos aos atrativos naturais, e não deixava de aumentar pela cifra da elegância a unidade da beleza com que a natureza a dotara.

Acrescente-se a isto, que Onda possuía um gosto apuradíssimo. Mesmo na escolha dos mais simples trajares revelava-se nela a discrição, o acerto, a boa mão, para usar de uma expressão popular.

Ora, não se resiste facilmente a quem reúne tantos predicados; e se a simples presença bastava para prender, o que não era quando aquela boca se abria, como uma taça de mel do Himeto, e destilava, não digo palavras, gotas de pura ambrosia do céu?

Assim que, naquelas guerras de amor, a presença era o primeiro ataque, a palavra a batalha campal. Ninguém saía delas são e salvo; saía-se ferido, e, o que é mais, sem esperanças de chegar a coronel. O tempo dava alguma confiança aos que se enamoravam dela em virtude de uma reflexão que lhes parecia justa; e era que nem toda a vida Onda faria de sua beleza uma simples rede para passatempo. Esta esperança fortificava as coragens e inspirava as constâncias. O próprio tempo os ia desenganando até a hora em que se deu o episódio que vou narrar em poucas palavras.

No momento em que Onda, completando vinte e cinco anos, pareceu chegar à idade razoável de passar do capricho ao amor sério e digno, apareceu na intimidade da família desta misteriosa donzela um rapaz, que meses antes chegara de uma longa viagem à Europa à custa de um tio desembargador.

Antes de pisar o reino da nova Diana já Ernesto (é o nome do herói) sabia com quem ia lidar. Meia dúzia de logrados tiveram cuidado de instruí-lo da alcunha e das qualidades da moça.

Ernesto, depois de ouvir as narrações e as imprecações de todos, puxou uma fumaça, e brandindo um chicotinho de junco, olhou para os seis e disse-lhes:

- Não quero argüi-los de fraqueza ou inépcia; mas façamos uma aposta: o que perdem se eu conseguir domar essa gentil pantera?

- Ora! exclamaram em coro os seis ministros decaídos.

- Isso não é responder.

Um dos interlocutores respondeu:

- Mas é impossível domá-la! disse um que era poeta.

- Impossível? exclamou Ernesto. Meus amigos, se Penélope não tivesse pressentimento de que, mais tarde ou mais cedo, Ulisses lhe apareceria em casa, não fiaria tanto, e em vez de sustentar a tantos pretendentes, sustentaria apenas um, o que era mais acertado, no duplo ponto de vista da economia e do coração. Onda, como lhe chamam, espera sem dúvida o seu Ulisses, que sou eu, e os vai iludindo até que eu apareça para entrar na posse do direito que a natureza me conferiu. Esta é a verdade...

Cada qual dos seis pretendentes desenganados tinham a consciência de ter feito os últimos esforços, consciência em que entrava um tanto de fatuidade; mas tinham isso, e foi por isso que, quando Ernesto acabou de falar, responderam todos com a mais estrondosa gargalhada.

A fatuidade falara em primeiro lugar no espírito de Ernesto; a gargalhada ofendeu-lhe o amor-próprio; insistiu, já sério, ou antes com aquele riso especial que em nossa língua se exprime tão bem pelo riso amarelo; depois de dez minutos de renhida discussão, assentou-se que, no caso de vitória, Ernesto teria direito as seguintes prendas:

Um jantar no hotel da Europa.

Um cavalo.

Um mês de verão em Petrópolis.

Uma assinatura do teatro Lírico.

Um milheiro de charutos de Havana.

Saldar todos os credores.

Um manuscrito de Voltaire.

Esta última aposta era do poeta que se gabava de possuir muitos manuscritos de homens célebres, e que, declarando o que perderia, teve cuidado de fazer observar que perderia mais que todos.

No caso em que Ernesto fosse derrotado pagaria aos outros, coletivamente, um lauto banquete.

Nisto despediram-se.

Ernesto estava compenetrado da situação. Perder era correr-se de vergonha, sobretudo depois do tom em que falara e da confiança que mostrava ter em si. Outras razões aduzia ainda: ganhar era, não só envergonhar a tantos, como ainda entrar de cabeça alta na posse de uma mulher formosa e de uma fortuna regular.

Já por esta reflexão fica o leitor instruído de que Ernesto não era homem de dar uma polegada de si ao ideal. Uns através dos olhos da mulher queriam ver a alma; Ernesto enxergou simplesmente uma bolsa recheada. Este modo de traficar a própria pessoa não é nenhuma descoberta, nem eu me dou por Arquimedes. Aponto simplesmente mais este traço do nosso herói.

Ora, o nosso herói, pesadas as coisas, ficou determinado a entrar em combate.

"Qu'allait-il faire dans cette galère?" perguntaria Geronte.

O caso é que foi.

A primeira coisa que Ernesto resolveu no seu espírito foi não ceder um palmo ao encanto de Onda. Era o melhor meio para operar melhor. Estando a frio podia calcular, e calcular era, pelo menos, criar as mesmas vantagens da inimiga.

Não nos demoremos, leitor, com as primeiras cenas deste namoro, que nos não adiantam nada. Saltemos uns vinte dias e cheguemos a uma tarde de junho em que Onda, em companhia de duas amigas, espera a visita de Ernesto.

Depois de certa espera anuncia-se a chegada do herói. Onda recebe-o com o melhor dos seus sorrisos.

Ernesto, contente de si, cumprimentou o mais graciosamente que podia a bela e as amigas, e depois, com uma graça que procurava ser natural, assentou-se na cadeira que Onda lhe indicara com um gesto.

Até este dia Ernesto tinha procedido muito elementarmente: fazia um louvor à beleza de Onda entre dois suspiros que magoavam à força de parecerem magoados. Era, na opinião de Ernesto, o primeiro meio, o mais natural, o mais próprio. O que é certo é que, depois de alguns dias, Onda lhe parecera decidida a aceitá-lo. Mas não seria fingimento? dizia consigo Ernesto; e concluindo pela afirmativa, procurou empregar todas as suas armas, de maneira que não só pudesse aferir a sinceridade dos sentimentos da moça, mas ainda inspirar-lhe sentimentos verdadeiramente sinceros e profundos.

Ora, eis aqui como ele estreou a conversa:

- Já sei que está com saudades de mim?

- Ande lá, respondeu Onda, ainda bem que é o primeiro a fazer o capítulo da própria acusação.

- Sou criminoso.

- Talvez, não... Mas sabe por que tive saudades?

- Porque não venho aqui há cinco dias.

- Bem. E por que não veio?

Dizendo isto Onda cravou em Ernesto um desses olhares que, procurando animar uma resposta, deixam o espírito em perplexidade e confusão.

Ernesto esteve dois minutos sem responder, mas também sem desviar os seus olhos dos olhos da moça.

É que aquele olhar era de fogo grego que Onda guardara para a ocasião oportuna. Depois de uma ausência de cinco dias, parecendo que a presa se escapava, cumpria prendê-la de modo que não lhe desse mais ocasião de tão longos esquecimentos.

Esse olhar era tudo. Derrubaram-se os projetos de Ernesto: vinha com a intenção de experimentar o ciúme da moça, trazia já redigida a mentira que servia de arma, mas tudo se lhe esqueceu, tudo se inutilizou.

Sem desviar os olhos de Onda, Ernesto balbuciou estas palavras:

- Estive doente.

- Doente? Com efeito, está pálido.

Ernesto lançou rapidamente os olhos para um espelho e reparou que estava realmente pálido.

Mas esta palidez não resultava de moléstia alguma, ou antes resultava de uma moléstia que só agora se manifestava em toda a sua ação.

Onda estava segura de seu triunfo. Via o efeito que produzia no espírito de Ernesto e comprazia-se nessa vitória que tão voluntariamente adiara. O essencial era convencer a Ernesto que ela o amava. Ora, o tom das suas palavras, a magia do seu olhar, faziam entrar no espírito do moço esta convicção.

Depois de duas horas de conversa, em que o tempo pareceu correr mais rapidamente do que costumava, para Ernesto entende-se, Onda estendeu graciosamente a mão esquerda para Ernesto e perguntou-lhe:

- Vai ao Teatro Lírico?

- Oh! com certeza!

Ernesto não se pôde furtar a um desejo de tomar alguma coisa do tesouro que se lhe oferecia. Levou a mão de Onda aos lábios e imprimiu-lhe um beijo apaixonado.

- Deste beijo, pensava Ernesto, pode nascer a minha ventura. Talvez até hoje ninguém ousasse a isto.

E na verdade, Onda pareceu estremecer sentindo os lábios do moço na pele alva e fina da sua mão de princesa.

Quanto às duas amigas, essas voltaram o rosto e não puderam esconder um sorriso, ao ver a figura de Ernesto e a graça cortesã com que ele se curvou e beijou a mão de Onda.

Ernesto saiu com os sentidos exaltados, o coração palpitante, as idéias confusas; estava definitivamente namorado, e, o que é mais, pensava ele, tinha agarrado a bela fugitiva.

À noite foi ao Teatro Lírico. Charton, que então fazia as delícias do público fluminense cantava nesse dia urna das suas melhores criações. O teatro estava cheio; todos aplaudiam a artista com sincero entusiasmo; nessa noite não cantava a competidora de Charton, a Emmy Lagrua; e como é sabido, os freqüentadores do teatro tinham-se dividido em dois partidos extremados, fogosos, mais fogosos e extremados que os partidos episcopais no concílio de Nicéa.

Só Ernesto não se filiava a nenhum partido; o único objeto de partido para ele fulgia em um camarote da 2.ª ordem. Onda estava esplêndida nessa noite. De sua cadeira Ernesto assestava quase constantemente o seu binóculo contra o camarote. Onda, que acompanhava todos os gestos e movimentos de Ernesto, fitava o olhar nos vidros do binóculo do moço e deixava errar nos lábios um sorriso fascinador.

Ernesto sabia que o sorriso era para ele, e subia proporcionalmente ao sétimo céu.

Mas seria Ernesto o único cortesão da beleza de Onda que se achava no teatro? Outros havia que de diversos pontos da sala, como outros tantos observadores astronômicos, estudavam a marcha e a beleza daquele planeta. No fim do primeiro ato convenceram-se todos de que havia na sala um preferido.

- Quem será? foi a primeira pergunta que cada qual fez a si.

E a resposta mental que para eles mesmos deram a esta pergunta foi:

- É natural que ele vá ao camarote.

E todos, caminhando por vias diversas e separadamente, chegaram quase ao mesmo tempo a um mesmo ponto: o camarote de Onda.

Eram três. Ernesto completava o número de quatro. Foi o último que entrou, radiante e feliz.

Quando entrou viu os três competidores, que ele já conhecia, conversando alegremente com a esquiva dama.

Por que alegremente?

Onda, ao primeiro que apareceu e que a censurara com meias palavras, respondeu:

- Pelo indiferente, ri-se; pelo escolhido, sente-se.

O pretendente sentiu bater-lhe o coração violentamente.

A tia de Onda, que se achava no camarote, não ouviu a conversa, nem que ouvisse lhe prestaria atenção.

Ao segundo despeitado Onda respondeu com um olhar significativo, como aquele que abatera Ernesto; ao terceiro poupou os olhos para poder falar a mão graciosa cujos músculos pareciam outros tantos fios elétricos.

De modo que, supondo-se cada qual mais feliz que o outro, enchia-se de certa vaidade e olhava com sincera compaixão para os outros.

E mais que todos Ernesto, que entrou no camarote com aquela confiança de quem sabe que causa uma grande satisfação, tão grande como seria grande e aborrecimento que os outros causariam.

E nenhum, depois de meia hora de conversação, mudava de parecer. Onda sabia conservar no espírito de cada um a convicção da sua preferência: uma palavra ambígua, um meneio de leque, um olhar, um gesto, tudo lhe eram armas para combater a dúvida e afirmar a fé no coração dos seus adoradores.

O resto da noite passou-se do mesmo modo, repetindo-se as visitas e confirmando cada um no espírito do outro a opinião de que era néscio e importuno.

No fim do espetáculo foi Ernesto que teve a honra de acompanhar Onda ao carro. Ia de cabeça alta, lançando um olhar de desdém para todos, e dirigindo-se a Onda, que lhe respondia com suma graça e volubilidade.

Junto aos últimos degraus da escada da porta lateral que dá para a rua dos Ciganos estavam os seis amigos da aposta, risonhos e interrogativos.

Ernesto viu-os, cumprimentou-os levemente e dirigiu-se para a porta. Um dos outros competidores trazia a velha tia de Onda e apressou-se a descartar-se dela fazendo-a entrar na carruagem. Depois Ernesto conduziu a moça, fê-la entrar e ia dizer duas palavras de despedida quando sentiu que lhe ficara na mão o lenço de cambraia da formosa Onda.

Antes que o menor sinal de admiração a comprometesse, Onda estendeu a mão a Ernesto e disse-lhe com voz doce e insinuante:

Até amanhã!

- Até amanhã!

A tia também repetiu, entre dois bocejos, as duas palavras:

- Até amanhã!

Mas Ernesto já ali não estava. Beijar o lenço, metê-lo na algibeira do paletó e correr para os amigos que o esperavam à porta do teatro, foi uma e a mesma coisa.

- Bravo! bravo! repetiram em coro os amigos.

Ernesto não sabia que dizer. Olhava para todos com um sorriso quase alvar, tal era o estado em que o deixara a inesperada ventura da dádiva do lenço.

- É minha! pensava ele.

- Então ganhaste a aposta? perguntaram os outros.

- Não sei: esperem. Quero declarar-lhes a vitória completa no dia em que puder apelar para o reconhecimento da igreja.

- Ah! ah! então casas-te?

- Por que não? Oh! meus amigos, mais tarde ou mais cedo hei de acabar por aí. Sinto em mim a bossa conjugal. Ninguém foge à sina. Ora, se há de ser com outra porque não há de ser com esta? Não lhes disse eu que era o Ulisses desta Penélope? Verão se acertei. O que é certo é que, como o pai de Telêmaco, tive meus naufrágios, e no fim de tantas atribulações aguardo a felicidade doméstica. Trato agora de frechar os pretendentes. Meus caros, a confiança e a coragem são tudo. Chénier tem razão:

 

..................Ami, reprends courage,

Toujours le ciel glacé ne souffle point l'orage.

Le ciel, d'un jour à l'autre, est humide ou serein.

 

Esta conversa já tinha lugar na rua. Uma parte da noite, em casa de um dos amigos, onde foram todos tomar chá, Ernesto continuou no mesmo falar de segurança, e nos outros, apesar da própria experiência, foi desaparecendo a dúvida para dar lugar a um convencimento que não era isento de despeito.

No dia seguinte Ernesto foi à casa de Onda e voltou de lá mais do que encantado. A noite é boa conselheira; antes de conciliar o sono, Ernesto refletira que a presença do lenço em sua mão poderia ser fortuita, e com este pensamento diminuíram-se-lhe umas boas braças do castelo que ele já construíra em seu espírito. Mas tão feliz era que se enganou na sua presunção. Quando, para sondar a verdade das coisas, disse a Onda que esta deixara cair por descuido o lenço, ela olhou-o fixamente e disse-lhe:

- Lenço é apartamento. Vamos experimentar se nos havemos de separar.

Era positivo.

Ernesto ficou fora de si.

Nessa noite chegando à casa resolveu escrever à moça mostrando-lhe o estado da sua alma.

Deu ordem para que o não incomodassem; mandou fazer café, acendeu um charuto, leu e releu Propércio e Millevoye, e depois de duas horas de incubação intelectual redigiu o seguinte manifesto do coração:

 

"Minha prezada Senhora.- Uma palavra sua vai ser para mim a condenação ou a salvação. Meu coração chegou ao estado de só admitir estas soluções extremas.

"Bem sei quão grande é a minha ousadia. Bem sei que pretender o seu amor é aspirar às estrelas do céu, à luz divina da glória eterna; sou talvez indigno de receber das suas mãos a coroa do meu supremo martírio. E se, no meio desta ventura, posso discernir estas coisas, é preciso que o amor que lhe consagro tome proporções tais que me não seja possível conservar no fundo da minha mediocridade.

"Amo-a; não cuide, porém, que este amor, semelhante ao amor com um dos homens, fosse apenas o resultado de uma fantasia e a conclusão de um cálculo. Não. Este amor é caso de vida e de morte; é um desses afetos em que a alma se empenha toda e do qual não pode sair sã e salva.

"Desde que a vi, senti que o meu coração tinha encontrado o seu ideal; onde há aí beleza mais admirável, mais rara, mais completa? A antiguidade tinha repartido os diversos modos da beleza nas deusas que inventou. Mas nesta que o meu coração faz glória de amar reúne-se tudo: a majestade de Juno, o recato de Hebe, a beleza de Ciprina, o aspecto virginal das três Graças.

"A um coração de poeta, posto que de gênio não o seja eu, tal reunião de encantos não podia passar despercebida; vê-la, foi tornar-se cativo, e cativo desse cativeiro mágico que tem o dom de fazer beijar os ferros e amar a condição. É que cativar-me assim, é libertar-me, é deixar os laços da matéria, remontar-me à pura região dos gozos desconhecidos.

"Em tal estado, a afirmativa ou a negativa é uma sentença de vida ou de morte. Nas suas mãos está fazer de mim um venturoso ou um desgraçado.

"Talvez fora melhor que isto que aqui lhe digo no papel fosse expresso de viva voz; mas eu não sei se teria coragem de falar. Longe de seus olhos sinto-me menos acanhado, mais livre, mais próprio para exprimir o estado do meu coração.

"Aguardo a sua sentença. Ernesto".

 

Apesar de certa incongruência e da aparente afetação desta carta, Ernesto releu-a contente, admirando o belo estilo que até ali não descobrira em si.

Fechou a carta e arranjou meio de fazê-la chegar secretamente às mãos de Onda.

A moça respondeu verbalmente que, no dia seguinte, no sarau que se dava em casa de um tio dela, se entenderia com Ernesto.

Ernesto recebeu com alguma amargura esta resposta. Todavia sempre esperançado preparou-se para o sarau, e lá foi ter.

Antes de ir passou pelos olhos, durante o dia, a cópia da carta com que ficara, e a cada período que lia parecia-lhe que Onda não era capaz de resistir.

Não quis ir cedo. Pareceu-lhe melhor fazer-se esperar e fazer nascer da impaciência uma resposta mais pronta. Só as onze horas compareceu ao sarau.

Dançava-se uma polca.

Onda e um cavaleiro (exatamente um dos pretendentes do Teatro Lírico) faziam as delícias dos apreciadores da polca.

Ernesto, com o coração aos pulos, esperou, encostado a um portal, que a dança acabasse.

E posto que dali a dez minutos a polca se tivesse acabado, tal era a impaciência de Ernesto, que lhe pareceu um século. É que não era só a impaciência, era já o ciúme de vê-la nos braços de outro.

Terminada a polca, Onda, contra as previsões de Ernesto, foi percorrer alguns salões pelo braço do cavaleiro.

Que significava aquilo? Ernesto ficou algum tempo perplexo. Finalmente refletiu que, tendo chegado poucos minutos antes, não podia a moça saber logo da sua presença.

Devia ir falar-lhe.

Dava alguns passos quando um dos amigos da aposta acercou-se dele e pediu-lhe novas do namoro.

Ernesto, procurando sorrir, disse que mais tarde poderia dizer alguma coisa.

- Os outros estão aqui, disse o amigo.

- Todos? perguntou Ernesto.

Todos.

- Bem, até logo.

E dizendo isto, Ernesto foi-se em procura da mulher que o prendia.

Atravessando uma sala viu dirigir-se para ele o par que procurava. Deteve-se. E para aparentar indiferença e acaso foi a um espelho e aí fingiu consertar os cabelos, com a mão, ao de leve.

Ficava assim de costas para os dois e podia ver no reflexo do espelho se ela reparava nele ou não.

Ora, o que ele viu foi a moça trocar com o cavaleiro um olhar de ternura, e este arrancar-lhe das mãos, que apenas opuseram fraca e doce resistência, uma pequena flor que ela tirara do ramalhete.

Ernesto enfiou.

Após a comoção da cena que acabava de presenciar, outra comoção o tomou: foi a vista do rosto pálido com que ficou.

Os dois passaram.

Ernesto deixou-se cair em um sofá.

Quase a ganhar a batalha, no momento da vitória decisiva, encontrava-se repentinamente no mesmo ponto em que começara as lutas.

Quando passou a primeira comoção veio-lhe à lembrança a carta que escrevera e cuja resposta ia buscar. Mas devia pedi-la depois do que presenciara? E não era a sua posição uma posição ridícula?

Pensando em tudo isto, Ernesto levantou-se e passeou à toa por todas as salas e corredores.

Dançava-se, cantava-se, tocava-se; ele nada via, nada ouvia; via o ridículo e o desdém. Supunha ter metido uma lança em África e descobria agora que era tão medíocre como os outros.

Nestas reflexões amargas andava, quando, ao passar por uma das salas, ouviu a voz de Onda.

A voz partia do vão de uma janela.

Ernesto escondeu-se no vão da janela contígua e procurou cobrir-se entre as cortinas para não ser visto se alguém passasse.

Depois prestou o ouvido à conversação e procurou distinguir as vozes. Não havia voz de homem. Além de Onda, havia uma voz de mulher. Falavam o nome dele. Redobrou de atenção.

- Como és feliz! dizia a voz desconhecida.

- Feliz?

- Ou antes ardilosa!

- Por que ardilosa? Tenho eu culpa que sejam todos os homens de uma mediocridade de espírito incomparável? Divirto-me, nada mais.

- Oh! mas esse, o Ernesto, não é tão medíocre assim...

- Mais que os outros. Tem o que os outros não tinham ou não pareciam ter: a vaidade de agradar por seus encantos.

- Pois este?...

- É o que te digo. Acreditarás tu que foi só depois de muitos dias que me resolvi a prendê-lo como todos? Ao princípio afetava uma indiferença sem igual: parecia alheio a mim, e entretanto eu sabia que ardia por figurar entre os meus adoradores. Hoje é o pior de todos. Se visses a carta que me escreveu!

- Ah! escreveu-te...

- Oh! um regimento de tolices, sem pés nem cabeça, umas coisas já muito velhas e batidas, declarando-me que da minha decisão dependia a felicidade ou a condenação dele. Quer fazer supor que morre se eu responder que não o aceito em meu coração. Que tal?

- Pensei que este meio já se não usava.

- Usa-se, usa-se.

- Mas dize-me cá; não gostas de alguém?

- Por ora, não.

- Mas deveras ninguém te inspirou ainda amor?

- Não. Que queres? Fui educada com o recato maior deste mundo; entrando na convivência das outras, e nas distrações nos bailes, não pude logo ao principio tomar afeição alguma. Foi tempo esse que gastei em duas coisas: em ler e observar. Ora, da leitura adquiri idéias talvez um pouco absurdas, mas enfim adquiri, e fora das quais não compreendo o amor. Gosto de amar e ser amada por inspiração, e com verdadeira paixão. Até aqui nada tenho visto além de uns amores vulgares que não contentam o coração.

- E sabes se algum dia encontrarás?

- Talvez... quem sabe?

Ah! maliciosa! Aí anda coisa!

Qual!

Quem sabe se este último, este de hoje, o da flor?...

Nisto passava um grupo. As vozes calaram-se e Ernesto foi obrigado a coser-se mais com a janela e a cobrir-se com a cortina.

O rapaz suava ouvindo aquelas coisas a seu respeito. Sentia o efeito que se sente ao acordar de um sonho em que se parece estar no cimo de uma montanha, quando realmente se está a três ou quatro palmos do chão.

Não era bem o amor dele que se ressentia; era mais o amor próprio ferido naquelas palavras com que era tratado.

Depois de uma batalha tão renhida e cuidada, reparava ele que não passara de um joguete aos manejos de uma dama ardilosa e namoradeira.

Quando pôde de novo ouvir a conversa que, aliás, lhe chegava entrecortada e incompleta, já as duas moças tratavam de outro ponto da questão.

Mas o que pretendes fazer? perguntou a desconhecida.

É conforme o modo por que ele me falar. Talvez o receba com uma secura tal que ele nunca mais se lembre de mim.

Não tens pena de perdê-lo?

Ora, rei morto, rei posto.

Dize antes: reis mortos, reis postos

Riram ambas, ambas se beijaram, e dando o braço uma à outra saíram dali como dois anjinhos que acabavam de pedir a Deus por uma alma condenada.

Ernesto, apenas sentiu que elas já estavam longe, saiu do seu esconderijo.

Que iria fazer? Esteve alguns instantes sem tomar determinação alguma. Ainda não tinha falado a Onda; o melhor meio que lhe pareceu era dirigir-se à moça, cumprimentá-la e não tocar no assunto da carta.

Depois, se ela viesse de si ao assunto, falar conforme o tom das suas palavras e procurar fugir ao ridículo e à afronta.

Tendo tomado esta resolução, Ernesto caminhou para o salão em busca de Onda. Tocava-se o sinal de uma quadrilha. Ernesto dirigiu-se para Onda com um sangue frio afetado e fez-lhe, o mais gracioso e indiferente que pôde, um cumprimento. Depois convidou-a a dançar.

- E se eu tiver par? perguntou a moça, um pouco admirada da discordância que notava entre a carta e aqueles modos.

- Paciência; esperarei.

- É tão resignado assim?

- Por que não?

Mas os olhos de Onda, com que Ernesto não contava, iam fazendo já o efeito do costume, de modo que a indiferença com que ele viera determinado começou a dar lugar a uma ternura misturada com humildade.

Onda respondeu:

- Pois quero dar-lhe uma prova de amizade. Vou roer a corda ao par.

- Oh! isso!

- Por que não? Está dito: vamos dançar.

E levantando-se, aceitou o braço de Ernesto, que nada pôde responder a estas palavras, tão estranho lhe pareceu aquele procedimento.

Formou-se a quadrilha e ambos dançaram, tendo exatamente por vis-à-vis a companheira de Onda e um dos rapazes da aposta com Ernesto.

É inútil dizer que nenhum cavaleiro alegou a falta de Onda, visto que ela não tinha realmente par aceito para a quadrilha.

Durante a dança os ressentimentos de Ernesto foram desaparecendo cada vez mais. No fim estava quase como na hora em que escreveu a carta.

Terminada a quadrilha foram os dois para o pequeno terraço da casa.

A noite era das mais belas. Esta circunstância serviu de tema para as primeiras palavras de Ernesto, a quem ocorreram no momento as palavras de uma situação de romance que ele lera alguns dias antes.

Enquanto a conversa não passou dessas banalidades, Onda mostrou-se amável a mais não ser. Mas Ernesto, iludido por essas aparências, tendo esquecido perfeitamente a conversa da janela, ousou falar bruscamente na carta e pedir uma resposta.

Da primeira vez Onda não respondeu.

Ernesto insistiu na exigência.

Onda convidou-o a levá-la ao salão.

- Mas a carta?

- A carta? disse ela. Que carta?

A que eu lhe mandei.

- Ah! ainda não li. Tive tanta coisa em que cuidar ontem.

Ernesto enfiou deveras.

- Não leu?

- Não li.

Ernesto não se pôde ter, e referiu a conversa que ouvira entre Onda e sua amiga. Depois de ouvir a narração que Ernesto matizou de pontos de admiração... Onda contentou-se em responder:

- Foi sonho!

Ernesto não disse palavra ouvindo isto.

Houve entre ambos um momento de silêncio.

Onda encetou conversa sobre coisas diversas. Ernesto mal respondia por monossílabos.

Enfim, Onda pediu a Ernesto que a conduzisse ao salão. Ernesto deu-lhe o braço e disse-lhe que também não se demoraria no baile.

- Mas irá em minha casa amanhã, sim?

- Para que? Para ouvir a leitura...

E cortou subitamente o que ia dizer.

Mas Onda adivinhou.

- Ora, disse ela. Não falemos mais nisso. Vá, que eu gosto de sua companhia.

Ernesto levou Onda ao salão e saiu sem despedir-se de ninguém.

Estava humilhado.

No dia seguinte, os seis amigos de Ernesto receberam o seguinte bilhete:

 

"Perdi a aposta. Estão convidados a jantar hoje no hotel da Europa às cinco horas. Enterro o amor.

Ernesto".

 

As cinco horas os sete amigos estavam à roda de uma mesa em uma das salas particulares do hotel da Europa.

- Com que, perdeste? disse um.

- Não te dizíamos nós! acrescentava outro.

- Aprendeste à tua custa, acudia o terceiro.

- Não serás tolo em outra ocasião, observou filosoficamente o quarto.

- São as lides que formam cavaleiros: isto é de um poeta, citava o poeta da reunião.

- O que te vale é que não pareces ter perdido muita coisa do coração neste negócio, dizia o último.

- É verdade, respondia Ernesto, dizes muito bem. Perdi, mas salvei o coração. Meu amor-próprio não deixou de ressentir-se com isto; mas juro que fiz o que era humanamente possível. É que realmente a rapariga é insensível. Pois, olha, posso afirmar que eu conheço o nome aos bois...

Toda a conversa foi por este teor.

E era de ver a alegria sincera com que Ernesto abriu a carteira, no fim do jantar, para saldar a vistosa conta que o caixeiro lhe apresentara.

Devo dizer que o jantar que serviu de funeral ao amor de Ernesto foi dos mais escolhidos.

Duas palavras, em forma de epílogo, para fechar este ligeiro episódio.

Onda prosseguiu nos seus amores fáceis, dando a todos os mesmos desenganos que custaram a Ernesto... um jantar.

Mas enfim, se os namoros passavam, também passava o tempo, e um dia, estando ao espelho, Onda viu que a primeira ruga se lhe desenhava no rosto. Tinha ela então trinta e três anos. A ruga era prematura, mas, fosse ou não, existia, e esta descoberta deu sério cuidado à moça.

Esperar o amor que sonhara pelos romances era arriscar-se, visto que à primeira ruga sucederiam outra e outras.

Era preciso achar marido.

Lançou as vistas à lista dos seus adoradores, já muito diminuída, não porque lhe faltasse a beleza, mas porque lhe sobrava travessura para os arredar.

Entre esses adoradores havia um que pela terceira vez depositava o coração aos pés da bela namoradeira. Da primeira vez era um simples tenente de cavalaria; da segunda era capitão; agora era já major.

Onda resolveu que lhe cumpria assentar praça ao lado do major.

Daí a um mês anunciava-se o seu casamento. O major abençoou a sua insistência e recebeu em matrimônio a esquiva donzela.

Daí para cá Onda tem-se mostrado fiel às armas. Quando Ernesto e os outros souberam disto fizeram muitos epigramas, alguns desconsolados e sensaborões.

Mas a rapariga casou-se.

Ernesto no fim de dois anos vingou-se de tudo procurando mulher e encontrando uma das mais modestas deste mundo. Os dois casais são felizes; o leitor não menos por ter chegado ao fim deste episódio sem derramar uma lágrima, e eu tanto como o leitor, por ter pingado o ponto final a este escrito, cujo assunto principal é um desvio do espírito das mulheres


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 17 de outubro de 2021

CERIMÔNIAS NUPCIAIS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

CERIMÔNIAS NUPCIAIS

Humberto de Campos

 

 

Em um congresso de jurisconsultos, reunido, há alguns anos, em Berna, o delegado da Suécia, se bem me lembro, sugeriu a uniformização do Direito Civil, dando-se às leis peculiares aos costumes de certos povos uma feição de instituto internacional. Essa medida constituiria um passo para a fraternidade humana, acabando-se, de vez, com as complicações decorrentes da desigualdade dos códigos. A cerimônia do casamento, principalmente, se tornaria mais simples e respeitável, como observava, e muito justamente, um destes dias, o Sr. Comendador Paulino Sampaio, em uma palestra erudita com algumas senhoras inteligentes.

 

— É, realmente, absurda — observava o honrado capitalista, essa desigualdade de critério. Não seria mais razoável que o casamento, aqui, fosse igual ao casamento na China ou na Arábia? Para que, pois, essas diferenças fundamentais, nesse processo de reunir o destino das criaturas que se querem?

 

E, para demonstrar o que é a desordem nessa matéria, lembrou, documentando o seu pensamento:

 

— Na África, por exemplo, são adotados os processos mais esquisitos, e, até, mais repugnantes. Em certas regiões daquele continente, a cerimônia consiste, mesmo, no seguinte: a noiva enche de água uma vasilha, e leva-a ao noivo, para que lave as mãos. Feito isso, a noiva toma a cuia entre os dedos e bebe o resto da água servida. Feito isso, estão casados.

 

As senhoras entreolharam-se, espantadas, e o Comendador continuou:

 

— Em outras regiões, a coisa é ainda pior: em vez de dar as mãos a lavar, o noivo dá os pés, tomando a noiva, depois, solenemente, os restos da água. É horrível! Não é?

 

As senhoras entreolharam-se de novo, escandalizadas, e o velho capitalista insistiu:

 

— Esses costumes dão ensejo até, às vezes, a crimes inomináveis. Ainda em 1918, após uma lavagem dos pés do noivo, uma rapariga bebeu a água, na forma da tradição. E, momentos depois, caiu fulminada!

 

— Onde foi isso, Comendador? — indagou Madame Costa Pinho, penalizada.

 

O capitalista sorriu, e explicou, gentil:

 

— Na África Portuguesa, minha senhora!


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 15 de outubro de 2021

JOÃO FERNANDES (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

JOÃO FERNANDES

Machado de Assis

 

 

Há muitos anos. O sino de S. Francisco de Paula bateu duas horas. Desde pouco mais de meia noite deixou este rapaz, João Fernandes, o botequim da Rua do Hospício, onde lhe deram chá com torradas, e um charuto por cinco tostões. João Fernandes desceu pela rua do Ouvidor, na esquina da dos Ourives viu uma patrulha. Na da Quitanda deu com dois caixeiros que conversavam antes de ir cada um para o seu armazém. Não os conhecia, mas presumiu que fossem tais, e acertou; eram ambos moços, quase imberbes. Falavam de amores.

— A Rosinha não tem razão, dizia um; eu conheço muito bem o Miranda…

— Estás enganado; o Miranda é uma besta.

João Fernandes foi até à rua Primeiro de Março; desandou, os dois caixeiros despediam-se; um seguiu para a rua de S. Bento, outro para a de S. José.

— Vão dormir! suspirou ele.

Iam rareando os encontros. A patrulha caminhava até o largo de S. Francisco de Paula. No largo passaram dois vultos, ao longe. Três tílburis, parados junto à Escola Politécnica, aguardavam fregueses. João Fernandes, que vinha poupando o charuto, não pôde mais; não tendo fósforos, endireitou para um dos tílburis.

— Vamos, patrão, disse o cocheiro; para onde é?

— Não é serviço, não; você tem fósforos?

O cocheiro esfriou e respondeu calado, metendo a mão no bolso para tinir a caixa de fósforos; mas tão vagarosamente o fez que João Fernandes a tempo se lembrou de lhe cercear o favor, bastava permitir que acendesse o charuto na lanterna. Assim fez, e despediu-se agradecendo. Um fósforo sempre vale alguma coisa, disse ele sentenciosamente. O cocheiro resmungou um dito feio, tomou a embrulhar-se em si mesmo, e estirou-se na almofada. Era uma fria noite de junho. Tinha chovido de dia, mas agora não havia a menor nuvem no céu. Todas as estrelas rutilavam. Ventava um pouco — frio, mas brando.

Que não haja inverno para namorados, é natural; mas ainda assim era preciso que João Fernandes fosse namorado, e não o era. Não são amores que o levam rua abaixo, rua acima, a ouvir o sino de S. Francisco de Paula, a encontrar patrulhas, a acender o charuto na lanterna dos carros. Também não é poesia. Na cabeça deste pobre diabo de vinte e seis anos não arde imaginação alguma, que forceje por falar e verso ou prosa. Filosofia, menos. Certo, a roupa que o veste é descuidada, como os cabelos e a barba; mas não é por filosofia que os traz assim. Convém firmar bem um ponto; a nota de cinco tostões que ele deu pelo chá e pelo charuto foi a última que trazia. Não possuía agora nada mais, salvo uns dois vinténs, perdidos no bolso do colete. Vede a triste carteira velha que ele tirou agora, à luz do lampião, para ver se acha algum papel, naturalmente, ou outra coisa; está cheia de nada. Um lápis sem ponta, uma carta, um anúncio do Jornal do Commercio, em que se diz precisar alguém de um homem para cobrança. O anúncio era da véspera. Quando João Fernandes foi ter com o anunciante (era mais de meio-dia) achou o lugar ocupado.

Sim, não tem emprego. Para entender o resto, não vades crer que perdeu a chave da casa. Não a perdeu, não a possui. A chave está com o proprietário do cômodo que ele ocupou durante alguns meses, não tendo pago mais de dois, pelo que foi obrigado a despejá-lo antes de ontem. A noite passada achou meio de dormir em casa de um conhecido, a pretexto de ser tarde e estar com sono. Qualquer coisa servia, disse ele, uma esteira, uma rede, um canto, sem lençol, mas teve boa: cama e almoço. Esta noite não achou nada. A boa fada das camas fortuitas e dos amigos encontradiços andaria tresnoitada e dormia também. Quando lhe acontecia alguma destas (não era a primeira), João Fernandes só tinha dois ou três mil-réis, ia a alguma hospedaria e alugava um quarto pela noite; desta vez havia de contentar-se com a rua. Não era a primeira noite que passava ao relento; trazia o corpo e a alma curtidos de vigílias forçadas. As estrelas, ainda mais lindas que indiferentes, já o conheciam de longa data. A cidade estava deserta; o silêncio agravava a solidão.

— Três horas! murmurou João Fernandes no Rossio, voltando dos lados da rua de Inválidos. Agora amanhece tarde como o diabo.

Abotoou o paletó, e toca a imaginar. Era preciso empregar-se, e bem, para se não expor a não ter onde encostar a cabeça. Em que lugar dormiria no dia seguinte? Teve idéias petroleiras. Do petróleo ao incêndio é um passo. Oh! se houvesse um incêndio naquele momento! Ele correria ao lugar, e a gente, o alvoroço, a polícia e os bombeiros, todo o espetáculo faria correr o tempo depressa. Sim, podia muito bem arder uma casa velha, sem morrer ninguém, poucos trastes, e no seguro. Não era só distração, era também repouso. Haveria um pretexto para sentar-se em alguma soleira de porta. Agora, se o fizesse, as patrulhas poderiam desconfiar, ou recolhê-lo como vagabundo. A razão que o levava a andar sempre, sempre, era fazer crer, se alguém o visse, que ia para casa. Às vezes, não podia continuar, e parava a uma esquina, a uma parede; ouvindo passos, patrulha ou não, recomeçava a marcha. Passou um carro por ele, aberto, dois rapazes e duas mulheres dentro, cantando uma reminiscência de Offenbach. João Fernandes suspirou; uns tinham carro, outros nem cama… A sociedade é madrasta, rugiu ele.

A vista dos teatros azedou-lhe mais o espírito. Passara por eles, horas antes, vira-os cheios e iluminados, gente que se divertia, mulheres no saguão, sedas, flores, luvas, homens com relógio no colete e charuto na boca. E toda essa gente dormia agora, sonhando com a peça ou com os seus amores. João Fernandes pensou em fazer-se ator; não teria talento, nem era preciso muito para dizer o que estivesse no papel. Uma vez que o papel fosse bom, engraçado, ele faria rir. Ninguém faz rir com papéis tristes. A vida de artista era independente; bastava agradar ao público. E recordava as peças vistas, os atores conhecidos, as grandes barrigadas de riso que tivera. Também podia escrever uma comédia. Chegou a imaginar um enredo, sem advertir que eram reminiscências de várias outras composições.

Os varredores das ruas começaram a dificultar o trânsito com a poeira. João Fernandes entrou a desvairar ainda mais os passos. Foi assim que chegou à praia da Glória, onde gastou alguns minutos vendo e ouvindo o mar que batia na praia com força. Tomou abaixo; ouviu o ganir de um cão, ao longe. Na rua alguns dormiam, outros fugiam, outros latiam, quando ele passava. Invejou os cães que dormiam; foi ao ponto de invejar os burros dos tílburis parados, que provavelmente dormiam também. No centro da cidade a solidão era ainda a mesma. Um ou outro vulto começava a aparecer, mas raro. Os ratos ainda atropelavam o noctâmbulo, correndo de um lado para outro da rua, dando idéia de uma vasta população subterrânea de roedores, que substituíam os homens para não parar o trabalho universal. João Fernandes perguntava a si mesmo por que não imitaria os ratos; tinha febre, era um princípio de delírio.

— Uma, duas, três, quatro, contou ele, parado no largo da Carioca. Eram as badaladas do sino de S. Francisco. Pareceu-lhe ter contado mal; pelo tempo deviam ser cinco horas. Mas era assim mesmo, disse afinal; as horas noturnas e solitárias são muito mais compridas que as outras. Um charuto, naquela ocasião, seria um grande benefício; um simples cigarro podia enganar a boca, os dois vinténs restantes bastavam-lhe para comprar um ordinário; mas onde?

A noite foi inclinando o rosário das horas para a manhã, sua companheira. João Fernandes ouviu-as de um relógio, quando passava pela rua dos Ourives; eram cinco; depois outro relógio deu as mesmas cinco; adiante, outro; mais longe, outro. — Uma, duas, três, quatro, cinco, dizia ainda outro relógio.

João Fernandes correu ao botequim onde tomara chá. Alcançou um café e a promessa de um almoço, que pagaria à tarde ou no dia seguinte. Conseguiu um cigarro. O entregador do Jornal do Commercio trouxe a folha; ele foi o primeiro a abri-la e lê-la. Chegavam empregados dos arsenais, viajantes da estrada de ferro, simples vizinhos que acordavam cedo, e porventura algum vadio sem casa. O rumor trazia a João Fernandes a sensação da vida; gentes, falas, carroças, aí recomeçava a cidade e a faina. O dia vinha andando, rápido, cada vez mais rápido, até que tudo ficou claro; o botequim apagou o gás. João Fernandes acabou de ler o Jornal à luz do dia. Espreguiçou-se, sacudiu a morrinha, despediu-se:

— Até logo!

Enfiou pela rua abaixo, com os olhos no futuro cor de rosa: a certeza do almoço. Não se lembrara de procurar algum anúncio no Jornal; viu, porém, a notícia de que o ministério ia ser interpelado nesse dia. Uma interpelação ao ministério! Almoçaria às dez horas; às onze estaria na galeria da câmara. Aí tinha com que suprir o jantar.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 14 de outubro de 2021

A NOVA JERUSALÉM (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A NOVA JERUSALÉM

João do Rio

 

 

 

A sede da Nova Jerusalém, anunciada pelo Apocalipse, fica na rua Maria José, n.0 10. É uma casa de dois pavimentos, muito alta, pintada de vermelho-escuro, que assenta à beira da rua Colina como uma fortaleza.

De longe parece formidável aos reflexos do sol, que queima todas as vidraças, e reverbera nas escadas de pedra; de perto é solene. Abre-se um portão, sobe-se uma das escadas, abre-se outro portão, dá-se num pátio que termina para a frente em estreitas arcarias ogivais e perde-se ao fundo num jardim obumbroso. Desse pátio vê-se o declive das ruas que descem, e vagos trechos da cidade.

Antes de bater, olhamos ainda a casa alta. Detrás daqueles muros viceja a religião de Swedenborg, a nova igreja, a verdadeira compreensão da Bíblia; detrás daqueles muros, iluminados da luz da tarde, guarda-se a chave com que tudo se pode explicar neste mundo. "Eu sou o Deus - disse Jesus a Swedenborg -, o Senhor, o Criador e o Redentor, e te elegi para explicares aos homens o sentido interior e espiritual das Escrituras Santas. Ditar-te-ei o que escreveres!"

Subimos mais uma escada de pedra nua, no patamar da qual nos recebe o Sr. Frederico Braga. Esse cavalheiro amável é uma espécie de "diletante" dos cultos. Dizem que já foi até faquir, fazendo crescer bananeiras de um momento para outro. Neste momento, porém, limita-se a fazer-nos entrar para uma sala simples e, enquanto nós vagamente o interrogamos, passeia da porta para a janela.

- O pastor está aí - diz de repente. - Ninguém melhor do que ele pode informar.

O pastor é o Sr. Levindo Castro de la Fayette, que aparece logo. Homem de fisionomia inteligente, falando bem, com o ar de quem está sempre na peroração de um discurso interrompido por apartes, o pastor agrada. Há decerto nos seus gestos um pouco de morgue, o íntimo orgulho de ser profeta de uma religião de intelectuais, de espalhar pela terra a palavra do maior homem do mundo, que tudo descobrira na ciência terrestre e vira Deus na terra celeste.

O Sr. la Fayette consulta o óculo brilhante, fala da conquista da Nova Igreja através do mundo, fala torrencialmente. É a história do swedenborgismo desde a morte de grande visionário, desde a defesa de Tomás Wright e Roberto Hindmarsh, que demonstraram o perfeito estado mental do mestre, até à reunião dos adeptos de Swedenborg em Londres em 1788, donde começou a expansão do culto novo que agora aumenta diariamente na Áustria, na França, na Inglaterra, na Austrália, nos Estados Unidos, com igrejas novas e novos adeptos. Pode-se calcular em cento e vinte mil o número de crentes.

O Sr. Frederico Braga mostra-nos as revistas alemãs e inglesas, o New Church Messenger a New Church Review, onde vêm reproduzidas em fotogravura as fachadas dos novos templos através do mundo.

- A verdade caminha! - diz o pastor -, e leva-nos à sala onde se realizam as reuniões dos swedenborgeanos. É no 1.º pavimento, na frente, uma sala nua. Ao centro uma grande mesa, rodeada de cadeiras com uma cadeira mais alta para o pastor. Ao lado a biblioteca, onde se empilha a obra interminável de Swedenborg desde os Arcania Ca'lestia até o Tratado do Cavalo Branco do Apocalipse.

A Nova Jerusalém do Brasil data de 1898. Foi seu fundador o próprio Sr. de la Fayette, e isto devido a revelações que recebera em Paris alguns anos antes. É o caso que o pastor, nesse tempo simples professor de português num instituto parisiense, foi nomeado chanceler do consulado-geral do Brasil na França. Essa função fê-lo desejoso de conhecer a verdade espiritual, e, para que a verdade brilhasse, de la Fayette observou logo um rigoroso regime de temperança em todas as coisas... Swedenborg, cavaleiro da ordem eqüestre da Suécia, que de tudo escrevera e falara, só em 1745 teve a revelação de que estava talhado para explicar os símbolos da Bíblia. Mas Swedenborg comia muito. A primeira vez que os espíritos invisíveis lhe falaram foi durante um jantar. O filósofo engolia vorazmente no quarto reservado de um hotel, onde à vontade devorava e pensava, quando sentiu a vista se lhe empanar e répteis horríveis arrastarem-se pelo soalho. Os olhos pouco tempo depois recobraram a visão perfeita e Swedenborg viu, distintamente, no ângulo da sala, um homem com o seio em luz que lhe dizia, paternalmente:

- Não comas tanto, meu filho!

De la Fayette não precisou desse celeste conselho. Praticou-o antes da revelação; - e foi por isso que meses depois, começou, durante o sono, a receber ensinamentos do mundo espiritual a respeito da palavra de Deus. Desde esse tempo o Sr. Levindo foi guiado pelo céu, e chegou até à Biblioteca Nacional.

- Que livro hei de pedir? - interrogou aos seus botões o homem feliz.

- Pede Swedenborg! - bradaram os espíritos bons de dentro do Sr. Levindo.

O iluminado pediu os Arcania Caelestia, em latim, porque além de cinco línguas vivas, lê correntemente a língua em que Catulo escreveu tão belos versos e tão sugestivas patifarias. Leu os Arcania, foi à igreja da rua Thouin, conversou com Mme. Humann que o recebeu inefavelmente doce, e meses depois, era batizado na nova igreja.

Em agosto de 1893, o Sr. de la Fayette, que é mineiro, veio para o Rio, mas quando aqui chegou a revolta estalara, havia estado de sitio, e não teve remédio senão abalar para as montanhas do seu Estado. A cidade de Lamim, em Minas, foi onde primeiro se falou no Brasil da Nova Jerusalém.

De volta ao Rio, o pastor fez um adepto, o Sr. Carlos Frederico Braga, também mineiro. A adesão foi rápida. O Sr. Carlos concordou logo com o Sr. de la Fayette, como concordava naquele instante em que eu os ouvia. Daí por diante Levindo foi o texto do credo e Carlos Frederico o comentário entusiasmado. Esses dois homens atiraram-se pela cidade a explicar a Nova Jerusalém, a fazer compreender pelos homens inteligentes as sagradas interpretações do prolixo Swedenborg, escritas sob as vistas de Cristo Deus, que é só. Quatro anos depois reuniram na rua Minervina cinqüenta swedenborgianos, fundando duas sociedades: - a Associação de Propaganda da Nova Jerusalém, pela imprensa, conferência e leitura das obras do mestre, e uma sociedade de beneficência para auxiliar os irmãos brasileiros.

Um jornal, a Nova Jerusalém, foi logo publicado e existe há oito anos; o círculo da propaganda aumentou, amigos em viagem levaram a notícia ao Pará, ao Rio Grande do Sul, à Minas e, afora esses adeptos, cerca de duzentos swedenborgianos reúnem-se aos domingos para ouvir de la Fayette narrar o símbolo de Adão, explicar o sentido único de cada palavra em todos os livros da Bíblia e louvar Swedenborg.

- Swedenborg! eu não preciso dizer-lhe quem foi esse extraordinário espírito que tudo descobriu da terra e do céu. Na sua época, chamou a atenção de grandes cérebros como Goethe, Kant, Wesley, de Wieland, Klopstock...

Nós batemos as pálpebras, gesto que Swedenborg considera sinal de entendimento e sabedoria. Goethe pusera o filósofo no Fausto com o pseudônimo de Pater Seraphicus, Kant falando dele recorda o cumprimento do seu cocheiro a Tycho Brahe: "o Sr. pode ser muito entendido nas coisas do céu, mas neste mundo não passa de um doido". Os outros não tinham sido mais amáveis. Mas para que discutir? O ministro da Nova Jerusalém continuava contando a atenção e curiosidade dos povos modernos pelo extraordinário profeta do Norte. Depois parou.

- O que é, em síntese, a Nova Jerusalém? - perguntei.

Swedenborg, ao morrer em casa de um barbeiro, achava desnecessário receber os sacramentos por ser de há muito cidadão do outro mundo. A respeito dessa região o cidadão escreveu enormes volumes ex auditis et visis, isto é, sobre o que vira e ouvira.

Os Arcania, o tratado do Céu e do inferno, o tratado das Representações e Correspondências, a Sabedoria Angélica sobre o divino Amor e a divina Sabedoria, a Doutrina Novae Hierrosalymae, as terras do nosso mundo solar e no céu astral, até o Amor Conjugal, com umas máximas arriscadas sobre o amor escortatório, explicaram bem as suas extraordinárias viagens.

Swedenborg esteve no inferno e conversou com tanta gente que Mater para simplificar fez uma lista cronológica desde os deuses gregos até os contemporâneos; teve relações íntimas com os espíritos de Júpiter, de Mercúrio, de Marte e até da Lua, apesar de não simpatizar muito com esses que eram pequenos e faziam barulho. Não foi só. O extraordinário homem viu o paraíso, ouviu os anjos, esteve com Deus em pessoa. Era natural que compreendesse o sentido das correspondências entre os espíritos dos planetas e o máximo homem, que revelasse ao mundo o sentido íntimo espiritual ou celeste das revelações que até então ficara ignorado.

"A doutrina da Igreja atual é viciosa, deve desaparecer" e Swedenborg, com os olhos espirituais abertos, não inovou, elucidou os textos sagrados.

A nova igreja tem um catecismo que explica e resume a Nova Jerusalém e a sua doutrina celeste. Assim o homem foi criado por Deus para amar a Deus e fazer o bem ao próximo. Quem faz mal, vai para o inferno, quem faz bem, vive com luxo e conforto no reino do céu que, segundo Swedenborg, tem edifícios magníficos, parques encantadores e vestidos bonitos. O homem aprende a fazer o bem nos dez mandamentos. É simples e fácil.

O Senhor, deve o homem julgá-lo o único Deus, em que está encarnada a Santíssima Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A trindade perfaz numa só pessoa a alma, o corpo e o ato da obra. Na Trindade Divina, o Pai é a alma, o Filho o corpo, o Espírito Santo a operação condensados numa só pessoa: - Jesus. É esta a divergência capital do Catolicismo. A Nova Jerusalém é o cristianismo primitivo. Os seus membros não têm ambições e ajudam-se uns aos outros, praticando a caridade, o único amor capaz de nos desprender de nós mesmos para nos aproximar de Deus. A regeneração vem da oração. O homem ora só a Jesus, porque o mais é idolatria. Todas as ciências e religiões nada são sem o conhecimento de Deus. Possuidores desse conhecimento, os swedenborgeanos têm a chave da interpretação exata de tudo e explicam com harmonia espiritual todas as ciências e todas as religiões.

- Não se podia voltar ao Cristianismo, ao tempo em que começou a ser falsificado - diz-nos o Sr. de la Fayette. - Seria desconhecer as leis da ordem divina, que teria desse modo perdido quinze séculos, quando esse período serviu para a execução das suas obras sempre misericordiosas. O Senhor anunciou que, na consumação dos séculos, isto é, no fim da igreja atual, viria, "nas nuvens do céu, com poder e glória" fundar outra igreja que não terá fim. Esta igreja é a Nova Jerusalém, que o Senhor instaurou, retirando o véu que ocultava o Verbo...

Escurecia. As trevas entravam pela sala onde o Verbo é revelado. Em derredor, quanto abrangia o olhar, via-se a cidade reclinada por vales e montes, preguiçosamente. No céu puríssimo as estrelas palpitavam devagar; pela terra estrelavam os combustores um infinito recamo de luzes.

- Vou aos Estados Unidos - disse o ministro - comprar livros, editar obras minhas para franquear a biblioteca ao povo. A regeneração far-se-á!

E nós descemos o monte, onde, naquela casa de pedra, duzentos homens, compenetrados do secreto sentido das correspondências, louvam todos os domingos Swedenborg que gozou o Céu, e Jesus que é a caridade e o supremo Amor.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 13 de outubro de 2021

MALADETTO FRANCESCO!, CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA

MALADETTO FRANCESCO!
Raul Pompéia

 

 

 

Houvera dois dias de chuvarada. As ruas tinham o calçamento lavado. Pelas sarjetas inundadas corria um burburinho d'água em direção aos esgotos. Os lampiões estendiam pela. calçada panos de fogo, enquanto as chamas de gás, engaioladas em suas caixas de vidro, debatiam-se doudamente a cada rajada... E o vento passava violento, furtando ao céu turbilhões de nevoeiro e guarda-chuvas aos transeuntes...

Francesco, que andava adoentado, havia dias, foi para a casa nessa noite muito mais cedo que de costume.

Para a casa... expliquemos.

Na rua... há uma portinha.

Isto é a boca de um corredor apertado entre altos muros, pelos quais escorre o sol branco e ardente do verão, ou, conforme o tempo, a chuva das invernadas, que os borra de luxuriantes paisagens feitas a capricho pela vegetação da umidade.

Passam por aí a viração encanada e uma multidão de sujeitos maltrapilhos, que chegam geralmente à tardinha, para saírem, no dia seguinte, à hora em que vêm os lábios rosados da. manhã osculando os cirros fugitivos do arrebol.

Estes indivíduos, com mais algumas mulheres que vivem a lavar roupas no pátio em que termina o corredor, são os inquilinos de umas coisas chamadas quartos, feitos de tabuado, onde o zum-zum das intriguinhas miseráveis e a algazarra das disputas dos moradores justificam o nome de cortiço que se dá às habitações da espécie. O cortiço está à esquerda do pátio das lavadeiras, no fim do corredor.

Nesta passagem entrou Francesco.

Havia uma lâmpada de querosene fixada na parede, à entrada do pátio. Apesar dos esforços dessa pobre lâmpada, cuja luz não conseguia varar a opacidade das suas três faces de vidro, não estava claro o lugar, Francesco lá foi, vacilante e cambaleando de tonteira.

Em um dos quartos do cortiço desapareceu.

Francesco Picolo era um pobre napolitano que nunca conhecera os pais e que viera para ao Brasil de envolta com um aluvião de colonos italianos importados para o Rio. Tinha seis ou sete anos; era louro como uma dessas figurinhas de Murilo que há espalhadas pela tela da Conceição e notavam-se-lhe abaixo dos olhos grandes e alegres, duas manchas róseas, destacadas na alvura pálida e quase sempre suja do semblante. Era miúdo e vivo, de uma vivacidade risonha e galhofeira.

Havia um ano que Francesco residia no Brasil, vivendo na companhia de Giuseppe de tal, um italiano maduro, focinho de calabrês, que viera de Nápoles com ele e se arvorara em seu protetor. Este protetor esperava os pequeninos lucros que o menino auferia de sua atividade e dava-lhe em paga maus-tratos.

Francesco vendia gazetas; e anunciava com tal graça a sua mercadoria, que era um gosto vê-lo na rua apregoando:

- A gazeta! a gazeta!... com a folha erguida na mão direita em gesto de Pedro I do Rocio. Quem o via, tão criança, tão gracioso e tão miserável, não resistia e... lia a Gazeta da Tarde ou a de Notícias do dia. Quando, à noite, esgotava-se a sacola de couro preto dos jornais, entornava ele a sua bolsinha num canto retirado do passeio, ou em alguma soleira, onde desse luz, e punha-se a fazer suas contas. Separava o cobre, com que devia comprar a 30rs. as folhas do dia seguinte; contava os lucros da venda, e exultava, se o ganho subia a 400rs; porque então podia esconder à ganância de Giuseppe dois ou três vinténs.

Estes vinténs furtados Francesco os arriscava na vermeIhinha, apostando sempre pela coroa das moedas atiradas ao ar. Seguia uma sua máxima: quase sempre ganha quem aposta pelas coroas. E ele ganhava freqüentemente. Esta fortuna fazia raiva aos garotinhos seus parceiros, de sorte que quase nunca o jogo acabava, senão pela fuga de Francesco Picolo, adiante da perseguição dos outros, que queriam tomar-lhe os ganhos, abusando de sua superioridade do tamanho e de força. Mas Francesco era ligeiro e sempre escapava.

Não era a vermelhinha a única distração do nosso birrichino; o pequeno Picolo tinha outros costumes da rua. Pendurava-se à traseira dos bonds, para enfurecer os condutores, vaiava a polícia; protestava contra as prisões gritando à barba dos urbanos: não pode! Assíduo como um repórter a todos esses grandes acontecimentos que enchem diariamente o noticiário dos jornais, não havia suicídio ou assassinato em cujo teatro não fosse vista a sua carinha loura, fitando os circunstantes ou a vítima, com o seu olhar azul, largo e compassivo. Não perdia incêndios. Era o primeiro a comparecer. Aproveitava a ocasião para brincar um pouco com a morte, mostrando-lhe de perto a sua vidinha alegre e miserável; arriscava-se dando risadas; expunha-se por pândega. E fazia tudo e tudo passava desapercebido. Pequeno demais para ser visto não encontrava embargos; barafustava por qualquer orifício e saltava em pleno perigo. A morte era o seu Polichinelo; Francesco brincava sem tropeços.

Muita vez prestou ele um bom serviço; em compensação, não lhe era raro levar do incêndio uma escoriação no braço, na cabeça, na perna, ou uma queimadura no pé. Sabem o que fazia? Ia fazer letras como as dos jornais ou riscar caricaturas pelas paredes caiadas de fresco, com o sangue das arranhaduras. O resto ficava por conta do seu médico: o tempo.

Tinha ainda o pequeno napolitano o costume de aproveitar os tumultos das festas populares, para furtar lenços e o mais que fosse possível. Uma vez furtou um grande guarda-chuva de alpaca burguesa, que o fez rir a perder. Este furto, mais incômodo que a famosa raposa do espartano, mereceu-lhe um puxão de orelhas do primeiro guarda urbano que o viu. O respeitável zelador da ordem pública deu ao menino o castigo e ficou-se com o guarda-chuva.

- Eu o deixo pra você, gritou-lhe Francesco à distância, porque é muito grande para mim.

E o urbano guardou conscienciosamente o objeto para si. Furtava o ladrão...

Não eram as façanhas dos incêndios, como não eram as escamoteações de prestidigitador da escola de Licurgo, o cúmulo do arrojo do menino.

Ia muito além. Ninguém imagina até onde. Pensam que se trata de pedras arremessadas à vidraças do chefe de policia ou outra coisa, como trepar no eixo de um carro de Nosso-Pai para bulir com o vigário pela abertura posterior do coupê?...

Nada, nada... O arrojo ia adiante. Assim que Francesco Picolo, do meio da rua do Ouvidor, ouvia, lá para as bandas da rua Direita, certo tropear de cavalaria, com a nota de um clarim, destacando-se por cima, quando lhe passavam por diante dois redondos ginetes de dorso em arco sob o peso de lustrosos e ofegantes caboclos, encasquetados em luzidas barretínas, espadas nuas à destra...

Ele já sabia. Aí vinha o seu homem.

Francesca abria as magras perninhas, firmava-se nelas como um Rodes em miniatura e esperava de olho vivo e gazetas ao sovaco.

Em pouco, chegava um grande carro a trote largo. No carro vinha um senhor de cabelos brancos e branquíssimas barbas, enfeixadas numas bochechas amplas e tintas de rosa. Toda a gente dobrava-se em zumbaias para aquele velho, a quem devia doer a espinha, tantos eram os cumprimentos que fazia para a rua... Pois ele não; Francesco Picolo era rebelde. Quando o velho do carro passava por ele e cabeceava-lhe um dos tais cumprimentos... Era tempo. Francesco, com o seu gorro no alto da cabeça, arregaçava as ventas para o velho e mostrava-lhe a língua insolentemente. Depois da careta, dava uma risada e saía a gritar:

- A gazeta! a gazeta! 40 réis!

Esta sua originalidade não degenerou, até que uma vez... Não vinha só, o velho de barbas brancas. Ao lado dele sentava-se uma velhinha de vestido roxo, os cabelos empastados à testa. Tinha um sorriso bom aquela velhinha.

Quando o carro passou por Francesco, o birrichino fez a costumada careta. A velha sorriu docemente para ele e demorou o olhar, até que o permitiu a janela do carro.

Francesco ficou gostando daquela pobre velha... Olhou para ele com tanta suavidade!... Houve uma revolução naquele pequenino cérebro. O revolucionário foi o coração.

Francesco tomou uma resolução: quando de então em diante passasse por ele o homem de barbas brancas, ele tiraria o seu gorro de veludo sovado ao marido daquela boa velha que sorrira para ele...

Apesar de seus costumes da praça pública, Francesco Picolo não era ainda um menino pervertido, mas o que nele predominava mais do que qualquer traço fisionômico do caráter era a bondade do coração.

A prova disso tinha-se, eloqüente, indiscutível, em uma tristeza profunda, que de tempos a tempos se apoderava do espírito do pobre menino.

Aquela almazinha, feita de garotagem inocente e risonha, tinha momentos de melancolia contraditórios com ela. Faziam-lhe o efeito de falenas voando ao meio-dia.

Essa tristeza, que podia parecer a abstração idiota das crianças enfermas, tinha uma explicação.

Explicava-se por uma história contada por Francesco a uma boa mulher que lhe dera remédios num hospital, onde ele estivera, havia meses. Era uma história pequenina, delicada e triste, uma nênia escrita numa pétala de rosa. Ei-la:

Ainda na Itália, Francesco Picolo tivera uma irmãzinha. Em Nápoles. Antonieta era mais criança do que ele... e tão bonitinha!... Como ele se lembra!... E como se lembra daquela noite de frio!... De frio e de morte; tudo o mesmo...

Ele e Antonieta vagueavam a esmolar longe, muito longe da mansarda onde os recebiam caridosamente para dormir, aos pobrezinhos que não tinham pais... Era tarde e caía muita neve. Umas toalhas brancas assustadoras estendiam-se pelas cumeeiras dos edifícios e pelas ruas.

Ia a noite se adiantando; urgia escolher um abrigo para a noitada, um canto aonde não chegasse a luz nem o olho da polícia.

Os meninos não gastaram muito tempo a procurar; que mesmo não o permitia o cansaço. Sentaram-se a uma soleira, num ângulo sombrio. Abraçaram-se as pobres crianças, apertaram-se, para que cada um aquecesse ao outro com a temperatura do próprio sangue e fecharam as pálpebras enregeladas e sonolentas.

- Que frio! murmurava Antonieta, tiritando.

Quando o dia seguinte se difundiu cor de leite por cima da espessura das neblinas do inverno, Francesco foi despertado pelo dono da loja a cuja porta dormira com a irmã. Reconheceu então, o desgraçado, que cingia nos braços um corpozinho branco, hirto e gelado.

Esse corpozinho foi-lhe arrancado pela polícia e...

Francesco não tinha mais irmã. O dono da loja, compadecido dos soluços que sufocavam o pequeno mendigo, acolheu-o dentro da casa.

Passados três dias, fê-lo embarcar-se com os colonos que iam partir para o Brasil.

- Além do Atlântico, não há inverno. No Brasil o frio não assassina e o pão não falta. Vai criança, e os olhos de Deus não te percam.

Trazido pelas auras desta bênção, chegou Francesco Picolo à América.

Nessa partida estava o segredo da sua tristeza.

Fora disso era um refinado traquinas e o mais ativo vendedor de folhas que se conhecia na rua do Ouvidor.

Giuseppe, o generoso protetor de Francesco, dormia cedo. Quando não passava misteriosamente a noite fora de casa, às oito horas, quem lhe entrasse no quarto vê-lo-ia preguiçosamente estendido numa maca improvisada sobre duas caixas.

Na noite em que Francesco voltou mais cedo, já o malandro roncava na maca. A entrada do menino fez rumor.

- Quem entra? perguntou Giuseppe com uma voz de ébrio, e remexendo-se todo na cama.

- Sou eu, disse o menino.

- Vamos fazer nossas contas. Chegue-se! convidou o dorminhoco erguendo-se a meio, com a mão a esfregar os olhos.

Francesco aproximou-se, com uns passos pequenos, vacilantes. O coração batia-lhe forte e ele sentia na fronte o calor de um diadema de fogo.

A luz do corredor vinha enviesada pelo quarto dentro. Giuseppe notou a dificuldade dos passos do pequeno.

- Então vens bêbado, Francesco? exclamou ele.

O menino não deu resposta.

- Aposto que não trazes hoje nem um vintém...

Francesco sem dizer palavra, tirou a bolsa de couro que trazia pendente do ombro e colocou-a sobre a cama do protetor.

Imediatamente em seguida, foi estender-se sobre um montão de roupas usadas, que jaziam ali para um canto.

Depois de recolher-se um outro italiano da laia do protetor de Francesco e que o auxiliava no pagamento dos poucos mil-réis do aluguel do cômodo, trancou-se a porta deste. A luz do corredor ficou lá fora e o quarto entregue às exalações da imundície que nele reinava e às trevas.

Começou-se então a ouvir uns gemidos apertados, uns arquejos contidos.

Passado algum tempo, bradou uma voz sonora:

- Até que horas teremos essa música?

A música durou pouco.

Minutos mais tarde o gemido calou-se; o arquejo foi substituído por um respirar violento, opresso, sibilante, até que mesmo estes últimos acordes da música se abafaram.

No dia seguinte, abriu-se a porta e a manhã entrou.

Um dos italianos foi para a rua e o outro, o protetor de Francesco, tendo se acordado também, viu o menino ainda a dormir e pulou da maca para despertá-lo. Giuseppe estava furioso. Pois aquele tratante ainda rolava na cama!...

Às cinco horas estavam já longe, as folhas estavam na rua a vender-se e o preguiçoso do Francesco dormia ainda!...

- Ó Francesco! Francesco!

O patife nem se movia.

Giuseppe atirou-lhe um valente pontapé.

- O Francesco!...

O menino, que se acomodara no alto do montão, rodou até aos pés de Giuseppe.

- Estará morto, este diabo? gritava ele com espanto.

Estava morto, sim...

Francesco Picolo morrera durante a noite.

Isto era um transtorno para os negócios de Giuseppe.

Nada menos que um desfalque de quatrocentos réis diários.

Maladetto Francesco! exclamou ele lançando ao pequeno morto um olhar raivoso, maladetto Francesco!

Não passou disto a oração fúnebre do pobre birrichino. Mais compassivo esteve o sol que penetrou no quarto e amortalhar aquele cadáver num raio generoso, vivificante.

Nessa hora, uns sinos ao longe rebentavam em alegres tintilações.

E havia no espaço uma dessas manhãs de cidade, luminosas, festivas que o beatério enche de badaladas e o sol inunda de claridade e de azul.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 12 de outubro de 2021

O SAINETE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O SAINETE

Machado de Assis

 

 

 

Um dos problemas que mais preocupavam a rua do Ouvidor entre as da Quitanda e Gonçalves Dias, das duas às quatro horas da tarde, era a profunda e súbita melancolia do Dr. Maciel. O Dr. Maciel tinha apenas vinte e cinco anos, idade em que geralmente se compreende melhor o Cântico dos Cânticos do que as Lamentações de Jeremias. Sua índole mesma era mais propensa ao riso dos frívolos do que ao pesadume dos filósofos. Pode-se afirmar que ele preferia um dueto da Grã Duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado Fluminense aos domingos da Escola da Glória. Donde vinha pois a melancolia que tanto preocupava a rua do Ouvidor?

Pode o leitor coçar o nariz à procura da explicação; a leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o Dr. Maciel ama, que uma "seta do deus alado" o feriu mesmo no centro do coração. O que a leitora não pode adivinhar, sem que eu lho diga, é que o jovem médico ama a viúva Seixas, cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados pintalegretes. O Dr. Maciel gostava de a ver como todos os outros; amou-a desde certa noite e certo baile, em que ela, andando a passear pelo seu braço, perguntou-lhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo:

- Doutor, por que razão não quer honrar a minha casa? Estou visível todas as quintas-feiras para a turba-multa; os sábados pertencem aos amigos. Vá lá aos sábados.

Maciel prometeu que iria no primeiro sábado, e foi. Pulava-lhe o coração ao subir as escadas. A viúva estava só.

- Venho cedo, disse ele, logo depois dos primeiros cumprimentos.

- Vem tarde demais para a minha natural ansiedade, respondeu ela sorrindo.

O que se passou na alma de Maciel excede a todas as conjecturas. Num só minuto pôde ele ver juntas todas as maravilhas da terra e do céu, - todas as concentradas naquela elegante e suntuosa sala cuja dona, a Calipso daquele Telêmaco, tinha cravados nele um par de olhos, não negros, não azuis, não castanhos, mas dessa rara cor, que os homens atribuem a mais duradoura felicidade do coração, à esperança. Eram verdes, de um verde igual ao das folhas novas, e de uma expressão ora indolente, ora vivaz, - arma de dois gumes, - que ela sabia manejar como poucas.

E não obstante aquele intróito, o Dr. Maciel andava triste, abatido, desconsolado. A razão era que a viúva, depois de tão amáveis preliminares, não cuidou mais das condições em que seria celebrado um tratado conjugal. No fim de cinco ou seis sábados, cujas horas eram polidamente bocejadas a duo, a viúva adoeceu semanalmente naquele dia, e o jovem médico teve de contentar-se com a turba-multa das quintas-feiras.

A quinta-feira em que nos achamos é de Endoenças. Não era dia próprio de recepção. Contudo, Maciel dirigiu-se a Botafogo, a fim de pôr em execução um projeto, que ele ingenuamente supunha ser fruto do mais profundo maquiavelismo, mas que eu, na minha fidelidade de historiador, devo confessar que não passava de verdadeira infantilidade. Notara ele os sentimentos religiosos da viúva; imaginou que, indo fazer-lhe naquele dia a declaração verbal do seu amor, por meio de invocações pias, alcançaria facilmente o prêmio de seus trabalhos.

A viúva achava-se no toucador. Acabara de vestir-se; e de pé calçando as luvas, em frente do espelho, sorria para si mesma, como satisfeita da toilette. Não ia passear, como se poderia supor; ia visitar as igrejas. Queria alcançar por sedução a misericórdia divina.

Era boa devota aquela senhora de' vinte e seis anos, que freqüentava as festas religiosas, comia peixe durante toda a quaresma, acreditava alguma coisa em Deus, pouco no diabo e nada no inferno. Não acreditando no inferno, não tinha onde meter o diabo; venceu a dificuldade, agasalhando-o no coração. O demo assim alojado fora algum tempo o nosso melancólico Maciel. A religião da viúva era mais elegante que outra coisa. Quando ela se confessava era sempre com algum padre moço; em compensação só se tratava com médico velho. Nunca escondeu do médico o mais íntimo defluxo, nem revelou ao padre o mais insignificante pecado.

- O Dr. Maciel? disse ela lendo o cartão que a criada lhe entregou. Não o posso receber; vou sair. Espera, - continuou depois de relancear os olhos para o espelho; - manda-o entrar para aqui.

A ordem foi cumprida; alguns minutos depois fazia Maciel a sua entrada no toucador da viúva.

- Recebo-o no santuário, disse ela sorrindo logo que ele assomou à porta; prova de que o senhor pertence ao número dos verdadeiros fiéis.

- Oh! não é da minha fidelidade que eu duvido; e...

- E recebo-o de pé! Vou sair; vou visitar as igrejas.

- Sei; conheço os seus sentimentos de verdadeira religião, - disse Maciel com a voz a tremer-lhe; - vim até com receio de não a encontrar. Mas vim; era preciso que viesse; neste dia, sobretudo.

A viúva recolheu a abazinha de um sorriso que indiscretamente ia traindo o seu pensamento, e perguntou friamente ao médico que horas eram.

- Quase oito. Sua luva está calçada; falta só abotoá-la. É o tempo necessário para lhe dizer, neste dia tão solene, que eu sinto...

- Está abotoada. Quase oito, não? Não há tempo de sobra; é preciso ir a sete igrejas. Quer fazer o favor de acompanhar-me até o carro?

Maciel tinha espírito em quantidade suficiente para não perdê-lo todo com a paixão. Calou-se; e respondeu à viúva com um gesto de assentimento. Saíram do toucador e desceram ambos silenciosos. No trajeto planeou Maciel dizer-lhe uma só palavra, mas que contivesse todo o seu coração. Era difícil; o lacaio, que abrira a portinhola do coupé, ali estava como um emissário do seu mau destino.

- Quer que o leve até a cidade? perguntou a cidade? perguntou a viúva.

- Obrigado, respondeu Maciel.

O lacaio fechou a portinhola e correu a tomar o seu lugar; foi nesse rápido instante que o médico. inclinando o rosto, disse à viúva:

- Eulália...

Os cavalos começaram a andar; o resto da frase perdeu-se para a viúva e para nós.

Eulália sorriu da familiaridade e perdoou-lha. Reclinou-se molemente nos coxins do veículo e começou um monólogo que só acabou à porta de S. Francisco de Paula.

- Pobre rapaz! dizia ela consigo; vê-se que morre por mim. Não desgostei dele a princípio... Mas tenho eu culpa de que seja um maricas? Agora sobretudo. com aquele ar de moleza e abatimento, é... não é nada... é uma alma de cera. Parece que vinha disposto a ser mais atrevido; mas a alma faltou-lhe com a voz, e ficou apenas com as boas intenções. Eulália! Não foi mau este começo. Para um coração daqueles... Mas qual! c'est le genre ennuyeux!

Esta é a glosa mais resumida que posso dar do monólogo da viúva. O cupê estacionou na praça da Constituição; Eulália, seguida do lacaio, encaminhou-se para a igreja de S. Francisco de Paula. Ali, depositou a imagem de Maciel nas escadas, e atravessou o adro toda entregue ao dever religioso e aos cuidados de seu magnífico vestido preto.

A visita foi curta; era preciso ir a sete igrejas, fazendo a pé todo o trajeto de uma para outra. A viúva saiu sem preocupar-se mais com o jovem médico, e dirigindo-se para a igreja da Cruz.

Na Cruz achamos uma personagem nova, ou antes duas, o desembargador Araújo e sua sobrinha D. Fernanda Valadares, viúva do deputado deste nome, que falecera um ano antes, não se sabe se da hepatite que os médicos lhe acharam se de um discurso que proferiu na discussão do orçamento. As duas viúvas eram amigas; seguiram juntas na visitação das igrejas. Fernanda não tinha tantas acomodações com o céu, como a viúva Seixas; mas a sua piedade estava sujeita, como todas as coisas, às vicissitudes do coração. Em vista do que, logo que saíram da última igreja, disse ela à amiga que no dia seguinte iria vê-la e pedir-lhe uma informação.

- Posso dar já, respondeu Eulália. Vá embora, desembargador; eu levo Fernanda no meu carro.

No carro, disse Fernanda:

- Preciso de uma informação importante. Sabes que estou um pouco apaixonada?

- Sim?

- É verdade. Eu disse um pouco, mas devia dizer muito. O Dr. Maciel...

- O Dr. Maciel? interrompeu vivamente Eulália. Que pensas dele?

A viúva Seixas levantou os ombros e riu com um ar de tamanha piedade, que a amiga corou.

- Não te parece bonito? perguntou Fernanda.

- Não é feio.

- O que mais me seduz nele é o seu ar triste, um certo abatimento que me faz crer que padece. Sabes de alguma coisa a seu respeito?

- Eu?

- Ele dá-se muito contigo; tenho-o visto lá em tua casa. Sabes se haverá alguma paixão...

- Pode ser.

- Oh! conta-me tudo!

Eulália não contou nada; disse que nada sabia.

Concordou, entretanto, que o jovem médico talvez andasse enamorado, porque realmente não parecia gozar boa saúde. O amor, disse ela, era urna espécie de pletora, o casamento uma sangria sacramental. Fernanda precisava sangrar-se do mesmo modo que Maciel.

- Sobretudo nada de remédios caseiros, concluiu ela; nada de olhares e suspiros, que são paliativos destinados menos a minorar que a entreter a doença. O melhor boticário é o padre.

Fernanda tirou a conversa deste terreno farmacêutico e cirúrgico para subi-la às regiões do eterno azul. Sua voz era doce e comovida: o coração pulsava-lhe com força; e Eulália, ao ouvir os méritos que a amiga achava em Maciel, não pôde reprimir esta observação:

- Não há nada como ver as coisas com amor. Quem suporia nunca o Maciel que me estás pintando? Na minha opinião não passa de um bom rapaz; e ainda assim... Mas um bom rapaz é alguma coisa neste mundo?

- Pode ser que eu me engane, Eulália, replicou a viúva do deputado, mas creio que há ali uma alma nobre, elevada e pura. Suponhamos que não. Que importa? O coração empresta as qualidades que deseja.

A viúva Seixas não teve tempo de examinar a teoria de Fernanda. O carro chegara à rua Santo Amaro, onde esta morava. Despediram-se; Eulália seguiu para Botafogo.

- Parece que ama deveras, pensou Eulália logo que ficou só. Coitada! Um moleirão!

Eram nove horas da noite quando a viúva Seixas entrou em casa. Duas criadas - camareiras, - foram com ela para o toucador, onde a bela viúva se despiu; dali passou ao banho; enfiou depois um roupão e dirigiu-se para o quarto de dormir. Levaram-lhe uma taça de chocolate, que ela saboreou lentamente, tranqüilamente, voluptuosamente; saboreou-a e saboreou-se também a si própria, contemplando, da poltrona em que estava, a sua bela imagem no espelho fronteiro. Esgotada a taça, recebeu de uma criada o seu livro de orações, e foi dali a um oratório, diante do qual com devoção se ajoelhou e rezou. Voltando ao quarto, despiu-se, meteu-se no leito e pediu-lhe que lhe cerrasse as cortinas; feito o que, murmurou alegremente:

- Ora o Maciel!

E dormiu.

A noite foi muito menos tranqüila para o nosso apaixonado Maciel, que, logo depois das palavras proferidas à portinhola do carro, ficara furioso contra si mesmo. Tinha razão em parte; a familiaridade do tratamento dado à viúva precisava de mais detida explicação. Não era, porém, a razão que lhe fazia ver claro; nele exerciam maior ação os nervos que o cérebro.

Nem sempre "depois de uma noite de procelosa, traz a manhã serena claridade". A do dia seguinte foi tétrica. Maciel gastou-a toda na loja do Bernardo, a fumar em ambos os sentidos, - o natural e o figurado, a olhar sem ver as damas que passavam, estranho à palavra dos amigos, aos boatos políticos, às anedotas de ocasião.

- Fechei a porta para sempre! dizia ele com amargura.

Pelas quatro horas da tarde, apareceu-lhe um alívio, debaixo da forma de um colega seu, que lhe propôs ir clinicar em Carangola, donde recebera cartas muito animadoras. Maciel aceitou com ambas as mãos o oferecimento. Carangola nunca entrara no itinerário de suas ambições; é até possível que naquele momento ele não pudesse dizer a situação exata da localidade. Mas aceitou Carangola, como aceitaria a coroa de Inglaterra ou as pérolas todas de Ceilão.

- Há muito tempo, disse ele ao colega, que eu sentia necessidade de ir viver em Carangola. Carangola exerceu sempre em mim uma atração irresistível. Não podes imaginar como eu, já na Academia, me sentia arrastado para Carangola. Quando partimos?

- Não sei: dentro de três semanas, talvez.

Maciel achou que era muito, e propôs o prazo máximo de oito dias. Não foi aceito; não teve remédio senão curvar-se às três semanas prováveis. Quando ficou só, respirou.

- Bem! disse ele, irei esquecer e ser esquecido. No sábado houve duas aleluias, uma na Cristandade, outra em casa de Maciel, aonde chegou uma cartinha perfumada da viúva Seixas contendo estas simples palavras: - "Creio que hoje não terei a enxaqueca do costume; espero que venha tomar uma xícara de chá comigo". A leitura desta carta produziu na alma do jovem médico unia Glória in excelsis Deo. Era o seu perdão; era talvez mais do que isso. Maciel releu meia dúzia de vezes aquelas poucas linhas; nem é fora de propósito crer que chegou a beijá-las.

Ora, é de saber que na véspera, sexta-feira, as onze horas da manhã, recebera Eulália uma carta de Fernanda, e que às duas horas foi a própria Fernanda à casa de Eulália. A carta e a pessoa tratavam do mesmo assunto com a expansão natural em situações daquelas. Tem-se visto muita vez guardar um segredo do coração; mas é raríssimo, que, uma vez revelado, deixe de o ser até a saciedade. Fernanda escreveu e disse tudo o que sentia; sua linguagem, apaixonada e viva, era uma torrente de afeto, tão volumosa que chegou talvez a alagar, - a molhar pelo menos, - o coração de Eulália. Esta ouviu-a a principio com interesse, depois com indiferença, afinal com irritação.

- Mas o que queres tu que eu te faça? perguntou no fim de uma hora de confidência.

- Nada, respondeu Fernanda. Uma só coisa: que me animes.

- Ou te auxilie?

Fernanda respondeu com um aperto de mão tão significativo, que a viúva Seixas compreendeu facilmente a impressão que lhe causara. No sábado enviou a carta acima transcrita. Maciel recebeu-a como vimos, e à noite, à hora habitual, estava à porta de Eulália. A viúva não estava só. Havia umas quatro senhoras e uns três cavalheiros, visitas habituais das quintas-feiras.

Maciel entrou na sala um pouco acanhado e comovido. Que expressão leria no rosto de Eulália? Não tardou sabê-lo; a viúva recebeu-o com o seu melhor sorriso, - o menos faceiro e intencional, o mais espontâneo e sincero, um sorriso que Maciel, se fosse poeta, compararia a um íris de bonança, rimado com esperança ou bem-aventurança. A noite correu deliciosa; um pouco de música, muita conversa, muito espírito, um chá familiar, alguns olhares animadores, e um aperto de mão significativo no fim. Com estes elementos era difícil não ter os melhores sonhos do mundo. Teve-os Maciel, e o domingo da Ressurreição também o foi para ele.

Na seguinte semana viram-se três vezes. Eulália parecia mudada; a solicitude e a graça com que lhe falava estavam longe de tal ou qual frieza e indiferença dos últimos tempos. Este novo aspecto da moça produziu os seus naturais efeitos. Sentiu-se outro jovem médico; reanimou-se, colheu confiança, fez-se homem.

A terceira vez que a viu nessa semana foi em uma soirée. Acabaram de valsar e dirigiram-se para o terraço da casa, donde se via um magnífico panorama, capaz de fazer poeta o mais soez espírito do mundo. Ali foi fácil declaração, inteira, cabal, expressiva do que sentia o namorado; ouviu-lhe Eulália com os olhos embebidos nele, visivelmente encantada com a palavra de Maciel.

- Poderei crer no que me diz? perguntou ela.

A resposta do jovem médico foi apertar-lhe muito a mão, e cravar nela uns olhos mais eloqüentes que duas catilinárias. A situação estava definida, a aliança feita. Bem o percebeu Fernanda, quando os viu regressar à sala. Seu rosto cobriu-se de um véu de tristeza; dez minutos depois e o desembargador interrompia a partida de whist para acompanhar a sobrinha a Santo Amaro.

A leitora espera decerto ver casados os dois namorados e espaçada a viagem a Carangola até o fim do século. Quinze dias depois da declaração inicial Maciel deu os passos necessários ao consórcio. Não têm número os corações que estalaram de inveja ao saber da preferência da viúva Seixas. Esta pela sua parte sentia-se mais orgulhosa do que se desposasse o primeiro dos heróis da terra.

Donde veio este entusiasmo e que varinha mágica operou tamanha mudança no coração de Eulália? Leitora curiosa, a resposta está no título. Maciel pareceu insosso, enquanto lhe faltou o sainete de outra paixão. A viúva descobriu-lhe os méritos com os olhos de Fernanda; e bastou vê-lo preferido para que ela o preferisse. Se me miras, me miram, era a divisa de um célebre relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me miras; e mostraria conhecer o coração humano, - o feminino pelo menos.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 11 de outubro de 2021

O SOVINA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O SOVINA

Humberto de Campos

 

 

 

Funcionário modesto, ganhando apenas setecentos mil réis por mês, o operoso oficial de Fazenda Emiliano Praxedes não podia, ou não queria, dar à mulher, jamais, um vestido de passeio, mesmo de baixo preço. Casado há um ano, a esposa ignorava em absoluto as suas despesas, a cifra dos seus orçamentos, sabendo, entretanto, que os dispêndios eram grandes, fortes, elevados, porque ele nunca entrava em casa com dinheiro.

 

Cansada de esperar pela generosidade espontânea do esposo, D. Lídia chegou-se, um dia, para ele, e, agradando-o, amimando-o, acariciando-o, pediu, passando-lhe a mão pelos cabelos:

 

— Praxedes, quando é que tu me dás um vestido novo? Tu nunca me deste nada...

 

Apanhado de surpresa, o funcionário prometeu:

 

— Breve. Isso depende apenas de ti. Dá-me um filhinho, um anjo para o nosso lar, que eu te darei um vestido! Está combinado?

 

— Está combinado! — concordou a moça, batendo palmas de contente.

 

No fim de nove meses, dado o beijo no seu primeiro pimpolho, que piscava no leito os olhinhos desconfiados, partia Emiliano Praxedes para a rua, de onde voltava horas depois com um embrulho, que entregou à esposa.

 

— Pronto! exclamou. — O prometido é devido!

 

  1. Lídia abriu, risonha, o pacote, e empalideceu, mais do que estava: era um vestido de chita azul, grosseira, ordinaríssima, que não havia custado, talvez, mais de seiscentos réis o metro!

 

Desapontada embora com a sovinice do marido, a pobre senhora não se revoltou, não protestou, não disse nada. Calcou o seu ressentimento no fundo da alma, escondeu a sua mágoa no coração, e, sem que o esposo lhe tivesse feito outra promessa, deu-lhe, ao fim de mais um ano, um outro filho. Terminado o período de resguardo, tomou um bonde para a cidade, e, à tarde, ao entrar em casa, vinha arrebatadora: vestido de seda, chapéu de plumas, sapato de cetim, pele de raposa, colar de pérolas, enfim, um deslumbramento!

 

— Que é isso, Lídia? Que escândalo é esse? — exclamou, boquiaberto, pondo-se de pé, o Praxedes, que já se achava em casa, à mesa de jantar.

 

E madame, desafiadora:

 

— Você pensa, então, que todos são miseráveis como você?

 

E entrou na alcova, tirando as luvas.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 09 de outubro de 2021

A INGLESINHA BARCELOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A INGLESINHA BARCELOS

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 08 de outubro de 2021

AS SACERDOTISAS DO FUTURO (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

AS SACERDOTISAS DO FUTURO

João do Rio

 

 

 

 

O futuro é o deus vago e polimorfo que preside aos nossos destinos entre as estrelas, o incompreensível e assustador deus dos boêmios nas caravanas da Ásia, a Força oculta, o perigo invisível. Hugo e Alencar acreditavam nessa divindade, e não há entre os deuses quem maior número tenha de sacerdotes e de sacerdotisas.

Só os cultores do Futuro, podem modificar a fatalidade, afastar a morte, sacudir o saco de ouro da fortuna, soltar o riso da alegria na tristeza dos séculos. As sacerdotisas do Deus tremendo infestam a nossa cidade, tomam conta de todos os bairros, predizem a sorte aos ricos, compõem um mundo exótico e complexo de cartomantes, nigromantes, sonâmbulas videntes, quiromantes, grafólogas, feiticeiras e bruxas.

Essa gente cura, salva, desfaz as desgraças, ergue o véu da fortuna, faz esperar, faz crer, vive em prédios lindos, em taperas, em casinholas - é o conjunto das pitonisas modernas, as distribuidoras de oráculos. Em meio tão variado há de haver ignorantes - a maioria - cartomantes que vêem nas cartas caminhos estreitos e caminhos largos e não sabem nem distribuir o baralho, sonâmbulas falsificadas, portuguesas e mulatas que se apropriam dos moldes dos africanos, e mulheres inteligentes que conversam e discutem.

Freqüentei os templos do futuro. Só em uma semana visitei oitenta, encontrando-os sempre cheios de fiéis. O caleidoscópio alucinante das adivinhas faz a vida livremente. Em algumas casas encontrei três e quatro, girando sob uma única firma.

Só na rua do Hospício, por exemplo, há cinco ou seis. Nos outros pontos conversei com Mme. Jorge na rua da Ajuda, a Liberata na rua da Alfândega, a Joana Maria da Conceição na rua Figueira de Melo, a Amélia de Aragão, a Luiza Barbada na rua Barão de S. Felix, a Amélia do Pedregulho, a Amélia Portuguesa, a Cândida, a Mme... da rua dos Arcos, 4, a Ximenes da rua da Prainha, 19, Maria de Jesus na rua Dr. Maciel, 7, Castorina Pires em S. Diogo, a Amélia da rua do Lavradio, dona Martins na rua Mariz e Barros, a Alexandrina na rua da América, Mme. Hermínie na rua Senador Pompeu, Maria Baiana na rua do Costa, a Genoveva da rua do Visconde de Itaúna, Dona da rua da Imperatriz, 15, a Corcundinha célebre adivinha de atores e de repórteres, na deixa um rol infindável. Todas falam do seu desinteresse exigindo dinheiro e algumas vendo o futuro nas mãos, nem ao menos sabem as linhas essenciais segundo o engraçadíssimo Desbarolles. A observação nessas casinholas é incolor. Fica-se entre os feitiços dos minas e a magia medieva, numa atmosfera de burla.

Mas é lá possível não acertar às vezes? A vida humana tem uma linha geral. Tanto amam as heroínas de Bourget como as lavadeiras, gozam e gostam de ser gozados os freqüentadores da haute-gomme com os dançarinos dos becos esconsos. As vidas têm uma parecença em bloco, uma uniformidade de sentimentos. Por mais ignorantes que sejam, as sacerdotisas têm o hábito da observação, indagam da vida antes, em conversa. Muitas chegam a perguntar:

- Vem por dor ou por amor?

E como sabem perfeitamente quando se dirigem a um cavalheiro, a uma dama, às coccottes ou aos rufiões, as suas respostas acertam. É um exercício de atenção, antes de tudo, com cenários e pedidos sugestivos. Uma delas recebe velas de sebo, terminada a consulta; outras, peças de chita. A turba dá-lhes dinheiro, e sussurra os seus segredos nos ouvidos dessa gente que são como abismos de discreto silêncio.

Na peregrinação pelos templos do Deus Futuro guardo como originais uma casa de cartomancia na rua do Ouvidor entre as modistas do tom e a elegância máxima, a Ceguinha vidente da rua da Misericórdia, a Rosa que olha nágua e é astróloga, Mme. de F. sonâmbula numa rua paralela à praia de Botafogo, a Corcundinha da rua General Câmara e a esquisita Mme. Matilde do Catete.

A Ceguinha tem a face macerada e é a exploração de quatro ou cinco. Vive numa cadeira, com os olhos cheios de pus. O grande Deus fez-lhe a treva em torno, para melhor ler a sorte dos outros nos meandros do céu. Dizem que os agentes da polícia vão lá para saber o paradeiro dos gatunos e que os gatunos também vão a ver se escapam. Imóvel como um santo indiano à porta da imortalidade, a Ceguinha, com a mesma dutilidade, desvenda-lhes o Futuro. Às vezes aparecem senhoras. A Ceguinha curva-se, e pinta o Destino com a mesma calma dolorosa.

A Rosa, com as fontes saltadas, o que em magia se chama cornos de Moisés, é um assombro de observação. Esse exemplar único de astrologia conhece mesmo algumas práticas antigas. Quando a fomos procurar, olhou-nos bem.

- Por que veio, se nunca acreditará?

- Estou numa situação difícil.

- Ouça a voz de Deus.

- Mas a minha alma sofre.

- O homem tem muitas almas...

- Mas se posso saber o futuro nágua?

- A água é onde se miram os astros que têm a vida da gente.

- Como se consulta?

- Vendo... Alguns astros de outrora não têm mais importância hoje: outros receberam-lhe a força. Os meus horóscopos são certos; o Destino ordena-me. Mas eu só falo com os homens que a dor faz tristes e crentes.

A Corcundinha, discípula de uma Josefina, tem uma fama tão grande que chega a deitar cartas por dia, às vezes para mais de cinqüenta pessoas. Cada consulta custa cinco mil réis e ela só anuncia coisas lúgubres.

Mme. de F... esteve na Inglaterra; em estado natural discute o psiquismo, e quando sonambulizada aparece numa túnica preta. Dizem que predisse os acontecimentos da nossa polícia e prevê um futuro desagradável da pendência brasileira com o Peru. E lúgubre. A roda que a freqüenta, dá-se como ultrachique.

Mme. Matilde, a cartomante do high-life, já teve criados de casaca e possui uma linda galeria de quadros. De todos os templos, o dessa senhora é o mais excêntrico. Mme. Matilde, para os íntimos a princesa Matilde, é uma criatura que fala com volubilidade.

Há alguns anos foi a Paris, onde estudou com Papus e Mme. de Thèbes. Conhece a cartomancia, a telepatia, o sonambulismo, a metafísica das estrelas, a quiromancia, coisas complicadas de que faz uma interessante confusão. Além de tudo isso, a princesa é crítica de pintura e interessa-se pelo movimento universal. Quando me anunciei, a agradável dama mandou iluminar o seu salão de visitas, e entre as colchas japonesas, os quadros de valor, os bibelôs do Oriente e as peles de tigres, fez a sua aparição.

Vinha de vestido vermelho, um vestido de mangas perdidas, donde os seus braços surgiam cor de ouro, e vinha com ela a essência capitosa de vinte frascos de perfume. Mme. Matilde embalsamava. Deixou-se cair num divã, passeou com as mãos pelo ar e disse:

- Estou cansadíssima. Se não me mandasse dizer quem era, não o teria recebido. Simpatizo com o seu ser.

Curvei-me comovido.

- Não podia falar das sacerdotisas do Futuro, sem ouvi-la.

- Já tem percorrido os templos do grande Deus?

- Alguns. Visitei oitenta, e há para mais de duzentos.

- Há templos de ouro, de prata, de cobre e de latão.

- Guardei para o fim o melhor.

- Meu caro, os verdadeiros templos do Futuro são de data recente entre nós. A sorte começou a ser descoberta aqui por negros da África imbecis e por ciganos exploradores. Depois apareceram as variações espíritas, os adivinhos que montavam casinholas receosas, reunindo ao estudo das cartas a necessidade dos despachos africanos. Uma crendice! As verdadeiras sacerdotisas datam de pouco tempo, são de importação e anunciam. Essas não se ocultam mais e dão consultas claramente.

- Como em Paris?

- Como em Paris. Não lhe falo de Papus, de quatro ou cinco sonâmbulas de fama universal, mas apenas da minha ilustre professora Mme. de Thèbes. Mme. de Thèbes em Paris é uma necessidade mundana como o clube, as premières, o grandprix.

Vai-se a Mmc. de Thèbes como se joga uma partida de boston. É uma necessidade elegante. Mme. de Thèbes tem hoje uma fortuna.

- E erra sempre.

- Nunca.

- É sacerdotisa por vocação?

- Sempre estudei as ciências ocultas por diletantismo. Das ciências ocultas saíram as ciências exatas, disse um grande mestre. Desde criança amei a antiguidade, tive o desejo de remontar ao Zoroastro, ao Zend-Avesta e aos Magos, com o prazer de descansar à beira do Nilo, de conhecer Plotino e os livros herméticos.

Depois, sempre fui dotada de uma grande força nervosa. Uma vez, levando amigas à casa de uma sonâmbula, resolvi estudar os truques das mercadorias e daí a minha conversão.

Nesse momento, como a profetisa ria, estendendo as mãos, vi-lhe na sinistra vários anéis complicados, e prendi-lhe os dedos, curioso das jóias e da mão.

- Está vendo os meus anéis? Este é africano, partido. Tem os signos do zodíaco - o tempo. Este outro guarda no fundo um berilo, por onde se enxerga a alma. Naturalmente é descrente?

- Sou filho de uma civilização muito parecida com a daquele imperador que precavidamente levantava templo aos deuses desconhecidos. Há em tudo alguma coisa a temer - o inexplicável. A história é uma afirmação de oráculos, de sonambulismo, de predições.

Eu guardara com religião a mão da pitonisa; Mme. Matilde, porém, ergue-se agitando os seus perfumes.

- E não teme? e não lhe parece sugestivo este interior? Não receia que daquele canto escuro surjam fantasmas, que, agarrando a sua mão, leia nessas linhas a desgraça irremediável?

- Se for assim - disse docemente -, que se há de fazer? É a vontade do Futuro...

- Pois, meu caro, pode ter a certeza de que não somos só as sacerdotisas do terrível Destino, somos as Consoladoras, a Teoria do Bem, as Sofredoras da Ilusão. Não sorria.

Sem nós, que seria das cidades? Os senhores andam à cata do documento humano. Nós temos à mão, todos os dias, as tragédias, os dramas e as comédias de que se faz o mundo. À nossa casa vêm as mulheres ciumentas, os que desejam a morte e os que desejam amor. Os adultérios, os crimes, os remorsos, a luxúria, as vergonhas fervilham. Nós consolamos.

Diariamente, nas casas de que tomou o número para indicá-las à polícia, encontram-se os conquistadores, os homens bem vestidos de que a polícia ignora os meios de vida; os senadores, os deputados, as pessoas notáveis, as atrizes, as cocottes, as senhoras casadas, os imbecis propondo coisas indecorosas e as almas dolorizadas.

Nós a todos damos o favo da ilusão... Quando morre meu pai? Meu marido abandona-me? Será minha a mulher de Sicrano? Fulana é fiel? Realiza-se o negócio? E nós aquietamos os instintos com o lenitivo do bem. Ainda há pouco tempo, entrou por esta sala uma menina em prantos. Era domingo. Não deito cartas aos domingos.

Neguei-me. Soluçou, pediu, ajoelhou. Logo que a vi, percebendo a sua agitação, espalhei as cartas ao acaso. A menina vai cometer um desatino! Ela olhou-me espantada. Sim, ia dali suicidar-se, porque a abandonara o amante, grávida e sem trabalho. Fiz as cartas dizerem que o amante voltava e a pequena não morreu.

- Cartas salvadoras!

- Dias antes aparecera um marido a interrogar-me a respeito do seu ménage, derruído por incompatibilidade de gênios. Ela escrevia-lhe cartas pedindo para voltar. Que devo fazer? Voltar! Mas teve amantes! É boa. Abandonada sem saber trabalhar e sem recursos queria o senhor que a pobre morresse? Depois foi-lhe o Sr. fiel? Não! Era lá possível a ela deixar de ter um amante?...

- Ou mesmo dois?

- Ou três, não vai ao caso. Ele refletiu e vivem os dois bem. Quantos desmandos evitamos, quantas desgraças, quantos escândalos! Recorda-se da história do oráculo de Delfos? É a história da prudência, de ser ambíguo para não se enganar. A nossa é muito mais difícil.

- Mente com franqueza.

- Diz verdades e consola. Muitas das minhas clientes vêm aqui apenas como um consolo. Contam as mágoas e vão-se.

- Que trabalho deve ter!

- Faço experiências até altas horas com o meu criado Júlio, e vou às estalagens, aos cortiços, ler grátis nas mãos dos pobres. Não imagina como sou recebida!

Deito cartas, leio nas mãos. É o estudo em que procedo sem perguntar para ter a certeza. E é certo! Adivinho coisas de há quatro e cinco anos passados, chego a descrever as roupas das pessoas distantes e prevejo. A previsão é de resto uma faculdade que desenvolvi.

- É feliz?

- Tudo quanto quero, faço.

- Tem talvez a alma de algum mágico antigo...

Mme. Matilde recostou o seu corpo elegante.

- Não: tive três vidas apenas. Da primeira fui físico, da segunda advogado e na terceira odalisca...

Oh! mistério! A sacerdotisa possuía o saber dos físicos, falava como um advogado e naquele momento tinha a inebriante doçura das odaliscas.

Peguei-lhe a mão e disse baixinho:

- Já um ocultista me afirmou que fui Nero e depois Ponce de Leon...

Ela riu um riso penado.

- Ponce atraído pelo mistério das mãos.

- Pela beleza.

- Todos nós temos a atração das mãos. A mão é um resumo do Céu. Cada astro tem a sua parte. Júpiter é o índex, Saturno o médio, o Sol o anular, Mercúrio Hermés o mínimo. A Lua tem a região do Sul, Marte todo o meio, onde se dão os combates da vida e Vênus o grande monte.

- É este o mais trabalhoso?

- Quase sempre.

Ergui-me, e vi numa outra sala, forrada de esteiras da Índia, um oratório onde ardiam lamparinas. Os santos, sob o halo de luz, que a ciência explica pelo raio n, como o esforço da atenção - tinham um olharzinho redondo e inexpressivo. Que diriam os coitados, santo Deus do Futuro?

- Neste meio de adivinhas, quiromantes e sonâmbulas é melhor ser impassível - dizia Mme. Matilde. - Às vezes protegem amores, são casas ambíguas.

- Mas as suas experiências?

- Pratico o sonambulismo como as cartas, a telepatia e a quiromancia, indo diretamente à alma que nós temos no fundo. Tudo é domínio. As últimas experiências do meu domínio tive-as com o conhecido pintor Hélios Seelunger. Curei o uma vez com água magnetizada. Desde então dizia-lhe às 2 horas de tal dia o senhor sofrerá um choque. Era tal qual.

Noutro dia sofria o choque. Fui eu de resto que lhe desvendei o futuro e a sorte nas mãos.

- E a transmissão de pensamento?

Já em Botafogo transmiti idéias a criaturas no Engenho Novo. Conhecem essas experiências poetas como Luís Edmundo, o padre Severiano de Resende, pintores como Amoedo. A minha amiga D. Adelina Lopes Vieira também as conhece.

Lembrei-me então de que Mme. Matilde era também literata.

- Mas as cartas?

- Quer vê-las?

Tocou o tímpano, apareceu um pequeno loiro com um sarcófago de prata em relevo. Mme. Matilde - a princesa para os íntimos - abriu-o com cuidado, e de dentro numa sombria apoteose de ouros e cores, as cartas do tarot, a papesse, o doido, o ás de ouro, o enforcado, o bateleur escamoteador surgiram tenebrosamente.

Mãos estendiam moedas de ouro, o ouro cintilava, em altos montes figuras sinistras apareciam. E estava ali a consolação universal, a consolação dos pobres e dos potentados! Nas mãos delicadas da feiticeira último grito rolava numa série de iluminuras a miragem enganadora do Futuro. Ela estendia as cartas nas luzes e eu recordava a origem antiga dessa doce ilusão, a vinda dos Boêmios.

- Quem sois vós?

- Sou o duque do Egito e venho com os condes e barões.

- Quem vos traz?

- A que precede o nosso cortejo e lê nos livros coloridos de Hermés o destino do mundo, a rainha das Cabalas, a sublime senhora do fogo e do metal! E em frente à multidão abriam o tarot como quem rasga o céu, o consolo infinito dos boêmios.

Eu estava ali como os camponeses da época de Carlos VI diante da senhora do metal - apenas, tanto a rainha como eu, um tanto mais descrentes.

Então curvei-me, depus o beijo que há muito sentia nos lábios, o beijo da devoção, na sua mão perfumada.

- Como em Paris! - fez ela, deixando que os meus lábios roçassem a extremidade dos seus dedos.

- Como na hora de sempre - murmurei -, o Medo, diante do Futuro.O futuro é o deus vago e polimorfo que preside aos nossos destinos entre as estrelas, o incompreensível e assustador deus dos boêmios nas caravanas da Ásia, a Força oculta, o perigo invisível. Hugo e Alencar acreditavam nessa divindade, e não há entre os deuses quem maior número tenha de sacerdotes e de sacerdotisas.

Só os cultores do Futuro, podem modificar a fatalidade, afastar a morte, sacudir o saco de ouro da fortuna, soltar o riso da alegria na tristeza dos séculos. As sacerdotisas do Deus tremendo infestam a nossa cidade, tomam conta de todos os bairros, predizem a sorte aos ricos, compõem um mundo exótico e complexo de cartomantes, nigromantes, sonâmbulas videntes, quiromantes, grafólogas, feiticeiras e bruxas.

Essa gente cura, salva, desfaz as desgraças, ergue o véu da fortuna, faz esperar, faz crer, vive em prédios lindos, em taperas, em casinholas - é o conjunto das pitonisas modernas, as distribuidoras de oráculos. Em meio tão variado há de haver ignorantes - a maioria - cartomantes que vêem nas cartas caminhos estreitos e caminhos largos e não sabem nem distribuir o baralho, sonâmbulas falsificadas, portuguesas e mulatas que se apropriam dos moldes dos africanos, e mulheres inteligentes que conversam e discutem.

Freqüentei os templos do futuro. Só em uma semana visitei oitenta, encontrando-os sempre cheios de fiéis. O caleidoscópio alucinante das adivinhas faz a vida livremente. Em algumas casas encontrei três e quatro, girando sob uma única firma.

Só na rua do Hospício, por exemplo, há cinco ou seis. Nos outros pontos conversei com Mme. Jorge na rua da Ajuda, a Liberata na rua da Alfândega, a Joana Maria da Conceição na rua Figueira de Melo, a Amélia de Aragão, a Luiza Barbada na rua Barão de S. Felix, a Amélia do Pedregulho, a Amélia Portuguesa, a Cândida, a Mme... da rua dos Arcos, 4, a Ximenes da rua da Prainha, 19, Maria de Jesus na rua Dr. Maciel, 7, Castorina Pires em S. Diogo, a Amélia da rua do Lavradio, dona Martins na rua Mariz e Barros, a Alexandrina na rua da América, Mme. Hermínie na rua Senador Pompeu, Maria Baiana na rua do Costa, a Genoveva da rua do Visconde de Itaúna, Dona da rua da Imperatriz, 15, a Corcundinha célebre adivinha de atores e de repórteres, na deixa um rol infindável. Todas falam do seu desinteresse exigindo dinheiro e algumas vendo o futuro nas mãos, nem ao menos sabem as linhas essenciais segundo o engraçadíssimo Desbarolles. A observação nessas casinholas é incolor. Fica-se entre os feitiços dos minas e a magia medieva, numa atmosfera de burla.

Mas é lá possível não acertar às vezes? A vida humana tem uma linha geral. Tanto amam as heroínas de Bourget como as lavadeiras, gozam e gostam de ser gozados os freqüentadores da haute-gomme com os dançarinos dos becos esconsos. As vidas têm uma parecença em bloco, uma uniformidade de sentimentos. Por mais ignorantes que sejam, as sacerdotisas têm o hábito da observação, indagam da vida antes, em conversa. Muitas chegam a perguntar:

- Vem por dor ou por amor?

E como sabem perfeitamente quando se dirigem a um cavalheiro, a uma dama, às coccottes ou aos rufiões, as suas respostas acertam. É um exercício de atenção, antes de tudo, com cenários e pedidos sugestivos. Uma delas recebe velas de sebo, terminada a consulta; outras, peças de chita. A turba dá-lhes dinheiro, e sussurra os seus segredos nos ouvidos dessa gente que são como abismos de discreto silêncio.

Na peregrinação pelos templos do Deus Futuro guardo como originais uma casa de cartomancia na rua do Ouvidor entre as modistas do tom e a elegância máxima, a Ceguinha vidente da rua da Misericórdia, a Rosa que olha nágua e é astróloga, Mme. de F. sonâmbula numa rua paralela à praia de Botafogo, a Corcundinha da rua General Câmara e a esquisita Mme. Matilde do Catete.

A Ceguinha tem a face macerada e é a exploração de quatro ou cinco. Vive numa cadeira, com os olhos cheios de pus. O grande Deus fez-lhe a treva em torno, para melhor ler a sorte dos outros nos meandros do céu. Dizem que os agentes da polícia vão lá para saber o paradeiro dos gatunos e que os gatunos também vão a ver se escapam. Imóvel como um santo indiano à porta da imortalidade, a Ceguinha, com a mesma dutilidade, desvenda-lhes o Futuro. Às vezes aparecem senhoras. A Ceguinha curva-se, e pinta o Destino com a mesma calma dolorosa.

A Rosa, com as fontes saltadas, o que em magia se chama cornos de Moisés, é um assombro de observação. Esse exemplar único de astrologia conhece mesmo algumas práticas antigas. Quando a fomos procurar, olhou-nos bem.

- Por que veio, se nunca acreditará?

- Estou numa situação difícil.

- Ouça a voz de Deus.

- Mas a minha alma sofre.

- O homem tem muitas almas...

- Mas se posso saber o futuro nágua?

- A água é onde se miram os astros que têm a vida da gente.

- Como se consulta?

- Vendo... Alguns astros de outrora não têm mais importância hoje: outros receberam-lhe a força. Os meus horóscopos são certos; o Destino ordena-me. Mas eu só falo com os homens que a dor faz tristes e crentes.

A Corcundinha, discípula de uma Josefina, tem uma fama tão grande que chega a deitar cartas por dia, às vezes para mais de cinqüenta pessoas. Cada consulta custa cinco mil réis e ela só anuncia coisas lúgubres.

Mme. de F... esteve na Inglaterra; em estado natural discute o psiquismo, e quando sonambulizada aparece numa túnica preta. Dizem que predisse os acontecimentos da nossa polícia e prevê um futuro desagradável da pendência brasileira com o Peru. E lúgubre. A roda que a freqüenta, dá-se como ultrachique.

Mme. Matilde, a cartomante do high-life, já teve criados de casaca e possui uma linda galeria de quadros. De todos os templos, o dessa senhora é o mais excêntrico. Mme. Matilde, para os íntimos a princesa Matilde, é uma criatura que fala com volubilidade.

Há alguns anos foi a Paris, onde estudou com Papus e Mme. de Thèbes. Conhece a cartomancia, a telepatia, o sonambulismo, a metafísica das estrelas, a quiromancia, coisas complicadas de que faz uma interessante confusão. Além de tudo isso, a princesa é crítica de pintura e interessa-se pelo movimento universal. Quando me anunciei, a agradável dama mandou iluminar o seu salão de visitas, e entre as colchas japonesas, os quadros de valor, os bibelôs do Oriente e as peles de tigres, fez a sua aparição.

Vinha de vestido vermelho, um vestido de mangas perdidas, donde os seus braços surgiam cor de ouro, e vinha com ela a essência capitosa de vinte frascos de perfume. Mme. Matilde embalsamava. Deixou-se cair num divã, passeou com as mãos pelo ar e disse:

- Estou cansadíssima. Se não me mandasse dizer quem era, não o teria recebido. Simpatizo com o seu ser.

Curvei-me comovido.

- Não podia falar das sacerdotisas do Futuro, sem ouvi-la.

- Já tem percorrido os templos do grande Deus?

- Alguns. Visitei oitenta, e há para mais de duzentos.

- Há templos de ouro, de prata, de cobre e de latão.

- Guardei para o fim o melhor.

- Meu caro, os verdadeiros templos do Futuro são de data recente entre nós. A sorte começou a ser descoberta aqui por negros da África imbecis e por ciganos exploradores. Depois apareceram as variações espíritas, os adivinhos que montavam casinholas receosas, reunindo ao estudo das cartas a necessidade dos despachos africanos. Uma crendice! As verdadeiras sacerdotisas datam de pouco tempo, são de importação e anunciam. Essas não se ocultam mais e dão consultas claramente.

- Como em Paris?

- Como em Paris. Não lhe falo de Papus, de quatro ou cinco sonâmbulas de fama universal, mas apenas da minha ilustre professora Mme. de Thèbes. Mme. de Thèbes em Paris é uma necessidade mundana como o clube, as premières, o grandprix.

Vai-se a Mmc. de Thèbes como se joga uma partida de boston. É uma necessidade elegante. Mme. de Thèbes tem hoje uma fortuna.

- E erra sempre.

- Nunca.

- É sacerdotisa por vocação?

- Sempre estudei as ciências ocultas por diletantismo. Das ciências ocultas saíram as ciências exatas, disse um grande mestre. Desde criança amei a antiguidade, tive o desejo de remontar ao Zoroastro, ao Zend-Avesta e aos Magos, com o prazer de descansar à beira do Nilo, de conhecer Plotino e os livros herméticos.

Depois, sempre fui dotada de uma grande força nervosa. Uma vez, levando amigas à casa de uma sonâmbula, resolvi estudar os truques das mercadorias e daí a minha conversão.

Nesse momento, como a profetisa ria, estendendo as mãos, vi-lhe na sinistra vários anéis complicados, e prendi-lhe os dedos, curioso das jóias e da mão.

- Está vendo os meus anéis? Este é africano, partido. Tem os signos do zodíaco - o tempo. Este outro guarda no fundo um berilo, por onde se enxerga a alma. Naturalmente é descrente?

- Sou filho de uma civilização muito parecida com a daquele imperador que precavidamente levantava templo aos deuses desconhecidos. Há em tudo alguma coisa a temer - o inexplicável. A história é uma afirmação de oráculos, de sonambulismo, de predições.

Eu guardara com religião a mão da pitonisa; Mme. Matilde, porém, ergue-se agitando os seus perfumes.

- E não teme? e não lhe parece sugestivo este interior? Não receia que daquele canto escuro surjam fantasmas, que, agarrando a sua mão, leia nessas linhas a desgraça irremediável?

- Se for assim - disse docemente -, que se há de fazer? É a vontade do Futuro...

- Pois, meu caro, pode ter a certeza de que não somos só as sacerdotisas do terrível Destino, somos as Consoladoras, a Teoria do Bem, as Sofredoras da Ilusão. Não sorria.

Sem nós, que seria das cidades? Os senhores andam à cata do documento humano. Nós temos à mão, todos os dias, as tragédias, os dramas e as comédias de que se faz o mundo. À nossa casa vêm as mulheres ciumentas, os que desejam a morte e os que desejam amor. Os adultérios, os crimes, os remorsos, a luxúria, as vergonhas fervilham. Nós consolamos.

Diariamente, nas casas de que tomou o número para indicá-las à polícia, encontram-se os conquistadores, os homens bem vestidos de que a polícia ignora os meios de vida; os senadores, os deputados, as pessoas notáveis, as atrizes, as cocottes, as senhoras casadas, os imbecis propondo coisas indecorosas e as almas dolorizadas.

Nós a todos damos o favo da ilusão... Quando morre meu pai? Meu marido abandona-me? Será minha a mulher de Sicrano? Fulana é fiel? Realiza-se o negócio? E nós aquietamos os instintos com o lenitivo do bem. Ainda há pouco tempo, entrou por esta sala uma menina em prantos. Era domingo. Não deito cartas aos domingos.

Neguei-me. Soluçou, pediu, ajoelhou. Logo que a vi, percebendo a sua agitação, espalhei as cartas ao acaso. A menina vai cometer um desatino! Ela olhou-me espantada. Sim, ia dali suicidar-se, porque a abandonara o amante, grávida e sem trabalho. Fiz as cartas dizerem que o amante voltava e a pequena não morreu.

- Cartas salvadoras!

- Dias antes aparecera um marido a interrogar-me a respeito do seu ménage, derruído por incompatibilidade de gênios. Ela escrevia-lhe cartas pedindo para voltar. Que devo fazer? Voltar! Mas teve amantes! É boa. Abandonada sem saber trabalhar e sem recursos queria o senhor que a pobre morresse? Depois foi-lhe o Sr. fiel? Não! Era lá possível a ela deixar de ter um amante?...

- Ou mesmo dois?

- Ou três, não vai ao caso. Ele refletiu e vivem os dois bem. Quantos desmandos evitamos, quantas desgraças, quantos escândalos! Recorda-se da história do oráculo de Delfos? É a história da prudência, de ser ambíguo para não se enganar. A nossa é muito mais difícil.

- Mente com franqueza.

- Diz verdades e consola. Muitas das minhas clientes vêm aqui apenas como um consolo. Contam as mágoas e vão-se.

- Que trabalho deve ter!

- Faço experiências até altas horas com o meu criado Júlio, e vou às estalagens, aos cortiços, ler grátis nas mãos dos pobres. Não imagina como sou recebida!

Deito cartas, leio nas mãos. É o estudo em que procedo sem perguntar para ter a certeza. E é certo! Adivinho coisas de há quatro e cinco anos passados, chego a descrever as roupas das pessoas distantes e prevejo. A previsão é de resto uma faculdade que desenvolvi.

- É feliz?

- Tudo quanto quero, faço.

- Tem talvez a alma de algum mágico antigo...

Mme. Matilde recostou o seu corpo elegante.

- Não: tive três vidas apenas. Da primeira fui físico, da segunda advogado e na terceira odalisca...

Oh! mistério! A sacerdotisa possuía o saber dos físicos, falava como um advogado e naquele momento tinha a inebriante doçura das odaliscas.

Peguei-lhe a mão e disse baixinho:

- Já um ocultista me afirmou que fui Nero e depois Ponce de Leon...

Ela riu um riso penado.

- Ponce atraído pelo mistério das mãos.

- Pela beleza.

- Todos nós temos a atração das mãos. A mão é um resumo do Céu. Cada astro tem a sua parte. Júpiter é o índex, Saturno o médio, o Sol o anular, Mercúrio Hermés o mínimo. A Lua tem a região do Sul, Marte todo o meio, onde se dão os combates da vida e Vênus o grande monte.

- É este o mais trabalhoso?

- Quase sempre.

Ergui-me, e vi numa outra sala, forrada de esteiras da Índia, um oratório onde ardiam lamparinas. Os santos, sob o halo de luz, que a ciência explica pelo raio n, como o esforço da atenção - tinham um olharzinho redondo e inexpressivo. Que diriam os coitados, santo Deus do Futuro?

- Neste meio de adivinhas, quiromantes e sonâmbulas é melhor ser impassível - dizia Mme. Matilde. - Às vezes protegem amores, são casas ambíguas.

- Mas as suas experiências?

- Pratico o sonambulismo como as cartas, a telepatia e a quiromancia, indo diretamente à alma que nós temos no fundo. Tudo é domínio. As últimas experiências do meu domínio tive-as com o conhecido pintor Hélios Seelunger. Curei o uma vez com água magnetizada. Desde então dizia-lhe às 2 horas de tal dia o senhor sofrerá um choque. Era tal qual.

Noutro dia sofria o choque. Fui eu de resto que lhe desvendei o futuro e a sorte nas mãos.

- E a transmissão de pensamento?

Já em Botafogo transmiti idéias a criaturas no Engenho Novo. Conhecem essas experiências poetas como Luís Edmundo, o padre Severiano de Resende, pintores como Amoedo. A minha amiga D. Adelina Lopes Vieira também as conhece.

Lembrei-me então de que Mme. Matilde era também literata.

- Mas as cartas?

- Quer vê-las?

Tocou o tímpano, apareceu um pequeno loiro com um sarcófago de prata em relevo. Mme. Matilde - a princesa para os íntimos - abriu-o com cuidado, e de dentro numa sombria apoteose de ouros e cores, as cartas do tarot, a papesse, o doido, o ás de ouro, o enforcado, o bateleur escamoteador surgiram tenebrosamente.

Mãos estendiam moedas de ouro, o ouro cintilava, em altos montes figuras sinistras apareciam. E estava ali a consolação universal, a consolação dos pobres e dos potentados! Nas mãos delicadas da feiticeira último grito rolava numa série de iluminuras a miragem enganadora do Futuro. Ela estendia as cartas nas luzes e eu recordava a origem antiga dessa doce ilusão, a vinda dos Boêmios.

- Quem sois vós?

- Sou o duque do Egito e venho com os condes e barões.

- Quem vos traz?

- A que precede o nosso cortejo e lê nos livros coloridos de Hermés o destino do mundo, a rainha das Cabalas, a sublime senhora do fogo e do metal! E em frente à multidão abriam o tarot como quem rasga o céu, o consolo infinito dos boêmios.

Eu estava ali como os camponeses da época de Carlos VI diante da senhora do metal - apenas, tanto a rainha como eu, um tanto mais descrentes.

Então curvei-me, depus o beijo que há muito sentia nos lábios, o beijo da devoção, na sua mão perfumada.

- Como em Paris! - fez ela, deixando que os meus lábios roçassem a extremidade dos seus dedos.

- Como na hora de sempre - murmurei -, o Medo, diante do Futuro.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 07 de outubro de 2021

IDÍLIO RETROSPECTIVO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

IDÍLIO RETROSPECTIVO

Raul Pompéia

 

 

 

Jamais dous entes se amaram tanto.

Um era para o outro, e ambos para o amor; um amor egoísta, feroz, exclusivo, selvagem, adorável, único.

Tanto ardor era um perigo.

As fogueiras imensas correm sempre o risco de morrer depressa.

Mas aquele amor parecia inextinguível como o fogo de Vesta.

Durante o dia, viviam na comunidade do seu afeto, idolatrando-se mutuamente, com toda a energia de adoração que o olhar possui. Durante a noute, a ilusão do sonho prolongava deliciosamente a ventura dos dias...

Depois, separaram-se, por uma fatalidade... Cada um sepultou religiosamente no mais sagrado recôndito de sua alma a relíquia rara e santa daquela paixão...

Veio então essa cousa terrível que se chama o tempo...

Um ano... dous anos... quarenta anos passaram-se sobre aqueles peitos.

E cada ano que passa é uma túnica de pedra que reveste os corações.

Ela passara quarenta anos no Sul, ele os passara no Norte.

Agora encontravam-se os velhos.

Ela começava a ficar corcunda, a multidão dos netinhos comprimia-se-lhe timidamente nos joelhos, pedindo bênção. O formoso rosto de outrora era uma ruína então; sentia-se, a subir, a hora dos anos. Aqueles lábios que mal se viam, tinham saudade dos lábios de quinze anos, que tão lindos sorrisos souberam fazer... Apenas os olhos, macios como a luz da lua, os dous grandes olhos, eram os mesmos ainda.

Parece até que as sobrancelhas de prata os faziam mais belos. Restava essa compensação.

Às ruínas daquele rosto ficara a doce consolação do luar daqueles olhos..

O venerando sexagenário arredou afetuosamente as e magras da avó e colo crianças, tomou as mãos rugosas as longamente aos lábios.

Beijava, nas rugas daquelas mãos, a suave recordação dos bons idílios dos vinte anos.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 06 de outubro de 2021

O ENFERMEIRO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O ENFERMEIRO

Machado de Assis

 

 

 

Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.

Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras coisas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu- me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol. nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.

Já sabe que foi em l860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo. - quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava. delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao Coronel Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou- me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.

Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dois deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.

Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dois olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumino-lhe as feições. que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dois eram até gatunos!

- Você é gatuno?

- Não, senhor.

Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias.

No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.

Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dois ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.

- Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo. Procópio?

- Qual o quê!

- E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu vivamente, arregalando os olhos.

Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d'asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário. ia ficando.

Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.

Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram- me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.

Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio; o prato foi cair na parede, onde se fez em pedaços.

- Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.

Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d'Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.

Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava uma vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!

Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa, na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. - "Maldita a hora em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.

Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a urna recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro, espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.

Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.

A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma coisa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:

- Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.

Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da meia-escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...

- Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia.

E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E, elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n'alma!" E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...

Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma coisa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.

- Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.

- Não sei, mas era rico.

- Realmente, provou que era teu amigo.

- Era... Era...

Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma coisa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas.

Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime...

Crime ou luta? Realmente, foi uma luta em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéia. E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra coisa. Fixei-me também nessa idéia...

Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei- me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.

- Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.

Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí advogado; as coisas correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me coisas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero...

- Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.

E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu, sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando.

As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o plano primitivo; distribuí alguma coisa aos pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dois contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai.

Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...

Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados."


Literatura - Contos e Crônicas terça, 05 de outubro de 2021

O AMBICIOSO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O AMBICIOSO

Humberto de campos

 

 

 

A Mesopotâmia estava, já, povoada de animais de toda a ordem, quando Jeová resolveu, uma tarde, aperfeiçoar a sua obra dos sete dias.

 

— Tudo isso — pensava o Criador — está muito bem. Urge, entretanto, favorecer estes viventes, facultando-lhes um ornamento natural com que se embeveçam, e que seja, no mundo, o objeto dos seus cuidados.

 

E chamando, com a sua voz poderosa, o anjo Gabriel, mandou que ele preparasse, nas margens do Eufrates, alguns quilômetros de cauda, de diversas grossuras e de diversos feitios, para ser distribuída, na manhã seguinte, pelos seres recém-criados, — à semelhança do que fazem, hoje, com os cordões honoríficos, alguns governantes sem dinheiro.

 

No dia seguinte, pela manhã, a várzea do Éden ressoava de guinchos, de uivos, de gritos, de berros, de bramidos, de um alarido, enfim, que fazia tremer a terra. Eram os gatos, os leões, os cães, os tigres, os coelhos, a animalidade inteira, em suma, que acorria de toda a parte, na ânsia de receber o seu prêmio.

 

Sentado sobre um pequeno outeiro resplandecente, com os rolos de cauda amontoados ao lado, o Criador ia chamando, um a um, os animais aglomerados na campina.

 

— Leão! — gritou.

 

O quadrúpede formidável aproximou-se, arrastando, humilde, pelo solo fresco, a juba monstruosa, e recebeu dois metros de cauda, da mais grossa, que prendeu, imediatamente, à extremidade do espinhaço.

 

— Macaco! — chamou.

 

O animal deu um pulo, chegando-se.

 

— Dê-lhe metro e meio da cauda nº 2! — ordenou Jeová ao anjo Gabriel.

 

E assim foi distribuindo, equitativo, pelos outros bichos, dando meio metro aos cachorros, um metro aos tigres, vinte centímetros aos gatos, um metro aos bois, e, desse modo, consecutivamente.

 

Em certo momento, porém, chamou o Homem, entregou-lhe a sua parte, que era, mais ou menos, um metro.

 

— Tome! — exclamou.

 

— Só isso? — estranhou o ambicioso, com desdém.

 

Jeová encarou-o, irritado, mas, pensando em vingança ainda mais terrível, ordenou:

 

— Então, espere aí.

 

O homem ficou de lado, aguardando a nova chamada, e a distribuição continuou, sendo contemplados, então, na proporção das necessidades, o coelho, o gambá, o carneiro, o bode, o veado, o lobo, toda a bicharada, finalmente, que havia no Paraíso.

 

Aflito, retorcendo as mãos, o homem olhava o desenrolar dos rolos de corda viva, notando que ia ficar sem a sua, quando, de súbito, implorou:

 

— E a minha, Senhor?

 

Dos quilômetros de cauda fabricados restavam, apenas, duas pontas pequeninas, de dois ou três centímetros, que o mísero pediu, arrependido:

 

— Dá-me, ao menos, uma destas sobras, meu pai!

 

— Destas? Não. Esta aqui é do tatu.

 

— E aquela, Senhor?

 

— Aquela? É da cotia!

 

Vendo-se assim preterido, como pena da sua ambição, o homem deu meia volta, e afastou-se, contrariado.

 

E daquilo que foi, em verdade, uma punição, fez ele, depois, na terra, o motivo do seu orgulho...

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 03 de outubro de 2021

INCORRIGÍVEL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

INCORRIGÍVEL

Machado de Assis

 

 

A Igreja ficava perto. D. Leocádia vestiu-se e dirigiu-se para lá.

            Quem visse essa bela viúva de trinta e dois anos, magra, alta, corada, sem nenhuma cor de tristeza no aspecto, menos ainda de ascetismo, muito adornada de rendas, que, posto que roxas, pareciam feitas para a mais virginal das criaturas, - não acreditaria que ela ia buscar à igreja, não digo uma consolação, que é pouco, mas um refúgio e uma força.

            Pois ia. Meia hora antes tinha recebido uma carta de outra pessoa, moça de vinte e sete anos e solteira. A carta era de cólera e produziu cólera. Pelo assunto? Não; não era, pelo assunto, que não passava de um simples desacordo sobre não sei que história de teatro lírico. Então, pelos termos? Entendamo-nos, os termos eram duros, mas não eram a causa. A causa jazia em ambas, eram os belos olhos de um cavalheiro que ambas cobiçavam e que as cortejava ao mesmo tempo. Nenhuma delas o declarou nunca à outra; mas ambas sentiam-se inimigas. Uma e outra pegavam do primeiro pretexto que lhes ficou à mão, e trocaram muitas palavras cruas e decisivas.

            A última carta de D. Leocádia era da véspera, e trazia coisas extraordinárias. Candinha gastou uma noite inteira em meditar o que lhe diria e compôs uma epístola por modo singular, tomando nota das palavras que lhe iam lembrando; e só depois de ter um arsenal delas é que pôs a pena no papel. Para que transcrever a carta? Seria então necessário e equitativo transcrever a outra, e depois outra e mais outra, e não acabávamos mais; acrescendo que o objeto deste escrito não é especialmente esse.

            O que importa saber é que D. Leocádia recebeu a carta e ficou alucinada. Fez, só consigo, mil desatinos, mordeu o lenço, quebrou um vaso, bateu com o pé, feriu o ar com punhaladas, e afinal, quando não podia mais, desatou a chorar. As lágrimas aliviaram-lhe o coração, mas não o libertaram inteiramente da aflição que o agitava, nem ainda menos lhe tiraram da cabeça a memória da rivalidade da outra.

            Já daqui se adivinha que ela amava muito ao rapaz anônimo, objeto de tanta indignação. Ou, se não o amava muito, é certo que queria casar com ele, o que vinha a dar na mesma. Entretanto, não era só amor que ela trazia em si, - ou só amor humano. D. Leocádia era um composto de curiosidades terrenas, e muita devoção. Tinha a devoção sincera, real e profunda, filha não só da educação, mas do próprio temperamento dela. Nos momentos de crise, D. Leocádia pensava no céu, e corria para ele.

            Foi o que fez agora. Vestiu-se e foi para a igreja. Era a hora da missa, e havia algumas pessoas, não muitas; senhoras poucas. Ainda assim, para que não a distraíssem, correu o véu pelo rosto, e foi ajoelhar-se a um canto.

            D. Leocádia rezou fervorosamente; pediu a Deus paz do coração. Não pediu perdão das culpas, porque em si mesma achava que não as tinha, e já isso era uma rebeldia; mas havia mais. A prece foi atalhada, em alguns pontos, por maus pensamentos. Os termos ruins da carta de Candinha ressoavam-lhe no espírito, donde se podia ver que não esquecera nada. Não admira que não achasse toda a consolação que viera procurar.

            Acabou de rezar e sentou-se. No momento em que levantava um pouco o véu para fazer o sinal da cruz, duas outras senhoras, que estavam defronte, viram-lhe parte do rosto, e uma pareceu conhecê-la.

            – É ela! Exclamou. Não lhe dizia?

            – Sim, parece que é.


            – Não há dúvida; vi agora a cara. Você já sabe o negócio?

            – Que negócio?

            – O negócio do Reginaldo.

            – Não.           

            – Não?

            – Que Reginaldo? O primo da Candinha?

            – Sim, esse mesmo. Você sabe que a Candinha gosta dele, e ele faz-lhe festas. Pois a Leocádia parece que também anda namorada.

            – Também?

            – Dizem todos, e parece mesmo que já as duas não andam em boa harmonia; o que eu estimo bem.

            – Por quê?

            – Não posso suportar esta Leocádia; parece criança. Você sabe o que ela me fez, não sabe? A tal senhoria da chácara...

            Era questiúncula a propósito de uma chácara, pretendida por ambas. Não conto a versão desta senhora, porque seria preciso contar a da outra, e então ia longe, ou não dizer senão uma o que seria injustiça. Fiquemos aqui. A verdade é que as duas não andavam bem; e, conquanto se falassem, detestavam-se.

            D. Leocádia não olhava para elas; olhava para o céu. Verdadeiramente era para o céu. Sentada no banco, à espera que a missa começasse, tinha o coração nas mãos de Deus; encontrara a paz. A corda mística vibrava fortemente, e toda a terra estava aniquilada. D. Leocádia já não pensava mesmo no namorado, menos ainda na rival. Com os olhos no altar, via a imagem de Cristo, e nutria-se daquele sangue.

            Entretanto a missa demorava-se; e D. Leocádia olhou em volta de si. Viu as outras duas damas, e conheceu-as. Passou-lhe um frio pela espinha. Uma daquelas, a da chácara, também olhou para ela, e parece com alguma coisa no rosto que não agradou à outra; pode ser também que não fosse nada. D. Leocádia, porém, que a detestava, não pode deixar de fitá-la com um gesto de desprezo. Posto que tivesse o rosto coberto, deu à cabeça um certo movimento, que fez adivinhar a expressão da fisionomia; e foi então que a outra correspondeu de igual maneira.

            A missa demorava-se; mas o ódio, o despeito, os interesses mesquinhos trabalhavam antes dela, e o coração de D. Leocádia foi perdendo a paz. Ela recordou tudo, tudo, as palavras que a outra dissera dela, o mal causado, as raivas engolidas, e o clangor da guerra acordou todas as fibras daquele organismo.

            Se a missa viesse! Mas a missa demorava-se, nem padre, nem Deus, nada; era só e somente a rival que falava em segredo para outra, olhava depois para D. Leocádia, ora sorrindo, ora indiferente, ora com um gesto de fastio... Fastio por quê? D. Leocádia tremia de raiva. Não podia ir ter com ela, nem queria; entretanto, a raiva ardia-lhe no coração. Tinha ímpetos, que sufocava, e olhava para outro lugar, para a porta da sacristia, a ver se o padre...

            Mas a missa não vinha. D. Leocádia gastava três, quatro minutos, sem olhar para elas. Depois, vinha-lhe um certo desejo de ver se ainda a fitavam, e pouco a pouco, disfarçadamente, voltava a cabeça. Dava com elas, que faziam a mesma coisa, e o coração sangrava-lhe aos golpes de uma unha invisível... Pobre incorrigível! Era a unha do diabo. Levantou-se exaltada, e saiu pela porta fora. Não achava a paz, porque a guerra estava nela perpetuamente.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 02 de outubro de 2021

OS MARONITAS (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

OS MARONITAS

João do Rio

 

 

 

O povo maronita, dizia o papa Benedito, é como uma flor entre os espinhos. Se o pontífice notável tinha esta doce frase para pintar os homens do monte Líbano, os que lhe sucederam guardaram tão perfumada imagem, e hoje, quando se fala dos maronitas, logo se recorda a flor e os espinhos antigos. Tudo, porém, neste mundo tem o vinco fatal do destino. A frase dos papas tornou-se profética e através da vida imensa, os de Marun continuam a perfumar a crença impoluta entre os espinhos das hostilidades.

Os maronitas, gente extremamente religiosa, habitam a Síria e descendem dos Aramilas, filhos de Aram, de Sem, de Noé.

Ascendência tão digna de respeito só os preparou para um longo e pungente sofrer. Desde os tempos dos Apóstolos, dizem os Atos no versículo 22 do capítulo XV, eram cristãos, conservando a fé ortodoxa havida do príncipe dos Apóstolos no ano 38 da era de Jesus Cristo. Quando no quarto século começaram a aparecer no Oriente as heresias e as doutrinas falsas, protegidas pelos soberanos coroados de pedrarias, impostas pelas armas, e a fé e a soberania ao mesmo tempo vacilavam, S. Marun, chefe dos eremitas da Síria, saiu de sua toca de cilícios e orações e veio salvá-los.

- Quem é esse homem de grandes barbas, meio roto? indagavam os homens, vendo a figura ressurgida do santo sem pecado.

S. Marun não respondia; seguia pelas estradas cheias de sol, na atmosfera de milagre do azul sem mancha, e pregava a doutrina pura, exortava o povo a conservar a sua verdadeira fé.

- Acredita sempre em Deus, tal qual te ensinaram os Apóstolos, e conservarás a tua liberdade!

A gente, que dos seus lábios ouvia as palavras ungidas pela meditação contínua, seguia num novo esplendor de crença, em cada coração a esperança brotava, e em pouco tempo o povo da província do monte Líbano era chamado maronita. Os heresiarcas quiseram caluniá-lo, mas Marun era puro como o cristal. S. João Crisóstomo, o boca-d'oiro, na carta que lhe escrevia, rogava que por ele orasse, e a ironia como a calúnia fenderam-se de encontro ao seu broquel de bondade.

Quando a sua alma irradiou, deixando o invólucro terreno, o povo maronita tinha inabalável a crença para suportar todas as sangrentas perseguições, e tem sido desde então o mesmo ordeiro e persistente auxiliar da obra divina.

Durante as cruzadas combateu ao lado dos cristãos contra os ímpios. Ao aproximarem-se os exércitos, desciam da montanha, alimentavam e vestiam os cruzados nus e com fome. Sempre que os turcos entravam sedentos de sangue pelo seu território, sofriam como mártires o sacrifício sem protestar. O ódio do Maometano seguia-os, entretanto, na vida simples e indolente dos mosteiros. Em 1860 os druzos, povo pagão e feroz, recordando velhos ódios religiosos, atiraram-se subitamente sobre os pobres maronitas, traídos e abandonados.

A carnificina foi horrenda. A França então, sempre benevolente para os cristãos do Oriente, mandou uma esquadra às águas do Levante, forçando o Turco a modificar o governo do Líbano e a dar-lhe uma certa autonomia. Desde essa época o governo é cristão nomeado pelas sete grandes potências européias, a câmara dos representantes faz-se por eleição livre e o chefe da policia deve ser cristão. O chefe da polícia em todos os povos do Oriente representa um papel formidável.

Extremamente religiosos, os maronitas dependem civil, militar e religiosamente, em qualquer parte em que se achem, dos sacerdotes, e a hierarquia da sua igreja compõe-se de um prelado, com o título de Patriarca de Antióquia e de todo o Oriente, de doze bispos diretores de doze dioceses e de um número infindável de sacerdotes inteligentes e bons.

A intervenção européia, entretanto, espalhou pelo mundo a flor pontifícia. A imigração esvazia aos poucos o Líbano. Não se pode viver com farturas em terras tão antigas, as autoridades conservam a influência aterradora do Sultão. Os que primeiro saíram, com os ortodoxos e outros crentes de Jesus, escreveram chamando os que ficavam, a perspicácia maometana facilitou a emigração para enfraquecer os libertos da sua prepotência e os maronitas vêm para os Estados Unidos, para a Argenúna, para o Brasil, num lento êxodo...

Nós temos uma considerável pétala da celebrada flor. Uma das nossas maiores colônias hoje é incontestavelmente a colônia síria. Há oitenta mil sírios no Brasil, dos quais cinqüenta mil maronitas. Só o Rio de Janeiro possui para mais de cinco mil.

Quando os primeiros apareceram aqui, há cerca de vinte anos, o povo julgava-os antropófagos, hostilizava-os e na província muitos fugiram corridos à pedra. Até hoje quase ninguém os separa desse qualificativo geral e deprimente de turcos. Eles, todos os que aparecem, são turcos!

Os sírios, arrastados na sua imensa necessidade de amizade e amparo, davam com a muralha de uma língua estranha, num país que os não suportava. Agremiaram-se, fizeram vida à parte e, como a colônia aumentava, foram por aí, mascates a crédito, fiando a toda a gente, montaram botequins, armarinhos, fizeram-se negociantes. Quem os amparou? Ninguém! Só, por um acaso, Ferreira de Araújo, o Mestre admirável, escreveu defendendo-os. Os sacerdotes maronitas respeitam-lhe a memória, e na data da sua morte rezam-lhe missas por alma, guardando delicadamente uma gratidão duradoura.

No mais, a hostilidade, os espinhos da frase papal.

Há nessa gente operários hábeis, médicos, doutores, homens instruídos que discutem com clareza questões de política internacional, jornalistas e até oradores. A vida é dura, porém; jornalistas e doutores vendem alfinetes e linhas em casas pouco claras da rua da Alfândega, do Senhor dos Passos, do Núncio e dos subúrbios. A totalidade ainda ignora o português!

Conversei com alguns maronitas, sempre de uma amabilidade penetrante. Um deles, dando-me a satisfação da sua prosa torrencial, falou como um estrategista da guerra russo-japonesa. Esse homem não falava, redigia um artigo de jornal com a retórica empolada que fez a delícia dos nossos pais e ainda hoje é a força do jornalismo dogmático. Eu ouvia-o de lábios entreabertos.

- Se a justiça de Deus não desapareceu, se a vida humana decorre dos desejos da divindade, é possível crer que os japoneses possam vencer?

- Oh! não!

Eu respondera, como no teatro, mas estava interessado por esses organismos simples, criados na chama de uma crença inabalável, desses românticos do Oriente.

Todos são feitos de exagero, de entusiasmo, de amor e de ilusão. Os dois jornais sírios têm os títulos simbólicos e extremos: - A Justiça, A Razão. Os homens naturalmente perdem o limite do natural. Numa outra casa em que sou recebido, um gordo cavalheiro preocupa-se com o problema da colonização.

- A colonização síria, diz, é a melhor para o Brasil. Os brasileiros ainda não a compreenderam. O sírio não é só o comerciante, é também agricultor, operário. Desprezam-nos? Este país não vê que conosco, povo tranqüilo e dócil, não poderia haver complicações diplomáticas? Os espanhóis, os portugueses, os italianos enriquecem, partem, pedem indenizações. Nós, pobres de nós! não pedimos nada, queremos ser apenas do Brasil.

Não respondo. Talvez bem cedo os sírios sejam assimilados à família heterogênea da nossa pátria. Estas criaturas têm qualidades muito parecidas com as dos brasileiros.

Vários negociantes que comigo discutem, porque os sírios discutem sempre, são como jornais retóricos e brandos; diziam naturalmente:

- No Amazonas perdi há pouco 400 contos. A colônia síria teve na baixa do café um prejuízo de 70 mil contos. As últimas remessas de fazendas elevam-se a 200 contos.

A princípio eu os acreditei um bando de Vanderbilts, falando com desprendimento do ouro e das riquezas. Mas não. Um sacerdote amigo nos desfaz o sonho. Há fortunas restritas. A totalidade porém tem relações com o alto comércio, compra a crédito para vender a crédito aos mercadores ambulantes do interior e às vezes a situação complica-se, quando lhes falta o pagamento dos últimos, tudo por causa do exagero, a mania de aparentar riqueza. Cada cérebro oriental tem um Potosi nas circunvoluções.

- Os sírios chegam, ganham dois mil réis por dia e já estão contentes. Nunca serão verdadeiramente ricos, porque aparentam ter oito quando apenas têm dois.

Este feitio os há de fazer compreendidos dos brasileiros.

Mas os maronitas, sob a proteção do velho santo austero, são essencialmente bons, de uma bondade à flor da pele, que se desfaz em gentilezas ao primeiro contacto com um bombom. Os homens falam sempre, as mulheres olham com os seus líquidos olhos insondáveis e por todas essas casas, há, inseparável da vida, o mistério da religião, no amor que as mulheres, algumas inefavelmente belas, proporcionam, nos negócios, nas idéias e nas refeições. Quando um maronita enferma, a primeira coisa que faz é chamar um padre para se confessar; quando um negócio vai mal, aconselha-se com o sacerdote, só casa pelo seu rito, o único verdadeiro, e trabalhando para viver, funda irmandades, colégios e pensa em edificar capelas.

De 1900 data a fundação da Irmandade Maronita, posterior a outras duas que se desfizeram. Foram sócios fundadores: Dieb Aical, Arsanius Mandur Galep Toyam, Seba Preod Curi, Miguel Carmo, Acle Miguel, João Facad, Antonio Nicobá, Antonio Kairur, Bichara Bueri, Gabriel Ranie, Salbab, José Chalhub e Bichara Duer. Brevemente abrirá as suas portas o colégio dos Jovens Sírios.

Apesar da permissão para dizer missa em todas as igrejas católicas e de celebrarem aos domingos na Saúde e em Cascadura, já compraram o terreno na rua do Senhor dos Passos para edificar a capela maronita, e a propaganda se faz mesmo entre os sírios ortodoxos e maometanos, porque uma ordem do Papa lhes indica que pela bondade façam voltar à crença única as ovelhas tresmalhadas.

Atualmente há três padres maronitas em São Paulo e quatro no Rio, os Revs. Pedro Abigaedi, Pedro Zaghi, Luiz Trah e Luiz Chediak. Andam todos de barba cerrada, usam óculos e são suavemente eruditos. Trah, por exemplo, esteve oito anos na Bélgica e discursa como um regato tranqüilo; Chediak é professor, e cada palavra sua vem repassada de doçura. É sabido que a reconciliação dos maronitas com a igreja romana data de 1182. A reconciliação foi incompleta a princípio, mas hoje é quase integral. Os padres, podendo casar, abandonam essa idéia; há o maior respeito pelo Sumo Pontífice, e a política do Vaticano consegue aos poucos outras reformas.

Como os padres me levassem a ver o terreno donde a igreja maronita surgirá, interroguei-os a respeito do rito da sua seita.

- É quase idêntico ao romano, dizem-me. A liturgia é redigida em siríaco. É uma necessidade. Há sírios que sabem de cor o sacrifício da missa. Talvez o mesmo não aconteça numa igreja romana, que conserva o latim.

- A começar pelos sacristãos.

- Há além disso as missas privadas, a regra é a de Santo Antônio e seguimos o martirológio de S. Marun.

- Dizem que os maronitas foram a princípio monotelistas...

- Dizem tanta coisa no mundo!

Eles tinham parado diante de uns velhos muros.

- Será aqui a igreja?

- Querendo Deus!

E não sei porque, vendo-os tão simples diante das paredes carcomidas, esses sacerdotes de um povo religiosamente bom, eu recordei a frase profética dos papas. O povo maronita é como uma flor entre espinhos, mas uma flor cujo viço é eterno. Os espinhos continuam persistentes mas a velha flor espalha-se pelo mundo, recendendo a mais doce ternura e a mais profunda crença...


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 01 de outubro de 2021

HISTÓRIA CÂNDIDA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

HISTÓRIA CÂNDIDA

Raul Pmopéia

 

 

 

Vou contar-lhes hoje uma história cândida, a história da Rachadinha. Cândida pela heroína, não tanto pelo assunto.

Rachadinha chamava-se assim por ser filha de João Vasco Rachado, correeiro, que por sua vez possuía esse extravagante apelido por causa de um traço de família que de pais a filhos distinguia a sua gente do resto da humanidade. A natureza, humorística que se diverte a rachar beiços, ranarizes, rachar queixos, como é tão comum, rachava-lhes a orelha ao nascer com um pequenino talho.

Vou contar-lhes a história de Rachadinha, uma pobre menina que perdeu, quer dizer, que perderam.

Era cândida, disse eu, antes ingênua.

Nada conheço mais arriscado, e logo arriscado para dous, nada mais arriscado do que uma menina ingênua. Rachadinha (não lhe sei outro nome) era ingênua. De sorte que se aplicava a fazer ingenuidades, enquanto o pai, correeiro, fazia correias.

Namorava, por exemplo, ingenuamente, quer dizer, deixava-se namorar. Passava horas e horas, numa tripeça de pinho à porta da loja, vadiando infinitamente, de saias curtas e tamanquinhos, sem meias, prendendo os calcanhares dos tamancos ao travessão da tripeça.

Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo de escola pública que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo. Lia muito jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos, baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma situação dramática que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e ia desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin.

Com uma tal facilidade de critério, não custa compreender como a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os dias sem atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal, abstruso e confundido. Um meio sono de preguiça e ininteligência, que lhe era suave, por isso que o pai, que não tinha recursos para dar-lhe gozos, caprichava esforços para poupar-lhe a mínima contrariedade.

Passava assim o melhor do tempo, ali, na tripeça, como um mostrador de porta, escandalizando, perturbando o trânsito com a presença de sua beleza, enchendo a rua, o arrabalde, com a irradiação perene da sua reputação de formosíssima.

E era bonita a valer, o diabo da pequena! Vasco Rachado, seu pai, era brasileiro e mestiço. A mãe era uma italiana, já morta, que alguns tinham conhecido na loja e que afirmavam ter sido bela. A Itália dera-lhe os olhos negros, onde morava a febre da campanha de Roma, onde vivia a lenta insônia do vulcão de Nápoles, onde nadava a onda tarda dos canais venezianos e a gôndola sonolenta; o Brasil fizera o resto: a pele de pêssego que lhe forrava as formas, mil frutos tenros despidos para vesti-la, e o sabor acre, de aguar a boca, que lhe transudava a beleza, como a impressão reflexa da pitanga, do tamarindo, do cajá dourado... Façam lá por sua conta um juízo como possam, daquela soberba moreninha a ponto de quinze anos, que um banho róseo de sangue e saúde fazia arder, sobre a tripeça, como um braseiro de corações.

O pai venerava-a, pobre operário sórdido, com acanhamento, como confundido de ser pai daquele milagre.

Ela, entretanto, ingênua, nada sabia disso. Sempre a mesma. Bela! Era a voz dos outros; pouco se lhe dava. Também, havia na loja um aprendiz levado, que, quando o mestre estava fora, vinha devagarinho, por trás dela na tripeça e repuxava-lhe o paletó para beijá-la na espinha, no meio das costas. E ela nem percebia a cócega. Que tinha ela com isso? O beijo era dos outros.

Havia tempo em que o pintor Juvenal, vizinho da frente, não lhe tirava de cima os olhos. Ela não percebera ainda. Mesmo por isso, não se dava ao trabalho de rebater a barra da saiazinha impúbere que ainda usava, quando a posição na tripeça descobria-lhe mais algumas linhas de canela.

Sucedeu que um dia, o pintor Juvenal, passou pela tripeça e entrou na loja de João Vasco. Vinha trazer encomendas.

Preparava-se para uma excursão artística no campo, donde pretendia tirar paisagens d'après nature. Queria que João Vasco lhe fizesse umas pastas ou bolsas especiais para o transporte de objetos de sua arte e, além disso, que lhe fixasse uma correia à caixa das tintas, de modo que fosse possível levá-la a tiracolo.

— Pregue-me aqui assim, assim... Olhe assim, deste jeito...

João Vasco observou que era melhor o contrário, parecia mais natural com as dobradiças da caixa para baixo.

— Ora, tem razão! Estava eu pedindo uma asneira...

E estava besta, efetivamente, o nosso Juvenal, sentindo Rachadinha a dous passos dele, respirando-a como um aroma bêbado, no cheiro das graxas da oficina, no fedor das grandes pelancas de couro curtido, que caíam tesas pelas paredes ao redor. Rachadinha, entretanto, nem sequer o vira entrar, preocupada com um rodapé muito interessante do Diário de Notícias, que tinha outro embaixo, do Novidades, que ia servir, daí a pouco, de continuação.

Depois desta entrada, houve outras visitas do pintor Juvenal.

Depois das duas bolsas da primeira encomenda, seguiram-se outras bolsas, uma série inacabável de bolsas...

E ele vinha saber do trabalho e tomava uma banca para admirar a perícia do correeiro...

As paisagens d'après nature, já se sabe, adiadinhas para o largo futuro. Na ocasião, muito mais o preocupava, d'après nature, um desenho de figura.

— Tento contigo! diziam as murmurações da rua inteira. Não dê cuidado, replicava ele, nós cá, pintores, é só plástica...

Quando o correeiro percebeu o sentido exato da encomenda de Juvenal, abriu-se-lhe um grande claro de alegria n'alma.

Desde muito lhe ocorrera a idéia de um noivo para a filha. E ele o desejava intimamente como um guarda para aquele tesouro que lhe não cabia nas mãos, alguém que o libertasse daquela esplêndida pessoazinha, cuja presença ali o envergonhava de ser humilde, daquele adorável trambolho que lhe vexava a liberdade de ser pobre.

Aceitou então o pintor, exultando. Passou a recebê-lo no interior da loja, na saleta de jantar, onde havia, perto de umas vidraças de área, uma mesa preta, de abas pendentes como orelhas de cão, que se erguiam para o serviço. Bebiam. Palestravam em boa companhia, Rachadinha presente sempre, em cândido silêncio ou cortando a palestra com disparates ingênuos.

Passou depressa a facilitar a qualquer hora solidões de noivados aos supostos noivos. Junto da mesa, ficaram os dous calados da primeira vez. A menina, abstrata, enrolando no dedo uma ponta de cordel, Juvenal, incendiado, na contemplação ardente da menina. Fora, na oficina, ouvia-se o correeiro batendo a sola.

Depois familiarizaram-se. Rachadinha mostrava a Juvenal bonecas antigas, malfeitas e sujas, trazia-lhe álbuns infantis para mostrar as pinturas, metia-lhe nas mãos agulhas de crochet e novelos para ver o que saía. Tudo a sério, com um sorriso quando muito, na sua maneira inocente de criança grave; sem reparar que o pintor beijava-lhe as mãos, os pulsos, pegava-lhe a cintura sem reparar que ela mesma tocava-lhe ao outro joelho com joelho, quando ensinava o chochet e pousava-lhe os seios nos ombros para mostrar estampas.

Juvenal bebia em êxtase toda aquela simplicidade deliciosa.

Uma noute que ela estava mais calada e mais distraída que de costume, Juvenal ouviu-lhe bruscamente:

— Não acha esquisito?... nós aqui sozinhos!...

Fora, na oficina, ouvia-se João Vasco, batendo a sola do serão.

Essa pergunta a Juvenal alvoroçou-lhe um fogo novo em toda a natureza.

— Não acho, não, disse em tom de grande calma... Demais, sabe... eu sou pintor...

— Ah, então os pintores?...

Juvenal foi deixando gradualmente a calma.

— Sim, sim... tudo!... Sou pintor, queridinha. Não sabes?... A pintura é inocente. Nós, pintores, temos para as mulheres uma admiração pura. Inteiramente pura, meu bem! Os outros buscam amor: nós queremos modelos. Uma menina... que fortuna para nós! Despimo-la, meu anjo! acomodamos num cavalete, num estrado, numa posição qualquer, e ficamos adiante, adorando a forma. Depois, temos a tela, tomamos um carvão, os pincéis... Vamos passando para a tela o feitio do corpo. Com a tinta fazemos caros cabelos, os bonitos olhos. Dai a pouco, em vez de uma bela menina há duas: a que fica no quadro para sempre, como uma cousa de se adorar, e a outra, que se veste e parte, com um beijo do artista na fronte... Estás aqui comigo... É como se não estivesses. Ah! um beijo do artista! Não sabes, anjo! anjo! o que é um beijo de artista? É sempre casto:. nós beijamos estátuas! Tens medo de mim, agora? da minha adoração platônica?!... Tens? tens medo?...

Rachadinha não entendia muito aquilo. Viu bem, contudo, que a cadeira de Juvenal caminhava para ela aos saltos, enquanto o pintor falava.

— Que é isto, exclamou surpresa, sentindo um braço brusco pegar-lhe a cintura com muita força.

— Nada de mal!... eu sou pintor, minha queridinha, murmurou Juvenal, prendendo-a e enchendo-lhe o ouvido de fios de bigode e repetidos beijos.

— Mas espere!... espere um pouco, pediu ela, relutando.

Mas o braço fechava-se cada vez mais rijo ao redor da cintura, e os bigodes ásperos arranhavam-lhe a face toda, colando cáusticos de beijos.

— Eu sou pintor!... eu sou pintor!...

Era tão sincera a veemência daquela desculpa, que Rachadinha começou a achar razão no rapaz. Desde que ele era assim pintor, ela foi cedendo...

Juvenal estava fora de si. Um lampião de gasolina no meio da mesa, de luz baixa, oferecia urna meia obscuridade cúmplice. Percebendo que a resistência decrescia da parte da moça, Juvenal, assaltou-a como uma fera. Dilacerou-lhe a roupa, para morder-lhe o seio.

— Eu sou pintor... eu sou pintor... balbuciava sem mais ligar sentido às palavras.

Do corpo da moça desprendia-se aquele cheiro de couros que o entontecera um dia; das roupas impregnadas do ambiente da oficina, crescia uma emanação grosseira, bestial de vernizes e curtume que o encarniçava.

O movimento da luta, o pudor do assalto, o calor da noute na saleta, a chama da gasolina purpureavam divinamente a carne morena da vítima. Juvenal estava perdido.

— Eu sou pintor, gaguejava em ofego. Queremos modelo... modelo... modelo...

A moça não lutava mais. Juvenal caiu com ela para o escuro embaixo da mesa, como para um abismo.

Soube ser pintor o platônico!

Na oficina, o correeiro continuava a martelar o serão.

Conclusão, a esperada. Ventre, fuga do pintor, desespero paterno, um pouco de polícia no meio, e a vida como dantes.

Rachadinha sempre a mesma... na sua tripeça. Quando alguma conhecida petulante pergunta rindo o que foi aquilo, ela apresenta uma trombinha de Santa Ingenuidade:

— Como ele era pintor...

Somente para o correeiro, ela perdeu um pouco aquela auréola de superioridade que o acabrunhava.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 30 de setembro de 2021

O DIPLOMÁTICO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O DIPLOMÁTICO

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

A preta entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa rodeada de gente, e falou baixinho à senhora. Parece que lhe pedia alguma cousa urgente, porque a senhora levantou-se logo.

- Ficamos esperando, D. Adelaide?

- Não espere, não, Sr. Rangel; vá continuando, eu entro depois. Rangel era o leitor do livro de sortes. Voltou a página, e recitou um título: "Se alguém lhe ama em segredo." Movimento geral: moças e rapazes sorriram uns para os outros. Estamos na noite de S. João de 1854, e a casa é na Rua das Mangueiras. Chama-se João o dono da casa, João Viegas, e tem uma filha, joaninha. Usa-se todos os anos a mesma reunião de parentes e amigos, arde uma fogueira no quintal, assam-se as batatas do costume, e tiram-se sortes. Também há ceia, às vezes dança, e algum jogo de prendas, tudo familiar. João Viegas é escrivão de uma vara cível da corte.

- Vamos. Quem começa agora? disse ele. Há de ser D. Felismina. Vamos ver se alguém lhe ama em segredo.

D. Felismina sorriu amarelo. Era uma boa quarentona, sem prendas nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das pálpebras devotas. Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Felismina era o modelo acabado daquelas criaturas indulgentes e mansas, que parecem ter nascido para divertir os outros. Pegou e lançou os dados com um ar de complacência incrédula. Número dez, bradaram duas vozes. Rangel desceu os olhos ao baixo da página, viu a quadra correspondente ao número, e leu-a: dizia que sim, que havia uma pessoa, que ela devia procurar domingo, na igreja, quando fosse à missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina que sorriu com desdém, mas interiormente esperançada.

Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte de cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os óculos e limpava-os com muito vagar na ponta do lenço de cambraia, - ou por ser cambraia, - ou por exalar um fino cheiro de bogari. Presumia de grande maneira, e ali chamavam-lhe "o diplomático".

- Ande, seu diplomático, continue.

Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido em percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa. Namorava alguma? Vamos por partes.

Era solteiro, por obra das circunstâncias, não de vocação. Em rapaz teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo apareceu-lhe a comichão das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celibato até os quarenta e um anos, em que o vemos. Cobiçava alguma noiva superior a ele e à roda em que vivia, e gastou o tempo em esperá-la. Chegou a freqüentar os bailes de um advogado célebre e rico, para quem copiava papéis, e que o protegia muito. Tinha nos bailes a mesma posição subalterna do escritório; passava a noite vagando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras, devorando com os olhos uma multidão de espáduas magníficas e talhes graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Saía dali excitado e resoluto. Em falta de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver algumas das primeiras moças da cidade. Também era certo no saguão do paço imperial, em dia de cortejo, para ver entrar as grandes damas e as pessoas da corte, ministros, generais, diplomatas, desembargadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens. Voltava da festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente, capaz de arrebatar de um lance a palma da fortuna.

O pior é que entre a espiga e a mão, há o tal muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo, raptava mulheres e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo mesmo, ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Chegou ao extremo de aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao voltar da parada no Largo do Paço; imaginou para isso uma revolução, em que derramou algum sangue, pouco, e uma ditadura benéfica, em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era pacato e discreto.

Aos quarenta anos desenganou-se das ambições; mas a índole ficou a mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou noiva. Mais de uma o aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas à força de circunspecção. Um dia, reparou em Joaninha, que chegava aos dezenove anos e possuía um par de olhos lindos e sossegados, - virgens de toda a conversação masculina. Rangel conhecia-a desde criança, andara com ela ao colo, no Passeio Público, ou nas noites de fogo da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro lado, as relações dele na casa eram tais, que podiam facilitar-lhe o casamento; e, ou este ou nenhum outro.

Desta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha; bastava esticar o braço com algum esforço, para arrancá-la do pé. Rangel andava neste trabalho desde alguns meses. Não esticava o braço, sem espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha alguém, disfarçava e ia-se embora. Quando chegava a esticá-lo, acontecia que uma lufada de vento meneava a espiga ou algum passarinho andava ali nas folhas secas, e não era preciso mais para que ele recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão entranhava-se-lhe, causa de muitas horas de angústia, a que seguiam sempre melhores esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira carta de amor, disposto a entregá-la. Já teve duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre espaçando; a noite é tão comprida! Entretanto, continua a ler as sortes, com a solenidade de um ángur.

Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou falam ao mesmo tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda à roda da mesa com uma pena, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas está ansioso por um amigo, que se demora, o Calisto. Onde se meteria o Calisto?

- Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas.

Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a ceia. Toda a gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa a filha do escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namorados. Ela foi à janela, por alguns instantes, enquanto se preparava um jogo de prendas, e ele foi também; era a ocasião de entregar-lhe a carta. Defronte, numa casa grande, havia um baile, e dançava-se. Ela olhava, ele olhou também. Pelas janelas viam passar os pares, cadenciados, as senhoras com as suas sedas e rendas, os cavalheiros finos e elegantes, alguns condecorados. De quando em quando, uma faísca de diamantes, rápida, fugitiva, no giro da dança. Pares que conversavam, dragonas que reluziam, bustos de homens inclinados, gestos de leque, tudo isso em pedaços, através das janelas, que não podiam mostrar todo o salão, mas adivinhava-se o resto. Ele ao menos, conhecia tudo, e dizia tudo à filha do escrivão. O demônio das grandezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas arlequinadas no coração do nosso homem, e ei-lo que tenta seduzir também o coração da outra.

- Conheço uma pessoa que estaria ali muito bem, murmurou o Rangel.

E Joaninha, com ingenuidade:

- Era o senhor.

Rangel sorriu lisonjeado, e não achou que dizer. Olhou para os lacaios e cocheiros, de libré, na rua, conversando em grupos ou reclinados no tejadilho dos carros. Começou a designar carros: este é do Olinda, aquele é do Maranguape; mas aí vem outro, rodando, do lado da Rua da Lapa, e entra na Rua das Mangueiras. Parou defronte: salta o lacaio, abre a portinhola, tira o chapéu e perfila-se. Sai de dentro uma calva, uma cabeça, um homem, duas comendas, depois uma senhora ricamente vestida; entram no saguão, e sobem a escadaria, forrada de tapete e ornada embaixo com dous grandes vasos.

- Joaninha, Sr. Rangel...

Maldito jogo de prendas! Justamente quando ele formulava, na cabeça, uma insinuação a propósito do casal que subia, e ia assim passar naturalmente à entrega da carta... Rangel obedeceu, e sentou-se defronte da moça. D. Adelaide, que dirigia o jogo de prendas, recolhia os nomes; cada pessoa devia ser uma flor. Está claro que o tio Rufino, sempre gaiato, escolheu para si a flor da abóbora. Quanto ao Rangel, querendo fugir ao trivial, comparou mentalmente as flores, e quando a dona da casa lhe perguntou pela dele, respondeu com doçura e pausa:

- Maravilha, minha senhora.

- O pior é não estar cá o Calisto! suspirou o escrivão.

- Ele disse mesmo que vinha?

- Disse; ainda ontem foi ao cartório, de propósito, avisar-me de que viria tarde, mas que contasse com ele; tinha de ir a uma brincadeira na Rua da Carioca...

- Licença para dous! bradou urna voz no corredor.

- Ora graças! está aí o homem!

João Viegas foi abrir a porta; era o Calisto, acompanhado de um rapaz estranho, que ele apresentou a todos em geral : - "Queirós, empregado na Santa Casa; não é meu parente, apesar de se parecer muito comigo; quem vê um, vê outro..." Toda a gente riu; era uma pilhéria do Calisto, feio como o diabo, - ao passo que o Queirós era um bonito rapaz de vinte e seis a vinte e sete anos, cabelo negro, olhos negros e singularmente esbelto. As moças retraíram-se um pouco; D. Felismina abriu todas as velas.

- Estávamos jogando prendas, os senhores podem entrar também, disse a dona da casa. Joga, Sr. Queirós?

Queirós respondeu afirmativamente e passou a examinar as outras pessoas. Conhecia algumas, e trocou duas ou três palavras com elas. Ao João Viegas disse que desde muito tempo desejava conhecê-lo, por causa de um favor que o pai lhe deveu outrora, negócio de foro. João Viegas não se lembrava de nada, nem ainda depois que ele lhe disse o que era; mas gostou de ouvir a notícia, em público, olhou para todos, e durante alguns minutos regalou-se calado.

Queirós entrou em cheio no jogo. No fim de meia hora, estava familiar da casa. Todo ele era ação, falava com desembaraço, tinha os gestos naturais e espontâneos. Possuía um vasto repertório de castigos para jogo de prendas, cousa que encantou a toda a sociedade, e ninguém os dirigia melhor, com tanto movimento e animação, indo de um lado para outro, concertando os grupos, puxando cadeiras, falando às moças, como se houvesse brincado com elas em criança.

- D. Joaninha aqui, nesta cadeira; D. Cesária, deste lado, em pé, e o Sr. Camilo entra por aquela porta... Assim, não: olhe, assim de maneira que...

Teso na cadeira, o Rangel estava atônito. Donde vinha esse furacão? E o furacão ia soprando, levando os chapéus dos homens, e despenteando as moças, que riam de contentes: Queirós daqui, Queirós dali, Queirós de todos os lados. Rangel passou da estupefação à mortificação. Era o cetro que lhe caía das mãos. Não olhava para o outro, não se ria do que ele dizia, e respondia-lhe seco. Interiormente, mordia-se e mandava-o ao diabo, chamava-o bobo alegre, que fazia rir e agradava, porque nas noites de festa tudo é festa. Mas, repetindo essas e piores causas, não chegava a reaver a liberdade de espírito. Padecia deveras, no mais íntimo do amor-próprio; e o pior é que o outro percebeu toda essa agitação, e o péssimo é que ele percebeu que era percebido.

Rangel, assim como sonhava os bens, assim também as vinganças. De cabeça, espatifou o Queirós; depois cogitou a possibilidade de um desastre qualquer, uma dor bastava, mas cousa forte, que levasse dali aquele intruso. Nenhuma dor, nada; o diabo parecia cada vez mais lépido, e toda a sala fascinada por ele. A própria Joaninha, tão acanhada, vibrava nas mãos de Queirós, como as outras moças; e todos, homens e mulheres, pareciam empenhados em servi-lo. Tendo ele falado em dançar, as moças foram ter com o tio Rufino, e pediram-lhe que tocasse uma quadrilha na flauta, uma só, não se lhe pedia mais.

- Não posso, dói-me um calo.

- Flauta? bradou o Calisto. Peçam ao Queirós que nos toque alguma cousa, e verão o que é flauta... Vai buscar a flauta, Rufino. Ouçam o Queirós. Não imaginam como ele saudoso na flauta!

Queirós tocou a Casta Diva. Que cousa ridícula! dizia consigo o Rangel; - uma música que até os moleques assobiam na rua. Olhava para ele, de revés, para considerar se aquilo era posição de homem sério; e concluía que a flauta era um instrumento grotesco. Olhou também para Joaninha, e viu que, como todas as outras pessoas, tinha a atenção no Queirós, embebida, namorada dos sons da música, e estremeceu, sem saber porquê. Os demais semblantes mostravam a mesma expressão dela, e, contudo, sentiu alguma cousa que lhe complicou a aversão ao intruso. Quando a flauta acabou, Joaninha aplaudiu menos que os outros, e Rangel entrou em dúvida se era o habitual acanhamento, se alguma especial comoção... Urgia entregar-lhe a carta.

Chegou a ceia. Toda a gente entrou confusamente na sala, e felizmente para o Rangel, coube-lhe ficar defronte de Joaninha, cujos olhos estavam mais belos que nunca e tão derramados, que não pareciam os do costume. Rangel saboreou-os caladamente, e reconstruiu todo o seu sonho que o diabo do Queirós abalara com um piparote. Foi assim que tornou a ver-se, ao lado dela, na casa que ia alugar, berço de noivos, que ele enfeitou com os louros da imaginação. Chegou a tirar um prêmio na loteria e a empregá-lo todo em sedas e jóias para a mulher, a linda Joaninha, - Joaninha Rangel, - D. Joaninha Rangel, - D. Joana Viegas Rangel, - ou D. Joana Cândida Viegas Rangel... Não podia tirar o Cândida...

- Vamos, uma saúde, seu diplomático... faça uma saúde daquelas...

Rangel acordou; a mesa inteira repetia a lembrança do tio Rufino; a própria Joaninha pedia-lhe uma saúde, como a do ano passado. Rangel respondeu que ia obedecer; era só acabar aquela asa de galinha. Movimento, cochichos de louvor; D. Adelaide, dizendo-lhe uma moça que nunca ouvira falar o Rangel:

- Não? perguntou com pasmo. Não imagina; fala muito bem, muito explicado, palavras escolhidas, e uns bonitos modos...

Comendo, ia ele dando rebate a algumas reminiscências, frangalhos de idéias, que lhe serviam para o arranjo das frases e metáforas. Acabou e pôs-se de pé. Tinha o ar satisfeito e cheio de si. Afinal, vinham bater-lhe à porta. Cessara a farandulagem das anedotas, das pilhérias sem alma, e vinham ter com ele para ouvir alguma cousa correta e grave. Olhou em derredor, viu todos os olhos levantados, esperando. Todos não; os de Joaninha enviesavam-se na direção do Queirós, e os deste vinham esperá-los a meio caminho, numa cavalgada de promessas. Rangel empalideceu. A palavra morreu-lhe na garganta; mas era preciso falar, esperavam por ele, com simpatia, em silêncio.

Obedeceu mal. Era justamente um brinde ao dono da casa e à filha. Chamava a esta um pensamento de Deus, transportado da imortalidade à realidade, frase que empregara três anos antes, e devia estar esquecida. Falava também do santuário da família, do altar da amizade, e da gratidão, que é a flor dos corações puros. Onde não havia sentido, a frase era mais especiosa ou retumbante. Ao todo, um brinde de dez minutos bem puxados, que ele despachou em cinco, e sentou-se.

Não era tudo. Queirós levantou-se logo, dous ou três minutos depois para outro brinde, e o silêncio foi ainda mais pronto e completo. Joaninha meteu os olhos no regaço, vexada do que ele iria dizer; Rangel teve um arrepio.

- O ilustre amigo desta casa, o Sr. Rangel, - disse Queirós, - bebeu às duas pessoas cujo nome é o do santo de hoje; eu bebo àquela que é a santa de todos os dias, a D. Adelaide.

Grandes aplausos aclamaram esta lembrança, e D. Adelaide, lisonjeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha não ficou em cumprimentos. - Mamãe! mamãe! exclamou, levantando-se; e foi abraçá-la e beijá-la três e quatro vezes; - espécie de carta para ser lida por duas pessoas.

Rangel passou da cólera ao desânimo, e, acabada a ceia, pensou em retirar-se. Mas a esperança, demônio de olhos verdes, pediu-lhe que ficasse, e ficou. Quem sabe? Era tudo passageiro, causas de uma noite, namoro de S. João; afinal, ele era amigo da casa, e tinha a estima da família; bastava que pedisse a moça, para obtê-la. E depois esse Queirós podia não ter meios de casar. Que emprego era o dele na Santa Casa? Talvez alguma cousa reles... Nisto, olhou obliquamente para a roupa de Queirós, enfiou-se-lhe pelas costuras, escrutou o bordadinho da camisa, apalpou os joelhos das calças, a ver-lhe o uso, e os sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas provavelmente gastava tudo consigo, e casar era negócio sério. Podia ser também que tivesse mãe viúva, irmãs solteiras... Rangel era só.

- Tio Rufino, toque uma quadrilha.

- Não posso; flauta depois de comer faz indigestão. Vamos a um víspora.

Rangel declarou que não podia jogar, estava com dor de cabeça; mas Joaninha veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de sociedade. - "Meia coleção para o senhor, e meia para mim", disse ela, sorrindo; ele sorriu também e aceitou. Sentaram-se ao pé um do outro. Joaninha falava-lhe, ria, levantava para ele os belos olhos, inquieta, mexendo muito a cabeça para todos os lados. Rangel sentiu-se melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem. Ia marcando à toa, esquecendo alguns números, que ela lhe apontava com o dedo, - um dedo de ninfa, dizia ele consigo; e os descuidos passaram a ser de propósito, para ver o dedo da moça, e ouvi-la ralhar: "O senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o nosso dinheiro..."

Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas não estando declarados, era natural que ela a recebesse com espanto e estragasse tudo; cumpria avisá-la. Olhou em volta da mesa: todos os rostos estavam inclinados sobre os cartões, seguindo atentamente os números. Então, ele inclinou-se à direita, e baixou os olhos aos cartões de Joaninha, como para verificar alguma cousa.

- Já tem duas quadras, cochichou ele.

- Duas, não; tenho três.

- Três, é verdade, três. Escute...

- E o senhor?

- Eu duas.

- Que duas o quê? São quatro.

Eram quatro; ela mostrou-lhas inclinada, roçando quase a orelha pelos lábios dele; depois, fitou-o rindo e abanando a cabeça: "O senhor! o senhor!" Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era tão doce, e a expressão tão amiga, que ele esqueceu tudo, agarrou-a pela cintura, e lançou-se com ela na eterna valsa das quimeras. Casa, mesa, convivas, tudo desapareceu, como obra vã da imaginação, para só ficar a realidade única, ele e ela, girando no espaço, debaixo de um milhão de estrelas, acesas de propósito para alumiá-los.

Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram todos para a janela ver sair os convidados do baile fronteira. Rangel recuou espantado. Viu um aperto de dedos entre o Queirós e a bela Joaninha. Quis explicá-lo, eram aparências, mas tão depressa destruía uma como vinham outras e outras, à maneira das ondas que não acabam mais. Custava-lhe entender que uma só noite, algumas horas bastassem a ligar assim duas criaturas; mas era a verdade clara e viva dos modos de ambos, dos olhos, das palavras, dos risos, e até da saudade com que se despediram de manhã.

Saiu tonto. Uma só noite, algumas horas apenas! Em casa, aonde chegou tarde, deitou-se na cama, não para dormir, mas para romper em soluços. Só consigo, foi-se-lhe o aparelho da afetação, e já não era o diplomático, era o energúmeno, que rolava na cama, bradando, chorando como uma criança, infeliz deveras, por esse triste amor do outono. O pobre-diabo, feito de devaneio, indolência e afetação, era, em substância, tão desgraçado como Otelo, e teve um desfecho mais cruel.

Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em quem ninguém pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao Queirós, quando este se casou com Joaninha, seis meses depois.

Nem os acontecimentos, nem os anos lhe mudaram a índole. Quando rompeu a guerra do Paraguai, teve idéia muitas vezes de alistar-se como oficial de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que ganhou algumas batalhas e acabou brigadeiro.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 29 de setembro de 2021

O SONÂMBULO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O SONÂMBULO

Humberto de Campos

 

 

 

A noite estava escura, fria, gelada, com a chuva a despencar, lá fora, os cafezais amadurecidos, quando o caboclo bateu, com a mão tiritante, à porta do casebre.

 

— Quem é? — indagou, de dentro, uma voz masculina, demonstrando na tonalidade o aborrecimento por aquele incomodo fora de horas.

 

— Sou eu! — respondeu, de fora, o viandante, o Praxedes Ferreira, antigo tocador de gado em São José do Paraíso.

 

Aberto um palmo da porta, o recém-chegado explicou-se. Ia de caminho para o Poço Fundo, e, surpreendido pelo chuveirão daquela tarde, pedia permissão para pernoitar no rancho, uma vez que não havia por ali, naquelas quatro léguas mais próximas, um lugar em que se acoitasse.

 

— Só se for no telheiro da cozinha; mas esse chove, como no meio do tempo. Serve? — observou, de má vontade, o colono Eleutério, dono do lugar e da casa.

 

— Serve! — concordou o Praxedes.

 

O colono fechou de novo a portinhola da frente, e ia atirar-se na esteira espichada no único compartimento do casebre, quando a mulher, que já ali estava encolhida, indagou, curiosa:

 

— Quem é, Lotério?

 

— Sei lá! É um camarada que vai de viaje. Mandei ele p'r'o telheiro. Tá lá.

 

— Coitadinho! — gemeu a rapariga. — Com essa chuva!...

 

E após um momento:

 

— Por que você não manda o "coitado" aqui p'ra dentro? A esteira é grande, cabe os três. Você fica no meio.

 

O Eleutério imaginou o que estaria sofrendo, lá fora, o desgraçado, levantou-se, abriu a porta que dava para o velho telheiro alfinetado de chuva, e chamou:

 

— Ó amigo?

 

— Hôi? — acudiu o outro.

 

— Entre p'ra cá. Se deite aqui na esteira, com a gente.

 

O caboclo entrou, embrulhado num velho capote que tirara do saco, e atirou-se no lugar que lhe foi indicado, separado da rapariga pelo corpo forte, atlético, vigoroso, do dono da casa. Estirou-se, embrulhou-se, e estava para dormir, quando, de repente, como quem se esqueceu de alguma coisa, bate no braço do Eleutério, avisando:

 

— É verdade, eu me esqueci de lhe dizer; eu tenho um sono muito doído, com uns sonho de home doente; dou pulo, salto, rolo no chão, faço o diabo. Por isso, não se incomode não, se eu, sonhando, passá por cima do sinhô.

 

— Você é assim? — indagou o colono, descobrindo o rosto.

 

— É verdade! — confirmou o outro.

 

— Então, é tal qual como eu. Tem vez que eu sonho que estou agarrado com um cabra doido, da minha qualidade, e quando acordo, tou no meio da casa, em pé, de faca na mão. É um perigo!

 

O caboclo ouviu a ameaça, pensou, meditou, ruminou, e, após um instante, propôs:

 

— Vamo, então, fazê uma coisa?

 

— Que é?

 

— Vamo drumi sem sonhá?


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 27 de setembro de 2021

TIRO DE GUERRA NÚMERO 35 (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

TIRO DE GUERRA NÚMERO 35

Alcântara Machado 

 

 

 

No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:

- Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir da nossa idolatrada pátria.

Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.

Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tietê.

E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Lingüiça) casou com um chofer de praça na policia.

Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d'Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.

Sua linha: Praça do Patriarca - Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.

E não queria mesmo outra vida.

Um dia porém na seção "Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle Miosótis sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:

"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R. em doce colóquio de amor.? A formosa Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata..."

Fosse Mlle Miosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os jovens defensores da pátria.

E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n.0 35.


- Companhia! Per... filar!

No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá, atrapalhando.

- Meia volta! Vol... ver!

O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela rapaziada.

- Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!

De novo não prestou.

- Firme!

Pareciam estacas.

- Meia volta!

Tremeram.

- Vol... ver!

Volveram.

- Abém!

Aristodemo era o base da segunda esquadra.

Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um.

Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens. Uma espécie de.

- Você conhece o hino nacional, criatura?

- Puxa, se conheço, Seu Sargento!

- Então você não esquece, não? Traz amanhã umas cópias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.


Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de cópias.

E o primeiro ensaio foi logo à noite.

Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas...

- Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!

Ou-viram do I-piranga as margens plácidas Da Inde-pendência o brado re-tumbante!

- Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?... é palavra... ah!... onomatopaica: RETUMBANTE!

E o hino rolou ribombando:

... a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te! E o sol da li-berdade em raios ful...

De repente um barulho na segunda esquadra.

- Que isbregue é esse aí, criaturas?

Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.

- Está suspenso o ensaio. Podem debandar.


- Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!

- Que é que você está me dizendo, Aristodemo?

- Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é porque então era... um... eu chamei ele de... eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele disse que a mãe dele não era brasileira para ele ser... o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.

- Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.

"Ordem do Dia

De conformidade com o ordenado pelo Ex.mo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n.0 81, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n.0 81, desligado das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito Aristodemo Guggiani, n.0 117, único responsável pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partir desta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entretanto a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n.0 117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violência apesar da limpeza, digo, da limpidez das intenções.

Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da Pátria!

São Paulo, 23 de agosto de 1926.

(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."


Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d'Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.

Na mesma linha: Praça do Patriarca - Lapa.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 26 de setembro de 2021

UM INCÊNDIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM INCÊNDIO

Machado de Assis

 

 

Que esta perna trouxe eu dali ferida.

CAMÕES, Os Lusíadas, c. V, est. XXXIII.

 

Não inventei o que vou contar, nem o inventou o meu amigo Abel. Ele ouviu o fato com todas as circunstâncias, e um dia, em conversa, fez resumidamente a narração que me ficou de memória, e aqui vai tal qual. Não lhe acharás o pico, a alma própria que este Abel põe a tudo o que exprime, seja uma idéia dele, seja, como no caso, uma história de outro. Paciência; por mais que percas a respeito da forma, não perderás nada acerca da substância. A razão é que me não esqueceu o que importa saber, dizer e imprimir.

 

B... era um oficial da marinha inglesa, trinta a trinta e dois anos, alto, ruivo, um pouco cheio, nariz reto e pontudo, e os olhos dois pedaços de céu claro batidos de sol. Convalescia de uma perna quebrada. Já então andava (não ainda na rua) apoiado a uma muleta pequena. Andava na sala do hospital inglês, aqui no Rio, onde Abel o viu e lhe foi apresentado, quando ali ia visitar um amigo enfermo, também inglês e padre.

 

Padre, oficial de marinha e engenheiro (Abel é engenheiro) conversavam freqüentemente de várias coisas deste e do outro mundo. Especialmente o oficial contava cenas de mar e de terra, lances de guerra e aventuras de paz, costumes diversos, uma infinidade de reminiscências que podiam ser dadas ao prelo e agradar. Foi o que lhe disse o padre um dia.

 

— Agradar não creio, respondeu ele modestamente.

 

— Afirmo-lhe que sim.

 

— Afirma demais. E daí pode ser que, não ficando inteiramente bom da perna, deixe a carreira das armas. Nesse caso, escreverei memórias e viagens para alguma das nossas revistas. Irão sem estilo, ou em estilo marítimo...

 

— Que importa uma perna? interrompeu Abel. A Nélson faltava um braço.

 

— Não é a mesma coisa, redargüiu B... sorrindo. Nelson, ainda sem braço, faria o que eu fiz no mês de abril, na cidade de Montevidéu. Estou eu certo de o fazer agora? Digo-lhe que não.

 

— Apostou alguma corrida? Mas a batalha de Trafalgar pode-se ganhar sem braço ou sem perna. Tudo é mandar, não acha?

 

A melancolia do gesto do oficial foi grande, e por muito tempo ele não conseguiu falar. Os olhos chegaram a perder um tanto a luz intensa que traziam, e ficaram pregados ao longe, em algum ponto que se não podia ver nem adivinhar. Depois voltou B... a si, sorriu, como quando dera a segunda resposta. Enfim, arrancou do peito a história que queria guardar, e foi ouvida pelos dois, repetida a mim por um deles e agora impressa, como anunciei a princípio.

 

Era um sábado de abril. B... chegara àquele porto e descera a terra, deu alguns passeios, bebeu cerveja, fumou e, à tarde, caminhou para o cais, onde o esperava o escaler de bordo. Ia a recordar lances de Inglaterra e quadros da China. Ao dobrar uma esquina, viu certo movimento no fim da outra rua, e, sempre curioso de aventuras, picou o passo a descobrir o que era. Quando ali chegou já a multidão era maior, as vozes muitas e um rumor de carroças que chegavam de toda parte. Indagou em mau castelhano, e soube que era um incêndio.

 

Era um incêndio no segundo andar de uma casa; não se sabia se o primeiro também ardia. Polícia, autoridades, bombas iam começar o seu ofício, sem grande ordem, é verdade, nem seria possível. O principal é que havia boa vontade. A gente curiosa e vizinha falava das moças — que seria das moças? onde estariam as moças? Com efeito, o segundo andar da casa era uma oficina de costura, regida por uma francesa, que ensinava e fazia trabalhar a muitas raparigas da terra. Foi o que o oficial pôde entender no meio do tumulto.

 

Deteve-se para assistir ao serviço, e também recolher alguma cena ou costume com que divertisse os companheiros de bordo e, mais tarde a família na Escócia. As palavras castelhanas iam-lhe bem ao ouvido, menos bem que as inglesas, é verdade, mas há só uma língua inglesa. O fogo crescia, comendo e apavorando, não que se visse tudo cá de fora, mas ao fundo da casa, no alto, surgiam flamas cercadas de fumo, que se espalhavam como se quisessem passar ao quarteirão inteiro.

 

B... viu episódios interessantes, que esqueceu logo, tal foi o grito de angústia e terror saído da boca de um homem que estava ao pé dele. Nunca mais lhe esqueceu tal grito; ainda agora parecia escutá-lo. Não teve tempo nem língua em que perguntasse ao desconhecido o que era. Nem foi preciso; este recuara, com a cabeça voltada para cima, os olhos na janela da casa e a mão trêmula, apontando... Outros seguiram a direção; o oficial de marinha fez o mesmo. Ali, no meio do fumo que rompia por uma das janelas, destacava-se do clarão, ao fundo, a figura de uma mulher. Não se podia distinguir bem, pela hora e pela distância, se o clarão vinha de outro compartimento que ardia, ou se era já o fogo que invadia a sala da frente.

 

A mulher parecia hesitar entre a morte pelo fogo e a morte pela queda. Qualquer delas seria horrível. Ora o fumo encobria toda figura, ora esta reaparecia, como que inerte, dominando todas as demais partes da catástrofe. Os corações cá de baixo batiam com ânsia, mas os pés, atados ao chão pelo terror, não ousavam ir levá-los acima. Tal situação durou muito ou pouco, o oficial não pôde saber se dois segundos, se dois minutos. Verdadeiramente não soube nada. Quando deu acordo de si ouviu um clamor novo, que os jornais do dia seguinte disseram ser de protesto e de aplauso, a um tempo, ao vê-lo correr na direção da casa. A alma generosa do oficial não se conteve, rompeu a multidão e enfiou pelo corredor. Um soldado atravessou-se-lhe na frente, ele deitou o soldado ao chão e galgou os degraus da escada.

 

Já então sentia calor de fogo, e o fumo que descia era um grande obstáculo. Tinha que rompê-lo, respirá-lo, fechar os olhos. Não se lembrava como pôde fazer isso; lembrava-se que, a despeito das dificuldades, chegou ao segundo andar, voltou à esquerda, na direção de uma porta, empurrou-a, estava aberta; entrou na sala. Tudo aí era fumo, que ia saindo pelas janelas, e o fogo, vindo do gabinete contíguo, começava a devorar as cortinas da sala. Lá embaixo, fora continuava o clamor. B... empurrou cadeiras, uma pequena mesa, até chegar à janela. O fumo rasgou-se de modo que ele pôde ver o busto da mulher... Vencera o perigo; cumpria vencer a morte.

 

— A mulher, — disse ele ao terminar a aventura, e provavelmente sem as reticências que Abel metia neste ponto da narração, — a mulher era um manequim, o manequim de costureira, posto ali de costume ou no começo do incêndio, como quer que fosse, era um manequim.

 

A morte agora, não tendo mulher que levasse, parecia espreitá-lo a ele, salvador generoso. O oficial duvidou ainda um instante da verdade; o terror podia ter tirado à pessoa humana todos os movimentos, e o manequim seria acaso mulher. Foi-se chegando; não, não era mulher, era manequim; aqui estão as costas encarnadas e nuas, aqui estão os ombros sem braços, aqui está o pau em que toda a máquina assenta. Cumpria agora fugir à morte. B... voltou-se rápido; tudo era já fumo, a própria sala ardia. Então ele, com tal esforço que nunca soube o que fez, achou-se fora da sala, no patamar. Desceu os degraus a quatro e quatro.

 

No primeiro andar deu já com homens de trabalho empunhando tubos de extinção. Um deles quis prendê-lo, supondo ser ladrão que se aproveitasse do desastre para vir buscar valores, e chegou a pegá-lo pela gola; depressa reconheceu a farda e foi andando. Não tendo que fazer ali, embora o perigo fosse menor, o oficial cuidou de descer. Verdade é que há muita vez algum que se não espera. Transpondo a porta da sala para o corredor, quando a multidão ansiosa estava a esperá-lo, na rua, uma tábua, um ferro, o que quer que era caiu do alto e quebrou-lhe a perna...

 

— Quê... ? interrompeu Abel.

 

— Justamente, confirmou o oficial. Não sei de onde veio nem quis sabê-lo. Os jornais contaram a coisa, mas não li essa parte das notícias. Sei que logo depois vieram buscar-me dois soldados, por ordem do comandante de polícia.

 

Tratou-se a bordo e em viagem. Não continuou por falta de comodidades que só em terra podia ter. Desembarcando aqui, no Rio de Janeiro, foi para o hospital onde Abel o conheceu. O vaso de guerra esperava por ele. Contava partir em breves dias. Não perdia tempo; emprestavam-lhe o Times, e livros de história e de religião. Enfim, saiu para a Europa. Abel não se despediu dele. Mais tarde soube que, depois de alguma demora em Inglaterra, foi mandado a Calcutá, onde descansou da perna quebrada, e do desejo de salvar ninguém.

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 25 de setembro de 2021

SUMÉ (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

SUMÉ

Olavo Bilac

 

 

 

Foi na imensa e fértil região das águas de montanhas e areias, que vem do Espírito Santo até o Rio de Janeiro, que apareceu Sumé, o venerando velho, pai da agricultura, cuja memória foi tão criminosamente perdida pela ingratidão dos homens.
Nessa larga faixa de terra, cujos cabos e promontórios rochosos invadem o mar, quase tocando ilhas fecundas, que verdejam ao sol, entre bancos de areia, — vivia um povo forte e valente, respeitado na paz e temido na guerra. Eram os Tamoios, cujas canoas guerreiras dominavam a costa, desde o cabo de São Tomé até Angra dos Reis, guardando as aldeias, formadas de cabanas sólidas, cercadas de altas paliçadas inexpurgáveis. Quando as tribos vizinhas ousavam invadir a seu território, — o canto do pajé concitava os filhos da grande nação. E, ao som dos chocalhos de pedras, das buzinas de madeira, dos tambores e das flautas de taquara, — os grandes exércitos tamoios abalavam em hostes cerradas, para repelir o invasor. E a nação não descansava, enquanto os inimigos não fugiam ao valoroso embate das suas armas de gloriosas, — maças pesadas feitas de lenho de palmeira, formidáveis machados chatos de madeira vermelha, flechas agudas, arcos da altura de um homem. Mais de uma vez, assim, os Goitacazes e Goianazes tiveram de ver castigada a sua ousadia. Quando a guerra findava, toda a tribo comemorava com grande festa a vitória de seus filhos. E a música e a dança celebravam, em torno dos prisioneiros que tinham de ser comidos vivos, a derrota dos inimigos. Depois vinha de novo a livre e arriscada existência da paz, — a pesca, nas canoas ligeiras que voavam como as aves do mar à flor das águas, e a caça dentro dos matos bravos, povoados de feras.
Ora, um dia, em que uma grande multidão da tribo, à beira-mar, estava reunida, celebrando uma vitória, — viram todos que sobre o largo oceano, vinha, do lado em que o sol aponta, uma grande figura, que mais parecia de deus que de homem.
Era um grande velho, branco como a luz do dia, trazendo, espalhada no peito, como uma toalha de neve, até os pés, uma longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar. E houve um grande espanto entre os Tamoios, vendo assim um homem, como eles, caminhar sem receio sobre as ondas como sobre terra firme.
Era Sumé, enviado de Tupã, senhor do Céu e da Terra. E Sumé operava prodígios nunca vistos. Diante dele, os matos mais cerrados se abriam por si mesmos, para lhe dar passagem: a um aceno seu, acalmavam-se os ventos mais desencadeados: quando o mar furioso rugia, um simples gesto de sua mão lhe impunha obediência. A sua presença fazia abaterem as tempestades, cessarem as chuvas, abrandarem as secas. E até as feras quando o viam, vinham submissamente lamber-lhe os pés, arrastando-se, de rojo, na areia. E os Tamoios, cativos de sua bondade, conquistados pelo assombro dos seus milagres, tomaram Sumé para seu conselheiro. E todas as tardes, os chefes adiantavam-se para ele, — enquanto em roda, mulheres, homens e crianças paravam a escutar, — vinham contar-lhe a história de seu povo, e interrogá-lo sobre as suas crenças, e pedir-lhe conselhos e lições.
E diziam-lhe a sua religião:
“Tupã, para fazer o céu e a terra, criou as mães para tudo. O sol é a mãe do dia e da noite. A lua é a mãe das plantas e dos animais. Os homens nasceram, e foram maus. Tupã, para castigar a sua maldade, mandou que as águas crescessem desmedidamente e cobrisse tudo. Então, viram-se os peixes nadando entre as folhagens das árvores, e os tigres afogados boiando sobre a vastidão das ondas crescidas. E os homens fugiam de monte em monte. E o céu se abria em relâmpagos e em quedas assombrosas de água. Mas um varão forte, que Tupã amava, — um varão de alma grande, que tinha o nome de Tamandaré, salvou a raça guardando dentro de uma canoa os seus filhos, e livrando-os do naufrágio espantoso. E de Tamandaré saímos nós, guerreiros que não tememos o trovejar das armas dos inimigos, quando o furor os assanha no campo de guerra, — mas que nos rojamos por terra, lembrando a antiga punição, quando ouvimos trovejar o céu, carregada de ameaças de maldição, a grande voz sagrada de Tupã, senhor e criador de todas as coisas e de todos os seres…”
Sumé amou aquela nação simples e sóbria, sem vícios e sem pecados. Louvou-lhe a bravura na guerra e a modéstia na paz. E quis torná-la feliz, ensinando-lhe o meio de viver na abundância. E ordenou que todos os homens válidos, depois de haverem abundantemente provido de caça e de pesca as cabanas, em que as mulheres e as crianças ficariam, seguissem com ele, para obrigar a terra a dar-lhes o sustento diário.
Disse-lhes Sumé: “A grande mãe é a terra: a grande mãe generosa; basta acariciá-la, basta amá-la e afagá-la, para que ela se abra logo prodigamente em toda a sorte de bens e de venturas.” Mas um pajé, velho sábio, conhecedor das coisas que o comum dos mortais ignora, observou: “Como pois, grande Santo, até hoje só tem ela tido para nós espinhos e répteis?” E Sumé respondeu: “Porque até hoje não a amastes com fervor e trabalho. Cavai-a e suai sobre ele: se rasgará agradecida, não para vos engolir, mas para vos dar vidas novas. Vinde comigo e vereis!”
Seguiram-no eles. E a terra, por toda a parte, era nua e ingrata. Matagais crespos e impenetráveis subiam do seu seio. E, dentro deles, as cobras silvavam, as onças uivavam: e toda aquela natureza primitiva era inimiga do homem, inimiga sem piedade, que afiava contra ele os dentes de suas feras e as pontas agudas dos seus espinheiros. Mandou Sumé que desbastassem a terra, e tivessem, para destruir os matos fechados, a mesma bravura e o mesmo vigor que tinham para destruir as hostes dos inimigos. Ordenou-lhe depois que amanhassem o solo, e, dando-lhes sementes várias, disse-lhes que as lançassem sem conta sobre o seio da grande mãe assim preparado.
Deste modo correu Sumé todo o litoral. E atrás dele todos os homens válidos da tribo seguiam. Os dias passavam. Passavam os meses. Passavam os anos. E de sol a sol, a febre do mesmo trabalho sacudia aquela multidão, que a virtude e a bondade de um só homem arrastavam seduzida e cativa. Quando Sumé chegou à grande Angra, que fechava ao sul o domínio dos Tamoios, parou. E disse, reunindo os trabalhadores:
— É tempo de retroceder… Ides ver como a terra vos paga em abundância e ventura as bagas de suor que gastastes em seu favor!
Retrocederam. E, então, começou o deslumbramento da tribo. À medida que se aproximavam do ponto de partida, viam a terra mudada, de mais em mais, abrindo-se em folhagens que não conheciam, em frutos que nunca tinham visto. E, quando chegaram ao grande acampamento, as mulheres e as crianças dançavam e cantavam. Os celeiros da tribo regurgitavam. O céu parecia mais belo; mais belo parecia o mar; mais bela a natureza toda; porque a tribo toda via agora a natureza através dessa alegria que é a filha da felicidade. Das sementes que o Santo Sumé fornecera, tinham nascido, em touceiras imensas, as bananeiras fartas; tinham nascido os carás e as mandiocas; tinham nascido os milhos de espigas de ouro; tinham nascidos os algodoeiros, os feijões e as favas…
Sumé não achou bastante o que já tinha feito: e ensinou-lhes a arte de fabricar a farinha, moendo a mandioca: e revelou-lhes os segredos da navegação, aperfeiçoando as suas igaras rústicas, dando-lhes velas, que, como asas de pássaros, ajudassem a voar com o vento, e lemos que, como caudas de peixes, as ajudassem a cortar ondas. E toda a tribo abençoou Sumé. E em honra sua, todas as tardes, quando o pôr-do-sol ensanguentava as águas, a tribo dançava, ao bater compassado dos tambores, em torno do grande velho, — filho querido de Tupã, pai da Agricultura, Gênio protetor dos Tamoios.
Mas os anos passaram. E, com o passar dos anos, passou a gratidão da tribo.
Os pajés, ciumentos do poder do Santo, envenenaram a alma da nação: “Como? Pois ela, tão forte, que, em todo arredor, só seu grito de guerra bastava para amedrontar todas as outras nações, ficaria sempre sob o domínio de um só homem, um estrangeiro, um homem de pele branca?”
E o rumor da maledicência crescia em torno do Santo. E, em torno dele, a rede da intriga se apertava.
E ele ouvia, e sorria. E a sua grande alma, toda sabedoria e bondade, compreendia e perdoava a ingratidão das gentes.
Uma madrugada, quando o Santo saía da sua cabana, viu formados todos os Tamoios, que vociferavam, ameaçando-o.
E todos eles estavam armados. E as fisionomias de todos eles transpiravam ódio e rancor.
O Santo Sumé quis falar. Não pôde. Uma flecha certeira, partida das fileiras dos ingratos, veio cravar-se no seu peito. O Santo sorriu. E, arrancando o dardo das carnes, atirou-o ao chão, e foi andando, de costas, para o lado do mar. Então, o ataque recrudesceu. As setas voavam, às centenas, aos milhares, todas atingindo o alvo. Sumé, com o mesmo sorriso nos lábios, ia sempre caminhando de costas para o lado do mar, e, de uma em uma, ia arrancando do corpo as setas que não o magoavam.
Quando chegou à praia, entrou pela água, cresceu sobre ela, sobre ela se equilibrou, e, sempre de costas, foi fugindo, — e sorrindo, sem amaldiçoar os ingratos a quem dera fartura.
E toda a tribo, paralisada de assombro, via, oscilando de leve sobre as ondas que o nascer do sol ensanguentava, ir diminuindo, diminuindo, até sumir-se de todo na extrema do horizonte, aquela doce figura, de pele branca com o a luz do dia, trazendo espalhada sobre o peito, até os pés, como uma toalha de neve, a longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar…


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 24 de setembro de 2021

A IGREJA POSITIVISTA (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A IGREJA POSITIVISTA

João do Rio

 

 

 

O amor por principio
E a ordem por base.
O progresso por fim.

 

Era domingo, à porta do templo da Humanidade, na rua Benjamim Constant.

Com o céu luminosamente azul e o sol tépido, havia muita concorrência nessa rua, de ordinário deserta: - senhoras, cavalheiros de sobrecasaca, militares, crianças. Uns subiam logo as escadas do templo, cuja fachada recorda um templo grego; outros mais íntimos, seguiam para o fundo, pelo lado direito. Teixeira Mendes fazia a sua prédica dominical.

Tínhamos ido a conversar com um velho positivista. A princípio ele anunciara um profundo desprezo pela frivolidade jornalística e a imprensa. Mas depois, como eu risse sem rancor, permitiu-se levar-me até a Igreja e foi tão bondoso que ali estávamos, tagarelando de coisas superiores, enquanto ao templo continuava a afluir a onda de fardas, de senhoras e de cavalheiros solenes.

- Não é possível negar a influência positivista na nossa política, sobre os brasileiros cultos, ia eu dizendo, mas o público..

- Os jornais...

- ... o grande público não compreende e irrita-se. O meu amigo pode falar de Spencer, de Kant, de outros filósofos. Passa por erudito e é respeitado. Basta, porém, falar de Comte para que o tomem por um esquisitão e perguntem injuriosamente se essa é a religião de Clotilde de Vaux.

- É natural. É a gentinha que não conhece o culto, adulterado por espíritos anárquicos. Mas você vê que os honestos já começam a compreender a doce religião que submeteu a inteligência ao sentimento.

- Tem-lhes custado.

- O positivismo tem quarenta anos de propaganda no Brasil. Em 1864, o Dr. Barreto de Aragão publicava urna aritmética dando a hierarquia científica de Comte e o Dr. Brandão escrevia a Escravidão no Brasil. Foram esses os primeiros livros positivistas, hoje quase desconhecidos. Depois é que o positivismo começou a ser falado entre matemáticos e que os professores da Central e da Escola Militar deram em citar a Astronomia e o primeiro volume da Filosofia.

- Era o tempo em que se considerava a Política um livro ímpio...

- Ainda não se fizera sentir a necessidade de dispensar os serviços provisórios de Deus. O caráter religioso do positivismo não era conhecido. Isso não impediu que Benjamim Constant, fazendo concurso na Escola Militar, declarasse ser positivista ortodoxo e republicano, e que o próprio Benjamim, com os Drs. Oliveira Guimarães e Abreu Lima, constituísse o núcleo dos ortodoxos em 1872.

- A influência foi nula... - interrompi eu, olhando uma senhora loura que entrava com o catecismo encadernado em veludo verde.

- Nada se perde. Oliveira Guimarães deixou um discípulo, Oscar de Araújo; Benjamim levou às escolas a palavra religiosa do mestre, regenerou o ensino da matemática e foi o primeiro brasileiro que teve no seu quarto o retrato de Clotilde de Vaux. Os trabalhos adotados na Escola Militar são quase todos de discípulos seus. No meio inteligente desses últimos surgiram Raimundo e Miguel Lemos; era um momento de agitação. Pereira Barreto publicava o 1.º volume da obra As três filosofias, e tanto Miguel como Teixeira Mendes eram litréistas, considerando a parte religiosa de Comte como obra de louco.

Foi com eles que Oliveira Guimarães fez aliança para fundar a biblioteca positivista e abrir cursos científicos.

- Era a filosofia da Academia...

- Sem jardins. O começo do positivismo no Brasil é absolutamente acadêmico. Em 1876 a Escola de Medicina manifestou-se com a tese Da Nutrição, de Ribeiro de Mendonça, e a primeira sociedade positivista foi feita de professores ortodoxos e de estudantes litréistas.

- Seria curioso saber como estes mudaram.

- As pequenas causas têm às vezes grandes efeitos. Uma censura ao diretor da escola motivou serem suspensos, por dois anos, Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que foram para a Europa; e enquanto só, Benjamim propagava aqui, os dois em Paris litréizavam. Mendes veio o mesmo, achando o Comte da Política maluco. Miguel ficou, e lá, sponte sua, abandonou Littré e relacionou-se com Laffite.

- E converteu-se?

- A 4 de julho de 1879.

Solenemente, o meu amigo positivista apanhava sol. Levei-o com carinho para o jardim, onde devia florir o bosque sagrado com as sepulturas dos homens dignos. Não havia bosques, nem sepulturas. Apenas algumas árvores. O positivista acendeu o cigarro, depois de o fazer com um forte fumo Rio Novo. Eu perguntei pasmado:

- Toma café?

Ele riu.

- Como toda a gente! Essa história de não tomar café e não fumar é apenas uma léria. Então você pensa que Augusto Comte imaginasse, de mau, fazer o mundo deixar o café e o fumo, só para arruinar o Brasil? O fato é outro. O grande filósofo não fumava nem bebia excitantes, porque lhe faziam mal; Miguel Lemos, doente como é, não se atira a esses excessos; Teixeira Mendes, um homem que reflete dezesseis horas a fio, não se pode dar aos devaneios da fumaça... Não há proibições formais para o horrendo vício; há apenas medo...

Puxei com vigor uma baforada.

- A propaganda desapareceu com a estada de Miguel Lemos em Paris?

- Não. A sociedade passou a chamar-se Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, sendo aclamado presidente o Dr. Ribeiro de Mendonça, que se filiou a Laffite:

- Começou a era do lafitismo...

- E com excesso. Concorríamos até pecuniariamente para o subsídio sacerdotal da igreja em Paris. Lemos influiu de tal modo sobre Teixeira Mendes, que pouco tempo depois este também se convertia. Foi, ligada a Laffite, que a nossa igreja iniciou as comemorações de caráter religioso com a festa de Camões em 1886; que se comemorou o 22.º passamento de Comte e a festa da Humanidade; e é dessa época que data a primeira procissão cívica no Rio de Janeiro, com andores e o busto de Camões esculpido por Almeida Reis.

- Quando Miguel voltou, aspirante ao Apostolado, as reuniões tornaram-se regulares aos domingos, na rua do Carmo, n.0 14, e Ferreira de Araújo abriu uma seção na Gazeta com o título Centro Positivista, cujo primeiro artigo dava a teoria científica do calendário. Em 1881, já presidente Miguel Lemos, o Centro passou para a rua Nova do Ouvidor, as exposições da religião tornaram-se regulares, e Raimundo fez no Liceu um curso do catecismo, interrompido pelas suas célebres conferências de antigo litréista contra o sofisma de Littré.

- Era a prosperidade.

- Nesse ano, em que se comemorou a Tomada da Bastilha, Lemos foi a São Paulo, fez nove conferências, fundou uma filial com Ferreira Souto, Carvalho de Mendonça, Oliveira Marcondes, Godofredo Martins e Silva Jardim, e as intervenções do Centro na nossa vida política acentuaram-se contra a imoralidade da colonização chinesa, traçando o programa do candidato positivista, protestando contra as loterias, exigindo o registro civil, a abolição, opondo-se às universidades...

- Já nesse tempo?

- Os artigos foram publicados na Gazeta de Notícias e fizeram que o imperador se opusesse à idéia, aconselhando ao ministro que reformasse o ensino por outro qualquer meio que não fosse as universidades.

O meu velho amigo andou alguns passos pelo futuro bosque sagrado. Acompanhei-o.

Ouvia-se lá dentro o som múltiplo de uma orquestra. Raros retardatários entravam.

- Neste ano também, continuou com calma, uma circular instituiu o subsídio sacerdotal, o que deu lugar à retirada de Benjamim Constant, e foram conferidos os primeiros sacramentos aos filhos de Miguel Lemos, Teixeira Mendes e do Dr. Coelho Barreto.

- Hoje esses sacramentos são comuns?

- Como os do matrimônio, em grande número.

- A ruptura com Laffite deu-se logo depois?

- Em 1883. Lemos ficou o único responsável do positivismo no Brasil, continuando a ingerir-se na vida pública da sua pátria.

- Mas este templo como foi feito?

- O Apostolado deixou a sede da rua Nova do Ouvidor para a rua do Lavradio. A mudança determinou o lançamento de um empréstimo em 1891 para a construção do templo, no que muito concorreram Pereira Reis, Otero, Rufino de Almeida, Décio Vilares. A inauguração foi em 1894, e a igreja custou 250 contos.

- É mais uma prova da importância do Centro no regime republicano.

- A nossa intervenção no início da República foi de primeira ordem. Basta citar a Bandeira Nacional, a separação da Igreja do Estado, a liberdade dos professores, a reforma do código no caso da tutela de filhos menores.

- O Centro também tem uma casa em Paris?

O semblante do positivista anuviou-se.

- Sim, a casa em que morreu Clotilde. Foi comprada por 70 mil francos. É triste. Em Paris não estavam preparados para compreender Teixeira Mendes. Era tarde para a campanha... Mas venha ver a nossa tipografia.

Caminhamos com intimidade pela avenida estreita. De vez em quando ouvia-se o som de uma voz acre. Era a prédica.

A tipografia fica embaixo, correspondendo a toda a extensão da nave em cima. É completa. Pergunto respeitoso o número de publicações dessa oficina.

- As obras de maior valor são o Ano sem Par, a Biografia de Benjamim Constant, a Visita aos Lugares Santos do Positivismo, a Química Positiva, as Últimas Concepções de A. Comte (onde se acha a teoria dos números sagrados), todas obras de Raimundo Mendes. A publicação de folhetos é talvez superior a 600.

- Mas os subescritores são muitos?

- São suficientes. A Igreja do Brasil tem recebido também auxílios de Londres.

O pavimento embaixo não é só ocupado pela tipografia. Há também o gabinete luxuoso de Miguel Lemos e a sala Daniel Encontre, onde Teixeira Mendes expõe aos jovens discípulos da humanidade, e a quem quiser ouvi-lo, as sete ciências. Ouvem-no lentes de academias e professores notáveis.

- É grande o número de positivistas?

- No Brasil os ortodoxos devem ser uns 700. Os simpáticos não se podem mais contar. As gerações que saem da nossa Escola Militar são quase que compostas de simpáticos.

- E a influência moral aumenta?

O positivista confessou com tristeza.

- Vai-se tornando fraca. Não se admire. Será por fraqueza dos apóstolos? Será porque o público se afasta da realidade, corrompido moralmente? O fato é patente. Ainda há pouco o privilégio funerário foi uma campanha perdida... Mas entremos.

Com o chapéu na mão, nós entramos. Havia luxo e conforto. De um lado a secretária, onde se vendem as obras editadas pela igreja, de outro, a sala onde está a escada para o coro, com orquestra e uma rica biblioteca de carvalho lavrada. Degraus atapetados dão acesso à nave.

O templo da humanidade é lindo. Ao alto, junto ao teto correm janelas que arejam o ambiente. Todo pintado de verde-mar, está-se dentro como num suave banho de esperança. Sentam-se os homens na nave, que tem catorze capelas; - colunas de pau negro sustentando em portais abertos bustos esculturados por Décio Vilares. Os bustos representam os meses do calendário: Moisés ou Teocracia inicial, Homero, Aristóteles, Arquimedes ou a poesia, filosofia e a ciência antiga; César ou a civilização militar; São Paulo, ou o catolicismo; Carlos Magno ou a civilização feudal: Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico Bichat, ou a epopéia, a indústria, o drama, a filosofia, a política, a ciência moderna, e Heloisa, a santa entre as santas, que fica na última capela, voltando o seu semblante magoado para a porta.

Na capela-mor, rica de tapetes e de madeiras esculpidas, há uma cátedra, onde se senta Teixeira Mendes com as vestes sacerdotais negras debruadas de verde. Por trás fica um busto de bronze de A. Comte, e, dominando toda a sala, o quadro de carvalho lavrado com letras de ouro, de onde surge a figura delicada de Clotilde, a humanidade simbolizada por Décio numa das suas miríficas atmosferas sonhadoras.

A voz de Raimundo corre com a continuidade de uma queda de águas; na nave cheia cintilam galões e lunetas graves; na capela-mor, senhoras ouvem com atenção essa palavra, que não deixa de ser demolidora.

- Que é positivismo? sussurro eu, sentando-me.

- É uma religião que respeita as religiões passadas e substitui a revelação pela demonstração. Nasceu da ruptura do catolicismo e da evolução científica do século XVII para cá. De Maistre dizia que o catolicismo ia passar por muitas transformações para ligar a ciência a religião. Comte descobriu a lei dos três estados, a chave da sociologia, e quando era o grande

filósofo, Clotilde apareceu e ensinou que a inteligência é apenas o ministro do coração.

 

Agir por afeição,
Pensar para agir.

 

Comte proclamou que o homem e a mulher se completam sob o tríplice aspecto: sentimento, inteligência e atividade. A religião divide-se em Culto, Dogma e Regime, o que vem a ser bem amar, bem conhecer e bem servir a humanidade, o Grande Ser, o conjunto das gerações passadas e futuras pela geração presente. A existência do Grande Ser está ligada à terra, o Grande-Fetiche, e ao espaço, o Grande Meio...

- Mas quantas senhoras!

- As mulheres devem amar o positivismo. Comte dignificou-as. A mulher é a força moderadora, o sentimento puro do amor que faz a sociabilidade, é a sacerdotiza espontânea da Humanidade que modifica pela afeição o orgulho vão e o reino da força: a mulher é a humildade, o fogo do culto no lar, é Beatriz, é Clotilde, é Heloisa, mãe, esposa e filha, a Veneração, a Doçura e o Bem. As mulheres deviam ser todas positivistas.

Enquanto o meu amigo assim falava, Raimundo Mendes, do alto da cátedra, relampejava. Na catadupa das palavras faltavam rr, havia repetições do pensamento, de frases, mas na explicação cultual, de repente, inconoclastamente, o azorrague partia contra os fatos, contra a anarquia atual: e um esto de amor, de amor indizível, de amor pela Vida, subia, como um incensório, à alma das mulheres.

Fiquei enlevado a ouvi-lo. Esse mesmo homem, puro como um cristal, que tem o saber nas mãos, eu já o vira uma vez, de manhã, carregando com dignidade um embrulho de carvão...

As mulheres sorriam; em toda a translúcida claridade parecia vibrar a alma do grande filósofo terno e bom, e do alto, Clotilde, a Humanidade, abria como um lírio a graça suave do seu lábio.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 23 de setembro de 2021

FORA DE HORAS (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

FORA DE HORAS

Raul Pompéia

 

 

 

O último amor de Emílio foi uma viúva, antes um capricho feito viúva, ou melhor ainda um demônio feito capricho.

Mme. Lamour, Mme. Lamort, ninguém lhe sabia exatamente o nome. Inscreviam-na dos dous modos, na comédia do mundo alegre, e ela não se dava ao trabalho de expedir uma errata, deixando que vacilasse o apelido de amor ou morte, como o mistério da vida, que tão bem resumia: o incêndio do ditirambo onde as almas ardem e acabam.

Não cuidem, porém, que estragava a meditar simbolismos o ensejo de descanso poupado na agitação da vida impetuosa. Pertenciam-lhe ao egoísmo inerte, como um tesouro de indolência, as horas da sesta, as horas nuas da sesta, no ambiente resguardado do dormitório, quando estirava-se ao divã de veludo preto, fresca da reação do banho, vaidosamente deslumbrada da brancura da própria carne, gostando na epiderme a viagem leve, saltitada, de uma mosca atraída pelas migalhas da última ceia.

A imaginação sonolenta ia e vinha passivamente, na comparação da alvura absoluta das formas, onde se concentrava a luz toda das vidraças entreabertas - com o negrume intenso do forro do divã, das peles do tapete crescidas e retintas, da seda preta do pára-vento atravessado obliquamente pelo vôo pálido de cegonhas de prata, da estranha decoração negra das paredes, da madeira dos móveis, dos encostos de cupidinhos negros esculpidos em luta, enrolando-se, mordendo-se como filhotes de tigre.

Nada perturbava o repouso. Nem um pensamento, nem um ruído. As vidraças detinham fora o ramalhar múrmuro do jardim. Além do biombo, o relógio não batia, parado num longo minuto de felicidade material. Até que chegava o sono, lentamente, respirado na noute fictícia da decoração. junto dela, sobre uma cadeira, dormia a taça de ouro, objeto querido, que mandara fazer, moldada sobre o seio de uma rival defunta.

Estava ausente para todos; mesmo para o amante. Qualquer dos dous, que ela tinha dois, sempre e fielmente: por um exercício duplo de fidelidade, que lhe parecia dobrada virtude.

Às quatro horas, Emílio acordava-a aos beijos. Tinha dois amantes, disse, como tinha dois nomes. Amantes que não se viam, que não se conheciam, que não se encontravam. Manejava habilmente os dois corações, como bolas alternadas de um jogo malabar.

Prezava-os impessoalmente por predicados opostos e incompatíveis, que buscaria em outros amores, se os atuais faltassem. isolá-los reciprocamente era porém o meio de conservar a ilusão do prazer completo de duas existências.

Queria um amante que fosse dela, e outro de quem ela fosse.

Um devia ser delicado, adolescência franzina, temperamento febril e fraco, que se lhe entregasse como a uma tortura. Ela estenderia os braços como tentáculos de polvo e sugar-lhe-ia a vida com os lábios, devorá-lo-ia deleitando-se de o ver extinguir-se dia a dia, ele buscando-a sempre, ardente, trêmulo, sorrindo e sucumbindo. Queria também o amor forte de um largo peito, o desejo de grande fôlego, a carícia constringente da saúde, da força, que enlaça, que macera e afoga um amor brutal, que a punisse da perversa delícia do outro.

Emílio era o forte.

- Ciúmes de um cadáver! dizia ela, enigmaticamente, rindo, quando Emílio insinuava a queixa de uma suspeita.

Esta frase repetida, da excêntrica mulher, distraía-o do ciúme, aduzindo um traço mais de extravagância à sedução macabra daquela aliança.

Sonhou, então, que a viúva o traía com efeito; que ressurgia para trai-lo com ela, o falecido esposo, a letra morta do contrato conjugal. Ele a via nos braços do finado, dando-se-lhe toda com o prazer novo de uma lascívia de horror cingida contra a carne malhada de roxo, olhada amorosamente pela meiguice branca dos olhos extintos, sentindo o cheiro úmido da terra nos cabelos, vendo a língua negra através dos dentes fixos, ouvindo passar nos lábios um hálito empestado de sepultura, estremecendo de gozo a criatura incrível que ele amava - abraçada pelo pesadelo!

Entretanto, o outro vinha, nas ocasiões combinadas, pobre criança extenuada e exangue, sôfrego, ofegante, obedecendo à fatalidade, trazendo o sacrifício dos seus dias, trazendo dos desesperos do trabalho, da miséria, talvez dos recursos culpados, mimos de preço, pérolas, rubis, rubis principalmente, prediletos dela porque são como cristais de sangue...

Uma noite, que estavam juntos, Mme. Lamour e Emílio, muito tarde, no salão negro, ouviram bater à porta lateral do jardim. Os amantes cruzaram um olhar.

- Ciúmes? perguntou a viúva sorrindo.

Bateram de novo. Emílio quis abrir.

- Não abras! Deixa que batam!

Bateram ainda.

- Não abras!

Um abalo violento, como de uma ombrada, sacudiu os ferrolhos e o ar da sala. Depois não bateram mais.

Fazia um frio agudo. Adivinhava-se, lá fora, a chuvinha glacial, peneirada da noite. Os dous amantes esqueceram-se no conchego das efusões, mais estreito e mais vivo naquele inverno, em meio do pavor ornamental do aposento.

No dia seguinte, atravessado à porta, sobre o mármore do limiar, achou-se o corpo inerte de um rapaz, muito moço, imberbe ainda, belo, apesar da morte e da magreza extrema. Tinha sangue nos lábios e pousava em sangue a face lívida.

Ao redor, as roseiras, as begônias, na manhã clara, choravam as últimas gotas da chuva da véspera.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 22 de setembro de 2021

O CÔNEGO - OU METAFÍSICO DO ESTILO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O CÔNEGO

OU METAFÍSICA DO ESTILO

Machado de Assis

 

"Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras, deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda casta de pombos..."

- "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor..."

Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do Cônego Matias um substantivo e um adjetivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar.

Nesse dia, - cuido que por volta de 2222, - o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver.

Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou.

- Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros.

Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava ao Evangelho o Cônego Matias, "um dos ornamentos do clero brasileiro". Este "ornamento do clero" tirou ao cônego a vontade de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se meteu a escrever o sermão.

Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil coisas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego.

Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo coisa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita coisa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...

- Sexual?

Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo.

- Mas, então, amam-se umas às outras?

Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.

- Confesso que não.

Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: "Vem do Líbano, vem..." E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: "Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o taler ou o dólar, o florim ou a libra que é tudo o mesmo dinheiro.

Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio.

Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de coisas velhas e novas! Há aqui um burburinho de idéias, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir.

De quando em quando, aparece-lhe alguma dama - adjetivo também - e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ao eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor  nomeado e predestinado.

Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e pára diante da janela: "Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano; depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos, encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia.

Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em coisas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também.

Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras idéias virgens. Coisas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de coisas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.

- Vem do Líbano, esposa minha...

- Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém...

Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e do desejo.

Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo.

Justamente agora é que os dois cobiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias, disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas, velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, células de idéias novas, debuxos de concepções, pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm nada convosco. Amam-se e procuram-se.

Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. "Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do seu coração", e que "o amor é tão valente como a própria morte".

Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção e respeito completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 21 de setembro de 2021

AS CAMISAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

AS CAMISAS

Humberto de Campos

 

 

 

Há muitos dias que o Dr. Abelardo insistia com a mulher, a encantadora D. Sílvia, para que usasse umas camisas de seda cor de rosa, que, na sua opinião, lhe deviam assentar admiravelmente sobre a pele clara, macia, cetinosa. Apaixonada pelo marido, que sabia disputado pela mais íntima das suas amigas, a loura Luizita Corrêa, D. Sílvia escancarou, nesse dia, o grande móvel do quarto de vestir, em que guardava as suas roupas de interior, e, tirando as dezenas de camisas que ali estavam arrumadas com ordem, ia mostrando-as, uma a uma, ao esposo:

 

— É assim?

 

— Não.

 

— É dessas, de seda, enfiadas de fita?

 

— Não.

 

— É assim, apenas com uma fita sobre o ombro?

 

— Também não!

 

E como a esposa lhe não mostrasse nenhuma camisa como a que ele desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo, convidou-a ele próprio, beijando-a nos olhos.

 

— Amanhã, na cidade, veremos onde tem. Quero comprar-te uma dúzia. Ouviste, meu amor?

 

  1. Sílvia agradeceu, com um sorriso e um beijo, a gentileza amorosa do esposo e, no dia seguinte, à tarde, entravam, os dois, contentes, em uma casa de modas da rua do Ouvidor, onde, tomando a dianteira, o marido pediu:

 

— Camisas de dia, de seda, para senhora; nº 3.

 

— Que cor? — indagou, solicita, a moça que o atendeu.

 

— Cor de rosa.

 

A empregada subiu ao primeiro andar, trouxe algumas caixas de camisas de seda, mas nenhuma correspondia ao desejo elegante do freguês, que era, de fato, exigente.

 

— Não são destas? — consultou.

 

— Não, senhora. São mais finas, mais transparentes, com uma renda de seda até quase à cintura.

 

— Ah! Já sei! — exclamou a mocinha, sorrindo.

 

E, levantando os olhos para o andar superior chamou por uma companheira.

 

— Julieta!

 

Apareceu, em cima, no balaustre, a cabeça oxigenada de outra caixeira da casa.

 

— Manda-me dali, por favor — pediu — a caixa de camisas nº 8.645.

 

E, particularizando, alto:

 

— Olha! daquelas que D. Luizita Corrêa comprou aqui... Sabes?

 

Quando as camisas desceram das nuvens, D. Sílvia tinha sumido.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 19 de setembro de 2021

O TÍMIDO JOSÉ (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

O TÍMIDO JOSÉ

Alcântara Machado

 


Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as mãos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta do Anhangabaú. Começou a bater com os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio: dez para as duas. A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguém, é o que o desanimava. Não podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer cousa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A Lapa é longe. De vez em quando ia até o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do bonde. O sujeito ao lado falou: É bem capaz de já ter passado. Medindo os passos foi até o refúgio. Alguém atravessou a praça. Vinha ao encontro dele. Uma mulher. Uma mulher com uma pele no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer alguma cousa. A mulher parou a dois metros se tanto. Olhou para ele. Desviou os olhos, puxou o relógio.

- Pode me dizer que horas são?

- Duas. Duas menos três minutos.

Agradeceu e sorriu. Se o Anísio estivesse ali diria logo que era um gado e atracaria o gado. Ele se afastou. Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era fácil. O Anísio? O Anísio já teria dado um jeito. Na boca é que a gente conhece a sem-vergonhice da mulher. Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na direção dele. Ele ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando sem um olhar. Tomou o viaduto. O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou para trás. Mais uns segundos perdia o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não ir dormir. Resolveu ir. O bonde parou diante do refúgio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda pegava. Agora não pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo é a cousa pior deste mundo. Pôs um cigarro na boca. Não tinha fósforos. Virando o cigarro nos dedos seguiu pelo viaduto. Apressou o passo. Não se enxergava nada. De repente era capaz de esbarrar com a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar não. Mas precisava encontrar. Afinal de contas estava fazendo papel de trouxa.

Quem sabe se seguiu pela Rua Barão de Itapetininga? Mais depressa não podia andar. Garoar, garoava sempre. Mas ali o nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se não encontrasse paciência. Não iria procurar. Iria é para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia não quis. Agora que era difícil queria.

Estava parada na esquina. E virada para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atrás do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma cousa lhe dizia que era aquele o momento. Porém não se decidia e pensava no bonde da Lapa que já ia longe. Para sair dali esperava que ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA BRILHANTE. Dezoito letras. Se continuava parada é que esperava alguém. Se fosse ele era uma boa maçada. Sua esperança estava na varredeira da Limpeza Pública que vinha chegando. A poeira a afugentaria. Nem se lembrava de que estava garoando. Pôs o lenço no rosto.

A mulher recomeçou a andar. Até que enfim. E ele também rente aos prédios. Agora já tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa. Talvez caminhando bem depressa. Precisava desviar da mulher senão era capaz de parar de novo e pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Então reparou que outro também começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos calcanhares e parecia velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade má. Depois uma espécie de despeito, de ciúme, de orgulho ferido, qualquer cousa assim. Nem ele nem ninguém. Cada vez apressava mais o passo. O tipo parou para acender um cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes brancos caídos, usava galochas e se via na cara a satisfação. Não. Isso é que não. Nem ele nem o velho nem ninguém. Nem que tivesse que brigar. Mas por que não ele mesmo? Resolveu: seria ele mesmo.

Via a ponta da pele caída nas costas. De repente ela parou e sentou-se num banco. Sentia o velho rente. E agora? Fez um esforço para que as pernas não parassem. A mulher virou o rosto na direção dele. Quem é que estava olhando? O velho? Mas a sujeita endireitou logo o rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que o olhava sem ver. Passou como um ladrão, o coração batendo forte e sentou-se dois bancos adiante. Prova de audácia sim. Mas não podia ser de outro modo. O velho também passou, passou devagarzinho, depois de passar ainda se virou mas não parou. Tinha receio de suportar o olhar do velho. Começou a passar o lenço no rosto. Já era pavor mesmo. Por isso tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para trás, andava mais um pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa árvore.

A sujeita se levantou, deu um jeito na pele, veio vindo. Com toda a coragem a fixava. Impossível que deixasse escapar de novo a ocasião. Bastaria um sorrisozinho. Mas nem um olhar quanto mais um sorriso. Mulher é assim mesmo: facilita, facilita até demais e depois nada. Só dando mesmo pancada como recomendava o Anísio. Bombeiro é que sabe tratar mulher. Já estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava esperando com todo o cinismo. O gozo dele foi que quando ela ia chegando pegou outra rua do jardim e o velho ficou no ora veja. Vá ser cínico na praia. Não é que o raio da sujeita apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe melhor. Preferia assim porque no fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia.

Ela esperou que o automóvel passasse (tinha mulheres dentro cantando) para depois atravessar a rua correndo e desaparecer na esquina. Então ele quase que corria também. Dobrou a esquina. Um homem sem chapéu e sem paletó (naquela umidade) gritava palavrões na cara da sujeita que chorava. À primeira vista pensou até que não fosse ela. Mas era. Dando com ele o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e com um safanão jogou-a para dentro do portão. E fechou o portão imediatamente. Uma janela se iluminou na casinha cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados Alguém dobrou a esquina. Era o velho. Maldito velho. Então seguiu. E o outro atrás.

Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e cinco para as três. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se estupidamente. O velho fez-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem não conhecia. Cada pé dentro de um quadrado no cimento da calçada. Assim era obrigado a caminhar ligeiro.

- Faz favor, seu!

Literatura - Contos e Crônicas sábado, 18 de setembro de 2021

O CASO DA VIÚVA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O CASO DE VIÚVA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

I

Este conto deve ser lido especialmente pelas viúvas de vinte e quatro a vinte e seis anos. Não teria mais nem menos a viúva Camargo, D. Maria Luísa, quando se deu o caso que me proponho contar nestas páginas, um caso “ posto que menos sangrento que o de D. Inês. Vinte e seis anos; não teria mais, nem tanto; era ainda formosa como aos dezessete, com o acréscimo das roupas pretas que lhe davam grande realce. Era alva como leite, um pouco descolorida, olhos castanhos e preguiçosos, testa larga, e talhe direito. Confesso que essas indicações são mui gerais e vagas; mas conservo-as por isso mesmo, não querendo acentuar nada neste caso, tão verdadeiro como a vida e a morte. Direi somente que Maria Luísa, nasceu com um sinalzinho cor-de-rosa, junto à boca, do lado esquerdo (única particularidade notada), e que foi esse sinal a causa de seus primeiros amores, aos dezoito anos.

— Que é que tem aquela moça ao pé da boca? perguntava o estudante Rochinha a uma de suas primas, em certa noite de baile.

— Um sinal.

— Postiço?

— Não, de nascença.

— Feia coisa! murmurou o Rochinha.

— Mas a dona não é feia, ponderou a prima, é até bem bonita…

— Pode ser, mas o sinal é hediondo.

A prima, casada de fresco, olhou para o Rochinha com algum desdém, e disse-lhe que não desprezasse o sinal, porque talvez fosse ele a isca com que ela o pescasse, mais tarde ou mais cedo. O Rochinha levantou os ombros e falou de outro assunto; mas a prima era inexorável; ergueu-se, pediu-lhe o braço, levou-o até o lugar em que estava Maria Luísa, a quem o apresentou. Conversaram os três; tocou-se uma quadrilha, o Rochinha e Maria Luísa dançaram, depois conversaram alegremente.

— Que tal o sinal? perguntou-lhe a prima, à porta da rua no fim do baile, enquanto o marido acendia um charuto e esperava a carruagem.

— Não é feio, respondeu o Rochinha; dá-lhe até certa graça; mas daí à isca vai uma grande distância.

— A distância de uma semana, tornou a prima rindo. E sem aceitar-lhe a mão entrou na carruagem.

Ficou o Rochinha à porta, um pouco pensativo, não se sabe se pelo sinal de Maria Luísa, se pela ponta do pé da prima, que ele chegou a ver, quando ela entrou na carruagem. Também não se sabe se ele viu a ponta do pé sem querer, ou se buscou vê-la. Ambas as hipóteses são admissíveis aos dezenove anos de um rapaz acadêmico. O Rochinha estudava direito em S. Paulo, e devia formar-se no ano seguinte; estava portanto nos últimos meses da liberdade escolástica; e fio que a leitora lhe perdoará qualquer intenção, se intenção houve naquela vista fugitiva. Mas, qualquer que fosse o motivo secreto, a verdade é que ele não ficou pensativo mais de dois minutos, acendeu um charuto e guiou para casa.

Esquecia-me dizer que a cena contada nos períodos anteriores passou-se na noite de 19 de janeiro de 1871, em uma casa do bairro do Andaraí. No dia seguinte, dia de S. Sebastião, foi o Rochinha jantar com a prima; eram anos do marido desta. Achou lá Maria Luísa e o pai. Jantou-se, cantou-se, conversou-se até meia noite, hora em que o Rochinha, esquecendo-se do sinalzinho da moça, achou que ela estava muito mais bonita do que lhe parecia no fim da noite passada.

— Um sinal que passa tão depressa de fealdade a beleza, observou o marido da prima, pode-se dizer que é o sinal do teu cativeiro.

O Rochinha aplaudiu este ruim trocadilho, sem entusiasmo, antes com certa hesitação. A prima, que estava presente, não lhe disse nada, mas sorriu para si mesma. Era pouco mais velha que Maria Luísa, tinha sido sua companheira de colégio, quisera vê-la bem casada, e o Rochinha reunia algumas qualidades de um marido possível. Mas não foram só essas qualidades que a levaram a prendê-lo a Maria Luísa, e sim também a circunstância de que ele herdaria do pai algumas propriedades. Parecia-lhe que um bom marido é um excelente achado, mas que um bom marido não pobre era um achado excelentíssimo. Assim só se falava ao primo no sinal de Maria Luísa, como falava a Maria Luísa na elegância do primo.

— Não duvido, dizia esta daí a dias; é elegante, mas parece-me assim…

— Assim como?

— Um pouco…

— Acaba.

— Um pouco estróina.

— Que tolice! é alegre, risonho, gosta de palestrar, mas é um bom rapaz e, quando precisa, sabe ser sério. Tem só um defeito.

— Qual? perguntou Maria Luísa, com curiosidade.

— Gosta de sinais cor de rosa ao canto da boca.

Maria Luísa deu uma resposta graciosamente brasileira, um muxoxo; mas a outra que sabia muito bem a múltipla significação desse gesto, que tanto exprime o desdém, como a indiferença, como a dissimulação, etc., não se deu por abalada e menos por vencida. Percebera que o muxoxo não era da primeira nem da segunda significação; notou-lhe uma mistura de desejo, de curiosidade, de simpatia, e jurou aos seus deuses transformá-lo em um beijo de esposa, com uma significação somente.

Não contava com a academia. O Rochinha partiu daí a algumas semanas para S. Paulo, e, se deixou algumas saudades, não as contou Maria Luísa a ninguém; guardou-as consigo, mas guardou-as tão mal, que a outra as descobriu e leu.

— Está feito, pensou esta; um ano passa-se depressa.

Reflexão errada, porque nunca houve ano mais vagaroso para Maria Luísa do que esse, ano trôpego, arrastado, feito para entristecer as mais robustas esperanças. Mas também que impaciência alegre quando se aproximou a vinda do Rochinha. Não o encobria da amiga, que teve o cuidado de o escrever ao primo, o qual respondeu com esta frase: “. A prima, com uma perfídia sem nome, foi contá-lo a Maria Luísa, e com uma cegueira de igual quilate declarou isso mesmo ao primo, que, pela mais singular das complacências, encheu-se de satisfação. Quem quiser que o entenda.

II

Veio o Rochinha de S. Paulo, e daí em diante ninguém o tratou senão por dr. Rochinha, ou, quando menos, dr. Rocha; mas já agora, para não alterar a linguagem do primeiro capítulo, continuarei a dizer simplesmente o Rochinha, familiaridade tanto mais desculpável, quanto mais a autoriza a própria prima dele.

— Doutor! disse ela. Creio que sim, mas lá para as outras; para mim há de ser sempre o Rochinha.

Veio pois o Rochinha de S. Paulo, diploma na algibeira, saudades no coração.

Oito dias depois encontrava-se com Maria Luísa, casualmente na rua do Ouvidor, à porta de uma confeitaria; ia com o pai, que o recebeu muito amavelmente, não menos que ela, posto que de outra maneira. O pai chegou a dizer-lhe que todas as semanas, às quintas-feiras, estava em casa.

O pai era negociante, mas não abastado nem próspero. A casa dava-lhe para viver, e não viver mal. Chamava-se Toledo, e contava pouco mais de cinqüenta anos; era viúvo; morava com uma irmã viúva, que lhe servia de mãe à filha. Maria Luísa era o seu encanto, o seu amor, a sua esperança. Havia da parte dele uma espécie de adoração, que entre as pessoas da amizade passara a provérbio e exemplo. Ele tinha para si que o dia em que a filha lhe não desse o beijo da saída era um dia fatal; e não atribuía a outra coisa o menor contratempo que lhe sobreviesse. Qualquer desejo de Maria Luísa era para ele um decreto do céu, que urgia cumprir, custasse o que custasse. Daí vinha que a própria Maria Luísa evitava muita vez falar-lhe de alguma coisa que desejava, desde que a satisfação exigisse da parte do pai um sacrifício qualquer. Porque também ela adorava o pai, e nesse ponto nenhum devia nada ao outro. Ela o acompanhava até a porta da chácara todos os dias, para lhe dar o ósculo da partida; ela o ia esperar para dar o ósculo da chegada.

— Papaizinho, como passou? dizia ela batendo-lhe na face. E, de braço dado, atravessavam toda a chácara, unidos, palreiros, alegres, como dois namorados felizes. Um dia Maria Luísa, em conversa, à sobremesa, com pessoas de fora, manifestou grande curiosidade de ver a Europa. Era pura conversa, sem outro alcance; contudo, não passaram despercebidas ao pai as suas palavras. Três dias depois, Toledo consultou seriamente a filha se queria ir dai a quinze dias para a Europa.

— Para a Europa? perguntou ela um tanto espantada.

— Sim. Vamos?

Não respondeu Maria Luísa imediatamente, tão vacilante se viu entre o desejo secreto e o inesperado da proposta. Como refletisse um pouco, perguntou a si mesma se o pai podia sem sacrifício realizar a viagem, mas sobretudo não atinou com a razão esta.

— Para a Europa? repetiu.

— Sim, para a Europa, disse o pai rindo; mete-se a gente no paquete, e desembarca lá. É a coisa mais simples do mundo.

Maria Luísa ia dizer-lhe talvez que sim; mas recordou-se subitamente das palavras que proferira dias antes, e suspeitou que o pai faria apenas um sacrifício pecuniário e pessoal, para o fim de lhe cumprir o desejo. Então abanou a cabeça com um risinho triunfante.

— Não, senhor, deixemo-nos da Europa.

— Não?

— Nem por sombras.

— Mas tu morres por lá ir…

— Não morro, não senhor, tenho vontade de ver a Europa e hei de vê-la algum dia, mas muito mais tarde… muito mais tarde.

— Bem, então vou só, redargüiu o pai com um sorriso.

— Pois vá, disse Maria Luísa erguendo os ombros.

E assim acabou o projeto europeu. Não só a filha percebeu o motivo da proposta do pai, como este compreendeu que esse motivo fora descoberto; nenhum deles, todavia, aludiu ao sentimento secreto do outro.

Toledo recebeu o Rochinha com muita afabilidade, quando este lá foi numa quinta-feira, duas semanas depois do encontro na rua do Ouvidor. A prima de Rochinha também foi, e a noite passou-se alegremente para todos. A reunião era limitada; os homens jogavam o voltarete, as senhoras conversavam de rendas e vestidos. O Rochinha e mais dois ou três rapazes, não obstante essa regra, preferiam o círculo das damas, no qual, além dos vestidos e rendas, também se falava de outras damas e de outros rapazes. A noite não podia ser mais cheia.

Não gastemos o tempo em episódios miúdos; imitemos o Rochinha, que ao cabo de quatro semanas, preferiu uma declaração franca à multidão de olhares e boas palavras. Com efeito, ele chegara ao estado agudo do amor, a ferida era profunda, e sangrava; urgiu estancá-la e curá-la. Urgia tanto mais fazer-lhe a declaração, quanto que da última vez que esteve com ela, encontrara-a um pouco acanhada e calada, e, à despedida, não teve o mesmo aperto de mão do costume, um certo aperto misterioso, singular, que se não aprende e se repete com muita exatidão e pontualidade, em certos casos de paixão concentrada ou não concentrada. Pois nem esse aperto de mão; a de Maria Luísa parecia-lhe fria e fugidia.

— Que lhe fiz eu? dizia ele consigo, ao retirar-se para casa.

E buscava recordar todas as palavras do último encontro, os gestos, e nada lhe parecia autorizar qualquer suspeita ou ressentimento, que explicasse a súbita frieza de Maria Luísa. Como já então houvesse entrado na confidência dos seus sentimentos à prima, disse-lhe o que se passara, e a prima, que reunia ao desejo de ver casada a amiga, certo pendor às intrigas amorosas, meteu-se a caminho para a casa desta. Não lhe custou muito descobrir a Maria Luísa a secreta razão de sua visita, mas, pela primeira vez, achou a outra reservada.

Você é bem cruel, dizia-lhe rindo; sabe que o pobre rapaz não suspira senão por um ar de sua graça, e trata-o como se fosse o seu maior inimigo.

— Pode ser. Onde é que você comprou esta renda?

— No Godinho. Mas vamos; você acha o Rochinha feio?

— Ao contrário, é um bonito rapaz.

— Bonito, bem educado, inteligente…

— Não sei como é que você ainda gosta desse chapéu tão fora da moda…

— Qual fora da moda!

— O brinco é que ficou muito bonito.

— É uma pérola…

— Pérola este brinco de brilhante?

— Não; falo do Rochinha. É uma verdadeira pérola; você não sabe quem está ali. Vamos lá; creio que não lhe tem ódio…

— Ódio por quê?

— Mas…

Quis a má fortuna do Rochinha que a tia de Maria Luísa viesse ter com ela, de maneira que a prima dele não pôde acabar a pergunta que ia fazer’. E todas essas circunstâncias eram realçadas pelos bens da fortuna, vantagem que Toledo, como pai, considerava de primeira ordem. Tais foram os motivos que o levaram a falar do Vieira à filha, antes mesmo que ele lha fosse pedir. Maria Luísa não se mostrou espantada da revelação.

— Gosta de mim o Vieira? — respondeu ela ao pai. Creio que já o sabia.

— Mas sabias que ele gosta muito?

— Muito, não.

— Pois é verdade. O pior é a figura que estou fazendo…

— Como?

— Falando de coisas sabidas, e… pode ser que ajustadas.

Maria Luísa baixou os olhos, sem dizer nada; pareceu-lhe que o pai não rejeitava a pretensão do Vieira, e temeu desenganá-lo logo dizendo-lhe que não correspondia às afeições do namorado. Esse gesto, além do inconveniente de calar a verdade, teve o de fazer supor o que não era. Toledo imaginou que era vergonha da filha, e uma espécie de confissão. E foi por isso que tomou a falar-lhe, daí a dois dias, com prazer, louvando muito as qualidades do Vieira, o bom conceito em que era tido, as vantagens do casamento. Não seria capaz de impor à filha, nem esse nem outro; mas visto que ela gostava… Maria Luísa sentiu-se fulminada. Adorava e conhecia o pai; sabia que ele não falaria de coisa que lhe não supusesse aceita, e sentiu qual era a sua persuasão. Era fácil retificá-lo; uma só palavra bastava a restituir a verdade. Mas ai entrou Maria Luísa noutra dificuldade; o pai, logo que supôs aceita à filha a candidatura do Vieira, manifestou todo o prazer que lhe daria o consórcio; e esta circunstância é que deteve a moça, e foi a origem dos sucessos posteriores.

A doença de Vieira durou perto de três semanas; Toledo visitou-o duas vezes. No fim daquele tempo, após curta convalescença, Vieira mandou pedir ao pai de Maria Luísa que lhe marcasse dia para a entrevista, que não pudera realizar por motivo da enfermidade. Toledo designou outro dia, e foi a isso que aludiu no fim do capítulo passado.

O pedido do casamento foi feito nos termos usuais, e recebido com muita benevolência pelo pai, que declarou, entretanto, nada decidido sem que fosse do agrado da filha. Maria Luísa declarou que era muito de seu agrado; e o pai respondeu isso mesmo ao pretendente.

V

Não se faz uma declaração daquelas, em tais circunstâncias, sem grande esforço. Maria Luísa lutou primeiramente consigo, mas resolveu enfim, e, uma vez resoluta, não quis recuar um passo. O pai não percebeu o constrangimento da filha; e se não a viu jubilosa, atribuiu-o à natural gravidade do momento. Ele acreditara profundamente que ia fazer a felicidade da moça.

Naturalmente a notícia, apenas murmurada, causou assombro à prima do Rochinha, e desespero a este. O Rochinha não podia crer, ouvira dizer a duas pessoas, mas parecia-lhe falso.

— Não, impossível, impossível!

Mas logo depois lembrou-se de mil circunstâncias recentes, a frieza da moça, a falta de resposta, o desengano lento que lhe dera, e chegava a crer que efetivamente Maria Luísa ia casar com o outro. A prima dizia-lhe que não.

— Como não? interrompeu ele. Acho a coisa mais natural do mundo. Repare bem que ele tem muito mais do que eu, cinco ou seis vezes mais. Dizem que passa de seiscentos contos.

— Oh! protestou a prima.

— Quê?

Não diga isso; não calunie Maria Luísa.

O Rochinha estava desesperado e não atendeu à súplica; disse ainda algumas coisas duras, e saiu. A prima resolveu ir ter com a amiga para saber se era verdade; começava a crer que o fosse, e em tal caso já não podia fazer nada. O que não entendia era o repentino do casamento; não soube sequer do namoro.

Maria Luísa recebeu-a tranqüila, a princípio, mas às interrupções e recriminações da amiga não pôde resistir por muito tempo. A dor comprimida fez explosão; e ela confessou tudo. Confessou que não gostava do Vieira, sem aliás lhe ter aversão ou antipatia; mas aceitara o casamento porque era um desejo do pai.

— Vou ter com ele, interrompeu a amiga, vou dizer-lhe que…

— Não quero, interrompeu vivamente a filha de Toledo; não quero que lhe diga nada.

— Mas então hás de sacrificar-te?…

— Que tem? Não é difícil o sacrifício; o meu noivo é um bom homem; creio até que pode fazer a felicidade de uma moça.

A prima do Rochinha estava impaciente, nervosa, desorientada; batia com o leque no joelho, levantava-se, sacudia a cabeça, fechava a mão; e tornava a dizer que ia ter com Toledo para contar-lhe a verdade. Mas a outra protestava sempre; e da última vez declarou-lhe peremptoriamente que seria inútil qualquer tentativa; estava disposta a casar com o Vieira, e nenhum outro.

A última palavra era clara e expressiva; mas por outro lado traiu-a, porque Maria não o pôde dizer sem visível comoção. A amiga compreendeu que o Rochinha era amado; ergueu-se e pegou-lhe nas mãos.

— Olhe, Maria Luísa, não direi nada, não farei nada. Sei que você gosta de outro, e sei quem é o outro. Por que há de fazer dois infelizes? Pense bem; não se precipite.

Maria Luísa estendeu-lhe a mão.

— Promete que refletirá? disse-lhe a outra.

— Prometo.

— Reflita, e tudo se poderá arranjar, creio.

Saiu de lá contente, e disse tudo ao primo; contou-lhe que Maria Luísa não amava ao noivo; casava, porque lhe parecia que era agradável ao pai. Não esqueceu dizer que alcançara a promessa de Maria Luísa de que refletiria ainda sobre o caso.

— E basta que ela reflita, concluiu, para que tudo se desfaça.

— Crê?

— Creio. Ela gosta de você; pode estar certo de que gosta e muito.

Um mês depois casavam-se Maria Luísa e Vieira.

VI

Segundo o Rochinha confessou à prima, a dor que ele padeceu com a notícia do casamento não podia ser descrita por nenhuma língua humana. E, salvo a exageração, a dor foi isso mesmo. O pobre rapaz rolou de uma montanha ao abismo, expressão velha, mas única que pode dar bem o abalo moral do Rochinha. A última conversa da prima com Maria Luísa tinha-o principalmente enchido de esperanças, que a filha de Toledo cruelmente desvaneceu. Um mês depois do casamento o Rochinha embarcava para a Europa.

A prima deste não rompeu as relações com Maria Luísa, mas as relações esfriaram um pouco; e nesse estado duraram as coisas até seis meses. Um dia encontraram-se casualmente, falaram de objetos frívolos, mas a tristeza de Maria Luísa era tamanha, que feriu a atenção da amiga.

— Estás doente? disse esta.

— Não.

— Mas tens alguma coisa?

— Não, nada.

A amiga supôs que houvesse algum desacordo conjugal, e, porque era muito curiosa, não deixou de ir alguns dias depois à casa de Maria Luísa. Não viu desacordo nenhum, mas muita harmonia entre ambos, e extrema benevolência da parte do marido. A tristeza de Maria Luísa tinha momentos, dias, semanas, em que se manifestava de um modo intenso; depois apagava-se ou diminuía, e tudo voltava ao estado habitual.

Um dia, estando em casa da amiga, Maria Luísa ouviu ler uma carta do Rochinha, vinda nesse dia da Europa. A carta tratava de coisas graves; não era alegre nem triste. Maria Luísa empalideceu muito, e mal pôde dominar a comoção. Para distrair-se abriu um álbum de retratos; o quarto ou quinto retrato era do Rochinha; fechou apressadamente e despediu-se.

— Maria Luísa ainda gosta dele, pensou a amiga.

Pensou isto, e não era pessoa que se limitasse a pensá-lo: escreveu-o logo ao primo, acrescentando esta reflexão: “

O Rochinha leu a carta com grande saudade e maior satisfação; mas fraqueou logo, e achou que a notícia era naturalmente falsa ou exagerada. A prima enganava-se, decerto; tinha o intenso desejo de os ver casados, e buscava alimentar a chama para o fim de uma hipótese possível. Não era outra coisa. E foi essa a linguagem da resposta que lhe deu.

Ao cabo de um ano de ausência, voltou o Rochinha da Europa. Vinha alegre, juvenil, curado; mas, por mais que viesse curado, não pôde ver sem comoção Maria Luísa, dai a cinco dias, na rua. E a comoção foi ainda maior, quando ele reparou que a moça empalidecera muito.

— Ama-me ainda, pensou ele.

E esta idéia luziu no cérebro dele e o acendeu de muita luz e vida. A idéia de ser amado, apesar do marido, e apesar do tempo (um ano!), deu ao Rochinha uma alta idéia de si mesmo. Pareceu-lhe que, rigorosamente, o marido era ele. E (coisa singular!) falou do encontro à prima sem lhe dar notícia da comoção dele e de Maria Luísa, nem da suspeita que lhe ficara de que a paixão de Maria Luísa não morrera. A verdade é que os dois encontraram-se segunda vez e terceira, em casa da prima do Rochinha, e a quarta vez na casa do próprio Vieira. Toledo era morto. Da quarta vez à quinta vez, a distância é tão curta, que não vale a pena falar nisso, senão para o fim de dizer que vieram logo atrás a sexta, a sétima e outras.

Para dizer a verdade toda, as visitas do Rochinha não foram animadas nem até desejadas por Maria Luísa, mas por ele mesmo e pelo Vieira, que desde o primeiro dia achou-o extremamente simpático. O Rochinha desfazia-se, na verdade, com o marido de Maria Luísa; tinha para ele, as mais finas atenções, e desde o primeiro dia desacanhou-o, por meio de uma bonhomia, que foi a porta aberta da intimidade.

Maria Luísa, ao contrário, recebeu as primeiras visitas do Rochinha com muita reserva e frieza. Achou-as até de mau gosto. Mas é difícil conservar uma opinião, quando há contra ela um sentimento forte e profundo. A assiduidade amaciou as asperezas, e acabou por avigorar a chama primitiva. Maria Luísa não tardou em sentir que a presença do Rochinha lhe era necessária, e até pela sua parte dava todas as mostras de uma paixão verdadeira, com a restrição única de que era extremamente cautelosa, e, quando preciso, dissimulada.

Maria Luísa aterrou-se logo que conheceu o estado do seu coração. Ela não amava o marido, mas estimava-o muito, e respeitava-o. O renascimento do amor antigo pareceu-lhe uma perfídia; e, desorientada, chegou a ter idéia de contar tudo a Vieira; mas retraiu-se. Tentou então outro caminho, e começou a fugir das ocasiões de ver o antigo namorado; plano que não durou muito tempo. A assiduidade do Rochinha teve interrupções, mas não cessou nunca de todo, e ao fim de mais algumas semanas, estavam as coisas como no primeiro dia.

Os olhos são uns porteiros bem indiscretos do coração; os de Maria Luísa, por mais que esta fizesse, contaram ao Rochinha tudo, ou quase tudo o que se passava no interior da casa, a paixão e a luta com o dever. E o Rochinha alegrou-se com a denúncia, e pagou aos delatores com a moeda que mais os podia seduzir, por modo que eles dai em diante não tiveram outra coisa mais conveniente do que prosseguir na revelação começada.

Um dia, animado por um desses colóquios, o Rochinha lembrou-se de dizer a Maria Luísa que ele ia outra vez para a Europa. Era falso; não pensara sequer em semelhante coisa; mas se ela, aterrada com a idéia da separação, lhe pedisse que não partisse, o Rochinha teria grande satisfação, e não precisava de outra prova de amor. Maria Luísa, com efeito, empalideceu.

— Vou naturalmente no primeiro paquete do mês que vem, continuou ele.

Maria Luísa baixara os olhos; estava ofegante, e lutava consigo mesma. O pedido para que ele ficasse esteve quase a saltar-lhe do coração, mas não chegou nunca aos lábios. Não lhe pediu nada, deixou-se estar pálida, inquieta, a olhar para o chão, sem ousar encará-lo. Era positivo o efeito da notícia; e o Rochinha não esperou mais nada para pegar-lhe na mão. Maria Luísa estremeceu toda, e ergueu-se. Não lhe disse nada, mas afastou-se logo. Momentos depois, saía ele reflexionando deste modo:

— Faça o que quiser, ama-me. E até parece que muito. Pois…

VII

Oito dias depois, soube-se que Maria Luísa e o marido iam para Teresópolis ou Nova Friburgo. Dizia-se que era moléstia de Maria Luísa, e conselho dos médicos. Não se dizia, contudo, os nomes dos médicos; e é possível que esta circunstância não fosse necessária. A verdade é que eles partiram rapidamente, com grande mágoa e espanto do Rochinha, espanto que, aliás, não durou muito tempo. Ele pensou que a viagem era um meio de lhe fugir a ele, e concluiu que não podia haver melhor prova da intensidade da paixão de Maria Luísa.

Não é impossível que isto fosse verdade; essa foi também a opinião da amiga; essa será a opinião da leitora. O certo é que eles seguiram e por lá ficaram, enquanto o Rochinha meditava na escolha da enfermidade que o levaria também a Nova Friburgo ou Teresópolis. Andava nessa indagação, quando se recebeu na corte a notícia de que o Vieira sucumbira a uma congestão cerebral.

— Feliz Rochinha! pensou cruelmente a prima, ao saber da morte do Vieira.

Maria Luísa desceu logo depois de enterrar o marido. Vinha sinceramente triste; mas excepcionalmente bela, graças às roupas pretas.

Parece que, chegada a narrativa a este ponto, dispensar-se-ia o auxílio do narrador, e as coisas iam por si mesmas. Mas onde ficaria o caso da viúva, que deu que falar a um bairro inteiro? A amiga perguntou-lhe um dia se queria enfim casar com o Rochinha, agora, que nada mais se opunha ao consórcio de ambos.

— Ele é que o pergunta? disse ela.

— Quem o pergunta sou eu, disse a outra; mas há quem ignore a paixão dele?

— Crês que me ame?

— Velhaca! tu sabes bem que sim. Vamos lá; queres casar?

Maria Luísa deu um beijo na amiga; foi a sua resposta. A amiga, contente, enfim, de realizar a sua primitiva idéia, correu à casa do primo. Rochinha hesitou, olhou para o chão, torceu a corrente do relógio entre os dedos, abriu um livro de desenhos, arranjou um cigarro, e acabou dizendo que…

— Quê? perguntou ansiosa a prima.

— Que não, que não tinha idéia de casar.

A estupefação da prima daria outra novela. Tal foi o caso da viúva.

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 17 de setembro de 2021

PÁTRIA NOVA (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

PÁTRIA NOVA

Olavo Bilac

 

 

 

Era dia de descanso no grande engenho. Todas as máquinas estavam paradas, todos os instrumentos de trabalho guardados.
A missa findara; da capela, em bandos alegres, vestindo as suas melhores roupas, saíam as famílias, para o passeio e o folguedo.
Sozinho, fincando os cotovelos nos joelhos, e repousando a cabeça nas mãos, um colono já quase velho, mas homem robusto ainda, em cuja cabeleira ruiva começavam a aparecer os primeiros cabelos brancos, — cismava, alheado a tudo, insensível ao barulho de festa que ia pelas casas da colônia.
Formosa, aquela manhã! No fundo azul do céu recortavam-se as montanhas de um verde quente, e, à beira do riacho, que cantava, sobre as pedras e as ervas rasteiras esmaltadas de flores silvestres, voavam os pássaros, tontos de tanta luz. O sol dava um brilho novo às vidraças das casas, batia em chapa sobre as ardósias dos telhados, e animava toda a paisagem de uma alegria comunicativa, que se apoderava de todas as almas. Era domingo. As últimas pancadas festivas do sino morriam docemente na paz risonha do arredor.
Mas o colono continuava a cismar, sozinho, afastado da gente que se divertia…
É que um dia como aquele (havia justamente dez anos!) saíra ele de sua aldeia natal, sob o céu napolitano, — em busca de terras que com menos avareza recompensassem a fadiga de seu trabalho.
Agora, novas terras, nova natureza, gente nova, dias de febre e de esperança primeiro, dias de conforto e de fartura depois, — não lhe haviam permitido o desejo de voltar a sofrer em vão, sem proveito, sobre a terra ingrata, que não tinha pão bastante para dar a tanta gente que lhe pedia… mas ninguém esquece a sua terra, por mais pobre, por mais triste que ela seja! E o colono evocava a recordação do dia em de que lá saíra, — e revia todos os aspectos familiares da linda aldeia: as crianças nuas e espertas que se arrastavam no pó, os velhos que ficavam às portas apoiados nos bordões, os rapazes que o sol queimava, e as raparigas robustas que iam com eles para o penoso ofício das lavouras. E uma grande tristeza lhe pesava sobre o coração cheio de saudades…
Mas nesse momento alguém se aproximou dele. Era uma forte mulher, ainda no verdor da idade, trazendo ao colo uma criança. Chegou, pousou a mão no ombro do colono que se absorvia na meditação, e despertou-o da cisma:
— Que é isso, pai? Já o procuramos por toda parte… Que tem? Por que foge de nós num dia como este, e vem aqui ficar, sozinho, com a sua tristeza?
— É justamente por causa do dia de hoje que me vês triste, filha — disse ele. — É possível que te não tenhas lembrado que foi neste dia, há dez anos, que saímos de nossa terra?
Uma nuvem de melancolia sombreou a face da rapariga. Esteve durante alguns segundos calada, ajeitando a ponta do chalé, para livrar dos raios do sol o rosto do pequenino que dormia. Depois, olhando com amor a face triste do pai, respondeu:
— Como não havia de me lembrar, pai! Logo de madrugada, comecei a pensar nisso… estive revivendo o dia em que saí de lá, solteira ainda, deixando as companheiras dos meus folguedos de criança… estive contemplando, em imaginação, o cemitério da nossa aldeia, em que está a sepultura de minha mãe… como é que eu poderia não ter saudades? Mas calei-me, e disfarcei, para não lhe dar essa mágoa, pai… pensei que não se lembrasse!
— Lembro-me, filha, lembro-me bem! Quem esquece a sua terra não tem coração!
Ficaram calados ambos. Depois, a filha continuou:
— Mas escute, pai! Por que há de ficar triste? Mais vale esquecer, e viver feliz, gozando a fortuna que o seu trabalho lhe está dando aqui! Ouça! Eu, por mim, estou disposta a não pensar mais nisso: foi aqui que vi felizes todos os meus, foi aqui que casei, foi aqui que nasceu meu filho, o seu neto… Por que é que não hei de amar esta terra, como se ela fosse minha?
O colono olhou fixamente a filha:
— Como?! Pois tu és capaz de esquecer a tua terra?
Ela hesitou um momento; mas logo em seguida, com voz firme, disse:
— Não! Esquecer não posso… não posso… mas diga-me: a terra de lá é que é a sua, e é que é a minha… qual é, porém, a desta criança que aqui está, que nasceu aqui e que vai crescer ignorando a língua que nós mesmos já vamos esquecendo, e vendo todos os dias, da infância à idade madura e à velhice, esta Pátria da liberdade e da riqueza? Olhe! E veja como ela bate palmas, contente, a este sol que a viu nascer!
De fato, a criança acordara. Piscava os olhinhos, entre as pálpebras gordas, sentindo o calor do sol, e agitava-se, rindo, no colo da rapariga.
O homem sentiu os olhos úmidos, e, tomando a criança nos braços, exclamou:
— Tens razão, filha! Esta é a terra de teu filho, esta é a Pátria do meu neto: por que é que não há de ser também a nossa terra?
E, alegre, levantando e abaixando a criança, no ar, com os seus braços robustos, começou a brincar com ele, dizendo-lhe, com o seu acento napolitano:
— Bravo, brasileirinho! Bravo, brasileirinho!…


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 16 de setembro de 2021

NO MUNDO DOS FEITIÇOS (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

NO MUNDO DOS FEITIÇOS

OS FEITICEIROS

João do Rio

 

Antônio é como aqueles adolescentes africanos de que fala o escritor inglês. Os adolescentes sabiam dos deuses católicos e dos seus próprios deuses, mas só veneravam o uísque e o schilling. Antônio conhece muito bem N. S.ª das Dores, está familiarizado com os orixálas da África, mas só respeita o papel-moeda e o vinho do Porto. Graças a esses dois poderosos agentes, gozei da intimidade de Antônio, negro inteligente e vivaz; graças a Antônio, conheci as casas das ruas de São Diogo, Barão de S. Felix, Hospício, Núncio e da América, onde se realizam os candomblés e vivem os pais-de-santo. E rendi graças a Deus, porque não há decerto, em toda a cidade, meio tão interessante.

Vai V.S. admirar muita coisa! - dizia Antônio a sorrir; e dizia a verdade.

Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o Rio no tempo do Brasil colônia e do Brasil monarquia, restam uns mil negros. São todos das pequenas nações do interior da África, pertencem ao igesá, oié, ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se consideram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendência brasileira à África para estudar a religião, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mistérios e as feitiçarias. Todos, porém, falam entre si um idioma comum: - o eubá.

Antônio, que estudou em Lagos, dizia:

- O eubá para os africanos é como o inglês para os povos civilizados. Quem fala o eubá pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio. Só os cambindas ignoram o eubá, mas esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil. Quando os cambindas falam, misturam todas as línguas... Agora os orixás e os alufás só falam o eubá.

- Orixás, alufás? - fiz eu, admirado.

São duas religiões inteiramente diversas. Vai ver.

Com efeito. Os negros africanos dividem-se em duas grandes crenças: os orixás e os alufás.

Os orixás, em maior número, são os mais complicados e os mais animistas. Litólatras e fitólatras, têm um enorme arsenal de santos, confundem os santos católicos com os seus santos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cada erva, uma alma e um espírito. Essa espécie de politeísmo bárbaro tem divindades que se manifestam e divindades invisíveis. Os negros guardam a idéia de um Deus absoluto como o Deus católico: Orixa-alúm. A lista dos santos é infindável. Há o orixalá, que é o mais velho, Axum, a mãe dágua doce, Ie-man- já, a sereia, Exu, o diabo, que anda sempre detrás da porta, Sapanam, o Santíssimo Sacramento dos católicos, o Irocô, cuja aparição se faz na árvore sagrada da gameleira, o Gunocô, tremendo e grande, o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, a Dadá, Orainha, que são invisíveis, e muitos outros, como o santo do trovão e o santo das ervas. A juntar a essa coleção complicada, têm os negros ainda os espíritos maus e os heledás ou anjos da guarda.

É natural que para corresponder à hierarquia celeste seja necessária uma hierarquia eclesiástica. As criaturas vivem em poder do invisível e só quem tem estudos e preparo pode saber o que os santos querem. Há por isso grande quantidade de autoridades religiosas. Às vezes encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem cessar. São babalaôs, matemáticos geniais, sabedores dos segredos santos e do futuro da gente; são babás que atiram o endilogum; são babaloxás, pais-de-santos veneráveis. Nos lanhos da cara puseram o pó da salvação e na boca têm sempre o obi, noz de cola, boa para o estômago e asseguradora das pragas.

Antônio, que conversava dos progressos da magia na África, disse-me um dia que era como Renan e Shakespeare: vivia na dúvida. Isso não o impedia de acreditar nas pragas e no trabalhão que os santos africanos dão.

- V. s. não imagina! Santo tem a festa anual, aparece de repente à pessoa em que se quer meter e esta é obrigada logo a fazer festa; santo comparece ao juramento das Iauô e passa fora, do Carnaval à Semana Santa; e logo quer mais festa... Só descansa mesmo de fevereiro a abril.

- Estão veraneando.

- No carnaval os negros fazem ebó.

- Que vem a ser ebó?

Ebó é despacho. Os santos vão todos para o campo e ficam lá descansando.

- Talvez estejam em Petrópolis.

- Não. Santo deixa a cidade pelo mato, está mesmo entre as ervas.

- Mas quais são os cargos religiosos?

Há os babalaôs, os açoba, os aboré, grau máximo, as mães-pequenas, os ogan, as agibonam...

A lista é como a dos santos, muito comprida, e cada um desses personagens representa papel distinto nos sacrifícios, nos candomblés e nas feitiçarias. Antônio mostra-me os mais notáveis, os pais-de-santo: Oluou, Eruosaim, Alamijo, Adé-Oié, os babalaôs Emídio, Oloô-teté, que significa treme-treme, e um bando de feiticeiros: Torquato requipá ou fogo pára-chuva, Obitaiô, Vagô, Apotijá, Veridiana, Crioula Capitão, Rosenda, Nosuanan, a célebre Chica de Vavá, que um político economista protege...

- A Chica tem proteção política?

- Ora se tem! Mas que pensa o senhor? Há homens importantes que devem quantias avultadas aos alufás babalaôs que são grau 32 da Maçonaria.

Dessa gente, poucos lêem. Outrora ainda havia sábios que destrinçavam o livro sagrado e sabiam porque Exu é mau - tudo direitinho e claro como água. Hoje a aprendizagem é feita de ouvido. O africano egoísta pai-de-santo, ensina ao aboré, as iauô quando lhes entrega a navalha, de modo que não só a arte perde muitas das suas fases curiosas como as histórias são adulteradas e esquecidas.

Também agora não é preciso saber o Saó Hauin. Negro só olhando e sabendo o nome da pessoa pode fazer mal, diz Antônio.

Os orixás são em geral polígamos. Nessas casas das ruas centrais de uma grande cidade, há homens que vivem rodeados de mulheres, e cada noite, como nos sertões da África, o leito do babaloxás é ocupado por uma das esposas. Não há ciúmes, a mais velha anuncia quem a deve substituir, e todas trabalham para a tranqüilidade do pai. Oloô-Teté, um velho que tem noventa anos no mínimo, ainda conserva a companheira nas delícias do himeneu, e os mais sacudidos transformam as filhas-de-santo em huris de serralhos.

Os alulás têm um rito diverso. São maometanos com um fundo de misticismo. Quase todos dão para estudar a religião, e os próprios malandros que lhes usurpam o título sabem mais que os orixás.

Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua, sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.

- Só os alufás ricos sentam-se em peles de tigre, diz-nos Antônio.

Essas criaturas contam à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de porco, escrevem as orações numas taboas, as atô, com tinta feita de arroz queimado, e jejuam como os judeus quarenta dias a fio, só tomando refeições de madrugada e ao pôr-do-sol.

Gente de cerimonial, depois do assumy, não há festa mais importante como a do ramadan, em que trocam o saká ou presentes mútuos. Tanto a sua administração religiosa como a judiciária estão por inteiro independentes da terra em que vivem.

Há em várias tribos vigários gerais ou ladamos, obedecendo ao lemano, o bispo, e a parte judiciária está a cargo dos alikaly, Juizes, sagabamo, imediatos de juizes, e assivajiú, mestre de cerimônias.

Para ser alufá é preciso grande estudo, e esses pretos que se fingem sérios, que se casam com gravidade, não deixam também de fazer amuré com três e quatro mulheres.

- Quando o jovem alufá termina o seu exame, os outros dançam o opasuma e conduzem o iniciado a cavalo pelas ruas, para significar o triunfo.

- Mas essas passeatas são impossíveis aqui, brado eu.

- Não são. As cerimônias realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares afastados, e os alufás, vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.

Naturalmente Antônio fez-me conhecer os alufás:

Alikali; lemano atual, um preto de pernas tortas, morador à rua Barão de S. Félix, que incute respeito e terror; o Chico Mina, cuja filha estuda violino, Alufapão, Ojó, Abacajebú, Ginjá, Manê, brasileiro de nascimento, e outros muitos.

Os alufás não gostam da gente de santo a que chamam auauadó-chum; a gente de santo despreza os bichos que não comem porco, tratando-os de malés. Mas acham-se todos relacionados pela língua, com costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da feitiçaria. Os orixás fazem sacrifícios, afogam os santos em sangue, dão-lhes comidas, enfeites e azeite-de-dendê.

Os alufás, superiores, apesar da proibição da crença, usam dos aligenum, espíritos diabólicos chamados para o bem e o mal, num livro de sortes marcado com tinta vermelha e alguns, os maiores, como Alikali, fazem até idams ou as grandes mágicas, em que a uma palavra cabalística a chuva deixa de cair e obis aparecem em pratos vazios.

Antes de estudar os feitiços, as práticas por que passam as iauô nas camarinhas e a maneira dos cultos, quis ter uma impressão vaga das casas e dos homens.

Antônio levou-me primeiro à residência de um feiticeiro alufá. Pelas mesas, livros com escrituras complicadas, ervas, coelhos, esteiras, um calamo de bambu finíssimo.

Da porta o guia gritou:

- Salamaleco.

Ninguém respondeu.

- Salamaleco!

- Maneco Lassalama!

No canto da sala, sentado numa pele de carneiro, um preto desfiava o rosário, com os olhos fixos no alto.

- Não é possível falar agora. Ele está rezando e não quer conversar. Saímos, e logo na rua encontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer de nós, ternos claros e usa suíças cortadas rentes. Já o conhecia de o ver nos cafés concorridos, conversando com alguns deputados. Quando nos viu, passou rápido.

- Está com medo de perguntas. Chico gosta de fingir.

Entretanto, no trajeto que fizemos do Largo da Carioca à praça da Aclamação, encontramos, a fora um esverdeado discípulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duas mães-de-santo, um velho babalaô e dois babaloxás.

Nós íamos à casa do velho matemático Oloô-Teté.

As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão cheias de negros baianos e de mulatos. São quase sempre rótulas lobregas, onde vivem com o personagem principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos; por cima das mesas, terrinas, pucarinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de oleado onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal, quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.

Há na atmosfera um cheiro carregado de azeite-de-dendê, pimenta-da-costa e catinga. Os pretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. Não fosse a credulidade, a vida ser-lhes-ia difícil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.

Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.

- Está pensando! - dizem os outros.

De repente, os pobres velhos ingênuos acordam,  com um sonho mais forte nessa confusa existência de pedras animadas e ervas com espírito.

 - Xangô diz que eu tenho de fazer sacrifício!

Xangô, o deus do trovão, ordenou no sono, e o opelê, feito de cascas de tartaruga e batizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer com que sacrifício se contenta Xangô.

Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá. As filhas-de-santo, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar dá-lhes o supérfluo. A preocupação destes é saber mais coisas, os feitiços desconhecidos, e quando entra o que sabe todos os mistérios, ajoelham assustados e beijam-lhe a mão, soluçando:

- Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!

À tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em alguma pedreira. Os feiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos outros, falam com intimidade das figuras mais salientes, do país, do imperador, de que quase todos têm o retrato, de Cotegipe, do barão de Mamanguape, dos presidentes da República.

As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopéas sinistramente doces. Essas melopéas são quase sempre as preces, as evocações, e repetem sem modalidade, por tempo indeterminado, a mesma frase.

Só pelos candomblés ou sessões de grande feitiçaria, em que os babalaôs estão atentos e os pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocações diante dos fogareiros com o tessubá na mão, é que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de acassá com azeite-de-dendê.

Quando entramos na casa de Oloô-Teté, o matemático macróbio e sensual, uma velha mina, que cantava sonambulicamente, parou de repente.

- Pode continuar.

Ela disse qualquer coisa de incompreensível.

- Está perguntando se o senhor lhe dá dois tostões, ensina-nos Antônio.

- Não há dúvida.

A preta escancara a boca, e, batendo as mãos, põe-se a cantar:

Baba ounlô, ó xocotám, o ilélê.

- Que vem a ser isso?

- É o final das festas, quando o santo vai embora. Quer dizer: papai já foi, já fez, já acabou; vai embora!

Eu olhava a réstia estreita do quintal onde dormiam jabotis.

- O jaboti é um animal sagrado?

- Não, diz-nos o sábio Antônio. Cada santo gosta do seu animal. Xangô, por exemplo, come jaboti, galo e carneiro. Abaluaié, pai de varíola, só gosta de cabrito. Os pais-de-santo são obrigados pela sua qualidade a fazer criação de bichos para vender e tê-los sempre à disposição quando precisam de sacrifício. O jaboti é apenas um bicho que dá felicidade. O sacrifício é simples. Lava-se bem, às vezes até com champanha, a pedra que tem o santo e põe-se dentro da terrina. O sangue do animal escorre; algumas das partes são levadas para onde o santo diz e o resto a roda come.

- Mas há sacrifícios maiores para fazer mal às pessoas?

- Há! para esses até se matam bois.

- Feitiço pega sempre, sentencia o ilustre Oloô-Tetê, com a sua prática venerável. Não há corpo-fechado. Só o que tem é que uns custam mais. Feitiço para pegar em preto é um instante, para mulato já custa, e então para cair em cima de branco a gente sua até não poder mais. Mas pega sempre. Por isso preto usa sempre o assiqui, a cobertura, o breve, e não deixa de mastigar obi, noz de cola preservativa.

Para mim, homem amável, presentes alguns companheiros seus, Oloô-Tetê tirou o opelé que há muitos anos foi batizado e prognosticou o meu futuro.

Este futuro vai ser interessante. Segundo as cascas de tartaruga que se voltavam sempre aos pares, serei felicíssimo, ascendendo com a rapidez dos automóveis a escada de Jacó das posições felizes. É verdade que um inimigozinho malandro pretende perder-me. Eu, porém, o esmagarei, viajando sempre com cargos elevados e sendo admirado.

Abracei respeitoso o matemático que resolvera o quadrado da hipotenusa do desconhecido.

- Põe dinheiro aqui - fez ele.

Dei-lhe as notas. Com as mãos trêmulas, o sábio a apalpou longamente.

- Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede o que tiveres vontade à concha, dizendo sim, e à pedra dizendo não.

Assim fiz. O opelé caiu de novo no encerado. A concha estava na mão direita de Antônio, a pedra na esquerda, e Oloô tremia falando ao santo, com os negros dedos trêmulos no ar.

- Abra a mão direita! ordenou.

Era a concha.

- Se acontecer, ossumcê dá presente a Oloô?

- Mas decerto.

Ele correu a consultar o opelé. Depois sorriu.

- Dá, sim, santo diz que dá. - E receitou-me os preservativos com que eu serei invulnerável.

Também eu sorria. Pobre velho malandro e ingênuo! Eu perguntara apenas, modestamente, à concha do futuro se seria imperador da China... Enquanto isso, a negra da cantiga entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos.

 

O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé
O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé

 

- E esta, o que quer dizer?

- É uma cantiga de Orixalá. Significa: O homem do dinheiro está aí. Vamos erguê-lo...

Apertei-lhe a mão jubiloso e reconhecido. Na alusão da ode selvagem a lisonja vivia o encanto da sua vida eterna...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 15 de setembro de 2021

É MORTO PULCINELLA!... (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

É MORTO PULCINELLA!...

(Raul Pompéia)

 

 

 

Canzonetta de Tosti
A ALCEBÍADES FURTADO
 
Ideal, fleur bleue à coeur d'or, dont les
racines libreuses, mil fois plus déliees
que les tresses de soie des fées, plongent
au Iond de nôtre âme pour en boire la
plus pure substance; fleur douce et amêre!
on ne peut t'arracher sans faire saigner
le coeur, sans que de ce tige brisée suintent
des goutea rouges!
 
Era tarde.
 
A gosto, no pegnoir que vestira, alvo de neve, gentilmente enfeitado aos ombros por pequenos laços vermelhos pousados como borboletas, Amélia, a jovem viscondessa, aproximou-se da janela.
 
Fora, ampliava-se a noite, sem astros, densamente negra. Silêncio de cemitério — um silêncio negro, da cor da noite; distinguia-se a gotejar, em lágrimas pausadas, a linfa escassa de uma fonte perdida nas trevas. Um bico de gás a meia chama, mantinha brando crepúsculo na antecâmara, boudoir da viscondessa. Pulverizava-se a luz em irradiações de pedraria nos cristais do lustre e passava ao jardim pelo vão das cortinas, projetando um triângulo de claridade sobre o arvoredo fronteiro. Dentro do triângulo, aumentada e deformada, a sombra de Amélia.
 
Depois do casamento, era a primeira vez que se encontravam a sós, Amélia e a sombra, a sua sombra, a discreta confidente dos sonhos idos. Estavam a sós; o visconde era detido a fazer sala a alguns amigos cerimoniosos e renitentes. Que diria ela agora, à querida irmã fantástica? Ali, recostado às árvores, trajando a eterna veste escura de melancolia, olhando-a, mudo, com os invisíveis olhos das aparições, ele queria saber alguma coisa, o amável fantasma. Não lhe havia Amélia contado, outrora, os sobressaltos do seu coração, as esperanças, os desalentos? não lhe havia mostrado misteriosamente uma flor que recebera; a seu lado não decorara a primeira carta inflamada de efusões?... Amélia não achou o que dizer à sombra. Apoiou os cotovelos ao peitoril, e, cobrindo o rosto, sufocou com as mãos uma tempestade de soluços. Dos olhos, por entre os dedos, corriam-lhe as lágrimas candentes.
 
Na abstração da dor, essa espécie de desmaio em que degenera o pranto violento, doce alívio final que adormece a consciência do desgosto, sem mortificar os sentidos, a jovem senhora percebeu, longe, longe, por cima da massa do arvoredo, além da rua, além da casaria do arrabalde, dispersa na escuridão, fugitivos acordes de piano. Dir-se-ia um prelúdio caprichoso e sentido. Elevava-se a música à distância, contorcendo-se doridamente como essas linhas tênues de fumo que se avistam, de dia, a desfiar-se no horizonte. Pouco depois, igualmente atenuada em surdina, pelo afastamento, casou-se aos sons do piano uma voz de barítono
 
Signore beile, voi mi dimandate
Qual nuova oggi vi porto?...
 
Amélia reconheceu a canção de Tosti, a original canção de Tosti, mais vulgarizada que compreendida, a elegia pungente de Pulcinella, crueldade do acaso! exatamente a elegia de Pulcinella que lhe recordava a mais saudosa das ilusões mortas!
 
Tirou as mãos do rosto; já não chorava. Pôs-se a escutar avidamente. A menor vibração do ar dilacerava o canto. Chegavam as frases indistintas, incompletas, como destroços de uma página rasgada ao vento.
 
Amélia ouvia com febre, reconstruindo de memória as palavras desfeitas. Aquela voz cantava-lhe do passado; a letra lamentosa era uma queixa irônica das suas recordações
 
La sapienza del sorriso
Se ne andó da questo mondo
Con quel nom dal negro viso...
 
Lembrava-se...
 
Seis meses não eram decorridos.
 
Moça feita, pensavam em casá-la. O comendador, seu pai, homem despótico e violento, habituado a comandar caixeiros nos armazéns, a levar as fazendas a pontapés, comunicou-lhe sumariamente que acabava de prometê-la em casamento ao visconde de N., um grande partido! Titular e milionário! A moça quis falar. O comendador deu-lhe as costas. Não estava acostumado a ouvir recriminações dos fardos, quando os consignava. Mas, como o casamento ocasionaria separação, aventou-se a ideia de mandar fazer a óleo o retrato de Amélia. O comendador queria muito bem à filha; o retrato seria uma lembrança viva e perene. E, depois, o retrato se havia de exibir com a declaração: por ordem do Sr. comendador...
 
Escolheram o artista para o trabalho.
 
A sorte remenda às vezes como pode o tecido das suas piores tramas. O pintor preferido foi Armando, o nobre artista, laureado na Europa, respeitado na pátria, Armando, o ídolo e o idólatra de Amélia (ignorava-o por certo o comendador), Armando, o bravo trabalhador que contava estar muito breve habilitado no conceito do pai a pretender a mão da filha por algum merecimento menos abstrato que a pura glória do seu nome. Desde crianças conheciam-se os dois. Amavam-se havia alguns anos. A esperança do casamento nutria-lhes um amor tranquilo, de parte a parte, distanciado e discreto. A casa de uns parentes de Amélia, amigos íntimos da família de Armando, era o ponto de encontro. Nessa casa, ouvira uma vez Amélia a composição de Tosti cantada por Armando, com a bela voz de que dispunha, energicamente timbrada. E, daí em diante essa música envolvera o seu amor, como uma espiral de flores.
 
Oggi é morto il gran poeta
Daí satirico ardimento
Che mescé la goccia lieta
Nelia coppa d'ogni evento.
 
Para fazer o retrato, Armando vinha regularmente passar algumas horas todos os dias em casa do comendador, cuja estimável senhora, com a solicitude de mãe zelosa, durante as sessões não arredava pé da sala feita atelier.
 
Amélia acomodava-se a uma poltrona, sobre almofadas para ficar em boa posição. A alguns passos da poltrona Armando erguera o cavalete. Duas vidraças, as únicas abertas da sala, convenientemente veladas, iluminavam a três quartos, por cima, o modelo e a tela. Grande pano de basto veludo azul, suspenso a um cordão que atravessava a sala de parede a parede, servia de fundo, projetando ao rosto da jovem reflexos celestiais. Protegidos, modelo e artista, pela cumplicidade desta cortina de veludo, que os isolava numa solidão relativa, encobrindo-os às vistas da senhora do comendador, deliciosos momentos gozavam eles! Às vezes, Armando deixava cair o pincel e esquecia-se a contemplar o adorado modelo; às vezes, sob pretexto de endireitar a posição, aproximava-se de Amélia, tomava-lhe a mão, beijava-lhe furtivamente os dedos. Amélia consentia. Tudo estava perdido para ela; por que havia de repelir? Ele nada sabia, o pobre; e a Amélia faltava coragem para desiludi-lo. Demais, tão suave era o engano, que ela mesmo se deixava levar pela ebriedade do momento... Estava em vésperas de casar-se... Pois o seu noivo era Armando! E neste sonho, divertiam-se perdidamente os namorados. Permutavam frases de vago sentido, temperadas de paixão. Borboleteavam, a meia voz, sobre os assuntos, artes, pintura, música, segredos do colorido, preferências em matéria de cor: ela preferia o azul, a cor do infinito; ele preferia o vermelho, o vermelho vibrante, a tinta do sangue e da vida!
 
Egli, il re dell'allegria,
Soffri sempre um brutto male
Un 'orrenda malattia
Ché-si chiama-l'Ideale!
 
Quanto à pintura, o artista esmerava-se com verdadeiro fervor. Inebriava-o a ideia de se achar ali a imitar o cetim daquelas faces, a profundidade de abismo daquele olhar, o recorte caprichoso dos lábios, encrespados como pétalas de carne. Tinha ímpetos de cair e pintar de joelhos, como Fra-Angélico. E rejubilava de ver com que felicidade ressaltavam, sob o pincel, os encantos da fisionomia do modelo.
 
— Hoje acabo o retrato! disse Armando, ao entrar um dia, às horas do costume.
 
— Deve estar contente, observou a mãe de Amélia. Que o senhor tem trabalhado!... Já se vão dez dias! Mas pode abar-se de ter aproveitado o tempo... Não há quem veja, que não ache primoroso...
 
A última sessão foi triste. Amélia sentia-se possuída de um desespero surdo. Último dia, último dia das suas ilusões! Quisera deitar mão ao sonho que fugia. Baldado esforço! As névoas passavam, tocadas pelo vento. Armando esteve a ponto de gravar na tela uma lágrima que surpreendeu nos olhos da jovem; pintou-a mesmo, por fantasia e apagou depois com uma pincelada de sombra. Estampou, entretanto, com os últimos toques, definitivamente, a expressão de melancolia, a bela tristeza do seu rosto. Preocupado pelo desgosto do próximo fim da deleitosa temporada, pintava sem dizer palavra. A jovem não tinha ânimo de falar. Sentia que, se descerrasse os lábios, o pranto lhe rebentaria dos olhos. Mantinha-se em contensão nervosa, e o via pintar, carinhoso, trêmulo, como se temesse ofender a querida imagem, absorto, como se a alma toda lhe escapasse para a tela pelos fios louros do pincel.
 
— Pronto! exclamou afinal Armando. Já o dou por pronto!
 
— Já?! balbuciou Amélia.
 
E ergueu-se. O torpor da imobilidade lhe deixara os membros pesados. Ela inteiriçou o corpo, espreguiçando-se com um ligeiro frêmito felino e adiantou-se para o cavalete.
 
Com o seu ar enfadado de tristeza, os grandes olhos enternecidos pela fadiga da pose, obrigados a fitar numa direção invariável, apertada elegantemente na rica toilette de baile cetim pérola com que se fazia retratar, coberta de rosas, como uma alegoria da primavera, emergindo-lhe a mimosa cabeça de um decote talhado em ângulo agudo para as costas e sobre o colo, os cabelos apanhados com arte mostrando toda a alvura do pescoço, nus os adoráveis braços de virgem, desajeitados como no enleio de sentir a nudez, Amélia deslumbrava. Encontrando-a com o olhar, Armando teve um choque. Não sei se a ilusão da última hora que faz parecer melhor o que se vai perder, não sei se o véu de encanto que lhe vestia a ternura da tristeza, Armando senti uma impressão de novidade. Nunca a vira assim, como naquela última hora da última sessão, nunca o pintor a vira assim divina!
 
Ao aproximar-se a jovem, ele recuou como aturdido. Evolava-se das flores daquele vestido um perfume de entontecer.
 
Diante da pintura, de costas para o artista, Amélia parou. Um estremecimento de surpresa, quase de susto, agitou-a toda. Era ela! era ela! Ali estava em busto, perfeita! Os belos olhos pensativos de corça, a cútis branca, o fino traço das sobrancelhas ligeiramente oblíquas, os longos cílios negros sedosos, o corte da boca meio arqueado para os cantos, num sorriso indefinível, o cabelo castanho, seco, transparente, penetrado de luz como uma nuvem, com uns tons de prata que brilhavam, rodeando-lhe as feições, sobre o fundo de azul espesso. Estremeceu de pudor, vendo, ali no pano, a verdade com que o pintor soerguera o começo de seios que o ângulo do decote traia; estavam ali veias em que ela mesmo ainda não fizera reparo. Sentia-se, ao vivo, na tela como num espelho, mais ao vivo ainda; porque um sinalzinho da face esquerda que o espelho mostrava à direita, ela o tinha aí, no lugar exato.
 
Para apreciar o efeito à distância afastando-se da tela, a moça, sem o ver, chegava-se para Armando. O artista sentiu o sangue subir-lhe às têmporas em vertigem. A posição, junto da janela até onde recuara não permitia livrar-se. Em pouco, Amélia veio tocá-lo com o ombro. Ao contato inesperado, a moça exalou um gritozinho de surpresa. Quis fugir. Armando a prendera.
 
Rodeava-os a profunda tranquilidade da sesta. Mal se ouvia sibilar a respiração compassada da senhora do comendador, além do pano de veludo, no fundo da sala, dormindo ao sofá curvada sobre si, como um pescador à espera, ou como se continuasse, de longe, a leitura do romance que lhe correra das mãos e que se abria agora no chão derramando inutilmente os seus episódios, entre as escarradeiras, pelo tapete. Tal qual a boa senhora, tudo em torno parecia adormecido, as franjas, as borlas da tapeçaria, à verga das portas, pendendo imóveis, os tinhorões artificiais das cantoneiras, os prismas das arandelas, como dragonas de vidro de marechais fantásticos perfilados, um galgo de faiança, deitado em rodilha, sobre um dunquerque, num leito de felpas chamejantes, dois retratos de família, meio corpo, fidalgos de D. João VI, pasmados nas molduras seculares, de uma pasmaceira de defuntos, contritos, no seu papel inofensivo de múmias a óleo. As vidraças, que interceptavam os pequenos rumores do exterior mostravam muito verdes pendões de vegetação ramalhuda e vivaz; ainda lá fora, as árvores dormiam no ar morno. O próprio sol deixava, sonolento, aos ramos que lhe embalassem a indolência de ouro. Dois grandes espelhos da sala, inclinados, repetiam na profundidade do cristal a imagem de todo aquele repouso, fazendo eco ao silêncio.
 
Vencido o primeiro movimento de instintiva repulsa, Amélia se deixara enlaçar. Dobrando para trás a cabeça, pousou-a ao ombro de Armando; tomou-lhe o rosto entre as mãos e o comprimiu contra o seu rosto; confundiram-se os lábios, e os cabelos da fronte. A outra Amélia, a do painel, olhava-os, testemunha complacente daquele amor, com a melancolia do seu olhar, colada ao fundo de céu noturno.
 
Ouviu-se um beijo no silêncio.
 
Agora, ela era... a viscondessa.
 
Egli s'era innamorato
Ma sapea che il mondo intero
Scherno sol gli avria serbato
S'ei dicea quel suo mistero
 
Força viver com aquele homem. Visconde... visconde... Alma verde de azinhavre, como as suas moedas, como os seus brasões comprados! Mas era o esposo; ela era dele. Que fazer?! Dera-lhe em dote os despejos palpitantes das ilusões perdidas. Tudo passara, tudo passara!
 
Ed ei finse... e rise ancora...
Rise... rise... e non guari!
Invocò la morte allora...
E la morte lo rapi!...
 
Os sons daquela elegia atravessavam a noite, sob o luto do firmamento, como o funeral dos seus enlevos...
 
Pobre Pulcinella, morto de amor e de Ideal!
 
Morrem assim os corações!
 
E Amélia imaginava quantos, quantos! não trazem no peito o cadáver importuno de um coração que tiveram.

Literatura - Contos e Crônicas terça, 14 de setembro de 2021

O ANJO DAS DONZELAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

 

 

 

O ANJO E A DONZELA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

Cuidado, leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela.

A esta notícia o leitor estremece e hesita. É naturalmente um homem de bons costumes, acata as famílias e preza as leis do decoro público e privado. É também provável que já tenha deparado com alguns escritos, destes que levam aos papéis públicos certas teorias e tendências que melhor fora nunca tivessem saído da cabeça de quem as concebeu e proclamou. Hesita e interroga a consciência se deve ou não continuar a ler as minhas páginas, e talvez resolva não prosseguir. Volta a folha e passa a coisa melhor.

Descanse, leitor, não verá neste episódio fantástico nada do que se não pode ver à luz pública. Eu também acato a família e respeito o decoro. Sou incapaz de cometer uma ação má, que tanto importa delinear uma cena ou aplicar uma teoria contra a qual proteste a moralidade.

Tranqüilize-se, dê-me o seu braço, e atravessemos, pé ante pé, a soleira da alcova da donzela Cecília.

Há certos nomes que só assentam em certas criaturas, e que quando ouvimos pronunciá-los como pertencentes a pessoas que não conhecemos, logo atribuímos a estas os dons físicos e morais que julgamos inseparáveis daqueles. Este ê um desses nomes. Veja o leitor se a moça que ali se acha no leito, com o corpo meio inclinado, um braço nu escapando-se do alvo lençol e tendo na extremidade uma mão fina e comprida, os cabelos negros, esparsos, fazendo contraste com a brancura da fronha, os olhos meio cerrados lendo as últimas páginas de um livro, veja se aquela criatura pode ter outro nome, e se aquele nome pode estar em outra criatura.

Lê, como disse, um livro, um romance, e apesar da hora adiantada, onze e meia, ela parece estar disposta a não dormir sem saber quem casou e quem morreu.

Ao pé do leito, sobre a palhinha que forra o soalho, estende-se um pequeno tapete, cuja estampa representa duas rolas, de asas abertas, afagando-se com os biquinhos. Sobre esse tapete estão duas chinelinhas, de forma turca, forradas de seda cor de rosa, que o leitor jurará serem de um despojo de Cendrilon. São as chinelas de Cecília. Avalia-se já que o pé de Cecília deve ser um pé fantástico, imperceptível, impossível; e examinando bem pode-se até descobrir, entre duas pontas do lençol mal estendido, a ponta de um pé capaz de entusiasmar o meu amigo Ernesto C..., o maior admirador dos pés pequenos, depois de mim... e do leitor.

Cecília lê um romance. É o centésimo que lê depois que saiu do colégio, e não saiu há muito tempo. Tem quinze anos. Quinze anos! é a idade das primeiras palpitações, a idade dos sonhos, a idade das ilusões amorosas, a idade de Julieta; é a flor, é a vida, é a esperança, o céu azul, o campo verde, o lago tranqüilo, a aurora que rompe, a calhandra que canta, Romeu que desce a escada de seda, o último beijo que as brisas da manhã ouvem e levam, como um eco, ao céu.

Que lê ela? Daqui depende o presente e o futuro. Pode ser uma página da lição, pode ser uma gota de veneno. Quem sabe? Não há ali à porta um índex onde se indiquem os livros defesos e os lícitos. Tudo entra, bom ou mau, edificante ou corruptor, "Paulo e Virgínia", ou "Fanny". Que lê ela neste momento? Não sei. Todavia deve ser interessante o enredo, vivas as paixões, porque a fisionomia traduz de minuto a minuto as impressões aflitivas ou alegres que a leitura lhe vai produzindo.

Cecília corre as páginas com verdadeira ânsia, os olhos voam de uma ponta da linha à outra; não lê; devora; faltam só duas folhas, falta uma, falta uma lauda, faltam dez linhas, cinco, uma... acabou.

Chegando ao fim do livro, fechou-o e pô-lo em cima da pequena mesa que está ao pé da cama. Depois, mudando de posição, fitou os olhos no teto e refletiu.

Passou em revista na memória todos os sucessos contidos no livro, reproduziu episódio por episódio, cena por cena, lance por lance. Deu forma, vida, alma, aos heróis do romance, viveu com eles, conversou com eles, sentiu com eles. E enquanto ela pensava assim, o gênio que nos fecha as pálpebras à noite hesitou, à porta do quarto, se devia entrar ou esperar.

Mas, entre as muitas reflexões que fazia, entre os muitos sentimentos quê a dominavam, alguns havia que não eram d'agora, que já eram velhos hóspedes no espírito e no coração de Cecília.

Assim que, quando a moça acabou de reproduzir e saciar os olhos da alma na ação e nos episódios que acabara de ler, voltou-lhe o espírito naturalmente para as idéias antigas e o coração palpitou sob a ação dos antigos sentimentos.

Que sentimentos, que idéias seriam essas? Eis a singularidade do caso. De há muito tempo que as tragédias do amor a que Cecília assistia nos livros causavam-lhe uma angustiosa impressão. Cecília só conhecia o amor pelos livros. Nunca amara. Do colégio saíra para casa e de casa não saíra para mais parte alguma. O pressentimento natural e as cores sedutoras com que via pintado o amor nos livros, diziam-lhe que devia ser uma coisa divina, mas ao mesmo tempo diziam-lhe também os livros que dos mais auspiciosos amores pode-se chegar aos mais lamentáveis desastres. Não sei que terror se apoderou da moça; apoderou-se dela um terror invencível. O amor, que para as outras mulheres apresenta-se com aspecto risonho e sedutor, afigurou-se a Cecília que era um perigo e uma condenação. A cada novela que lia mais lhe cresciam os sustos, e a pobre menina chegou a determinar em seu espírito que nunca exporia o coração a tais catástrofes.

Provinha este sentimento de duas coisas: do espírito supersticioso de Cecília, e da natureza das novelas que lhe davam para ler. Se nessas obras ela visse, ao lado das más conseqüências a que os excessos podem levar, a imagem pura e suave da felicidade que o amor dá, não se teria de certo apreendido daquele modo. Mas não foi assim. Cecília aprendeu nesses livros que o amor era uma paixão invencível e funesta; que não havia para ela nem a força de vontade nem a perseverança do dever. Esta idéia calou no espírito da moça e gerou um sentimento de apreensão e de terror contra o qual ela não podia nada, antes se tornara mais impotente à medida que lia uma nova obra da mesma natureza.

Este estrago moral completava-se com a leitura da última novela. Quando Cecília levantou os olhos para o teto tinha o coração cheio de medo e os olhos traduziam o sentimento do coração. O que sobretudo a atemorizava mais era a incerteza que ela tinha de poder escapar à ação de uma simpatia funesta. Muitas das páginas que lera diziam que o destino intervinha nos movimentos do coração humano, e sem poder discernir o que teria de real ou de poético este juízo, a pobre mocinha tomou ao pé da letra o que lera e confirmou-se nos receios que nutria de muito tempo.

Tal era a situação do espírito e do coração de Cecília quando o relógio de uma igreja que ficava a dois passos da casa bateu meia noite. O som lúgubre do sino, o silêncio da noite, a solidão em que estava, deram uma cor mais sombria às suas apreensões.

Procurou dormir para fugir às idéias sombrias que se lhe atropelavam no espírito e dar descanso ao peso e ao ardor que sentia no cérebro; mas não pôde; caiu em uma dessas insônias que fazem padecer mais em uma noite do que a febre de um dia inteiro.

De repente sentiu que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura desconhecida, fantástica. Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha esse aspecto masculino e feminino a um tempo com que os pintores reproduzem as feições dos serafins. Vestia túnica de tecido alvo, coroava a fronte com rosas brancas e despedia dos olhos uma irradiação fantástica e impossível de descrever. Andava sem que a esteira do chão rangesse sob os passos. Cecília fitou os olhos na visão e não pôde mais desviá-los. A visão chegou-se ao leito da donzela.

- Quem és tu? perguntou Cecília sorrindo, com a alma tranqüila e os olhos vivos e alegres diante da figura desconhecida.

- Sou o anjo das donzelas, respondeu a visão com uma voz que nem era voz nem música, mas um som que se aproximava de ambas as coisas, articulando palavras como se executasse uma sinfonia do outro mundo.

- Que me queres?

- Venho em teu auxílio.

- Para que?

O anjo pôs as mãos no peito de Cecília e respondeu:

- Para salvar-te.

- Ah!

- Sou o anjo das donzelas, continuou a visão, isto é, o anjo que protege as mulheres que atravessam a vida sem amar, sem depor no altar dos amores uma só gota do óleo celeste com que se venera o deus menino.

- Sim?

- É verdade. Queres que eu te proteja? Que te imprima na fronte o sinal fatídico ante o qual recuarão todas as tentativas, curvar-se-ão todos os respeitos?

- Quero.

- Queres que com um bafejo meu te fique eternamente gravado o emblema da eterna virgindade?

- Quero.

- Queres que eu te garanta em vida as palmas verdes e viçosas que cabem às que podem atravessar o lodo da vida sem salpicar o vestido branco de pureza que receberam do berço?

- Quero.

- Prometes que nunca, nunca, nunca te arrependerás deste pacto, e que, quaisquer que sejam as contingências da vida, abençoarás a tua solidão?

- Quero.

- Pois bem! Estás livre, donzela, estás inteiramente livre das paixões. Podes entrar agora, como Daniel, entre os leões ferozes; nada te fará mal. Vê bem; é a felicidade, é o descanso. Gozarás ainda na mais remota velhice de uma isenção que será a tua paz na terra e a tua paz no céu!

E dizendo isto a fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de Cecília. Depois tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que não opunha a nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes sorria com um sorriso de Angélica suavidade como se naquele momento entrevisse as glórias perenes que o anjo lhe prometia.

- Este anel, disse o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha esposa ante a eternidade. Deste amor não te resultarão nem tormentos nem catástrofes. Conserva este anel a despeito de tudo. No dia em que o perderes, estás perdida.

E dizendo estas palavras a visão desapareceu.

A alcova ficou cheia de uma luz mágica e de um perfume que parecia mesmo hálito de anjos.

No dia seguinte Cecília acordou com o anel no ledo e a consciência do que se passara na véspera. Nesse dia levantou-se da cama mais alegre que nunca. Tinha o coração leve e o espírito desassombrado. Tocara enfim o alvo que procurara: a indiferença para os amores, a certeza de não estar exposta às catástrofes do coração... Esta mudança tornou-se cada dia mais pronunciada, e de modo tal que as amigas não deixaram de reparar.

- Que tens tu? dizia uma. És outra inteiramente. Aqui anda namoro!

- Qual namoro!

- Ora, decerto! acrescentava outra.

- Namoro? perguntava Cecília. Isso é bom para as... infelizes. Não para mim. Não amo...

- Amas!

- Nem amarei.

- Vaidosa!...

- Feliz é que deves dizer. Não amo, é verdade. Mas que felicidade não me resulta disto?... Posso afrontar tudo; estou armada de broquel e cota de armas...

- Sim?

E as amigas desataram a rir, apontando para Cecília e jurando que ela se havia de arrepender de dizer palavras tais.

Mas passavam os dias e nada fazia notar que Cecília tivesse pago o pecado que cometera na opinião das amigas. Cada dia trazia um pretendente novo. O pretendente fazia corte, gastava tudo quanto sabia para cativar a menina, mas afinal desistia da empresa com a convicção de que nada podia fazer.

- Mas não se lhe conhece preferido? perguntavam uns aos outros.

- Nenhum.

- Que milagre é este?

- Qual milagre! Não lhe chegou a vez... Ainda não enflorou aquele coração. Quando chegar a época da florescência há de fazer o que as mais fazem, e escolher entre tantos pretendentes um marido.

E com isto se consolavam os taboqueados.

O que é certo é que corriam os dias, os meses, os anos, sem que nada mudasse a situação de Cecília. Era a mesma mulher fria e indiferente. Quando completou vinte anos tinha adquirido fama; era corrente em todas as famílias, em todos os salões, que Cecília nascera sem coração, e a favor desta fama faziam-se apostas, levantavam-se coragens; a moça tornou-se a Cartago das salas. Os romanos de bigode retorcido e cabelo frisado juravam sucessivamente vencer a indiferença púnica. Trabalho vão! Do agasalho cordial ao amor ninguém chegava nunca, nem por suspeita. Cecília era tão indiferente que nem dava lugar à ilusão.

Entre os pretendentes um apareceu que começou por cativar os pais de Cecília. Era um doutor formado em matemáticas, metódico como um compêndio, positivo como um axioma, frio como um cálculo. Os país iram logo no novo pretendente o modelo, o padrão, fênix dos maridos. E começaram por fazer em presença da filha os elogios do rapaz. Cecília acompanhou-os nesses elogios, e deu alguma esperança aos pais. O próprio pretendente soube do conceito em que tinha a moça e criou esperanças.

E, conforme a educação do espírito, tratou de regularizar a corte que fazia a Cecília, como se se tratasse de descobrir uma verdade matemática. Mas, se a expressão dos outros pretendentes não impressionou a moça, muito menos a impressionava a frieza metódica daquele. Dentro de pouco tempo a moça negou-lhe até aquilo que concedia aos outros: a benevolência e a cordialidade.

O pretendente desistiu da causa e voltou aos calculos e aos livros.

Como este, todos os outros pretendentes iam passando, como soldados em revista, sem que o coração inflexível da moça pendesse para nenhum deles.

Então, quando todos viram que os esforços eram baldados, começou-se a suspeitar que o coração da moça estivesse empenhado a um primo que exatamente na noite da visão de Cecília embarcara para seguir até Santos e daí tomar caminho para a província de Goiás. Esta suspeita desvaneceu-se com os anos; nem o primo voltou, nem a moça mostrou-se sentida com a ausência dele. Esta conjectura com que os pretendentes queriam salvar a honra própria perdeu o valor, e os iludidos tiveram de contentar-se com este dilema: ou não tinham sabido lutar, ou a moça era uma natureza de gelo.

Todos aceitaram a segunda hipótese.

Mas que se passava nessa natureza de gelo? Cecília via a felicidade das amigas, era confidente de todas, aconselhava-as ao sentido de uma prudente reserva, mas nem procurava nem aceitava os ciúmes que lhe andavam a mão. Todavia mais de uma vez, à noite, no fundo da alcova, a moça sentia-se só. O coração solitário parece que se não acostumara de todo ao isolamento a que o votara a dona.

A imaginação, para fugir às pinturas indiscretas de um sentimento a que a moça fugia, corria às soltas no campo das criações fantásticas e desenhava com vivas cores essa felicidade que a visão lhe prometera. Cecília comparava o que perdera e o que ia ganhar, e dava a palma do gozo futuro em compensação do presente. Mas nesses rasgos de imaginação o coração palpitava-lhe com força, e mais de uma vez a moça dava acordo de si procurando com uma das mãos arrancar o anel da aliança com a visão.

Nesses momentos recuava, entrava em si e chamava no interior a visão daquela noite dos quinze anos. Mas o desejo era baldado; a visão não aparecia, e Cecília ia procurar no leito solitário a calma que não podia encontrar nas vigílias laboriosas.

Muitas vezes a aurora veio encontrá-la à janela, enlevada nas suas imaginações, sentindo um vago desejo de conversar com a natureza, embriagar-se no silêncio da noite.

Em alguns passeios que fez aos subúrbios da cidade deixava-se impressionar por tudo o que a vista lhe oferecia de novo, água ou montanha, areia ou ervaçal, parecendo que a vista se lhe comprazia nisso e esquecendo-se muitas vezes de si e dos outros.

Ela sentia um vácuo moral, uma solidão interior, e procurava na atividade e na variedade da natureza alguns elementos de vida para si. Mas a que atribuía ela essa ânsia de viver, esse desejo de ir buscar fora aquilo que lhe faltava? Ao principio não reparou no que fazia; fazia involuntariamente, sem determinação nem conhecimento da situação.

Mas, como se prolongasse a situação, ela foi pouco a pouco descobrindo o estado do coração e do espírito. Tremeu ao principio, mas em breve se tranqüilizou; a idéia da aliança com a visão pesava-lhe no espírito, e as promessas feitas por ela de uma bem-aventurança sem igual desenhava na fantasia de Cecília um quadro vivo e esplêndido. Isto consolava a moça, e, sempre escrava dos juramentos, ela fazia honra sua em ficar pura do coração para subir à morada das donzelas libertadas do amor.

Demais, ainda que o quisesse, parecia-lhe impossível sacudir a cadeia a que involuntariamente se prendera.

E os anos corriam.

Aos vinte e cinco inspirou uma paixão violenta a um jovem poeta. Foi uma dessas paixões como só os poetas sabem sentir. Este do meu conto depôs aos pés da bela insensível a vida, o futuro, a vontade. Regou com lágrimas os pés de Cecília e pediu-lhe como uma esmola uma centelha que fosse do amor que parecia ter recebido do céu. Tudo foi inútil, tudo foi vão. Cecília nada lhe deu, nem amor nem benevolência. Amor não tinha; benevolência podia ter, mas o poeta perdera o direito a ela desde que declarou a extensão do seu sacrifício. Isto deu a Cecília a consciência da sua superioridade, e com essa consciência certa dose de vaidade que lhe vendava os olhos e o coração.

Se lhe aparecera o anjo para tirar-lhe do coração o gérmen do amor, não lhe apareceu nenhum que lhe tirasse o pouco de vaidade.

O poeta deixou Cecília e foi para casa. Dai seguiu para uma praia, subiu a uma pequena eminência e atirou-se ao mar. Dai a três dias encontrou-se-lhe o cadáver, e os jornais deram do fato uma notícia lacrimosa. Entretanto encontrou-se entre os papéis do poeta a seguinte carta:

 

"*** A Cecília D...

 

"Morro por ti. É ainda uma felicidade que eu procuro em falta da outra que eu procurei, implorei e não alcancei.

"Não me quiseste amar; não sei se o teu coração estaria cativo, mas dizem que não. Dizem que és insensível e indiferente.

"Não quis crê-lo e fui por mim próprio averiguá-lo. Coitado de mim! o que vi bastou para dar-me a certeza de que não estava reservado para mim semelhante fortuna.

"Não te pergunto que curiosidade te levou a voltares a cabeça e transformares-te, como a mulher de Loth, em estátua insensível e fria. Se alguma coisa há nisto que eu não compreendo, não quero sabê-lo agora que deixo o fardo da vida e vou, por caminho escuro pra curar o termo feliz da minha viagem.

Deus te abençoe e te faça feliz. Não te desejo mal. Se te fujo e se fugi ao mundo é por fraqueza, não é por ódio; ver-te, sem ser amado, é morrer todos os dias. Morro uma só vez e rapidamente.

 

"Adeus..."

 

Esta carta causou a Cecília muita impressão. Chorou até. Mas era piedade e não amor. A maior consolação que ela mesma deu a si foi o pacto secreto e misterioso. É culpa minha? perguntava ela. E respondendo negativamente a si mesma achava nisso a legitimidade da sua indiferença.

Todavia, esta ocorrência trouxe lhe ao espírito uma reflexão.

O anjo prometera-lhe, em troca da isenção para o amor, uma tranqüilidade durante a vida que só poderia ser excedida pela paz eterna da bem-aventurança.

Ora, que encontrava ela? O vácuo moral, as impressões desagradáveis, uma sombra de remorso, eis os lucros que tivera.

Os que foram fracos como o poeta recorreram aos meios extremos ou deixaram-se dominar pela dor. Os menos fracos ou menos sinceros no amor alimentaram contra Cecília um despeito que deu em resultado levantar-se uma opinião ofensiva à moça.

Mais de um procurava na sombra o motivo da indiferença de Cecília. Era a segunda vez que se atiravam a essas investigações. Mas o resultado delas era sempre nulo, visto que a realidade era. que Cecília não amava ninguém.

E os anos corriam...

Cecília chegou aos trinta e três anos. Já não era a idade de Julieta, mas era uma idade ainda poética; poética neste sentido - que a mulher, em chegando a ela, tendo já perdido as ilusões dos primeiros tempos, adquire outras mais sólidas, fundadas na observação.

Para a mulher dessa idade o amor já não é uma aspiração do desconhecido, uma tendência mal exprimida; é uma paixão vigorosa, um sentimento mais eloqüente; ela já não procura a esmo um coração que responda ao seu; escolhe entre os que encontra um que possa compreendê-la, capaz de amar como ela, próprio para fazer essa doce viagem às regiões divinas do amor verdadeiro, exclusivo, sincero, absoluto.

Nessa idade era ainda bela. E pretendida. Mas a beleza continuou a ser um tesouro que a indiferença avarenta guardava para os vermes da terra.

Um dia, longe dos primeiros, muito longe, a primeira ruga desenhou-se no rosto de Cecília e alvejou um primeiro cabelo. Mais tarde, segunda ruga, segundo cabelo, e outras e outros, até que a velhice de Cecília declarou-se completa.

Mas há velhice e velhice. Há velhice feia e velhice bonita. Cecília era da segunda espécie, porque através dos sinais evidentes que o tempo deixara nela, sentia-se que fora uma criatura formosa, e, embora de outra natureza, Cecília inspirava ainda a ternura, o entusiasmo, o respeito.

Os fios de prata que lhe serviam de cabelos emolduravam-lhe o rosto rugado, mas ainda suave. A mão, que tão linda era outrora, não tinha a magreza repugnante, mas era ainda bela e digna de uma princesa... velha.

Mas o coração? Esse atravessara do mesmo modo os tempos e os sucessos sem nada deixar de si. A isenção foi sempre completa. Lutava embora contra não sei que repugnância do vácuo, não sei que horror da solidão, mas nessa luta a vontade ou a fatalidade vencia sempre, triunfava de tudo, e Cecília pôde chegar à adiantada idade em que achamos sem nada perder.

O anel, o fatídico anel, foi o talismã que nunca a abandonou. A favor desse talismã, que era a assinatura do contrato celebrado com o anjo das donzelas, ela pôde ver de perto o sol sem se queimar.

Tinham-lhe morrido os pais. Cecília vivia em casa de uma irmã viúva. Vivia dos bens que recebera em herança.

Que fazia agora? Os pretendentes desertaram, os outros envelheceram também, mas iam ainda por lá alguns deles. Não para requestá-la de certo, mas para passar as horas ou em conversa grave e pausada sobre coisas sérias, ou à mesa de algum jogo inocente e próprio de velhos.

Não poucas vezes era assunto de conversação geral a habilidade com que Cecília conseguira atravessar os anos da primeira e da segunda mocidade sem empenhar o coração em nenhum laço de amor. Cecília respondia a todos que tivera um segredo poderoso do qual não podia fazer comunicação alguma.

E nestas ocasiões olhava amorosamente para o anel que trazia no dedo ornado de uma bela e grande esmeralda.

Mas ninguém reparava nisto.

Cecília gastava horas e horas da noite em evocar a visão dos quinze anos. Quisera achar conforto e confirmação às suas crenças, quisera ver e ouvir ainda a figura mágica e a voz celeste do anjo das donzelas. Parecia-lhe, sobretudo, que o longo sacrifício que consumara merecia, antes da realização, uma repetição das promessas anteriores.

Entre os que freqüentavam a casa de Cecília alguns velhos havia dos que, na mocidade, tinham feito roda a Cecília e tomado mais ou menos seriamente as expressões de cordialidade da moça.

Assim que, agora que se encontravam nas últimas estações da vida, mais de uma vez a conversa tinha por objeto a isenção de Cecília e as infelicidades dos adoradores.

Cada um referia os seus episódios mais curiosos, as dores que sentira, as decepções que sofrera, as esperanças que Cecília esfolhara com impassibilidade cruel.

Cecília ria ouvindo essas confissões, e acompanhava os seus adoradores de outrora no terreno das facécias que as revelações mais ou menos inspiravam.

- Ah! dizia um, eu é que sofri como poucos.

- Sim? perguntava Cecília.

- É verdade.

- Conte lá.

- Olhe, lembra-se daquela partida em casa do Avelar ?

- Foi há tanto tempo!

- Pois eu me lembro perfeitamente.

- Que houve?

- Houve isto.

Todos se prepararam para ouvir a narração prometida.

- Houve isto, continuou o ex-adorador. Estávamos no baile. Eu, nesse tempo, era um verdadeiro pintalegrete. Envergava a melhor casaca, esticava a melhor calça, derramava os melhores cheiros. Mais de uma dama suspirava em segredo por mim, e às vezes nem mesmo em segredo...

- Ah!

- É verdade. Mas qual é a lei geral da humanidade? É não aceitar aquilo que se lhe dá, para ir buscar aquilo que não poderá obter. Foi o que fiz.

 

 ............... Le bonheur, c'est la boule Que cet enfant porsuit tout le temps qu'elle roule.

Et que, dès qu'elle arrête, il repousse du pied.

 

- Bravo!

- Vamos a história!

- Estávamos no baile. Já duas senhoras tinham-se retirado para o camarim a fim de evitar algum desmaio. Por que? Que fazia eu? Eu derramava aos pés de D. Cecília uma torrente de madrigais, dizia-lhe do melhor modo possível que a beleza dela tinha-me inspirado um amor profundo e decisivo. Ela não prestava aos meus discursos senão uma atenção indiferente. Isto desesperava. Insistia, repetia, pedia-lhe quase o coração. Ela nada. Enfim ofereci-lhe o braço. Percorremos algumas salas. D. Cecília estava divina de graça, de beleza, e até... de indiferença. Se fosse a indiferença somente bem estava, mas houve mais.

- Houve mais?

- Houve. Houve desengano. Eu disse-lhe que a amava perdidamente; ela respondeu-me positivamente que não me podia amar. Quase cai. Não lhe disse mais nada e voltamos para a sala.

- Não me lembro disso, observou Cecília.

- Lembro-me eu que fui a vítima. O algoz...

- À ordem! à ordem! reclamaram os ouvintes. O narrador continuou:

- Deixei D. Cecília na sala e saí. Fui para o jardim. Desesperado, cuidei que o ar e a solidão me aplacassem o ânimo. Vi através da rama de uns arbustos um ponto de luz. Era um charuto ao que me parecia, e com o charuto um homem. A noite estava escuríssima. Caminhei para o lugar em que me parecia estar o homem e o charuto. Pedi fogo e vi que o charuto me entrava nas mãos. Acendi um charuto e agradeci. A minha voz foi conhecida pelo meu interlocutor e eu próprio reconheci na voz que me falava um rapaz que eu conhecera nos salões.

- Abrevie a história!

- Apoiado!

- É simples. Contei ao meu interlocutor os motivos da minha presença, e estava calmo, esperando algumas palavras de consolação, quando me senti agarrado. Procurei defender-me e lutamos durante alguns minutos, ao som de uma polca que se executava no interior da casa. Todos compreendem o caso. O meu adversário era pretendente ao coração de D. Cecília; estava, como eu, desconsolado. Lutamos, como disse. Nunca mais nos falamos.

- Nunca mais?

- Nunca mais.

- Não me lembro de nada, nem me constou nada neste sentido, disse Cecília.

- Eu nunca disse nada a ninguém.

Fora escrever dois volumes repetir os episódios trágicos, ou cômicos, ou patéticos, que os ex-adoradores de Cecília traziam para a conversação.

Em uma dessas práticas íntimas, singelas, trouxe um criado uma carta para Cecília. Era de Tibúrcio.

Quem era Tibúrcio? Era o primo de Cecília que partira da corte na noite em que Cecília fizera o contrato misterioso para independência do coração.

Tibúrcio partira moço e voltou velho. Nunca dera sinal de si. Não se sabia onde andava nem que fazia.

Tibúrcio escrevia de S. Paulo. Dizia que dentro de oito dias estaria na corte. E dai a oito dias chegou.

 

A carta dizia:

 

"Minha prima. - Dentro de oito dias lá' estarei. Vai aparecer-lhe um velho. Há que tempo de lá saí!

"Andei seca e meca. Ganhei, perdi, tornei a ganhar, e a experiência me serviu, por que o que ganhei conservo agora e .não tenho idéia, nem ânimo de perdê-lo outra vez.

"Que é feito de nossa família? Eu de nada sei. Não procurei ninguém, não escrevi; acho que fizeram bem em me não escreverem. Com ingrato, ingrato e meio. Mas eu hei de provar que não fui ingrato.

"Adeus. Esta lhe há de ser entregue por C..., meu amigo, que parte para essa corte. Adeus. - Tibúrcio".

 

Tibúrcio acompanhou a carta com intervalo de alguns dias. Era um velho bonito, folgazão, opulento de carnes e de dinheiro.

Nem Tibúrcio reconhecia Cecília, nem Cecília reconheceu Tibúrcio. Tão mudados estavam!

Vieram as longas narrativas do que se houvera passado durante o longo espaço de tempo que se não viram.

É necessário dizer que Tibúrcio, quando partira da corte, amava Cecília, sem que para amá-la se fundasse em nenhum sentimento recíproco.

Cecília foi ao principio indiferente... por indiferença. Mais tarde é que veio o pacto angélico.

Tibúrcio ouviu, com grande admiração, da boca de Cecília a notícia de que ela nunca se houvera casado.

E de sua parte declarou que também se conservara solteiro, adiantando logo a razão disso, que era não poder levar família para as trabalhosas empresas a que se entregava.

Mas a respeito de Cecília admirou-se muito. Não a deixara formosa e requestada? Não via ainda que essa beleza tarde desapareceu?

- Não quis, respondia Cecília.

- Mas por que?...

- Não sei... não quis.

E, como sempre, Cecília olhava amorosamente para o anel. Os olhos de Tibúrcio acompanharam os de Cecília e pousaram na esmeralda que ela trazia no dedo.

- Ah! disse ele.

E a conversa passou a outros assuntos.

Insistiram todos em que Tibúrcio referisse as suas viagens, as suas aventuras, os seus perigos, as suas fortunas.

- Fora preciso um ano, disse Tibúrcio.

Com efeito, Tibúrcio tinha vivido uma vida acidentada. Lutas, perigos, sustos, fortunas, alternativas de todo o gênero, tudo matizava o fundo do quadro da existência de Tibúrcio.

Tibúrcio adquirira parte de sua fortuna em algumas explorações de minas de ouro e de brilhantes.

Durante os dias que se seguiram ao da chegada dele em casa de Cecília, a família, os restos da família, e os convivas habituais, divertiram-se muito ouvindo as narrações de Tibúrcio sobre os acidentes das explorações mineiras.

Quando se esgotou esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos bugres perto do rio Araguaia. Quando caiu nas mãos daqueles bárbaros perdeu até a última gota de sangue. Viu a morte diante dos olhos. Já os bugres se preparavam para almoçar aquele bife, quando uma partida de soldados que andava à caça de um criminoso descobriu o fato e chegou a tempo de salvar Tibúrcio dos estômagos indígenas.

Outros perigos correra o primo de Cecília, como o de naufragar em torrentes de rios, encontrar-se com onças, e outros deste gênero.

O auditório habitual de Tibúrcio divertia-se muito com estas narrações, e ele por sua parte sabia referir os tais episódios dando-lhes as cores próprias de comover e interessar.

Tibúrcio resolvera ir morar com as duas parentas, e ali se instalou imediatamente.

Todas as noites havia uma reunião de amigos para tomar chá, conversar e jogar.

Uma noite de chuva, em mês de junho, debalde se esperaram os convivas. A chuva e o frio não consentiram que os respeitáveis anciões deixassem os conchegos do lar, nem mesmo com a sedução das boas horas que se passava em casa de Cecília.

Foram, pois, os três parentes obrigados a se privarem naquela noite da companhia dos amigos.

Tomaram chá cedo e estavam fazendo horas à mesa até que viesse a hora habitual de se recolherem.

Travou-se a seguinte conversação:

- Ora, prima, disse Tibúrcio, ainda não lhe contei os tormentos que sofri relativamente ao coração.

- Ah!

- É verdade. Lembrei-me muito de você.

- Deveras?

- É verdade. Não se lembra que eu mais de uma vez lhe confessei o amor que alimentava?

- Lembro-me, sim.

- Pois sai da corte com as mais dolorosas impressões. Via que ia para longe e perdia de vista a mulher que eu ainda nem conhecia de coração. Padeci muito.

- Falar nisso agora não sei que me parece.

- Parece o que é, a verdade. Quis matar-me...

- Que tolice!

- Foi o que eu pensei...

- Morria e eu ficava.

- Mas o que me agrada é ver que se eu não esqueci, também você não esqueceu.

- Não, decerto.

- Mas, de certo modo?

- Que modo?

- Gentes! disse a prima viúva. Vocês parecem namorados!

- Mas de que modo? como apaixonada?

- Sim.

- Que loucura!

- Pelo menos tenho uma prova.

- Vamos ver a prova, disse a viúva.

- A prova não está comigo.

- Está comigo? perguntou Cecília.

- É verdade.

- Onde?

- Aí, no dedo.

Cecília olhou para o anel.

- No dedo! disse ela sem compreender a que podia o primo aludir.

- Esse anel, disse o primo.

- Este anel? Que tem este anel?

- Ora, afinal, disse a prima viúva, vamos saber o que significa este misterioso anel.

Cecília estava espantada sem compreender.

Tibúrcio continuou:

- Este anel, sim. É meu. Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o encomendei.

- Mas explique-se.

- Nas vésperas de partir da corte quis deixar-lhe uma prova de que o meu amor era verdadeiro e seria eterno. Encomendei este anel, que o ourives prontificou com o maior cuidado e zelo. Tinha dois meios de dar-lho: ou introduzir-lho no dedo, francamente, com a declaração de que era uma lembrança minha que deixara, ou depositá-lo no seu toucador para que, quando eu já estivesse fora, aquela lembrança a surpreendesse.

- É romanesco, disse a viúva.

Cecília nada disse. Tinha os olhos pregados em Tibúrcio e procurava arrancar-lhe as palavras da boca.

Tibúrcio prosseguiu:

- Preferi o segundo meio por me parecer, como diz a prima, romanesco. Mas, ao executá-lo, ocorreu-me um terceiro meio. Era o de colocar o anel no seu dedo na hora em que dormisse, de modo que a surpresa fosse ainda maior.

- Ah! e...

Esta exclamação e esta conjunção partiram da prima viúva. Cecília tão absorta estava que nada podia dizer.

- Descansem, disse Tibúrcio, eu fiz as coisas honestamente. Peitei a mucama para que alta noite, na ocasião em que a prima dormisse depois da costumada leitura... Ah! você lia muito romance!

- Adiante!

- Para que alta noite se aproveitasse do sono em que você estivesse e lhe pusesse o anel. Assim foi. Vejo agora que conservou o anel. Mas, diga-me, a Teresa nunca lhe disse nada disto?

- Não, disse Cecília distraidamente.

- Pois foi assim. E se quer mais uma prova tire o anel... Nunca o tirou?

- Nunca.

- Pois tire o anel e veja se não estão gravadas pela parte interior as iniciais do meu nome.

Cecília hesitou entre a curiosidade de averiguar a asseveração de Tibúrcio e um resto de crença que tinha nas palavras da visão.

- Tire o anel.

- Mas...

- Tire! Que receio é esse?

- Esperem, não tiro por uma razão. Eu não creio no que diz o primo Tibúrcio.

- Por que?

- Não creio, mas creio em outra coisa.

- Essa agora!

- É verdade.

E Cecília passou a referir aos dois parentes todas as circunstâncias da visão, o diálogo que tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das donzelas.

- Tal foi, acrescentou Cecília, a razão porque me não casei. Tinha fé nisto. Quanto a tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse.

Tibúrcio deu uma gargalhada.

- Ora, prima, disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma superstição? Ainda acredita em sonhos!

- Como, sonhos?

- É evidente. Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho com o fato do anel. Mas você quando acordou no dia seguinte achou-se com um anel no dedo, não devia fazer outra coisa mais do que averiguar a razão do fenômeno, e não dar crédito a uma coisa toda de imaginação.

Cecília abanou a cabeça.

- Pois não crê? Tire o anel.

Cecília hesitava. Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi acompanhado pela prima viúva de modo que Cecília, com alguma relutância, pálida e trêmula, arrancou o anel do dedo.

O anel tinha na parte interna gravadas estas iniciais: T. B.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 13 de setembro de 2021

OS GÊMEOS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OS GÊMEOS

Humberto de Campos

 

 

 

O piloto Alfredo Fagundes de Moura estava casado há pouco mais de seis meses quando, por determinação da companhia de navegação em que era empregado, teve de embarcar subitamente no "Capanema", antigo cargueiro alemão, para uma demorada viagem ao Mediterrâneo. A travessia, com os submarinos teutônicos a costurarem, como agulhas monstruosas e invisíveis, o manto verde do oceano, era, naquele tempo, arriscadíssima: o que, porém, mais afligia o jovem marujo, não eram os perigos, os riscos, a visão sinistra da morte nas águas, mas a saudade da sua encantadora Palmirinha, tão simples, tão doce, tão amada, e, o que era pior, tão sozinha no mundo, onde não tinha como amparo senão a coluna de ouro do seu amor.

 

A ordem de partida fora, porém, terminante: e, uma tarde, lá se foi o "Capanema", barra a fora, apartando, como um pastor de ovelhas irrequietas, o infinito rebanho das ondas. Dias depois estavam na Madeira. E os portos foram-se sucedendo: Lisboa, Gibraltar, Cadix, Marselha, Gênova... além de outros, pequenos, monótonos, secundários, a que eram forçados a arribar por imposição arbitrária das flotilhas inglesas de vigilância. E nisso gastou ele dezoito meses de trabalho e de saudade, ao fim dos quais ancorou, de novo, com a alma nos olhos, nas proximidades da ilha fiscal.

 

A alegria do casal não podia ser maior. Beijos, abraços, lágrimas de contentamento, foram os confeitos de coração na doce festa daquele encontro.

 

— Estás linda, meu amor!

 

— E tu, forte, corado, bonito!

 

E novos beijos estalaram.

 

Um mês depois, porém, começou a entrar na cabeça do Fagundes, batido pelo martelo de um pensamento mau, o prego de uma dúvida horrível: é que a sua Palmirinha havia dado ao mundo, oito dias depois da sua chegada, dois pequenitos miudinhos, mas perfeitíssimos, que a ciência conseguira salvar.

 

Aos olhos do piloto, habituado a ver longe, aquilo parecia incompreensível. Se ele estivera em viagem ano e meio e chegara apenas há quinze dias, como admitir o nascimento daqueles pirralhitos, tão bem conformados, e que tinham vindo de tempo? O melhor, em tal emergência, era consultar um médico, um entendido, e foi o que ele fez, indo bater à porta do Dr. Abelardo Meira, que morava no mesmo quarteirão.

 

— O meu caso senhor doutor, é este.

 

E contou o fato, palavra por palavra, sem omitir a menor particularidade. Ao fim de tudo, o médico fitou-o, indagando:

 

— Quantos meses o senhor passou fora?

 

— Dezoito, senhor doutor.

 

— E quantos filhos sua senhora teve, agora?

 

— Dois, gêmeos.

 

O especialista endireitou o "pincenez", pigarreou, tossiu, remexeu-se na cadeira, e inquiriu, sentindo-se vitorioso:

 

— Diga-me cá: com quantos meses nasce uma criança?

 

— Nove.

 

— Então, está aí! — exclamou o médico.

 

E batendo-lhe na perna:

 

— Está claro, homem de Deus! Duas crianças, dezoito meses, isto é, nove para cada uma. De que é que se admira?

 

O Fagundes sorriu, desafogado. E levando a mão à cabeça, arrancou, satisfeito, num gesto brusco, o doloroso prego daquela dúvida...


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 11 de setembro de 2021

O REVOLTADO ROBESPIERRE (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

O REVOLTADO ROBESPIERRE

Alcântara Machado

 

 

 

(Senhor Natanael Robespierre dos Anjos)

 

Todos os dias úteis às dez e meia toma o bonde no Largo de Santa Cecília encrencando com o motorneiro.

- Quando a gente levanta o guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua besta?

Gosta de todos aqueles olhares fixos nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e dá um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-réis. Exige o troco imediatamente.

- Não quero saber de conversa, seu galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom.

Retém o condutor com um gesto e verifica sossegadamente o troco.

- O quê? Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.

Levanta-se para dar um jeito na cinta, chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques), examina todos os bancos, vira-que-vira, começa:

- Isto até parece serviço do governo! Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:

- O que vale é que os homens um dia voltam...

Primeiro sorriso aparentemente sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada. Será espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos sibilino. Cara de nojo.

Não sei que raio de cheiro tem este Largo do Arouche, safa!

Vira a aliança no seu-vizinho. Essa operação deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar de sobrancelhas unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a insistência. É agora:

- Perdão. O senhor leu a última tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão por exemplo? Cinco ou seis ou não sei quantos mil-réis o quilo!

Não espera resposta. Não precisa de resposta Berra no ouvido do velho da direita:

- É como estou lhe contando: o quilo!

Quase despenca do bonde para ver uma costureirinha na Rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas.

- O cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. São os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos pedaços.

Dá um tabefe no queixo mas cadê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é cousa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu. Estava começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo só engana os trouxas.

- Oh estupidez! O senhor já reparou naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE MÁQUINAS DE ESCREVER. ConserTA-SE máquinassss! Fan-tás-tico! Eu não pretendo por duzentos réis condução e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro qualquer autor de peso, é verdade... Mas enfim...

É preciso um fecho erudito e interessante ao mesmo tempo.

- Mas enfim...

A mão procura inutilmente no ar dando voltinhas.

- Mas enfim... Seu Serafim...

Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com o relógio do Largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:

- Este viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!

Silêncio. Mas eloqüente. Palito de fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo Antônio.

- Não está vendo, seu animal, que a mulher; não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha educação!

Cumprimenta rasgadamente o Doutor Indalécio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso de uma cautela do Monte de Socorro do Estado.

- O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos... nada! Mas isto um dia acaba.

Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para os escritórios da I.R.F. Matarazzo:

- Ora se acaba!

Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da Rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:

- Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado.

Desce no Largo do Tesouro. Faz a sua fézinha no CHALET PRESIDENCIAL (centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o Largo do Palácio.

E todos os dias úteis às onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por concurso não falando na carta de um republicano histórico.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 10 de setembro de 2021

O CASO DA VARA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O CASO DA VARA

Machado de Assis

 

 

DAMIÃO fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:

– Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

– Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:

– Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...

Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.

– Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.

Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.

– Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui!

Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.

– Descanse; e explique-se.

– Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.

Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.

– Como assim? Não posso nada.

– Pode, querendo.

– Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!

Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.

– Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.

Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não nada, nunca! redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.

– Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...

– Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...

Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.

– Anda, moleque.

Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:

– Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.

Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:

– Lucrécia, olha a vara!

A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.

Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.

– Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.

– Não afianço nada, não creio que seja possível...

– Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...

– Mas, minha senhora...

– Vá, vá.

João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse; mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! Se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.

– Então? Insistiu Sinhá Rita.

Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! Um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apoplética.

– Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.

Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.

– Ande jantar, deixe-se de melancolias.

– A senhora crê que ele alcance alguma coisa?

– Há de alcançar tudo, redarguiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.

Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.

– Hão de ser as moças.

Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.

As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.

– Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.

Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.

Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.

– Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.

Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.

Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.

– Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!

Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.

– Ah! malandra!

– Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.

– Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!

Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.

– Anda cá!

– Minha senhora, me perdoe!

– Não perdoo, não.

E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.

– Onde está a vara?

A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:

– Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?

Damião ficou frio. . . Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha Jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...

– Dê-me a vara, Sr. Damião!

Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...

– Me acuda, meu sinhô moço!

Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 09 de setembro de 2021

OS ÓCULOS (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

OS ÓCULOS

Olavo Bilac

(1865–1918)

 

 

O velho e austero doutor Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, tem uma espinhosa missão a cumprir junto da pálida e formosa Clarice… Vai examiná-la: vai dizer qual a razão da sua fraqueza, qual a origem daquele depauperamento, daquela triste agonia de flor que murcha e se estiola.
A bela Clarice!… É casada há seis meses com o gordo João Paineiras, o conhecido corretor de fundos, — o João dos óculos —, como o chamam na Praça por causa daqueles grossos e pesados óculos de ouro que nunca deixam o seu forte nariz de ventas cabeludas. Há seis meses ela míngua, e emagrece, e tem na face a cor da cera das promessas de igreja — a bela Clarice. E — ó espanto! — quanto mais fraca vai ficando ela, mais forte vai ficando ele, o João dos óculos, — um latagão que vende saúde aos quilos. Assusta-se a família da moça. Ele, com seu imenso sorriso, vai dizendo que não sabe… que não compreende… porque, enfim, — que diabo! — se a culpa fosse sua, ele também estaria na espinha…
E é o velho e austero Dr. Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, um poço de ciência e discrição, quem vai esclarecer o mistério. Na sala, a família ansiosa espia com rancor a gorda face do João impassível. E na alcova, demorado e minucioso exame continua.
Já o velho doutor, com a cabeça encanecida sobre a pele nua do peito da enferma, auscultou longamente os seus pulmões delicados: já, levemente apertando entre os dedos aquele punho macio e branco, tateou o pulso, tênue como um fio de seda… Agora, com o olhar arguto, percorre a pele da bela Clarice — branca e cheirosa pele — o colo, a cinta, o resto… De repente — que é aquilo que o velho e austero doutor percebe na pele, abaixo… abaixo… abaixo do ventre?… Leves escoriações, quase imperceptíveis arranhaduras avultam aqui e ali vagamente… nas coxas…
O velho e austero doutor Ximenes funga uma pitada, coça a calva, olha fixamente os olhos da sua doente, toda alvoroçada de pudor:
— Isto que é, filha? Pulgas? Unhas de gato?
E a bela Clarice, toda de confusão, enrolando-se no penteador de musselina como numa nuvem, balbucia, corando:
— Não! Não é nada… não sei… isto é… talvez seja dos óculos do João…

 


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