Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas domingo, 29 de maio de 2022

A VIÚVA DE SOBRAL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A VIÚVA DE SOBRAL

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 28 de maio de 2022

UMA VISITA DE ALCIBÍADES (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

UMA VISITA DE ALCIBíADES

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 27 de maio de 2022

VIRGINIUS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VIRGINIUS

Machado de Assis

 

 

 

(NARRATIVA DE UM ADVOGADO)

 

Não me correu tranqüilo o S. João de 185...

 

Duas semanas antes do dia em que a Igreja celebra o evangelista, recebi pelo correio o seguinte bilhete, sem assinatura e de letra desconhecida:

 

O Dr. *** é convidado a ir à vila de... tomar conta de um processo. O objeto é digno do talento e das habilitações do advogado. Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos antecipadamente, mal puser pé no estribo. O réu está na cadeia da mesma vila e chama-se Julião. Note que o Dr. é convidado a ir defender o réu.

 

Li e reli este bilhete; voltei-o em todos os sentidos; comparei a letra com todas as letras dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir.

 

Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e anônimo bilhete. Tomei uma resolução definitiva. Ultimei uns negócios, dei de mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada das despesas e dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a cavalo e parti.

 

Só depois de ter feito algumas léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu ia morava um amigo meu, antigo companheiro da academia, que se votara, oito anos antes, ao culto da deusa Ceres como se diz em linguagem poética.

 

Poucos dias depois apeava eu à porta do referido amigo. Depois de entregar o cavalo aos cuidados do camarada, entrei para abraçar o meu antigo companheiro de estudos, que me recebeu alvoroçado e admirado.

 

Depois da primeira expansão, apresentou-me ele à sua família, composta de mulher e uma filhinha, esta retrato daquela, e aquela retrato dos anjos.

 

Quanto ao fim da minha viagem, só lho expliquei depois que me levou para a sala mais quente da casa, onde foi ter comigo uma chávena de excelente café. O tempo estava frio; lembro que estávamos em junho. Envolvi-me no meu capote, e a cada gota de café que tomava fazia uma revelação.

 

— A que vens? a que vens? perguntava-me ele.

 

— Vais sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. Há quinze dias recebi no meu escritório, na corte, um bilhete anônimo em que se me convidava com instância a vir a esta vila para tomar conta de uma defesa. Não pude conhecer a letra; era desigual e trêmula, como escrita por mão cansada...

 

— Tens o bilhete contigo?

 

— Tenho.

 

Tirei do bolso o misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu amigo. Ele, depois de lê-lo, disse:

 

— É a letra de Pai de todos.

 

— Quem é Pai de todos?

 

— É um fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o nome de Pai de todos, porque o velho Pio o é na verdade.

 

— Bem dizia eu que há romance no fundo!... Que faz esse velho para que lhe dêem semelhante título?

 

— Pouca coisa. Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em uma só pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades judiciárias, policiais ou municipais; mas tudo o que não sai de certa ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro submetem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dois contendores saem da fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento de Pai de todos.

 

— Isso é como juiz. O que é ele como homem caridoso?

 

— A fazenda de Pio é o asilo dos órfãos e dos pobres. Ali se encontra o que é necessário à vida: leite e instrução às crianças, pão e sossego aos adultos. Muitos lavradores nestas seis léguas cresceram e tiveram princípio de vida na fazenda de Pio. É a um tempo Salomão e S. Vicente de Paulo.

 

Engoli a última gota de café, e fitei no meu amigo olhos incrédulos.

 

— Isto é verdade? perguntei.

 

— Pois duvidas?

 

— É que me dói sair tantas léguas da Corte, onde esta história encontraria incrédulos, para vir achar neste recanto do mundo aquilo que devia ser comum em toda a parte.

 

— Põe de parte essas reflexões filosóficas. Pio não é um mito: é uma criatura de carne e osso; vive como vivemos; tem dois olhos, como tu e eu...

 

— Então esta carta é dele?

 

— A letra é.

 

— A fazenda fica perto?

 

O meu amigo levou-me à janela.

 

— Fica daqui a um quarto de légua, disse. Olha, é por detrás daquele morro.

 

Nisto passava por baixo da janela um preto montado em uma mula, sobre cujas ancas saltavam duas canastras. O meu amigo debruçou-se e perguntou ao negro:

 

— Teu senhor está em casa?

 

— Está, sim, Sr.; mas vai sair.

 

O negro foi caminho, e nós saímos da janela.

 

— É escravo de Pio?

 

— Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos. Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte alguma houve nunca mais brando e cordial tratamento a homens escravizados. Nenhum dos instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém comete entre os negros da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio aplica apenas uma repreensão tão cordial e tão amiga, que acaba por fazer chorar o delinqüente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus escravos uma espécie de concurso que permite a um certo número libertar-se todos os anos. Acreditarás tu que lhes é indiferente viver livres ou escravos na fazenda, e que esse estímulo não decide nenhum deles, sendo que, por natural impulso, todos se portam dignos de elogios?

 

O meu amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar em um romance. Finalmente o meu amigo dispunha-se a contar-me a história do crime em cujo conhecimento devia eu entrar daí a poucas horas. Detive-o.

 

— Não, disse-lhe, deixa-me saber de tudo por boca do próprio réu. Depois compararei com o que me contarás.

 

— É melhor. Julião é inocente...

 

— Inocente?

 

— Quase.

 

Minha curiosidade estava excitada ao último ponto. Os autos não me tinham tirado o gosto pelas novelas, e eu achava-me feliz por encontrar no meio da prosa judiciária, de que andava cercado, um assunto digno da pena de um escritor.

 

— Onde é a cadeia? perguntei.

 

— É perto, respondeu-me; mas agora é quase noite; melhor é que descanses; amanhã é tempo.

 

Atendi a este conselho. Entrou nova porção de café. Tomamo-lo entre recordações do passado, que muitas eram. Juntos vimos florescer as primeiras ilusões, e juntos vimos dissiparem-se as últimas. Havia de que encher, não uma, mas cem noites. Aquela passou-se rápida, e mais ainda depois que a família toda veio tomar parte em nossa íntima confabulação. Por uma exceção, de que fui causa, a hora de recolher foi a meia-noite.

 

— Como é doce ter um amigo! dizia eu pensando no Conde de Maistre, e retirando-me para o quarto que me foi destinado.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

No dia seguinte, ainda vinha rompendo a manhã, já eu me achava de pé. Entrou no meu quarto um escravo com um grande copo de leite tirado minutos antes. Em poucos goles o devorei. Perguntei pelo amigo; disse-me o escravo que já se achava de pé. Mandei-o chamar.

 

— Será cedo para ir à cadeia? perguntei mal o vi assomar à porta do quarto.

 

— Muito cedo. Que pressa tamanha! É melhor aproveitarmos a manhã, que está fresca, e irmos dar um passeio. Passaremos pela fazenda de Pio.

 

Não me desagradou a proposta. Acabei de vestir-me e saímos ambos. Duas mulas nos esperavam à cancela, espertas e desejosas de trotar. Montamos e partimos.

 

Três horas depois, já quando o sol dissipara as nuvens de neblina que cobriam os morros como grandes lençóis, estávamos de volta, tendo eu visto a bela casa e as esplêndidas plantações da fazenda do velho Pio. Foi este o assunto do almoço.

 

Enfim, dado ao corpo o preciso descanso, e alcançada a necessária licença, dirigi-me à cadeia para falar ao réu Julião.

 

Sentado em uma sala onde a luz entrava escassamente, esperei que chegasse o misterioso delinqüente. Não se demorou muito. No fim de um quarto de hora estava diante de mim. Dois soldados ficaram à porta.

 

Mandei sentar o preso, e, antes de entrar em interrogatório, empreguei uns cinco minutos em examiná-lo.

 

Era um homem trigueiro, de mediana estatura, magro, débil de forças físicas, mas com uma cabeça e um olhar indicativos de muita energia moral e alentado ânimo.

 

Tinha um ar de inocência, mas não da inocência abatida e receosa; parecia antes que se glorificava com a prisão, e afrontava a justiça humana, não com a impavidez do malfeitor, mas com a daquele que confia na justiça divina.

 

Passei a interrogá-lo, começando pela declaração de que eu ia para defendê-lo. Disse-lhe que nada ocultasse dos acontecimentos que o levaram à prisão; e ele, com uma rara placidez de ânimo, contou-me toda a história do seu crime.

 

Julião fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e trabalho. Suas boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com que falava e adorava o protetor não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim de certo tempo, deu a Julião um sítio que ficava pouco distante da fazenda, para lá fora morar Julião com uma filha menor, cuja mãe morrera em conseqüência dos acontecimentos que levaram Julião a recorrer à proteção do fazendeiro.

 

Tinha a pequena sete anos. Era, dizia Julião, a mulatinha mais formosa daquelas dez léguas em redor. Elisa, era o nome da pequena, completava a trindade do culto de Julião, ao lado de Pio e da memória da mãe finada.

 

Laborioso por necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu frutificar o seu trabalho. Ainda assim não descansava. Queria, quando morresse, deixar um pecúlio à filha. Morrer sem deixá-la amparada era o sombrio receio que o perseguia. Podia acaso contar com a vida do fazendeiro esmoler?

 

Este tinha um filho, mais velho três anos que Elisa. Era um bom menino, educado sob a vigilância de seu pai, que desde os tenros anos inspirava-lhe aqueles sentimentos a que devia a sua imensa popularidade.

 

Carlos e Elisa viviam quase sempre juntos, naquela comunhão da infância que não conhece desigualdades nem condições. Estimavam-se deveras, a ponto de sentirem profundamente quando foi necessário a Carlos ir cursar as primeiras aulas.

 

Trouxe o tempo as divisões, e anos depois, quando Carlos apeou à porta da fazenda com uma carta de bacharel na algibeira, uma esponja se passara sobre a vida anterior. Elisa, já mulher, podia avaliar os nobres esforços de seu pai, e concentrara todos os afetos de sua alma no mais respeitoso amor filial. Carlos era homem. Conhecia as condições da vida social, e desde os primeiros gestos mostrou que abismo separava o filho do protetor da filha do protegido.

 

O dia da volta de Carlos foi dia de festa na fazenda do velho Pio. Julião tomou parte na alegria geral, como toda a gente, pobre ou remediada, dos arredores. E a alegria não foi menos pura em nenhum: todos sentiam que a presença do filho do fazendeiro era a felicidade comum.

 

Passaram-se os dias. Pio não se animava a separar-se de seu filho para que este seguisse uma carreira política, administrativa ou judiciária. Entretanto, notava-lhe muitas diferenças em comparação com o rapaz que, anos antes, lhe saíra de casa. Nem idéias, nem sentimentos, nem hábitos eram os mesmos. Cuidou que fosse um resto da vida escolástica, e esperou que a diferença da atmosfera que voltava a respirar e o espetáculo da vida simples e chã da fazenda o restabelecessem.

 

O que o magoava sobretudo, é que o filho bacharel não buscasse os livros, onde pudesse, procurando novos conhecimentos, entreter uma necessidade indispensável para o gênero de vida que ia encetar. Carlos não tinha mais que uma ocupação e uma distração: a caça. Levava dias e dias a correr o mato em busca de animais para matar, e nisso fazia consistir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos os estudos.

 

Ao meio-dia era certo vê-lo chegar ao sítio de Julião, e aí descansar um bocado, conversando sobranceiro com a filha do infatigável lavrador. Este chegava, trocava algumas palavras de respeitosa estima com o filho de Pio, oferecia-lhe parte do seu modesto jantar, que o moço não aceitava, e discorria, durante a refeição, sobre os objetos relativos à caça.

 

Passavam as coisas assim sem alteração de natureza alguma.

 

Um dia, ao entrar em casa para jantar, Julião notou que sua filha parecia triste. Reparou, e viu-lhe os olhos vermelhos de lágrimas. Perguntou o que era. Elisa respondeu que lhe doía a cabeça; mas durante o jantar, que foi silencioso, Julião observou que sua filha enxugava furtivamente algumas lágrimas. Nada disse; mas, terminado o jantar, chamou-a para junto de si, e com palavras brandas e amigas exigiu-lhe que dissesse o que tinha. Depois de muita relutância, Elisa falou:

 

— Meu pai, o que eu tenho é simples. O Sr. Carlos, em quem comecei a notar mais amizade que ao princípio, declarou-me hoje que gostava de mim, que eu devia ser dele, que só ele me poderia dar tudo quanto eu desejasse, e muitas outras coisas que eu nem pude ouvir, tal foi o espanto com que ouvi as suas primeiras palavras. Declarei-lhe que não pensasse coisas tais. Insistiu; repeli-o... Então tomando um ar carrancudo, saiu, dizendo-me:

 

— Hás de ser minha!

 

Julião estava atônito. Inquiriu sua filha sobre todas as particularidades da conversa referida. Não lhe restava dúvida acerca dos maus intentos de Carlos. Mas como de um tão bom pai pudera sair tão mau filho? perguntava ele. E esse próprio filho não era bom antes de ir para fora? Como exprobrar-lhe a sua má ação? E poderia fazê-lo? Como evitar a ameaça? Fugir do lugar em que morava o pai não era mostrar-se ingrato? Todas estas reflexões passaram pelo espírito de Julião. Via o abismo a cuja borda estava, e não sabia como escapar-lhe.

 

Finalmente, depois de animar e tranqüilizar sua filha, Julião saiu, de plano feito, na direção da fazenda, em busca de Carlos.

 

Este, rodeado por alguns escravos, fazia limpar várias espingardas de caça. Julião, depois de cumprimentá-lo alegremente, disse que lhe queria falar em particular. Carlos estremeceu; mas não podia deixar de ceder.

 

— Que me queres, Julião? disse depois de se afastar um pouco do grupo.

 

Julião respondeu:

 

— Sr. Carlos, venho pedir-lhe uma coisa, por alma de sua mãe!... Deixe minha filha sossegada.

 

— Mas que lhe fiz eu? titubeou Carlos.

 

— Oh! não negue, porque eu sei.

 

— Sabe o quê?

 

— Sei da sua conversa de hoje. Mas o que passou, passou. Fico sendo seu amigo, mais ainda, se me não perseguir a pobre filha que Deus me deu... Promete?

 

Carlos esteve calado alguns instantes. Depois:

 

— Basta, disse; confesso-te, Julião, que era uma loucura minha de que me arrependo. Vai tranqüilo: respeitarei tua filha como se fosse morta.

 

Julião, na sua alegria, quase beijou as mãos de Carlos. Correu à casa e referiu a sua filha a conversa que tivera com o filho de Pai de todos. Elisa não só por si como por seu pai, estimou o pacífico desenlace.

 

Tudo parecia ter voltado à primeira situação. As visitas de Carlos eram feitas nas horas em que Julião se achava em casa, e além disso, a presença de uma parenta velha, convidada por Julião, parecia tornar impossível nova tentativa de parte de Carlos.

 

Uma tarde, quinze dias depois do incidente que narrei acima, voltava Julião da fazenda do velho Pio. Era já perto da noite. Julião caminhava vagarosamente, pensando no que lhe faltaria ainda para completar o pecúlio de sua filha. Nessas divagações, não reparou que anoitecera. Quando deu por si, ainda se achava umas boas braças distante de casa. Apressou o passo. Quando se achava mais perto, ouviu uns gritos sufocados. Deitou a correr e penetrou no terreiro que circundava a casa. Todas as janelas estavam fechadas; mas os gritos continuavam cada vez mais angustiosos. Um vulto passou-lhe pela frente e dirigiu-se para os fundos. Julião quis segui-lo; mas os gritos eram muitos, e de sua filha. Com uma força difícil de crer em corpo tão pouco robusto, conseguiu abrir uma das janelas. Saltou, e eis o que viu:

 

A parenta que convidara a tomar conta da casa estava no chão, atada, amordaçada, exausta. Uma cadeira quebrada, outras em desordem.

 

— Minha filha! exclamou ele.

 

E atirou-se para o interior.

 

Elisa debatia-se nos braços de Carlos, mas já sem forças nem esperanças de obter misericórdia.

 

No momento em que Julião entrava por uma porta, entrava por outra um indivíduo mal conceituado no lugar, e até conhecido por assalariado nato de todas as violências. Era o vulto que Julião vira no terreiro. E outros haviam ainda, que apareceram a um sinal dado pelo primeiro, mal Julião entrou no lugar em que se dava o triste conflito da inocência com a perversidade.

 

Julião teve tempo de arrancar Elisa dos braços de Carlos. Cego de raiva, travou de uma cadeira e ia atirar-lha, quando os capangas, entrados a este tempo, o detiveram.

 

Carlos voltara a si da surpresa que lhe causara a presença de Julião. Recobrando o sangue frio, cravou os olhos odiendos no desventurado pai, e disse-lhe com voz sumida:

 

— Hás de pagar-me!

 

Depois, voltando-se para os ajudantes das suas façanhas, bradou:

 

— Amarrem-no!

 

Em cinco minutos foi obedecido. Julião não podia lutar contra cinco.

 

Carlos e quatro capangas saíram. Ficou um de vigia.

 

Uma chuva de lágrimas rebentou dos olhos de Elisa. Doía-lhe na alma ver seu pai atado daquele modo. Não era já o perigo a que escapara o que a comovia; era não poder abraçar seu pai livre e feliz. E por que estaria atado? Que intentava Carlos fazer? Matá-lo? Estas lúgubres e aterradoras idéias passaram rapidamente pela cabeça de Elisa. Entre lágrimas comunicou-as a Julião.

 

Este, calmo, frio, impávido, tranqüilizou o espírito de sua filha, dizendo-lhe que Carlos poderia ser tudo, menos um assassino.

 

Seguiram-se alguns minutos de angustiosa espera. Julião olhava para sua filha e parecia refletir. Depois de algum tempo, disse:

 

— Elisa, tens realmente a tua desonra por uma grande desgraça?

 

— Oh! meu pai! exclamou ela.

 

— Responde: se te faltasse a pureza que recebeste do céu, considerar-te-ias a mais infeliz de todas as mulheres?

 

— Sim, sim, meu pai!

 

Julião calou-se.

 

Elisa chorou ainda. Depois voltou-se para a sentinela deixada por Carlos e quis implorar-lhe misericórdia. Foi atalhada por Julião.

 

— Não peças nada, disse este. Só há um protetor para os infelizes: é Deus. Há outro depois dele; mas esse está longe... Ó Pai de todos, que filho te deu o Senhor!...

 

Elisa voltou para junto de seu pai.

 

— Chega-te para mais perto, disse este.

 

Elisa obedeceu.

 

Julião tinha os braços atados; mas podia mover, ainda que pouco, as mãos. Procurou afagar Elisa, tocando-lhe as faces e beijando-lhe a cabeça. Ela inclinou-se e escondeu o rosto no peito de seu pai.

 

A sentinela não dava fé do que se passava. Depois de alguns minutos do abraço de Elisa e Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A sentinela correu aos dois. Elisa caíra completamente, banhada em sangue.

 

Julião tinha procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça deixada por Carlos sobre uma cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a no peito de Elisa. Quando a sentinela correu para ele, não teve tempo de evitar o segundo golpe, com que Julião tornou mais profunda e mortal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas convulsões.

 

— Assassino! clamou a sentinela.

 

— Salvador!... salvei minha filha da desonra!

 

— Meu pai!... murmurava a pobre pequena expirando.

 

Julião, voltando-se para o cadáver, disse, derramando duas lágrimas, duas só, mas duas lavas rebentadas do vulcão de sua alma:

 

— Dize a Deus, minha filha, que te mandei mais cedo para junto dele para salvar-te da desonra.

 

Depois fechou os olhos e esperou.

 

Não tardou que entrasse Carlos, acompanhado de uma autoridade policial e vários soldados.

 

Saindo da casa de Julião, teve a idéia danada de ir declarar à autoridade que o velho lavrador tentara contra a vida dele, razão por que teve de lutar, o conseguira deixá-lo amarrado.

 

A surpresa de Carlos e dos policiais foi grande. Não cuidavam encontrar o espetáculo que a seus olhos se ofereceu. Julião foi preso. Não negou o crime. Somente reservou-se para contar as circunstâncias dele na ocasião competente.

 

A velha parenta foi desatada, desamordaçada e conduzida à fazenda de Pio.

 

Julião, depois de contar-me toda a história cujo resumo acabo de fazer, perguntou-me:

 

— Diga-me, Sr. doutor, pode ser meu advogado? Não sou criminoso?

 

— Serei seu advogado. Descanse, estou certo de que os juízes reconhecerão as circunstâncias atenuantes do delito.

 

— Oh! não é isso que me aterroriza. Seja ou não condenado pelos homens, é coisa que nada monta para mim. Se os juízes não forem pais, não me compreenderão, e então é natural que sigam os ditames da lei. Não matarás, é dos mandamentos eu bem sei...

 

Não quis magoar a alma do pobre pai continuando naquele diálogo. Despedi-me dele e disse que voltaria depois.

 

Saí da cadeia alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu acabava de ouvir. No caminho as idéias se me clarearam. Meu espírito voltou-se vinte e três séculos atrás, e pude ver, no seio da sociedade romana, um caso idêntico ao que se dava na vila de ***.

 

Todos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de Sicília e outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi essa tragédia a precursora da queda dos decênviros. Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível de tomá-la por simples simpatia, determinou o decênviro empregar um meio violento. O meio foi escravizá-la. Peitou um sicofanta, que apresentou-se aos tribunais reclamando a entrega de Virgínia, sua escrava. O desventurado pai, não conseguindo comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de açougue e cravou-a no peito de Virgínia.

 

Pouco depois caíam os decênviros e restabelecia-se o consulado.

 

No caso de Julião não haviam decênviros para abater nem cônsules para levantar; mas havia a moral ultrajada e a malvadez triunfante. Infelizmente estão ainda longe, esta da geral repulsão, aquela do respeito universal.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Fazendo todas estas reflexões, encaminhava-me eu para a casa do amigo em que estava hospedado. Ocorreu-me uma idéia, a de ir à fazenda de Pio, autor do bilhete que me chamara da corte, e de quem eu podia saber muita coisa mais.

 

Não insisto em observar a circunstância de ser o velho fazendeiro quem se interessava pelo réu e pagava as despesas da defesa nos tribunais. Já o leitor terá feito essa observação, realmente honrosa para aquele deus da terra.

 

O sol, apesar da estação, queimava suficientemente o viandante. Ir a pé à fazenda, quando podia ir a cavalo, era ganhar fadiga e perder tempo sem proveito. Fui à casa e mandei aprontar o cavalo. O meu hóspede não estava em casa. Não quis esperá-lo, e sem mais companhia dirigi-me para a fazenda.

 

Pio estava em casa. Mandei-lhe dizer que uma pessoa da corte desejava falar-lhe. Fui recebido incontinente.

 

Achei o velho fazendeiro em conversa com um velho padre. Pareciam, tanto o secular como o eclesiástico, dois verdadeiros soldados do Evangelho combinando-se para a mais extensa prática do bem. Tinham ambos a cabeça branca, o olhar sereno, a postura grave e o gesto despretensioso. Transluzia-lhes nos olhos a bondade do coração. Levantaram-se quando apareci e vieram cumprimentar-me.

 

O fazendeiro era quem chamava mais a minha atenção, pelo que ouvira dizer dele ao meu amigo e ao pai de Elisa. Pude observá-lo durante alguns minutos. Era impossível ver aquele homem e não adivinhar o que ele era. Com uma palavra branda e insinuante disse-me que diante do capelão não tinha segredos, e que eu dissesse o que tinha para dizer. E começou por me perguntar quem era eu. Disse-lho; mostrei-lhe o bilhete, declarando que sabia ser dele, razão por que o procurara.

 

Depois de algum silêncio disse-me:

 

— Já falou ao Julião?

 

— Já.

 

— Conhece então toda a história?

 

— Sei do que ele me contou.

 

— O que ele lhe contou é o que se passou. Foi uma triste história que me envelheceu ainda mais em poucos dias. Reservou-me o céu aquela tortura para o último quartel da vida. Soube o que fez. É sofrendo que se aprende. Foi melhor. Se meu filho havia de esperar que eu morresse para praticar atos tais com impunidade, bom foi que o fizesse antes, seguindo-se assim ao delito o castigo que mereceu.

 

A palavra castigo impressionou-me. Não me pude ter e disse-lhe:

 

— Fala em castigo. Pois castigou seu filho?

 

— Pois então? Quem é o autor da morte de Elisa?

 

— Oh!... isso não, disse eu.

 

— Não foi autor, foi causa. Mas quem foi o autor da violência à pobre pequena? Foi decerto meu filho.

 

— Mas esse castigo?...

 

— Descanse, disse o velho adivinhando a minha indiscreta inquietação. Carlos recebeu um castigo honroso, ou, por outra, sofre como castigo aquilo que devia receber como honra. Eu o conheço. Os cômodos da vida que teve, a carta que alcançou pelo estudo, e certa dose de vaidade que todos nós recebemos do berço, e que o berço lhe deu a ele em grande dose, tudo isso é que o castiga neste momento, porque tudo foi desfeito pelo gênero de vida que lhe fiz adotar. Carlos é agora soldado.

 

— Soldado! exclamei eu.

 

— É verdade. Objetou-me que era doutor. Disse-lhe que devia lembrar-se de que o era quando penetrou na casa de Julião. A muito pedido, mandei-o para o Sul, com promessa jurada, e avisos particulares e reiterados, de que, mal chegasse ali, assentasse praça em um batalhão de linha. Não é um castigo honroso? Sirva a sua pátria, e guarde a fazenda e a honra dos seus concidadãos: é o melhor meio de aprender a guardar a honra própria.

 

Continuamos em nossa conversa durante duas horas quase. O velho fazendeiro mostrava-se magoadíssimo sempre que volvíamos a falar do caso de Julião. Depois que lhe declarei que tomava conta da causa em defesa do réu, instou comigo para que nada poupasse a fim de alcançar a diminuição da pena de Julião. Se for preciso, dizia ele, apreciar com as considerações devidas o ato de meu filho, não se acanhe: esqueça-se de mim, porque eu também me esqueço de meu filho.

 

Cumprimentei aquela virtude romana, despedi-me do padre, e saí, depois de prometer tudo o que me foi pedido.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

— Então, falaste a Julião? perguntou o meu amigo quando me viu entrar em casa.

 

— Falei, e falei também ao Pai de todos... Que história, meu amigo!... Parece um sonho.

 

— Não te disse?... E defendes o réu?

 

— Com toda a certeza.

 

Fui jantar, e passei o resto da tarde conversando acerca do ato de Julião e das virtudes do fazendeiro.

 

Poucos dias depois instalou-se o júri onde tinha de comparecer Julião.

 

De todas as causas, era aquela a que mais medo me fazia; não que eu duvidasse das atenuantes do crime, mas porque receava não estar na altura da causa.

 

Toda a noite da véspera foi para mim de verdadeira insônia. Enfim raiou o dia marcado para o julgamento de Julião. Levantei-me, comi pouco e distraído, e vesti-me. Entrou-me no quarto o meu amigo.

 

— Lá te vou ouvir, disse-me ele abraçando.

 

Confessei-lhe os meus receios; mas ele, para animar-me, entreteceu uma grinalda de elogios que eu mal pude ouvir, no meio das minhas preocupações.

 

Saímos.

 

Dispenso os leitores da narração do que se passou no júri. O crime foi provado pelo depoimento das testemunhas; nem Julião o negou nunca. Mas apesar de tudo, da confissão e da prova testemunhal, auditório, jurados, juiz e promotor, todos tinham pregados no réu olhos de simpatia, admiração e compaixão.

 

A acusação limitou-se a referir o depoimento das testemunhas, e quando, terminando o seu discurso, teve de pedir a pena para o réu, o promotor mostrava-se envergonhado de estar trêmulo e comovido.

 

Tocou-me a vez de falar. Não sei o que disse. Sei que as mais ruidosas provas de adesão surgiam no meio do silêncio geral. Quando terminei, dois homens invadiram a sala e abraçaram-me comovidos: o fazendeiro e o meu amigo.

 

Julião foi condenado a dez anos de prisão. Os jurados tinham ouvido a lei, e igualmente, talvez, o coração.

 

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CAPÍTULO V

 

No momento em que escrevo estas páginas, Julião, tendo já cumprido a sentença, vive na fazenda de Pio. Pio não quis que ele voltasse ao lugar em que se dera a catástrofe, e fá-lo residir ao pé de si.

 

O velho fazendeiro tinha feito recolher as cinzas de Elisa em uma urna, ao pé da qual vão ambos orar todas as semanas.

 

Aqueles dois pais, que assistiram ao funeral das suas esperanças, acham-se ligados intimamente pelos laços do infortúnio.

 

Na fazenda fala-se sempre de Elisa, mas nunca de Carlos. Pio é o primeiro a não magoar o coração de Julião com a lembrança daquele que o levou a matar sua filha.

 

Quanto a Carlos, vai resgatando como pode o crime com que atentou contra a honra de uma donzela e contra a felicidade de dois pais.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 26 de maio de 2022

VINTE ANOS! VINTE ANOS! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VINTE ANOS! VINTE ANOS!
Machado de Assis

 

 

 

Gonçalves, despeitado, amarrotou o papel, e mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama, de barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez ou doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua detrás da Lapa.

 

Não há leitor, menos ainda leitora, que não imagine logo que o papel é uma carta, e que a carta é de amores, alguma zanga de moça, ou notícia de que o pai os ameaçava, que a intimou a ir para fora, para a roça, por exemplo. Vão conjecturas! Não se trata de amores, não é mesmo carta, posto que haja embaixo algumas palavras assinadas e datadas, com endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos primeiros bancos do mundo, e Gonçalves não dá pela falta. Por outro lado, os vinte anos são também confiados e cegos; Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai em desmandos. Ultimamente, viu um sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha dinheiro, mas comprou-os fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o animou. Lá se vão quatro meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves lembrou-se de escrever uma carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais maneiras de estilo, que enterneceriam a mais dura pedra do mundo.

 

O correspondente não era pedra, mas também não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e possuía cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande queda para gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era preciso pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente? Mandou dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia primeiro escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que pagara outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas embaixo da conta, que devolveu.

 

Compreende-se o pesar do rapaz. Não só ficava a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se fosse outra coisa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma coisa que realmente ele achou depois que era um trambolho, pesado, enorme e quente... Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que necessidade era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de escrever! que carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a primeira: a última ameaçava-o com a miséria.

 

Depois de dizer o diabo do correspondente, de fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos.

 

— Deixa estar, patife! quebro-te a cara.

 

E, trêmulo, agitado, vestiu-se às carreiras, chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na escada, voltou ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver se estava boa; estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no chão — o que lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal saiu.

 

— Não, patife! não me pregas outra.

 

Eram os vinte anos que irrompiam cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes de chegar à Rua de Uruguaiana, alguém chamou por ele.

 

— Gonçalves! Gonçalves!

 

Não ouviu e foi andando. A voz era de dentro de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à rua, e pegou-o pelo ombro.

 

— Onde vais?

 

— Já volto...

 

— Vem cá primeiro.

 

E tomando-lhe o braço, voltou para o café, onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, — todos da mesma idade. Perguntaram-lhe onde ia; Gonçalves respondeu que ia castigar um pelintra, donde os quatro colegas concluíram que não se tratava de nenhum crime público, inconfidência ou sacrilégio, — mas de algum credor ou rival. Um deles chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em paz.

 

— Que Brito? perguntou o Gonçalves.

 

— Que Brito? O preferido, o tal, o dos bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho?

 

Gonçalves deu de ombros, e pediu uma xícara de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há coisa muito séria. Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a tal Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara. Gonçalves não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e demorados. Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras, cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo, análise das belezas.

 

— Mais café, disse Gonçalves.

 

— Não quer cognac?

 

— Traga... não... está bom, traga.

 

Vieram ambas as coisas. Uma das belezas citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui um prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a ser ministro.

 

— E o Gonçalves genro do ministro!

 

— Deixa de graças, redargüiu rindo o Gonçalves.

 

— Que tinha?

 

— Não gosto de graças. Eu genro? Demais, vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou radical...

 

— Sim, mas os radicais também se casam, observou um.

 

— Com as radicais, emendou outro.

 

— Justo. Com as radicais...

 

— Mas você não sabe se ela é radical.

 

— Ora bolas, o café está frio! exclamou Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a vocês que eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram Aristóteles?

 

— Não.

 

— Nem eu.

 

— Deve ser um bom autor.

 

— Excelente, insistiu Gonçalves. Ó Lamego, tu lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós lhe pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles?

 

E contou a anedota, que na verdade era alegre e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas gargalhadas sacudidas e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas pouco; pediu terceira xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Büchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas.

 

— Cinco horas! exclamaram dois ou três.

 

— No meu estômago são sete, ponderou um dos outros.

 

— Onde jantam vocês?

 

Resolveram fazer uma revista de fundos e ir jantar juntos. Reuniram seis mil-réis; foram a um hotel modesto, e comeram bem, sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando saíram. Caía a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de S. Francisco. De caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças retardatárias; viram outras no ponto dos bonds de S. Cristóvão. Uma delas desafiou mesmo a curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou que era muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida ou não, Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bond em que ela fosse; os outros ouviram rindo.

 

Nisto a noite foi chegando; eles tornaram à Rua do Ouvidor. Às sete e meia caminharam para um teatro, não para ver o espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver entrar as senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas, trocadilhos, pachuchadas; muita alegria em todos, mas principalmente no Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada. Às nove horas tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma caixa por vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 25 de maio de 2022

VIDROS QUEBRADOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VIDROS QUEBRADOS

Machado de Assis

 

 

 

— Homem, cá para mim isto de casamentos são coisas talhadas no céu. É o que diz o povo, e diz bem. Não há acordo nem conveniência nem nada que faça um casamento, quando Deus não quer...

 

— Um casamento bom, emendou um dos interlocutores.

 

— Bom ou mau, insistiu o orador. Desde que é casamento é obra de Deus. Tenho em mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes... Ainda é cedo para o voltarete. Eu estou abarrotado...

 

Venâncio é o nome deste cavalheiro. Está abarrotado, porque ele e três amigos acabavam de jantar. As senhoras foram para a sala conversar do casamento de uma vizinha, moça teimosa como trinta diabos, que recusou todos os noivos que o pai lhe deu, e acabou desposando um namorado de cinco anos, escriturário no Tesouro. Foi à sobremesa que este negócio começou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a companhia bifurcou-se; elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava o voltarete habitual. Aí o Venâncio enunciou o princípio da origem divina dos matrimônios, princípio que o Leal, sócio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos matrimônios bons. Os maus, segundo ele explicou daí a pouco, eram obra do diabo.

 

— Vou dar-lhes a prova, continuou o Venâncio, desabotoando o colete e encostando o braço no peitoril da janela que abria para o jardim. Foi no tempo da Campestre... Ah! os bailes da Campestre! Tinha eu então vinte e dois anos. Namorei-me ali de uma moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos cinqüenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido. Vocês podem imaginar se me atirei ou não ao namoro...

 

— Com a mãe?

 

— Adeus! Se dizem tolices, calo-me. Atirei-me à filha; começamos o namoro logo na primeira noite; continuamos, correspondemo-nos; enfim, estávamos ali, estávamos apaixonados, em menos de quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licença para falar à mãe; e, com efeito, dirigi uma carta à viúva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria uma grande honra, se me admitisse na família. Respondeu-me oito dias depois que Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e por isso sentia muito, e pedia-me desculpa. Imaginem como fiquei! Moço ainda, sangue na guelra, e demais apaixonado, quis ir à casa da viúva, fazer uma estralada, arrancar a moça, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e escrevi a Cecília perguntando se consentia que a tirasse por justiça. Cecília respondeu-me que era bom ver primeiro se a mãe voltava atrás; não queria dar-lhe desgostos, mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria minha e só minha...

 

Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondência. A viúva, certa da paixão da filha, fez o diabo. Começou por não ir mais à Campestre; trancou as janelas, não ia a parte nenhuma; mas nós escrevíamos um ao outro, e isso bastava. No fim de algum tempo, arranjei meio de vê-la, à noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma chácara vizinha, ajudado por uma boa preta da casa. A primeira coisa que a preta fazia era prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite, porém, o cachorro soltou-se e veio a mim. A viúva acordou com o barulho, foi à janela dos fundos, e viu-me saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva partiu para a filha:

 

— Cabeça de vento! peste! isto são coisas que se façam? foi isto que te ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como osso! Peste! peste!

 

A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue. Que a tal mulherzinha era das arábias! Mandou chamar o irmão, que morava na Tijuca, um José Soares, que era então comandante do 6º batalhão da Guarda Nacional; mandou-o chamar, contou-lhe tudo, e pediu-lhe conselho. O irmão respondeu que o melhor era casar Cecília sem demora; mas a viúva observou que, antes de aparecer noivo, tinha medo que eu fizesse alguma, e por isso tencionava retirá-la de casa, e mandá-la para o convento da Ajuda; dava-se com as madres principais...

 

Três dias depois, Cecília foi convidada pela mãe a aprontar-se, porque iam passar duas semanas na Tijuca. Ela acreditou, e mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu jurei que daria a liberdade, se chegasse a casar com a sinhá-moça. Vestiu-se, pôs a roupa necessária no baú, e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco minutos, a mãe revelou tudo à filha; não ia levá-la para a Tijuca, mas para o convento, de onde sairia quando fosse tempo de casar. Cecília ficou desesperada. Chorou de raiva, bateu o pé, gritou, quebrou os vidros do carro, fez uma algazarra de mil diabos. Era um escândalo nas ruas por onde o carro ia passando. A mãe já lhe pedia pelo amor de Deus que sossegasse; mas era inútil. Cecília bradava, jurava que era asneira arranjar noivos e conventos; e ameaçava a mãe, dava socos em si mesma... Podem imaginar o que seria.

 

Quando soube disto não fiquei menos desesperado. Mas, refletindo bem compreendi que a situação era melhor; Cecília não teria mais contemplação com a mãe, e eu podia tirá-la por justiça. Compreendi também que era negócio que não podia esfriar. Obtive o consentimento dela, e tratei dos papéis. Falei primeiro ao Desembargador João Regadas, pessoa muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos que a moça seria depositada na casa dele. Cecília era agora a mais apressada; tinha medo que a mãe a fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava aterrada, pensava em mordaças, cordas... Queria sair quanto antes.

 

Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor da viúva, quando as freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada por justiça. Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal; era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. A mulher do desembargador foi que a recebeu, e não sabia que dizer; o marido não estava em casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto, casado de dois meses, e o Jaime, viúvo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a realidade das coisas; disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era consentir no casamento, e não armar escândalo. Fizeram-me boas ausências; tanto eles como a mãe afirmaram-lhe que eu, se não tinha posição nem família, era um rapaz sério e de futuro. Cecília foi chamada à sala, e não fraqueou: declarou que, ainda que o céu lhe caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.

 

Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava então em Santos, deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a Santos. Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo interrogatório acerca da família da noiva. Depois confessou que desaprovava o meu procedimento.

 

— Andaste mal, Venâncio; nunca se deve desgostar uma mãe...

 

— Mas se ela não queria?

 

— Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos. Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família. Esse mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela é bonita?

 

— Muito bonita.

 

— Tanto melhor.

 

Pedi-lhe que viesse comigo, para assistir ao casamento. Relutou, mas acabou cedendo; impôs só a condição de esperar um mês. Escrevi para a Corte, e esperei as quatro mais longas semanas da minha vida. Afinal chegou o dia, mas veio um desastre, que me atrapalhou tudo. Minha mãe deu uma queda, e feriu-se gravemente; sobreveio erisipela, febre, mais um mês de demora, e que demora! Não morreu, felizmente; logo que pôde viemos todos juntos para a Corte, e hospedamo-nos no Hotel Pharoux; por sinal que assistiram, no mesmo dia, que era o 25 de março, à parada das tropas no Largo do Paço.

 

Eu é que não me pude ter, corri a ver Cecília. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a mulher do desembargador que me recebeu, mas tão fria que desconfiei. Voltei no dia seguinte, e a recepção foi ainda mais gelada. No terceiro dia, não pude mais e perguntei se Cecília teria feito as pazes com a mãe, e queria desfazer o casamento. Mastigou e não respondeu nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Cecília; depois, rasguei-a, e escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras estava doente, ou se não queria mais casar. Responderam-me vocês? Assim me respondeu ela.

 

— Tinha feito as pazes com a mãe?

 

— Qual! Ia casar com o filho viúvo do desembargador, o tal que morava com o pai. Digam-me, se não é mesmo obra talhada no céu?

 

— Mas as lágrimas, os vidros quebrados?...

 

— Os vidros quebrados ficaram quebrados. Ela é que casou com o filho do depositário, daí a seis semanas... Realmente, se os casamentos não fossem talhados no céu, como se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o que lhes digo. São coisas arranjadas por Deus. Mal comparado, é como no voltarete: eu tinha licença em paus, mas o filho do desembargador, que tinha outra em copas, preferiu e levou o bolo.

 

— É boa! Vamos à espadilha.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 24 de maio de 2022

A VIDA ETERNA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A VIDA ETERNA

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 23 de maio de 2022

VIAGEM À RODA DE MIM MESMO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

VIAGEM À RODA DE MIM MESMO

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 22 de maio de 2022

VERBA TESTAMENTÁRIA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

VERBA TESTAMENTÁRIA

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 21 de maio de 2022

VÊNUS! DIVINA VÊNUS! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VÊNUS! DIVINA VÊNUS!

Machado de Assis

 

 

 

— Vênus! Vênus! divina Vênus!

 

E despegando os olhos da parede, onde estava uma cópia pequenina da Vênus de Milo, Ricardo arremeteu contra o papel e arrancou de si dois versos para completar uma quadra começada às sete horas da manhã. Eram sete e meia; a xícara de café, que a mãe lhe trouxera antes de sair para a missa, estava intacta e fria sobre a mesa; a cama, ainda desfeita, era uma pequena cama de ferro, a mesa em que escrevia era de pinho; a um canto um par de sapatos, o chapéu pendente de um prego. Desarranjo e falta de meios. O poeta, com os pés metidos em chinelas velhas, com a cabeça apoiada na mão esquerda, ia escrevendo a poesia. Tinha acabado a quadra e releu-a:

 

Mimosa flor que dominas

Todas as flores do prado,

Tu tens as formas divinas

De Vênus, modelo amado.

 

Os dois últimos versos não lhe pareceram tão bons como os dois primeiros, nem lhe saíram tão fluentemente. Ricardo deu uma pancadinha seca na borda da mesa, e endireitou o busto. Concertou os bigodes, fitou novamente a Vênus de Milo, — uma triste cópia em gesso, — e tratou de ver se os versos lhe saíam melhores.

 

Tem vinte anos este moço, olhos claros e miúdos, cara sem expressão, nem bonita nem feia, banal. Cabelo reluzente de óleo, que ele põe todos os dias. Dentes tratados com esmero. As mãos são delgadinhas, como os pés, e tem as unhas compridas e encurvadas. Empregado em um dos arsenais, vive com a mãe (já não tem pai), e paga a casa e parte da comida. A outra parte é paga pela mãe, que, apesar de velha, trabalha muito. Moram no bairro dos Cajueiros. O ano em que isto se dava era o de 1859. É domingo. Dizendo que a mãe foi à missa, quase não é preciso acrescentar que com um surrado vestido preto.

 

Ricardo prosseguia. O amor às unhas faz com que não as roa, quando se acha em dificuldades métricas. Em compensação, afaga a ponta do nariz com a ponta dos dedos. Esforça-se por sacar dali dois versos substitutivos, mas inutilmente. Afinal, tanto repetiu os dois versos condenados, que acabou por achar a quadra excelente e continuou a poesia. Saiu a segunda estrofe, depois a terceira, a quarta e a quinta. A última dizia que o Deus verdadeiro, querendo provar que os falsos não eram tão poderosos como supunham, inventara, contra a bela Vênus, a formosa Marcela. Gostou desta idéia; era uma chave de ouro. Ergueu-se e passeou pelo quarto, recitando os versos; em seguida, parou diante da Vênus de Milo, encantado da comparação. Chegou a dizer-lhe em voz alta:

 

— Os braços que te faltam são os braços dela!

 

Também gostou desta idéia, e tentou convertê-la em uma estrofe, mas a veia esgotara-se. Copiou a poesia, — primeiramente, em um caderno de outras; depois, em uma folha de papel bordado. Acabava a cópia quando a mãe voltava da missa. Mal teve tempo de guardar tudo na gaveta. A mãe viu que ele não bebera o café, feito por ela, e posto ali com a recomendação de que o não deixasse esfriar.

 

"Hão de ser os malditos versos!" pensou ela consigo.

 

— Sim, mamãe, foram os malditos versos! disse ele.

 

Maria dos Anjos, espantada:

 

— Você adivinhou o que eu pensei?

 

Ricardo podia responder que já lhe ouvira muitas vezes aquelas palavras, acompanhadas de certo gesto característico; mas preferiu mentir.

 

— O poeta adivinha. A inspiração não serve só para compor versos, mas também para ler na alma dos outros.

 

— Então, você leu também que eu rezei hoje na missa por você... ?

 

— Li, sim, senhora.

 

— E que pedi a Nossa Senhora, minha madrinha, que acabe com essa paixão, por aquela moça... Como se chama mesmo?

 

Ricardo, depois de alguns instantes, respondeu:

 

— Marcela.

 

— Marcela, é verdade. Não disse o nome, mas Nossa Senhora sabe. Eu não digo que vocês não se mereçam; não a conheço. Mas, Ricardo, você não pode tomar estado. Ela é filha de doutor, não há de querer lavar nem engomar.

 

Ricardo teve moralmente náuseas. Aquela idéia reles de lavar e engomar era própria de uma alma baixa, ainda que excelente. Venceu o asco, e olhou para a mãe com um gesto igualmente amigo e superior. No almoço, disse-lhe que Marcela era a mais famosa moça do bairro.

 

— Mamãe acredita que os anjos venham à terra? Marcela é um anjo.

 

— Acredito, meu filho, mas os anjos comem, quando estão neste mundo e se casam... Ricardo, se você anda com tanta vontade de casar, por que não aceita Felismina, sua prima, que gosta tanto de você?

 

— Ora, mamãe! Felismina!

 

— Não é rica, é pobre...

 

— Quem lhe fala em dinheiro? Mas, Felismina! basta-lhe o nome; é difícil achar outro tão ridículo. Felismina!

 

— Não foi ela que escolheu o nome, foi o pai, quando ela se batizou.

 

— Pois sim, mas não se segue que seja bonito. E depois, eu não gosto dela, é prosaica, tem o nariz comprido e os ombros estreitos, sem graça; os olhos parecem mortos, olhos de peixe podre, e fala arrastado. Parece da roça.

 

— Também eu sou da roça, meu filho, replicou a mãe com brandura.

 

Ricardo almoçou, passou o dia agitado, felizmente lendo versos, que foram o seu calmante. Tinha um volume de Casimiro de Abreu, outro de Soares de Passos, um de Lamartine, não contando os seus próprios manuscritos. De noite, foi à casa de Marcela. Ia resoluto. Não eram os primeiros versos que escrevia à moça, mas não lhe entregara nenhuns, — por acanhamento. De fato, esse namoro que Maria dos Anjos receava acabasse em casamento, não passava ainda de alguns olhares e durava já umas seis semanas. Foi o irmão de Marcela que apresentou ali o nosso poeta, com quem se encontrava, às tardes, em um armarinho do bairro. Disse que era um moço de muita habilidade. Marcela, que era bonita, não deixava passar olhos sem fazer-lhes alguma pergunta a tal respeito, e como as respostas eram todas afirmativas, fingia não entendê-las e continuava o interrogatório. Ricardo respondeu pronto e entusiasmado; tanto bastou para continuarem uma variação infinita sobre o mesmo tema. Entretanto, não havia nenhuma palavra de boca, trocada entre eles, coisa que parecesse com declaração. Os próprios dedos de Ricardo eram frouxos, quando recebiam os dela, que eram frouxíssimos.

 

"Hoje dou o golpe", ia ele pensando.

 

Havia gente em casa do Dr. Viana, pai da moça. Tocava-se piano; Marcela perguntou-lhe logo com os olhos do costume:

 

— Que tal me acha?

 

— Linda, angélica, respondeu Ricardo pelo mesmo idioma.

 

Apalpou a algibeira do fraque; lá estava a poesia metida em sobrecarta cor-de-rosa, com uma pombinha cor de ouro, em um dos cantos.

 

— Hoje temos solo, disse-lhe o filho do Dr. Viana. Aqui está este senhor, que é excelente parceiro.

 

Ricardo quis recusar; não pôde, não podia. E lá foi jogar o solo, a tentos, em um gabinete, ao pé da sala de visitas. Cerca de hora e meia não arredou pé; afinal confessou que estava cansado, precisava andar um pouco, voltaria depois.

 

Correu à sala. Marcela tocava piano, um moço de bigodes compridos, ao pé dela, ia cantar não sei que ária de ópera italiana. Era tenor, cantou, romperam grandes palmas. Ricardo, ao canto de uma janela, fez-lhe o favor de umas palminhas, e esperou os olhos da pianista. Os dele meditavam já esta frase: "Sois o mais belo, o mais puro, o mais adorável dos arcanjos, ó soberana do meu coração e da minha vida". Marcela, entretanto, foi sentar-se entre duas amigas, e de lá perguntou-lhe:

 

— Pareço-lhe bonita?

 

— Sois o mais belo, o mais...

 

Não pôde acabar. Marcela falou às amigas, e encaminhou os olhos para o tenor, com a mesma pergunta:

 

— Pareço-lhe bonita?

 

Ele, pela mesma língua, respondeu que sim, mas com tal clareza e autoridade, como se fora o próprio inventor do idioma. E não esperou nova pergunta; não se restringiu à resposta; disse-lhe com energia:

 

— E eu, que lhe pareço?

 

Ao que Marcela respondeu, sem grande hesitação:

 

— Um belo noivo.

 

Ricardo empalideceu. Não somente viu a significação da resposta, mas ainda assistiu ao diálogo, que continuou com vivacidade, abundância e expressão. De onde vinha esse pelintra? Era um jovem médico, chegado dias antes da Bahia, recomendado ao pai de Marcela; jantara ali, a reunião era em honra dele. Médico distinto, bela voz de tenor... Tais foram as informações que deram ao pobre-diabo. Durante o resto da noite, apenas pôde colher um ou dois olhares rápidos. Resolveu sair mais cedo para mostrar que estava ferido.

 

Não foi logo para casa; vagou uma hora ou mais, entre o desânimo e o furor, falando alto, jurando esquecê-la, desprezá-la. No dia seguinte, almoçou mal, trabalhou mal, jantou mal, e trancou-se no quarto, à noite. A consolação única eram os versos, que achava lindos. Releu-os com amor. E a musa deu-lhe a força d’alma que a aventura de domingo lhe tirara. Passados três dias, Ricardo não pôde mais consigo, e foi à casa do Dr. Viana; achou-o de chapéu na cabeça, esperando que as senhoras acabassem de vestir-se; iam ao teatro. Marcela desceu daí a pouco, radiante, e perguntou-lhe ocularmente:

 

— Que tal me acha com este vestido?

 

— Linda, respondeu ele.

 

Depois, animando-se um pouco, perguntou Ricardo à moça, sempre com os olhos, se queria que também ele fosse ao teatro. Marcela não lhe respondeu; dirigiu-se para a janela, a ver o carro que chegara. Ele não sabia (como sabê-lo?) que o jovem médico baiano, o tenor, o diabo, Maciel, em suma, combinara com a família ir ao teatro, e já lá os estava esperando. No dia seguinte, com o pretexto de saber que tal andara o espetáculo, correu à casa de Marcela. Achou-a em conversação com o tenor, ao lado um do outro, confiança que nunca lhe dera. Quinze dias depois falou-se da possibilidade de uma aliança; quatro meses depois estavam casados.

 

Quisera contar aqui as lágrimas de Ricardo; mas não as houve. Imprecações, sim, protestos, juramento, ameaças, vindo tudo a acabar em uma poesia com o título Perjura. Publicou esses versos, e, para lhes dar toda a significação, pôs-lhe a data do casamento. Marcela, porém, estava na lua-de-mel, não lia outros jornais além dos olhos do marido.

 

Amor cura amor. Não faltavam mulheres que tomassem a si essa obra demisericórdia. Uma Fausta, uma Dorotéia, uma Rosina, ainda outras, vieram sucessivamente adejar as asas nos sonhos do poeta. Todas tiveram a mesma madrinha:

 

— Vênus! Vênus! divina Vênus!

 

Choviam versos; as rimas buscavam rimas, cansadas de serem as mesmas; a poesia fortalecia o coração do moço. Nem todas as mulheres tiveram notícia do amor do poeta; mas bastava que existissem, que fossem belas, ou quase, para fasciná-lo e inspirá-lo. Uma dessas tinha apenas dezesseis anos, chamava-se Virgínia e era filha de um tabelião, com quem Ricardo se fez encontradiço para mais facilmente penetrar-lhe em casa. Foi-lhe apresentado como poeta.

 

— Sim? Eu sempre gostei de versos, disse o tabelião; se não fosse o meu cargo, escreveria alguns sonetinhos. No meu tempo compus fábulas. O senhor gosta de fábulas?

 

— Como não? redargüiu Ricardo. A poesia lírica é melhor, mas a fábula...

 

— Melhor? Não compreendo. A fábula tem conceito, além da graça de fazer falar os animais...

 

— Justamente!

 

— Então, como é que disse que a poesia lírica era melhor?

 

— Num sentido.

 

— Que sentido?

 

— Quero dizer, cada forma tem a sua beleza; assim, por exemplo...

 

— Exemplos não faltam. A questão é que o senhor acha a poesia lírica melhor que a fábula. Só se não acha?

 

— Realmente, parece que não é melhor, confessou Ricardo.

 

— Diga logo inferior. Luar, névoas, virgens, lago, estrelas, olhos de anjo, são palavras vãs, boas para poetas apatetados. Eu, tirando-me a fábula e a sátira, não sei para que serve a poesia. Para encher a cabeça de caraminholas, e o papel de tolices...

 

Ricardo aturou toda essa rabugice do notário, para o fim de ser admitido em casa dele — coisa fácil, porque o pai de Virgínia tinha algumas fábulas antigas e outras inéditas e poucos ouvintes do ofício, ou verdadeiramente nenhum. Virgínia acolheu o moço com boa vontade; era o primeiro que lhe falava de amores — porque desta vez o nosso Ricardo não se deixou ficar atado. Não lhe fez declaração franca e em prosa, dava-lhe versos às escondidas. Ela guardava-os "para os ler depois" e no dia seguinte agradecia-os.

 

— Muito mimosos, dizia sempre.

 

— Eu fui apenas secretário da musa, respondeu ele uma vez; os versos foram ditados por ela. Conhece a musa?

 

— Não.

 

— Veja no espelho.

 

Virgínia entendeu e corou. Já os dedos de ambos começaram a dizer alguma coisa. O pai ia muitas vezes com eles ao Passeio Público, entretendo-os com fábulas. Ricardo estava certo de dominar a mocinha e esperava que ela fizesse os dezessete anos para pedir-lhe a mão, a ela e ao pai. Um dia, porém (quatro meses depois de conhecê-la), Virgínia adoece de moléstia grave, que a pôs entre a vida e a morte. Ricardo padeceu deveras. Não se lembrou de compor versos, nem tinha inspiração para eles; mas a leitura casual daquela elegia de Lamartine, em que há estas palavras: Elle avait seize ans; c’est bien tôt pour mourir, deu-lhe idéia de escrever alguma coisa em que aquilo entrasse por epígrafe. E trabalhava, à noite, de manhã, na rua, tudo por causa da epígrafe.

 

— Elle avait seize ans; c’est bien tôt pour mourir! repetia ele andando.

 

Felizmente, a moça arribou, ao fim de quinze dias, e, logo que pôde, foi convalescer na Tijuca, em casa da madrinha. Não foi sem levar um soneto de Ricardo, com a famosa epígrafe, o qual principiava por estes dois versos:

 

Agora, que a mimosa flor caída

Ao terrífico vento da procela...

 

Virgínia convalesceu depressa; mas não voltou logo, ficou lá um mês, dois meses, e, como eles não se correspondiam, Ricardo vivia naturalmente ansioso. O tabelião dizia-lhe que os ares eram bons, que a filha andava fraca, e não desceria sem estar inteiramente restabelecida. Um dia leu-lhe uma fábula, composta na véspera, e dedicada ao bacharel Vieira, sobrinho da comadre.

 

— Compreendeu o sentido, não? perguntou-lhe no fim.

 

— Sim, senhor, entendi que o sol, disposto a restituir a vida à lua...

 

— E não atina?

 

— A moralidade é clara.

 

— Creio; mas a ocasião...

 

— A ocasião?

 

— A ocasião é o casamento da minha pecurrucha com o bacharel Vieira, que chegou de S. Paulo; gostaram-se; foi pedida anteontem...

 

Esta nova desilusão atordoou completamente o rapaz. Desenganado, jurou acabar com mulheres e musas. Que eram musas senão mulheres? Contou à mãe esta resolução, sem entrar em pormenores, e a mãe o aprovou de todo. De fato, meteu-se em casa, as tardes e as noites, deu de mão aos passeios e aos namoros. Não compôs mais versos, esteve a ponto de quebrar a Vênus de Milo. Um dia soube que Felismina, a prima, ia casar. Maria dos Anjos pediu-lhe uns cinco ou dez mil-réis para um presentinho; ele deu-lhe dez mil-réis, logo que recebeu o ordenado.

 

— Com quem casa? perguntou.

 

— Com um moço da Estrada de Ferro.

 

Ricardo consentiu em ir com a mãe, à noite, visitar a prima. Lá achou o noivo, ao pé dela, no canapé, conversando baixinho. Depois das apresentações, Ricardo encostou-se ao canto de uma janela, e o noivo foi ter com ele, passados alguns minutos, para dizer-lhe que estimava muito conhecê-lo, tinha uma casa às suas ordens e um criado para o servir. Já o tratava por primo.

 

— Sei que meu primo é poeta.

 

Ricardo, com fastio, deu de ombros.

 

— Ouvi dizer que é um grande poeta.

 

— Quem lhe disse isso?

 

— Pessoas que sabem. Sua prima também me disse que fazia bonitos versos.

 

Ricardo, após alguns segundos:

 

— Fiz versos; provavelmente não os farei mais.

 

Daí a pouco estavam os noivos outra vez juntos, falando baixinho. Ricardo teve-lhe inveja. Eram felizes, uma vez que gostavam um do outro. Pareceu-lhe até que ela gostava ainda mais, porque sorria sempre; e daí talvez fosse para mostrar os lindos dentes que Deus lhe dera. O andar da moça também era mais gracioso. O amor transforma as mulheres, pensava ele; a prima está melhor do que era. O noivo é que lhe pareceu um tanto impertinente, só a tratá-lo por primo... Disse isto à mãe, na volta para casa.

 

— Mas que tem isso?

 

Sonhou nessa noite que assistia ao casamento de Felismina, muitos carros, muitas flores, ela toda de branco, o noivo de gravata branca e casaca preta, ceia lauta, brindes, recitando ele Ricardo uns versos...

 

— Se outro não recitar, se não eu... disse ele de manhã, ao sair da cama.

 

E a figura de Felismina entrou a persegui-lo. Dias depois, indo à casa dela, viu-a conversar com o noivo, e teve um pequeno desejo de atirá-lo à rua. Soube que ele ia na manhã seguinte para a Barra do Piraí, a serviço.

 

— Demora-se muito?

 

— Oito dias.

 

Ricardo visitou a prima todas essas noites. Ela, aterrada com o sentimento que via nascer no primo, não sabia que fizesse. A princípio resolveu não aparecer-lhe; mas aparecia-lhe, e ouvia tudo o que ele contava com os olhos postos nos dele. A mãe dela tinha a vista curta. Na véspera da volta do noivo, Ricardo apertou-lhe a mão com força, com violência, e disse-lhe adeus "até nunca mais". Felismina não ousou pedir-lhe que viesse; mas passou a noite mal. O noivo regressou por dois dias.

 

— Dois dias? perguntou-lhe Ricardo na rua onde ele lhe deu a notícia.

 

— Sim, primo, tenho muito que fazer, explicou o outro.

 

Partiu, as visitas continuaram; os olhos falavam, os braços, as mãos, um diálogo perpétuo, não espiritual, não filosófico, um diálogo fisiológico e familiar. Uma noite, Ricardo sonhou que pegava da prima e subia com ela ao alto de um penedo, no meio do oceano. Viu-a sem braços. Acordando de manhã, olhou para a Vênus de Milo.

 

— Vênus! Vênus! divina Vênus!

 

Atirou-se à mesa, ao papel, meteu mãos à obra, para compor alguma coisa, um soneto, um soneto que fosse. E olhava para Vênus — a imagem da prima, — e escrevia, riscava, tornava a escrever e a riscar, e novamente escrevia até que lhe saíram os dois primeiros versos do soneto. Os outros vieram vindo, cai aqui, cai acolá.

 

— Felismina! exclamava ele. O nome dela há de ser a chave de ouro. Rima com divina e cristalina. E concluía assim o soneto.

 

E tu, criança amada, tão divina

Não és cópia da Vênus celebrada,

És antes seu modelo, Felismina.

 

Deu-lho nessa noite. Ela chorou depois que os leu. Tinha de pertencer a outro homem. Ricardo ouviu essa palavra e disse-lhe ao ouvido:

 

— Nunca!

 

Indo a acabar os quinze dias, o noivo escreveu dizendo que precisava ficar ainda na Barra umas duas ou três semanas. Os dois, que iam dando pressa a tudo, trataram da conclusão. Quando Maria dos Anjos ouviu ao filho que ia desposar a prima, ficou espantada, e pediu que se explicasse.

 

— Isto não se explica, mamãe...

 

— E o outro?

 

— Está na Barra. Ela já lhe escreveu pedindo desculpa e contando a verdade.

 

Maria dos Anjos abanou a cabeça, com ar de reprovação.

 

— Não é bonito, Ricardo...

 

— Mas se nós gostamos um do outro? Felismina confessou que ia casar com ele, à toa, sem vontade; que sempre gostara de mim; casava por não ter com quem.

 

— Sim, mas palavra dada...

 

— Que palavra, mamãe? Mas se eu a adoro; digo-lhe que a adoro. Queria que eu ficasse a olhar ao sinal, e ela também, só porque houve um equívoco, uma palavra dada sem reflexão? Felismina é um anjo. Não foi à toa que lhe deram um nome, que é a rima de divina. Um anjo, mamãe!

 

— Oxalá sejam felizes.

 

— Com certeza; mamãe verá.

 

Casaram-se. Ricardo era todo para a realidade do amor. Conservou a Vênus de Milo, a divina Vênus, posta na parede, apesar dos protestos de modéstia da mulher. Convém saber que o noivo casou mais tarde na Barra, Marcela e Virgínia estavam casadas. As outras moças que Ricardo amou e cantou, tinham já maridos. O poeta deixou de poetar, com grande mágoa dos seus admiradores. Um deles perguntou-lhe um dia, ansioso:

 

— Então você não faz mais versos?

 

— Não se pode fazer tudo, respondeu Ricardo, acariciando os seus cinco filhos.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 20 de maio de 2022

VALÉRIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

VALÉRIO

Machao de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 19 de maio de 2022

O ÚLTIMO CAPÍTULO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

O ÚLTIMO CAPÍTULO

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 18 de maio de 2022

A ÚLTIMA RECEITA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A ÚLTIMA RECEITA

Machado de Assis

 

 

 

A viúva Lemos adoecera; uns dizem que dos nervos, outros que de saudades do marido. Fosse o que fosse, a verdade é que adoecera, em certa noite de setembro, ao regressar de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia surda e devota. A doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que coisa seria? Na opinião da tia um cozimento de altéia e um rosário a não sei que santo do céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava a eficácia dos remédios da tia, mas opinava por um médico.

 

Chamou-se um médico.

 

Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o Dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o Dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel.

 

O Dr. Avelar limitou-se a torcer o nariz quando examinou a enferma, e a receitar dois ou três remédios, dos quais só um era útil; o resto figurava no fundo do quadro.

 

  1. Paula tomou os remédios como quem não queria deixar a vida. Havia razão. Apenas dois anos fora casada, e contava apenas vinte e quatro anos. Havia já treze meses que lhe morria o marido. Apenas entrara no pórtico do matrimônio.

 

A esta circunstância é justo acrescentar mais duas; era bonita e tinha alguma coisa de seu. Três razões para agarrar-se à vida como o náufrago a uma tábua de salvação.

 

Uma única razão haveria para que ela aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente saudades do marido. Mas não tinha. O casamento fora um arranjo de família e dele próprio; Paula aceitou o arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não deu ao marido nem estima nem amor. Viúva dois anos depois, e ainda moça, é claro que a vida para ela começava apenas. A idéia de morrer seria para ela não só a maior de todas as calamidades, mas também a mais desastrada de todas as tolices.

 

Não quis morrer nem caso era de morte.

 

Os remédios foram tomados pontualmente; o médico mostrou-se assíduo; dentro de poucos dias, três a quatro, estava restabelecida a interessante enferma.

 

De todo?

 

Não.

 

Quando o médico voltou no quinto dia, achou-a sentada na sala, envolvida em grande roupão, com os pés numa almofada, o rosto extremamente pálido, e muito mais ainda por causa da pouca luz.

 

O estado era natural em que se levantava da cama; mas a viuvinha alegou ainda umas dores de cabeça, a que o médico chamou nevralgia, e uns temores, que foram classificados no capítulo dos nervos.

 

— Serão graves moléstias? perguntou ela.

 

— Oh! não, minha senhora, respondeu Avelar, são achaques aborrecidos, mas não graves, e geralmente próprios de doentes formosas.

 

Paula sorriu com um ar tão triste que fazia duvidar do prazer com que ouviu estas palavras do médico.

 

— Dá-me porém remédios, não? perguntou ela.

 

— Sem dúvida.

 

Avelar receitou efetivamente alguma coisa e prometeu voltar no dia seguinte.

 

A tia era surda, como sabemos, não ouvia nada da conversa entre os dois. Mas não era tola; começou a reparar que a filha ficava mais doente quando se aproximava a chegada do médico. Além disso nutria dúvidas sérias acerca da aplicação exata dos remédios. O certo é porém que Paula, tão amiga de bailes e passeios, parecia realmente doente porque não saía de casa.

 

Notou igualmente a tia que, pouco antes da hora do médico, a sobrinha fazia uma aplicação mais copiosa de pó-de-arroz. Paula era morena; ficava muito branca. A meia luz da sala, os xales, o ar mórbido tornavam-lhe a palidez extremamente verossímil.

 

A tia não parou nesse ponto; foi ainda além. Não era médico o Avelar? Naturalmente devia saber se realmente estava enferma a viúva. Interrogando o médico, asseverou que a viúva estava muito mal, e prescreveu-lhe o mais absoluto repouso.

 

Tal era a situação da enferma e do facultativo.

 

Um dia em que este entrou achou-a folheando um livro. Estava com a palidez de costume e o mesmo ar abatido.

 

— Como vai a minha doente? disse familiarmente o Dr. Avelar.

 

— Mal.

 

— Mal?

 

— Horrorosamente mal... Que lhe parece o pulso?

 

Avelar examinou-lhe o pulso.

 

— Regular, disse ele. A tez está um tanto pálida, mas os olhos parecem bons... Houve algum ataque?

 

— Não; mas sinto-me desfalecida.

 

— Deu o passeio que lhe aconselhei?

 

— Não tive ânimo.

 

— Fez mal. Não passeou e está lendo...

 

— Um livro inocente.

 

— Inocente?

 

O médico pegou no livro e examinou-lhe a lombada.

 

— Um livro diabólico! disse ele atirando-o para cima da mesa.

 

— Por quê?

 

— Livro de poeta, livro para namorados, minha senhora, que é uma casta de doentes terríveis. Não se curam eles; ou raramente se curam; mas há pior, que é adoecerem os sãos. Peço-lhe licença para confiscar o livro.

 

— Uma distração! murmurou Paula com uma doçura capaz de vencer um tirano.

 

Mas o médico mostrou-se firme.

 

— Uma perversão, minha senhora! Em ficando boa pode ler se quiser todos os poetas do século; antes, não.

 

Paula ouviu esta palavra com singular, mas disfarçada alegria.

 

— Parece-lhe então que estou muito doente? disse ela.

 

— Muito, não digo; Tem ainda um resto de abalo que só pode desaparecer com o tempo e um regímen severo.

 

— Severo demais.

 

— Mas necessário...

 

— Duas coisas lastimo sobre todas.

 

— Quais?

 

— A pimenta e o café.

 

— Oh!

 

— É o que lhe digo. Não tomar café nem pimenta é o limite da paciência humana. Quinze dias mais deste regímen ou desobedeço ou expiro.

 

— Nesse caso, expire, disse Avelar sorrindo.

 

— Acha melhor?

 

— Acho igualmente mau. O remorso, porém, será meu só, enquanto que se V. Ex.ª desobedecer terá os seus últimos instantes amargurados por um tardio arrependimento. Melhor é morrer vítima que culpada.

 

— Melhor é não morrer nem culpada nem vítima.

 

— Nesse caso não tome pimenta nem café.

 

A leitora que acaba de ler esta conversa, admirar-se-ia muito se visse a nossa doente nesse mesmo dia ao jantar: teve pimenta à farta e bebeu excelente café no fim. Não admira porque era o seu costume. A tia admirava-se com razão de uma doença que consentia tais liberdades; a sobrinha não se explicava cabalmente a este respeito.

 

Choviam convites de jantares e bailes. A viuvinha recusava-os todos por causa do seu mau estado de saúde.

 

Foi uma verdadeira calamidade.

 

Entraram a chover as visitas e bilhetes. Muitas pessoas achavam que a doença devia ser interna, muito interna, profundamente interna, visto que lhe não apareciam sinais no rosto. Os nervos (eternos caluniados!) foram a explicação que geralmente se deu à singular moléstia da moça.

 

Três meses correram assim, sem que a doença de Paula cedesse uma linha aos esforços do médico. Os esforços do médico não podiam ser maiores; de dois em dois dias uma receita. Se a doente se esquecia do seu estado e estava a falar e a corar como quem tinha saúde, o médico era o primeiro a lembrar-lhe o perigo, e ela obedecia logo entregando-se à mais prudente inação.

 

Às vezes zangava-se.

 

— Todos os senhores são uns bárbaros, dizia ela.

 

— Uns bárbaros... necessários, respondia Avelar sorrindo.

 

E acrescentava:

 

— Eu não direi o que são as doentes.

 

— Diga sempre.

 

— Não digo.

 

— Caprichosas?

 

— Mais.

 

— Rebeldes?

 

— Menos.

 

— Impertinentes?

 

— Sim. Algumas são impertinentes e amáveis.

 

— Como eu.

 

— Naturalmente.

 

— Já o esperava, dizia a viúva Lemos sorrindo. Sabe por que razão lhe perdôo tudo? É porque é médico. Um médico tem carta branca para gracejar conosco; isso mesmo nos dá saúde.

 

Neste ponto levantou-se.

 

— Parece-me até que já estou melhor.

 

— Parece e está... quero dizer, está muito mal.

 

— Muito mal?

 

— Não, muito mal, não; não está boa...

 

— Meteu-me um susto!

 

Seria realmente zombar do leitor o explicar-lhe que a doente e o médico estavam a pender um para o outro; que a doente sofria tanto como o Corcovado, e que o médico conhecia cabalmente a sua perfeita saúde. Gostavam um do outro sem se atreverem a dizer a verdade, simplesmente pelo receio de se enganarem. O meio de se falarem todos os dias era aquele.

 

Mas gostavam eles já antes da fatal constipação do baile? Não. Até então ignoravam a existência um do outro. A doença favoreceu o encontro; o encontro do coração; o coração favorecia desde logo o casamento, se tivessem caminhado em linha reta, em vez dos rodeios em que andavam.

 

Quando Paula ficou boa da constipação adoeceu do coração; não tendo outro recurso fingiu-se doente. O médico, que pela sua parte desejava isso mesmo exagerou ainda as invenções da suposta enferma.

 

A tia, sendo surda, assistia inutilmente aos diálogos da doente com o médico. Um dia escreveu a este pedindo-lhe que apressasse a cura da sobrinha. Avelar desconfiou da carta a princípio. Seria uma despedida? Podia ser pelo menos uma desconfiança. Respondeu que a moléstia de D. Paula era, aparentemente insignificante, mas podia tornar-se grave sem um regímen severo, que ele lhe recomendava sempre.

 

A situação, entretanto, prolongava-se. A doente estava cansada da doença, e o médico da medicina. Ambos eles começaram a desconfiar que não eram mal aceitos. O negócio entretanto não caminhava muito.

 

Um dia Avelar entrou triste em casa da viúva.

 

— Jesus! exclamou sorrindo a viúva; ninguém dirá que é o médico. Parece o doente.

 

— Doente de lástima, disse Avelar abanando a cabeça; por outros termos, é a lástima que me dá este ar enfermo.

 

— Lástima de quê?

 

— De V.Ex.ª.

 

— De mim?

 

— É verdade.

 

A moça riu-se consigo mesma; todavia esperou a explicação.

 

Houve um silêncio.

 

No fim dele:

 

— Sabe, disse o médico, sabe que está muito mal?

 

— Eu?

 

Avelar fez um gesto afirmativo.

 

— Já o sabia, suspirou a doente.

 

— Não digo que tudo esteja perdido, continuou o médico, mas nada se perde em prevenir.

 

— Então...

 

— Coragem!

 

— Fale.

 

— Mande chamar o padre.

 

— Aconselha-me a confissão?

 

— É indispensável.

 

— Perderam-se todas as esperanças?

 

— Todas. Confissão... e banhos.

 

A viúva soltou uma risada.

 

— E banhos?

 

— Banhos de igreja.

 

Outra risada.

 

— Aconselha-me então o casamento.

 

— Justo.

 

— Imagino que está gracejando.

 

— Estou falando muito sério. O remédio não é novo nem desprezível. Todas as semanas lá vão muitos enfermos, e dão-se bem alguns deles. É um específico inventado desde muitos séculos e que provavelmente só acabará no último dia do mundo. Pela minha parte nada mais tenho que fazer.

 

Quando a viuvinha menos esperava, Avelar levantou-se e saiu. Falava sério ou gracejava? Dois dias se passaram sem que o médico voltasse. A doente estava triste; a tia aflita; houve idéia de mandar chamar outro médico. Recusou-a a doente.

 

— Então só um médico acertou com a tua moléstia?

 

— Talvez.

 

No fim de três dias recebeu a viúva Lemos uma carta do médico.

 

Abriu-a.

 

Dizia assim:

 

É absolutamente impossível esconder por mais tempo o que sinto por V. Ex.ª. Amo-a.

 

Sua moléstia precisa de uma última receita, verdadeiro remédio para quem ama, — sim, porque V. Ex.ª também me ama. Que razão obrigaria a negá-lo?

 

Se sua resposta for afirmativa haverá mais dois entes felizes neste mundo.

 

Se negativa...

 

Adeus!

 

A carta foi lida com explosão de entusiasmo; o médico foi chamado a toda a pressa, para receber e dar saúde. Casaram-se os dois daí a quarenta dias.

 

Tal é a história da Última Receita.

 

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 17 de maio de 2022

TROCA DE DATAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TROCA DE DATAS

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 16 de maio de 2022

TRIO EM LÁ MENOR (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TRIO EM LÁ MENOR

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 15 de maio de 2022

TRINA E UNA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 14 de maio de 2022

TRÊS TESOUROS PERDIDOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 13 de maio de 2022

TRÊS CONSEQUÊNCIAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

TRÊS CONSEQUÊNCIAS

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

  1. Mariana Vaz está no derradeiro mês do primeiro ano de viúva. São 15 de dezembro de 1880, e o marido faleceu no dia 2 de janeiro, de madrugada, depois de uma bela festa do ano-bom, em que tudo dançou na fazenda, até os escravos. Não me peçam grandes notícias do finado Vaz; ou, se insistem por elas, ponham os olhos na viúva. A tristeza do primeiro dia é a de hoje. O luto é o mesmo. Nunca mais a alegria sorriu sequer na casa que vira a felicidade e a desgraça de D. Mariana.

 

Vinte e cinco anos, realmente, e vinte e cinco anos bonitos, não deviam andar de preto, mas cor-de-rosa ou azul, verde ou granada. Preto é que não. E, todavia, é a cor dos vestidos da jovem Mariana, uma cor tão pouco ajustada aos olhos dela, não porque estes também não sejam pretos, mas por serem moralmente azuis. Não sei se me fiz entender. Olhos lindos, rasgados, eloqüentes; mas, por agora quietos e mudos. Não menos eloqüente, e não menos calado é o rosto da pessoa.

 

Está a findar o ano da viuvez. Poucos dias faltam. Mais de um cavalheiro pretende a mão dela. Recentemente, chegou formado o filho de um fazendeiro importante da localidade; e é crença geral que ele restituirá ao mundo a bela viúva. O juiz municipal, que reúne à mocidade a viuvez, propõe-se a uma troca de consolações. Há um médico e um tenente-coronel indigitados como possíveis candidatos. Tudo vão trabalho! D. Mariana deixa-os andar, e continua fiel à memória do morto. Nenhum deles possui a força capaz de o fazer esquecer; — não, esquecer seria impossível; ponhamos substituir.

 

Mas, como ia dizendo, estava-se no derradeiro mês do primeiro ano. Era tempo de aliviar o luto. D. Mariana cuidou seriamente em mandar arranjar alguns vestidos escuros, apropriados à situação. Tinha uma amiga na corte, e determinou-se a escrever-lhe, remetendo-lhe as medidas. Foi aqui que interveio a tia dela, protetora do juiz municipal:

 

— Mariana, você por que não manda vir vestidos claros?

 

— Claros? Mas, titia, não vê que uma viúva...

 

— Viúva, sim; mas você não vai ficar viúva toda a vida.

 

— Como não?

 

A tia foi às do cabo:

 

— Mariana, você há de casar um dia; por que não escolhe já um bom marido? Sei de um, que é o melhor de todos, um homem honesto, sério, o Dr. Costa...

 

Mariana interrompeu-a; pediu-lhe que, pelo amor de Deus, não lhe tocasse em tal assunto. Moralmente, estava casada. O casamento dela subsistia. Nunca seria infiel ao “seu Fernando”. A tia levantou os ombros; depois lembrou-lhe que fora casada duas vezes.

 

— Oh! titia! são modos de ver.

 

A tia voltou à carga, nesse dia à noite, e no outro. O juiz municipal recebeu uma carta dela, dizendo que aparecesse para ver se tentava alguma coisa. Ele foi. Era, na verdade, um rapaz sério, muito simpático, e distinto. Mariana, vendo o plano concertado entre os dois, resolveu vir em pessoa à corte. A tia tentou dissuadi-la, mas perdeu tempo e latim. Mariana, além de fiel à memória do marido, era obstinada; não podia suportar a idéia de lhe imporem coisa nenhuma. A tia, não podendo dissuadi-la, acompanhou-a.

 

Na corte tinha algumas amigas e parentas. Elas acolheram a jovem viúva com muitas atenções, deram-lhe agasalho, carinhos, conselhos. Uma prima levou-a a uma das melhores modistas. D. Mariana disse-lhe o que queria: — sortir-se de vestidos escuros, apropriados ao estado de viúva. Escolheu vinte, sendo dois inteiramente pretos, doze escuros e simples para uso de casa, e seis mais enfeitados. Escolheu também chapéus noutra casa. Mandou fazer os chapéus, e esperou as encomendas para seguir com elas.

 

Enquanto esperava, como a temperatura ainda permitia ficar na corte, Mariana andou de um lado para outro, vendo uma infinidade de coisas que não via desde os dezessete anos. Achou a corte animadíssima. A prima quis levá-la ao teatro, e só o conseguiu depois de muita teima; Mariana gostou muito.

 

Ia freqüentes vezes à Rua do Ouvidor, já porque lhe era necessário provar os vestidos, já porque queria despedir-se por alguns anos de tanta coisa bonita. São as suas palavras. Na Rua do Ouvidor, onde a sua beleza era notada, correu logo que era uma viúva recente e rica. Cerca de vinte corações palpitaram logo, com a veemência própria do caso. Mas, que poderiam eles alcançar, eles da rua, se os da própria roda da prima não alcançavam nada? Com efeito, dois amigos do marido desta, rapazes da moda, fizeram a sua roda à viúva, sem maior proveito. Na opinião da prima, se fosse um só talvez domasse a fera; mas eram dois, e fizeram-na fugir.

 

Mariana chegou a ir a Petrópolis. Gostou muito; era a primeira vez que lá ia, e desceu cortada de saudades. A corte consolou-a; Botafogo, Laranjeiras, Rua do Ouvidor, movimento de bonds, gás, damas e rapazes, cruzando-se, carros de toda a sorte, tudo isto lhe parecia cheio de vida e movimento.

 

Mas os vestidos fizeram-se, e os chapéus enfeitaram-se. O calor começou a apertar muito; era necessário seguir para a fazenda. Mariana pegou dos chapéus e dos vestidos, meteu-se com a tia na estrada de ferro e seguiu. Parou um dia na vila, onde o juiz municipal a cumprimentou, e caminhou para casa.

 

Em casa, depois de descansada, e antes de dormir teve saudades da corte. Dormiu tarde e mal. A vida agitada da corte perpassava no espírito da moça como um espetáculo mágico. Ela via as damas que desciam ou subiam a Rua do Ouvidor, as lojas, os rapazes, os bonds, os carros; via as lindas chácaras dos arredores, onde a natureza se casava à civilização, lembrava-se da sala de jantar da prima, ao rés-do-chão, dando para o jardim, com dois rapazes à mesa, — os tais dois que a reqüestaram à toa. E ficava triste, custava-lhe fechar os olhos.

 

Dois dias depois, apareceu na fazenda o juiz municipal, a visitá-la. D. Mariana recebeu-o com muito carinho. Tinha no corpo o primeiro dos vestidos de luto aliviado. Era escuro, muito escuro, com fitas pretas e tristes; mas ficava-lhe tão bem! Desenhava-lhe o corpo com tanta graça, que aumentava a graça dos olhos e da boca.

 

Entretanto, o juiz municipal não lhe disse nada, nem com a boca nem com os olhos. Conversaram da corte, dos esplendores da vida, dos teatros, etc.; depois, por iniciativa dele, falaram do café e dos escravos. Mariana notou que ele não tinha as finezas dos dois rapazes da casa da prima, nem mesmo o tom elegante dos outros da Rua do Ouvidor; mas achou-lhe em troca, muita distinção e gravidade.

 

Dois dias depois, o juiz despediu-se; ela instou para que ele ficasse. Tinha-lhe notado no colete alguma coisa análoga aos coletes da Rua do Ouvidor. Ele ficou mais dois dias; e tornaram a falar, não só do café, como de outros assuntos menos pesados.

 

Afinal, seguiu o juiz municipal, não sem prometer que voltaria três dias depois, aniversário natalício da tia de Mariana. Nunca ali se festejara tal dia; mas a fazendeira não achou outro meio de examinar bem se as gravatas do juiz municipal eram semelhantes às da Rua do Ouvidor. Pareceu-lhe que sim; e durante os três dias de ausência não pensou em outra coisa. O jovem magistrado, ou de propósito, ou casualmente, fez-se esperar; chegou tarde; Mariana, ansiosa, não pôde conter a alegria, quando ele transpôs a porteira.

 

“Bom! disse consigo a tia; está caída.”

 

E caída ficou. Casaram-se três meses depois. A tia, experiente e filósofa, acreditou e fez crer que, se Mariana não tem vindo em pessoa comprar os vestidos, ainda agora estaria viúva; a Rua do Ouvidor e os teatros restituíram-lhe a idéia matrimonial. Parece que era assim mesmo porque o jovem casal pouco tempo depois vendeu a fazenda e veio para cá. Outra conseqüência da vinda à corte: — a tia ficou com os vestidos. Que diabo fazia Mariana com tanto vestido escuro? Deu-os à boa velha. Terceira e última conseqüência: um pequerrucho.

 

Tudo por ter vindo ao atrito da felicidade alheia.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 12 de maio de 2022

TO BE OR NOT TO BE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TO BE OR NOT TO BE

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 11 de maio de 2022

TERPSÍCORE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TERPSÍCORE

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 10 de maio de 2022

TEMPO DE CRISE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

TEMPO DE CRISE

Machado de Assis

 

 

 

Queres tu saber, meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso completas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nato. Aqui a coisa é diversa, assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.

 

Quando desembarquei estava o C. à minha espera na Praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:

 

— Caiu o ministério!

 

Tu sabes que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C. quem eram os novos ministros.

 

— Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?

 

— Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.

 

— Há de haver.

 

Seguimos para o Hotel da Europa que é na Rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.

 

À porta perguntei-lhe eu:

 

— Onde saberemos notícias?

 

— Aqui mesmo na Rua do Ouvidor.

 

— Pois então na Rua do Ouvidor é que?

 

— Sim; a Rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.

 

Ouvi silenciosamente as explicações do C. e segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito fumando, e conversando com o caixeiro.

 

— A que horas esteve ela aqui? perguntava o sujeito.

 

— Às dez.

 

Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.

 

— Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C.

 

— Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão; alguma rosa de Citera.

 

— Qual! disse eu.

 

— Por quê?

 

— Os jardins de Citera são francos; ninguém espreita as rosas por fora...

 

— Provinciano! disse o C. com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa honra para o jardineiro... Anda sentar-te.

 

— Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.

 

— Com razão, respondeu o C. Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os sentimentos e todas as idéias...

 

— Continua, meu Virgílio.

 

— Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense. Aqui acharás a flor da sociedade, — as senhoras que vêm escolher jóias ao Valais ou sedas a Notre Dame, — os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Commercio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um coupé à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilante de riqueza, — porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, — é que a simples vista consola.

 

Saiu-me o C. tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.

 

O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.

 

— Cansou de esperar, disse eu.

 

— Sentemo-nos.

 

Sentamo-nos.

 

— Fala-se então de tudo aqui?

 

— De tudo.

 

— Bem e mal?

 

— Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...

 

Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C. a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.

 

— Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...

 

Estas últimas palavras revelaram no C. um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor de morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso Padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.

 

— Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...

 

— Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.

 

O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C. perguntou-lhe o que sabia da crise.

 

— Nada, respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...

 

— Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C.

 

— É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve Câmara?

 

— Não.

 

— Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à Câmara...

 

— Para quê? Aqui mesmo saberemos.

 

O Dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.

 

Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.

 

— Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C. passando algum tempo.

 

— Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.

 

— Mas por quê? perguntei eu.

 

— Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...

 

— Ah!

 

— O Ministro do Império quer o Valadares, e o da fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?

 

— Ora, vivam! Então já sabem da crise?

 

Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.

 

— Crise formal? perguntamos todos.

 

— Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a S. Cristóvão...

 

— É o que dizia, observou o Dr. Abreu.

 

— Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C.

 

— O verdadeiro motivo foi uma questão da guerra.

 

— Não creia nisso!

 

O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:

 

— Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do Ministro da Guerra?

 

A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...

 

— Seja qual for o motivo, disse o C., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?

 

— Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).

 

— Quem sabe?

 

Ferreira tomou a palavra:

 

— A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem a Câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança...

 

Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.

 

— Mas então não estão todos em S. Cristóvão? observou o C.

 

— Este vai naturalmente para lá.

 

Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco aumentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.

 

Afirmamos que sim.

 

— Qual seria a causa? perguntou ele.

 

O Abreu, que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.

 

— Está certo disso? perguntou o desembargador.

 

— Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do Ministro da Guerra.

 

Nunca vi maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois o C. que me respondeu:

 

— Não te espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem infocrmado.

 

Dos presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Bruto diante do cadáver de César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor nem excessiva paixão.

 

Cada personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.

 

Vimos ao longe um homem de 35 anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência política.

 

— Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C.

 

Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.

 

A influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.

 

— Venha cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?

 

— O que há?

 

— Sim.

 

— Há crise.

 

— Bem; mas os homens saem ou ficam?

 

Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.

 

Olhei atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os ocultava de nós.

 

— Diga o que sabe, Sr. Mendonça, disse o desembargador.

 

— Eu já disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...

 

Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.

 

— Sabem que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.

 

— Qual é a causa?

 

— A nomeação de um juiz de direito.

 

— Só!

 

— Só.

 

— Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.

 

— Foi isso. Os homens lá foram ao paço.

 

— Será aceita a demissão? perguntei eu.

 

Mendonça abaixou a voz.

 

— Creio que é.

 

Depois apertou a mão ao desembargador, ao C. e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.

 

— Pois, senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.

 

Passa defronte um sujeito.

 

— Anda cá, Lima, gritou Abreu.

 

O Lima aproximou-se.

 

— Estás convidado para o ministério?

 

— Estou; você quer alguma pasta?

 

Não penses que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.

 

A única preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares, — a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C. e o Lima, e seguiram viagem.

 

— São lindas estas moças, disse um dos circunstantes.

 

— Eu era capaz de as nomear para o ministério.

 

— Sendo eu presidente do conselho.

 

— Também eu.

 

— A mais gorda devia ser Ministro da Marinha.

 

— Por quê?

 

— Porque parece mesmo uma fragata.

 

Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.

 

— Quem será? Algum ministro?

 

— Vejamos.

 

— Não; é a A...

 

— Como vai bonita!

 

— Pudera!

 

— Ela já tem carro?

 

— Há muito tempo.

 

— Olhem, ali vem o Mendonça.

 

— Vem com outro. Quem é?

 

— É um deputado.

 

Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.

 

Houve outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do tom.

 

Finalmente surgiu de longe o já citado Ferreira.

 

— Que há? perguntamos quando ele chegou.

 

— Foi aceita a demissão.

 

— Quem é o chamado?

 

— Não se sabe.

 

— Por quê?

 

— Dizem que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.

 

Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.

 

— Mas donde sabe isso? disse o desembargador.

 

— Soube na Câmara.

 

— Não me parece natural.

 

— Por quê?

 

— Que força moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?

 

— Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do Ministro da Fazenda.

 

Ferreira tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.

 

— Quem será chamado?

 

— Naturalmente o N.

 

— Ou o P.

 

— Já hoje de manhã se dizia que era o K.

 

Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.

 

— Então, Sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.

 

— O B.

 

— Com certeza?

 

— É o que se diz.

 

— Eu ouvi que só na segunda-feira se organizará ministério novo.

 

— Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B. foi ao paço.

 

— Viu-o?

 

— Não, mas disseram-mo.

 

— Pois acredite que até segunda-feira...

 

A conversa ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.

 

Cada qual expôs a sua conjetura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:

 

— Está enganado; pode o F. ficar com a pasta da Justiça, o M. com a da Guerra, K. Marinha, T. Obras Públicas, V. Fazenda, X. Império, e C. Estrangeiros.

 

— Não é possível; o V. é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.

 

— Mas o V. não pode entrar nessa combinação.

 

— Por quê?

 

— É inimigo do F.

 

— Sim; mas a deputação da Bahia?

 

Aqui coçava o outro a orelha.

 

— A deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N.

 

— O N. não aceita.

 

— Por quê?

 

— Não quer ministério de transição.

 

— Chama a isto ministério de transição?

 

— Pois que é mais?

 

Este diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C. e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.

 

Desta vez íamos ter notícias frescas.

 

Efetivamente soubemos pelo deputado que o V. tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.

 

— Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V.; o seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?

 

— Por ora, disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.

 

— Quem são?

 

— Não sei, respondeu o deputado.

 

Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.

 

Houve um pequeno silêncio. Conjeturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.

 

O Abreu dirigiu-se ao deputado.

 

— V. Ex.a acredita que o ministério fique organizado hoje?

 

— Creio que sim; mas daí pode ser que não...

 

— A situação não é boa, observou Ferreira.

 

— Admira-me que V. Ex.a não seja convidado...

 

Estas palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:

 

— Pois não me admira nada disso; deixo o lugar aos componentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.

 

— Perdão, é muito digno!

 

Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:

 

— Podes dar-me uma palavra?

 

— Que é? perguntou o deputado levantando-se.

 

— Vem cá.

 

Foram até à porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.

 

— Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.

 

— Acredita? perguntei eu.

 

— Sem dúvida.

 

Mendonça foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.

 

Eram duas horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Um desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.

 

Às três horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.

 

Determinamos não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C.) andar na Rua do Ouvidor às 5 horas da tarde.

 

— Mas qual será o meio de saber? perguntei eu.

 

— Eu vou ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.

 

Vários incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma jóia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.

 

Nada se soube nessa tarde.

 

Voltei para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C. jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos voltar à Rua do Ouvidor.

 

— Não era melhor irmos à casa do V., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.

 

— Principalmente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu o C.; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.

 

A Rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.

 

Confesso que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da Rua do Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que os freqüentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os ministros todos.

 

Encontramos os mesmos amigos da manhã.

 

Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.

 

— Que há?

 

— Está organizado.

 

— Mas quem são?

 

O desembargador tirou do bolso uma lista.

 

— São estes.

 

Lemos os nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.

 

— Mas isto é certo? perguntei eu.

 

— Deram-me agora esta lista; creio que é autêntica.

 

— O que é? perguntou por trás de mim uma voz.

 

Era um sujeito moreno e bigode grisalho.

 

— Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.

 

— Tenho uma lista.

 

— Vejamos se combina com esta.

 

Costearam-se as listas; havia engano num nome.

 

Mais adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma deles, deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às 9 horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da Rua do Ouvidor, qual era o gabinete.

 

O Mendonça ficou alegre com o resultado da crise.

 

Perguntaram-lhe por que razão.

 

— Tenho dois compadres no ministério! respondeu ele.

 

Aqui tens o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 09 de maio de 2022

SUJE-SE, GORDO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SUJE-SE GORDO!

Machado de Assis

 

 

 

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

- Fui sempre contrário ao júri, - disse-me aquele amigo, - não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, - proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, - chamava-se Lopes, - replicou com aborrecimento:

- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer Sujar-se? Suje-se gordo!

"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

- Como se chama? perguntou o presidente.

- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com um pontinha de riso nos cantos da boca.

Seguiu-se a leitura do processo. Era um falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito. os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes. os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Enquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: "Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer- lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 08 de maio de 2022

UM SONHO E OUTRO SONHO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM SONHO E OUTRO SONHO

Machado de Assis

 

 

 

Crês em sonhos? Há pessoas que os aceitam como a palavra do destino e da verdade. Outros há que os desprezam. Uma terceira classe explica-os, atribuindo-os a causas naturais. Entre tantas opiniões não quero saber da tua, leitora, que me lês, principalmente se és viúva, porque a pessoa a quem aconteceu o que vou dizer era viúva, e o assunto pode interessar mais particularmente às que perderam os maridos. Não te peço opinião, mas atenção.

 

Genoveva, vinte e quatro anos, bonita e rica, tal era a minha viúva. Três anos de viuvez, um de véu longo, dois de simples vestidos pretos, chapéus pretos, e olhos pretos, que vinham do consórcio e do berço. A diferença é que agora olhavam para o chão, e, se olhavam para alguma coisa ou alguém, eram sempre tristes, como os que já não têm consolação na terra nem provavelmente no céu. Morava em uma casa escondida, para os lados do Engenho Velho, com a mãe e os criados. Nenhum filho. Um que lhe devia nascer, foi absorvido pelo nada; tinha cinco meses de gestação.

 

O retrato do marido, bacharel Marcondes, ou Nhonhô, pelo nome familiar, vivia no quarto dela, pendente da parede, moldura de ouro, coberta de crepe. Todas as noites, Genoveva, depois de rezar a Nossa Senhora, não se deitava sem lançar o último olhar ao retrato, que parecia olhar para ela. De manhã o primeiro olhar era para ele. Quando o tempo veio amortecendo o efeito da dor, esses gestos diminuíram naturalmente e acabaram; mas a imagem vivia no coração. As mostras externas não diminuíam a saudade.

 

Rica? Não, não era rica, mas tinha alguma coisa; tinha o bastante para viver com a mãe, à larga. Era, conseguintemente, um bom negócio para qualquer moço ativo, ainda que não tivesse nada de seu; melhor ainda para quem possuísse alguma coisa, porque as duas bolsas fariam uma grande bolsa, e a beleza da viúva seria a mais valiosa moeda do pecúlio. Não lhe faltavam pretendentes de toda a espécie, mas todos perdiam o tempo e o trabalho. Carlos, Roberto, Lucas, Casimiro e outros muitos nomes inscreviam-se no livro dos passageiros, e iam-se embora sem esperanças. Alguns nem levavam saudades. Muitos as levavam em grande cópia e das mais tristes. Genoveva não se deixou prender de ninguém.

 

Um daqueles candidatos, Lucas, pôde saber da mãe de Genoveva algumas circunstâncias da vida e da morte do finado genro. Lucas tinha ido pedir licença à boa senhora para solicitar a mão da filha. Não havia necessidade, pois que a viúva dispunha de si; mas a incerteza de ser aceito sugeriu-lhe esse alvitre, a fim de ver se ganhava a boa vontade e intercessão da mãe.

 

— Não lhe dou tal conselho, respondeu esta.

 

— De pedi-la em casamento?

 

— Sim; ela deu-lhe alguma esperança?

 

Lucas hesitou.

 

— Vejo que não lhe deu nenhuma.

 

— Devo ser verdadeiro. Esperanças, não tenho; não sei se D. Genoveva me perdoa, ao menos, a afeição que me inspirou.

 

— Pois não lhe peça nada.

 

— Parece-lhe que...

 

— Que perderá o tempo. Genoveva não casará nunca mais. Até hoje tem a imagem do marido diante de si, vive da lembrança dele, chora por ele, e nunca se unirá a outro.

 

— Amaram-se muito?

 

— Muito. Imagine uma união que apenas durou três anos. Nhonhô, quando morreu, quase que a levou consigo. Viveram como dois noivos; o casamento foi até romanesco. Tinham lido não sei que romance, e aconteceu que a mesma linha da mesma página os impressionou igualmente; ele soube disso lendo uma carta que ela escrevera a uma amiga. A amiga atestou a verdade, porque ouvira a confissão de Nhonhô, antes de lhe mostrar a carta. Não sei que palavras foram, nem que romance era. Nunca me dei a essas leituras. Mas naturalmente eram palavras ternas. Fosse o que fosse, apaixonaram-se um pelo outro, como raras vezes vi, e casaram-se para ser felizes por longos anos. Nhonhô morreu de uma febre perniciosa. Não pode imaginar como Genoveva sofreu. Quis ir com o cadáver, agarrou-se ao caixão, perdeu os sentidos, e esteve fora de si quase uma semana. O tempo e os meus cuidados, além do médico, é que puderam vencer a crise. Não chegou a ir à missa; mandamos dizer uma, três meses depois.

 

A mãe exagerava no ponto de dizer que foi a frase do romance que ligou a filha ao marido; eles tinham naturalmente inclinação. A frase não fez mais que falar por eles. Nem por isso tira o romanesco de Genoveva e do finado Marcondes, que fizera versos aos dezoito anos, e, aos vinte, um romance, A bela do Sepulcro, cuja heroína era uma moça que, havendo perdido o esposo, ia passar os dias no cemitério, ao pé da sepultura dele. Um moço, que ia passar as tardes no mesmo cemitério, ao pé da sepultura da noiva, viu-a e admirou aquela constância póstuma, tão irmã da sua; ela o viu também, e a identidade da situação os fez amados um do outro. A viúva, porém, quando ele a pediu em casamento, negou-se e morreu oito dias depois.

 

Genoveva tinha presente este romance do marido. Havia-o lido mais de vinte vezes, e nada achava tão patético nem mais natural. Mandou fazer uma edição especial, e distribuiu exemplares a todos os amigos e conhecidos da família. A piedade conjugal desculpava esse obséquio pesado, ainda que gratuito. A bela do sepulcro era ilegível. Mas não se conclua daí que o autor, como homem espirituoso, era inferior às saudades da viúva. Inteligente e culto, cometera aquele pecado literário, que, nem por ser grande, o teria levado ao purgatório.

 

Três anos depois de viúva, apareceu-lhe um pretendente. Era bacharel, como o marido, tinha trinta anos, e advogava com tanta felicidade e real talento que contava já um bom pecúlio. Chamava-se Oliveira. Um dia, a mãe de Genoveva foi demandada por um parente que pretendia haver duas casas dela, por transações feitas com o marido. Querendo saber de um bom advogado, inculcaram-lhe Oliveira, que em pouco tempo venceu a demanda. Durante o correr desta, Oliveira foi duas vezes à casa de Genoveva, e só a viu da segunda; mas foi quanto bastou para achá-la interessantíssima, com os seus vestidos pretos, tez muito clara e olhos muito grandes. Vencida a demanda, a constituinte meteu-se em um carro e foi ao escritório de Oliveira, para duas coisas, agradecer-lhe e remunerá-lo.

 

— Duas pagas? retorquiu ele rindo. Eu só recebo uma — agradecimentos ou honorários. Já tenho os agradecimentos.

 

— Mas...

 

— Perdoe-me isto, mas a sua causa era tão simples, correu tão depressa, deu-me tão pouco trabalho, que seria injustiça pedir-lhe mais do que a sua estima. Dá-me a sua estima?

 

— Seguramente, respondeu ela.

 

Quis ainda falar, mas não achava palavras, e saiu convencida de que era chegado o reino de Deus. Entretanto, querendo fazer uma fineza ao generoso advogado, resolveu dar-lhe um jantar, para o qual convidou algumas famílias íntimas. Oliveira recebeu o convite com alacridade. Não gostava de perfumes nem adornos; mas nesse dia borrifou o lenço com Jockey Club e pôs ao peito uma rosa amarela.

 

Genoveva recebeu o advogado como recebia outros homens; a diferença, porém, entre ele e os outros é que estes apresentavam logo no primeiro dia as credenciais, e Oliveira não pedia sequer audiência. Entrou como um estrangeiro de passagem, curioso, afável, interessante, tratando as coisas e pessoas como os passageiros em trânsito pelas cidades de escala. Genoveva teve excelente impressão do homem; a mãe estava encantadíssima.

 

— Enganei-me, pensou Genoveva, recolhendo-se ao quarto. Cuidei que era outro pedido, entretanto... Mas, por que motivo fez o que fez, e aceitou o jantar de mamãe?

 

Chegou a suspeitar que a mãe e o advogado estavam de acordo, que ela não fizera mais que buscar ocasião de os apresentar um ao outro, e travar relações. A suspeita cresceu quando, dias depois, a mãe falou em visitar a mãe de Oliveira, com quem este vivia; mas a prontidão com que aceitou as suas razões de negativa tornou a moça perplexa. Genoveva examinou o caso e reconheceu que atribuía à mãe um papel menos próprio; varreu-se-lhe a suposição. Demais (e isto valia por muito), as maneiras do homem estavam em desacordo com quaisquer projetos.

 

Travadas as relações, bem depressa as duas famílias se visitavam, e a miúdo. Oliveira residia longe; mas achou casa perto e mudou-se. As duas mães achavam-se reciprocamente encantadoras, e tanto a de Genoveva gostava de Oliveira, como a de Oliveira gostava de Genoveva. Tudo isto vai parecendo simétrico; mas eu não tenho modo de contar diferentemente coisas que se passaram assim, ainda que reconheça a conveniência de as compor algo. Quanto menos, falta-me tempo... A verdade é que as duas matronas se amavam e trabalhavam para fazer os filhos encontradiços.

 

Um, dois, três meses correram, sem que Oliveira revelasse a menor inclinação à viuvinha. Entretanto, as horas passadas com ele, em qualquer das casas, não podiam ser mais deleitosas. Ninguém sabia encher o tempo tão bem, falando a cada uma das pessoas a sua própria linguagem. Durante esse prazo teve Genoveva ainda um pretendente, que não recebeu melhor agasalho; parece até que tratou a este com uma sombra de despeito e irritação inexplicáveis, não só para ele, como para ela própria.

 

— Realmente, o pobre diabo não tem culpa que eu seja viúva, disse ela consigo.

 

“Que eu seja bonita”, é o que ela devia dizer, e pode ser que tal idéia chegasse a bater as asas, para atravessar-lhe o cérebro; mas, há certa modéstia inconsciente, que faz evitar confissões, não digo presumidas, mas orgulhosas. Seja o que for, Genoveva chegou a ter pena do pretendente.

 

— Por que não se portou ele como o Oliveira, que me respeita? continuou consigo.

 

Entrara o quarto mês das relações, e o respeito do advogado não diminuiu. Jantaram juntos algumas vezes, e chegaram a ir juntos ao teatro. Oliveira abriu até um capitulo de confidências com ela, não amorosas, é claro, mas de sensações, de impressões, de cogitações. Um dia, disse-lhe que, em pequeno, tivera desejo de ser frade; mas levado ao teatro, e assistindo à comédia do Pena, O Noviço, o espetáculo do menino, vestido de frade, e correndo pela sala, a bradar: eu quero ser frade! eu quero ser frade! fez-lhe perder todo o gosto da profissão.

 

— Achei que não podia vestir um hábito assim profanado.

 

— Profanado, como? O hábito não tinha culpa.

 

— Não tinha culpa, é verdade; mas eu era criança, não podia vencer essa impressão infantil. E parece que foi bom.

 

— Quer dizer que não seria bom frade?

 

— Podia ser que fosse sofrível; mas eu quisera sê-lo excelente.

 

— Quem sabe?

 

— Não; dei-me tão bem com a vida do foro, com esta chicana da advocacia, que não é provável tivesse a vocação contemplativa tão perfeita como quisera. Há só um caso em que eu acabaria num convento.

 

— Qual?

 

Oliveira hesitou um instante.

 

— Se enviuvasse, respondeu.

 

Genoveva, que sorria, aguardando a resposta, fez-se rapidamente séria, e não retorquiu. Oliveira não acrescentou nada, e a conversa naquele dia acabou menos expressiva que das outras vezes. Posto que tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se deitou; ao contrário, ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo acordada.

 

Na manhã seguinte, a primeira coisa em que pensou foi justamente na conversação da véspera, isto é, naquela última palavra de Oliveira. Que havia nela? Aparentemente, pouco; e pode ser que, na realidade, ainda menos. Era um sentimento de homem que não admitia o mundo, depois de roto o consórcio; e iria refugiar-se na solidão e na religião. Confessemos que não basta para explicar a preocupação da nossa viúva. A viúva, entretanto, não viveu de outra coisa, durante esse dia, salvo o almoço e o jantar, que ainda assim foram quase silenciosos.

 

— Estou com dor de cabeça, respondeu à mãe, para explicar as suas poucas palavras.

 

— Toma antipirina.

 

— Não, isto passa.

 

E não passava. “Se enviuvasse, ele ia meter-se em um convento”, pensava Genoveva; logo, era uma censura a ela, por não ter feito o mesmo. Mas que razão havia para desejá-la recolhida a um mosteiro? Pergunta torta; parece que a pergunta direita seria outra: “Que razão haveria para não desejá-la recolhida a um mosteiro?” Mas se não era direita, era natural, e o natural é muitas vezes torto. Pode ser até que, bem exprimidas as primeiras palavras, deixem o sentido das segundas; mas, eu não faço aqui psicologia, narro apenas.

 

Atrás daquele pensamento, veio outro mui diverso. Talvez que ele tivesse tido alguma paixão, tão forte, que, se casasse e enviuvasse... E por que não a teria ainda agora? Pode ser que amasse a alguém, que pretendesse casar, e que, se acaso perdesse a mulher amada, fugisse ao mundo para sempre. Confessara-lhe isto, como usava fazer a outros respeitos, como lhe confessava opiniões, que dizia não repetir a ninguém mais. Essa explicação, posto que natural, atordoou Genoveva ainda mais que a primeira.

 

— Afinal, que tenho eu com isto? Faz muito bem.

 

Passou mal a noite. No dia seguinte foi com a mãe fazer compras à Rua do Ouvidor, demorando-se muito, sem saber porquê, e olhando para todos os lados, sempre que saía de uma loja. Passando por um grupo estremeceu e olhou para as pessoas que falavam, mas não conheceu nenhuma. Tinha ouvido, entretanto, a voz de Oliveira. Há vozes parecidas com outras, que enganam muito, ainda quando a gente vai distraída. Há também ouvidos mal educados.

 

A declaração de Oliveira de que entraria para um convento, se chegasse a enviuvar, não saía da cabeça de Genoveva. Passaram-se alguns dias sem ver o advogado. Uma noite, depois de cuidar no caso, Genoveva olhou para o retrato do marido antes de deitar-se; repetiu a ação no dia seguinte, e o costume dos primeiros tempos da viuvez tornou a ser o de todas as noites. De uma vez, mal adormecera, teve um sonho extraordinário.

 

Apareceu-lhe o marido, vestido de preto, como se enterrara, e pôs-lhe a mão na cabeça. Estavam em um lugar que não era bem sala nem bem rua, uma coisa intermédia, vaga, sem contornos definidos. O principal do sonho era o finado, cara pálida, mãos pálidas, olhos vivos, é certo, mas de uma tristeza de morte.

 

— Genoveva! disse-lhe ele.

 

— Nhonhô! murmurou ela.

 

— Para que me perturbas a vida da morte, o sono da eternidade?

 

— Como assim?

 

— Genoveva, tu esqueceste-me.

 

— Eu?

 

— Tu amas a outro.

 

Genoveva negou com a mão.

 

— Nem ousas falar, observou o defunto.

 

— Não, não amo, acudiu ela.

 

Nhonhô afastou-se um pouco, olhou para a antiga esposa, abanou a cabeça incredulamente, e cruzou os braços. Genoveva não podia fitá-lo.

 

— Levanta os olhos, Genoveva.

 

Genoveva obedeceu.

 

— Ainda me amas?

 

— Oh! ainda! exclamou Genoveva.

 

— Apesar de morto, esquecido dos homens, hóspede dos vermes?

 

— Apesar de tudo!

 

— Bem, Genoveva; não te quero forçar a nada, mas se é verdade que ainda me amas, não conspurques o teu amor com as carícias de outro homem.

 

— Sim.

 

— Juras?

 

— Juro.

 

O finado estendeu-lhe as mãos, e pegou nas dela; depois, enlaçando-a pela cintura, começou uma valsa rápida e lúgubre, giro de loucos, em que Genoveva não podia fitar nada. O espaço já não era sala, nem rua, nem sequer praça; era um campo que se alargava a cada giro dos dois, por modo que, quando estes pararam, Genoveva achou-se em uma vasta planície, semelhante a um mar sem praias; circulou os olhos, a terra pegava com o céu por todos os lados. Quis gritar; mas sentiu na boca a mão fria do marido que lhe dizia:

 

— Juras ainda?

 

— Juro, respondeu Genoveva.

 

Nhonhô tornou a pegar-lhe da cintura, a valsa recomeçou, com a mesma vertigem de giros, mas com o fenômeno contrário, em relação ao espaço. O horizonte estreitou-se a mais e mais, até que eles se acharam numa simples sala, com este apêndice: uma eça e um caixão aberto. O defunto parou, trepou ao caixão, meteu-se nele, e fechou-o; antes de fechado, Genoveva viu a mão do defunto, que lhe dizia adeus. Soltou um grito e acordou.

 

Parece que, antes do grito final, soltara outros de angústia, porque quando acordou, viu já ao pé da cama uma preta da casa.

 

— Que foi, Nhanhã?

 

— Um pesadelo. Eu disse alguma coisa? falei? gritei?

 

— Nhanhã gritou duas vezes, e agora outra vez,

 

— Mas foram palavras?

 

— Não, senhora; gritou só.

 

Genoveva não pôde dormir o resto da noite. Sobre a manhã chegou a conciliar o sono, mas este foi interrompido e curto.

 

Não referiu à mãe os pormenores do sonho; disse só que tivera um pesadelo. De si para si, aceitou aquela visão do marido e as suas palavras, como determinativas do seu proceder. Ao demais, jurara, e este vínculo era indestrutível. Examinando a consciência, reconheceu que estava prestes a amar a Oliveira, e que a notícia desta afeição, ainda mal expressa, tinha chegado ao mundo onde vivia o marido. Ela cria em sonhos; tinha para si que eles eram avisos, consolações e castigos. Havia-os sem valor, sonhos de brincadeira; e ainda esses podiam ter alguma significação. Estava dito; acabaria com aquele princípio de qualquer coisa que Oliveira conseguira inspirar-lhe e tendia a crescer.

 

Na seguinte noite, Genoveva despediu-se do retrato do marido, rezou por ele, e meteu-se na cama com receio. Custou-lhe dormir, mas afinal o sono fechou-lhe os lindos olhos e a alma acordou sem ter sonhado nada, nem mal nem bem; acordou com a luz do sol que lhe entrava pelas portas das janelas.

 

Oliveira deixara de ir ali uma semana. Genoveva espantou-se da ausência; a mãe quis ir à casa dele saber se era alguma doença, mas a filha tirou-lhe a idéia da cabeça. No princípio da outra semana, apareceu ele com a mãe, tinha tido um resfriamento que o reteve na cama três dias.

 

— Eu não disse? acudiu a mãe de Genoveva. Eu disse que havia de ser negócio de doença, porque o doutor não deixa de vir tanto tempo...

 

— E a senhora não acreditou? perguntou Oliveira à linda viúva.

 

— Confesso que não.

 

— Pensa, como minha mãe, que sou invulnerável.

 

Sucederam-se as visitas entre as duas casas, mas nenhum incidente veio perturbar a resolução em que estava Genoveva de cortar inteiramente quaisquer esperanças que pudesse haver dado ao advogado. Oliveira era ainda o mesmo homem respeitoso. Passaram-se algumas semanas. Um dia, Genoveva ouviu dizer que Oliveira ia casar.

 

— Não é possível, disse ela à amiga que lhe deu a notícia.

 

— Não é possível, por quê? acudiu a outra. Vai casar com a filha de um comerciante inglês, um Stanley. Todos sabem disto.

 

— Enfim, como eu pouco saio...

 

Justifiquemos a viúva. Não lhe parecia possível, porque ele visitava-as com tal freqüência, que não se podia crer em casamento tratado. Quando visitaria a noiva? Apesar da razão, Genoveva sentia que podia ser assim mesmo. Talvez o futuro sogro fosse algum esquisitão, que não admitisse a visita de todas as noites. Notou que, a par disto, Oliveira era desigual com ela; tinha dias e dias de indiferença, depois lá vinha um olhar, uma palavra, um dito, um aperto de mão... Os apertos de mão eram o sinal mais freqüente: tanto que ela sentia alguma falta no dia em que ele era frouxo, e esperava o dia seguinte para ver se era mais forte. Lançava estas curiosidades à conta da vaidade. Vaidade de mulher bonita, dizia a si mesma.

 

Daquela vez, porém, esperou-o com certa ânsia, e fez-lhe bem o aperto de mão com que ele a saudou na sala. Arrependera-se de não ter contado à mãe a notícia do casamento, para que esta perguntasse ao advogado; e, não se podendo ter, falou ela mesma.

 

— Eu, minha senhora?

 

Genoveva continuou sorrindo.

 

— Sim, senhor.

 

— Há de ser outro Oliveira, também advogado, que está realmente para casar este mês. Eu não me casarei nunca.

 

Naquela noite, Genoveva, ao deitar-se olhou ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe dobrado, e tarde dormiu, com medo de outra valsa; mas acordou sem sonhos.

 

Que poderá haver entre uma viúva que promete ao finado esposo, em sonhos, não contrair segundas núpcias, e um advogado que declara, em conversação, que jamais se casará? Parece que nada ou muito; mas é que o leitor não sabe ainda que este Oliveira tem por plano não saltar o barranco sem que ela lhe estenda as duas mãos, posto que a adore, como dizem todos os enamorados. A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair, que algum efeito produzira, visto que a mão de Genoveva tremia um pouco, muito pouco, e que a ponta dos dedos... Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.

 

Notem bem que eu não tenho culpa destas histórias enfadonhas de dedos e contradedos, e palavras sem sentido, outras meio inclinadas, outras claras, obscuras; menos ainda dos planos de um e das promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no segundo dia tinha pegado em ambos, ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes: casem-se. E passava a contar outras histórias menos monótonas. Mas, as pessoas são estas; é preciso aceitá-las assim mesmo.

 

Passaram-se dias, uma, duas, três semanas, sem incidente maior. Oliveira parecia deixar a estratégia de Fabio Cunctator. Um dia declarou francamente à viúva que a amava; era um sábado, em casa dela, antes de jantar, enquanto as duas mães os tinham deixado sós. Genoveva abria as folhas de um romance francês que Oliveira lhe trouxera. Ele fitava pela centésima vez uma aquarela, pendurada no trecho da parede que ficava entre duas janelas. Bem ouvia a faca de marfim rasgando as folhas espessas do livro, e o silêncio deixado pelas duas senhoras que tinham deixado a sala; mas não voltava a cabeça nem baixava os olhos. Baixou-os de repente, e voltou-os para a viúva. Ela sentia-os, e, para dizer alguma coisa:

 

— Sabe se é bonito o romance? perguntou, parando de rasgar as folhas.

 

— Dizem-me que sim.

 

Oliveira foi sentar-se em um pouf, que estava ao pé do sofá, e fitou as mãos de Genoveva, pousadas sobre o livro aberto, mas as mãos continuaram o seu ofício para escapar à admiração do homem, como, se cortando as folhas, fossem menos admiráveis que paradas. Alongou-se o silêncio, um silêncio constrangido — que Genoveva quisera romper, sem achar modo nem ocasião. Pela sua parte, Oliveira tinha ímpetos de lhe dizer subitamente o resto do que ela devia saber pelos últimos dias; mas não cedia aos ímpetos, e acabou trivialmente elogiando-lhe as mãos. Não valia a pena tanto trabalho para acabar assim. Ele, porém, vexado da situação, pôs toda a alma na boca e perguntou à viúva se desejava ser sua esposa.

 

Desta vez, as mãos pararam sem plano. Genoveva, confusa, pregou os olhos no livro, e o silêncio entre os dois fez-se mais longo e profundo. Oliveira olhava para ela; via-lhe as pálpebras caídas e a respiração curta. Que palavra estaria dentro dela? Hesitava pelo vexame de dizer que sim? ou pelo aborrecimento de dizer que não? Oliveira tinha razões para crer na primeira hipótese. Os últimos dias foram de acordo tácito, de consentimento prévio. Entretanto, a palavra não saía; e a memória do sonho veio complicar a situação. Genoveva recordou-se da penosa e triste valsa, da promessa e do féretro, e empalideceu. Nisto foram interrompidos pelas duas senhoras, que voltaram à sala.

 

O jantar foi menos animado que de costume. De noite, vieram algumas pessoas, e a situação piorou. Separaram-se sem resposta. A manhã seguinte foi cheia de tédio para Genoveva, um tédio temperado com alegria que bem fazia adivinhar o estado da alma da moça. Oliveira não apareceu nesse dia; mas, veio no outro, à noite. A resposta que ela deu não podia ser mais decisiva, ainda que trêmula e murmurada.

 

Há aqui um repertório de pequenas coisas infinitas, que não pode entrar em um simples conto nem ainda em longo romance; não teria graça escrito. Sabe-se o que sucede desde a aceitação de um noivo até o casamento. O que se não sabe, porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga, dias antes de casar. É o que se vai ler para acabar.

 

Desde duas semanas antes da pergunta de Oliveira, a viúva deitava-se sem olhar para o retrato do finado marido. Logo depois da resposta, olhava-o algumas vezes, de soslaio, até que tornou ao anterior costume. Ora, uma noite, quatro dias antes de casar, como houvesse pensado no sonho da valsa e na promessa não cumprida, deitou-se com medo e só dormiu sobre a madrugada. Nada lhe sucedeu; mas, na segunda noite, teve um sonho extraordinário.

 

Não era a valsa do outro sonho, posto que, ao longe, na penumbra, via uns contornos cinzentos de vultos que andavam à roda. Viu, porém, o marido, a princípio severo, depois triste, perguntando-lhe como é que esquecera a promessa. Genoveva não respondeu nada; tinha a boca tapada por um carrasco, que era não menos que Oliveira.

 

— Responde, Genoveva!

 

— Ah! Ah!

 

— Tu esqueceste tudo. Estás condenada ao inferno!

 

Uma língua de fogo lambeu a parte do céu, que se conservava azul, porque todo o resto era um amontoado de nuvens carregadas de tempestade. Do meio delas saiu um vento furioso, que pegou da moça, do defunto marido e do noivo e os levou por uma estrada fora, estreita, lamacenta, cheia de cobras.

 

— O inferno! sim! o inferno!

 

E o carrasco tapava-lhe a boca, e ela mal podia gemer uns gritos abafados.

 

— Ah! ah!

 

Parou o vento, as cobras ergueram-se do chão e dispersaram-se no ar, entrando cada uma pelo céu dentro; algumas ficaram com a cauda de fora. Genoveva sentiu-se livre; desaparecera o carrasco, e o defunto esposo, de pé, pôs-lhe a mão na cabeça, e disse com voz profética:

 

— Morrerás se casares!

 

Desapareceu tudo; Genoveva acordou; era dia. Ergueu-se trêmula; o susto foi passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia consigo: “São sonhos”. Casou e não morreu.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 07 de maio de 2022

SÓ! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

SÓ!

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 06 de maio de 2022

SINGULAR OCORRÊNCIA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

SINGULAR OCORRÊNCIA

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 05 de maio de 2022

SILVESTRE (CONTO DE MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

SILVESTRE

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 04 de maio de 2022

A SENHORA DO GALVÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A SENHORA DO GALVÃO

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 03 de maio de 2022

UMA SENHORA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

UMA SENHORA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 02 de maio de 2022

A SEGUNDA VIDA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A SEGUNDA VIDA

Machado de Assis

 

 

Monsenhor Caldas interrompeu a narração do desconhecido:


     - Dá Licença? é só um instante.


     Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa:


    - João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido. Anda, vai depressa.


      E, voltando à sala:


     - Pronto, disse ele; podemos continuar.


     - Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a Terra de vista, deixando muito abaixo a Lua, as estrelas e o Sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez?


      - Não, senhor.


      - São incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num palanquim feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da Terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e cores, uma coisa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas extraordinárias que fizeram-me, e que duraram dois séculos, ou, pelas nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a tornar à Terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que completava o milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia recusar. Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa Reverendíssima no meu lugar?


      - Não posso saber; depende...


     - Tem razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: -- "Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!" Lembou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no espaço; gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços de uma ama-de-leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é Romualdo, não?


      - Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.


      - Será parente do Padre Sousa Caldas


      - Não, senhor.


      - Bom poeta o Padre Caldas. Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima. Entretanto, se me permitisse ir fumando...


       Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das idéias ou o assombroso da invenções; podia ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxílio policial, Monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados. José Maria acendeu finalmente o cigarro, e continuou:


       - Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de confusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas. Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores... Não se assuste; serei casto, como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres?


       - Como quer que saiba?


      - Tinha dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia... Ninguém esperava tal coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo, um apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança de três indigestões apanhadas quarenta anos antes na primeira vida, fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim. Você cura de um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas, sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.


      - Com efeito...


      - Não lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa. Como lhe parece que vivo?


     - Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés...


     - Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim...


       José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro... De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada. Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: -- carros e carroças que desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos:


       - Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres...


       - Sim, senhor.


     - Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos livres, gostamos um do outro, e não nos casamos; tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a freqüentar a casa, em Mata-cavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro beijo... Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão. Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planeando uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês. Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.


     - Não alcanço...


     - Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa; tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa pior: -- podia ficar o fastio. Concluí a toilette de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois, adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma linda criancinha... Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez; algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica... Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que padeci nessa noite... Deixa-me fumar outro cigarro?
Não esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos polidos, e, que apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras. Quem diabo podia ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis saber o que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de amor queria que ela lhe desse. A resposta de José Maria foi uma pergunta.


      - Está disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou que sim. "Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade; venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado." Compreendo que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um monstro.


        - Não, senhor...


        - Como não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina as festas com que a recebi. "Deixo tudo, disse-me ela; você é para mim o universo." Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio meu, em Santa Ana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei fulminado. "Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo, porque tinha notícia da herança." Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu. Um dia, dois dias, três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer. Então declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e apresentei-lho: é este.


       Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou:


      - Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição: doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil contos. Há de ter lido nos jornais... Três semanas depois casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao fim. Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é abreviar umas particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar, nem das ilusões de sala rota, nem do tal pássaro... plás... plás... plás...


       E, de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços, e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente mais delirante. Contava os sustos em que vivia, desgostos e desconfianças. Não podia comer um figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela idéia de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhada. Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue... Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou... Com quem pensava o padre que ele sonhou?


       - Não atino..


      - Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. "Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa pode ombrear com eles. Salomão é a sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos." Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: "José Maria, são os teus vinte anos." Era uma gargalhada assim: -- cá, cá, cá, cá, cá...


       José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou; levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os olhos como viu a mulher diante dele, aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés... Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido. "Não, miserável! não! tu não me fugirás!" bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 01 de maio de 2022

O IMORTAL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O IMORTAL

Machado de Assis

 

 

 

— Meu pai nasceu em 1600...

 

— Perdão, em 1800, naturalmente...

 

— Não, senhor, replicou o Dr. Leão, de um modo grave e triste; foi em 1600.

 

Estupefação dos ouvintes, que eram dois, o Coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. A vila era na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas. Tudo silêncio. O lugar em que os três estavam era a varanda que dava para o terreiro. Um lampião de luz frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa.

 

— Não, senhor; nasceu em 1600.

 

Médico homeopata, — a homeopatia começava a entrar nos domínios da nossa civilização, — este Dr. Leão chegara à vila, dez ou doze dias antes, provido de boas cartas de recomendação, pessoais e políticas. Era um homem inteligente, de fino trato e coração benigno. A gente da vila notou-lhe certa tristeza no gesto, algum retraimento nos hábitos, e até uma tal ou qual sequidão de palavras, sem embargo da perfeita cortesia; mas tudo foi atribuído ao acanho dos primeiros dias e às saudades da Corte. Contava trinta anos, tinha um princípio de calva, olhar baço e mãos episcopais. Andava propagando o novo sistema.

 

Os dois ouvintes continuavam pasmados. A dúvida fora posta pelo dono da casa, o Coronel Bertioga, e o tabelião ainda insistiu no caso, mostrando ao médico a impossibilidade de ter o pai nascido em 1600. Duzentos e cinqüenta e cinco anos antes! dois séculos e meio! Era impossível. Então, que idade tinha ele? e de que idade morreu o pai?

 

— Não tenho interesse em contar-lhes a vida de meu pai, respondeu o Dr. Leão. Falaram-me no macróbio que mora nos fundos da matriz; disse-lhes que, em negócio de macróbios, conheci o que há mais espantoso no mundo, um homem imortal...

 

— Mas seu pai não morreu? disse o coronel.

 

— Morreu.

 

— Logo, não era imortal, concluiu o tabelião triunfante. Imortal se diz quando uma pessoa não morre, mas seu pai morreu.

 

— Querem ouvir-me?

 

— Homem, pode ser, observou o coronel meio abalado. O melhor é ouvir a história. Só o que digo é que mais velho do que o Capataz nunca vi ninguém. Está mesmo caindo de maduro. Seu pai devia estar também muito velho...?

 

— Tão moço como eu. Mas para que me fazem perguntas soltas? Para se espantarem cada vez mais, porque na verdade a história de meu pai não é fácil de crer. Posso contá-la em poucos minutos.

 

Excitada a curiosidade, não foi difícil impor-lhes silêncio. A família toda estava acomodada, os três eram sós na varanda, o dr. Leão contou enfim a vida do pai, nos termos em que o leitor vai ver, se se der o trabalho de ler o segundo e os outros capítulos.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

— Meu pai nasceu em 1600, na cidade de Recife.

 

Aos vinte e cinco anos tomou o hábito franciscano, por vontade de minha avó, que era profundamente religiosa. Tanto ela como o marido eram pessoas de bom nascimento, — “bom sangue”, como dizia meu pai, afetando a linguagem antiga.

 

Meu avô descendia da nobreza de Espanha, e minha avó era de uma grande casa do Alentejo. Casaram-se ainda na Europa, e, anos depois, por motivos que não vêm ao caso dizer, transportaram-se ao Brasil, onde ficaram e morreram. Meu pai dizia que poucas mulheres tinha visto tão bonitas como minha avó. E olhem que ele amou as mais esplêndidas mulheres do mundo. Mas não antecipemos.

 

Tomou meu pai o hábito, no convento de Iguaraçu, onde ficou até 1639, ano em que os holandeses, ainda uma vez, assaltaram a povoação. Os frades deixaram precipitadamente o convento; meu pai, mais remisso do que os outros (ou já com o intento de deitar o hábito às urtigas), deixou-se ficar na cela, de maneira que os holandeses o foram achar no momento em que recolhia alguns livros pios e objetos de uso pessoal. Os holandeses não o trataram mal. Ele os regalou com o melhor da ucharia franciscana, onde a pobreza é de regra. Sendo uso daqueles frades alternarem-se no serviço da cozinha, meu pai entendia da arte, e esse talento foi mais um encanto ao aparecer do inimigo.

 

No fim de duas semanas, o oficial holandês ofereceu-lhe um salvo-conduto, para ir aonde lhe parecesse; mas meu pai não o aceitou logo, querendo primeiro considerar se devia ficar com os holandeses, e, à sombra deles desamparar a Ordem, ou se lhe era melhor buscar vida por si mesmo. Adotou o segundo alvitre, não só por ter o espírito aventureiro, curioso e audaz, como porque era patriota, e bom católico, apesar da repugnância à vida monástica, e não quisera misturar-se com o herege invasor. Aceitou o salvo-conduto e deixou Iguaraçu.

 

Não se lembrava ele, quando me contou essas coisas, não se lembrava mais do número de dias que despendeu sozinho por lugares ermos, fugindo de propósito ao povoado, não querendo ir a Olinda ou Recife, onde estavam os holandeses. Comidas as provisões que levava, ficou dependente de alguma caça silvestre e frutas. Deitara, com efeito, o hábito às urtigas; vestia uns calções flamengos, que o oficial lhe dera, e uma camisola ou jaquetão de couro. Para encurtar razões, foi ter a uma aldeia de gentio, que o recebeu muito bem, com grandes carinhos e obséquios. Meu pai era talvez o mais insinuante dos homens. Os índios ficaram embeiçados por ele, mormente o chefe, um guerreiro velho, bravo e generoso, que chegou a dar-lhe a filha em casamento. Já então minha avó era morta, e meu avô desterrado para a Holanda, notícias que meu pai teve, casualmente, por um antigo servo da casa. Deixou-se estar, pois, na aldeia, o gentio, até o ano de 1642, em que o guerreiro faleceu. Este caso do falecimento é que é maravilhoso: peço-lhes a maior atenção.

 

O coronel e o tabelião aguçaram os ouvidos, enquanto o Dr. Leão extraía pausadamente uma pitada e inseria-a no nariz, com a pachorra de quem está negaceando uma coisa extraordinária.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Uma noite, o chefe indígena, — chamava-se Pirajuá, — foi à rede de meu pai, anunciou-lhe que tinha de morrer, pouco depois de nascer o sol, e que ele estivesse pronto para acompanhá-lo fora, antes do momento último. Meu pai ficou alvoroçado, não por lhe dar crédito, mas por supô-lo delirante. Sobre amadrugada, o sogro veio ter com ele.

 

— Vamos, disse-lhe.

 

— Não, agora não: estás fraco, muito fraco...

 

— Vamos! repetiu o guerreiro.

 

E, à luz de uma fogueira expirante, viu-lhe meu pai a expressão intimativa do rosto, e um certo ar diabólico, em todo caso extraordinário, que o aterrou. Levantou-se, acompanhou-o na direção de um córrego. Chegando ao córrego, seguiram pela margem esquerda, acima, durante um tempo que meu pai calculou ter sido um quarto de hora. A madrugada acentuava-se; a lua fugia diante dos primeiros anúncios do sol. Contudo, e apesar da vida do sertão que meu pai levava desde alguns tempos, a aventura assustava-o; seguia vigiando o sogro, com receio de alguma traição. Pirajuá ia calado, com os olhos no chão, e a fronte carregada de pensamentos, que podiam ser cruéis ou somente tristes. E andaram, andaram, até que Pirajuá disse:

 

— Aqui.

 

Estavam diante de três pedras, dispostas em triângulo. Pirajuá sentou-se numa, meu pai noutra. Depois de alguns minutos de descanso:

 

— Arreda aquela pedra, disse o guerreiro, apontando para a terceira, que era a maior.

 

Meu pai levantou-se e foi à pedra. Era pesada, resistiu ao primeiro impulso; mas meu pai teimou, aplicou todas as forças, a pedra cedeu um pouco, depois mais, enfim foi removida do lugar.

 

— Cava o chão, disse o guerreiro.

 

Meu pai foi buscar uma lasca de pau, uma taquara ou não sei que, e começou a cavar o chão. Já então estava curioso de ver o que era. Tinha-lhe nascido uma idéia, — algum tesouro enterrado, que o guerreiro, receoso de morrer, quisesse entregar-lhe. Cavou, cavou, cavou, até que sentiu um objeto rijo; era um vaso tosco, talvez uma igaçaba. Não o tirou, não chegou mesmo a arredar a terra em volta dele. O guerreiro aproximou-se, desatou o pedaço de couro de anta que lhe cobria a boca, meteu dentro o braço, e tirou um boião. Este boião tinha a boca tapada com outro pedaço de couro.

 

— Vem cá, disse o guerreiro.

 

Sentaram-se outra vez. O guerreiro tinha o boião sobre os joelhos, tapado, misterioso, aguçando a curiosidade de meu pai, que ardia por saber o que havia ali dentro.

 

— Pirajuá vai morrer, disse ele; vai morrer para nunca mais. Pirajuá ama guerreiro branco, esposo de Maracujá, sua filha; e vai mostrar um segredo como não há outro.

 

Meu pai estava trêmulo. O guerreiro desatou lentamente o couro que tapava o boião. Destapado, olhou para dentro, levantou-se, e veio mostrá-lo a meu pai. Era um líquido amarelado, de um cheiro acre e singular.

 

— Quem bebe isto, um gole só, nunca mais morre.

 

— Oh! bebe, bebe! exclamou meu pai com vivacidade.

 

Foi um movimento de afeto, um ato irrefletido de verdadeira amizade filial, porque só um instante depois é que meu pai advertiu que não tinha, para crer na notícia que o sogro lhe dava, senão a palavra do mesmo sogro, cuja razão supunha perturbada pela moléstia. Pirajuá sentiu o espontâneo da palavra de meu pai, e agradeceu-lha; mas abanou a cabeça.

 

— Não, disse ele; Pirajuá não bebe, Pirajuá quer morrer. Está cansado, viu muita lua, muita lua. Pirajuá quer descansar na terra, está aborrecido. Mas Pirajuá quer deixar este segredo a guerreiro branco; está aqui; foi feito por um velho pajé de longe, muito longe... Guerreiro branco bebe, não morre mais.

 

Dizendo isto, tornou a tapar a boca do boião, e foi metê-lo outra vez dentro da igaçaba. Meu pai fechou depois a boca da mesma igaçaba, e repôs a pedra em cima. O primeiro clarão do sol vinha apontando. Voltaram para casa depressa; antes mesmo de tomar a rede, Pirajuá faleceu.

 

Meu pai não acreditou na virtude do elixir. Era absurdo supor que um tal líquido pudesse abrir uma exceção na lei da morte. Era naturalmente algum remédio, se não fosse algum veneno; e neste caso, a mentira do índio estava explicada pela turvação mental que meu pai lhe atribuiu. Mas, apesar de tudo, nada disse aos demais índios da aldeia, nem à própria esposa. Calou-se; — nunca me revelou o motivo do silêncio: creio que não podia ser outro senão o próprio influxo do mistério.

 

Tempos depois, adoeceu, e tão gravemente que foi dado por perdido. O curandeiro do lugar anunciou a Maracujá que ia ficar viúva. Meu pai não ouviu a notícia, mas leu-a em uma página de lágrimas, no rosto da consorte, e sentiu em si mesmo que estava acabado. Era forte, valoroso, capaz de encarar todos os perigos; não se aterrou, pois, com a idéia de morrer, despediu-se dos vivos, fez algumas recomendações e preparou-se para a grande viagem.

 

Alta noite, lembrou-se do elixir, e perguntou a si mesmo se não era acertado tentá-lo. Já agora a morte era certa, que perderia ele com a experiência? A ciência de um século não sabia tudo; outro século vem e passa adiante. Quem sabe, dizia ele consigo, se os homens não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta mesma droga selvática? O primeiro que curou a febre maligna fez um prodígio. Tudo é incrível antes de divulgado. E, pensando assim, resolveu transportar-se ao lugar da pedra, à margem do arroio; mas não quis ir de dia, com medo de ser visto. De noite, ergueu-se, e foi, trôpego, vacilante, batendo o queixo. Chegou à pedra, arredou-a, tirou o boião, e bebeu metade do conteúdo. Depois sentou-se para descansar. Ou o descanso, ou o remédio, alentou-o logo. Ele tornou a guardar o boião; daí a meia hora estava outra vez na rede. Na seguinte manhã estava bom...

 

— Bom de todo? perguntou o tabelião João Linhares, interrompendo o narrador.

 

— De todo.

 

— Era algum remédio para febre...

 

— Foi isto mesmo o que ele pensou, quando se viu bom. Era algum remédio para febre e outras doenças; e nisto ficou; mas, apesar do efeito da droga, não a descobriu a ninguém. Entretanto, os anos passaram, sem que meu pai envelhecesse; qual era no tempo da moléstia, tal ficou. Nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. Moço, perpetuamente moço. A vida do mato começara a aborrecê-lo; ficara ali por gratidão ao sogro; as saudades da civilização vieram tomá-lo. Um dia, a aldeia foi invadida por uma horda de índios de outra, não se sabe por que motivo, nem importa ao nosso caso. Na luta pereceram muitos, meu pai foi ferido, e fugiu para o mato. No dia seguinte veio à aldeia, achou a mulher morta. As feridas eram profundas; curou-as com o emprego de remédios usuais; e restabeleceu-se dentro de poucos dias. Mas os sucessos confirmaram-no no propósito de deixar a vida semi-selvagem e tornar à vida civilizada e cristã. Muitos anos se tinham passado depois da fuga do convento de Iguaraçu; ninguém mais o reconheceria. Um dia de manhã deixou a aldeia, com o pretexto de ir caçar; foi primeiro ao arroio, desviou a pedra, abriu a igaçaba, tirou o boião, onde deixara um resto do elixir. A idéia dele era fazer analisar a droga na Europa, ou mesmo em Olinda ou no Recife, ou na Bahia, por algum entendido em coisas de química e farmácia. Ao mesmo tempo não podia furtar-se a um sentimento de gratidão; devia àquele remédio a saúde. Com o boião ao lado, a mocidade nas pernas e a resolução no peito, saiu dali, caminho de Olinda e da eternidade.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

— Não posso demorar-me em pormenores, disse o Dr. Leão aceitando o café que o coronel mandara trazer. São quase dez horas...

 

— Que tem? perguntou o coronel. A noite é nossa; e, para o que temos de fazer amanhã, podemos dormir quando bem nos parecer. Eu por mim não tenho sono. E você, Sr. João Linhares?

 

— Nem um pingo, respondeu o tabelião.

 

E teimou com o Dr. Leão para contar tudo, acrescentando que nunca ouvira nada tão extraordinário. Note-se que o tabelião presumia ser lido em histórias antigas, e passava na vila por um dos homens mais ilustrados do Império; não obstante, estava pasmado. Ele contou ali mesmo, entre dois goles de café, o caso de Matusalém, que viveu novecentos e sessenta e nove anos, e o de Lameque que morreu com setecentos e setenta e sete; mas, explicou logo, porque era um espírito forte, que esses e outros exemplos da cronologia hebraica não tinham fundamento científico...

 

— Vamos, vamos ver agora o que aconteceu a seu pai, interrompeu o coronel.

 

O vento, de esfalfado, morrera; e a chuva começava a rufar nas folhas das árvores, a princípio com intermitências, depois mais contínua e basta. A noite refrescou um pouco. O Dr. Leão continuou a narração, e, apesar de dizer que não podia demorar-se nos pormenores, contou-os com tanta miudeza, que não me atrevo a pô-los tais quais nestas páginas; seria fastidioso. O melhor é resumi-lo.

 

Rui de Leão, ou antes Rui Garcia de Meireles e Castro Azevedo de Leão, que assim se chamava o pai do médico, pouco tempo se demorou em Pernambuco. Um ano depois, em 1654, cessava o domínio holandês. Rui de Leão assistiu às alegrias da vitória, e passou-se ao reino, onde casou com uma senhora nobre de Lisboa. Teve um filho; e perdeu o filho e a mulher no mesmo mês de março de 1661. A dor que então padeceu foi profunda; para distrair-se visitou a França e a Holanda. Mas na Holanda, ou por motivo de uns amores secretos, ou por ódio de alguns judeus descendentes ou naturais de Portugal, com quem entreteve relações comerciais na Haia, ou enfim por outros motivos desconhecidos, Rui de Leão não pôde viver tranqüilo muito tempo; foi preso e conduzido para a Alemanha, de onde passou à Hungria, a algumas cidades italianas, à França, e finalmente à Inglaterra. Na Inglaterra estudou o inglês profundamente; e, como sabia o latim, aprendido no convento, o hebraico, que lhe ensinara na Haia o famoso Spinoza, de quem foi amigo, e que talvez deu causa ao ódio que os outros judeus lhe criaram; — o francês e o italiano, parte do alemão e do húngaro, tornou-se em Londres objeto de verdadeira curiosidade e veneração. Era buscado, consultado, ouvido, não só por pessoas do vulgo ou idiotas, como por letrados, políticos e personagens da Corte.

 

Convém dizer que em todos os países por onde andara tinha ele exercido os mais contrários ofícios: soldado, advogado, sacristão, mestre de dança, comerciante e livreiro. Chegou a ser agente secreto da Áustria, guarda pontifício e armador de navios. Era ativo, engenhoso, mas pouco persistente, a julgar pela variedade das coisas que empreendeu; ele, porém, dizia que não, que a sorte é que sempre lhe foi adversa. Em Londres, onde o vemos agora, limitou-se ao mister de letrado e gamenho; mas não tardou que voltasse a Haia, onde o esperavam alguns dos amores velhos, e não poucos recentes.

 

Que o amor, força é dizê-lo, foi uma das causas da vida agitada e turbulenta do nosso herói. Ele era pessoalmente um homem galhardo, insinuante, dotado de um olhar cheio de força e magia. Segundo ele mesmo contou ao filho, deixou muito longe o algarismo dom-juanesco das mille e tre. Não podia dizer o número exato das mulheres a quem amara, em todas as latitudes e línguas, desde a selvagem Maracujá de Pernambuco, até à bela cipriota ou à fidalga dos salões de Paris e Londres; mas calculava em não menos de cinco mil mulheres. Imagina-se facilmente que uma tal multidão devia conter todos os gêneros possíveis da beleza feminil: loiras, morenas, pálidas, coradas, altas, meãs, baixinhas, magras ou cheias, ardentes ou lânguidas, ambiciosas, devotas, lascivas, poéticas, prosaicas, inteligentes, estúpidas; — sim, também estúpidas, e era opinião dele que a estupidez das mulheres tinha o sexo feminino, era graciosa, ao contrário da dos homens, que participava da aspereza viril.

 

— Há casos, dizia ele, em que uma mulher estúpida tem o seu lugar.

 

Na Haia, entre os novos amores, deparou-se-lhe um que o prendeu por longo tempo: lady Emma Sterling, senhora inglesa, ou antes escocesa, pois descendia de uma família de Dublin. Era formosa, resoluta, e audaz; — tão audaz que chegou a propor ao amante uma expedição a Pernambuco para conquistar a capitania, e aclamarem-se reis do novo Estado. Tinha dinheiro, podia levantar muito mais, chegou mesmo a sondar alguns armadores e comerciantes, e antigos militares que ardiam por uma desforra. Rui de Leão ficou aterrado com a proposta da amante, e não lhe deu crédito; mas lady Ema insistiu e mostrou-se tão de rocha, que ele reconheceu enfim achar-se diante de uma ambiciosa verdadeira. Era, todavia, homem de senso; viu que a empresa, por mais bem organizada que fosse, não passaria de tentativa desgraçada; disse-lho a ela; mostrou-lhe que, se a Holanda inteira tinha recuado, não era fácil que um particular chegasse a obter ali domínio seguro, nem ainda instantâneo. Lady Ema abriu mão do plano, mas não perdeu a idéia de o exalçar a alguma grande situação.

 

— Tu serás rei ou duque...

 

— Ou cardeal, acrescentava ele rindo.

 

— Por que não cardeal?

 

Lady Ema fez com que Rui de Leão entrasse daí a pouco na conspiração que deu em resultado a invasão da Inglaterra, a guerra civil, e a morte enfim dos principais cabos da rebelião. Vencida esta, lady Ema não deu por vencida. Ocorreu-lhe então uma idéia espantosa. Rui de Leão inculcava ser o próprio pai do duque de Monmouth, suposto filho natural de Carlos II, e caudilho principal dos rebeldes. A verdade é que eram parecidos como duas gotas d’água. Outra verdade é que lady Ema, por ocasião da guerra civil, tinha o plano secreto de fazer matar o duque, se ele triunfasse, e substituí-lo pelo amante, que assim subiria ao trono de Inglaterra. O pernambucano, escusado é dizê-lo, não soube de semelhante aleivosia, nem lhe daria o seu assentimento. Entrou na rebelião, viu-a perecer ao sangue e no suplício, e tratou de esconder-se. Ema acompanhou-o; e, como a esperança do cetro não lhe saía do coração, passado algum tempo fez correr que o duque não morrera, mas sim um amigo tão parecido com ele, e tão dedicado, que o substituiu no suplício.

 

— O duque está vivo, e dentro de pouco aparecerá ao nobre povo da Grã-Bretanha, sussurrava ela aos ouvidos.

 

Quando Rui de Leão efetivamente apareceu, a estupefação foi grande, o entusiasmo reviveu, o amor deu alma a uma causa, que o carrasco supunha ter acabado na Torre de Londres. Donativos, presentes, armas, defensores, tudo veio às mãos do audaz pernambucano, aclamado rei, e rodeado logo de um troço de varões resolutos a morrer pela mesma causa.

 

— Meu filho, — disse ele, século e meio depois, ao médico homeopata, — dependeu de muito pouco não teres nascido príncipe de Gales... Cheguei a dominar cidades e vilas, expedi leis, nomeei ministros, e, ainda assim, resisti a duas ou três sedições militares que pediam a queda dos dois últimos gabinetes. Tenho para mim que as dissensões internas ajudaram as forças legais, e devo-lhes a minha derrota. Ao cabo, não me zanguei com elas; a luta fatigara-me; não minto dizendo que o dia da minha captura foi para mim de alívio. Tinha visto, além da primeira, duas guerras civis, uma dentro da outra, uma cruel, outra ridícula, ambas insensatas. Por outro lado, vivera muito, e uma vez que me não executassem, que me deixassem preso ou me exilassem para os confins da terra, não pedia nada mais aos homens, ao menos durante alguns séculos... Fui preso, julgado e condenado à morte. Dos meus auxiliares não poucos negaram tudo; creio mesmo que um dos principais morreu na Câmara dos Lords. Tamanha ingratidão foi um princípio de suplício. Ema, não; essa nobre senhora não me abandonou; foi presa, condenada, e perdoada; mas não me abandonou. Na véspera de minha execução, veio ter comigo, e passamos juntos as últimas horas. Disse-lhe que não me esquecesse, dei-lhe uma trança de cabelos, pedi-lhe que perdoasse ao carrasco... Ema prorrompeu em soluços; os guardas vieram buscá-la. Ficando só, recapitulei a minha vida, desde Iguaraçu até a Torre de Londres. Estávamos então em 1686; tinha eu oitenta e seis anos, sem parecer mais de quarenta. A aparência era a da eterna juventude; mas o carrasco ia destruí-la num instante. Não valia a pena ter bebido metade do elixir e guardado comigo o misterioso boião, para acabar tragicamente no cepo do cadafalso... Tais foram as minhas idéias naquela noite. De manhã preparei-me para a morte. Veio o padre, vieram os soldados, e o carrasco. Obedeci maquinalmente. Caminhamos todos, subi ao cadafalso, não fiz discurso; inclinei o pescoço sobre o cepo, o carrasco deixou cair a arma, senti uma dor penetrante, uma angústia enorme, como que a parada súbita do coração; mas essa sensação foi tão grande como rápida; no instante seguinte tornara ao estado natural. Tinha no pescoço algum sangue, mas pouco e quase seco. O carrasco recuou, o povo bramiu que me matassem. Inclinaram-me a cabeça, e o carrasco, fazendo apelo a todos os seus músculos e princípios, descarregou outro golpe, e maior, se é possível, capaz de abrir-me ao mesmo tempo a sepultura, como já se disse de um valente. A minha sensação foi igual à primeira na intensidade e na brevidade; reergui a cabeça. Nem o magistrado nem o padre consentiram que se desse outro golpe. O povo abalou-se, uns chamaram-me santo, outros diabo, e ambas essas opiniões eram defendidas nas tabernas à força de punho e de aguardente. Diabo ou santo, fui presente aos médicos da corte. Estes ouviram o depoimento do magistrado, do padre, do carrasco, de alguns soldados, e concluíram que, uma vez dado o golpe, os tecidos do pescoço ligavam-se outra vez rapidamente, e assim os mesmos ossos, e não chegavam a explicar um tal fenômeno. Pela minha parte, em vez de contar o caso do elixir, calei-me; preferi aproveitar as vantagens do mistério. Sim, meu filho; não imaginas a impressão de toda a Inglaterra, os bilhetes amorosos que recebi das mais finas duquesas, os versos, as flores, os presentes, as metáforas. Um poeta chamou-me Anteu. Um jovem protestante demonstrou-me que eu era o mesmo Cristo.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

O narrador continuou:

 

— Já vêem, pelo que lhes contei, que não acabaria hoje nem em toda esta semana, se quisesse referir miudamente a vida inteira de meu pai. Algum dia o farei, mas por escrito, e cuido que a obra dará cinco volumes, sem contar os documentos...

 

— Que documentos? perguntou o tabelião.

 

— Os muitos documentos comprobatórios que possuo, títulos, cartas, traslados de sentenças, de escrituras, cópias de estatísticas... Por exemplo, tenho uma certidão do recenseamento de um certo bairro de Gênova, onde meu pai morreu em 1742; traz o nome dele, com declaração do lugar em que nasceu...

 

— E com a verdadeira idade? perguntou o coronel.

 

— Não. Meu pai andou sempre entre os quarenta e os cinqüenta. Chegando aos cinqüenta, cinqüenta e poucos, voltava para trás; — e era-lhe fácil fazer isto, porque não esquentava lugar; vivia cinco, oito, dez, doze anos numa cidade, e passava a outra... Pois tenho muitos documentos que juntarei, entre outros, o testamento de lady Ema, que morreu pouco depois da execução gorada de meu pai. Meu pai dizia-me que entre as muitas saudades que a vida lhe ia deixando, lady Ema era das mais fortes e profundas. Nunca viu mulher mais sublime, nem amor mais constante, nem dedicação mais cega. E a morte confirmou a vida, porque o herdeiro de lady Ema foi meu pai. Infelizmente, a herança teve outros reclamantes, e o testamento entrou em processo. Meu pai, não podendo residir em Inglaterra, concordou na proposta de um amigo providencial que veio a Lisboa dizer-lhe que tudo estava perdido; quando muito poderia salvar um restozinho de nada, e ofereceu-lhe por esse direito problemático uns dez mil cruzados. Meu pai aceitou-os; mas, tão caipora que o testamento foi aprovado, e a herança passou às mãos do comprador...

 

— E seu pai ficou pobre...

 

— Com os dez mil cruzados, e pouco mais que apurou. Teve então idéia de meter-se no negócio de escravos; obteve privilégio, armou um navio, e transportou africanos para o Brasil. Foi a parte da vida que mais lhe custou; mas afinal acostumou-se às tristes obrigações de um navio negreiro. Acostumou-se, e enfarou-se, que era outro fenômeno na vida dele. Enfarava-se dos ofícios. As longas solidões do mar alargaram-lhe o vazio interior. Um dia refletiu, e perguntou a si mesmo, se chegaria a habituar-se tanto à navegação, que tivesse de varrer o oceano, por todos os séculos dos séculos. Criou medo; e compreendeu que o melhor modo de atravessar a eternidade era variá-la...

 

— Em que ano ia ele?

 

— Em 1694; fins de 1694.

 

— Veja só! Tinha então noventa e quatro anos, não era? Naturalmente, moço...

 

— Tão moço que casou daí a dois anos, na Bahia, com uma bela senhora que...

 

— Diga.

 

— Digo, sim; porque ele mesmo me contou a história. Uma senhora que amou a outro. E que outro! Imaginem que meu pai, em 1695, entrou na conquista da famosa república dos Palmares. Bateu-se como um bravo, e perdeu um amigo, um amigo íntimo, crivado de balas, pelado...

 

— Pelado?

 

— É verdade; os negros defendiam-se também com água fervendo, e este amigo recebeu um pote cheio; ficou uma chaga. Meu pai contava-me esse episódio com dor, e até com remorso, porque, no meio da refrega, teve de pisar o pobre companheiro; parece até que ele expirou quando meu pai lhe metia as botas na cara...

 

O tabelião fez uma careta; e o coronel, para disfarçar o horror, perguntou o que tinha a conquista dos Palmares com a mulher que...

 

— Tem tudo, continuou o médico. Meu pai, ao tempo que via morrer um amigo, salvara a vida de um oficial, recebendo ele mesmo uma flecha no peito. O caso foi assim. Um dos negros, depois de derrubar dois soldados, envergou o arco sobre a pessoa do oficial, que era um rapaz valente e simpático, órfão de pai, tendo deixado a mãe em Olinda... Meu pai compreendeu que a flecha não lhe faria mal a ele, e então, de um salto, interpôs-se. O golpe feriu-o no peito; ele caiu. O oficial, Damião... Damião de tal. Não digo o nome todo, porque ele tem alguns descendentes para as bandas de Minas. Damião basta. Damião passou a noite ao pé da cama de meu pai, agradecido, dedicado, louvando-lhe uma ação tão sublime. E chorava. Não podia suportar a idéia de ver morrer o homem que lhe salvara a vida por um modo tão raro. Meu pai sarou depressa, com pasmo de todos. A pobre mãe do oficial quis beijar-lhe as mãos: — “Basta-me um prêmio, disse ele; a sua amizade e a do seu filho”. O caso encheu de pasmo Olinda inteira. Não se falava em outra coisa; e daí a algumas semanas a admiração pública trabalhava em fazer uma lenda. O sacrifício, como vêem, era nenhum, pois meu pai não podia morrer; mas o povo, que não sabia disso, buscou uma causa ao sacrifício, uma causa tão grande como ele, e descobriu que o Damião devia ser filho de meu pai, e naturalmente filho adúltero. Investigaram o passado da viúva; acharam alguns recantos que se perdiam na obscuridade. O rosto de meu pai entrou a parecer conhecido de alguns; não faltou mesmo quem afirmasse ter ido a uma merenda, vinte anos antes, em casa da viúva, que era então casada, e visto aí meu pai. Todas estas patranhas aborreceram tanto a meu pai, que ele determinou passar à Bahia, onde casou...

 

— Com a tal senhora?

 

— Justamente... Casou com D. Helena, bela como o sol, dizia ele. Um ano depois morria em Olinda a viúva, e o Damião vinha à Bahia trazer a meu pai uma madeixa dos cabelos da mãe, e um colar que a moribunda pedia para ser usado pela mulher dele. D. Helena soube do episódio da flecha, e agradeceu a lembrança da morta. Damião quis voltar para Olinda; meu pai disse-lhe que não, que fosse no ano seguinte. Damião ficou. Três meses depois uma paixão desordenada... Meu pai soube da aleivosia de ambos, por um comensal da casa. Quis matá-los; mas o mesmo que os denunciou avisou-os do perigo, e eles puderam evitar a morte. Meu pai voltou o punhal contra si, e enterrou-o no coração.

 

“Filho, dizia-me ele, contando o episódio; dei seis golpes, cada um dos quais bastava para matar um homem, e não morri.” Desesperado saiu de casa, e atirou-se ao mar. O mar restituiu-o à terra. A morte não podia aceitá-lo: ele pertencia à vida por todos os séculos. Não teve outro recurso mais do que fugir; veio para o Sul, onde alguns anos depois, no princípio do século passado, podemos achá-lo na descoberta das minas. Era um modo de afogar o desespero, que era grande, pois amara muito a mulher, como um louco...

 

— E ela?

 

— São contos largos, e não me sobra tempo. Ela veio ao Rio de Janeiro, depois das duas invasões francesas; creio que em 1713. Já então meu pai enriquecera com as minas, e residia na cidade fluminense, benquisto, com idéias até de ser nomeado governador. D. Helena apareceu-lhe, acompanhada da mãe e de um tio. Mãe e tio vieram dizer-lhe que era tempo de acabar com a situação em que meu pai tinha colocado a mulher. A calúnia pesara longamente sobre a vida da pobre senhora. Os cabelos iam-lhe embranquecendo: não era só a idade que chegava, eram principalmente os desgostos, as lágrimas. Mostraram-lhe uma carta escrita pelo comensal denunciante, pedindo perdão a D. Helena da calúnia que lhe levantara e confessando que o fizera levado de uma criminosa paixão. Meu pai era uma boa alma; aceitou a mulher, a sogra e o tio. Os anos fizeram o seu ofício; todos três envelheceram, menos meu pai. Helena ficou com a cabeça toda branca; a mãe e o tio voavam para a decrepitude; e nenhum deles tirava os olhos de meu pai, espreitando as cãs que não vinham, e as rugas ausentes. Um dia meu pai ouviu-lhes dizer que ele devia ter parte com o diabo. Tão forte! E acrescentava o tio: “De que serve o testamento, se temos de ir antes?” Duas semanas depois morria o tio; a sogra acabou pateta, daí a um ano. Restava a mulher, que pouco mais durou.

 

— O que me parece, aventurou o coronel, é que eles vieram ao cheiro dos cobres...

 

— Decerto.

 

— ... e que a tal D. Helena (Deus lhe perdoe!) não estava tão inocente como dizia. É verdade que a carta do denunciante...

 

— O denunciante foi pago para escrever a carta, explicou o Dr. Leão; meu pai soube disso, depois da morte da mulher, ao passar pela Bahia... Meia-noite! Vamos dormir; é tarde; amanhã direi o resto.

 

— Não, não, agora mesmo.

 

— Mas, senhores... Só se for muito por alto.

 

— Seja por alto.

 

O doutor levantou-se e foi espiar a noite, estendendo o braço para fora, e recebendo alguns pingos de chuva na mão. Depois voltou-se e deu com os dois olhando um para o outro, interrogativos. Fez lentamente um cigarro, acendeu-o, e, puxadas umas três fumaças, concluiu a singular história.

 

 

 

CAPÍTULO VI

 

— Meu pai deixou pouco depois o Brasil, foi a Lisboa, e dali passou-se à Índia, onde se demorou mais de cinco anos, e donde voltou a Portugal, com alguns estudos feitos acerca daquela parte do mundo. Deu-lhes a última lima, e fê-los imprimir, tão a tempo, que o governo mandou-o chamar para entregar-lhe o governo de Goa. Um candidato ao cargo, logo que soube do caso, pôs em ação todos os meios possíveis e impossíveis. Empenhos, intrigas, maledicência, tudo lhe servia de arma. Chegou a obter, por dinheiro, que um dos melhores latinistas da península, homem sem escrúpulos, forjasse um texto latino da obra de meu pai, e o atribuísse a um frade agostinho, morto em Adém. E a tacha de plagiário acabou de eliminar meu pai, que perdeu o governo de Goa, o qual passou às mãos do outro; perdendo também, o que é mais, toda a consideração pessoal. Ele escreveu uma longa justificação, mandou cartas para a Índia, cujas respostas não esperou, porque no meio desses trabalhos, aborreceu-se tanto, que entendeu melhor deixar tudo, e sair de Lisboa. Esta geração passa, disse ele, e eu fico. Voltarei cá daqui a um século, ou dois.

 

— Veja isto, interrompeu o tabelião, parece coisa de caçoada! Voltar daí a um século — ou dois, como se fosse um ou dois meses. Que diz, “seu” coronel?

 

— Ah! eu quisera ser esse homem! É verdade que ele não voltou um século depois... Ou voltou?

 

— Ouça-me. Saiu dali para Madri, onde esteve de amores com duas fidalgas, uma delas viúva e bonita como o sol, a outra casada, menos bela, porém amorosa e terna como uma pomba-rola. O marido desta chegou a descobrir o caso, e não quis bater-se com meu pai, que não era nobre; mas a paixão do ciúme e da honra levou esse homem ofendido à prática de uma aleivosia, igual à outra: mandou assassinar meu pai; os esbirros deram-lhe três punhaladas e quinze dias de cama. Restabelecido, deram-lhe um tiro; foi o mesmo que nada. Então, o marido achou um meio de eliminar meu pai; tinha visto com ele alguns objetos, notas, e desenhos de coisas religiosas da Índia, e denunciou-o ao Santo Ofício, como dado a práticas supersticiosas. O Santo Ofício, que não era omisso nem frouxo nos seus deveres, tomou conta dele, e condenou-o a cárcere perpétuo. Meu pai ficou aterrado. Na verdade, a prisão perpétua para ele devia ser a coisa mais horrorosa do mundo. Prometeu, o mesmo Prometeu foi desencadeado... Não me interrompa, Sr. Linhares, depois direi quem foi esse Prometeu. Mas, repito: ele foi desencadeado, enquanto que meu pai estava nas mãos do Santo Ofício, sem esperança. Por outro lado, ele refletiu consigo que, se era eterno, não o era o Santo Ofício. O Santo Ofício há de acabar um dia, e os seus cárceres, e então ficarei livre. Depois, pensou também que, desde que passasse um certo número de anos, sem envelhecer nem morrer, tornar-se-ia um caso tão extraordinário, que o mesmo Santo Ofício lhe abriria as portas. Finalmente, cedeu a outra consideração. “Meu filho, disse-me ele, eu tinha padecido tanto naqueles longos anos de vida, tinha visto tanta paixão má, tanta miséria, tanta calamidade, que agradeci a Deus, o cárcere e uma longa prisão; e disse comigo que o Santo Ofício não era tão mau, pois que me retirava por algumas dezenas de anos, talvez um século, do espetáculo exterior...”

 

— Ora essa!

 

— Coitado! Não contava com a outra fidalga, a viúva, que pôs em campo todos os recursos de que podia dispor, e alcançou-lhe a fuga daí a poucos meses. Saíram ambos de Espanha, meteram-se em França, e passaram à Itália, onde meu pai ficou residindo por longos anos. A viúva morreu-lhe nos braços; e, salvo uma paixão que teve em Florença, por um rapaz nobre, com quem fugiu e esteve seis meses, foi sempre fiel ao amante. Repito, morreu-lhe nos braços, e ele padeceu muito, chorou muito, chegou a querer morrer também. Contou-me os atos de desespero que praticou; porque, na verdade, amara muito a formosa madrilena. Desesperado, meteu-se a caminho, e viajou por Hungria, Dalmácia, Valáquia; esteve cinco anos em Constantinopla; estudou o turco a fundo, e depois o árabe. Já lhes disse que ele sabia muitas línguas; lembra-me de o ver traduzir o padre-nosso em cinqüenta idiomas diversos. Sabia muito. E ciências! Meu pai sabia uma infinidade de coisas: filosofia, jurisprudência, teologia, arqueologia, química, física, matemáticas, astronomia, botânica; sabia arquitetura, pintura, música. Sabia o diabo.

 

— Na verdade...

 

— Muito, sabia muito. E fez mais do que estudar o turco; adotou o maometanismo. Mas deixou-o daí a pouco. Enfim, aborreceu-se dos turcos: era a sina dele aborrecer-se facilmente de uma coisa ou de um ofício. Saiu de Constantinopla, visitou outras partes da Europa, e finalmente passou-se a Inglaterra aonde não fora desde longos anos. Aconteceu-lhe aí o que lhe acontecia em toda a parte: achou todas as caras novas; e essa troca de caras no meio de uma cidade, que era a mesma deixada por ele, dava-lhe a impressão de uma peça teatral, em que o cenário não muda, e só mudam os atores. Essa impressão, que a princípio foi só de pasmo, passou a ser de tédio; mas agora, em Londres, foi outra coisa pior, porque despertou nele uma idéia, que nunca tivera, uma idéia extraordinária, pavorosa...

 

— Que foi?

 

— A idéia de ficar doido um dia. Imaginem: um doido eterno. A comoção que esta idéia lhe dava foi tal que quase enlouqueceu ali mesmo. Então lembrou-se de outra coisa. Como tinha o boião do elixir consigo, lembrou de dar o resto a alguma senhora ou homem, e ficariam os dois imortais. Sempre era uma companhia. Mas, como tinha tempo diante de si, não precipitou nada; achou melhor esperar pessoa cabal. O certo é que essa idéia o tranqüilizou... Se lhe contasse as aventuras que ele teve outra vez na Inglaterra, e depois em França, e no Brasil, onde voltou no vice-reinado do Conde de Resende, não acabava mais, e o tempo urge, além do que o Sr. Coronel está com sono...

 

— Qual sono!

 

— Pelo menos está cansado.

 

— Nem isso. Se eu nunca ouvi uma coisa que me interessasse tanto. Vamos; conte essas aventuras.

 

— Não; direi somente que ele achou-se em França por ocasião da revolução de 1789, assistiu a tudo, à queda e morte do rei, dos girondinos, de Danton, de Robespierre; morou algum tempo com Filinto Elísio, o poeta, sabem? Morou com ele em Paris; foi um dos elegantes do Diretório, deu-se com o primeiro Cônsul... Quis até naturalizar-se e seguir as armas e a política; podia ter sido um dos marechais do império, e pode ser até que não tivesse havido Waterloo. Mas ficou tão enjoado de algumas apostasias políticas, e tão indignado, que recusou a tempo. Em 1808 achamo-lo em viagem com a corte real para o Rio de Janeiro. Em 1822 saudou a independência; e fez parte da Constituinte; trabalhou no 7 de Abril; festejou a maioridade; há dois anos era deputado.

 

Neste ponto os dois ouvintes redobraram de atenção. Compreenderam que iam chegar ao desenlace, e não quiseram perder uma sílaba daquela parte da narração, em que iam saber da morte do imortal. Pela sua parte, o Dr. Leão parara um pouco; podia ser uma lembrança dolorosa; podia também ser um recurso para aguçar mais o apetite. O tabelião ainda lhe perguntou, se o pai não tinha dado a alguém o resto do elixir, como queria; mas o narrador não lhe respondeu nada. Olhava para dentro; enfim, terminou deste modo:

 

— A alma de meu pai chegara a um grau de profunda melancolia. Nada o contentava; nem o sabor da glória, nem o sabor do perigo, nem o do amor. Tinha então perdido minha mãe, e vivíamos juntos, como dois solteirões. A política perdera todos os encantos aos olhos dum homem que pleiteara um trono, e um dos primeiros do universo. Vegetava consigo; triste, impaciente, enjoado. Nas horas mais alegres fazia projetos para o século XX e XXIV, porque já então me desvendara todo o segredo da vida dele. Não acreditei, confesso; e imaginei que fosse alguma perturbação mental; mas as provas foram completas, e demais a observação mostrou-me que ele estava em plena saúde. Só o espírito, como digo, parecia abatido e desencantado. Um dia, dizendo-lhe eu que não compreendia tamanha tristeza, quando eu daria a alma ao diabo para ter a vida eterna, meu pai sorriu com uma tal expressão de superioridade, que me enterrou cem palmos abaixo do chão. Depois, respondeu que eu não sabia o que dizia; que a vida eterna afigurava-se-me excelente, justamente porque a minha era limitada e curta; em verdade, era o mais atroz dos suplícios. Tinha visto morrer todas as suas afeições; devia perder-me um dia, e todos os mais filhos que tivesse pelos séculos adiante. Outras afeições e não poucas o tinham enganado; e umas e outras, boas e más, sinceras e pérfidas, era-lhe forçoso repeti-las, sem trégua, sem um respiro ao menos, porquanto, a experiência não lhe podia valer contra a necessidade de agarrar-se a alguma coisa, naquela passagem rápida dos homens e das gerações. Era uma necessidade da vida eterna; sem ela, cairia na demência. Tinha provado tudo, esgotado tudo; agora era a repetição, a monotonia, sem esperanças, sem nada. Tinha de relatar a outros filhos, vinte ou trinta séculos mais tarde, o que me estava agora dizendo; e depois a outros, e outros, e outros, um não acabar mais nunca. Tinha de estudar novas línguas, como faria Aníbal, se vivesse até hoje: e para quê? para ouvir os mesmos sentimentos, as mesmas paixões... E dizia-me tudo isso, verdadeiramente abatido. Não parece esquisito? Enfim um dia, como eu fizesse a alguns amigos uma exposição do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos de meu pai um fogo desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram chamar-me ao quarto dele. Achei-o moribundo; disse-me então, com a língua trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto do elixir, e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a morte. E, dito isto, expirou.

 

O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que pensassem da famosa história; mas a seriedade do médico era tão profunda, que não havia duvidar. Creram no caso, e creram também definitivamente na homeopatia. Narrada a história a outras pessoas, não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros atribuíram-lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado por ambos de não poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a morte é, enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e não era inverossímil. Dou este problema aos estudiosos. Tal é o caso extraordinário, que há anos, com outro nome, e por outras palavras, contei a este bom povo, que provavelmente já os esqueceu a ambos.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 30 de abril de 2022

A IGREJA DO DIABO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A IGREJA DO DIABO

Machado de Assis

 

 

CAPÍTULO I

 

DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

 

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

 

II

ENTRE DEUS E O DIABO

 

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

 

 

Ill

A BOA NOVA AOS HOMENS

 

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

 

 

IV

FRANJAS E FRANJAS

 

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 29 de abril de 2022

IDENTIDADE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

IDENTIDADE

Machado de Assis

 

 

 

Convenhamos que o fenômeno da semelhança completa entre dois indivíduos não parentes é coisa mui rara, — talvez ainda mais rara que um mau poeta calado. Pela minha parte não achei nenhum. Tenho visto parecenças curiosas, mas nunca ao ponto de estabelecer identidade entre duas pessoas estranhas.

 

Na família as semelhanças são naturais; e isso que fazia pasmar ao bom Montaigne, não traz o menor espanto ao mais soez dos homens. Os Ausos, povo antigo, cujas mulheres eram comuns, tinham um processo sumário para restituir os filhos aos pais: era a semelhança que, ao cabo de três meses, apresentasse o menino com algum dos cidadãos. Vá por conta de Heródoto. A natureza era assim um tabelião muito mais seguro. Mas que entre dois indivíduos de família e casta diferentes (a não serem os Drômios e os Menecmas dos poetas) a igualdade das feições, da estatura, da fala, de tudo, seja tal que se não possam distinguir um do outro, é caso para ser posto em letra de forma, depois de ter vivido três mil anos em um papiro, achado em Tebas. Vá por conta do papiro.

 

***

 

Era uma vez um faraó, cujo nome se perdeu na noite das velhas dinastias, — mas suponhamos que se chamava Pha-Nohr. Teve notícia de que existia em certo lugar do Egito um homem tão parecido com ele que era difícil discriminá-los. A princípio ouviu a notícia com indiferença, mas, depois de uma grande melancolia que teve, achaque dos últimos tempos, lembrou-se de deputar três homens que fossem procurar esse milagre e trazê-lo ao paço.

 

— Dêem-lhe o que pedir; se tiver dívidas, quero que as paguem; se amar alguma mulher, que a traga consigo. O essencial é que esteja cá e depressa, ou eu mando executar os três.

 

A corte respirou jubilosa. Após vinte anos de governo, era a primeira ameaça de morte que saía da real boca. Toda ela aplaudiu a pena; alguns ousaram propor uma formalidade simbólica, — que, antes de executar os três emissários, se lhes cortassem os pés para significar a pouca diligência empregada em cumprir os recados do faraó. Este, porém, sorriu de um modo mui particular.

 

Não tardou que os emissários tornassem a Mênfis com o menecma do rei. Era um pobre escriba, por nome Bachtan, sem pais, nem mulher, nem filhos, nem dívidas, nem concubinas. A cidade e a corte ficaram alvoroçadas ao ver entrar o homem, que era a própria figura do faraó. Juntos, só se podiam reconhecer pelos vestidos, porque o escriba, se não tinha majestade e grandeza, trazia certo ar tranqüilo e nobre, que as supria. Eram mais que dois homens parecidos; eram dois exemplares de uma só pessoa; eles mesmos não se distinguiam mais que pela consciência da personalidade. Pha-Nohr aposentou o escriba em uma câmara pegada à sua, dizendo que era para um trabalho de interesse público; e ninguém mais o viu durante dois meses.

 

No fim desse tempo, Pha-Nohr, que instruíra o escriba em todas as matérias da administração, declarou-lhe uma noite que ia pô-lo no trono do Egito por algum tempo, meses ou anos. Bachtan ficou sem entender nada.

 

— Não entendes, escriba? O escriba agora sou eu. Tu és faraó. Fica aí com o meu nome, o meu poder e a minha figura. Não descobrirás a ninguém o segredo desta troca. Vou a negócios do Estado.

 

— Mas, senhor...

 

— Reinas ou morres.

 

Antes reinar. Bachtan obedeceu à ordem, mas suplicou ao rei que a demora não fosse muita; faria justiça, mas não tinha gosto ao poder, menos ainda nascera para governar o Egito. Trocaram de aposentos. O escriba rolou durante a noite inteira, sem achar cômodo, no leito da vindoura Cleópatra. De manhã, segundo o ajustado, foi o rei despedido com as vestes do escriba, dando-lhe o escriba, que fazia de faraó, algum dinheiro e muitas pedras preciosas. Dez guardas do paço acompanharam o ex-faraó até os subúrbios de uma cidade distante.

 

— Viva a vida! exclamou este, apenas perdeu de vista os soldados. Santo nome de Ísis e de Osíris! Viva a vida e a liberdade!

 

Ninguém, exceto o vento bochorno do Egito, ouviu essas primeiras palavras ditas por ele a todo o universo. O vento foi andando indiferente; mas o leitor, que não é vento, pede explicação delas. Quando menos, supõe que este homem é doido. Tal era também a opinião de alguns doutores; mas, graças ao regímen especialista da terra, outros queriam que o mal dele viesse do estômago, outros do ventre, outros do coração. Que mal? Uma coisa esquisita. Imagine-se que Pha-Nohr começara a governar com vinte e dois anos, tão alegre, expansivo e resoluto, que encantou a toda a gente; tinha idéias grandes, úteis e profundas. No fim, porém, de dois anos, mudou completamente de gênio. Tédio, desconfiança, aversão às pessoas, sarcasmos amiudados e, finalmente, umas crises melancólicas, que lhe levavam dias e dias. Durou isto dezoito anos.

 

Já sabemos que foi ao sair de uma daquelas crises que ele entregou o Egito ao escriba. A causa, porém, deste ato inexplicável é a mesma da singular troca de gênio. Pha-Nohr persuadira-se de que não podia conhecer o caráter nem o coração dos homens, através da linguagem curial, ataviada naturalmente, e que lhe parecia oblíqua, dúbia, sem vida própria nem contrastes. Vá que lhe não dissessem coisas rudes, nem ainda as verdades inteiras; mas, por que lhe não mostrariam a alma toda, menos esses desvãos secretos, que há em toda a casa? Desde que isto se lhe meteu em cabeça, caiu na ruim tristeza e longas hipocondrias; e, se lhe não aparece o menecma que pôs no trono, provavelmente morreria de desespero.

 

Agora tinha ímpetos de voar, de correr toda aquela abóbada de estanho que lá ficava acima dele, ou então ir conversar com os crocodilos, trepar aos hipopótamos, disputar as serpentes aos íbis. Pelo boi Ápis! pensava ele andando e gesticulando, ruim ofício era o meu. Cá levo agora a minha boa alegria e não a dou a troco de nada, nem do Egito nem de Babilônia.

 

***

 

— Charmion, quem será aquele homem que vem tão alegre? perguntou um tecelão, jantando à porta de casa com a mulher.

 

Charmion voltou os olhos cheios de mistérios do Nilo para o lado que o marido indicava. Pha-Nohr, logo que os viu, correu para eles. Era à entrada da cidade; podia ir buscar pousada e comida. Mas tão ansioso estava por sentir que não era rei e meter a mão nos corações e nos caracteres, que não hesitou em pedir-lhes algum bocado para matar a fome.

 

— Sou um pobre escriba, disse ele. Trago uma caixa de pedras preciosas, que me deu o faraó por achar que era parecido com ele; mas pedras não se comem.

 

— Comerás do nosso peixe e beberás do nosso vinho, disse-lhe o tecelão.

 

O vinho era ruim; o peixe fora mal crestado ao sol; mas para ele valiam mais que os banquetes de Mênfis, era o primeiro jantar da liberdade. Expandia-se o ex-faraó; ria, falava, interrogava, queria saber isto e aquilo, batia no ombro ao tecelão, e este ria-se também e contava-lhe tudo.

 

— A cidade é um covil de sacripantes; mais ruins que eles só os meus vizinhos aqui da entrada. Contarei a história de um ou dois e bastará para conhecer o resto.

 

Contou umas coisas juntamente ridículas e execráveis, que o hóspede ouviu aborrecido. Este, para desanojar-se, olhou para Charmion e notou que ela pouco mais fazia que fitá-lo com os seus grandes olhos cheios de mistérios do Nilo. Não amara a outra mulher; esta reduziu os seus quarenta e dois anos a vinte e cinco, ao passo que o tecelão prosseguia em dizer a má casta de vizinhos que a fortuna lhe dera. Uns perversos! e os que não eram perversos eram asnos, como um tal Phtataghuruh que...

 

“Que poder misterioso fez nascer tão linda criatura entre mecânicos?” dizia Pha-Nohr consigo.

 

Caiu a tarde. Pha-Nohr agradeceu o obséquio e quis ir-se embora; mas o tecelão não consentiu em deixá-lo; passaria ali a noite. Deu-lhe um bom aposento, ainda que pobre. Charmion foi adereçá-lo com as melhores coisas que tinha, deitando-lhe sobre a cama uma bonita colcha bordada — daquelas famosas colchas do Egito citadas por Salomão — e encheu-lhe o ar de aromas finíssimos. Era pobre, mas gostava do luxo.

 

Pha-Nohr deitou-se pensando nela. Era virtuoso; parecia-lhe que estava pagando mal os obséquios do marido e sacudia de si a imagem da moça. Os olhos, porém, ficavam; viu-os na escuridão, fitos nele, como dois fachos noturnos, e ouviu-lhe também a voz terna e súplice. Saltou da cama, os olhos desapareceram, mas a voz continuava, e, coisa extraordinária, intercalada com a do marido. Não podiam estar longe; colou o ouvido à parede. Ouviu que o tecelão propunha à mulher ficarem com a caixa das pedras preciosas do hóspede, indo buscá-la ao quarto; fariam depois alarido e diriam que eram ladrões. Charmion opunha-se; ele teimava, ela suplicava...

 

Pha-Nohr ficou embasbacado. Quem diria que o bom tecelão, tão obsequioso?... Não dormiu o resto da noite; gastou-a a andar e a agitar-se para que o homem lá não fosse. De manhã, dispôs-se a andar. O tecelão quis retê-lo, pediu-lhe um dia mais, ou dois, algumas horas; não alcançou nada. Charmion não ajudou o marido; trazia, porém, os mesmos olhos da véspera, fitos no hóspede, teimosos e enigmáticos. Pha-Nohr deu-lhe em lembrança uns brincos de cristal e um bracelete de ouro.

 

— Até um dia! murmurou-lhe ela ao ouvido.

 

Pha-Nohr entrou na cidade, achou pousada, deixou as suas coisas a bom recado e saiu para a rua. Morria por andar à toa, desconhecido, misturado à outra gente, falar e ouvir a todos, com franqueza, sem os atilhos do formalismo nem as composturas do paço. Toda a cidade estava em alvoroço, por causa da grande festa anual de Ísis. Grupos na rua, ou às portas, mulheres, homens, crianças, muito riso, muita conversa, uma algazarra de todos os diabos. Pha-Nohr ia a toda parte; foi ver aparelhar os barcos, entrou nos mercados, interrogando a todos. A linguagem era naturalmente rude, — às vezes obscena. No meio do tumulto recebeu alguns encontrões. Eram os primeiros, e mais lhe doeu a dignidade que a pessoa. Parece que chegou a desandar para casa; mas riu-se logo do melindre e tornou à multidão.

 

Na primeira rua em que entrou, viu duas mulheres que brigavam, agarradas uma à outra, com palavras e murros. Eram robustas e descaradas. Em volta, a gente fazia círculo, e animava-as, como se pratica ainda hoje com os cães. Pha-Nohr não pôde sofrer o espetáculo; primeiro, quis sair dali; mas tal pena teve das duas criaturas, que rompeu a multidão, penetrou no espaço em que elas estavam e separou-as. Resistiram; ele, não menos robusto, meteu-se de permeio. Então elas, vendo que não podiam ir uma à outra, despejaram nele a raiva; Pha-Nohr afasta-se, atravessa a multidão, elas perseguem-no, entre a risota pública, ele corre, elas correm, e, a pedrada e nome cru, o acompanham até longe. Uma das pedras feriu-lhe o pescoço.

 

“Vou-me daqui, pensou ele, entrando em casa. Em curando a ferida, embarco. Parece, na verdade, uma cidade de sacripantes.”

 

Nisto ouviu vozes na rua, e daí a pouco entrava-lhe em casa um magistrado acompanhado das duas mulheres e de umas vinte pessoas. As mulheres queixavam-se de que esse homem investira contra elas. As vinte pessoas juraram a mesma coisa. O magistrado ouviu a explicação de Pha-Nohr; e, dizendo este que a sua melhor defesa era a ferida que trazia no pescoço, retorquiu-lhe o magistrado que as duas agravadas naturalmente haviam de defender-se, e multou-o. Pha-Nohr, esquecendo a abdicação temporária, gritou que lhe prendessem o magistrado.

 

— Outra multa, respondeu este gravemente; e o ferido não teve mais que pagar para se não descobrir.

 

Estava em casa, triste e acabrunhado, quando viu entrar, daí a dois dias, a bela Charmion debulhada em lágrimas. Sabendo da aventura, desamparou tudo, casa e marido, para vir tratar dele. Doía-lhe muito? Queria que ela lhe bebesse o sangue da ferida, como o melhor vinho do Egito e do mundo? Trazia um pacote com os objetos de uso pessoal.

 

— Teu marido? perguntou Pha-Nohr.

 

— Meu marido és tu!

 

Pha-Nohr quis replicar; mas os olhos da moça encerravam, mais que nunca, todos os mistérios do Egito. Além dos mistérios, tinha ela um plano. Dissera ao marido que ia com uma família amiga à festa de Ísis, e foi assim que saiu de casa.

 

— Olha, concluiu, para mais captar-lhe a confiança, aqui trouxe o meu par de crótalos, com que uso acompanhar as danças e as flautas. Os barcos saem amanhã. Alugarás um e iremos, não a Busíris, mas ao lugar mais ermo e áspero, que será para mim o seio da própria Ísis divina.

 

Cegueira do amor, em vão Pha-Nohr quis recuar e dissuadi-la. Tudo ficou ajustado. Como precisassem dinheiro, saiu ele a vender duas pedras preciosas. Nunca soubera o valor de tais coisas; umas foram-lhe dadas, outras foram-lhe compradas pelos seus mordomos. Contudo, tal foi o preço que lhe ofereceu por elas o primeiro comprador, que ele voltou as costas, por mais que este o chamasse para fazer negócio. Chegou-se a outro e contou-lhe o que se dera com o primeiro.

 

— Como se há de impedir que os velhacos abusem da boa-fé dos homens de bem? disse este com voz melíflua.

 

E, depois de examinar as pedras, declarou que eram boas, e perguntou se o dono lhes tinha alguma afeição particular.

 

— Para mim, acrescentou, é fora de dúvida que a afeição que se tem a um objeto torna-o mais vendável. Não me pergunte a razão; é um mistério.

 

— Não tenho a estas nenhuma afeição particular, acudiu Pha-Nohr.

 

— Bem, deixe-me avaliá-las.

 

Calculou baixinho, olhando para o ar, e acabou oferecendo metade do valor das pedras. Era tão superior esta segunda oferta à primeira, que Pha-Nohr aceitou-a com grandes alegrias. Comprou um barco, de boa acácia, calafetado de fresco, e voltou à pousada, onde Charmion lhe ouviu toda a história.

 

— A consciência daquele homem, concluiu Pha-Nohr, é em si mesma uma rara pedra preciosa.

 

— Não digas isso, meu divino sol. As pedras valiam o dobro.

 

Pha-Nohr, indignado, quis ir ter com o homem; mas a formosa Charmion reteve-o, era tarde e inútil. Tinham de embarcar na manhã seguinte. Veio a manhã, embarcaram, e no meio de tantos barcos que iam a Busíris puderam eles escapar-se e foram dar à outra cidade distante, onde acharam casa estreita e graciosa, um ninho de amor.

 

— Viveremos aqui até à morte, disse-lhe a bela Charmion.

 

***

 

Já não era a pobre namorada sem adornos; podia agora desbancar as ricas donas de Mênfis. Jóias, finas túnicas, vasos de aromas, espelhos de bronze, alcatifas por toda a parte e mulheres que a servissem, umas do Egito, outras da Etiópia; mas a melhor jóia de todas, a melhor alcatifa, o melhor espelho és tu, dizia ela a Pha-Nohr.

 

Não faltaram também amigos nem amigas, por mais que quisessem viver reclusos. Entre os homens, havia dois mais particularmente aceitos a ambos, um velho letrado e um rapaz que andara por Babilônia e outras partes. Na conversação, era natural que Charmion e as amigas ouvissem com prazer as narrativas do moço. Pha-Nohr deleitava-se com as palestras do letrado.

 

Desde longos anos que este compunha um livro sobre as origens do Nilo; e, conquanto ninguém o tivesse lido, a opinião geral é que era admirável. Pha-Nohr quis ter a glória de ouvir-lhe algum trecho; o letrado levou-o à casa dele, um dia, aos primeiros raios do sol. Abria o livro por uma longa dissertação sobre a origem da terra e do céu; depois vinha outra sobre a origem das estações e dos ventos; outra sobre a origem dos ritos, dos oráculos e do sacerdócio. No fim de três horas, pararam, comeram alguma coisa e entraram na segunda parte, que tratava da origem da vida e da morte, matéria de tanta ponderação, que não acabou mais, porque a noite os tomou em meio. Pha-Nohr levantou-se desesperado.

 

— Amanhã continuaremos, disse o letrado; acabada esta parte, trato logo da origem dos homens, da origem dos reinos, da origem do Egito, da origem dos faraós, da minha própria origem, da origem das origens, e entramos na matéria particular do livro, que são as origens do Nilo, antecedendo-as, porém, das origens de todos os rios do universo. Mas que lhe parece o que li?

 

Pha-Nohr não pôde responder; saiu furioso. Na rua teve uma vertigem e caiu. Quando voltou a si, a lua clareava o caminho, ergueu-se a custo e foi para casa.

 

— Maroto! serpente! dizia ele. Se eu fosse rei, não me aborrecias mais de meia hora. Vã liberdade, que me condenas à escravidão!

 

E assim pensando, ia cheio de saudades de Mênfis, do poder que emprestara ao escriba e até dos homens que lhe falavam tremendo e aos quais fugira. Trocara tudo por nada... Aqui emendou-se. Charmion valia por tudo. Já lá iam meses que viviam juntos; os indiscretos é que lhe empanavam a felicidade. Murmurações de mulheres, disputas de homens eram realmente matéria estranha ao amor de ambos. Construiu novo plano de vida; deixariam aquela cidade, onde não podiam viver para si. Iriam para algum lugar pobre e de pouca gente. Para que luxo externo, amigos, conversações frívolas? E ele cantarolava, andando: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...”

 

Chegou à casa, correu ao aposento comum, para enxugar as lágrimas à bela Charmion. Não achou nada, nem a moça, nem as pedras preciosas, nem as jóias, túnicas, espelhos, muitas outras coisas de valia. Não achou sequer o moço viajante, que provavelmente, à força de falar de Babilônia, despertou na dama o desejo de irem visitá-la juntos...

 

Pha-Nohr chorou de raiva e de amor. Não dormiu; no dia seguinte indagou, mas ninguém sabia de nada. Vendeu os poucos móveis e tapetes que lhe ficaram, e foi para uma cidadezinha próxima, no mesmo distrito. Levava esperanças de encontrá-la. Estava abatido e lúgubre. Para ocupar o tempo e sarar do abalo, meteu-se a aprendiz de embalsamador. A morte me ajudará a suportar a vida, disse ele.

 

A casa era das mais célebres. Não embalsamava só os cadáveres das pessoas ricas, mas também os das menos abastadas e até da gente pobre. Como os preços de segunda e terceira classes eram os mesmos de outras partes, muitas famílias mandavam para ali os seus cadáveres, para que os embalsamassem com os das pessoas nobres. Pha-Nohr começou pela gente ínfima, cujo processo de embalsamamento era mais sumário. Notou logo que ele e os companheiros de classe eram vistos com desdém pelos embalsamadores da segunda classe; estes chegavam-se muito aos da primeira, mas os da primeira não faziam caso de uns nem de outros. Não se mortificou com isso. Sacar ou não os intestinos do cadáver, ingerir-lhe óleo de cedro ou vinho de palma, mirra e canela, era diferença de operação e de preço. Outra coisa o mortificou deveras.

 

Tinha ido ali buscar uma oficina de melancolia e deu com um bazar de chufas e anedotas. Certamente havia respeito, quando entrava uma encomenda; o cadáver era recebido com muitas atenções, gestos graves, caras lúgubres. Logo, porém, que os parentes o deixavam, recomeçavam as alegrias. As mulheres, se faleciam moças e bonitas, eram longamente vistas e admiradas por todos. A biografia dos mortos conhecidos era feita ali mesmo, lembrando este um caso, aquele outro. Operavam os corpos, gracejando, falando cada um dos seus negócios, planos, idéias, puxando daqui e dali, como se cortam sapatos. Pha-Nohr compreendeu que o uso encruara naquela gente a piedade e a sensibilidade.

 

“Talvez eu mesmo acabe assim”, pensou ele.

 

Deixou o ofício, depois de esperar algum tempo a ver se entrava o cadáver da bela Charmion. Exerceu outros, foi barbeiro, bateleiro, caçador de aves aquáticas. Cansado, exausto, aborrecido, apertaram-lhe as saudades do trono; resolveu tornar a Mênfis e ocupá-lo.

 

Toda a cidade, logo que o viu, clamou que era chegado o escriba parecido com o faraó, que ali estivera tempos atrás; e faziam-se grupos na rua e uma grande multidão o seguiu até ao paço.

 

— Muito parecido! exclamavam de um lado e de outro.

 

— Sim? perguntava Pha-Nohr, sorrindo.

 

— A única diferença, explicou-lhe um velho, é que o faraó está muito gordo.

 

Pha-Nohr estremeceu. Correu-lhe um frio pela espinha. Muito gordo? Era então impossível a permuta das pessoas. Deteve-se alguns instantes; mas acudiu-lhe logo ir assim mesmo ao paço, e, destronando o escriba, descobrir o segredo. Para que encobri-lo mais?

 

Entrou; a corte esperava-o, em redor do faraó, e reconheceu logo que era impossível agora confundi-los, à vista da diferença na grossura dos corpos; mas a cara, a fala, o gesto eram ainda os mesmos. Bachtan perguntou-lhe placidamente o que é que queria; Pha-Nohr sentiu-se rei e declarou-lhe que o trono.

 

— Sai daí, escriba, concluiu; o teu papel está acabado.

 

Bachtan riu-se para os outros, os outros riram-se e o paço estremeceu com a gargalhada universal. Pha-Nohr fechou as mãos e ameaçou a todos; mas a corte continuou a rir. Bachtan, porém, fez-se sério e declarou que esse homem sedicioso era um perigo para o Estado. Pha-Nohr foi ali mesmo preso, julgado e condenado à morte. Na manhã seguinte, cumpriu-se a sentença diante do faraó e grande multidão. Pha-Nohr morreu tranqüilo, rindo do escriba e de toda a gente, menos talvez de Charmion: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...” A multidão, logo que ele expirou, soltou uma formidável aclamação:

 

— Viva Pha-Nohr!

 

E Bachtan, sorrindo, agradeceu.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 28 de abril de 2022

IDEIAS DE CANÁRIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

IDEIAS DE CANÁRIO

Machado de Assis

 

 

 

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

No princípio do mês passado, - disse ele, - indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atualhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

- Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

- Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...

- Como - interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

- Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

- Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

- Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...

- Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

- Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

- O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

- As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

- Quero só o canário.

Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

Não tendo mais família que dous criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, - ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

- O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...

- Mas não o procuraram?

- Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

- Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...

- Que jardim? que repuxo?

- O mundo, meu querido.

- Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor.

O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...

- De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 27 de abril de 2022

A IDEIA DO EZEQUIEL MAIA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A IDEIA DO EZEQUIEL MAIA

Machado de Assis

 

 

 

A idéia do Ezequiel Maia era achar um mecanismo que lhe permitisse rasgar o véu ou revestimento ilusório que dá o aspecto material às coisas. Ezequiel era idealista. Negava abertamente a existência dos corpos. Corpo era uma ilusão do espírito, necessária aos fins práticos da vida, mas despida da menor parcela de realidade. Em vão os amigos lhe ofereciam finas viandas, mulheres deleitosas, e lhe pediam que negasse, se podia, a realidade de tão excelentes coisas. Ele lastimava, comendo, a ilusão da comida; lastimava-se a si mesmo, quando tinha ante si os braços magníficos de uma senhora. Tudo concepção do espírito; nada era nada. Esse mesmo nome de Maia não o tomou ele, senão como um símbolo. Primitivamente, chamava-se Nóbrega; mas achou que os hindus celebram uma deusa, mãe das ilusões, a que dão o nome de Maia, e tanto bastou para que trocasse por ele o apelido de família.

 

A opinião dos amigos e parentes era que este homem tinha o juízo a juros naquele banco invisível, que nunca paga os juros, e, quando pode, guarda o capital. Parece que sim; parece também que ele não tocou de um salto o fundo do abismo, mas escorregando, indo de uma restauração da cabala para outra da astrologia, da astrologia à quiromancia, da quiromancia à charada, da charada ao espiritismo, do espiritismo ao niilismo idealista. Era inteligente e lido; formara-se em matemáticas, e os professores desta ciência diziam que ele a conhecia como gente.

 

Depois de largo cogitar, achou Ezequiel um meio: abstrair-se pelo nariz. Consistia em fincar os olhos na extremidade do nariz, à maneira do faquir, embotando a sensibilidade ao ponto de perder toda a consciência do mundo exterior. Cairia então o véu ilusório das coisas; entrar-se-ia no mundo exclusivo dos espíritos. Dito e feito. Ezequiel metia-se em casa, sentava-se na poltrona, com as mãos espalmadas nos joelhos, e os olhos na ponta do nariz. Pela afirmação dele, a abstração operava-se em vinte minutos, e poderia fazer-se mais cedo, se ele não tivesse o nariz tão extenso. A inconveniência de um nariz comprido é que o olhar, desde que transpusesse uma certa linha, exercia mais facilmente a miserável função ilusória. Vinte minutos, porém, era o prazo razoável de uma boa abstração. O Ezequiel ficava horas e horas, e às vezes dias e dias, sentado, sem se mexer, sem ver nem ouvir; e a família (um irmão e duas sobrinhas) preferia deixá-lo assim, a acordá-lo; não se cansaria, ao menos, na perpétua agitação do costume.

 

— Uma vez abstrato, dizia ele aos parentes e familiares, liberto-me da ilusão dos sentidos. A aparência da realidade extingue-se, como se não fosse mais do que um fumo sutil, evaporado pela substância das coisas. Não há então corpos; entesto com os espíritos, penetro-os, revolvo-os, congrego-me, transfundo-me neles. Não sonhaste a noite passada comigo, Micota?

 

— Sonhei, titio, mentia a sobrinha.

 

— Não era sonho; era eu mesmo que estava contigo; por sinal que me pedias as festas, e eu prometi-te um chapéu, um bonito chapéu enfeitado de plumas...

 

— Isso é verdade, acudia a sobrinha.

 

— Tudo verdade, Micota; mas a verdade única e verdadeira. Não há outra; não pode haver verdade contra verdade, assim como não há sol contra sol.

 

As experiências do Ezequiel repetiram-se durante seis meses. Nos dois primeiros meses, eram simples viagens universais; percorria o globo e os planetas dentro de poucos minutos, aniquilava os séculos, abrangia tudo, absorvia tudo, difundia-se em tudo. Saciou assim a primeira sede da abstração. No terceiro mês, começou uma série de excursões analíticas. Visitou primeiramente o espírito do padeiro da esquina, de um barbeiro, de um coronel, de um magistrado, vizinhos da mesma rua; passou depois ao resto da paróquia, do distrito e da capital, e recolheu quantidade de observações interessantes. No quarto mês empreendeu um estudo que lhe comeu cinqüenta e seis dias: achar a filiação das idéias, e remontar à primeira idéia do homem. Escreveu sobre este assunto uma extensa memória, em que provou a todas as luzes que a primeira idéia do homem foi o círculo, não sendo o homem simbolicamente outra coisa: — um círculo lógico, se o considerarmos na pura condição espiritual; e se o tomarmos com o invólucro material, um círculo vicioso. E exemplificava. As crianças brincam com arcos, fazem rodas umas com as outras; os legisladores parlamentares sentam-se geralmente em círculo, e as constantes alterações do poder, que tanta gente condena, não são mais do que uma necessidade fisiológica e política de fazer circular os homens. Que são a infância e a decrepitude, senão as duas pontas ligadas deste círculo da vida? Tudo isso lardeado de trechos latinos, gregos e hebraicos, verdadeiro pesadelo, fruto indigesto de uma inteligência pervertida. No sexto mês...

 

— Ah! meus amigos, o sexto mês é que me trouxe um achado sublime, uma solução ao problema do senso moral. Para os não cansar; restrinjo-me ao exame comparativo que fiz em dois indivíduos da nossa rua, o Neves do nº 25, e o Delgado. Sabem que eles ainda são parentes.

 

E aí começou o Ezequiel uma narração tão extraordinária, que os amigos não puderam ouvir sem algum interesse. Os dois vizinhos eram da mesma idade, mais ou menos, quarenta e tantos anos, casados, com filhos, sendo que o Neves liquidara o negócio desde algum tempo, e vivia das rendas, ao passo que o Delgado continuara o negócio, e justamente falira três semanas antes.

 

— Vocês lembram-se ter visto o Delgado entrar aqui em casa um dia muito triste?

 

Ninguém se lembrava, mas todos disseram que sim.

 

— Desconfiei do negócio, continuou o Ezequiel, abstraí-me, e fui direito a ele. Achei-lhe a consciência agitada, gemendo, contorcendo-se; perguntei-lhe o que era, se tinha praticado alguma morte, e respondeu-me que não; não praticara morte nem roubo, mas espancara a mulher, metera-lhe as mãos na cara, sem motivo, por um assomo de cólera. Cólera passageira, disse-lhe, e uma vez que façam as pazes... — Estão feitas, acudiu ele; Zeferina perdoou-me tudo, chorando; ah! doutor, é uma santa mulher! — E então? — Mas não posso esquecer que lhe dei, não me perdôo isto; sei que foi na cegueira da raiva, mas não posso perdoar-me, não posso. E a consciência tornou a doer-lhe, como a princípio, inquieta, convulsa. Dá cá aquele livro, Micota.

 

Micota trouxe-lhe o livro, um livro manuscrito, in folio, capa de couro escuro e lavrado. O Ezequiel abriu-o na página 140, onde o nome do Delgado estava escrito com esta nota: — “Este homem possui o senso moral”. Escrevera a nota, logo depois daquele episódio; e todas as experiências futuras não vieram senão confirmar-lhe a primeira observação.

 

— Sim, ele tem o senso moral, continuou o Ezequiel. Vocês vão ver se me enganei. Dias depois, tendo-me abstraído, fui logo a ele, e achei-o na maior agitação. — Adivinho, disse-lhe; houve outra expansão muscular, outra correção... Não me respondeu nada; a consciência mordia-se toda, presa de um furor extraordinário. Como se apaziguasse de quando em quando, aproveitei os intervalos para teimar com ele. Disse-me então que jurara falso para salvar um amigo, ato de covardia e de impiedade. Para atenuá-lo, lembrava-se dos tormentos da véspera, da luta que sustentara antes de jazer a promessa de ir jurar falso; recordava também a amizade antiga ao interessado, os favores recebidos, uns de recomendação, outros de amparo, alguns de dinheiro; advertia na obrigação de retribuir os benefícios, na ridicularia de uma gratidão teórica, sentimental, e nada mais. Quando ele amontoava essas razões de justificação ou desculpa, é que a consciência parecia tranqüila; mas, de repente, todo o castelo voava a um piparote desta palavra: “Não devias ter jurado falso”. E a consciência revolvia-se, frenética, desvairada, até que a própria fadiga lhe trazia algum descanso.

 

Ezequiel referiu ainda outros casos. Contou que o Delgado, por sugestões de momento, faltara algumas vezes à verdade, e que, a cada mentira, a consciência raivosa dava sopapos em si mesma. Enfim, teve o desastre comercial, e faliu. O sócio, para abrandar a inclemência dos fados, propôs-lhe um arranjo de escrituração. Delgado recusou a pés juntos; era roubar os credores, não devia fazê-lo. Debalde o sócio lhe demonstrava que não era roubar os credores, mas resguardar a família, coisa diferente. Delgado abanou a cabeça. Não e não; preferia ficar pobre, miserável, mas honrado; onde houvesse um recanto de cortiço e um pedaço de carne-seca, podia viver. Demais, tinha braços. Vieram as lágrimas da mulher, que lhe não pediu nada mas trouxe as lágrimas e os filhos. Nem ao menos as crianças vieram chorando; não, senhor; vieram alegres, rindo, pulando muito, sublinhando assim a crueldade da fortuna. E o sócio, ardilosamente ao ouvido: — Ora vamos; veja você se é lícito trair a confiança destes inocentes. Veja se... Delgado afrouxou e cedeu.

 

— Não, nunca me há de esquecer o que então se passou naquela consciência, continuou o Ezequiel; era um tumulto, um clamor, uma convulsão diabólica, um ranger de dentes, uma coisa única. O Delgado não ficava quieto três minutos; ia de um lado para outro, atônito, fugindo a si mesmo. Não dormiu nada a primeira noite. De manhã saiu para andar à toa; pensou em matar-se; chegou a entrar em uma casa de armas, à Rua dos Ourives, para comprar um revólver, mas advertiu que não tinha dinheiro, e retirou-se. Quis deixar-se esmagar por um carro. Quis enforcar-se com o lenço. Não pensava no código; por mais que o revolvesse, não achava lá a idéia da cadeia. Era o próprio delito que o atormentava. Ouvia vozes misteriosas que lhe davam o nome de falsário, de ladrão; e a consciência dizia-lhe que sim, que ele era um ladrão e um falsário. Às vezes pensava em comprar um bilhete de Espanha, tirar a sorte grande, convocar os credores, confessar tudo, e pagar-lhes integralmente, com juro, um juro alto, muito alto, para puni-lo do crime... Mas a consciência replicava logo que era um sofisma, que os credores seriam pagos, é verdade, mas só os credores. O ato ficava intacto. Queimasse ele os livros e dispersasse as cinzas ao vento, era a mesma coisa; o crime subsistia. Assim passou três noites, três noites cruéis, até que no quarto dia, de manhã, resolveu ir ter com o Neves e revelar-lhe tudo.

 

— Descanse, titio, disse-lhe uma das sobrinhas, assustada com o fulgor dos olhos do Ezequiel.

 

Mas o Ezequiel respondeu que não estava cansado, e contaria o resto.

 

O resto era estupendo. O Neves lia os jornais no terraço, quando o Delgado lhe apareceu. A fisionomia daquele era tão bondosa, a palavra com que o saudou — “Anda cá, Juca!” vinha tão impregnada da velha familiaridade, que o Delgado esmoreceu. Sentou-se ao pé dele, acanhado, sem força para lhe dizer nem lhe pedir nada, um conselho, ou, quando menos, uma consolação. Em que língua narraria o delito a um homem cuja vida era um modelo, cujo nome era um exemplo? Viveram juntos; sabia que a alma do Neves era como um céu imaculado, que só interrompia o azul para cravejá-lo de estrelas. Estas eram as boas palavras que ele costumava dizer aos amigos. Nenhuma ação que o desdourasse. Não espancara a mulher, não jurara falso, não emendara a escrituração, não mentiu, não enganou ninguém.

 

— Que tem você? perguntou o Neves.

 

— Vou contar-lhe uma coisa grave, explodiu o Delgado; peço-lhe desde já que me perdoe.

 

Contou-lhe tudo. O Neves, que a princípio o ouvira com algum medo, por ele lhe ter pedido perdão, depressa respirou; mas não deixou de reprovar a imprudência do Delgado. Realmente, onde tinha ele a cabeça para brincar assim com a cadeia? Era negócio grave; urgia abafá-lo, e, em todo caso, estar alerta. E recordava-lhe o conceito em que sempre teve o tal sócio. — “Você defendia-o então; e aí tem a bela prenda. Um maluco!” O Delgado, que trazia consigo o remorso, sentiu incutir-se-lhe o terror; e, em vez de um remédio, levou duas doenças.

 

“Justos céus! exclamou consigo o Ezequiel, dar-se-á que este Neves não tenha o senso moral?”

 

Não o deixou mais. Esquadrinhou-lhe a vida; talvez alguma ação do passado, alguma coisa... Nada; não achou nada. As reminiscências do Neves eram todas de uma vida regular, metódica, sem catástrofes, mas sem infrações. O Ezequiel estava atônito. Não podia conciliar tanta limpeza de costumes com a absoluta ausência de senso moral. A verdade, porém, é que o contraste existia. Ezequiel ainda advertiu na sutileza do fenômeno e na conveniência de verificá-lo bem. Dispôs-se a uma longa análise. Entrou a acompanhar o Neves a toda a parte, em casa, na rua, no teatro, acordado ou dormindo, de dia ou de noite.

 

O resultado era sempre o mesmo. A notícia de uma atrocidade deixava-o interiormente impassível; a de uma indignidade também. Se assinava qualquer petição (e nunca recusou nenhuma) contra um ato impuro ou cruel, era por uma razão de conveniência pública, a mesma que o levava a pagar para a Escola Politécnica, embora não soubesse matemáticas. Gostava de ler romances e de ir ao teatro; mas não entendia certos lances e expressões, certos movimentos de indignação, que atribuía a excessos de estilo. Ezequiel não lhe perdia os sonhos, que eram, às vezes, extraordinários. Este, por exemplo: sonhou que herdara as riquezas de um nababo, forjando ele mesmo o testamento e matando o testador. De manhã, ainda na cama, recordou todas as peripécias do sonho, com os olhos no teto, e soltou um suspiro.

 

Um dia, um fâmulo do Neves, andando na rua, viu cair uma carteira do bolso de um homem, que caminhava adiante dele, apanhou-a e guardou-a. De noite, porém, surgiu-lhe este caso de consciência: — se um caído era o mesmo que um achado. Referiu o negócio ao Neves, que lhe perguntou, antes de tudo, se o homem vira cair a carteira; sabendo que não, levantou os ombros. Mas, conquanto o fâmulo fosse grande amigo dele, o Neves arrependeu-se do gesto, e, no dia seguinte, recomendou-lhe a entrega da carteira; eis as circunstâncias do caso. Indo de bond, o condutor esqueceu-se de lhe pedir a passagem; Neves, que sabia o valor do dinheiro, saboreou mentalmente esses duzentos réis caídos; mas advertiu que algum passageiro poderia ter notado a falta, e, ostensivamente, por cima da cabeça de outros, deu a moeda ao condutor. Uma idéia traz outra; Neves lembrou-se que alguém podia ter visto cair a carteira e apanhá-la o fâmulo; foi a este, e compeliu-o a anunciar o achado. “A consideração pública, Bernardo, disse ele, é a carteira que nunca se deve perder.”

 

Ezequiel notou que este adágio popular — ladrão que furta a ladrão tem cem anos de perdão, — estava incrustado na consciência do Neves, e parecia até inventado por ele. Foi o único sentimento de horror ao crime, que lhe achou; mas, analisando-o, descobriu que não era senão um sentimento de desforra contra o segundo roubado, o aplauso do logro, uma consolação no prejuízo, um antegosto do castigo que deve receber todo aquele que mete a mão na algibeira dos outros.

 

Realmente, um tal contraste era de ensandecer ao homem mais ajuizado do universo. O Ezequiel fez essa mesma reflexão aos amigos e parentes; acrescentou que jurara aos seus deuses achar a razão do contraste, ou suicidar-se. Sim, ou morreria, ou daria ao mundo civilizado a explicação de um fenômeno tão estupendo como a contradição da consciência do Neves com as suas ações exteriores... Enquanto ele falava assim, os olhos chamejavam muito. Micota, a um sinal do pai, foi buscar à janela uma das quartinhas d’água, que ali estavam ao fresco, e trouxe-a a Ezequiel. Profundo Ezequiel! tudo entendeu, mas aceitou a água, bebeu dois ou três goles, e sorriu para a sobrinha. E continuou dizendo que sim, senhor, que acharia a razão, que a formularia em um livro de trezentas páginas...

 

— Trezentas páginas, estão ouvindo? Um livro grosso assim...

 

E estendia três dedos. Depois descreveu o livro. Trezentas páginas, com estampas, uma fotografia da consciência do Neves e outra das suas ações. Jurava que ia mandar o livro a todas as academias do universo, com esta conclusão em forma de epígrafe: — “Há virtualmente um pequeno número de gatunos, que nunca furtaram um par de sapatos”.

 

— Coitado! diziam os amigos descendo as escadas. Um homem de tanto talento!


Literatura - Contos e Crônicas terça, 26 de abril de 2022

UM HOMEM SUPERIOR (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

UM HOMEM SUPERIOR

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 24 de abril de 2022

UM HOMEM CÉLEBRE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM HOMEM CÉLEBRE

Machado de Assis

 

 

 

- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

- Diga, minha senhora.

- É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

- Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

- Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

- A bengala.

- Mas parece que hoje chove.

- Chove, repetiu Pestana maquinalmente.

- Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

- Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

- Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, - ou por alusão a algum sucesso do dia, - ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

- Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.

- Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

- E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...

- As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

- Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.

- Vai casar com uma viúva.

- Velha?

- Vinte e sete anos.

- Bonita?

- Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, - mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

- Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

- Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, - uma clara e fresca manhã de maio de 1876, - eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

- Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

- Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?

- Nada.

- Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

- Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.

- Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

- Adeus.

- Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 22 de abril de 2022

HISTÓRIA DE UMA LÁGRIMA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 

HISTÓRIA DE UMA LÁGRIMA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 20 de abril de 2022

HISTÓRIA DE UMA FITA AZUL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS ) VÍDEO

HISTÓRIA DE UMA FITA AZUL

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 18 de abril de 2022

HISTÓRIA COMUM (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

HISTÓRIA COMUM

Machado de Assis

 

 

 

... Caí na copa do chapéu de um homem que passava... Perdoe-me este começo; é um modo de ser épico. Entro em plena ação. Já o leitor sabe que caí, e caí na copa do chapéu de um homem que passava; resta dizer donde caí e por que caí.

 

Quanto à minha qualidade de alfinete, não é preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita, e as damas de sociedade os fichus, ou as flores, ou isto, ou aquilo. Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao próprio vestido. Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de contar a minha aventura.

 

Tinha-me comprado uma triste mucama. O dono do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei quantos réis; coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este é o seu nome, — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não sei quanto tempo ali estive; saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a mucama trazia ao pescoço. Como o lenço era novo, não fiquei grandemente desconsolado. E depois a mucama era asseada e estimada, vivia nos quartos das moças, era confidente dos seus namoros e arrufos; enfim, não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil.

 

Entre o peito da Felicidade e o recanto de uma mesa velha, que ela tinha na alcova, gastei uns cinco ou seis dias. De noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da mesa; de manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade; mas a vida dos alfinetes, não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi falar de um baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos. As senhoras preparavam-se com esmero e afinco, cuidavam das rendas, sedas, luvas, flores, brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão no baile do desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele; mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do lenço de uma triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.

 

— Felicidade, diziam as moças, à noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão as outras meias?

 

— Que meias, nhanhã?

 

— As que estavam na cadeira...

 

— Uê! nhanhã! Estão aqui mesmo.

 

E Felicidade ia de um lado para outro, solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias de outra, compondo a cauda desta, concertando o diadema daquela, tudo com um amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que os tirava da toilette, para o corpo das moças, dizia comigo, que era bem bom ser alfinete de damas, e damas bonitas que iam a festas.

 

— Meninas, são horas!

 

— Lá vou, mamãe! disseram todas.

 

E foram, uma a uma, primeiro a mais velha, depois a mais moça, depois a do meio. Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando uma rosa no peito, uma linda rosa; pregou-a e sorriu para a mucama.

 

— Hum! hum! resmungou esta. Seu Florêncio hoje fica de queixo caído...

 

Clarinha olhou para o espelho, e repetiu consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo no sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e respondeu sorrindo:

 

— Pode ser.

 

— Pode ser? Vai ficar mesmo.

 

— Clarinha, só se espera por você.

 

— Pronta, mamãe!

 

Tinha prendido a rosa, às pressas, e saiu.

 

Na sala estava a família, dois carros à porta; desceram enfim, e Felicidade com elas, até à porta da rua. Clarinha foi com a mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas. Clarinha calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde; entraram; mas, ao entrar caiu a rosa do peito da moça. Consternação desta; teima da mãe que era tarde, que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa outra vez. Mas Clarinha pedia que se demorasse um instante, um instante só, e diria à mucama que fosse buscar um alfinete.

 

— Não é preciso, sinhá; aqui está um.

 

Um era eu. Que alegria a de Clarinha! Com que alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes, enquanto descalçava as luvas. Descalçou-as: pregou comigo a rosa, e o carro partiu. Lá me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com destino ao baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte teve mais rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o lenço pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda, carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a leva escada acima; uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de flores... Ah! enfim! eis-me no meu lugar.

 

Estamos na terceira valsa. O par de Clarinha é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e anda à roda como um louco. Acabada a valsa, fomos passear os três, ele murmurando-lhe coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo, teso, orgulhoso. Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a pedi-la.

 

— Não se vexe; não é preciso que me diga nada; basta que me aperte a mão.

 

Clarinha apertou-lhe a mão; ele levou-a à boca e beijou-a; ela olhou assustada para dentro.

 

— Ninguém vê, continuou o Dr. Florêncio; amanhã mesmo escreverei a seu pai.

 

Conversaram ainda uns dez minutos, suspirando coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que lhe ficava em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva entre duas valsas. Afinal, como era mister voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor, a rosa que trazia ao peito.

 

— Tome...

 

E despregando a rosa, deu-a ao namorado, atirando-me, com a maior indiferença, à rua... Caí na copa do chapéu de um homem que passava e...


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 16 de abril de 2022

A HERANÇA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A HERANÇA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 14 de abril de 2022

GALERIA PÓSTUMA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

GALERIA PÓSTUMA 

Machado de Assis

(Grafia original)

 

I

Não, não se descreve a consternação que produziu em todo o Engenho Velho, e particularmente no coração dos amigos, a morte de Joaquim Fidelis. Nada mais inesperado. Era robusto, tinha saude de ferro, e ainda na vespera fôra a um baile, onde todos o viram conversado e alegre. Chegou a dansar, a pedido de uma senhora sexagenaria, viuva de um amigo d'elle, que lhe tomou do braço, e lhe disse:

—Venha cá, venha cá, vamos mostrar a estes criançolas como é que os velhos são capazes de desbancar tudo.

Joaquim Fidelis protestou sorrindo; mas obedeceu e dansou. Eram duas horas quando sahiu, embrulhando os seus sessenta annos n'uma capa grossa,—estavamos em junho de 1879—mettendo a calva na carapuça, accendendo um charuto, e entrando lepidamente no carro.

No carro é possivel que conchilasse; mas, em casa, máu grado a hora e o grande peso das palpebras, ainda foi a secretária, abriu uma gaveta, tirou um de muitos folhetos manuscriptos,—e escreveu durante tres ou quatro minutos umas dez ou onze linhas. As ultimas palavras eram estas: «Em summa, baile chinfrim; uma velha gaiteira obrigou-me a dansar uma quadrilha; á porta um crioulo pediu-me as festas. Chinfrim!» Guardou o folheto, despiu-se, metteu-se na cama, dormiu e morreu.

Sim, a noticia consternou a todo o bairro. Tão amado que elle era, com os modos bonitos que tinha, sabendo conversar com toda a gente, instruido com os instruidos, ignorante com os ignorantes, rapaz com os rapazes, e até moça com as moças. E depois, muito serviçal, prompto a escrever cartas, a fallar a amigos, a concertar brigas, a emprestar dinheiro. Em casa d'elle reuniam-se á noite alguns intimos da visinhança, e ás vezes de outros bairros; jogavam o voltarete ou o _whist_, fallavam de politica. Joaquim Fidelis tinha sido deputado até á dissolução da camara pelo marquez de Olinda, em 1863. Não conseguindo ser reeleito, abandonou a vida publica. Era conservador, nome que a muito custo admittiu, por lhe parecer gallicismo politico. _Saquarema_ é o que elle gostava de ser chamado. Mas abriu mão de tudo; parece até que nos ultimos tempos desligou-se do proprio partido, e afinal da mesma opinião. Ha razões para crêr que, de certa data em diante, foi um profundo sceptico, e nada mais.

Era rico e lettrado. Formára-se em direito no anno de 1842. Agora não fazia nada e lia muito. Não tinha mulheres em casa. Viuvo desde a primeira invasão da febre amarella, recusou contrahir segundas nupcias, com grande magoa de tres ou quatro damas, que nutriram essa esperança durante algum tempo. Uma d'ellas chegou a prorogar perfidamente os seus bellos cachos de 1845 até meiados do segundo neto; outra, mais moça e tambem viuva, pensou retel-o com algumas concessões, tão generosas quão irreparaveis. «Minha querida Leocadia, dizia elle nas occasiões em que ella insinuava a solução conjugal, por que não continuaremos assim mesmo? O mysterio é o encanto da vida.» Morava com um sobrinho, o Benjamim, filho de uma irmã, orphão desde tenra idade. Joaquim Fidelis deu-lhe educação e fel-o estudar, até obter diploma de bacharel em sciencias juridicas, no anno de 1877.

Benjamim ficou atordoado. Não podia acabar de crer na morte do tio. Correu ao quarto, achou o cadaver na cama, frio, olhos abertos, e um leve arregaço ironico ao canto esquerdo da boca. Chorou muito e muito. Não perdia um simples parente, mas um pai, um pai terno, dedicado, um coração unico. Benjamim enxugou, emfim, as lagrimas; e, porque lhe fizesse mal ver os olhos abertos do morto, e principalmente o labio arregaçado, concertou-lhe ambas as cousas. A morte recebeu assim a expressão tragica; mas a originalidade da mascara perdeu-se.

—Não me digam isto! bradava d'ahi a pouco um dos visinhos, Diogo Villares, ao receber noticia do caso.

Diogo Villares era um dos cinco principaes familiares de Joaquim Fidelis. Devia-lhe o emprego que exercia desde 1857. Veiu elle; vieram os outros quatro, logo depois, um a um, estupefactos, incredulos. Primeiro chegou o Elias Xavier, que alcançára por intermedio do finado, segundo se dizia, uma commenda; depois entrou o João Braz, deputado que foi, no regimen das supplencias, eleito com o influxo do Joaquim Fidelis. Vieram, emfim, o Fragoso e o Galdino, que lhe não deviam diplomas, commendas nem empregos, mas outros favores. Ao Galdino adiantou elle alguns poucos capitaes, e ao Fragoso arranjou-lhe um bom casamento... E morto! morto para todo sempre! De redor da cama, fitavam o rosto sereno e recordavam a ultima festa, a do outro domingo, tão intima, tão expansiva! E, mais perto ainda, a noite da ante-vespera, em que o voltarete do costume foi até ás onze horas.

—Amanhã não venham, disse-lhes o Joaquim Fidelis; vou ao baile do Carvalhinho.

—E depois?...

—Depois de amanhã, cá estou.

E, á sahida, deu-lhes ainda um maço de excellentes charutos, segundo fazia ás vezes, com um accrescimo de doces seccos para os pequenos, e duas ou tres pilherias finas... Tudo esvaido! tudo disperso! tudo acabado!

Ao enterro acudiram muitas pessoas gradas, dous senadores, um ex-ministro, titulares, capitalistas, advogados, commerciantes, medicos; mas as argolas do caixão foram seguras pelos cinco familiares e o Benjamim. Nenhum d'elles quiz ceder a ninguem esse ultimo obsequio, considerando que era um dever cordial e intransferivel. O adeus do cemiterio foi proferido pelo João Braz, um adeus tocante, com algum excesso de estylo para um caso tão urgente, mas, emfim, desculpavel. Deitada a pá de terra, cada um se foi arredando da cova, menos os seis, que assistiram ao trabalho posterior e indifferente dos coveiros. Não arredaram pé antes de vêr cheia a cova até acima, e depositadas sobre ellas as coroas funebres.


II

A missa do setimo dia reuniu-os na igreja. Acabada a missa, os cinco amigos acompanharam á casa o sobrinho do morto. Benjamim convidou-os a almoçar.

—Espero que os amigos do tio Joaquim serão tambem meus amigos, disse elle.

Entraram, almoçaram. Ao almoço fallaram do morto; cada um contou uma anecdota, um dito; eram unanimes no louvor e nas saudades. No fim do almoço, como tivessem pedido uma lembrança do finado, passaram ao gabinete, e escolheram á vontade, este uma canneta velha, aquelle uma caixa de oculos, um folheto, um retalho qualquer intimo, Benjamim sentia-se consolado. Communicou-lhes que pretendia conservar o gabinete tal qual esta va. Nem a secretária abrira ainda. Abriu-a então, e, com elles, inventariou o conteudo de algumas gavetas. Cartas, papeis soltos, programmas de concertos, menus de grandes jantares, tudo alli estava de mistura e confusão. Entre outras cousas acharam alguns cadernos manuscriptos, numerados e datados.

—Um diario! disse Benjamim.

Com effeito, era um diario das impressões do finado, especie de memorias secretas, confidencias do homem a si mesmo. Grande foi a commoção dos amigos; lêl-o era ainda conversal-o. Tão recto caracter! tão discreto espirito! Benjamim começou a leitura; mas a voz embargou-se-lhe depressa, e João Braz continuou-a.

O interesse do escripto adormeceu a dor do obito. Era um livro digno do prelo. Muita observação politica e social, muita reflexão philosophica, anecdotas de homens publicos, do Feijó, do Vasconcellos, outras puramente galantes, nomes de senhoras, o da Leocadia, entre outros; um repertorio de factos e commentarios. Cada um admirava o talento do finado, as graças do estylo, o interesse da materia. Uns opinavam pela impressão typographica; Benjamim dizia que sim, com a condição de excluir alguma cousa, ou inconveniente ou demasiado particular. E continuavam a ler, saltando pedaços e paginas, até que bateu meio-dia. Levantaram-se todos; Diogo Villares ia já chegar á repartição fóra de horas; João Braz e Elias tinham onde estar juntos. Galdino seguia para a loja. O Fragoso precisava mudar a roupa preta, e acompanhar a mulher á rua do Ouvidor. Concordaram em nova reunião para proseguir a leitura. Certas particularidades tinham-lhes dado uma comichão de escandalo, e as comichões coçam-se: é o que elles queriam fazer, lendo.

—Até amanhã, disseram.

—Até amanhã.

Uma vez só, Benjamim continuou a lêr o manuscripto. Entre outras cousas, admirou o retrato da viuva Leocadia, obra-prima de paciencia e semelhança, embora a data coincidisse com a dos amores. Era prova de uma rara isenção de espirito. De resto, o finado era eximio nos retratos. Desde 1873 ou 1874, os cadernos vinham cheios d'elles, uns de vivos, outros de mortos, alguns de homens publicos, Paula Souza, Aureliano, Olinda, etc. Eram curtos e substanciaes, ás vezes trez ou quatro rasgos firmes, com tal fidelidade e perfeição, que a figura parecia photographada. Benjamim ia lendo; de repente deu com o Diogo Villares. E leu estas poucas linhas:

«DIOGO VILLARES.—Tenho-me referido muitas vezes a este amigo, e fal-o-hei algumas outras mais, se elle me não matar de tedio, cousa em que o reputo profissional. Pediu-me ha annos que lhe arranjasse um emprego, e arranjei-lh'o. Não me avisou da moeda em que me pagaria. Que singular gratidão! Chegou ao excesso de compor um soneto e publical-o. Fallava-me do obsequio a cada passo, dava-me grandes nomes; emfim, acabou. Mais tarde relacionámo-nos intimamente. Conheci-o então ainda melhor. _C'est le genre ennuyeux._ Não é mau parceiro de voltarete. Dizem-me que não deve nada a ninguem. Bom pai de familia. Estupido e credulo. Com intervallo de quatro dias, já lhe ouvi dizer de um ministerio que era excellente e detestavel:—differença dos interlocutores. Ri muito e mal. Toda a gente, quando o vê pela primeira vez, começa por suppol-o um varão grave; no segundo dia dá-lhe piparotes. A razão é a figura, ou, mais particularmente, as bochechas, que lhe emprestam um certo ar superior.»

A primeira sensação do Benjamim foi a do perigo evitado. Se o Diogo Villares estivesse alli? Releu o retrato e mal podia crer; mas não havia negal-o, era o proprio nome do Diogo Villares, era a mesma lettra do tio. E não era o unico dos familiares; folheou o manuscripto e deu com o Elias:

«ELIAS XAVIER.—Este Elias é um espirito subalterno, destinado a servir alguem, e a servir com desvanecimento, como os cocheiros de casa elegante. Vulgarmente trata as minhas visitas intimas com alguma arrogancia e desdem: politica de lacaio ambicioso. Desde as primeiras semanas, comprehendi que elle queria fazer-se meu privado; e não menos comprehendi que, no dia que realmente o fosse, punha os outros no meio da rua. Ha occasiões em que me chama a um vão da janella para fallar-me secretamente do sol e da chuva. O fim claro é incutir nos outros a suspeita de que ha entre nós cousas particulares, e alcança isso mesmo, porque todos lhe rasgam muitas cortezias. É intelligente, risonho e fino. Conversa muito bem. Não conheço comprehensão mais rapida. Não é poltrão nem maldizente. Só falla mal de alguem, por interesse; faltando-lhe interesse, cala-se; e a maledicencia legitima é gratuita. Dedicado e insinuante. Não tem idéas, é verdade; mas ha esta grande differença entre elle e o Diogo Villares:—o Diogo repete prompta e boçalmente as que ouve, ao passo que o Elias sabe f azel-as suas e plantal-as opportunamente na conversação. Um caso de 1865 caracterisa bem a astucia d'este homem. Tendo dado alguns libertos para a guerra do Paraguay, ia receber uma commenda. Não precisava de mim; mas veiu pedir a minha intercessão, duas ou tres vezes, com um ar consternado e supplice. Fallei ao ministro, que me disse:—«O Elias já sabe que o decreto está lavrado; falta só a assignatura do imperador.» Comprehendi então que era um estratagema para poder confessar-me essa obrigação. Bom parceiro de voltarete; um pouco brigão, mas entendido.»

—Ora o tio Joaquim! exclamou Benjamim levantando-se. E depois de alguns instantes, reflexionou comsigo:—Estou lendo um coração, livro inedito. Conhecia a edição publica, revista e expurgada. Este é o texto primitivo e interior, a lição exacta e authentica. Mas quem imaginaria nunca... Ora o tio Joaquim!

E, tornando a sentar-se, releu tambem o retrato do Elias, com vagar, meditando as feições. Posto lhe faltasse observação, para avaliar a verdade do escripto, achou que em muitas partes, ao menos, o retrato era semelhante. Cotejava essas notas iconographicas, tão cruas, tão seccas, com as maneiras cordiaes e graciosas do tio, e sentia-se tomado de um certo terror e mau-estar. Elle, por exemplo, que teria dito delle o finado? Com esta ideia, folheou ainda o manuscripto, passou por alto algumas damas, alguns homens publicos, deu com o Fragoso,—um esboço curto e curtissimo,—logo depois o Galdino, e quatro paginas adiante o João Braz. Justamente o primeiro levára delle uma caneta, pouco antes, talvez a mesma com que o finado o retratára. Curto era o esboço, e dizia assim:

«FRAGOSO.—Honesto, maneiras assucaradas e bonito. Não me custou casal-o; vive muito bem com a mulher. Sei que me tem uma extraordinaria adoração,—quasi tanta como a si mesmo. Conversação vulgar, polida e chocha.»

«GALDINO MADEIRA.—O melhor coração do mundo e um caracter sem macula; mas as qualidades do espirito destroem as outras. Emprestei-lhe algum dinheiro, por motivo da familia, e porque me não fazia falta. Ha no cerebro d'elle um certo furo, por onde o espirito escorrega e cai no vacuo. Não reflecte tres minutos seguidos. Vive principalmente de imagens, de phrases translatas. Os «dentes da calumnia» e outras expressões, surradas como colchões de hospedaria, são os seus encantos. Mortificase facilmente no jogo, e, uma vez mortificado, faz timbre em perder, e em mostrar que é de proposito. Não despede os maus caixeiros. Se não tivesse guarda-livros, é duvidoso que sommasse os quebrados. Um subdelegado, meu amigo, que lhe deveu algum dinheiro, durante dous annos, dizia-me com muita graça, que o Galdino quando o via na rua, em vez de lhe pedir a divida, pedia-lhe noticias do ministerio.»

«JOÃO BRAZ.—Nem tolo nem bronco. Muito attencioso, embora sem maneiras. Não póde ver passar um carro de ministro; fica pallido e vira os olhos. Creio que é ambicioso; mas na edade em que está, sem carreira, a ambição vai-se-lhe convertendo em inveja. Durante os dois annos em que serviu de deputado, desempenhou honradamente o cargo: trabalhou muito, e fez alguns discursos bons, não brilhantes, mas solidos, cheios de factos e reflectidos. A prova de que lhe ficou um residuo de ambição, é o ardor com que anda á cata de alguns cargos honorificos ou preeminentes; ha alguns mezes consentiu em ser juiz de uma irmandade de S. José, e segundo me dizem, desempenha o cargo com um zelo exemplar. Creio que é atheu, mas não affirmo. Ri pouco e discretamente. A vida é pura e severa, mas o caracter tem uma ou duas cordas fraudulentas, a que só faltou a mão do artista; nas cousas minimas, mente com facilidade.»

Benjamim, estupefacto, deu emfim comsigo mesmo.—«Este meu sobrinho, dizia o manuscripto, tem vinte e quatro annos de edade, um projecto de reforma judiciaria, muito cabello, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto leal e bom,—bom até á credulidade. Tão firme nas affeições como versatil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulario e as formulas.»

Quiz reler, e não pôde; essas poucas linhas davam-lhe a sensação de um espelho. Levantou-se, foi á janella, mirou a chacara e tornou dentro para contemplar outra vez as suas feições. Contemplou-as; eram poucas, falhas, mas não pareciam calumniosas. Se alli estivesse um publico, é provavel que a mortificação do rapaz fosse menor, porque a necessidade de dissipar a impressão moral dos outros dar-lhe-ia a força necessaria para reagir contra o escripto; mas, a sós, comsigo, teve de supportal-o sem contraste. Então considerou se o tio não teria composto essas paginas nas horas de máu humor; comparou-as a outras em que a phrase era menos aspera, mas não cogitou se alli a brandura vinha ou não de molde.

Para confirmar a conjectura, recordou as maneiras usuaes do finado, as horas de intimidade e riso, a sós com elle, ou de palestra com os demais familiares. Evocou a figura do tio, com o olhar espirituoso e meigo, e a pilheria grave; em logar d'essa, tão candida e sympathica, a que lhe appareceu foi a do tio morto, estendido na cama, com os olhos abertos e o labio arregaçado. Sacudiu-a do espirito, mas a imagem ficou. Não podendo rejeital-a, Benjamim tentou mentalmente fechar-lhe os olhos e concertar-lhe a bocca; mas tão depressa o fazia, como a palpebra tornava a levantar-se, e a ironia arregaçava o beiço. Já não era o homem, era o auctor do manuscripto.

Benjamim jantou mal e dormiu mal. No dia seguinte, á tarde, apresentaram-se os cinco familiares para ouvir a leitura. Chegaram sofregos, anciosos; fizera-lhe muitas perguntas; pediram-lhe com instancia para ver o manuscripto. Mas Benjamim tergiversava, dizia isto e aquillo, inventava pretextos; por mal de peccados, appareceu-lhe na sala, por traz d'elles, a eterna bocca do defunto, e esta circumstancia fel-o ainda mais acanhado. Chegou a mostrar-se frio, para ficar só, e ver se com elles desapparecia a visão. Assim se passaram trinta a quarenta minutos. Os cinco olharam emfim uns para os outros, e deliberaram sahir; despediram-se ceremoniosamente, e foram conversando, para suas casas:

—Que differença do tio! que abysmo! a herança enfunou-o! deixal-o! ah! Joaquim Fidelis! ah! Joaquim Fidelis!


Literatura - Contos e Crônicas terça, 12 de abril de 2022

HABILIDOSO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 

HABILIDOSO

Machado de Assis

(Vídeo)

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 10 de abril de 2022

FULANO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FULANO

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

Venha o leitor commigo assistir á abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta annos. Morreu hontem, dous de Janeiro de 1884, ás onze horas e trinta minutos da noite. Não imagina a força de animo que mostrou em toda a molestia. Cahiu na vespera de finados, e a principio suppunhamos que não fosse nada; mas a doença persistiu, e ao fim de dous mezes e poucos dias a morte o levou.

Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o testamento. Ha de conter por força algumas determinações de interesse geral e honrosas para elle. Antes de 1863 não seria assim, porque até então era um homem muito mettido comsigo, reservado, morando no caminho do Jardim Botanico, para onde ia de omnibus ou de mula. Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira, com treze annos. Fo i n'esse anno que elle começou a occupar-se com outras cousas, além da familia, revellando um espirito universal e generoso. Nada posso affirmar-lhe sobre a causa disto. Creio que foi uma apologia de amigo, por occasião d'elle fazer quarenta annos. Fulano Beltrão leu no _Jornal do Commercio_, no dia cinco de Março de 1864, um artigo anonymo em que se lhe diziam cousas bellas e exactas:--bom pai, bom esposo, amigo pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse justiça, era muito; mas anonymamente, era raro.

--Você verá, disse Fulano Beltrão á mulher, você verá que isto é do Xavier ou do Castro; logo rasgaremos o capote.

Castro e Xavier eram dous habituados da casa, parceiros constantes do voltarete e velhos amigos do meu amigo. Costumavam dizer cousas amaveis, no dia cinco de março, mas era ao jantar, na intimidade da familia, entre quatro paredes; impressos, era a primeira vez que elle se benzia com elogios. Póde ser que me engane; mas estou que o expectaculo da justiça, a prova material de que as boas qualidades e as boas acções não morrem no escuro, foi o que animou o meu amigo a dispersar-se, a apparecer, a divulgar-se, a dar á collectividade humana um pouco das virtudes com que nasceu. Considerou que milhares de pessoas estariam lendo o artigo, á mesma hora em que o lia tambem; imaginou que o commentavam, que interrogavam, que confirmavam, ouviu mesmo, por um phenomeno de allucinação que a sciencia ha de explicar, e que não é raro, ouviu distinctamente algumas vozes do publico. Ouviu que lhe chamavam homem de bem, cavalheiro distincto, amigo dos amigos, laborioso, honesto, todos os qualificativos que elle vira empregados em outros, e que na vida de bicho do matto em que ia, nunca presumiu que lhe fossem--typographicamente--applicados.

--A imprensa é uma grande invenção, disse elle á mulher.

Foi ella, D. Maria Antonia, quem rasgou o capote; o artigo era do Xavier. Declarou este que só em attenção á dona casa confessava a auctoria; e accrescentou que a manifestação não sahira completa, porque a idéa d'elle era que o artigo fosse dado em todos os jornaes, não o tendo feito por havel-o acabado ás sete horas da noite. Não houve tempo de tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se lhe podia chamar, mandando transcrever o artigo no _Diario do Rio_ e o _Correio Mercantil_.

Quando mesmo, porém, este facto não desse causa á mudança de vida do nosso amigo, fica uma cousa de pé, a saber, que daquelle anno em diante, e propriamente do mez de março, é que elle começou a apparecer mais. Era até então um casmurro, que não ia ás assembléas das companhias, não votava nas eleições politicas, não frequentava theatros, nada, absolutamente nada. Já n'aquelle mez de março, a vinte e dous ou vinte ou vinte e tres, presenteou a Santa Casa da Misericordia com um bilhete da grande loteria de Hespanha, e recebeu uma honrosa carta do provedor, agradecendo em nome dos pobres. Consultou a mulher e os amigos, se devia publicar a carta ou guardal-a, parecendo-lhe que não a publicar era uma desattenção. Com effeito, a carta foi dada a vinte e seis de março, em todas as folhas, fazendo uma dellas commentarios desenvolvidos ácerca da piedade do doador. Das pessoas que leram esta noticia, muitas naturalmente ainda se lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas occurencias: «Fulano Beltrão é aquelle mesmo que, etc.» primeiro alicerce da reputação de um homem.

É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não posso estar a contar-lhe tudo. Digo-lhe summariamente que as injustiças da rua começaram a ter n'elle um vingador activo e discursivo; que as miserias, principalmente as miserias dramaticas, filhas de um incendio ou inundação, acharam no meu amigo a iniciativa dos soccorros que, em taes casos, devem ser promptos e publicos. Ninguem como elle para um desses movimentos. Assim tambem com as alforias de escravos. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, era muito commum apparecerem na Praça do Commercio crianças escravas, para cuja liberdade se pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava tres quartas partes das subscripções, com tal exito, que em poucos minutos ficava o preço coberto.

A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até lhe trazia lembranças que, sem ella, é possivel que nunca lhe tivessem acudido. Não fallo do baile que elle deu para celebrar a victoria de Riachuelo, porque era um baile planeado antes de chegar a noticia da batalha, e elle não fez mais do que attribuir-lhe um motivo mais alto do que a simples recreação de familia, metter o retrato do almirante Barroso no meio de um trophéu de armas navaes e bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato do imperador, e fazer, á ceia, alguns brindes patrioticos, como tudo consta dos jornaes de 1865.

Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem caracteristico da influencia que a justiça dos outros póde ter no nosso procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do thesouro, aonde tinha ido tratar de umas decimas. Ao passar pela egreja da Lampadosa, lembrou-se que fôra alli baptisado; e nenhum homem tem uma recordação d'estas, sem remontar o curso dos annos e dos acontecimentos, deitar-se outra vez no collo materno, rir e brincar, como nunca mais se ri nem brinca. Fulano Beltrão não escapou a este effeito; atravessou o adro, entrou na egreja, tão singela, tão modesta, e para elle tão rica e linda. Ao sahir, tinha uma resolução feita, que pôz por obra dentro de poucos dias: mandou de presente á Lampadosa um soberbo castiçal de prata, com duas datas, além do nome do doador--a data da doação e a do baptisado. Todos os jornaes deram esta noticia, e até a receberam em duplicata, porque a administração da egreja entendeu (com muita razão) que tambem lhe cumpria divulgal-a aos quatro ventos.

No fim de tres annos, ou menos, entrára o meu amigo nas cogitações publicas; o nome d'elle era lembrado, mesmo quando nenhum successo recente vinha suggeril-o, e não só lembrado como adjectivado. Já se lhe notava a ausencia em alguns logares. Já o iam buscar para outros. D. Maria Antonia via assim entrar-lhe no Eden a serpente biblica, não para tental-a, mas para tentar a Adão. Com effeito, o marido ia a tantas partes, cuidava de tantas cousas, mostrava-se tanto na rua do Ouvidor, á porta do Bernardo, que afrouxou a convivencia antiga da casa. D. Maria Antonia disse-lh'o. Elle concordou que era assim, mas demonstrou-lhe que não podia ser de outro modo, e, em todo caso, se mudára de costumes, não mudára de sentimentos. Tinha obrigações moraes com a sociedade; ninguem se pertence exclusivamente; d'ahi um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. Não era mesmo conveniente; a filha caminhava para a edade do matrimonio, e casa fechada cria morrinha de convento; por exemplo, um carro, porque é que não teriam um carro? D. Maria Antonia sentiu um arrepio de prazer, mas curto; protestou logo, depois de um minuto de reflexão.

--Não; carro para que? Não; deixemo-nos de carro.

--Já está comprado, mentiu o marido.

Mas aqui chegamos ao juizo da provedoria. Não veiu ainda ninguem; esperemos á porta. Tem pressa? São vinte minutos no maximo. Pois é verdade, comprou uma linda victoria; e, para quem, só por modestia, andou tantos annos ás costas de mula ou apertado n'um omnibus, não era facil acostumar-se logo ao novo vehiculo. A isso attribuo eu as attitudes salientes e inclinadas com que elle andava, nas primeiras semanas, os olhos que estendia a um lado e outro, á maneira de pessoa que procura alguem ou uma casa. Afinal acostumou-se; passou a usar das attitudes reclinadas, embora sem um certo sentimento de indifferença ou despreoccupação, que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres. Ellas, aliás, não gostavam de sahir de carro; mas elle teimava tanto que sahissem, que fossem a toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remedio senão obedecer-lhe; e, na rua, era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada um certo cocheiro, toda a gente dizia logo:--ahi vem a familia de Fulano Beltrão. E isto mesmo, sem que elle talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.

No anno de 1868 deu entrada na politica. Sei do anno porque coincidiu com a queda dos liberaes e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que elle declarou adherir á situação, não á socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinha idéas politicas; quando muito, dispunha de um d'esses temperamentos que substituem as idéas, e fazem crer que um homem pensa, quando simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma allucinação de momento. Viu-se na camara vibrando um áparte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o presidente do conselho, que sorria para elle, n'uma intimidade grave de governo. E ahi é que a galeria, na exacta accepção do termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que poude para entrar na camara; a meio caminho cahiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de affirmar ao Itaborahy o contrario do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma cousa; mas perdeu a eleição, e deu de mão á politica. Muito mais acertado andou, mettendo-se na questão da maçonaria com os prelados. Deixára-se estar quedo, a principio; por um lado, era maçon; por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflicto tomou taes proporções que elle não podia ficar calado; entrou n'elle com o ardor, a expansão, a publicidade que mettia em tudo; celebrou reuniões em que fallou muito da liberdade de consciencia e do direito que assistia ao maçon de enfiar uma opa; assignou protestos, representações, felicitações, abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.

Morreu-lhe a mulher em 1878. Ella pediu-lhe que a enterrasse sem apparato, e elle assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua ultima vontade como um decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dôr com o publico; e, se enterrou a mulher sem apparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Italia um magnifico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na rua do Ouvidor, durante perto de um mez. A filha ainda veiu assistir á inauguração. Deixei de os ver uns quatro annos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dous mezes o levou d'esta para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força d'alma. Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar ás que chegavam, as que acabavam de sahir; cousa inutil, porque uma folha amiga publicava-as todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu lêr os jornaes, e n'um d'elles uma pequena communicação relativamente á sua molestia, o que de algum modo pareceu reanimal-o. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; á noite expirou.

Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são elles. São; entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das praticas tabelliôas; mas isto mesmo de contar a familia desde o quarto avô prova o espirito exacto e paciente do meu amigo. Não esquecia nada. O ceremonial do sahimento é longo e complicado, mas bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos pios; alguns industriaes. Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...

Trinta contos para que? Para servir de começo a uma subscripção publica destinada a erigir uma estatua a Pedro Alvares Cabral. «Cabral, diz alli o testamento, não póde ser olvidado dos brazileiros, foi o precursor do nosso imperio». Recommenda que a estatua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o retrato do bispo Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração mineira, e o de dous cidadãos da presente geração «notáveis por seu patriotismo e liberalidade» á escolha da commissão, que elle mesmo nomeou para levar a empreza a cabo.

Que ella se realise, não sei; falta-nos a perseverança do fundador da verba. Dado, porém, que a commissão se desempenhe da tarefa, e que este sol americano ainda veja erguer-se a estatua de Cabral, é da nossa honra que elle contemple n'um dos medalhões o retrato do meu finado amigo. Não lhe parece? Bem, o magistrado acabou, vamos embora.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 08 de abril de 2022

FREI SIMÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FREI SIMÃO

Machado de Assis

 

 

 

I

 

Frei Simão era um frade da ordem dos Beneditinos. Tinha, quando morreu, cinqüenta anos em aparência, mas na realidade trinta e oito. A causa desta velhice prematura derivava da que o levou ao claustro na idade de trinta anos, e, tanto quanto se pode saber por uns fragmentos de Memórias que ele deixou, a causa era justa.

Era frei Simão de caráter taciturno e desconfiado. Passava dias inteiros na sua cela, donde apenas saía na hora do refeitório e dos ofícios divinos. Não contava amizade alguma no convento, porque não era possível entreter com ele os preliminares que fundam e consolidam as afeições.

Em um convento, onde a comunhão das almas deve ser mais pronta e mais profunda, frei Simão parecia fugir à regra geral. Um dos noviços pôs-lhe alcunha de urso, que lhe ficou, mas só entre os noviços, bem entendido. Os frades professos, esses, apesar do desgosto que o gênio solitário de frei Simão lhes inspirava, sentiam por ele certo respeito e veneração.

Um dia anuncia-se que frei Simão adoecera gravemente. Chamaram-se os socorros e prestou-se ao enfermo todos os cuidados necessários. A moléstia era mortal: depois de cinco dias frei Simão expirou.

Durante estes cinco dias de moléstia, a cela de frei Simão esteve cheia de frades. Frei Simão não disse uma palavra durante esses cinco dias; só no último, quando se aproximava o minuto fatal, sentou-se no leito, fez chamar para mais perto o abade, e disse-lhe ao ouvido com voz sufocada e em tom estranho:

- Morro odiando a humanidade!

O abade recuou até a parede ao ouvir estas palavras, e no tom em que foram ditas. Quanto a frei Simão, caiu sobre o travesseiro e passou à eternidade.

Depois de feitas ao irmão finado as honras que se lhe deviam, a comunidade perguntou ao seu chefe que palavras ouvira tão sinistras que o assustaram. O abade referiu-as, persignando-se. Mas os frades não viram nessas palavras senão um segredo do passado, sem dúvida importante, mas não tal que pudesse lançar o terror no espírito do abade. Este explicou-lhes a idéia que tivera quando ouviu as palavras de frei Simão, no tom em que foram ditas, e acompanhadas do olhar com que o fulminou: acreditara que frei Simão estivesse doido; mais ainda, que tivesse entrado já doido para a ordem. Os hábitos da solidão e taciturnidade a que se votara o frade pareciam sintomas de uma alienação mental de caráter brando e pacífico; mas durante oito anos parecia impossível aos frades que frei Simão não tivesse um dia revelado de modo positivo a sua loucura; objetaram isso ao abade; mas este persistia na sua crença.

Entretanto procedeu-se ao inventário dos objetos que pertenciam ao finado, e entre eles achou-se um rolo de papéis convenientemente enlaçados, com este rótulo: "Memórias que há de escrever frei Simão de Santa Águeda, frade beneditino".

Este rolo de papéis foi um grande achado para a comunidade curiosa. Iam finalmente penetrar alguma coisa no véu misterioso que envolvia o passado de frei Simão, e talvez confirmar as suspeitas do abade.

O rolo foi aberto e lido perante todos.

Eram, pela maior parte, fragmentos incompletos, apontamentos truncados e notas insuficientes; mas de tudo junto pôde-se colher que realmente frei Simão estivera louco durante certo tempo.

O autor desta narrativa despreza aquela parte das Memórias que não tiver absolutamente importância; mas procura aproveitar a que for menos inútil ou menos obscura.

 

 

II

 

As notas de frei Simão nada dizem do lugar do seu nascimento nem do nome de seus pais. O que se pôde saber dos seus princípios é que, tendo concluído os estudos preparatórios, não pôde seguir a carreira das letras, como desejava, e foi obrigado a entrar como guarda-livros na casa comercial de seu pai.

Morava então em casa de seu pai uma prima de Simão, órfã de pai e mãe, que haviam por morte deixado ao pai de Simão o cuidado de a educarem e manterem. Parece que os cabedais deste deram para isto. Quanto ao pai da prima órfã, tendo sido rico, perdera tudo ao jogo e nos azares do comércio, ficando reduzido à última miséria.

A órfã chamava-se Helena; era bela, meiga e extremamente boa. Simão, que se educara com ela, e juntamente vivia debaixo do mesmo teto, não pôde resistir às elevadas qualidades e à beleza de sua prima. Amaram-se. Em seus sonhos de futuro contavam ambos o casamento, coisa que parece o mais natural do mundo para corações amantes.

Não tardou muito que os pais de Simão descobrissem o amor dos dois. Ora é preciso dizer, apesar de não haver declaração formal disto nos apontamentos do frade, é preciso dizer que os referidos pais eram de um egoísmo descomunal. Davam de boa vontade o pão da subsistência a Helena; mas lá casar o filho com a pobre órfã é que não podiam consentir. Tinham posto a mira em uma herdeira rica, e dispunham de si para si que o rapaz se casaria com ela.

Uma tarde, como estivesse o rapaz a adiantar a escrituração do livro mestre, entrou no escritório o pai com ar grave e risonho ao mesmo tempo, e disse ao filho que largasse o trabalho e o ouvisse. O rapaz obedeceu. O pai falou assim:

- Vais partir para a província de ***. Preciso mandar umas cartas ao meu correspondente Amaral, e ,como sejam elas de grande importância, não quero confiá-las ao nosso desleixado correio. Queres ir no vapor ou preferes o nosso brigue?

Esta pergunta era feita com grande tino.

Obrigado a responder-lhe, o velho comerciante não dera lugar a que seu filho apresentasse objeções.

O rapaz enfiou, abaixou os olhos e respondeu:

- Vou onde meu pai quiser.

O pai agradeceu mentalmente a submissão do filho, que lhe poupava o dinheiro da passagem no vapor, e foi muito contente dar parte à mulher de que o rapaz não fizera objeção alguma.

Nessa noite os dois amantes tiveram ocasião de encontrar-se a sós na sala de jantar.

Simão contou a Helena o que se passara. Choraram ambos algumas lágrimas furtivas, e ficaram na esperança de que a viagem fosse de um mês, quando muito.

À mesa do chá, o pai de Simão conversou sobre a viagem do rapaz, que devia ser de poucos dias. Isto reanimou as esperanças dos dois amantes. O resto da noite passou-se em conselhos da parte do velho ao filho sobre a maneira de portar-se na casa do correspondente. Às dez horas, como de costume, todos se recolheram aos aposentos.

Os dias passaram-se depressa. Finalmente raiou aquele em que devia partir o brigue. Helena saiu do seu quarto com os olhos vermelhos de chorar. Interrogada bruscamente pela tia, disse que era uma inflamação adquirida pelo muito que lera na noite anterior. A tia prescreveu-lhe abstenção da leitura e banhos de água de malvas.

Quanto ao tio, tendo chamado Simão, entregou-lhe uma carta para o correspondente, e abraçou-o. A mala e um criado estavam prontos. A despedida foi triste. Os dois pais sempre choraram alguma coisa, a rapariga muito.

Quanto a Simão, levava os olhos secos e ardentes. Era refratário às lágrimas; por isso mesmo padecia mais.

O brigue partiu. Simão, enquanto pôde ver terra, não se retirou de cima; quando finalmente se fecharam de todo as paredes do cárcere que anda, na frase pitoresca de Ribeyrolles, Simão desceu ao seu camarote, triste e com o coração apertado. Havia como um pressentimento que lhe dizia interiormente ser impossível tornar a ver sua prima. Parecia que ia para um degredo.

Chegando ao lugar do seu destino, procurou Simão o correspondente de seu pai e entregou-lhe a carta. O Sr. Amaral leu a carta, fitou o rapaz, e, depois de algum silêncio, disse-lhe, volvendo a carta:

- Bem, agora é preciso esperar que eu cumpra esta ordem de seu pai. Entretanto venha morar para a minha casa.

- Quando poderei voltar? perguntou Simão.

- Em poucos dias, salvo se as coisas se complicarem.

Este salvo, posto na boca de Amaral como incidente, era a oração principal. A carta do pai de Simão versava assim:

"Meu caro Amaral,

"Motivos ponderosos me obrigam a mandar meu filho desta cidade. Retenha-o por lá como puder. O pretexto da viagem é ter eu necessidade de ultimar alguns negócios com você, o que dirá ao pequeno, fazendo-lhe sempre crer que a demora é pouca ou nenhuma. Você, que teve na sua adolescência a triste idéia de engendrar romances, vá inventando circunstâncias e ocorrências imprevistas, de modo que o rapaz não me torne cá antes de segunda ordem. Sou, como sempre" ,etc.

 

 

III

 

Passaram-se dias e dias, e nada de chegar o momento de voltar à casa paterna. O ex-romancista era na verdade fértil, e não se cansava de inventar pretextos que deixavam convencido o pobre rapaz.

Entretanto, como o espírito dos amantes não é menos engenhoso que o dos romancistas, Simão e Helena acharam um meio de se escreverem, e deste modo podiam consolar-se da ausência, com presença das letras e do papel. Bem diz Heloísa que a arte de escrever foi inventada por alguma amante separada do seu amante. Nestas cartas juravam-se os dois sua eterna fidelidade.

No fim de dois meses de espera baldada e de ativa correspondência, a tia de Helena surpreendeu uma carta de Simão. Era a vigésima, creio eu. Houve grande temporal em casa. O tio, que estava no escritório, saiu precipitadamente e tomou conhecimento do negócio. O resultado foi proscrever de casa tinta, penas e papel, e instituir vigilância rigorosa sobre a infeliz rapariga.

Começaram pois a escassear as cartas ao pobre deportado. Inquiriu a causa disto em cartas choradas e compridas; mas como o rigor fiscal da casa de seu pai adquiria proporções descomunais, acontecia que todas as cartas de Simão iam parar às mãos do velho, que, depois de apreciar o estilo amoroso de seu filho, fazia queimar as ardentes epístolas.

Passaram-se dias e meses. Carta de Helena, nenhuma. O correspondente ia esgotando a veia inventadora, e já não sabia como reter finalmente o rapaz.

Chega uma carta a Simão. Era letra do pai. Só diferençava das outras que recebia do velho em ser esta mais longa, muito mais longa. O rapaz abriu a carta, e leu trêmulo e pálido. Contava nesta carta o honrado comerciante que a Helena, a boa rapariga que ele destinava a ser sua filha casando-se com Simão, a boa Helena tinha morrido. O velho copiara algum dos últimos necrológios que vira nos jornais, e ajuntara algumas consolações de casa. A última consolação foi dizer-lhe que embarcasse e fosse ter com ele.

O período final da carta dizia:

"Assim como assim, não se realizam os meus negócios; não te pude casar com Helena, visto que Deus a levou. Mas volta, filho, vem; poderás consolar-te casando com outra, a filha do conselheiro ***. Está moça feita e é um bom partido. Não te desalentas; lembra-te de mim".

O pai de Simão não conhecia bem o amor do filho, nem era grande águia para avaliá-lo, ainda que o conhecesse. Dores tais não se consolidam com uma carta nem com um casamento. Era melhor mandá-lo chamar, e depois preparar-lhe a notícia; mas dada assim friamente em uma carta, era expor o rapaz a uma morte certa.

Ficou Simão vivo em corpo e morto moralmente, tão morto que por sua própria idéia foi dali procurar uma sepultura. Era melhor dar aqui alguns dos papéis escritos por Simão relativamente ao que sofreu depois da carta; mas há muitas falhas, e eu não quero corrigir a exposição ingênua e sincera do frade.

A sepultura que Simão escolheu foi um convento. Respondeu ao pai que agradecia a filha do conselheiro, mas que daquele dia em diante pertencia ao serviço de Deus.

O pai ficou maravilhado. Nunca suspeitou que o filho pudesse vir a ter semelhante resolução. Escreveu às pressas para ver se o desviava da idéia; mas não pôde conseguir.

Quanto ao correspondente, para quem tudo se embrulhava cada vez mais, deixou o rapaz seguir para o claustro, disposto a não figurar em um negócio do qual nada realmente sabia.

 

 

IV

 

Frei Simão de Santa Águeda foi obrigado a ir à província natal em missão religiosa, tempos depois dos fatos que acabo de narrar.

Preparou-se e embarcou.

A missão não era na capital, mas no interior. Entrando na capital, pareceu-lhe dever ir visitar seus pais. Estavam mudados física e moralmente. Era com certeza a dor e o remorso de terem precipitado seu filho à resolução que tomou. Tinham vendido a casa comercial e viviam de suas rendas.

Receberam o filho com alvoroço e verdadeiro amor. Depois das lágrimas e das consolações, vieram ao fim da viagem de Simão.

- A que vens tu, meu filho?

- Venho cumprir uma missão do sacerdócio que abracei. Venho pregar, para que o rebanho do Senhor não se arrede nunca do bom caminho.

- Aqui na capital?

- Não, no interior. Começo pela vila de ***.

Os dois velhos estremeceram; mas Simão nada viu. No dia seguinte partiu Simão, não sem algumas instâncias de seus pais para que ficasse. Notaram eles que seu filho nem de leve tocara em Helena. Também eles não quiseram magoá-lo falando em tal assunto.

Daí a dias, na vila de que falara frei Simão, era um alvoroço para ouvir as prédicas do missionário.

A velha igreja do lugar estava atopetada de povo.

À hora anunciada, frei Simão subiu ao púlpito e começou o discurso religioso. Metade do povo saiu aborrecido no meio do sermão. A razão era simples. Avezado à pintura viva dos caldeirões de Pedro Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia ouvir com prazer a linguagem simples, branda, persuasiva, a que serviam de modelo as conferências do fundador da nossa religião.

O pregador estava a terminar, quando entrou apressadamente na igreja um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador, meio remediado com o sítio que possuía e a boa vontade de trabalhar; ela, senhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia invencível.

Depois de tomarem água benta, colocaram-se ambos em lugar donde pudessem ver facilmente o pregador.

Ouviu-se então um grito, e todos correram para a recém-chegada, que acabava de desmaiar. Frei Simão teve de parar o seu discurso, enquanto se punha termo ao incidente. Mas, por uma aberta que a turba deixava, pôde ele ver o rosto da desmaiada.

Era Helena.

No manuscrito do frade há uma série de reticências dispostas em oito linhas. Ele próprio não sabe o que se passou. Mas o que se passou foi que, mal conhecera Helena, continuou o frade o discurso. Era então outra coisa: era um discurso sem nexo, sem assunto, um verdadeiro delírio. A consternação foi geral.

 

 

V

 

O delírio de frei Simão durou alguns dias. Graças aos cuidados, pôde melhorar, e pareceu a todos que estava bom, menos ao médico, que queria continuar a cura. Mas o frade disse positivamente que se retirava ao convento, e não houve forças humanas que o detivessem.

O leitor compreende naturalmente que o casamento de Helena fora obrigado pelos tios.

A pobre senhora não resistiu à comoção. Dois meses depois morreu, deixando inconsolável o marido, que a amava com veras.

Frei Simão, recolhido ao convento, tornou-se mais solitário e taciturno. Restava-lhe ainda um pouco da alienação.

Já conhecemos o acontecimento de sua morte e a impressão que ela causara ao abade.

A cela de frei Simão de Santa Águeda esteve muito tempo religiosamente fechada. Só se abriu, algum tempo depois, para dar entrada a um velho secular, que por esmola alcançou do abade acabar os seus dias na convivência dos médicos da alma. Era o pai de Simão. A mãe tinha morrido.

Foi crença, nos últimos anos de vida deste velho, que ele não estava menos doido.

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 06 de abril de 2022

FRANCISCA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

FRANCISCA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 04 de abril de 2022

FOLHA ROTA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FOLHA ROTA

Machado de Assis

 

 

 

inham dado ave-marias; a Sra. D. Ana Custódia saiu para ir levar umas costuras à loja que era na Rua do Hospício. Pegou das costuras, entrouxou-as, pôs um xale às costas, um rosário ao pescoço, deu cinco ou seis ordens à sobrinha e caminhou para a porta.

 

— Venha quem vier, não abras, disse ela com a mão no ferrolho; já sabes o costume.

 

— Sim, titia.

 

— Não me demoro nada.

 

— Venha cedo.

 

— Venho, que a chuva pode cair. O céu está preto.

 

— Oh! titia, se roncar trovoada!

 

— Reza; mas eu volto já.

 

  1. Ana persignou-se e saiu.

 

A sobrinha fechou a rótula, acendeu uma vela e foi sentar-se a uma mesa de costura.

 

Luísa Marques tinha dezoito anos. Não era um prodígio de beleza, mas não era feia; pelo contrário, as feições eram regulares, as maneiras gentis. O olhar meigo e cândido. Mediana de estatura, delgada, naturalmente elegante, tinha proporções para vestir bem e primar pelos adornos. Infelizmente, não tinha adornos nem os vestidos eram bem cortados. Pobres, já se vê que deviam ser. Que outras coisas seriam os vestidos de uma filha de operário, órfã de pai e mãe, condenada a coser para ajudar a sustentar a casa da tia! Era um vestido de chita grossa, cortado por ela mesma, sem arte nem inspiração.

 

Penteada com certo desleixo, parece que isso mesmo lhe dobrava a graça da fronte. Encostada à mesa velha de trabalho, com a cabeça inclinada sobre a costura, os dedos a correrem pela fazenda, com a agulha fina e ágil não excitava a admiração, mas despertava a simpatia.

 

Logo depois de sentar-se, Luísa ergueu-se duas vezes e foi até à porta. De quando em quando levantava a cabeça como a prestar ouvido. Continuava a coser. Se a tia chegasse achá-la-ia a trabalhar com uma tranqüilidade verdadeiramente digna de imitação. E beijá-la-ia como costumava e lhe diria alguma coisa graciosa, que a menina ouviria com agradecimento.

 

Luísa adorava a tia, que lhe servia de mãe e pai, que a educara desde os sete anos. Por outro lado, D. Ana Custódia tinha-lhe afeto verdadeiramente maternal; uma e outra não possuíam outra família. Havia certamente dois parentes mais, um correeiro, cunhado de D. Ana, e um filho deste. Mas não se freqüentavam; havia até motivos para isso.

 

Vinte minutos depois de sair D. Ana, sentiu Luísa um rumor na rótula, como que um som leve de bengala que por ali roçasse. Estremeceu, mas não se assustou. Levantou-se devagarinho, como se a tia pudesse ouvi-la e foi até à rótula.

 

— Quem é? disse em voz baixa.

 

— Eu. Está cá?

 

— Não.

 

Luísa abriu um poucachinho a janela, uma curta fresta. Estendeu a mão por ela, e apertou-lha um rapaz que estava do lado de fora.

 

O rapaz era alto, e se não fosse noite fechada podia ver-se que tinha uns bonitos olhos, sobretudo um porte airoso. Eram graças naturais; artificiais não possuía nenhuma; vestia modestamente, sem pretensão.

 

— Saiu há muito tempo? perguntou ele.

 

— Há pouco.

 

— Volta já?

 

— Disse que sim. Não podemos hoje falar muito tempo.

 

— Nem hoje, nem quase nunca.

 

— Que quer você, Caetaninho? perguntou a moça tristemente. Eu não posso abusar; titia não gosta de me ver à janela.

 

— Há três dias que te não vejo, Luísa! suspirou ele.

 

— Eu, há um dia só.

 

— Viste-me ontem?

 

— Vi: quando você passou de tarde às cinco horas.

 

— Passei duas vezes; de tarde e de noite: sempre fechado.

 

— Titia estava em casa.

 

As duas mãos tornaram a encontrar-se e ficaram presas uma à outra. Correram assim alguns minutos, três ou quatro.

 

Caetaninho tornou a falar, a queixar-se, a gemer, a maldizer da sorte, enquanto Luísa o consolava e confortava. Na opinião do rapaz, não havia ninguém mais infeliz do que ele.

 

— Queres saber uma coisa? perguntou o namorado.

 

— Que é?

 

— Penso que papai desconfia...

 

— E então?...

 

— Desconfia e não aprova.

 

Luísa empalideceu.

 

— Oh! mas não faz mal! Eu só espero poder arranjar a minha vida; depois se queira ou não queira...

 

— Isso, não, se titio não aprova parece feio.

 

— Desprezar-te?

 

— Você não me despreza, emendou Luísa; mas desobedecerá a seu pai.

 

— Obedecer em tal caso, era feio da minha parte. Não, não obedecerei nunca!

 

— Não digas isso!

 

— Deixa-me arranjar a vida, verás: verás.

 

Luísa estava silenciosa alguns minutos, mordendo a ponta do lenço que tinha ao pescoço.

 

— Mas por que motivo é que você pensa que ele desconfia?

 

— Penso... suponho. Ontem soltou-me uma indireta, lançou-me um olhar de ameaça e fez um gesto... Não tem dúvida, dá-lhe para não aprovar a escolha de meu coração, como se eu precisasse consultá-lo...

 

— Não fale assim, Caetaninho!

 

— Também não sei por que motivo ele não se dá com titia! Se se dessem, tudo caminhava bem; mas é a minha desgraça, é a minha desgraça!

 

Caetano, filho do correeiro, lastimou-se ainda durante uns dez minutos; e sendo já longo o tempo da conversa, Luísa pediu-lhe e alcançou que ele se retirasse. Não o fez o moço sem um novo aperto de mão e um pedido que Luísa recusou.

 

O pedido era um... ósculo, digamos ósculo, que é menos cru, ou mais poético. O rapaz pedia-o invariavelmente, e ela invariavelmente o negava.

 

— Luísa, disse ele, no fim da recusa, espero que muito breve estaremos casados.

 

— Sim; mas não faça zangar seu pai.

 

— Não: farei tudo de harmonia com ele. Se recusar...

 

— Peço a Nossa Senhora que não.

 

— Mas, diga você; se ele recusar, que devo eu fazer?

 

— Esperar.

 

— Pois sim! Isso é bom de dizer.

 

— Vá; adeus; titia pode vir.

 

— Até breve, Luísa!

 

— Adeus!

 

— Passarei amanhã; se você não puder estar à janela, ao menos espie por dentro, sim?

 

— Sim.

 

Novo aperto de mão; dois suspiros; ele seguiu; ela fechou de todo o postigo.

 

Fechado o postigo, Luísa foi sentar-se outra vez à mesa de costura. Não ia alegre, como era de supor em uma moça que acabava de falar ao namorado; ia triste. Mergulhou toda no trabalho, ao que parece para esquecer alguma coisa ou aturdir o espírito. Mas não durou muito o remédio. Daí a pouco tinha levantado a cabeça e olhava fitamente o ar. Devaneava naturalmente; mas não eram devaneios azuis, senão negros, bem negros, mais negros que seus grandes olhos tristes.

 

O que ela dizia consigo era que tinha duas afeições na vida, uma franca, a da tia, outra encoberta, a do primo; e não sabia se tão cedo poderia mostrá-las juntas ao mundo. A notícia de que o tio desconfiasse alguma coisa e desaprovava talvez o amor de Caetano desconsolava-a e fazia-a tremer. Talvez fosse verdade; era possível que o correeiro destinasse o filho a outra. Em todo o caso as duas famílias não se davam — não sabia Luísa por que motivo —, e este fato podia contribuir para tornar difícil a realização de seu único e modesto sonho. Essas idéias, ora vagas, ora medonhas, mas sempre tingidas da cor da melancolia, abalavam seu espírito durante alguns minutos.

 

Depois veio a reação; a mocidade readquiriu seus direitos; a esperança trouxe a sua cor viva aos sonhos de Luísa. Ela olhou para o futuro e confiou nele. Que era um obstáculo momentâneo? Nada, se dois corações se amam. E haveria esse obstáculo? Dado que houvesse, ele seria o ramo de oliveira. No dia em que o tio soubesse que o filho a amava deveras e era correspondido, não tinha mais do que aprovar. Talvez mesmo a fosse pedir à tia D. Ana, que a estremecia, e recebê-lo-ia com lágrimas. O casamento seria o vínculo de todos os corações.

 

Nesses sonhos passaram ainda uns dez minutos. Luísa reparou que a costura estava atrasada e voltou de novo a atenção para ela.

 

  1. Ana voltou; Luísa foi abrir-lhe a porta, sem hesitação porque a tia convencionara um modo de bater, a fim de evitar surpresas de gente má.

 

Vinha um pouco amuada a velha; mas passou logo depois do beijo à sobrinha. Trazia o dinheiro da costura que fora levar à loja. Tirou o xale, descansou um pouco; foi ela própria cuidar da ceia. Luísa ficou cosendo algum tempo. Ergueu-se depois; preparou a mesa.

 

Tomaram um pouco de mate as duas, sozinhas e silenciosas. Era raro o silêncio, porque D. Ana, sem ser palradora, estava longe de ser taciturna. Tinha a palavra alegre. Luísa reparou naquela mudança e receou que a tia houvesse visto o vulto do primo de longe, e, não sabendo quem fosse, naturalmente ficara molestada. Seria isso? Luísa fez esta pergunta a si mesma e sentiu corar de vergonha. Criou algumas forças, e interrogou diretamente a tia.

 

— Que tem, que está tão triste? perguntou a moça.

 

  1. Ana limitou-se a levantar os ombros.

 

— Está zangada comigo? murmurou Luísa.

 

— Contigo, meu anjo? disse D. Ana apertando-lhe a mão; não, não é contigo.

 

— É com outra pessoa, concluiu a sobrinha. Posso saber quem é?

 

— Ninguém, ninguém. Fujo sempre de passar pela porta do Cosme e passo por outra rua; mas por desgraça, escapei ao pai e não escapei ao filho...

 

Luísa empalideceu.

 

— Ele não me viu, continuou D. Ana; mas eu bem o conheci. Felizmente era noite.

 

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual a moça repetia as palavras da tia. Por desgraça! dissera D. Ana. Que havia pois entre ela e os dois parentes? Tinha vontade de a interrogar, mas não se atrevia; a velha não continuou; uma e outra refletiam caladamente.

 

Foi Luísa quem rompeu o silêncio:

 

— Mas por que foi desgraça encontrar o primo?

 

— Por quê?

 

Luísa confirmou a pergunta com um gesto de cabeça.

 

— Contos largos, disse D. Ana, contos largos. Um dia te contarei tudo.

 

Luísa não insistiu; ficou acabrunhada. O resto da noite foi sombrio para ela; fingiu ter sono e recolheu-se mais cedo do que costumava. Não tinha sono; velou ainda duas longas horas a trabalhar com o espírito, a beber uma ou outra lágrima indiscreta ou impaciente de lhe retalhar a face juvenil. Dormiu finalmente; e como de costume acordou cedo. Tinha um plano feito e a resolução de o executar até o fim. O plano era interrogar a tia outra vez, mas então disposta a saber a verdade, qualquer que ela fosse. Foi depois do almoço, que se lhe ofereceu a melhor ocasião, quando as duas se sentaram a trabalhar. D. Ana recusou a princípio; mas a insistência de Luísa foi tal, e ela amava-a tanto, que não lhe recusou dizer o que havia.

 

— Tu não conheces teu tio, disse a boa velha; nunca viveste com ele. Eu conheço-o muito. Minha irmã, que ele tirou de casa para perdê-la, viveu com ele dez anos de martírio. Se eu te contasse o que ela sofreu não havias de acreditar. Basta dizer que, se não fosse o abandono em que o marido a deixou, o pouco caso que fez da moléstia, talvez ela não tivesse morrido. E daí pode ser que sim. Creio que ela estimou não tomar remédios, para acabar mais depressa. O maldito não deitou uma lágrima; jantou no dia da morte como costumava jantar nos mais dias. O enterro saiu e ele continuou a vida de antes. Coitada! Quando me lembro...

 

Neste ponto, D. Ana interrompeu-se para enxugar as lágrimas, e Luísa não pôde também reter as suas.

 

— Ninguém sabe para o que veio ao mundo! exclamou sentenciosamente D. Ana. Aquela era a mais querida de meu pai; foi a mais infeliz. Destinos! destinos! O que te contei é já bastante para explicar a inimizade que nos separa. Acrescenta-lhe o gênio mau que ele tem, os modos grosseiros, e a língua... oh! a língua! Foi a língua dele que me feriu...

 

— Como?

 

— Luísa, tu és inocente, nada sabes deste mundo; mas é bom que aprendas alguma coisa. Aquele homem, depois de fazer morrer minha irmã lembrou-se de gostar de mim, e teve o atrevimento de vir declará-lo na minha casa. Eu então era outra mulher que não sou hoje; tinha cabelinho na venta. Não lhe respondi palavra; levantei a mão e castiguei-o no rosto. Vinguei-me e perdi-me. Ele recebeu o castigo calado; mas tratou de vingar-se também. Não te contarei o que disse e trabalhou contra mim; é longo e triste; basta saber que cinco meses depois, meu marido me pôs pela porta fora. Estava difamada; perdida; sem futuro nem reputação. Foi ele a causa de tudo. Meu marido era homem de boa-fé. Queria-me muito e morreu pouco depois de paixão.

 

Calou-se D. Ana, calou-se sem lágrimas nem gestos, mas com um rosto tão pálido de dor, que Luísa atirou-se a ela e abraçou-a. Foi esse gesto da moça que fez romper as lágrimas da velha. Chorou-as D. Ana longas e amargas; ajudou a chorá-las a sobrinha, que de envolta com ela lhe disse muita palavra consoladora. D. Ana recobrou a fala.

 

— Não terei razão em odiá-lo? perguntou ela.

 

O silêncio de Luísa foi a melhor resposta.

 

— Quanto ao filho nada me fez, continuou a velha; mas, se é filho de minha irmã também é filho dele. É o mesmo sangue, que eu odeio.

 

Luísa estremeceu.

 

— Titia! disse a moça.

 

— Odeio, sim! Ah! que a maior dor da minha vida seria... Não, não há de ser assim. Luísa, eu, se te visse casada com o filho daquele homem, morria decerto, porque perderia a única afeição, que me resta no mundo. Tu não pensas nisso; mas juras-me que em nenhum caso farás semelhante coisa?

 

Luísa empalideceu; hesitou um instante; mas jurou. Esse juramento foi o golpe último e mortal de suas esperanças. Nem o pai dele nem a mãe dela (D. Ana era quase mãe) consentiriam em fazê-la feliz. Luísa não se atreveu a defender o primo, a explicar que ele não tinha culpa nos atos e vilanias do pai. Que adiantaria isso, depois do que ouvira? O ódio estendia-se do pai ao filho; havia um abismo entre as duas famílias.

 

Naquele dia e no outro e no terceiro, chorou Luísa, nas poucas horas em que podia estar só, as lágrimas todas do desespero. No quarto dia já não tinha mais que chorar. Consolou-se como se consolam os desgraçados. Viu ir-se o único sonho da vida, a melhor esperança do futuro. Só então compreendeu a intensidade do amor que a prendia ao primo. Era o seu primeiro amor; estava destinado a ser o último.

 

Caetano passou ali muitas vezes; deixou de vê-la duas semanas inteiras. Supô-la doente e indagou da vizinhança. Quis escrever-lhe, mas não havia meio de entregar uma carta. Espreitava as horas em que a tia saía de casa e ia bater à porta. Trabalho inútil! A porta não se abria. Uma vez viu-a de longe à janela, apertou o passo; Luísa olhava para o lado oposto; não o viu vir. Chegando ao pé da porta, parou ele e disse:

 

— Enfim!

 

Luísa estremeceu, voltou-se e dando com o primo fechou o postigo com tanta pressa que um pedaço de manga do vestido ficou preso. Cego de dor, Caetaninho tentou empurrar o postigo, mas a moça havia-o fechado com o ferrolho. A manga do vestido foi puxada violentamente e rasgada. Caetano afastou-se com o inferno no coração; Luísa foi dali atirar-se ao leito lavada em lágrimas.

 

As semanas, os meses, os anos passaram. Caetaninho não foi esquecido; mas nunca mais se encontraram os olhos dos dois namorados. Oito anos depois morreu D. Ana. A sobrinha aceitou a proteção de uma vizinha e foi para casa dela, onde trabalhava dia e noite. No fim de catorze meses adoeceu de tubérculos pulmonares; arrastou uma vida aparente de dois anos. Tinha quase trinta quando morreu; enterrou-se por esmolas.

 

Caetaninho viveu; aos trinta e cinco anos era casado, pai de um filho, negociante de fazendas, jogava o voltarete e engordava. Morreu juiz de uma irmandade e comendador.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 02 de abril de 2022

FLOR ANÔNIMA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FLOR ANÔNIMA

Machado de Assis

 

 

 

Manhã clara. A alma de Martinha é que acordou escura. Tinha ido na véspera a um casamento; e, ao tornar para casa, com a tia que mora com ela, não podia encobrir a tristeza que lhe dera a alegria dos outros e particularmente dos noivos.

 

Martinha ia nos seus... Nascera há muitos anos. Toda a gente que estava em casa, quando ela nasceu, anunciou que seria a felicidade da família. O pai não cabia em si de contente.

 

— Há de ser linda!

 

— Há de ser boa!

 

— Há de ser condessa!

 

— Há de ser rainha!

 

Essas e outras profecias iam ocorrendo aos parentes e amigos da casa.

 

Lá vão... Aqui pega a alma escura de Martinha. Lá vão quarenta e três anos, — ou quarenta e cinco, segundo a tia; Martinha, porém, afirma que são quarenta e três. Adotemos este número. Para ti, moça de vinte anos, a diferença é nada; mas deixa-te ir aos quarenta, nas mesmas circunstâncias que ela, e verás se não te cerceias uns dois anos. E depois nada obsta que marches um pouco para trás. Quarenta e três, quarenta e dois, fazem tão pouca diferença...

 

Naturalmente a leitora espera que o marido de Martinha apareça, depois de ter lido os jornais ou enxugado do banho. Mas é que não há marido, nem nada. Martinha é solteira, e daí vem a alma escura desta bela manhã clara e fresca, posterior à noite de bodas.

 

Só, tão só, provavelmente só até a morte; e Martinha morrerá tarde, porque é robusta como um trabalhador e sã como um pero. Não teve mais que a tia velha. Pai e mãe morreram, e cedo.

 

A culpa dessa solidão a quem pertence? ao destino ou a ela? Martinha crê, às vezes, que ao destino; às vezes, acusa-se a si própria. Nós podemos descobrir a verdade, indo com ela abrir a gaveta, a caixa, e na caixa a bolsa de veludo verde e velha, em que estão guardadas todas as suas lembranças amorosas. Agora que assistira ao casamento da outra, teve idéia de inventariar o passado. Contudo hesitou:

 

— Não, para que ver isto? É pior: deixemos recordações aborrecidas.

 

Mas o gosto de remoçar levou-a a abrir a gaveta, a caixa, e a bolsa; pegou da bolsa, e foi sentar-se ao pé da cama.

 

Há que anos não via aqueles despojos da mocidade! Pegou-lhes comovida, e entrou a revê-los.

 

De quem é esta carta? pensou ela ao ver a primeira. Teu Juca. Que Juca? Ah! o filho do Brito Brandão. “Crê que o meu amor será eterno!”. E casou pouco depois com aquela moça da Lapa. Eu era capaz de pôr a mão no fogo por ele. Foi no baile do Club Fluminense que o encontrei pela primeira vez. Que bonito moço! Alto, bigode fino, e uns olhos como nunca mais achei outros. Dançamos essa noite não sei quantas vezes. Depois começou a passar todas as tardes pela Rua dos Inválidos, até que nos foi apresentado. Poucas visitas, a princípio, depois mais e mais. Que tempo durou? Não me lembra; seis meses, nem tanto. Um dia começou a fugir, a fugir, até que de todo desapareceu. Não se demorou o casamento com a outra... “Crê que o meu amor será eterno!”

 

Martinha leu a carta toda e pô-la de lado.

 

— Qual! é impossível que a outra tenha sido feliz. Homens daqueles só fazem desgraçadas...

 

Outra carta. Gonçalves era o nome deste. Um Gonçalves louro, que chegou de S. Paulo, bacharelado de fresco, e fez tontear muita moça. O papel estava encardido e feio, como provavelmente estaria o autor. Outra carta, outras cartas. Martinha relia a maior parte delas. Não eram muitos os namorados; mas cada um deles deixara meia dúzia pelo menos, de lindas epístolas.

 

“Tudo perdido”, pensava ela.

 

E, uma palavra daqui, outra dali, fazia recordar tantos episódios deslembrados... “desde domingo (dizia um) que não me esquece o caso da bengala”. Que bengala? Martinha não atinou logo. Que bengala podia ser que fizesse ao autor da carta (um moço que principiava a negociar, e era agora abastado e comendador) não poder esquecê-la desde domingo?

 

Afinal deu com o que era; foi uma noite, ao sair da casa dela, que indo procurar a bengala, não a achou, porque uma criança de casa a levara para dentro; ela é que lha entregara à porta, e então trocaram um beijo...

 

Martinha ao lembrá-lo estremeceu. Mas refletindo que tudo agora estava esquecido, o domingo, a bengala e o beijo (o comendador tem agora três filhos), passou depressa a outras cartas.

 

Concluiu o inventário. Depois, acudindo-lhe que cada uma das cartas tivera resposta, perguntou a si mesma onde andariam as suas letras.

 

Perdidas, todas perdidas; rasgadas nas vésperas do casamento de cada um dos namorados, ou então varridas com o cisco, entre contas de alfaiates...

 

Abanou a cabeça para sacudir tão tristes idéias. Pobre Martinha! Teve ímpetos de rasgar todas aquelas velhas epístolas; mas sentia que era como se rasgasse uma parte da vida de si mesma, e recolheu-as.

 

Não haveria mais alguma na bolsa?

 

Meteu os olhos pela bolsa, não havia carta; havia apenas uma flor seca.

 

— Que flor é esta?

 

Descolorida, ressequida, a flor parecia trazer em si um bom par de dúzias de anos. Martinha não distinguia que espécie de flor era; mas fosse qual fosse, o principal era a história. Quem lha deu?

 

Provavelmente alguns dos autores das cartas, mas qual deles? e como? e quando?

 

A flor estava tão velha que se desfazia se não houvesse cuidado em lhe tocar.

 

Pobre flor anônima! Vejam a vantagem de escrever. O escrito traz a assinatura dos amores, dos ciúmes, das esperanças e das lágrimas. A flor não trazia data nem nome. Era uma testemunha que emudeceu. Os próprios sepulcros conservam o nome do pó guardado. Pobre flor anônima!

 

— Mas que flor é esta? repetiu Martinha.

 

Aos quarenta e cinco anos não admira que a gente esqueça uma flor. Martinha mirou-a, remirou-a, fechou os olhos a ver se atinava com a origem daquele despojo mudo.

 

Na história dos seus amores escritos não achou semelhante prenda; mas quem podia afirmar que não fosse dada de passagem, sem nenhum episódio importante a que se ligasse?

 

Martinha guardou as cartas para colocar a flor por cima, e impedir que o peso a desfibrasse mais depressa, quando uma recordação a assaltou:

 

— Há de ser... é... parece que é... É isso mesmo.

 

Lembrara-se do primeiro namorado que tivera, um bom rapaz de vinte e três anos; contava ela então dezenove. Era primo de umas amigas. Julião nunca lhe escrevera cartas. Um dia, depois de muita familiaridade com ela, por causa das primas, entrou a amá-la, a não pensar em outra coisa, e não o pôde encobrir, ao menos da própria Martinha. Esta dava-lhe alguns olhares, mais ou menos longos e risonhos; mas em verdade, não parecia aceitá-lo. Julião teimava, esperava, suspirava. Fazia verdadeiros sacrifícios, ia a toda parte onde presumia encontrá-la, gastava horas, perdia sonos. Tinha um emprego público e era hábil; com certeza subiria na escala administrativa, se pudesse cuidar somente dos seus deveres; mas o demônio da moça interpunha-se entre ele e os regulamentos. Esquecia-se, faltava à repartição, não tinha zelo nem estímulo. Ela era tudo para ele, e ele nada para ela. Nada; uma distração quando muito.

 

Um dia falara-se em não sei que flor bonita e rara no Rio de Janeiro. Alguém sabia de uma chácara onde a flor podia ser encontrada, quando a árvore a produzisse; mas, por enquanto, não produzia nada. Não havia outra, Martinha contava então vinte e um anos, e ia no dia seguinte ao baile do Club Fluminense; pediu a flor, queria a flor.

 

— Mas, se não há...

 

— Talvez haja, interveio Julião.

 

— Onde?

 

— Procurando-se.

 

— Crê que haja? perguntou Martinha.

 

— Pode haver.

 

— Sabe de alguma?

 

— Não, mas procurando-se... Deseja a flor para o baile de amanhã?

 

— Desejava.

 

Julião acordou no dia seguinte muito cedo; não foi à repartição e deitou-se a andar pelas chácaras dos arrabaldes. Da flor tinha apenas o nome e uma leve descrição. Percorreu mais de um arrabalde; ao meio-dia, urgido pela fome, almoçou rapidamente em uma casa de pasto. Tornou a andar, a andar, a andar. Em algumas chácaras era mal recebido, em outras gastava tempo antes que viesse alguém, em outras os cães latiam-lhe às pernas. Mas o pobre namorado não perdia a esperança de achar a flor. Duas, três, quatro horas da tarde. Eram cinco horas quando em uma chácara do Andaraí Grande

pôde achar a flor tão rara. Quis pagar dez, vinte ou trinta mil-réis por ela; mas a dona da casa, uma boa velha, que adivinhava amores a muitas léguas de distância, disse-lhe, rindo, que não custava nada.

 

— Vá, vá, leve o presente à moça, e seja feliz.

 

Martinha estava ainda a pentear-se quando Julião lhe levou a flor. Não lhe contou nada do que fizera, embora ela lho perguntasse. Martinha porém compreendeu que ele teria feito algum esforço, apertou-lhe muito a mão, e, à noite, dançou com ele uma valsa. No dia seguinte, guardou a flor, menos pelas circunstâncias do achado que pela raridade e beleza dela; e como era uma prenda de amor, meteu-a entre as cartas.

 

O rapaz, dentro de duas semanas, tornou a perder algumas esperanças que lhe haviam renascido. Martinha principiava o namoro do futuro comendador. Desesperado, Julião meteu-se para a roça, da roça para o sertão, e nunca mais houve notícia dele.

 

— Foi o único que deveras gostou de mim, suspirou agora Martinha, olhando para a pobre flor mirrada e anônima.

 

E, lembrando-se que podia estar casada com ele, feliz, considerada, com filhos, — talvez avó — (foi a primeira ocasião em que admitiu esta graduação sem pejo) Martinha concluiu que a culpa era sua, toda sua; queimou todas as cartas e guardou a flor.

 

Quis pedir à tia que lhe pusesse a flor no caixão, sobre o seu cadáver; mas era romântico demais. A negrinha chegara à porta:

 

— Nhanhã, o almoço está na mesa!


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 31 de março de 2022

FILOSOFIA DE UM PAR DE BOTAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FILOSOFIA DE UM PAR DE BOTAS

Machado de Assis

 

 

 

Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit.

 

Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.

 

Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjeturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, umas pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:

 

BOTA ESQUERDA.- Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.

 

BOTA DIREITA.- Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia! Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?

 

BOTA ESQUERDA.- Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de todas. Ao menos na elegância...

 

BOTA DIREITA.- Na elegância, ninguém nos vencia.

 

BOTA ESQUERDA.- Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas botinas cor de chocolate... aquele par...

 

BOTA DIREITA.- O dos botões de madrepérola?

 

BOTA ESQUERDA.- Esse.

 

BOTA DIREITA.- O daquela viúva?

 

BOTA ESQUERDA.- O da viúva.

 

BOTA DIREITA.- Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade. Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe.

 

BOTA ESQUERDA.- O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar-nos; éramos calçadas com cuidado, postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.

 

BOTA DIREITA.- Sempre te conheci pirracenta.

 

BOTA ESQUERDA.- Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim levou-nos.

 

BOTA DIREITA.- Era bom homem, o Dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete, até tarde, duas e três horas da madrugada; mas, como o divertimento era parado, não nos incomodava muito. E depois, entrava em casa, na pontinha dos pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?

 

BOTA ESQUERDA.- Ora! por sinal que a mulher fingia dormir para lhe não tirar as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa senhora!

 

BOTA DIREITA.- Santo casal! Naquela casa fomos sempre felizes, sempre! E a gente que eles freqüentavam? Quando não havia tapetes, havia palhinha; pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos de carro muita vez, e eu gosto tanto de carro! Estivemos ali uns quarenta dias, não?

 

BOTA ESQUERDA.- Pois então! Ele gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições.

 

BOTA DIREITA.- Deixemo-nos de política.

 

BOTA ESQUERDA.- Apoiado.

 

BOTA DIREITA (com força).- Deixemo-nos de política, já disse!

 

BOTA ESQUERDA (sorrindo).- Mas um pouco de política debaixo da mesa?... Nunca te contei... contei, sim... o caso das botinas cor de chocolate... as da viúva...

 

BOTA DIREITA.- Da viúva, para quem o Dr. Crispim quebrava muito os olhos? Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha o pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa, conversei muito com uma das botinas. O Dr. Crispim sentara-se ao pé do comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas, e falamos, falamos pelas tripas de Judas... A princípio, não; a princípio ela fez-se de boa; e toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada: “Vá-se, me deixe!” Mas eu insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe que estava ainda muito bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu com o bico, depois com o tacão, pisou em mim, eu pisei nela e não te digo mais...

 

BOTA ESQUERDA.- Pois é justamente o que eu queria contar...

 

BOTA DIREITA.- Também conversaste?

 

BOTA ESQUERDA.- Não; ia conversar com a outra. Escorreguei devagarinho, muito devagarinho, com cautela, por causa da bota do comendador.

 

BOTA DIREITA.- Agora me lembro: pisaste a bota do comendador.

 

BOTA ESQUERDA.- A bota? Pisei o calo. O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os homens: Hein? E eu recuei; e o Dr. Crispim ficou muito vermelho, muito vermelho...

 

BOTA DIREITA.- Parece que foi castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos de presente a um procurador de poucas causas.

 

BOTA ESQUERDA.- Não me fales! Isso foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o mesmo que dizer: mata-me estas botas; esfrangalha-me estas botas!

 

BOTA DIREITA.- Dizes bem. Que roda viva! Era da Relação para os escrivães, dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para as partes (embora poucas), das partes para a Relação, da Relação para os escrivães...

 

BOTA ESQUERDA.- Et coetera. E as chuvas! e as lamas! Foi o procurador quem primeiro me deu este corte para desabafar um calo. Fiquei asseada com esta janela à banda.

 

BOTA DIREITA.- Durou pouco; passamos então para o fiel de feitos, que no fim de três semanas nos transferiu ao remendão. O remendão (ah! já não era a Rua do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos ao aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.

 

BOTA DIREITA.- Com esse havia pouco que fazer de dia, mas de noite...

 

BOTA ESQUERDA.- No curso de dança; lembra-me. O diabo do rapaz valsava como quem se despede da vida. Nem nos comprou para outra coisa, porque para os passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as noites... Nós éramos as botas do curso...

 

BOTA DIREITA.- Que abismo entre o curso e os tapetes do Dr. Crispim...

 

BOTA ESQUERDA.- Coisas!

 

BOTA DIREITA.- Justiça, justiça; o aprendiz não nos escovava; não tínhamos o suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranqüila.

 

BOTA ESQUERDA.- Relativamente, creio. Agora, que era alegre não há dúvida; em todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.

 

BOTA DIREITA.- Quando fomos parar às mãos...

 

BOTA ESQUERDA.- Aos pés.

 

BOTA DIREITA.- Aos pés daquele servente das obras públicas. Daí fomos atiradas à rua, onde nos apanhou um preto padeiro, que nos reduziu enfim a este último estado! Triste! triste!

 

BOTA ESQUERDA.- Tu queixas-te, mana?

 

BOTA DIREITA.- Se te parece!

 

BOTA ESQUERDA.- Não sei; se na verdade é triste acabar assim tão miseravelmente, numa praia, esburacadas e rotas, sem tacões nem ilusões, — por outro lado, ganhamos a paz, e a experiência.

 

BOTA DIREITA.- A paz? Aquele mar pode lamber-nos de um relance.

 

BOTA ESQUERDA.- Trazer-nos-á outra vez à praia. Demais, está longe.

 

BOTA DIREITA.- Que eu, na verdade, quisera descansar agora estes últimos dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e agora...

 

BOTA ESQUERDA.- Agora quê?

 

BOTA DIREITA.- A vergonha, mana.

 

BOTA ESQUERDA.- Vergonha, não. Podes crer, que fizemos felizes aqueles a quem calçamos; ao menos, na nossa mocidade. Tu que pensas? Mais de um não olha para suas idéias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana, a bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade civil...

 

BOTA DIREITA.- Que estilo! Bem se vê que nos calçou um advogado.

 

BOTA ESQUERDA.- Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos menos cumprimentadas?

 

BOTA DIREITA.- Talvez.

 

BOTA ESQUERDA.- Éramos, e o chapéu não se engana. O chapéu fareja a bota... Ora, pois! Viva a liberdade! viva a paz! viva a velhice! (A Bota Direita abana tristemente o cano). Que tens?

 

BOTA DIREITA.- Não posso; por mais que queira, não posso afazer-me a isto. Pensava que sim, mas era ilusão... Viva a paz e a velhice, concordo; mas há de ser sem as recordações do passado...

 

BOTA ESQUERDA.- Qual passado? O de ontem ou de anteontem? O do advogado ou o do servente?

 

BOTA DIREITA.- Qualquer; contanto que nos calçassem. O mais reles pé de homem é sempre um pé de homem.

 

BOTA ESQUERDA.- Deixa-te disso; façamos da nossa velhice uma coisa útil e respeitável.

 

BOTA DIREITA.- Respeitável, um par de botas velhas! Útil, um par de botas velhas! Que utilidade? que respeito? Não vês que os homens tiraram de nós o que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem? Quem é que nos há de respeitar? — aqueles mariscos? (olhando para mim) Aquele sujeito que está ali com os olhos assombrados?

 

BOTA ESQUERDA.- Vanitas! Vanitas!

 

BOTA DIREITA.- Que dizes tu?

 

BOTA ESQUERDA.- Quero dizer que és vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e que devemos dar-nos por felizes com esta aposentadoria, lardeada de algumas recordações.

 

BOTA DIREITA.- Onde estarão a esta hora as botinas da viúva?

 

BOTA ESQUERDA.- Quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras botinas... Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições. Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou sem tacões, novas ou velhas; direita ou acalcanhadas, lustrosas ou ruças, mas botas, botas botas!

 

Neste ponto calaram-se as duas interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e outra, a esperar se diziam alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.

 

Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham servido tanto! tinham rolado todos os degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia... Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.

 

Nisto vi chegar um sujeito maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me uma esmola; dei-lhe um níquel.

 

MENDIGO.- Deus lhe pague, meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um anjo que as pôs aqui...

 

EU (ao mendigo).- Mas, espere...

 

MENDIGO.- Espere o quê? Se lhe digo que estou descalço! (Pegando nas botas) Estão bem boas! Cosendo-se isto aqui, com um barbante...

 

BOTA DIREITA.- Que é isto, mana? que é isto? Alguém pega em nós... Eu sinto-me no ar...

 

BOTA ESQUERDA.- É um mendigo.

 

BOTA DIREITA.- Um mendigo? Que quererá ele?

 

BOTA DIREITA (alvoroçada).- Será possível?

 

BOTA ESQUERDA.- Vaidosa!

 

BOTA DIREITA.- Ah! mana! esta é a filosofia verdadeira: — Não há bota velha que não encontre um pé cambaio.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 29 de março de 2022

SALES (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SALES

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

Ao certo, não se pode saber em que data teve Sales a sua primeira idéia. Sabe-se que, aos dezenove anos, em 1854, planeou transferir a capital do Brasil para o interior, e formulou alguma coisa a tal respeito; mas não se pode afirmar, com segurança, que tal fosse a primeira nem a segunda idéia do nosso homem. Atribuíram-lhe meia dúzia antes dessa, algumas evidentemente apócrifas, por desmentirem dos anos em flor, mas outras possíveis e engenhosas. Geralmente eram concepções vastas, brilhantes, inopináveis ou só complicadas. Cortava largo, sem poupar pano nem tesoura; e, quaisquer que fossem as objeções práticas, a imaginação estendia-lhe sempre um véu magnífico sobre o áspero e o aspérrimo. Ousaria tudo: pegaria de uma enxada ou de um cetro, se preciso fosse, para pôr qualquer idéia a caminho. Não digo cumpri-la, que é outra coisa.

 

Casou aos vinte e cinco anos, em 1859, com a filha de um senhor de engenho de Pernambuco, chamado Melchior. O pai da moça ficara entusiasmado, ouvindo ao futuro genro certo plano de produção de açúcar, por meio de uma união de engenhos e de um mecanismo simplíssimo. Foi no Teatro de Santa Isabel, no Recife, que Melchior lhe ouviu expor os lineamentos principais da idéia.

 

— Havemos de falar nisso outra vez, disse Melchior; por que não vai ao nosso engenho?

 

Sales foi ao engenho, conversou, escreveu, calculou, fascinou o homem. Uma vez acordados na idéia, saiu o moço a propagá-la por toda a comarca; achou tímidos, achou recalcitrantes, mas foi animando a uns e persuadindo a outros. Estudou a produção da zona, comparou a real à provável, e mostrou a diferença. Vivia no meio de mapas, cotações de preços, estatísticas, livros, cartas, muitas cartas. Ao cabo de quatro meses, adoeceu; o médico achou que a moléstia era filha do excesso de trabalho cerebral, e prescreveu-lhe grandes cautelas.

 

Foi por esse tempo que a filha do senhor do engenho e uma irmã deste regressaram da Europa, aonde tinham ido nos meados de 1858. Es liegen einige gute Ideen in diesen Rock, dizia uma vez o alfaiate de Heine, mirando-lhe a sobrecasaca. Sales não desceria a achar semelhantes coisas numa sobrecasaca; mas, numa linda moça, por que não? Há nesta pequena algumas idéias boas, pensou ele olhando para Olegária, — ou Legazinha, como se dizia no engenho. A moça era baixota, delgada, rosto alegre e bom. A influição foi recíproca e súbita. Melchior, não menos namorado do rapaz que a filha, não hesitou em casá-los; ligá-lo à família era assegurar a persistência de Sales na execução do plano.

 

O casamento fez-se em agosto, indo os noivos passar a lua-de-mel no Recife. No fim de dois meses, não voltando eles ao engenho, e acumulando-se ali uma infinidade de respostas ao questionário que Sales organizara, e muitos outros papéis e opúsculos, Melchior escreveu ao genro que viesse; Sales respondeu que sim, mas que antes disso precisava dar uma chegadinha ao Rio de Janeiro, coisa de poucas semanas, dois meses, no máximo. Melchior correu ao Recife para impedir a viagem; em último caso, prometeu que, se esperassem até maio, ele viria também. Tudo foi inútil; Sales não podia esperar; tinha isto, tinha aquilo, era indispensável.

 

— Se houver necessidade de apressar a volta, escreva-me; mas descanse, a boa semente frutificará. Caiu em boa terra, concluiu enfaticamente.

 

Ênfase não exclui sinceridade. Sales era sincero, mas uma coisa é sê-lo de espírito, outra de vontade. A vontade estava agora na jovem consorte. Entrando no mar, esqueceu-lhe a terra; descendo à terra, olvidou as águas. A ocupação única do seu ser era amar esta moça, que ele nem sabia que existisse, quando foi para o engenho do sogro cuidar do açúcar. Meteram-se na Tijuca, em casa que era juntamente ninho e fortaleza; — ninho para eles, fortaleza para os estranhos, aliás inimigos. Vinham abaixo algumas vezes, — ou a passeio, ou ao teatro; visitas raras e de cartão. Durou essa reclusão oito meses. Melchior escrevia ao genro que voltasse, que era tempo; ele respondia que sim, e ia ficando; começou a responder tarde, e acabou falando de outras coisas. Um dia, o sogro mandou-lhe dizer que todos os apalavrados tinham desistido da empresa. Sales leu a carta ao pé de Legazinha, e ficou longo tempo a olhar para ela.

 

— Que mais? perguntou Legazinha.

 

Sales afirmou a vista; acabava de descobrir-lhe um cabelinho branco. Cãs aos vinte anos! Inclinou-se, e deu no cabelo um beijo de boas-vindas. Não cuidou de outra coisa em todo o dia. Chamava-lhe "minha velha". Falava em comprar uma medalhinha de prata para guardar o cabelo, com a data, e só a abririam quando fizessem vinte e cinco anos de casados. Era uma idéia nova esse cabelo. Bem dizia ele que a moça tinha em si algumas idéias boas, como a sobrecasaca de Heine; não só as tinha boas, mas inesperadas.

 

Um dia, reparou Legazinha que os olhos do marido andavam dispersos no ar, ou recolhidos em si. Nos dias seguintes observou a mesma coisa. Note-se que não eram olhos de qualquer. Tinham a cor indefinível, entre castanho e ouro; — grandes, luminosos e até quentes. Viviam em geral como os de toda a gente; e, para ela, como os de nenhuma pessoa, mas o fenômeno daqueles dias era novo e singular. Iam da profunda imobilidade à mobilidade súbita e quase demente. Legazinha falava-lhe, sem que ele a ouvisse; pegava-lhe dos ombros ou das mãos, e ele acordava.

 

— Hem? que foi?

 

Legazinha a princípio ria-se.

 

— Este meu marido! Este meu marido! Onde anda você?

 

Sales ria também, levantava-se, acendia um charuto, e entrava a andar e a pensar; daí a pouco mergulhava outra vez em si. O fenômeno foi-se agravando. Sales passou a escrever horas e horas; às vezes, deixava a cama, alta noite, para ir tomar alguma nota. Legazinha supôs que era o negócio dos engenhos, e disse-lho, pendurando-se graciosamente do ombro:

 

— Os engenhos? repetiu ele. E voltando a si: — Ah! os engenhos...

 

Legazinha temia algum transtorno mental, e procurava distraí-lo. Já saíam a visitas, recebiam outras; Sales consentiu em ir a um baile, na Praia do Flamengo. Foi aí que ele teve um princípio de reputação epigramática, por uma resposta que deu distraidamente:

 

— Que idade terá aquela feiosa, que vai casar? perguntou-lhe uma senhora com malignidade.

 

— Perto de duzentos contos, respondeu Sales.

 

Era um cálculo que estava fazendo; mas o dito foi tomado à má parte, andou de boca em boca, e muita gente redobrou os carinhos com um homem capaz de dizer coisas tão perversas.

 

Um dia, o estado dos olhos foi cedendo inteiramente da imobilidade para a mobilidade; entraram a rir, a derramarem-se-lhe pelo corpo todo, e a boca ria, as mãos riam, todo ele ria a espáduas despregadas. Não tardou, porém, o equilíbrio: Sales voltou ao ponto central, mas — ai dela! — trazia uma idéia nova.

 

Consistia esta em obter de cada habitante da capital uma contribuição de quarenta réis por mês, — ou, anualmente, quatrocentos e oitenta réis. Em troca desta pensão tão módica, receberia o contribuinte durante a Semana Santa uma coisa que não posso dizer sem grandes refolhos de linguagem. Que como ele há pessoas neste mundo que acham mais delicado comer peixe cozido, que lê-lo impresso. Pois era o pescado necessário à abstinência, que cada contribuinte receberia em casa durante a semana santa, a troco de quatrocentos e oitenta réis por ano. O corretor, a quem Sales confiou o plano, não o entendeu logo; mas o inventor explicou-lho.

 

— Nem todos pagarão só os quarenta réis; uma terça parte, para receber maior porção e melhor peixe, pagará cem réis. Quantos habitantes haverá no Rio de Janeiro? Descontando os judeus, os protestantes, os mendigos, os vagabundos, etc., contemos trezentos mil. Dois terços, ou duzentos mil, a quarenta réis, são noventa e seis contos anuais. Os cem mil restantes, a cem réis, dão cento e vinte. Total: duzentos e dezesseis contos de réis. Compreendeu agora?

 

— Sim, mas...

 

Sales explicou o resto. O juro do capital, o preço das ações da companhia, porque era uma companhia anônima, número das ações, entradas dividendo provável, fundo de reserva, tudo estava calculado, somado. Os algarismos caíam-lhe da boca, lúcidos e grossos, como uma chuva de diamantes; outros saltavam-lhe dos olhos, à guisa de lágrimas, mas lágrimas de gozo único. Eram centenas de contos, que ele sacolejava nas algibeiras, passava às mãos e atirava ao teto. Contos sobre contos; dava com eles na cara do corretor, em cheio; repelia-os de si, a pontapés; depois recolhia-os com amor. Já não eram lágrimas nem diamantes, mas uma ventania de algarismos, que torcia todas as idéias do corretor, por mais rijas e arraigadas que estivessem.

 

— E as despesas? disse este.

 

Estavam previstas as despesas. As do primeiro ano é que seriam grandes. A companhia teria virtualmente o privilégio da pescaria, com pessoal seu, canoas suas, estações de paróquias, carroças de distribuição, impressos, licenças, escritório, diretoria, tudo. Deduzia as despesas, e mostrava lucro positivo, claro, numeroso. Vasto negócio, vasto e humano; arrancava a população aos preços fabulosos daqueles dias de preceito.

 

Trataram do negócio; apalavraram algumas pessoas. Sales não olhava a despesa para pôr a idéia a caminho. Não tinha mais que o dote da mulher, uns oitenta contos, já muito cerceados; mas não olhava a nada. São despesas produtivas, dizia a si mesmo. Era preciso escritório; alugou casa na Rua da Alfândega, dando grossas luvas, e meteu lá um empregado de escrita e um porteiro fardado. Os botões da farda do porteiro eram de metal branco, e tinham, em relevo, um anzol e uma rede, emblema da companhia; na frente do bonet via-se o mesmo emblema, feito de galão de prata. Essa particularidade, tão estranha ao comércio, causou algum pasmo, e recolheu boa soma de acionistas.

 

— Lá vai o negócio a caminho! dizia ele à mulher, esfregando as mãos.

 

Legazinha padecia calada. A orelha da necessidade começava a aparecer por trás da porta; não tardaria a ver-lhe o carão chupado e lívido, e o corpo em frangalhos. O dote, capital único, ia-se indo com o necessário e o hipotético. Sales, entretanto, não parava, acudia a tudo, à praça e à imprensa, onde escreveu alguns artigos longos, muito longos, pecuniariamente longos, recheados de Cobden e Bastiat, para demonstrar que a companhia trazia nas mãos "o lábaro da liberdade".

 

A doença de um conselheiro de Estado fez demorar os estatutos. Sales, impaciente nos primeiros dias, entrou a conformar-se com as circunstâncias, e até a sair menos. Às vezes vestia-se para dar uma vista ao escritório; mas, apertado o colete, ruminava outra coisa e deixava-se ficar. Crendice do amor, a mulher também esperava os estatutos; rezava uma ave-maria, todas as noites, para que eles viessem, que se não demorassem muito. Vieram; ela leu, um dia de manhã, o despacho de indeferimento. Correu atônita ao marido.

 

— Não entendem disto, respondeu Sales, tranqüilamente. Descansa; não me abato assim com duas razões.

 

Legazinha enxugou os olhos.

 

— Vais requerer outra vez? perguntou-lhe.

 

— Qual requerer!

 

Sales atirou a folha ao chão, levantou-se da rede em que estava, e foi à mulher; pegou-lhe nas mãos, disse-lhe que nem cem governos o fariam desfalecer. A mulher, abanando a cabeça:

 

— Você não acaba nada. Cansa-se à toa... No princípio tudo são prodígios; depois... Olha o negócio dos engenhos que papai me contou...

 

— Mas fui eu que me indeferi?

 

— Não foi; mas há que tempos anda você pensando em outra coisa!

 

— Pois sim, e digo-te...

 

— Não digas nada, não quero saber nada, atalhou ela.

 

Sales, rindo, disse-lhe que ainda havia de arrepender-se, mas que ele lhe daria um perdão "de rendas", nova espécie de perdão, mais eficaz que nenhum outro. Desfez-se do escritório e dos empregados, sem tristeza; chegou a esquecer-se de pedir luvas ao novo inquilino da casa. Pensava em coisa diferente. Cálculos passados, esperanças ainda recentes, eram coisas em que parecia não haver cuidado nunca. Debruçava-se-lhe do olho luminoso uma idéia nova. Uma noite, estando em passeio com a mulher, confiou-lhe que era indispensável ir à Europa, viagem de seis meses apenas. Iriam ambos, com economia... Legazinha ficou fulminada. Em casa respondeu-lhe, que nem ela iria, nem consentiria que ele fosse. Para quê? Algum novo sonho. Sales afirmou-lhe que era uma simples viagem de estudo, França, Inglaterra, Bélgica, a indústria das rendas. Uma grande fábrica de rendas; o Brasil dando malinas e bruxelas.

 

Não houve força que o detivesse, nem súplicas, nem lágrimas, nem ameaças de separação. As ameaças eram de boca. Melchior estava, desde muito, brigado com ambos; ela não abandonaria o marido. Sales embarcou, e não sem custo, porque amava deveras a mulher; mas era preciso, e embarcou. Em vez de seis meses, demorou-se sete; mas, em compensação, quando chegou, trazia o olhar seguro e radiante. A saudade, grande misericordiosa, fez com que a mulher esquecesse tantas desconsolações, e lhe perdoasse — tudo.

 

Poucos dias depois alcançou ele uma audiência do Ministro do Império. Levou-lhe um plano soberbo, nada menos que arrasar os prédios do Campo da Aclamação e substituí-los por edifícios públicos, de mármore. Onde está o quartel, ficaria o palácio da Assembléia Geral; na face oposta, em toda a extensão, o palácio do imperador. David cum Sibyla. Nas outras duas faces laterais ficariam os palácios dos sete ministérios, um para a Câmara Municipal e outro para o Diocesano.

 

— Repare V. Ex.ª que é toda a Constituição reunida, dizia ele rindo, para fazer rir o ministro; falta só o Ato Adicional. As províncias que façam o mesmo.

 

Mas o ministro não se ria. Olhava para os planos desenrolados na mesa, feitos por um engenheiro belga, pedia explicações para dizer alguma coisa, e mais nada. Afinal disse-lhe que o governo não tinha recursos para obras tão gigantescas.

 

— Nem eu lhos peço, acudiu Sales. Não preciso mais que de algumas concessões importantes. E o que não concederá o governo para ver executar este primor?

 

Durou seis meses esta idéia. Veio outra, que durou oito; foi um colégio, em que pôs à prova certo plano de estudos. Depois vieram outras, mais outras... Em todas elas gastava alguma coisa, e o dote da mulher desapareceu. Legazinha suportou com alma as necessidades; fazia balas e compotas para manter a casa. Entre duas idéias, Sales comovia-se, pedia perdão à consorte, e tentava ajudá-la na indústria doméstica. Chegou a arranjar um emprego ínfimo, no comércio; mas a imaginação vinha muita vez arrancá-lo ao solo triste e nu para as regiões magníficas, ao som dos guizos de algarismos e do tambor da celebridade.

 

Assim correram os primeiros seis anos de casamento. Começando o sétimo, foi o nosso amigo acometido de uma lesão cardíaca e de uma idéia. Cuidou logo desta, que era uma máquina de guerra para destruir Humaitá; mas a doença, máquina eterna, destruiu-o primeiro a ele. Sales caiu de cama, a morte veio vindo; a mulher, desenganada, tratou de o persuadir a que se sacramentasse.

 

— Faço o que quiseres, respondeu ele ofegante.

 

Confessou-se, recebeu o viático e foi ungido. Para o fim, o aparelho eclesiástico, as cerimônias, as pessoas ajoelhadas, ainda lhe deram rebate à imaginação. A idéia de fundar uma igreja, quando sarasse, encheu-lhe o semblante de uma luz extraordinária. Os olhos reviveram. Vagamente, inventou um culto, sacerdote, milhares de fiéis. Teve reminiscências de Robespierre; faria um culto deísta, com cerimônias e festas originais, risonhas como o nosso céu... Murmurava palavras pias.

 

— Que é? dizia Legazinha, ao pé da cama, com uma das mãos dele presa entre as suas, exausta de trabalho.

 

Sales não via nem ouvia a mulher. Via um campo vastíssimo, um grande altar ao longe, de mármore, coberto de folhagens e flores. O sol batia em cheio na congregação religiosa. Ao pé do altar via-se a si mesmo, magno sacerdote, com uma túnica de linho e cabeção de púrpura. Diante dele, ajoelhadas, milhares e milhares de criaturas humanas, com os braços erguidos ao ar, esperando o pão da verdade e da justiça... que ele ia... distribuir...


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 27 de março de 2022

O SAINETE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O SAINETE

Machado de Assis

 

 

 

Um dos problemas que mais preocupavam a rua do Ouvidor entre as da Quitanda e Gonçalves Dias, das duas às quatro horas da tarde, era a profunda e súbita melancolia do Dr. Maciel. O Dr. Maciel tinha apenas vinte e cinco anos, idade em que geralmente se compreende melhor o Cântico dos Cânticos do que as Lamentações de Jeremias. Sua índole mesma era mais propensa ao riso dos frívolos do que ao pesadume dos filósofos. Pode-se afirmar que ele preferia um dueto da Grã Duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado Fluminense aos domingos da Escola da Glória. Donde vinha pois a melancolia que tanto preocupava a rua do Ouvidor?

Pode o leitor coçar o nariz à procura da explicação; a leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o Dr. Maciel ama, que uma "seta do deus alado" o feriu mesmo no centro do coração. O que a leitora não pode adivinhar, sem que eu lho diga, é que o jovem médico ama a viúva Seixas, cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados pintalegretes. O Dr. Maciel gostava de a ver como todos os outros; amou-a desde certa noite e certo baile, em que ela, andando a passear pelo seu braço, perguntou-lhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo:

- Doutor, por que razão não quer honrar a minha casa? Estou visível todas as quintas-feiras para a turba-multa; os sábados pertencem aos amigos. Vá lá aos sábados.

Maciel prometeu que iria no primeiro sábado, e foi. Pulava-lhe o coração ao subir as escadas. A viúva estava só.

- Venho cedo, disse ele, logo depois dos primeiros cumprimentos.

- Vem tarde demais para a minha natural ansiedade, respondeu ela sorrindo.

O que se passou na alma de Maciel excede a todas as conjecturas. Num só minuto pôde ele ver juntas todas as maravilhas da terra e do céu, - todas as concentradas naquela elegante e suntuosa sala cuja dona, a Calipso daquele Telêmaco, tinha cravados nele um par de olhos, não negros, não azuis, não castanhos, mas dessa rara cor, que os homens atribuem a mais duradoura felicidade do coração, à esperança. Eram verdes, de um verde igual ao das folhas novas, e de uma expressão ora indolente, ora vivaz, - arma de dois gumes, - que ela sabia manejar como poucas.

E não obstante aquele intróito, o Dr. Maciel andava triste, abatido, desconsolado. A razão era que a viúva, depois de tão amáveis preliminares, não cuidou mais das condições em que seria celebrado um tratado conjugal. No fim de cinco ou seis sábados, cujas horas eram polidamente bocejadas a duo, a viúva adoeceu semanalmente naquele dia, e o jovem médico teve de contentar-se com a turba-multa das quintas-feiras.

A quinta-feira em que nos achamos é de Endoenças. Não era dia próprio de recepção. Contudo, Maciel dirigiu-se a Botafogo, a fim de pôr em execução um projeto, que ele ingenuamente supunha ser fruto do mais profundo maquiavelismo, mas que eu, na minha fidelidade de historiador, devo confessar que não passava de verdadeira infantilidade. Notara ele os sentimentos religiosos da viúva; imaginou que, indo fazer-lhe naquele dia a declaração verbal do seu amor, por meio de invocações pias, alcançaria facilmente o prêmio de seus trabalhos.

A viúva achava-se no toucador. Acabara de vestir-se; e de pé calçando as luvas, em frente do espelho, sorria para si mesma, como satisfeita da toilette. Não ia passear, como se poderia supor; ia visitar as igrejas. Queria alcançar por sedução a misericórdia divina.

Era boa devota aquela senhora de' vinte e seis anos, que freqüentava as festas religiosas, comia peixe durante toda a quaresma, acreditava alguma coisa em Deus, pouco no diabo e nada no inferno. Não acreditando no inferno, não tinha onde meter o diabo; venceu a dificuldade, agasalhando-o no coração. O demo assim alojado fora algum tempo o nosso melancólico Maciel. A religião da viúva era mais elegante que outra coisa. Quando ela se confessava era sempre com algum padre moço; em compensação só se tratava com médico velho. Nunca escondeu do médico o mais íntimo defluxo, nem revelou ao padre o mais insignificante pecado.

- O Dr. Maciel? disse ela lendo o cartão que a criada lhe entregou. Não o posso receber; vou sair. Espera, - continuou depois de relancear os olhos para o espelho; - manda-o entrar para aqui.

A ordem foi cumprida; alguns minutos depois fazia Maciel a sua entrada no toucador da viúva.

- Recebo-o no santuário, disse ela sorrindo logo que ele assomou à porta; prova de que o senhor pertence ao número dos verdadeiros fiéis.

- Oh! não é da minha fidelidade que eu duvido; e...

- E recebo-o de pé! Vou sair; vou visitar as igrejas.

- Sei; conheço os seus sentimentos de verdadeira religião, - disse Maciel com a voz a tremer-lhe; - vim até com receio de não a encontrar. Mas vim; era preciso que viesse; neste dia, sobretudo.

A viúva recolheu a abazinha de um sorriso que indiscretamente ia traindo o seu pensamento, e perguntou friamente ao médico que horas eram.

- Quase oito. Sua luva está calçada; falta só abotoá-la. É o tempo necessário para lhe dizer, neste dia tão solene, que eu sinto...

- Está abotoada. Quase oito, não? Não há tempo de sobra; é preciso ir a sete igrejas. Quer fazer o favor de acompanhar-me até o carro?

Maciel tinha espírito em quantidade suficiente para não perdê-lo todo com a paixão. Calou-se; e respondeu à viúva com um gesto de assentimento. Saíram do toucador e desceram ambos silenciosos. No trajeto planeou Maciel dizer-lhe uma só palavra, mas que contivesse todo o seu coração. Era difícil; o lacaio, que abrira a portinhola do coupé, ali estava como um emissário do seu mau destino.

- Quer que o leve até a cidade? perguntou a cidade? perguntou a viúva.

- Obrigado, respondeu Maciel.

O lacaio fechou a portinhola e correu a tomar o seu lugar; foi nesse rápido instante que o médico. inclinando o rosto, disse à viúva:

- Eulália...

Os cavalos começaram a andar; o resto da frase perdeu-se para a viúva e para nós.

Eulália sorriu da familiaridade e perdoou-lha. Reclinou-se molemente nos coxins do veículo e começou um monólogo que só acabou à porta de S. Francisco de Paula.

- Pobre rapaz! dizia ela consigo; vê-se que morre por mim. Não desgostei dele a princípio... Mas tenho eu culpa de que seja um maricas? Agora sobretudo. com aquele ar de moleza e abatimento, é... não é nada... é uma alma de cera. Parece que vinha disposto a ser mais atrevido; mas a alma faltou-lhe com a voz, e ficou apenas com as boas intenções. Eulália! Não foi mau este começo. Para um coração daqueles... Mas qual! c'est le genre ennuyeux!

Esta é a glosa mais resumida que posso dar do monólogo da viúva. O cupê estacionou na praça da Constituição; Eulália, seguida do lacaio, encaminhou-se para a igreja de S. Francisco de Paula. Ali, depositou a imagem de Maciel nas escadas, e atravessou o adro toda entregue ao dever religioso e aos cuidados de seu magnífico vestido preto.

A visita foi curta; era preciso ir a sete igrejas, fazendo a pé todo o trajeto de uma para outra. A viúva saiu sem preocupar-se mais com o jovem médico, e dirigindo-se para a igreja da Cruz.

Na Cruz achamos uma personagem nova, ou antes duas, o desembargador Araújo e sua sobrinha D. Fernanda Valadares, viúva do deputado deste nome, que falecera um ano antes, não se sabe se da hepatite que os médicos lhe acharam se de um discurso que proferiu na discussão do orçamento. As duas viúvas eram amigas; seguiram juntas na visitação das igrejas. Fernanda não tinha tantas acomodações com o céu, como a viúva Seixas; mas a sua piedade estava sujeita, como todas as coisas, às vicissitudes do coração. Em vista do que, logo que saíram da última igreja, disse ela à amiga que no dia seguinte iria vê-la e pedir-lhe uma informação.

- Posso dar já, respondeu Eulália. Vá embora, desembargador; eu levo Fernanda no meu carro.

No carro, disse Fernanda:

- Preciso de uma informação importante. Sabes que estou um pouco apaixonada?

- Sim?

- É verdade. Eu disse um pouco, mas devia dizer muito. O Dr. Maciel...

- O Dr. Maciel? interrompeu vivamente Eulália. Que pensas dele?

A viúva Seixas levantou os ombros e riu com um ar de tamanha piedade, que a amiga corou.

- Não te parece bonito? perguntou Fernanda.

- Não é feio.

- O que mais me seduz nele é o seu ar triste, um certo abatimento que me faz crer que padece. Sabes de alguma coisa a seu respeito?

- Eu?

- Ele dá-se muito contigo; tenho-o visto lá em tua casa. Sabes se haverá alguma paixão...

- Pode ser.

- Oh! conta-me tudo!

Eulália não contou nada; disse que nada sabia.

Concordou, entretanto, que o jovem médico talvez andasse enamorado, porque realmente não parecia gozar boa saúde. O amor, disse ela, era urna espécie de pletora, o casamento uma sangria sacramental. Fernanda precisava sangrar-se do mesmo modo que Maciel.

- Sobretudo nada de remédios caseiros, concluiu ela; nada de olhares e suspiros, que são paliativos destinados menos a minorar que a entreter a doença. O melhor boticário é o padre.

Fernanda tirou a conversa deste terreno farmacêutico e cirúrgico para subi-la às regiões do eterno azul. Sua voz era doce e comovida: o coração pulsava-lhe com força; e Eulália, ao ouvir os méritos que a amiga achava em Maciel, não pôde reprimir esta observação:

- Não há nada como ver as coisas com amor. Quem suporia nunca o Maciel que me estás pintando? Na minha opinião não passa de um bom rapaz; e ainda assim... Mas um bom rapaz é alguma coisa neste mundo?

- Pode ser que eu me engane, Eulália, replicou a viúva do deputado, mas creio que há ali uma alma nobre, elevada e pura. Suponhamos que não. Que importa? O coração empresta as qualidades que deseja.

A viúva Seixas não teve tempo de examinar a teoria de Fernanda. O carro chegara à rua Santo Amaro, onde esta morava. Despediram-se; Eulália seguiu para Botafogo.

- Parece que ama deveras, pensou Eulália logo que ficou só. Coitada! Um moleirão!

Eram nove horas da noite quando a viúva Seixas entrou em casa. Duas criadas - camareiras, - foram com ela para o toucador, onde a bela viúva se despiu; dali passou ao banho; enfiou depois um roupão e dirigiu-se para o quarto de dormir. Levaram-lhe uma taça de chocolate, que ela saboreou lentamente, tranqüilamente, voluptuosamente; saboreou-a e saboreou-se também a si própria, contemplando, da poltrona em que estava, a sua bela imagem no espelho fronteiro. Esgotada a taça, recebeu de uma criada o seu livro de orações, e foi dali a um oratório, diante do qual com devoção se ajoelhou e rezou. Voltando ao quarto, despiu-se, meteu-se no leito e pediu-lhe que lhe cerrasse as cortinas; feito o que, murmurou alegremente:

- Ora o Maciel!

E dormiu.

A noite foi muito menos tranqüila para o nosso apaixonado Maciel, que, logo depois das palavras proferidas à portinhola do carro, ficara furioso contra si mesmo. Tinha razão em parte; a familiaridade do tratamento dado à viúva precisava de mais detida explicação. Não era, porém, a razão que lhe fazia ver claro; nele exerciam maior ação os nervos que o cérebro.

Nem sempre "depois de uma noite de procelosa, traz a manhã serena claridade". A do dia seguinte foi tétrica. Maciel gastou-a toda na loja do Bernardo, a fumar em ambos os sentidos, - o natural e o figurado, a olhar sem ver as damas que passavam, estranho à palavra dos amigos, aos boatos políticos, às anedotas de ocasião.

- Fechei a porta para sempre! dizia ele com amargura.

Pelas quatro horas da tarde, apareceu-lhe um alívio, debaixo da forma de um colega seu, que lhe propôs ir clinicar em Carangola, donde recebera cartas muito animadoras. Maciel aceitou com ambas as mãos o oferecimento. Carangola nunca entrara no itinerário de suas ambições; é até possível que naquele momento ele não pudesse dizer a situação exata da localidade. Mas aceitou Carangola, como aceitaria a coroa de Inglaterra ou as pérolas todas de Ceilão.

- Há muito tempo, disse ele ao colega, que eu sentia necessidade de ir viver em Carangola. Carangola exerceu sempre em mim uma atração irresistível. Não podes imaginar como eu, já na Academia, me sentia arrastado para Carangola. Quando partimos?

- Não sei: dentro de três semanas, talvez.

Maciel achou que era muito, e propôs o prazo máximo de oito dias. Não foi aceito; não teve remédio senão curvar-se às três semanas prováveis. Quando ficou só, respirou.

- Bem! disse ele, irei esquecer e ser esquecido. No sábado houve duas aleluias, uma na Cristandade, outra em casa de Maciel, aonde chegou uma cartinha perfumada da viúva Seixas contendo estas simples palavras: - "Creio que hoje não terei a enxaqueca do costume; espero que venha tomar uma xícara de chá comigo". A leitura desta carta produziu na alma do jovem médico unia Glória in excelsis Deo. Era o seu perdão; era talvez mais do que isso. Maciel releu meia dúzia de vezes aquelas poucas linhas; nem é fora de propósito crer que chegou a beijá-las.

Ora, é de saber que na véspera, sexta-feira, as onze horas da manhã, recebera Eulália uma carta de Fernanda, e que às duas horas foi a própria Fernanda à casa de Eulália. A carta e a pessoa tratavam do mesmo assunto com a expansão natural em situações daquelas. Tem-se visto muita vez guardar um segredo do coração; mas é raríssimo, que, uma vez revelado, deixe de o ser até a saciedade. Fernanda escreveu e disse tudo o que sentia; sua linguagem, apaixonada e viva, era uma torrente de afeto, tão volumosa que chegou talvez a alagar, - a molhar pelo menos, - o coração de Eulália. Esta ouviu-a a principio com interesse, depois com indiferença, afinal com irritação.

- Mas o que queres tu que eu te faça? perguntou no fim de uma hora de confidência.

- Nada, respondeu Fernanda. Uma só coisa: que me animes.

- Ou te auxilie?

Fernanda respondeu com um aperto de mão tão significativo, que a viúva Seixas compreendeu facilmente a impressão que lhe causara. No sábado enviou a carta acima transcrita. Maciel recebeu-a como vimos, e à noite, à hora habitual, estava à porta de Eulália. A viúva não estava só. Havia umas quatro senhoras e uns três cavalheiros, visitas habituais das quintas-feiras.

Maciel entrou na sala um pouco acanhado e comovido. Que expressão leria no rosto de Eulália? Não tardou sabê-lo; a viúva recebeu-o com o seu melhor sorriso, - o menos faceiro e intencional, o mais espontâneo e sincero, um sorriso que Maciel, se fosse poeta, compararia a um íris de bonança, rimado com esperança ou bem-aventurança. A noite correu deliciosa; um pouco de música, muita conversa, muito espírito, um chá familiar, alguns olhares animadores, e um aperto de mão significativo no fim. Com estes elementos era difícil não ter os melhores sonhos do mundo. Teve-os Maciel, e o domingo da Ressurreição também o foi para ele.

Na seguinte semana viram-se três vezes. Eulália parecia mudada; a solicitude e a graça com que lhe falava estavam longe de tal ou qual frieza e indiferença dos últimos tempos. Este novo aspecto da moça produziu os seus naturais efeitos. Sentiu-se outro jovem médico; reanimou-se, colheu confiança, fez-se homem.

A terceira vez que a viu nessa semana foi em uma soirée. Acabaram de valsar e dirigiram-se para o terraço da casa, donde se via um magnífico panorama, capaz de fazer poeta o mais soez espírito do mundo. Ali foi fácil declaração, inteira, cabal, expressiva do que sentia o namorado; ouviu-lhe Eulália com os olhos embebidos nele, visivelmente encantada com a palavra de Maciel.

- Poderei crer no que me diz? perguntou ela.

A resposta do jovem médico foi apertar-lhe muito a mão, e cravar nela uns olhos mais eloqüentes que duas catilinárias. A situação estava definida, a aliança feita. Bem o percebeu Fernanda, quando os viu regressar à sala. Seu rosto cobriu-se de um véu de tristeza; dez minutos depois e o desembargador interrompia a partida de whist para acompanhar a sobrinha a Santo Amaro.

A leitora espera decerto ver casados os dois namorados e espaçada a viagem a Carangola até o fim do século. Quinze dias depois da declaração inicial Maciel deu os passos necessários ao consórcio. Não têm número os corações que estalaram de inveja ao saber da preferência da viúva Seixas. Esta pela sua parte sentia-se mais orgulhosa do que se desposasse o primeiro dos heróis da terra.

Donde veio este entusiasmo e que varinha mágica operou tamanha mudança no coração de Eulália? Leitora curiosa, a resposta está no título. Maciel pareceu insosso, enquanto lhe faltou o sainete de outra paixão. A viúva descobriu-lhe os méritos com os olhos de Fernanda; e bastou vê-lo preferido para que ela o preferisse. Se me miras, me miram, era a divisa de um célebre relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me miras; e mostraria conhecer o coração humano, - o feminino pelo menos.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 25 de março de 2022

O RELÓGIO DE OURO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O RELÓGIO DE OURO

Machado de Assis

 

 

 

Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado como ele, do lugar e da situação.

Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem compreender muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto e, os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.

Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram das pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.

Por este motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha, qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.

Foi ter com ela.

Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com ar indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois reluzentes punhais.

– Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar.

Luís Negreiros não respondeu a interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:

– Que tens?

Luís Negreiros parou defronte dela.

– Que é isto? disse ele, tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de trovão.

Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:

– Vamos, de quem é aquele relógio?

Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:

– Não sei.

Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pode sofrear Luís Negreiros. Caminhou para ela, e segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:

– Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?

Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquele momento, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.

Clarinha saiu da sala.

Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.

– Onde está a senhora?

– Não sei, não senhor.

Luís Negreiros foi procurar a mulher; achou-a numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma cadeira e sentou-se em frente a Clarinha.

– Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?

– Não.

– Mas então...

– Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha. Ignoro como esse relógio se acha ali... Não sei de quem é... deixa-me.

– É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.

Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar onde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:

– Ó “seu” Luís! ó “seu” malandrim!

– Ai vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás.

Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo viravoltas com o chapéu-de-sol, com grande risco das jarras e do candelabro.

– Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.

– Não, senhor, estávamos conversando...

– Conversando?... repetiu Meireles.

E acrescentou consigo:

– Estavam de arrufos... é o que há de ser.

– Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?

– Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.

– Não o convidei?...

– Sim, não fazes anos amanhã?

– Ah! é verdade...

Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:

– Ah! é verdade!...

Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.

– Está maluco! Disse baixinho Meireles.

– Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles, seguindo pelo corredor, ia ter à sala de jantar.

Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:

– Obrigado, disse.

A moça olhou para ele admirada.

– Obrigado, repetiu Luís Negreiros, obrigado e perdoa-me.

Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago e foi para a sala de jantar.

– Tem razão! murmurou Luís Negreiros.

Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar requentado, - qui ne valut jamais rien.

Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele. A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.

E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.

Clarinha amava ternamente o marido e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira nuvem?

Durante o jantar Clarinha não disse palavra, - ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.

“Estão de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele pareceu-me lépido”.

Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.

Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias.

Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.

Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.

– Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens? Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.

– Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me verão.

– Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.

O jantar acabou assim triste e aborrecido, Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo na ocasião oportuna.

Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria a casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.

Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.

– Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.

Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.

“Mas que enigma é este?” perguntava a si mesmo Luís Negreiros. “Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?”

A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde que chegara a casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ela a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.

Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com a mulher.

Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.

Houve um momento de silêncio.

Luís Negreiros foi o primeiro que falou.

– Clarinha, disse ele, este momento é solene. Respondes-me ao que te pergunto desde esta tarde?

A moça não respondeu.

– Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.

A moça levantou os ombros.

Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:

– Responde, demônio, ou morres!

Clarinha soltou um grito.

– Espera! Disse ela.

Luís Negreiros recuou.

– Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá; foi o que o portador me disse.

Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:

“Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.

Tua Iaiá”

Assim acabou a história do relógio de ouro.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 24 de março de 2022

OS OLHOS QUE COMIAM CARNE (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OS OLHOS QUE COMIAM CARNE

Humberto de Campos

 

 

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 22 de março de 2022

O REI DOS CAIPORAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O REI DOS CAIPORAS

Machado de Assis

 

 

 

Os acontecimentos humanos são regidos por um destino cego e caprichoso? Há estrelas propícias e estrelas funestas? Tem fundamento a crença popular de que certas criaturas são felizes porque choraram no ventre materno, e outras desgraçadas porque não choraram nem riram?

Questão é esta que não me atrevo a deslindar. A filosofia diz que os homens dependem de si; o vulgo aponta mil casos em que todos os esforços de um homem vão esbarrar diante de uma força invisível que o não deixa dar um passo adiante.  A filosofia é uma boa senhora, e o vulgo é um sujeito prático; seria parcialidade inclinar-me a qualquer deles. Atento-me a ambos.

O que vou contar alude a esta questão de fatalidade e destino.  O vulgo inventou uma palavra para indicar a fatalidade de um homem; chama-lhe Caiporismo. Os dicionários ainda não trazem o termo, mas ele corre já pelas salas e ruas e adquiriu direito de cidade.

João das Mercês era o tipo do homem caipora. O destino com todas as suas legiões de auxiliares tinha tomado a pessoa de João das Mercês por alvo de seus tiros. João das Mercês se caísse de costas tinha toda a certeza de quebrar o nariz.

Choveram-lhe desde o berço as contrariedades. Entrou no mundo com o pé esquerdo.  É mister ler esta expressão com a sua significação literal e real. A mãe de João das Mercês não resistiu aos trabalhos cirúrgicos e faleceu horas depois de vir à luz o filho.

Foi-se buscar à pressa uma ama.  Encontrou-se ao cabo de algumas horas uma preta que alimentou o pequeno durante cinco dias, e morreu de erisipela em um joelho. A segunda ama era uma mulher livre que tinha a mania de jogar na loteria, e que ao fim de um mês tirou a sorte grande: saiu da casa para ir abrir uma loja de costuras.  A terceira entrou a amar o irmão mais velho do pequeno, com violência tal, que o pai julgou acertado mandá-la embora. Veio quarta ama que era dorminhoca e deixava o pequeno berrar toda a santa noite; a quinta ama era respondona; a sexta dividia os afetos entre o menino e um permanente; a sétima foi aturada até o fim do tempo da amamentação, a despeito de uma voz de soprano que irritava os nervos do dono da casa, cantando modinhas do norte todo o santíssimo dia.

Parece que esta variedade de leite e de amas influiu poderosamente em João das Mercês.  Logo nos primeiros anos verificou-se nele uma tendência pronunciada para o sono, influxo da quarta ama. Aos cinco anos nada o alegrava mais que ver passar a tropa na rua, gosto que lhe ficou naturalmente do leite que bebeu à namorada do permanente. Aos sete anos cantava sofrivelmente, aos oito teve uma erisipela, aos doze furtou ao pai cinco mil réis para comprar um quarto de loteria; aos quinze começou a namorar uma prima e aos dezesseis foi posto fora de casa por seus atrevimentos.

Aqui temos nós João das Mercês na rua, com dezesseis anos, sem vintém na algibeira, nem pouso certo.  Felizmente a prima que ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das Mercês e haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que este aplicara ao filho. João encaminhou-se para lá.

- Meu pai deitou-me fora de casa, disse ele a dona Angélica; venho ver se me dão pouso e mesa, porque não tenho outro recurso.

- Fica João, respondeu a senhora dona Angélica; fizeste bem em te lembrares que ainda tens uma tia; aqui não te há de faltar nada, ao menos enquanto eu e o Gaspar vivermos.

Marianinha apareceu na sala e soube das desgraças do jovem primo.  Ao mesmo tempo teve notícia de que ele ia morar lá. Marianinha que era o tipo da inocência, bateu palmas e apertou a mão do primo, com uma efusão tal que não escapou à perspicácia da senhora dona Angélica.

Dona Angélica tinha muitas razões para patrocinar os amores da filha e do sobrinho  Bem sabia ela que João das Mercês não tinha herança nem emprego; mas em compensação Marianinha tinha uma perna mais curta que a outra. Arranjado o rapaz, bem se lhe podia dar a pequena e tudo ficava em casa.

Gaspar aprovou todas as decisões da mulher, com tanta maior benevolência, quanto que, se as não aprovasse, seria a mesma coisa.  Durante vinte anos de casamento, não constava que Gaspar tivesse jamais iniciado alguma coisa em casa, nem sequer desaprovado a mulher. Dona Angélica teve sempre o comando do exército doméstico, e devo acrescentar com a fidelidade de um romancista sincero que dona Angélica exercia esse comando com uma severidade digna de um general.

A boa velha era caprichosa; o marido era o tipo da obediência. Um dia acordou dona Angélica com a idéia de que o esposo devia usar suíças. Gaspar que trazia a barba toda, desde que ela achou que era a única moda respeitável, ia ao barbeiro e punha abaixo metade do pêlo. Dois meses depois, Angélica adotava o sistema dos bigodes, por se ter namorado de um retrato de Napoleão III. O marido voltava para casa com uma faixa de soldado francês. Suspeitava-se que o corte das calças inexplicáveis de Gaspar era produção de dona Angélica.

Aqui temos, em duas palavras, a nova família de João das Mercês  Sabendo com que amor o tratavam, o nosso João imaginou que ia levar uma vida regalada. Infelizmente foi ilusão que durou pouco. Dona Angélica disse um dia à mesa que era preciso arranjar algum emprego para o sobrinho.  Gaspar não se fez esperar. Foi dali a um cavalheiro com que andara na escola e que ocupava então o lugar de ministro da guerra. Pediu-lhe um emprego. Gaspar foi notável durante toda a sua vida pelo aferro com que sempre acompanhara o ministério atual.  Obteve o emprego.

João das Mercês obedeceu à intimação da sua tia e foi ocupar o lugar no arsenal de guerra, tendo obtido antes consentimento do pai.

Marianinha amava o primo, com toda a força de seus quinze anos. Era uma rapariga assaz bonita, assaz faceira, dotada de um excelente coração. João das Mercês que era estouvado e mal educado não deixava de ter igualmente uni coração digno de apreço. Amavam-se estas duas criaturas com o aferro de um primeiro amor.  Dona Angélica alimentava esta chama, que segundo ela, devia ser legitimada na igreja.

João das Mercês também nutria essas esperanças; e tratava de as comunicar à prima.

- Quando formos casados, dizia ele, havemos de ser felizes.

- Casados?

- Sim.

- Quando há de ser?

- Um dia, quando eu tiver mais idade.

- Ah! se fosse já!

Gaspar ouviu um dia esta conversa, e não se pôde ter de furor.

- Casar! exclamou ele; pois vocês já falam em casar? Onde é que se viu isto? Que diria tua mãe, quando souber que já a minha filha fala em casamento? E tu meu pirralho, que idéias andas metendo na cabeça de tua prima? Ora esperem!

Marianinha tremia; João murmurava uma resposta ao tio, quando este chegando-se à porta gritou para dentro:

- Oh! senhora dona Angélica!

- Que temos? gritou de dentro a esposa de Gaspar.

- Queira vir até cá, respondeu o marido com voz macia.

- Não me faltava mais nada! venha cá você.

Gaspar fez um gesto de ameaça aos pequenos e foi ter com a mulher a que expôs o que acabava de ouvir.

- E que tem você com isso? disse-lhe a mulher. Se os pequenos gostam um do outro, fazem muito bem; e eu até estimo isso, porque já andava com idéias de os unir. Você veio atrapalhar tudo; ora vai, vai tranqüilizar os pequenos.

Gaspar engoliu dificilmente a pílula. Atravessou o corredor como se passasse pelas forças caudinas; e voltou à sala onde os namorados tremiam pelo desfecho da cena.

- O amor, meus filhos, disse ele, é uma coisa santa, se vocês se amam com seriedade, sou o primeiro a aprovar esse sentimento que nos eleva aos nossos próprios olhos; o que eu combato, e que todos os bons pais devem combater, é o namoro sem fim, o passatempo indigno de jovens bem formados. Quando eu e a respeitável dona Angélica (aqui levantou muito a voz) nos amamos foi...

- Deixe-se de estar contando essas coisas aos pequenos, clamou de dentro a senhora dona Angélica.

- Foi seriamente, continuou Gaspar em voz baixa.

Tudo favorecia os amores de João das Mercês; mas ele não contava com o destino.

André das Mercês, pai do nosso João, arrependeu-se um dia de ter posto o filho fora de casa, e foi ter com  a irmã para obter a volta de João das Mercês. Dona Angélica opôs-se vivamente à saída do sobrinho. Disse francamente ao irmão que o seu projeto era insensato; que, já que tinha praticado um erro, devia agüentar com todas as conseqüências dele.

André era tão esturrado como a irmã; respondeu-lhe rispidamente; ela insistiu; insistiu; e depois de uma longa discussão em que ambos mostraram toda a solidez da respectiva língua, saiu André disposto a proceder violentamente.

Em caminho refletiu que não era conveniente dar um escândalo, e que podia alcançar tudo por bons modos.

- Talvez ela hoje estivesse de mau humor, pensou ele.

Encontrou o cunhado e expôs-lhe a questão.

- Meu amigo, disse-lhe Gaspar, eu aprovo o procedimento de minha mulher, sem deixar de aprovar as suas louváveis intenções.

- Louváveis, tem razão, acudiu André; o que eu quero é receber meu filho em casa. Assiste-me o direito...

- Não contesto.

- A mana está teimosa; mas se você intervier, pode ser que eu consiga alguma coisa...

- Acha então que eu...

- Sem dúvida, venha comigo.

- Vamos.  Minha mulher atende muito ao que eu digo. Com duas palavras minhas estou que arranjarei tudo. O caso é que o senhor não estrague tudo com as suas insistências...  Deixe-me falar só.

- Estou por tudo; eu não desejo brigar com ela.

- Está visto. O que se quer é fazer-lhe ouvir a razão.  Sabe o que são senhoras; caprichosas, intolerantes; mas deixe-me, eu farei tudo... Espere-me aqui um bocadinho, que eu vou ali à esquina comprar rapé, que tenho a caixa vazia.

- Eu vou também.

- Não; deixe-me ir só; o homem não gosta de vender rapé à vista de gente. São três minutos.

Gaspar voltou a esquina e meteu-se em um  corredor. André, depois de passear perto de um quarto de hora, foi à esquina e perguntou no armarinho pelo cunhado.

- Aqui só veio um preto comprar uma vela de cera, respondeu o caixeiro.

André ficou furioso, mas compreendeu tudo. Sabia que a irmã dominava o marido, mas não calculava que chegasse a tanto.

Resolveu, portanto, fazer as coisas por si.

No dia seguinte apareceu em casa de Angélica (não ouso dizer em casa de Gaspar) e de novo insistiu na entrega do pequeno; a missão não teve nenhum efeito. André resolveu ir esperar à porta do arsenal de guerra que o pequeno saísse e deitar-lhe a mão em cima.

João das Mercês não escapou ao laço.

Nesse mesmo dia foi morar para casa do pai, com ordem de não sair nem para o emprego nem para casa da tia.

Imaginem o furor de dona Angélica e a dor de Marianinha.  Gaspar fez cem projetos de vingança, sem que a mulher lhe aceitasse nenhum.

Separado da jovem namorada, João das Mercês ficou entregue ao mais profundo desespero. Correram os meses sem que se avistassem  os dois. Ao cabo de um ano, André arranjou para o filho um emprego, e foi a primeira vez que o mísero pôde pisar a rua. Seu primeiro cuidado foi ir à casa da tia.

Achou-se na sala toda a família e mais um rapaz de casaca e luvas brancas.  Marianinha empalideceu um pouco, mas logo lhe passou essa manifestação de remorso.  Remorso digo, porque o sujeito de luvas brancas e casaca, como o leitor há de ter percebido, vinha pedir a moça em casamento.

Dona Angélica acabava um discurso acerca dos deveres do casamento e do amor das mães aos filhos, discurso que Gaspar ouvia com aprovação de cabeça, e o noivo com abrimentos de boca.

João das Mercês não resistiu à dor. Saiu furioso acusando os céus e a terra das suas desgraças. Complicaram-se estas com a morte do pai. João das Mercês ficou no mundo sozinho.  Era preciso trabalhar; o rapaz entrou a trabalhar como um mouro.

Houve entretanto não sei que pretendente ao lugar dele; parece que o pretendente tinha jus ao lugar, porque um dia de manhã o chefe da repartição mandou chamar João das Mercês e deu-lhe a triste notícia de que estava demitido.

Nessa triste posição esteve João das Mercês uns quinze dias que foi quanto lhe durou o resto do ordenado. Ao fim desse tempo não tinha que comer.  O estômago é engenhoso e tem boa memória  João lembrou-se que havia em uma casa de pasto do seu conhecimento, um caixeiro a quem emprestara dez mil réis em ocasião em  que se achava desempregado. Comeu para lá.

O caixeiro conheceu o credor, e acudiu a servi-lo. João das Mercês pediu alguma coisa para almoçar, e fingindo ler a lista declarou ao caixeiro que não tinha dinheiro naquela ocasião.

O caixeiro era bom  rapaz e não deixou de o servir. Foi pelo mesmo teor o jantar e a ceia. No dia seguinte não havendo outra vela no horizonte culinário, João das Mercês recorreu ainda ao caixeiro, que não deixou de lhe fiar o comer; mas pensando que a penúria de João das Mercês era temporária, limitou-se a afiançar ao dono da casa a capacidade do freguês.

Ao fim de duas semanas, quando João das Mercês se assentava para comer o seu décimo quinto almoço, o dono da casa foi-lhe levar uma conta que fez empalidecer o pobre rapaz.

- Amanhã lhe pago isto, respondeu ele pondo a conta no bolso, e com  tanta confiança que parecia estar à espera de algum legado.  Ignora-se como comeu ele no dia seguinte e nos outros. Um mês depois achamo-lo empregado em  copiar certidões e outros papéis em casa de um tabelião. Era ativo no trabalho e sério no procedimento; infelizmente o tabelião padecia de moléstias que o enchiam de mau humor certas manhãs, mormente se comia em véspera carne cozida. Um dia em que o tabelião entrou no cartório afinadíssimo, João das Mercês teve a desgraça de copiar mal um papel. O tabelião revoltou-se contra o escrevente, e mandou fazer outra cópia, a qual, não saindo capaz, levou o tabelião às nuvens.  Por desgraça, João das Mercês abalroou na mesa e entornou-lhe o tinteiro sobre uma procuração.

Foi demitido.

Tentou João das Mercês entrar no comércio, e alcançou ser admitido como sócio de indústria em um armarinho.  O armarinho era afreguesado e João das Mercês julgou ter enfim dado o último golpe no caiporismo.  Daí a um ano reconheceu que andava iludido com a aparente vitória.

O caiporismo é a hidra de Lema.

O sócio disse-lhe um dia de manhã que ia buscar um primo em Sapopemba e partiu acompanhado de uma pequena mala.

João das Mercês ficou em casa só.

Mas os dias correram sem que o sócio voltasse; até que João fosse surpreendido com  uma letra de quinhentos mil réis.  Recorreu à burra e não achou vintém. Deu parte à policia; mas nem por isso escapou da correção.

Foi solto depois de um laborioso processo em que ficou provada a sua completa inocência. Os credores tomaram conta dos bens, e João das Mercês ficou no meio da rua com  as algibeiras vazias e nenhuma esperança de melhora.

Não tinha as algibeiras vazias de todo; depois de as revolver muito achou seis mil réis.

- Que tempo me durará isto? perguntou ele a si mesmo.  Nem três dias; é preciso comer e dormir. Acabado este dinheiro estou como antes. Que farei?

Aqui teve uma dessas inspirações que salvam impérios.

- Gasto dez tostões em alguma coisa, e com os cinco mil réis de resto compro um quarto de loteria.

Já sabemos que ele tinha esta mania que lhe deixara uma das sete amas.

Assim fez.

Depois de comer tranqüilamente um almoço sucinto e modesto, encaminhou-se para a rua da Quitanda e comprou o bilhete.

- 1441, disse ele, bom número; tenho fé.

Tinha uma esperança mas não tinha jantar nem cama. Felizmente a roda corria no dia seguinte. João das Mercês entrou a passear pelas ruas, disposto a sofrer filosoficamente a fome e o mais na esperança dos vinte contos.

Casualmente encontrou o tio Gaspar.

- Como estás? perguntou-lhe o tio.

- Bom.

- Já te livraste do processo?

- Já.

- Tão depressa?

- Acha que foi depressa?

- Sim, estas coisas costumam a ser mais longas. Eu quis fazer alguma coisa por ti; mas tua tia que é uma senhora de muito bem pensar, disse: "- Era bom ir socorrer o Joãozinho; mas o crime é tão feio que não é bom a gente meter-se nisto; que pensas tu Gaspar?" "- Que hei de pensar mulher?  Penso que o rapaz é inocente e que foi atraiçoado; mas as aparências enganam... e nesse caso é minha vontade que não nos metamos nisto".

- Faz bem.

- Onde estás agora?

- Aqui na rua.

- Mas qual é o teu emprego?

- Passear.

- Que dizes?

- A verdade.

Gaspar que não era mau homem, ficou penalizado com a situação do sobrinho. Quis fazer alguma coisa por ele; mas não ousava.

- Já comeste?

- Hoje comi; amanhã não sei.

- Olha, disse Gaspar com um belo movimento de generosidade, toma lá; eu fui agora mesmo receber um dinheiro; toma dez mil réis.

João das Mercês aceitou os dez mil réis e abraçou o tio.

- Bem! disse ele, a sorte começa a ceder.  Já tenho com que dormir hoje e comer amanhã.

Era não contar com o caiporismo e dona Angélica. Esta senhora pediu ao marido contas do dinheiro que fora cobrar. Gaspar contou-lhe francamente o estado em que achara João das Mercês e o procedimento que tivera. Dona Angélica irritou-se contra o marido e o sobrinho e exigiu a imediata entrega do dinheiro. Por honra dela, devo dizer que a sua intenção era simplesmente mortificar o marido.  Mas este, acostumado a obedecer-lhe, tomou à letra a ordem e saiu desesperado em busca de alguém que lhe emprestasse dez mil reis.

Esse alguém foi o sobrinho.

João das Mercês viu de longe o tio e aproximou-se dele. Achou-o triste e taciturno, perguntou-lhe o que tinha.

- Nada, disse Gaspar.

- Alguma coisa tem meu tio; vamos diga o que é.

Gaspar não disse palavra.

Então lembrou-se João das Mercês do domínio que a tia exercia no ânimo do marido, e calculou que a tristeza de Gaspar se prendesse ao generoso presente dos dez mil réis.

- Qual! disse Gaspar, quando João das Mercês lhe comunicou a suspeita; Angélica não era capaz de semelhante coisa; estima-te e respeita-te. A verdadeira causa de minha tristeza é que esse dinheiro não era meu, e eu dei-te os dez mil réis por engano.

João das Mercês entregou o dinheiro ao tio.

Gaspar sentiu-lhe borbulhar-lhe uma lágrima nos olhos.  Apertou a mão ao sobrinho e foi para casa. Entrava triunfante com os dez mil réis, quando dona Angélica franzindo o sobrolho, perguntou-lhe de onde os houvera. Gaspar confessou-lhe a verdade.

- Que! exclamou a esposa; pois tu tiveste ânimo de ir tirar estes pobres dez mil réis ao rapaz que nem comer tinha?

- Mas tu...

- Eu, o que? Eu disse aquilo por dizer. Vai, vai entregar este dinheiro ao pobre rapaz.

- Onde o encontrarei agora?

Gaspar saiu e não achou o sobrinho. Às ave-marias voltou para casa, mas receando que a mulher lhe revistasse as algibeiras, coisa que nunca deixava de fazer todas as noites, tratou de gastar os dez mil réis como pôde.

João das Mercês passou a noite na rua; no dia seguinte almoçou com um outro companheiro do cartório; e à hora do costume foi para a Misericórdia ver correr a roda.

- Tenho um pressentimento, disse ele consigo, de que hoje venço o destino.

Chegou; dez minutos depois o n.1441 era aclamado como tendo obtido os vinte contos de réis.

João das Mercês desmaiou.

Deram-lhe os prontos socorros. Tornou a si, apalpou as algibeiras; e achou o abençoado bilhete.

Graças a este recurso inesperado foi à antiga casa de pasto, cuja dívida estava paga, e apresentou o bilhete.

- Tenho aqui a sorte grande; dê-me de jantar que eu depois de amanhã lhe satisfaço a conta do que for.

Foi prontamente obedecido.  Jantou como um príncipe. No fim pediu ao caixeiro conhecido, sempre sobre a base do bilhete, alguns charutos que só tinham o defeito de não serem de Havana; no mais não prestavam para nada.

Mas naquela situação tudo o que se fuma é bom. Qualquer homem fumará alegremente couro de boi, se tiver a certeza de que no dia seguinte lhe metem na algibeira vinte contos de réis.

Acabava ele de acender um charuto, quando um sujeito que lhe ficara fronteiro, e tinha ouvido a conversa com o dono da casa, lhe disse com familiaridade:

- Com que então tirou a sorte grande?

- É verdade, respondeu João das Mercês, com a indiscrição de um homem feliz após tantas desgraças. Tirei a sorte grande e ainda estou admirado disso.

- Por que? disse o sujeito, levantando-se com  a xícara de café na mão e indo assentar-se à mesa do rapaz.

- Porque fui sempre muito caipora. Nunca comprei bilhete que me saísse sequer o mesmo dinheiro. Desta vez porém acertei..

- Homem, eu também fui sempre caipora. Joguei dois anos com o mesmo número e nunca tirei mais de 40$000.  Um dia porém, saiu o diabo detrás da porta e caiu-me a bicha em casa.

- Sim? Quando foi isso?

- Foi há seis meses.

- Um quarto ou bilhete inteiro?

- Meio bilhete.  Recebi dez contos.

- Talvez não precisasse deles...

- Quase que lhe posso dizer isso. Graças a Deus ajuda que não viessem os dez contos, tinha com que passar.  Acontece-lhe o mesmo?

- Infelizmente não, disse João das Mercês seduzido com a maneira e a confiança do interlocutor.

- Mais uma razão para que eu o felicite.

O desconhecido apertou a mão a João das Mercês e ofereceu-lhe um charuto.

- Estes charutos daqui não prestam, tome este. João das Mercês acendeu o charuto depois de pôr o seu fora, e reclinou-se sobre a mesa a conversar com o desconhecido.

Ao fim de uma hora saíram de braço dado. O desconhecido disse chamar-se Viana; João das Mercês deu também o seu nome.  Saíram como dois amigos velhos. Passearam todo o tempo; Viana levou a benevolência ao ponto de o convidar a tomar um sorvete no Carceller.

Perto da noite, disse Viana para João das Mercês.

- Vou levá-lo até à sua casa.

João das Mercês fez uma careta.

- Isso agora há de ser mais difícil, disse ele depois de alguns instantes.

- Por que?

- Porque...

- Seja franco.

- Pois bem, meu caro, eu não tenho casa!

- Não tem casa?

João das Mercês contou fielmente ao amigo a sua posição.  Viana ouviu a narração com visíveis sinais de simpatia.

- Pois se isto o não incomoda nem ofende, ofereço-lhe por hoje um hospício.  Amanhã já não será preciso porque receberá o dinheiro.

- Aceito.

Dirigiram-se para a rua da Misericórdia.  Viana morava ali em um primeiro andar mobiliado com algum asseio.

- A casa não está arranjada, disse ele, mas é porque eu mais me entendo com a desordem que com  a ordem.

- Está excelente, disse João das Mercês. Ah! meu caro senhor Viana, creio que sou agora verdadeiramente feliz. No dia em que me entra o dinheiro pela porta, entra-me um amigo pelo coração. Pela porta é metáfora, acrescentou ele rindo.

Viana apertou-lhe a mão comovido.

- Tive um amigo da sua idade; era a mesma alma franca e aberta aos sentimentos generosos; permita-me a ilusão de que o encontrei agora.

- Espero que não seja ilusão, exclamou João das Mercês.

Conversaram  até alta noite. A uma hora João das Mercês disse que estava com sono.

- Eu também, disse Viana. Vamos dormir. Tenho sempre esta outra cama pronta para o que der e vier.  Olhe, gosto de acordar cedo.

- Homem, nestas alturas não se me dera acordar mais tarde, respondeu João das Mercês que, como sabemos, adquirira de uma das suas amas o modo de dormir demais.

- É que eu tenho de sair cedo, para levar um papel à estrada de ferro.  Às nove horas estarei de volta.

- A minha madrugada será às nove horas.

- Veja já se perdeu o bilhete.

- Nada, cá está no bolso do colete.

Dormiram.

No dia seguinte, seriam onze horas quando João das Mercês abriu os olhos.  Viana ainda não tinha voltado. O rapaz costumava estar na cama acordado ainda um quarto de hora. Ao fim desse tempo levantou-se, lavou-se e vestiu-se.

Não tendo relógio não sabia que horas eram. O sol estava encoberto. João das Mercês chegou à janela a ver se via o dono da casa.

Não viu ninguém.

Pouco depois deram os sinos meio-dia.

- Meio-dia, disse ele. Onde estará este homem.

Começou a sentir fome e a arrepelar-se com a demora, quando instintivamente levou a mão ao bolso do colete.

Não achou o bilhete!.

- Roubado! exclamou ele com desespero.

Chegou à janela, gritou, acudiu gente à porta que o deram por maluco.  Do segundo andar desceram algumas pessoas, e depois de ouvirem as queixas do mísero rapaz, foram chamar a autoridade.

Quando o rapaz conseguiu achar-se na rua eram já duas horas. Seu primeiro pensamento foi ir à casa de loteria.

Correu para lá.

Ó desgraça! todos os quartos da sorte grande estavam pagos. Deu os sinais de Viana e eram os mesmos de um sujeito que lá fora cobrar um quarto.

Não se pode descrever o desespero de João das Mercês. Faltava-lhe aquele golpe mais terrível que todos, o de ter a fortuna na mão e senti-la voar como um pássaro esquivo.

Não hesitou; a idéia de morrer entrou-lhe na cabeça como uma solução às suas desgraças.

No fundo do bolso ainda achou um cartão de barca. Dirigiu-se à ponte e tomou passagem para S. Domingos.

No meio da viagem, aproveitou o descuido das pessoas que se achavam perto dele e atirou-se ao mar.

Houve logo a bordo o reboliço que um caso destes produz. A barca parou e a bordo se empregaram todos os esforços para salvar o infeliz.

João das Mercês veio à tona d'água quando lhe atiraram uma corda; ele repeliu-a com energia.

Seu pensamento era morrer.

Não contava com o caiporismo.

Os esforços empregados em favor de uma criatura que não queria nada da vida, foram coroados de sucesso, João das Mercês foi salvo.

Passado esse triste acontecimento, João das Mercês dispôs a lutar violentamente com a sorte; pareceu-lhe esta sorrir.  Alcançou o rapaz um emprego que lhe dera com que viver pobremente.

Alugou uma casinha na Cidade Nova, e assim passou alguns meses.

Uni dia reparou que havia defronte uma velha que não deixava de sorrir quando ele entrava ou saía de casa.  João das Mercês cumprimentava-a cortesmente, mas não julgava que o riso fosse com ele.

A casa da velha era a melhor casa da rua, e a moradora passava por ser rica.

Quando João das Mercês descobriu que o riso era com ele, começou a prestar maior atenção à vizinha. Esta redobrou de demonstrações e seria enfadonho contar aqui miudamente os acontecimentos que se deram depois. Basta saber que João das Mercês entrou a freqüentar a casa da vizinha, e esta declarou-lhe francamente o amor que o moço lhe havia inspirado.

Não devendo esperar que a própria velha oferecesse aquilo que era um favor para ele, João das Mercês exclamou um dia:

- E se nós nos casássemos?

- Essa é a minha intenção, disse Margarida, se acha que eu o posso fazer feliz.

- Oh! mais que feliz!

A velha linha duzentos contos.

Era mais que a sorte grande.

Marcou-se o dia do casamento, correram os pretões, João das Mercês mandou fazer a roupa nova e convidou Gaspar para ser padrinho.

- Sem dúvida, meu rapaz, respondeu o tio, mas quem é a madrinha?

- Eu tinha-me lembrado de minha tia.

- Conta com ela; vou agora mesmo avisá-la.

Margarida não cabia em si de contente; dizia que apesar da idade que tinha, sentia em si mais amor do que nunca tivera ao defunto marido.

João das Mercês disse a mesma coisa.  Amara muitas vezes, mas nunca com tanta força.

- Sei o que é, acrescentava ele, é que eu amei sempre a umas deslambidas sem gravidade nem as graças que só se podem ter em certa idade.

Margarida não tinha parente nenhum com exceção de um primo remoto, que fez todos os esforços para impedir o casamento, e que nada tendo alcançado, resolvera aceitar o convite para ser padrinho, não podendo brigar com a parenta rica.

Raiou enfim a véspera do casamento.

Por conselho da noiva, João das Mercês tinha desistido do emprego, aliás com repugnância, porque não queria parecer que ia viver às sopas da mulher.  A coisa era isso mesmo, mas ele não queria a aparência da coisa.

Terníssimos foram os adeuses dos noivos na véspera do casamento. João das Mercês já tinha fechado a porta, e Margarida ainda acenava com o lenço.

Alta noite foi João das Mercês acordado por violentas pancadas na porta.  Levantou-se sobressaltado e foi ver o que era.

Era um escravo de Margarida.

Vinha dizer que a senhora estava mal; e que o mandava chamar.

A primeira frase de dor do rapaz foi toda egoísta:

- Ah! meu caiporismo! exclamou ele enfiando as calças. Margarida estava realmente às portas da morte.

Quis ver o noivo; este chegou; ela apertou-lhe a mão com ternura.

Depois chamando o primo declarou que desejava fazer o seu testamento, mas ainda não tinha acabado de falar que expirou.

João das Mercês teve um ataque.

Quando voltou a si, o pobre rapaz lembrou-se outra vez de morrer. Mas tantos sucessos lhe tinham embotado a energia.

Nunca raiou dia de felicidade para este infeliz. Tem sido sucessivamente agente de procurador, copista de advogado, porteiro de teatro, vendedor de bilhetes de loteria, negociante de charutos, sempre perseguido pela fatalidade.

Ele mesmo diz com resignação evangélica:

- Sou o rei dos caiporas!

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 21 de março de 2022

GIGOLÔ (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

GIGOLÔ

Humberto de Campos

 

 

 

Na pequena mesa redonda, em que havia lugar para três, D. Georgina comentava com a liberdade das suas maneiras, o capítulo de uma revista parisiense sobre um termo de criação recente, que tem, já, uma aplicação universal.

 

— Eu não sei, nem compreendo, afinal, a prevenção contra esse vocábulo.

 

— Que vocábulo, minha senhora? — inquiri, intrigado.

 

— Que vocábulo? O "gigolô", masculino de "gigolete", que toda a gente emprega, hoje, nos salões, nas festas, nos passeios, nos cinemas, sem o menor constrangimento. Uma das minhas amigas, Madame Perez, tem uma cadelazinha a que deu o nome de "Gigolete", e chama-a por essa forma, em qualquer parte, sem o menor escândalo dos que a ouvem. As moças, hoje, andam à "gigolete", vestem-se à "gigolete", fantasiam-se de "gigolete" no Carnaval, e dizem-no sem rebuços, sem temores, sem que se engasguem com a aspereza da expressão. Não se pode, entretanto, falar em "gigolô", nem, mesmo, entre íntimos, sem que haja uma estranheza, um arrepio em todas as almas, principalmente nas que se dizem limpas de pecado. Por que essa diferença, essa disparidade, essa prevenção?

 

Eu olhei o Dr. Moraes, esposo da ilustre senhora, e, como o visse impassível, dirigi-me à mulher:

 

— E que é "gigolô", D. Georgina?

 

— O senhor, então, não sabe, conselheiro? Não sabe, mesmo?

 

E como lesse a ignorância estampada na minha fisionomia, explicou, virando-se para mim:

 

— "Gigolô" é o indivíduo adorado por uma mulher que tem outro homem que a ama, e que ela sustenta, à custa do último. Geralmente moço, o "gigolô" é tratado pela mulher que o adora com todos os requintes da paixão. Para ele são os seus melhores beijos, os seus melhores mimos, os seus maiores cuidados. O marido, ou o amante, ordinariamente idoso, fornece-lhe tudo, cercando-a de conforto, de luxo, de abundância, à custa, às vezes, dos maiores sacrifícios. Ela passa, entretanto, tudo isso ao "gigolô", que é, enfim, o único a lucrar com os amores e com o trabalho do outro.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 19 de março de 2022

QUESTÕES DE MARIDOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

QUESTÕES DE MARIDOS

Machado de Assis

 

 

 

— O subjetivo... o subjetivo... Tudo através do subjetivo, — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.

 

Era um sestro. Outro sestro era sacar de uma gaveta dois maços de cartas para demonstrar a proposição. Cada maço pertencia a uma de duas sobrinhas, já falecidas. A destinatária das cartas era a tia delas, mulher do professor, senhora de sessenta e tantos anos, e asmática. Esta circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso; mas isto mesmo lhes mostrará que o caso é verídico.

 

Luísa e Marcelina eram os nomes das sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as deixou crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A primeira casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo dia. Uma e outra eram bonitas, ambas pobres.

 

— Coisa extraordinária! disse o professor à mulher um dia.

 

— Que é?

 

— Recebi duas cartas, uma do Candinho, outra do Soares, pedindo... pedindo o quê?

 

— Diga.

 

— Pedindo a Luísa...

 

— Os dois?

 

— E a Marcelina.

 

— Ah!

 

Este ah! traduzido literalmente, queria dizer: — já desconfiava isso mesmo. O extraordinário para o velho professor era que o pedido de ambos fosse feito na mesma ocasião. Mostrou ele as cartas à mulher, que as leu, e aprovou a escolha. Candinho pedia a Luísa, Soares a Marcelina. Eram ambos moços, e pareciam gostar muito delas.

 

As sobrinhas, quando o tio lhes comunicou o pedido, já estavam com os olhos baixos; não simularam espanto, porque elas mesmas é que tinham dado autorização aos namorados. Não é preciso dizer que ambas declararam aceitar os noivos; nem que o professor, à noite, escovou toda a sua retórica para responder conveniente aos dois candidatos.

 

Outra coisa que não digo, — mas é por não saber absolutamente, — é o que se passou entre as duas irmãs, uma vez recolhidas naquela noite. Por alguns leves cochichos, pode crer-se que ambas se davam por bem-aventuradas, propunham planos de vida, falavam deles, e, às vezes não diziam nada, deixando-se estar com as mãos presas e os olhos no chão. É que realmente gostavam dos noivos, e eles delas, e o casamento vinha coroar as suas ambições.

 

Casaram-se. O professor visitou-as no fim de oito dias, e achou-as felizes. Felizes, ou mais ou menos se passaram os primeiros meses. Um dia, o professor teve de ir viver em Nova Friburgo, e as sobrinhas ficaram na corte, onde os maridos eram empregados. No fim de algumas semanas de estada em Nova Friburgo, eis a carta que a mulher do professor recebeu de Luísa:

 

Titia,

 

Estimo que a senhora tenha passado bem, em companhia do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho agora anda com muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que ele esteja mais desembaraçado iremos vê-los.

 

Eu continuo feliz; Candinho é um anjo, um anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a peça. Muito engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de vê-la também.

 

Até breve, escreva-me, lembranças a titio, minhas e do Candinho.

 

Luísa.

 

Marcelina não escreveu logo, mas dez ou doze dias depois. A carta dizia assim:

 

Titia,

 

Não lhe escrevi há mais tempo, por andar com atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir que me mande notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder, creia que irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida. Até breve.

 

Marcelina.

 

— Vejam, comentava o professor; vejam a diferença das duas cartas. A de Marcelina com esta expressão: — estou muito aborrecida; e nenhuma palavra do Soares. Minha mulher não reparou na diferença, mas eu notei-a, e disse-lha, ela entendeu aludir a isso na resposta, e perguntou-lhe como é que uma moça, casada de meses, podia ter aborrecimentos. A resposta foi esta:

 

Titia,

 

Recebi a sua carta, e estimo que não tenha alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade.

 

Pergunta-me por que é que uma moça, casada de fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha aborrecimentos? Escrevi que estava aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento ou outro deixar de estar alegre?

 

É verdade que esses momentos meus são compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim, ficaria admirada. Mas enfim Deus é grande...

 

Marcelina.

 

— Naturalmente, a minha velha ficou desconfiada. Havia alguma coisa, algum mistério, maus-tratos, ciúmes, qualquer coisa. Escreveu-lhe pedindo que dissesse tudo, em particular, que a carta dela não seria mostrada a ninguém. Marcelina animada pela promessa, escreveu o seguinte:

 

Titia,

 

Gastei todo o dia a pensar na sua carta, sem saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só porque a senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar.

 

É verdade, titia, padeço muito, muito; não imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe causo aborrecimento.

 

Nos primeiros oito dias ainda as coisas foram bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir que ele não correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme, vivendo de mim e para mim. Ao contrário, parece outro, inteiramente outro, caprichoso, intolerante, gelado, pirracento, e não ficarei admirada se me disserem que ele ama a outra. Tudo é possível, por minha desgraça...

 

É isto que queria ouvir? Pois aí tem. Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do coração.

 

Marcelina.

 

— Ao mesmo tempo que esta carta chegava às mãos da minha velha, continuou o professor, recebia ela esta outra de Luísa:

 

Titia,

 

Há muitos dias que ando com vontade de escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de ser sem falta, embora a carta saia pequena.

 

Já lhe disse que continuo a ter uma vida muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando vê a minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo a ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah! titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los. Escreva-me.

 

Luísa.

 

E o professor, empunhando as cartas lidas, continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia tão desgraçada.

 

— Consultou-me se devia indagar mais alguma coisa de Marcelina, e até se conviria descer por causa dela; respondi-lhe que não, que esperássemos; podiam ser arrufos de pequena monta. Passaram-se três semanas sem cartas. Um dia a minha velha recebeu duas, uma de Luísa, outra de Marcelina; correu primeiro à de Marcelina.

 

Titia,

 

Ouvi dizer que tinham passado mal estes últimos dias. Será verdade? Se for verdade ou não, mande-me dizer. Nós vamos bem, ou como Deus é servido. Não repare na tinta apagada; é de minhas lágrimas.

 

Marcelina.

 

A outra carta era longa; mas eis aqui o trecho final. Depois de contar um espetáculo no Teatro Lírico, Luísa dizia assim:

 

... Em suma, titia, foi uma noite cheia, principalmente por estar ao lado do meu querido Candinho, que é cada vez mais angélico. Não imagina, não imagina. Diga-me: o titio foi assim também quando era moço? Agora, depois de velho, sei que é do mesmo gênero. Adeus, e até breve, para irmos ao teatro juntas.

 

Luísa.

 

— As cartas continuaram a subir, sem alteração de nota, que era a mesma para ambas. Uma feliz, outra desgraçada. Nós afinal já estávamos acostumados com a situação. De certo tempo em diante, houve mesmo de parte de Marcelina uma ou outra diminuição de queixas; não que ela se desse por feliz ou satisfeita com a sorte; mas resignava-se, às vezes, e não insistia muito. As crises amiudavam-se, e as queixas tornavam ao que eram.

 

O professor leu ainda muitas cartas das duas irmãs. Todas confirmavam as primeiras; as duas últimas eram, principalmente, características. Sendo longas, não é possível transcrevê-las; mas vai o trecho principal. O de Luísa era este:

 

... O meu Candinho continua a fazer-me feliz, muito feliz. Nunca houve marido igual na terra, titio; não houve, nem haverá; digo isto porque é a verdade pura.

 

O de Marcelina era este:

 

... Paciência; o que me consola é que meu filho ou filha, se viver, será a minha consolação: nada mais...

 

— E então? perguntaram as pessoas que escutavam o professor.

 

— Então, quê?... O subjetivo... O subjetivo...

 

— Explique-se.

 

— Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 18 de março de 2022

AUTOS E *TÁXIS* (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

AUTOS E "TÁXIS"

Humberto de Campos

 

 

 

Com o pensamento, talvez, de aperfeiçoar a raça, já de si tão robusta e formosa, votou o Parlamento uruguaio um projeto de lei determinando às autoridades que não realizem mais casamentos sem que os noivos se tenham submetido, com resultado negativo, à reação de Wasserman. Acham os legisladores de Montevidéu que a mulher constitui para os homens uma cruz, e foi com pena deles, provavelmente, que se tomou a providência. Que seria, em verdade, do mortal que tomasse aos ombros a cruz da família depois de ter duas, ou três, constatadas num paciente exame de sangue?

 

Vindo de uma época excessivamente escrupulosa, em que os pais dos namorados sindicavam das condições sanitárias dos antepassados até à quinta geração, e em que os próprios noivos tomavam um purgativo de óleo de rícino oito dias antes do casamento, — eu não podia ser contrário à humanitária medida promulgada pelo governo do Uruguai. O meu espírito faltaria, entretanto, ao seu dever de sinceridade, aos hábitos de franqueza incondicional, se não confessasse o temor, que tenho, de que essa exigência venha reduzir, ali, o número de casamentos.

 

O casamento é, realmente, hoje, encarado por um prisma original, que degrada, é certo, a mulher, mas reintegra a espécie na natureza, permitindo-lhe a realização do seu verdadeiro destino. Dessa teoria, dava-me, ontem, uma perfeita imagem industrial o Sr. Roberto de Aguiar, agente de pneumáticos americanos, ao explicar-me, sem constrangimento nem entraves na língua:

 

— O casamento só pode ser julgado com segurança senhor conselheiro, por pessoa que já teve automóvel. A esposa ou o esposo definitivo é, para o homem ou para a mulher, uma espécie de automóvel particular. E nada há no mundo, como o senhor sabe, que, como um automóvel particular, dê tanto trabalho: um dia, é uma peça que falta; no outro, é a gasolina; mais tarde, é a capota, que está estragada. O dono de um automóvel vive a fazer despesas todos os dias, a incomodar-se a todo instante, e, quando mais precisa do carro, tem a notícia de que ele não pode funcionar!

 

Eu encarei o homenzinho, disposto a deixá-lo, àquela hora da madrugada, na primeira esquina da Avenida, e ele continuou:

 

— Com a amante, ou o amante, não; o amante, qualquer que seja o sexo, é o "táxi" do coração: a gente toma-o, paga-o, e salta onde entende, sem perguntar, sequer, o nome da "garage". Marido ou amante, auto particular ou "táxi", que importa à mulher, ou ao homem, a espécie do veículo, se ele faz a viagem da mesma maneira? E isso com a vantagem de, ao abandonar o carro, não ter passageiro que se incomodar com o estado do motor, nem com a qualidade dos lubrificantes.

 

Nesse momento, soavam, monótonas, em uma torre da Avenida, três badaladas metálicas, quebrando o silêncio da noite, quase acabada:

 

— Três horas! — espantou-se o major Afonso Gomide, que ia conosco. — Vamo-nos?

 

O agente americano estendeu os olhos pela Avenida deserta, e lamentou:

 

— Sim, senhor! Nem um "táxi"!... E agora?

 

— Vamos no meu automóvel, — convidou o major, fazendo sinal ao seu "chauffeur".

 

Desabituado desses luxos, eu continuei o meu caminho, a pé...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 16 de março de 2022

QUEM NÃO QUER SER LOBO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO


Literatura - Contos e Crônicas terça, 15 de março de 2022

SÃO FILOMENO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

SÃO FILOMENO

Humberto de Campos

 

 

 

A estação de Cariri, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de planície, onde se estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos, desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou ali menos densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de pastagem.

 

Contrastando com esse panorama desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve oásis em que as árvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram os primeiros amores de Zeus. É ali, nesse breve refrigério da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja, descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos, à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias fatigadas.

 

— Que bosque é este? — perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e pescoço de touro.

 

— Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.

 

— E esse Nicolau, mora aqui? — indaguei.

 

O caboclo sorriu, zombeteiro, e explicou:

 

— Não mora, não, senhor; já morou.

 

O caso, como era natural, intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.

 

— Antes da seca de 77 — começou — havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria, um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno, padroeiro do lugar, não queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode morreu nesse ano. E começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os moradores reuniram-se uma noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E como não entrassem em acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau pensasse e deliberasse por todos.

 

— E quem era esse Nicolau? — interrompi.

 

— Espere lá, já lhe digo. Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem novena, nem ladainha, e ia até o Cariri, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça. Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se, nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.

 

— Milagre?

 

— Sim, senhor. Diz ele que, assim que pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo; crescendo, até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinza porque, todos nele são pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" — "É possível, senhor?!" — exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em explicações, limitando-se a dizer: — "Olha, Nicolau, o momento não é para vinganças nem para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a verdade. Toma, — disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; — toma estas sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela, tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo, voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo, distribuiu as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos depois, voltaram.

 

— E então?

 

— E então? Então, encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!

 

— Nasceu, então, até a semente da porta do Nicolau?

 

O caboclo sorriu, e atendeu:

 

— A porta do Nicolau era ali.

 

E indicou um pé de jatobá imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe, os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Cariri.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 13 de março de 2022

UM QUARTO DE SÉCULO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM QUARTO DE SÉCULO

Machado de Assis

 

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

Eram quatro horas da tarde. Oliveira e Tomás conversavam à porta da casa do Desmarais, Rua do Ouvidor, ano de 1868, quando passou do lado oposto uma senhora, vestida de preto. Oliveira disse a Tomás:

 

— É a viúva Sales; espera.

 

E atravessando a rua, foi falar à viúva Sales, cinco a seis minutos apenas. As últimas palavras foram estas:

 

— Mas não posso contar com a senhora?

 

— Mana Rita está constipada; se ela ficar boa, vamos.

 

— Vou rezar para que fique boa.

 

— Os hereges não rezam, replicou a viúva sorrindo e despedindo-se.

 

Oliveira tornou à porta do Desmarais. Tomás seguiu com os olhos a viúva, até que ela dobrou a primeira esquina.

 

— Não é possível, disse ele.

 

— Que é que não possível?

 

— Essa viúva... É viúva de um médico, um doutor João Sales?

 

— Isso.

 

— D. Raquel?

 

— Exatamente.

 

— Filha de um conselheiro de guerra?

 

— Xavier de Matos. Conheces?

 

— Sim, conheço, isto é, conheci. Foi há muitos anos. Está mudada.

 

— Um pouco mais gorda.

 

— Conhecia-a magrinha.

 

— Mas não está mais velha. Queres vê-la, queres jantar com ela, lá em casa, sábado?

 

— Ela vai?

 

— Prometeu que iria, se a mana ficasse boa.

 

— Sim, Mariana, mais velha que ela.

 

— Não, Rita, mais moça. A mais velha morreu há anos; era casada com um deputado do Norte. A mais moça não casou. Vivem juntas.

 

— Vou.

 

— Seis em ponto.

 

— Em ponto.

 

— Bem, agora que a viste, que tens algumas notícias, que vais jantar com ela e conosco, sábado, às seis horas em ponto, quero que me digas tudo ou só metade, o que puder ser contado.

 

— Tudo é nada, respondeu Tomás. Que diabo de idéia é essa?

 

— Meu caro, quando eu me despedi dela, tu não me viste chegar ao pé de ti; ias atrás dela com os olhos, com os ouvidos, com tudo. O coração batia-te que se ouvia cá fora como o meu relógio de parede bate as horas, nos primeiros dias da semana, por estar de corda nova. Relojoeiro, desfaz o teu relógio.

 

Tomás sorriu, mas não sorriu bem; parecia acanhado. Oliveira não soube ser discreto. Íntimos desde a Faculdade de Direito de S. Paulo, onde se formaram, foram confidentes um do outro, até o dia em que a vida os separou; novamente ligados, Oliveira cuidava estar no mesmo ponto em que a vida os deixara antes. Tomás, pela sua parte, vacilava. Evidentemente, havia alguma coisa que dizer.

 

— Tudo é pouco.

 

— Esse pouco.

 

— Gostei dela em solteira, mas foi coisa que passou, como outras. Sabes que nós, por esse tempo, namorávamos a todas.

 

— Mas nunca me falaste desta.

 

— Provavelmente, falei; mas eram tantas! Bom tempo, Oliveira! Era melhor que isto de hoje com os nossos bigodes grisalhos, tu pai de filhos, eu solteirão desamparado, quarenta e quatro anos no lombo; tu tens mais três.

 

— Mais dois.

 

— Creio que já foram quatro, mas o tempo diminui tudo, começando por si mesmo.

 

— Vai para o diabo. Quarenta e seis, feitos em março.

 

Trocaram ainda algumas palavras, e despediram-se. Oliveira meteu-se no carro que estava no largo de S. Francisco de Paulo e foi para Andaraí. Tomás meteu-se na gôndola e guiou para o Catete.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

Tomás de Castro Rodrigues tinha realmente alguns fios de prata nos bigodes e nos cabelos; vieram-lhe cedo e tendiam a multiplicar-se. Bonita figura, bem posta sobre uns pés pequenos, elegante com certa graça do outono, dava ainda um noivo decente. Não casara por não achar noiva que o quisesse, dizia ele; mas, realmente, por causa de uma paixão da mocidade, esta mesma viúva Sales que passou agora na Rua do Ouvidor, então Raquel, simples Raquel.

 

Não tomes isto ao pé da letra, para me não acusares de romantismo. É certo que ele prometeu não casar nunca, depois da paixão de Raquel; mas, não foi precisamente a paixão que o deixou solteiro. Esta doeu-lhe por muito tempo, fê-lo empreender uma viagem à Europa, onde se demorou quatro anos. Os quatro anos, porém, não foram gastos em suspirar. O tempo e a distância depressa o fizeram sarar; a própria vida é que o confinou na solidão. Solidão fácil, aliás, composta de prazeres, viagens, distrações amorosas e outras. Quando se afastou da Europa, tornou para o Rio de Janeiro, onde assistiu à morte do pai, que lhe deixou todos os seus bens. Tomás era filho único. Já então Raquel, tendo casado com um negociante de Pelotas, havia partido para o Sul. Tomás começou a advogar; parece que defendeu algumas causas, perdeu-as todas, ou quase todas. Não fechou a banca; mas achava meio de não se meter em muito trabalho; este foi naturalmente fugindo, de maneira que, em pouco tempo, acabaram os clientes. A banca era pretexto para ter um lugar de descanso e conversação, e dar emprego a um servente.

 

Assim se passaram três a quatro anos. A Europa entrou a fazer cócegas ao advogado sem causas; mas o amigo Oliveira, já então casado, deu-lhe de conselho que entrasse na política. A idéia de ser ministro foi talvez o único motivo de aceitação deste conselho por um homem que não tinha partido nem inclinações políticas. Na Faculdade escrevera e falara nas liberdades públicas, no futuro dos povos, nas instituições democráticas, tudo isso, porém, sem convicção profunda nem superficial, um simples uso, uma espécie de oração necessária. Concluindo o curso, não pensou em libertar nem oprimir os povos. Agora a perspectiva ministerial fez alguma coisa; podia ser até que ele desse um bom orador, tendo sido dos melhores de seu tempo em S. Paulo.

 

Oliveira arranjou-lhe a cadeira, por intermédio de um parente ministro; aproveitou-se uma vaga, e Tomás entrou na Câmara. No distrito que o elegeu ficou o seu nome execrado; disseram-lhe todas as coisas feias, ambicioso vulgar, intruso, lacaio de ministro, gatuno, e besta. “Não é diploma que ele leva aqui; é uma gazua”, escreveu um jornal. Tomás quis rejeitar o diploma; não tinha a ambição necessária, ou qualquer sentimento equivalente, para suportar todo esse desejo de injúrias; mas Oliveira riu-lhe na cara, disse-lhe que não fosse tolo e ficasse; que os autores da palavrada não sentiam nada do que diziam, era a irritação própria da pretensão de outro candidato. Tomás obedeceu e entrou na Câmara.

 

Não foi ministro, proferiu dois discursos, aborreceu-se ao fim de algum tempo; cinco anos depois fazia outra viagem à Europa. Lá esteve, tornou a ir e regressou agora, há quatro meses, sem carreira, sem ambições, sem família. Conservava a riqueza, isso sim, não era gastador, vivia das rendas.

 

Resta dizer da paixão que primeiro o levou a andar por esse mundo. Já notei que, indiretamente, foi ela que o impediu de casar. É possível que, se houvesse de fazer vida regular, casasse e fundasse família. Raquel tinha vinte anos, quando ele a viu pela primeira vez, em um baile do Cassino Fluminenses. Era linda entre as lindas. Não lhe parecendo que ela o rejeitasse, buscou relacionar-se com a família. Houve da parte dele confiança demasiada; desde que começou a ir à casa dela, Raquel retraiu-se. Mas isto mesmo tornou mais forte a paixão do rapaz, — ou antes, foi isso que verdadeiramente a gerou. Até então o sentimento não passava do tom médio e comum de tantos amores que acabam em nada ou em casamento. Que motivo tinha Raquel para aceitá-lo a princípio e retrair-se depois? Talvez a lua o explique, talvez o vento. Não foi o mesmo que teve, mais tarde, para aceitá-lo novamente; aqui foi a piedade. Em verdade, a paixão do moço era tal que ela entendeu de bom aviso dar-lhe novas esperanças, e acabar casando. Pode ser que fosse assim, se ela não adoecesse daí a algumas semanas, indo para Minas, convalescer. Antes de concluído o prazo, Tomás correu a visitá-la. Esse encontro, após a ausência e a moléstia, devia desenganá-lo. Raquel desacostumara-se de o ver, não teve saudades, não lhe escrevera apesar das cartas dele, e o acolhimento foi apenas polido, senão pior. A piedade gastara as forças na tentativa de um amor que não queria nascer. Tomás voltou desesperado.

 

A verdade parece ser que Raquel era, mais que tudo, desconfiada e tímida. Pelo mesmo tempo em que Tomás a cortejava, era pretendida por mais dois homens, e essa competência produziu efeito contrário ao que se devia supor. Em casa, Raquel era chamada esquisitona. Acresce que um dos dois pretendentes, depois de desenganado, casou com outra moça, amiga dela, sem intervalo de dois meses. Essa facilidade de passar de uma a outra mulher fê-la ainda mais tímida e desconfiada. Tinha medo de entregar-se. De resto, foi a própria violência do amor de Tomás que o perdeu. Raquel achou a nota excessiva e teve medo. A separação fez-se com dor para ele, naturalmente sem saudade para ela. Nenhum pretendente os separou. Foi só depois que apareceu o negociante de Pelotas, sem paixão, apresentado pelo pai, como moço de muito futuro, e sério. Sales tinha trinta anos. Raquel aceitou-o sem combate nem entusiasmo; casou e partiu. Já Tomás estava na Europa.

 

Sales, negociante de Pelotas e doutor em medicina, liquidou a casa no fim de poucos anos e veio para o Rio de Janeiro. A idéia dele era viver uma vida elegante, participar de todos os prazeres da alta roda da capital. Contava com o papel eminente que caberia à mulher, agora mais bela que nunca. Assim foi. Em poucas semanas, em três meses, o nome de Raquel andava em todas as bocas, e a pessoa em todos os bailes e teatros. Toda a gente a conhecia na rua. Sales comprou uma carruagem e uma parelha de cavalos ingleses. A primeira modista era dela. Não eram dela as primeiras modas porque vinham feitas da Europa; mas entre as primeiras divulgadoras de um corte, de uma fazenda ou de um chapéu, estava a bela Raquel, — ou a bela Sales, como iam dizendo alguns, até que este nome se generalizou.

 

Pouco mais de um ano bastou a cansar o marido. Os hábitos do comércio ou da província, — os dele, ao menos, — não se podiam casar com a vida agitada que ele mesmo quisera e escolhera. Os bailes pareciam-lhes tristes, ao cabo de uma ou duas horas. Quando havia jogo, Sales atirava-se às cartas, enquanto a mulher valsava ou polcava. Gostava mais do teatro, e particularmente do teatro lírico; mas, se a primeira e segunda estação o encantaram, a terceira entrou a aborrecê-lo. Em casa, recebia bem e estava mais a gosto; mas tudo somado, a realidade da vida elegante não correspondia à expectação. Além do mais, para um homem afeito às lidas do comércio, a vida ociosa era pesada e vazia. Não sabendo que fazer do tempo, Sales lembrou-se de exercer a medicina. Curava de graça; não lhe faltavam doentes, e atrás deles a reputação. Assim passou alguns anos, até que ele próprio adoeceu, e, mais infeliz que os seus enfermos, sucumbiu.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

No sábado marcado, Tomás acudiu a Andaraí, onde já achou a viúva. Oliveira tinha anunciado a vinda do amigo, mas nem então, nem quando este chegou, houve da parte de Raquel a menor emoção. Ela falou ao namorado de outros dias, como se nada houvesse passado entre ambos, em bem ou em mal. Oliveira fê-los sentar, à mesa, ao pé um do outro; mas a vizinhança não alterou a disposição da viúva.

 

Tomás achou-a ainda bela, e, a muitos respeitos, melhor. Trinta e sete ou trinta e oito anos é o que devia ter. Era conversada, interessante, atenta, falando de tudo e bem, sem excesso, sem impertinência, calando a tempo, tudo isso com uma boca fresca e uns olhos capazes de paixão e de mando. Assim pareceram eles a Tomás, que estava comovido e ia-se sentindo acanhado. Para um homem vivido, o estado era inexplicável, se não fora a situação especialíssima. Ele supôs, e qualquer pessoa o suporia, que o longo celibato e a diferença dos tempos o teriam armado contra essa senhora, e foi contrário. Já não falo dos termos da separação de outrora, que eram um atrativo mais, não diminuído pela viuvez. A viuvez era antes um pico.

 

Raquel demorou-se pouco. A irmã, que estava presente, embora restabelecida, não podia apanhar sereno e a noite esfriava. Foi a razão dada pela viúva Sales para sair e não cantar, como lhe pedia Oliveira.

 

— Uma só daquelas músicas espanholas, que a senhora canta com tanta graça.

 

— Deixei a graça em casa; fica para outra vez.

 

A mulher de Oliveira ofereceu-lhes pousada por uma noite. Era impossível que D. Rita saísse; podiam ficar; iria levá-las no dia seguinte. Raquel não aceitou nada e despediram-se às nove horas. Tomás não ousou apertar fortemente a mão que ela lhe estendeu, à despedida, posto que esse fosse o seu desejo; tocou-lhe apenas nos dedos. Entretanto, esperava que ela lhe oferecesse a casa, e Raquel não lhe ofereceu coisa nenhuma.

 

Oliveira deu o braço a D. Rita, até o carro, deixando ao amigo a fineza de ir com a viúva. Tomás aproveitou o favor. Entre a casa, que ficava no centro de uma chácara, e a rua, havia cerca de trinta passos; Tomás fê-los compridos como léguas, sem achar uma palavra que dizer. Sentia o braço dela no seu, francamente pousado, sem cerimônia nem medo, e a sensação que isto lhe dava ainda mais lhe atava a língua. Enfim, chegaram ao carro.

 

— Obrigada, disse-lhe Raquel estendendo a mão.

 

Quando o carro partiu:

 

— Que tal a achaste? perguntou Oliveira.

 

— Achei-a bem.

 

— Estavas pálido.

 

— Eu?

 

— Deixa ver a tua mão; está fria. Seriamente, tu sentiste alguma coisa.

 

— Coisa nenhuma; tive recordações, mas, aos quarenta e quatro anos, as recordações são como brinquedos velhos e quebrados. Achei-a elegante. Queres que te diga? Mais distinta que em solteira.

 

— Mais senhora, mais tranqüila. O que tu queres dizer é que, em solteira, dava-te as mãos para que as beijasses.

 

— Nunca lhe beijei as mãos.

 

— Nunca! Nem os olhos?

 

— Menos ainda os olhos. Era muito arisca.

 

Tinham subido a escada de pedra, e parado à porta da sala de visitas. Oliveira pegou na mão do amigo, e, depois de alguns segundos:

 

— Se resolveres casar com ela, fala-me, disse.

 

— Casar?

 

— Fala-me, repetiu Oliveira.

 

— Tu estás tonto...

 

— Não é conselho que te estou dando; digo-te só que, se resolveres, estou pronto a servir de terceiro. Faz-se isto aos amigos velhos. Tu estás velho.

 

— Um pedido; não digas nada à tua mulher.

 

— De quê?

 

— Do que houve entre mim e Raquel.

 

— Já sabe. Contei-lhe tudo hoje de manhã; mas descansa, é discreta. Anda tomar uma xícara de chá; tens as mãos frias...

 

Tomás foi acabar a noite em um teatro. Não perdeu o sono, e acordou à hora do costume. Entretanto, a segunda ou terceira idéia que lhe acudiu, depois de acordado, foi a formosa viúva. Gostou de pensar nela; reconhecia que ela fora apenas polida, nem sequer faceira, nada que revelasse o desejo de lhe parecer bem. Durante uma semana pensou muitas vezes em Raquel. Chegou a esperá-la na Rua do Ouvidor. Sabendo onde morava, passou por lá duas vezes, sem a ver. Quinze dias depois do jantar, indo a Niterói, achou-a na barca. Ia só, com um véu pelo rosto, e parece que o vira, porque voltou a cara para o lado do mar. Tomás hesitou um instante; afinal foi cumprimentá-la. Raquel falou-lhe com afabilidade; ele sentou-se no mesmo banco.

 

— Há de crer que não vou à Praia Grande há dez anos? disse ele.

 

— Eu há dois meses. Vou visitar uma tia que está doente.

 

— Uma tia? Não me lembra, aventurou Tomás.

 

— Uma tia do finado.

 

O finado era o marido. Raquel referiu-lhe a moléstia, a idade, os costumes da pessoa, como se fossem coisas que o interessassem. Depois falou do mar. Depois falou do céu. Tudo como quem mata a alfinetadas um tempo que não quer morrer. Tomás pouco dizia; todo ele era ouvidos para escutá-la, olhos para vê-la, com os seus ombros fortes, as mãos finamente enluvadas, e os olhos, que pareciam de esfinge, agora que o céu os cobria. Pareciam ao nosso herói; ele é que o dizia consigo, romanticamente, não eu, que apenas traduzo aqui o próprio sentir do solteirão. Esfinge era a imagem velha; mas tinha para ele a mocidade de sua mocidade.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

Repetiram-se os encontros. Poucas semanas depois, Tomás fazia à viúva a sua primeira visita. Já então se podia dizer completamente enamorado, posto não ousasse confessá-lo, antes buscasse encobri-lo. Nada lhe dava certeza de poder ser aceito; mas também é verdade que não achava aparência de recusa. A viúva era atraente, cortês, interessante, ouvia-o com muito prazer, chegava a falar de outros tempos sem hesitação.

 

O quarto de século de distância eliminou-se como um castelo em ruínas de um teatro dá lugar a um campo alastrado de verdura, ao aceno do contra-regra. Tudo se renovava inteiramente. Casamento de um, ausência, dispersão de sentimentos, cansaço, fastio, desapareceram; e não foi só a moça que substituiu a viúva, mas o próprio sonho antigo que integralmente emergiu dos tempos. Tomás achou em si a força necessária para restaurar as suas imaginações perdidas. O que ele outrora pedia ao casamento com a solteira, achou-o nas mãos da viúva, como se o ofício delas não fosse mais que esperar por ele, guardando-se intactas do mundo e seus favores.

 

Seis meses não é pouco tempo entre um solteirão e uma viúva; mas tal foi o prazo decorrido sem que ele dissesse nada. Oliveira, a princípio, quis precipitar as coisas; a mulher disse-lhe que não; seria tomar a responsabilidade do que podia acontecer.

 

— Não são duas crianças, observou ela.

 

— Por isso mesmo, confirmou Oliveira rindo.

 

Um dia, enfim, Tomás resolveu pedir a viúva.

 

Escreveu-lhe uma carta, que rasgou, por achá-la extensa; escreveu outra, mais extensa, e mandou-lha.

 

Raquel, logo que deu com as primeiras palavras, interrompeu a leitura e deixou-se estar com os olhos no ar, perdidos. Sabia o conteúdo do papel; talvez houvesse ajudado a escrevê-lo. É o que perguntava agora a si mesma, um pouco arrependida, um pouco satisfeita. Não vos admireis deste sentimento duplo, que parecerá contraditório, e na verdade o é; mas a contradição também é deste mundo. Raquel, já viúva, rejeitara duas propostas de casamento. Era a terceira, e podia rejeitá-la, como as outras. Que é que a impedia de o fazer? Não chegava a explicar-se.

 

A idéia de que ele ficara solteiro, para não casar nunca, e rompia a promessa para acabar casando com ela, foi a causa principal da animação que lhe dera agora. A animação tinha de produzir os seus efeitos. Diante destes é que a viúva parecia espantada. Os olhos perderam-se cada vez mais, até que buscaram a carta e leram o que dizia.

 

O estilo era inflamado. Uma só vez a carta aludia ao passado: “Se achar que este meu modo de sentir é juvenil, saiba que dia houve em que o meu coração parou, e que a minha idade é a dele”. Raquel releu a carta, naturalmente não lhe respondeu logo; fá-lo-ia no dia seguinte. Tinha de refletir primeiro.

 

— Sim ou não? perguntou a si mesma.

E depois de alguns minutos:

 

— Amanhã; tenho tempo.

 

Parecerá esquisito que ainda agora hesitasse; mas a esquisitice também é deste mundo. Gostava do antigo noivo; não encarava até então a idéia de casar. Podia propor um adiamento. Verdade é que o adiamento acabaria, e sempre chegaria a necessidade de dar resposta. No dia seguinte, sentou-se, pegou na pena e começou dez vezes um bilhete em que lhe dizia que ia pensar; não atinava com o modo de concluir, e, por fim, achou que o alvitre era mau. O melhor era recusar logo. Com que palavras escreveria a negativa? Era melhor aceitar; mas, como?

 

Tudo isso parecer-vos-á insuportável, leitora atenta, e a mim também, que o estou contando, não menos que à própria dama em cujo cérebro todos esses pensamentos se esbarravam uns nos outros, sem vitória de nenhum. Passaram-se três dias. Ao quarto, Raquel consultou a irmã, que a animou a aceitar o marido.

 

— Estás certa que nenhum interesse o atrai?

 

— Seguramente.

 

— Pois aceita.

 

Raquel respondeu enfim, com duas linhas apenas, que pareceram a Tomás muito mais compridas que a longa carta que lhe escrevera: “Dou-lhe a minha mão, e espero que sejamos felizes”. Tomás foi agradecer-lhe a resposta. Estava trêmulo, como se contasse vinte anos, e fosse aquele o primeiro amor. A própria Raquel, uma vez decidida, tinha a comoção da adolescência. Pouco mediou entre a aceitação e a realização. Dois meses depois estavam casados.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

Após um quarto de século, voltara Tomás ao ponto de onde partira. Tendo navegado mares longos e enfadonhos, ei-lo que aporta à mesma terra vizinha, cujo acesso fora o sonho dos primeiros anos.

 

— Raquel, vinte e cinco anos de separação e desesperança, disse ele na carruagem que o trazia da igreja.

 

A lua-de-mel foi passada em Petrópolis, longe do universo, porque eles acharam uma casa separada do centro, e não saíram dela uns três dias. O plano do marido era não sair nunca; uma tarde, porém, transpondo o jardim, chegaram à rua, depois à outra rua. No dia seguinte, foram à Rua do Imperador; antes do fim da semana seguiram em carro ao alto da serra, a ver chegar o trem.

 

Não se pense que lhes foi indiferente a vista de coisas estranhas. Ao contrário, acharam certo prazer em mostrar aos outros a própria felicidade, Raquel ainda mais que o marido. Duas semanas depois de subidos a Petrópolis, recebeu Tomás uma carta de Oliveira. Era longa, banal, mas amiga; acabava perguntando quando esperavam descer do céu.

 

— Podemos ir amanhã, propôs a mulher.

 

— Já!

 

— Se você quiser; eu estou bem.

 

Tomás refletiu um instante.

 

— Sim, podemos ir amanhã ou depois.

 

A eternidade ficou reduzida de alguns séculos de séculos; mas, como todas as eternidades deste mundo são assim, a questão é saber em que proporção se reduzem. Ora, eles tiveram duas semanas de lua-de-mel; havia-as muito menores.

 

Três, quatro, cinco meses passaram, sem acontecimento apreciável. Mas há uma falta de acontecimentos, que o estado moral supre, e um homem e uma mulher podem viver mais que Alexandre ou César. Tal não era o estado do casal recente. Ao cabo de três meses, Tomás sentia em Raquel uma placidez de espírito, que não era o alvoroço que esperava, nem ainda o dos primeiros dias. Esse mesmo dos dias iniciais não correspondeu à esperança, mas confundia-se com o dele, e ambos lhe pareceram no mesmo grau infinito. Pouco a pouco, o estado normal vingou; ao fim de seis semanas, a diferença apareceu, até que, dobrado o prazo, Raquel ficou sendo uma senhora tranqüila, sem assomos de nenhuma espécie, sem inquietações nem saudades. Tudo o que pode definir bem a ausência de paixão parecia reunir-se nela. Quando a convicção desse estado entrou no ânimo do marido, houve uma tal ou qual sombra no céu conjugal. O pior é que ela não deu pelo fenômeno. Tomás encerrava-se longas horas no gabinete, a pretexto de trabalho, mas realmente para ler romances parisienses, comprados às dúzias. Raquel não iria arrancá-lo ao suposto trabalho, nem ralhava pelo excesso de esforço que devia atribuir-lhe. Um dia, quando muito, perguntou-lhe o que estava fazendo.

 

— Estou compondo um livro, disse ele, um estudo, uma obra política.

 

— Você quer ser deputado?

 

— Não.

 

E depois de um instante, sorrindo:

 

— Você gostaria de ouvir os meus discursos na câmara?

 

— Naturalmente.

 

Há mil modos de dizer naturalmente; Raquel escolheu um que não significava a co-participação da glória, e não o fez por afligi-lo, mas por não saber de outro. Tomás, que de começo, lia os romances com pouca atenção, acabou lendo-os por gosto e voltando assim a uma das suas diversões antigas. As longas reclusões eram menos aborrecidas que antes. Outras vezes demorava-se fora, ia a reuniões, ao teatro, a jantares, sem que Raquel achasse que dizer uma palavra amarga. Também não o recebia triste nem alegre. Uma ou outra vez bocejava este gracejo:

 

— Sim, senhor, bela vida para um homem casado.

 

— Eu te explico...

 

Tomás explicava-se, mas era difícil saber se ela escutava a explicação. Não tinha nos olhos sequer uma sombra de desconfiança. Nem ciúmes, nem despeito, nem nada.

 

Ao fim de seis meses Raquel foi a um baile. Havia anos que não pisava em nenhum, e já depois de casada, recusara ir a dois. Aceitara aquele. Não teve a folgança de outro tempo, mas achou alguma coisa que podia trazê-la. Daí a aceitação do segundo em que dançou, e de mais dois. O marido, fez-se sócio do Cassino Fluminense, a pedido dela.

 

— Com uma condição, disse Raquel; é que uma quadrilha será nossa.

 

— Justo.

 

Assim fizeram nos dois primeiros bailes; no terceiro, já não dançaram juntos.

 

— Raquel casou comigo, sem entusiasmo, pensava ele; foi como quem aceita um vestido novo. Não digo novo, mas bonito, talhado à moda...

 

Um dia, chegou a insinuar-lhe isto mesmo, no terraço da casa, antes do jantar. Ambos liam; ele, erguendo os olhos da página, viu que ela estava com o livro no regaço e as pálpebras caídas.

 

— É do livro ou do companheiro? perguntou ele.

 

Raquel sorriu constrangida, mas não disse nada.

 

Como ele insistisse:

 

— É do companheiro, respondeu.

 

— Talvez.

 

— Que idéia!

 

— Sim, a resposta é de gracejo, mas pode ser exata, sem que você dê por isso. Não me há de fazer crer que lhe dou a felicidade esperada, se é que esperou alguma. Não; você casou para fugir à importunação. A liberdade era melhor; podia ser até, — quem sabe? — podia ser que a sorte... Não falemos nisto!

 

Raquel olhava espantada. Tomás atirara o livro para um sofá e erguera-se, metendo as mãos nas algibeiras das calças. Mordia o beiço, e olhava para fora. Raquel fechou tranqüilamente o livro.

 

— Tomás, que idéias são essas?

 

— Que idéias?

 

— Essas.

 

— Essas quais?

 

— Essas! Não compreendo nada do que você me acaba de dizer. Principalmente, não compreendo que na nossa idade... Não somos crianças, Tomás, esses arrufos são bons para os vinte anos. Pois você crê que eu viva aborrecida...?

 

— Não vive de outra maneira, interrompeu o marido. Eu sinto, eu vejo, eu percebo tudo. Peço-lhe que não me obrigue a ir adiante. Olhe se os bailes a aborrecem, apesar de não ser criança? Tudo que é ir divertir-se é excelente; a minha companhia é que é um aborrecimento mortal.

 

Era a primeira vez que ele falava assim, em tal maneira, e com tal despeito, que Raquel sentiu-se lisonjeada. Vendo que era sincero, posto lhe parecesse esquisito, ela disse quatro ou cinco palavras amigas e alegres; ergueu-se, arrancou-lhe as mãos do bolso e fechou-as nas suas.

 

— Criança! disse. Pois você então pensa deveras que me aborrece? Tudo porque fechei os olhos, lendo um livro aborrecido. Ora, Tomás! Vamos, ria, ria um pouco.

 

— Deixa...

 

— Há de rir. Vamos, ria!

 

Tomás acabou rindo. O melhor era terminar ali mesmo o debate, e, se não estivessem expostos, terminá-lo com um beijo. Mas o riso do marido foi tão forçado que a mulher entendeu desculpar-se do que lhe parecia fastio ou indiferença. Era o modo dela. Nunca fora expansiva; a própria mãe a achava sempre assim; ia a falar do primeiro marido, mas recuou a tempo.

 

Um tanto vexado da cena, Tomás depressa se reconciliou; ela por sua parte, buscou trocar de maneiras; troca difícil. Tomás não achara no casamento a realização esperada de um sonho de longos anos. Toda essa mulher, deixada em botão, achada em flor, parecia uma flor sem cheiro. Raquel sacrificou os seus bailes; passou a fazer reuniões em casa, dava jantares, cercava-se de amigas. Conseguia prendê-lo; lia até o fim, com os olhos abertos, todos os livros que ele lhe dava. Entrou a censurá-lo, quando ele se demorava fora; e, em vez de ir dormir, como a princípio, deixava-se estar até uma e duas horas, quando ele voltava do teatro, nas noites em que ia só ou com algum amigo. A solicitude teve o mesmo efeito da indiferença; tudo acabou no mesmo tédio.

 

— Talvez o mal esteja em mim, pensou ele um dia.

 

E inclinando o espírito aos tempos de solteiro, sentiu grande saudade. Para reaver um pouco da sensação antiga, convidou a mulher a uma viagem à Europa; foram, gastaram dois anos, tornaram mais conservados; mas a viagem não apertou os laços da afeição. Realmente, o consórcio era para ele mesmo um ofício novo, aprendido fora de tempo, quando a pessoa só ama e conhece outro ofício.

 

Já se não queixava; deixava-se ir com os anos. Vieram os cinqüenta. A cunhada morreu. A casa fez-se mais deserta. Tomás, fora do voltarete, só achava prazer na Rua do Ouvidor. Era ainda e sempre o mesmo homem elegante. Deleitava-se em ver passar as senhoras, mirá-las, acompanhá-las com os olhos e as idéias. Chamava a isto liberdade — uma liberdade que perdeu, que entregou por seu gosto nas mãos do casamento.

 

Mudando de casa por esse tempo, mandou preparar ao rés-do-chão um gabinete para si, exclusivo, reprodução do último aposento de solteiro. Nada havia ali que cheirasse ao casamento, nem a fotografia da mulher, nada. Era a casa do celibato, em que ele se metia duas e três horas diariamente, para viver outra vida não totalmente outra, mas algo que a lembrasse.

 

Raquel não se opôs à alteração nem a sentiu. Viviam em boa paz, uma santa paz bocejada e ininterrupta. Os anos vieram vindo. Um dia, Raquel caiu doente, uma febre perniciosa que a levou em poucos dias. Tomás foi dedicado, não poupou esforços de toda a espécie para salvá-la; ela morreu-lhe nos braços, ele quis acompanhá-la ao enterro. Oliveira foi ter com o amigo.

 

— Tomás, disse-lhe, tu não podes viver só aqui; anda cá para casa. Arranjo-te um cômodo grande e livre; ficas a teu gosto.

 

— Obrigado, Oliveira; deixa-me; algum dia, pode ser.

 

Meteu-se no aposento de solteiro, agora de viúvo, sempre de solitário. Nada alterou a casa, em cima, onde almoçava e jantava. Fez no ano seguinte outra viagem à Europa, muito mais alegre, como um pássaro livre. Gostava da lufa-lufa de estradas de ferro, de hotéis, de teatros, de revistas militares, bulevares; foi à França, foi à Inglaterra, à Alemanha, e voltou o mesmo velho petimetre. Vinte e quatro horas depois de chegado, estava no cemitério, visitando a sepultura da mulher. Deu-lhe um mausoléu rico e belo, obra de um escultor italiano, e continuou a visitá-la naquele palácio último. Os empregados do cemitério já o conheciam.

 

— É o viúvo da D. Raquel, diziam eles pelo epitáfio. Se todos fossem como este!

 

Não podiam crer, nem eu digo isto, que ele amasse mais a mulher morta que viva; é falso. O que se pode admitir é que ele sentia antes a perda da mulher que do casamento.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 12 de março de 2022

O BRAVO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O BRAVO

Humberto de Campos

 

 

Pai de uma menina que era um encanto, o coronel Peregrino encontrara na vida, pela primeira vez, uma dificuldade que lhe detivera o passo: o casamento da filha, a escolha de um noivo digno, bravo, correto, entre os jovens oficiais da guarnição. Três tenentes, nada menos, disputavam-lhe a mão, e era essa rivalidade, exatamente, que dificultava a solução do problema. Todos eram galantes rapazes e elegantíssimos oficiais, e, como a pequena se não decidisse por si mesma, o caso era atirado, inteiro, à delicada responsabilidade do pai.

 

Certo dia, reunida no quartel a oficialidade da guarnição, chamou o coronel à parte os três jovens tenentes, e, torcendo marcialmente, com as duas mãos, as fortes guias do bigode grisalho, propôs, severo:

 

— Eu sei que os senhores, os três, têm paixão pela minha filha, cuja mão já me pediram em casamento... A escolha, entre os senhores, é dificílima. Se eu fosse comerciante, preferiria o mais rico. Se fosse fidalgo, o mais nobre. Se me preocupasse com as aparências, o mais elegantemente vestido. Sou, porém, um soldado, e, como, tal, faço questão de escolher para genro o mais valente, o mais bravo, o mais corajoso. Não acham justo?

 

— Perfeitamente! — exclamou o tenente Coimbra.

 

— Perfeitamente! — confirmou o tenente Torres.

 

— Perfeitamente! — concordou o tenente Samuel.

 

— Nesse caso — tornou o coronel — vou submetê-los a uma prova.

 

E ordenou; para dentro:

 

— Cabo Matias, prepare a metralhadora.

 

O inferior puxou a máquina para o pátio, mexeu nas munições, remexeu nas ferragens, e avisou:

 

— Pronto, Sr. coronel.

 

O velho militar examinou a arma e, vendo que tudo ia bem, tomou os rapazes pelo braço, colocou-os a seis metros do aparelho mortífero, e ordenou, com voz de comando:

 

— Um!... Dois!...

 

E ia dar o último sinal para descarga da metralha, quando dois vultos pularam, rápidos, num movimento de terror, colocando-se fora do alvo.

 

— Covardes! — trovejou o coronel. E eram estes pusilânimes que pretendiam a mão da minha filha!...

 

E dirigindo-se ao terceiro, que se não afastara do lugar:

 

— O senhor, sim, é um bravo! A menina é sua!

 

E, estendendo-lhe a mão:

 

— Venha daí; vamos ver a sua noiva.

 

O oficial detinha-se, porém, imóvel.

 

— Vamos, homem! — insistiu.

 

O tenente olhou para um lado, olhou para outro, e, afinal, confessou:

 

— Posso lá o que! Se eu pudesse sair daqui, eu tinha corrido!

 

E para o cabo:

 

— Matias, empresta-me a tua calça?


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 10 de março de 2022

PRIMAS DE SAPUCAIA! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

PRIMAS DE SAPUCAIA!
Machado de Assis
(Grafia original)

 

 

 

Ha umas occasiões opportunas e fugitivas, em que o acaso nos inflige duas ou trez primas de Sapucaia; outras vezes, ao contrario, as primas de Sapucaia são antes um beneficio do que um infortunio.

Era á porta de uma egreja. Eu esperava que as minhas primas Claudina e Rosa tomassem agua benta, para conduzil-as á nossa casa, onde estavam hospedadas. Tinham vindo de Sapucaia, pelo Carnaval, e demoraram-se dois mezes na côrte. Era eu que as acompanhava a toda a parte, missas, theatros, rua do Ouvidor, porque minha mãi, com o seu rheumatico, mal podia mover-se dentro de casa, e ellas não sabiam andar sós. Sapucaia era a nossa patria commum. Embora todos os parentes estivessem dispersos, alli nasceu o tronco da familia. Meu tio José Ribeiro, pai d'estas primas, foi o unico, de cinco irmãos, que lá ficou lavrando a terra e figurando na politica do logar. Eu vim cedo para a côrte, d'onde segui a estudar e bacharelar-me em S. Paulo. Voltei uma só vez a Sapucaia, para pleitear uma eleição, que perdi.

Rigorosamente, todas estas noticias são desnecessarias para a comprehensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma cousa, antes de entrar em materia, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a redea á penna, e ella que vá andando, até achar entrada. Hade haver alguma; tudo depende das circumstancias, regra que tanto serve para o estylo como para a vida; palavra puxa palavra, uma idéa traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compoz as suas especies.

Portanto, agua benta e porta de egreja. Era a egreja de S. José. A missa acabára; Claudina e Rosa fizeram uma cruz na testa, com o dedo pollegar, molhado na agua benta e descalçado unicamente para esse gesto. Depois ajustaram os manteletes, emquanto eu, ao portal, ia vendo as damas que sahiam. De repente, estremeço, inclino-me para fóra, chego mesmo a dar dous passos na direcção da rua.

--Que foi, primo?

--Nada, nada.

Era uma senhora, que passára rentesinha com a egreja, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapellinho de sol; ia pela rua da Misericordia acima. Para explicar a minha commoção, é preciso dizer que era a segunda vez que a via. A primeira foi no Prado Fluminense, dous mezes antes, com um homem que, pelos modos, era seu marido, mas tanto podia ser marido como pai. Estava então um pouco de espavento, vestida de escarlate, com grandes enfeites vistosos, e umas argolas demasiado grossas nas orelhas; mas os olhos e a bocca resgatavam o resto. Namorámos ás bandeiras despregadas. Se disser que sahi d'alli apaixonado, não metto a minha alma no inferno, porque é a verdade pura. Sahi tonto, mas sahi tambem desapontado, perdia-a de vista na multidão. Nunca mais pude dar com ella, nem ninguem me soube dizer quem fosse.

Calcule-se o meu enfado, vendo que a fortuna vinha trazel-a outra vez ao meu caminho, e que umas primas fortuitas não me deixavam lançar-lhe as mãos. Não será difficil calculal-o, porque estas primas de Sapucaia tomam todas as fórmas, e o leitor, se não as teve de um modo, teve-as de outro. Umas vezes copiam o ar confidencial de um cavalheiro informado da ultima crise do ministerio, de todas as causas apparentes ou secretas, dissensões novas ou antigas, interesses aggravados, conspiração, crise. Outras vezes, enfronham-se na figura d'aquelle eterno cidadão que affirma de um modo ponderoso e abotoado, que não ha leis sem costumes, _nisi lege sine moribus_. Outras, afivellam a mascara de um Dangeau de esquina, que nos conta miudamente as fitas e rendas que esta, aquella, aquell'outra dama levara ao baile ou ao theatro. E durante esse tempo, a Occasião passa, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapellinho de sol: passa, dobra a esquina, e adeus... O ministerio esphacelava-se; malinas e bruxellas; _nisi lege sine moribus_...

Esteve a pique de dizer ás primas, que se fossem embora; moravamos na rua do Carmo, não era longe; mas abri mão da idéa. Já na rua pensei tambem em deixal-as na egreja, á minha espera, e ir ver se agarrava a Occasião pela calva. Creio mesmo que cheguei a parar um momento, mas rejeitei egualmente esse alvitre e fui andando.

Fui andando com ellas para o lado opposto ao da minha incognita. Olhei para traz repetidas vezes, até perdel-a n'uma das curvas da rua, com os olhos no chão, como quem reflecte, devaneia ou espera uma hora marcada. Não minto dizendo que esta ultima idéa trouxe-me a emoção do ciume. Sou exclusivo e pessoal; daria um triste amante de mulheres casadas. Não importa que entre mim e aquella dama existisse apenas uma contemplação fugitiva de algumas horas; desde que a minha personalidade ia para ella, a partilha tornava-se-me insupportavel. Sou tambem imaginoso; engenhei logo uma aventura e um aventureiro, dei-me ao prazer morbido de affligir-me sem motivo nem necessidade. As primas iam adiante, e falavam-me de quando em quando; eu respondia mal, se respondia alguma cousa. Cordialmente, execrava-as.

Ao chegar á porta de casa, consultei o relogio, como si tivesse alguma cousa que fazer; depois disse ás primas que subissem e fossem almoçando. Corri á rua da Misericordia. Fui primeiro até á Escola de Medicina; depois voltei e vim até a Camara dos Deputados, então mais devagar, esperando vel-a ao chegar a cada curva da rua; mas nem sombra. Era insensato, não era? Todavia, ainda subi outra vez a rua, porque adverti que, a pé e de vagar, mal teria tempo de ir em meio da praia de Santa Luzia, se acaso não parára antes; e ahi fui, rua acima e praia fóra, até o convento da Ajuda. Não encontrei nada, cousa nenhuma. Nem por isso perdi as esperanças; arripiei caminho e vim, a passo lento ou apressado, conforme se me afigurava que era possivel apanhal-a adiante, ou dar tempo a que sahisse de alguma parte. Desde que a minha imaginação reproduzia a dama, todo eu sentia um abalo, como se realmente tivesse de vel-a d'ahi a alguns minutos. Comprehendi a emoção dos doudos.

Entretanto, nada. Desci a rua sem achar o menor vestigio da minha incognita. Felizes os cães, que pelo faro dão com os amigos! Quem sabe se não estaria alli bem perto, no interior de alguma casa, talvez a propria casa d'ella? Lembrou-me indagar; mas de quem, e como? Um padeiro, encostado ao portal espiava-me; algumas mulheres faziam a mesma cousa enfiando os olhos pelos postigos. Naturalmente desconfiavam do transeunte, do andar vagaroso ou apressado, do olhar inquisidor, do gesto inquieto. Deixei-me ir até á Camara dos Deputados, e parei uns cinco minutos, sem saber que fizesse. Era perto de meio-dia. Esperei mais dez minutos, depois mais cinco, parado, com a esperança de vel-a; afinal, desesperei e fui almoçar.

Não almocei em casa. Não queria ver os demonios das primas, que me impediram de seguir a dama incognita. Fui a um hotel. Escolhi uma mesa no fim da sala, e sentei-me de costas para as outras; não queria ser visto nem conversado. Comecei a comer o que me deram. Pedi alguns jornaes, mas confesso que não li nada seguidamente, e apenas entendi tres quartas partes do que ia lendo. No meio de uma noticia ou de um artigo, escorregava-me o espirito e cahia na rua da Misericordia, á porta da egreja, vendo passar a incognita, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapellinho de sol.

A ultima vez que me aconteceu essa separação da _outra_ e da _besta_, estava já no café, e tinha diante de mim um discurso parlamentar. Achei-me ainda uma vez á porta da egreja; imaginei então que as primas não estavam commigo, e que eu seguia atraz da bella dama. Assim é que se consolam os preteridos da loteria; assim é que se fartam as ambições mallogradas.

Não me peçam minucias nem preliminares do encontro. Os sonhos desdenham as linhas finas e o acabado das paysagens; contentam-se de quatro ou cinco brochadas grossas, mas representativas. Minha imaginação galgou as difficuldades da primeira falla, e foi direita á rua do Lavradio ou dos Invalidos, á propria casa de Adriana. Chama-se Adriana. Não viera á rua da Misericordia por motivos de amores, mas a ver alguem, uma parenta ou uma comadre, ou uma costureira. Conheceu-me, e teve egual commoção. Escrevi-lhe; respondeu-me. Nossas pessoas foram uma para a outra por cima de uma multidão de regras moraes e de perigos. Adriana é casada; o marido conta cincoenta e dous annos, ella trinta imperfeitos. Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer á familia. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ella me diz nesta casinha que aluguei fóra da cidade, de proposito para nós.

Ouço-a embriagado. Não me enganei; é a mulher ardente e amorosa, qual me diziam os seus olhos, olhos de touro, como os de Juno, grandes e redondos. Vive de mim e para mim. Escrevemo-nos todos os dias; e, apezar d'isso, quando nos encontramos na casinha, é como se medeara um seculo. Creio até que o coração d'ella ensinou-me alguma cousa, embora noviço, ou por isso mesmo. N'esta materia desapprende-se com o uso e o ignorante é que é douto. Adriana não dissimula a alegria nem as lagrimas; escreve o que pensa, conta o que sente; mostra-me que não somos dois, mas um, tão sómente um ente universal, para quem Deus creou o sol e as flores, o papel e a tinta, o correio e as carruagens fechadas.

Emquanto ideava isto, creio que acabei de beber o café; lembra-me que o criado veiu á mesa e retirou a chicara e o assucareiro. Não sei se lhe pedi fogo, provavelmente viu-me com o charuto na mão e trouxe-me phosphoros.

Não juro, mas penso que accendi o charuto, porque d'ahi a um instante, atravez de um véu de fumaça, vi a cabeça meiga e energica da minha bella Adriana, encostada a um sophá. Eu estou de joelhos, ouvindo-lhe a narração da ultima rusga do marido. Que elle já desconfia; ella sahe muitas vezes, distrahe-se, absorve-se, apparece-lhe triste ou alegre, sem motivo, e o marido começa a ameaçal-a. Ameaçal-a de que? Digo-lhe que, antes de qualquer excesso, era melhor deixal-o, para viver commigo, publicamente, um para o outro. Adriana escuta-me pensativa, cheia de Eva, namorada do demonio, que lhe sussurra de fóra o que o coração lhe diz de dentro. Os dedos affagam-me os cabellos.

--Pois sim! pois sim!

Veiu no dia seguinte, consigo mesma, sem marido, sem sociedade, sem escrupulos, tão sómente comsigo, e fomos d'alli viver juntos. Nem ostentação, nem resguardo. Suppuzemo-nos estrangeiros, e realmente não eramos outra cousa; fallavamos uma lingua, que nunca ninguem antes fallara nem ouvira. Os outros amores eram, desde seculos, verdadeiras contrafacções; nós davamos a edição authentica. Pela primeira vez, imprimia-se o manuscripto divino, um grosso volume que nós dividiamos em tantos capitulos e paragraphos quantas eram as horas do dia ou os dias da semana. O estylo era tecido de sol e musica; a linguagem compunha-se da fina flôr dos outros vocabularios. Tudo o que n'elles existia, meigo ou vibrante, foi extrahido pelo autor para formar esse livro unico--livro sem indice, porque era infinito--sem margens, para que o fastio não viesse escrever n'ellas as suas notas,--sem fita, porque já não tinhamos precisão de interromper a leitura e marcar a pagina.

Uma voz chamou-me á realidade. Era um amigo que acordara tarde, e vinha almoçar. Nem o sonho me deixava esta outra prima de Sapucaia! Cinco minutos depois despedi-me e sahi; eram duas horas passadas.

Vexa-me dizer que ainda fui á rua da Misericordia, mas é preciso narrar tudo: fui e não achei nada. Voltei nos dias seguintes sem outro lucro, além do tempo perdido. Resignei-me a abrir mão da aventura, ou esperar a solução do acaso. As primas achavam-me aborrecido ou doente; não lhes disse que não. D'ahi a oito dias, foram-se embora, sem me deixar saudades; despedi-me d'ellas como de uma febre maligna.

A imagem da minha incognita não me deixou durante muitas semanas. Na rua, enganei-me varias vezes. Descobria ao longe uma figura, que era tal qual a outra; picava os calcanhares, até apanhal-a e desenganar-me. Comecei a achar-me ridiculo; mas lá vinha uma hora ou um minuto, uma sombra ao longe, e a preoccupação revivia. Afinal vieram outros cuidados, e não pensei mais n'isso.

No principio do anno seguinte, fui a Petropolis; fiz a viagem com um antigo companheiro de estudos, Oliveira, que foi promotor em Minas-Geraes, mas abandonara ultimamente a carreira por ter recebido uma herança. Estava alegre como nos tempos da academia; mas de quando em quando calava-se, olhando para fóra da barca ou da caleça, com a atonia de quem regala a alma de uma recordação, de uma esperança ou de um desejo. No alto da serra perguntei-lhe para que hotel ia; respondeu que ia para uma casa particular, mas não me disse aonde, e até desconversou. Cuidei que me visitaria no dia seguinte; mas nem me visitou, nem o vi em parte alguma. Outro collega nosso ouvira dizer que elle tinha uma casa para os lados da Rhenania.

Nenhuma d'estas circumstancias voltaria á memoria, se não fosse a noticia que me deram dias depois. Oliveira tirára uma mulher ao marido, e fôra refugiar-se com ella em Petropolis. Deram-me o nome do marido e o d'ella. O d'ella era Adriana. Confesso que, embora o nome da outra fosse pura invenção minha, estremeci ao ouvil-o; não seria a mesma mulher? Vi logo depois que era pedir muito ao acaso. Já faz bastante esse pobre official das cousas humanas, concertando alguns fios dispersos; exigir que os reate a todos, e com os mesmos titulos, é saltar da realidade na novella. Assim fallou o meu bom senso, e nunca disse tão gravemente uma tolice, pois as duas mulheres eram nada menos que a mesmissima.

Vi-a tres semanas depois, indo visitar o Oliveira, que viera doente da côrte. Subimos juntos na vespera; no meio da serra, começou elle a sentir-se incommodado; no alto estava febril. Acompanhei-o no carro até a casa, e não entrei, porque elle dispensou-me o incommodo. Mas no dia seguinte fui vel-o, um pouco por amizade, outro pouco por avidez de conhecer a incognita. Vi-a; era ella, era a minha, era a unica Adriana.

Oliveira sarou depressa, e, apezar do meu zelo em visital-o, não me offereceu a casa; limitou-se a vir ver-me no hotel. Respeitei-lhe os motivos; mas elles mesmos é que faziam reviver a antiga preoccupação. Considerei que, além das razões de decoro, havia da parte d'elle um sentimento de ciume, filho de um sentimento de amor, e que um e outro podiam ser a prova de um complexo de qualidades finas e grandes n'aquella mulher. Isto bastava a transtornar-me; mas a idéa de que a paixão d'ella não seria menor que a d'elle, o quadro d'esse casal que fazia uma só alma e pessoa, excitou em mim todos os nervos da inveja. Baldei esforços para ver se mettia o pé na casa; cheguei a fallar-lhe do boato que corria; elle sorria e tratava de outra cousa.

Acabou a estação de Petropolis, e elle ficou. Creio que desceu em julho ou agosto. No fim do anno encontrámo-nos casualmente; achei-o um pouco taciturno e preoccupado. Vi-o ainda outras vezes, e não me pareceu differente, a não ser que, além de taciturno, trazia na physionomia uma longa préga de desgosto. Imaginei que eram effeitos da aventura, e, como não estou aqui para empulhar ninguem, accrescento que tive uma sensação de prazer. Durou pouco; era o demonio que trago em mim, e costuma fazer d'esses esgares de saltimbanco. Mas castiguei-o depressa, e puz no logar d'elle o anjo, que tambem uso, e que se compadeceu do pobre rapaz, qualquer que fosse o motivo da tristeza.

Um visinho d'elle, amigo nosso, contou-me alguma cousa, que me confirmou a suspeita de desgostos domesticos; mas foi elle mesmo quem me disse tudo, um dia, perguntando-lhe eu, estouvadamente o que é que tinha que o mudára tanto.

--Que hei de ter? Imagina tu que comprei um bilhete de loteria, e nem tive, ao menos, o gosto de não tirar nada; tirei um escorpião.

E, como eu franzisse a testa interrogativamente:

--Ah! se soubesses metade só das cousas que me têm acontecido! Tens tempo? Vamos aqui ao Passeio Publico.

Entrámos no jardim, e mettemo-nos por uma das alamedas. Contou-me tudo. Gastou duas horas em desfiar um rosario infinito de miserias. Vi atravez da narração duas indoles incompativeis, unidas pelo amor ou pelo peccado, fartas uma da outra, mas condemnadas á convivencia e ao odio. Elle nem podia deixal-a nem supportal-a. Nenhuma estima, nenhum respeito, alegria rara e impura; uma vida gorada.

--Gorada, repetia elle, gesticulando affirmativamente com a cabeça. Não tem que ver; a minha vida gorou. Has de lembrar-te dos nossos planos da academia, quando nos propunhamos, tu a ministro do imperio, eu da justiça. Pódes guardar as duas pastas; não serei nada, nada. O ovo, que devia dar uma aguia, não chega a dar um frango. Gorou completamente. Ha anno e meio que ando n'isso, e não acho sahida nenhuma; perdia a energia...

Seis mezes depois, encontrei-o afflicto e desvairado. Adriana deixara-o para ir estudar geometria com um estudante da antiga Escola Central. Tanto melhor, disse-lhe eu. Oliveira olhou para o chão envergonhado; despediu-se, e correu em procura d'ella. Achou-a d'ahi a algumas semanas, disseram as ultimas um ao outro, e no fim reconciliaram-se. Comecei então a visital-os, com a idéa de os separar um do outro. Ella estava ainda bonita e fascinante; as maneiras eram finas e meigas, mas evidentemente de emprestimo, acompanhadas de umas attitudes e gestos, cujo intuito latente era attrahir-me e arrastar-me.

Tive medo e retrahi-me. Não se mortificou; deitou fóra a capa de renda, restituiu-se ao natural. Vi então que era ferrenha, manhosa, injusta, muita vez grosseira; em alguns lances notei-lhe uma nota de perversidade. Oliveira, nos primeiros tempos, para fazer-me crer que mentira ou exagerára, supportava tudo rindo; era a vergonha da propria fraqueza. Mas não pôde guardar a mascara; ella arrancou-lh'a um dia, sem piedade, denunciando as humilhações em que elle cahia, quando eu não estava presente. Tive nojo da mulher e pena do pobre diabo. Convidei-o abertamente a deixal-a, elle hesitou, mas prometteu que sim.

--Realmente, não posso mais...

Combinamos tudo; mas no momento da separação, não pôde. Ella embebeu-lhe novamente os seus grandes olhos de touro e de basilisco, e d'esta vez,--ó minhas queridas primas de Sapucaia!--d'esta vez para só deixal-o exhausto e morto.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 09 de março de 2022

PEDRAS PRECIOSAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

PEDRAS PRECIOSAS

Humberto de Campos

 

 

 

Segurando o almirante pela manga da casaca impecável, a Baronesa forçou-o a sentar-se, de novo:

 

— Não, senhor, não pode ir; tem que contar-nos, agora, a virtude de todas as pedras preciosas exibidas pelas senhoras que aqui se acham.

 

— Eu? — obtemperou o ilustre marinheiro, levando a mão clara ao peitilho espelhante da camisa:

 

— Sim, senhor. É este o seu castigo.

 

E imperativa:

 

— Sente-se!

 

Generalizada, de novo, a palestra, a Viscondessa de São Germano indagou, com sincero interesse:

 

— É verdade, almirante é certo, mesmo, que a ágata é "porte-malheur"?

 

— É verdade, afirmam isso... — acrescentou Madame Sampaio Gomes.

 

O almirante contestou:

 

— É uma invenção recente, essa, D. Violeta. Os antigos, pelo menos, não dão notícia dessa propriedade. Plínio, que a ela se refere longamente, atribui-lhe a virtude de tornar os atletas invencíveis. Os egípcios indicavam-na como infalível contra mordedura das víboras, dizendo-se, mesmo, que as águias a colocavam no ninho para afugentar as serpentes, que lhes perseguiam os filhos.

 

— E o rubi? — indagou a Baronesa.

 

— O rubi é a pedra dos espíritos esclarecidos. Teofrasto aponta-o como um dos incentivos misteriosos da inteligência, circunstância que a levou, ao que parece, a ser adotada como pedra simbólica dos bacharéis. Outros acreditam que ele preservava contra a peste, contra os venenos, e contra outros perigos da vida. É, mais ou menos, como a esmeralda.

 

— Como a esmeralda?

 

— Sim. A esmeralda fortalece, também a inteligência, e cura, segundo Plutarco, as mordeduras de cobra. Alberto, o Grande, recomendava-a contra a epilepsia e Cornélio Agripa contra as hemorragias.

 

Foi por essa altura que a encantadora D. Ritinha, que até então se limitara a sorrir, fazendo companhia ao contentamento dos outros, aventurou, cândida:

 

— Mas, há pedras portadoras de desgraças; não há, senhor almirante?

 

— Dizem que a opala é desse número, minha senhora; mas eu não creio.

 

— Não crê?

 

E entre a atenção geral:

 

— Pois, olhe, há dois anos, meu marido ia sendo vítima de uma dessas pedras de mau agouro. Esteve muito mal!

 

— E que pedra foi essa? Pode-se saber?

 

A moça não lhe sabia o nome; a Baronesa correu, porém, pérfida, em seu auxílio:

 

— Era o carbúnculo; não era, Dona Ritinha?

 

A jovem senhora, desabituada àquele meio supercivilizado, bateu com a cabeça, confirmando, ingênua, a horrenda perversidade:

 

— É isso mesmo; era o carbúnculo. E compadecida:

 

— Quase ele morre, coitado!...


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 07 de março de 2022

POBRE CARDEAL! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

POBRE CARDEAL

Machado de Assis

 

 

 

Martins Netto costumava dizer que era o homem mais alegre do século, e toda a gente confirmava essa opinião. Ninguém lhe vira nunca nenhuma sombra de melancolia. Já maduro, era ainda o melhor acepipe dos jantares, um repositório de ditos picantes, anedotas joviais, repentes crespos e crus; mas, além disso, que é a despesa exterior da alegria, ele a tinha em si mesmo, no sangue e na vida. Pouco antes de morrer, em 1878, dizia ele a um amigo íntimo, que lhe invejava o temperamento:

 

— Sou alegre, muito alegre; mas se disser a você que a isto mesmo devo uma grande amargura...

 

Calou-se, deu duas voltas, e tornou ao amigo:

 

— Vou contar-lhe uma coisa secreta, como se me confessasse a um padre. Sabe que fui um dos julgadores do famoso processo de letras falsas João da Cruz, em 1851. Houve nessa sessão do júri muitas causas importantes, que eu julguei com a inflexibilidade do costume, e condenei muita gente, do que me não arrependo.

 

Na véspera de entrar o processo do João da Cruz, estive com um tal capitão José Leandro, que morava na Rua da Carioca; falamos do processo, das letras, de mil circunstâncias, que me esqueceram, e, finalmente, do próprio João da Cruz, que o capitão José Leandro dizia conhecer desde menino. O pai deste capitão foi um general português, que veio com o rei em 1808, e aqui casou pouco depois com uma senhora de Cantagalo. José Leandro era menino quando João da Cruz apareceu em casa dele, na Rua de Mata-cavalos; lembrava-se que ele os festejava e adulava muito; lembrava-se também que ali pelos fins de 1816 andava João da Cruz muito por baixo, beirando a miséria, roupa de ano, amarela de uso, mal remendada...

 

E então, para mostrar-me que o João da Cruz nascera com o gênio da fraude e da duplicidade, contou-me que um dia, em 1817, estando ele e a mãe em casa, apareceu ele ali angustiado, desvairado, bradando:

 

— Pobre cardeal! pobre cardeal! Ah! minha senhora D. Luísa, que grande desgraça! pobre cardeal!

 

  1. Luísa levantou-se assustada, e perguntou-lhe o que era, se falava do general...

 

— Não, acudiu João da Cruz, não é nada com o digno marido de V. Excia.; falo do cardeal! pobre cardeal!

 

— Mas que cardeal?

 

João da Cruz tinha-se sentado, suspirando grosso, esfregando os olhos com um trapo de lenço. A dona da casa respeitou-lhe a dor, que parecia tão profunda e deixou-se estar de pé, esperando. Mas não tardou que ouvissem no saguão da casa um rumor de espada; era o general que entrava. Daí a pouco estava ele à porta da saleta, e dizia à mulher que acabara de morrer o núncio, cardeal Caleppi; morrera de um ataque apoplético.

 

  1. Luísa olhou espantada para ele e para João da Cruz. Foi só então que o general o viu, a alguma distância, de pé, cheio de respeito e melancolia.

 

— V. Excia. já sabe então da triste notícia? Morreu um santo homem, santo e magnífico, sem desfazer nas pessoas que me ouvem; ah! um varão digno do céu!

 

— Entrou aqui, disse D. Luísa, há poucos instantes, fora de si com a morte do cardeal... Eu nem me lembrava que cardeal podia ser. Se ele tivesse dito que morreu o núncio...

 

— É verdade que entrei fora de mim; a tal ponto, que pratiquei a grosseria de sentar-me diante de V. Excia., estando V. Excia. de pé; mas a dor desvaira. Acabavam de dar-me a notícia, ali ao pé da Lagoa da Sentinela, e fiquei como não podem imaginar; fiquei tonto, entrei aqui tonto.

 

O general sentou-se espantado; disse ao João da Cruz que se sentasse também, e perguntou-lhe desde quando conhecia o cardeal, e se era assim tão amigo dele. João da Cruz não respondeu logo verbalmente; fez primeiro um gesto de afirmação e saudade; depois levou o trapo aos olhos. D. Luísa, sentada ao lado do marido, olhava compassivamente para o pobre homem. Este, afinal, confessou que era amigo do grande prelado, por benefícios que recebera dele em Lisboa. Aqui não o procurou senão duas vezes: logo que chegou, em 1814, e quando uma vez Sua Eminência estivera doente. Se nunca falou disso ao honrado general, foi porque as humilhações por que passou e lhe trouxeram o conhecimento e o trato do cardeal (que Deus tinha!) foram amargas e dolorosas.

 

— Bem, mas agora...

 

— Agora direi tudo, se V. Excia. assim o ordena.

 

E depois de limpar os olhos vermelhos:

 

— Foi em Lisboa, ali por 1806; tendo chegado de Gênova e passando por alto uma gramática italiana, lembrou-me ensinar esta língua. Confesso que pouco ou quase nada sabia dela; mas ensinando ia aprendendo. Nisto fui denunciado como espião dos franceses, e metido na cadeia. Imagine V. Excia. com que dor recebi semelhante afronta; felizmente, provado o engano da denúncia, fui solto daí a poucos dias. Contente da justiça que me fizeram, fiquei admirado da prontidão, e cá fora é que soube que esta fora devida ao cardeal. Corri a agradecer-lhe o favor; mas Sua Eminência negou-o uma e duas vezes, até que confessou a verdade. Desde que soube que a denúncia era falsa correu logo ao ministro, para obter a minha soltura, e obteve-a. Mas qual foi a causa de inspirar a Vossa Eminência tão singular beneficio? perguntei eu. Confessou-me que só porque soubera que eu ensinava italiano; só por isso, e sem que me conhecesse, estimava-me.

 

— Ah! bem compreendo, disse o general.

 

— Foi o que me ligou a ele; fez-me depois alguns obséquios, e quando eu lhe confessei que pouco italiano sabia, e que me dei a ensiná-lo com o fim de propagar o amor de tão divino idioma, então ele propôs-me dar algumas lições. Sobrevieram os acontecimentos de 1808. A corte transportou-se ao Brasil, e o cardeal, no ato de embarcar, instou comigo para que viesse também; recusei, dizendo-lhe que ia alistar-me no exército que devia expulsar o pérfido invasor...

 

— Bravo! disse o general.

 

— Sua Eminência, não podendo arrancar-me daquele propósito, despediu-se de mim com muitas lágrimas, e deu-me em lembrança um exemplar de um poema em italiano, anotado por suas sagradas mãos, livro que me foi roubado, tempos depois, por um soldado de Napoleão, um miserável... Para que o queria ele? Naturalmente ia vendê-lo. Que preço podia dar esse herege a um objeto de tanta valia?

 

João da Cruz disse aqui coisas duras ao soldado e a Napoleão, chamando-os literalmente ladrões de estrada. Concluída a descompostura, levou o trapo aos olhos; o general procurou consolá-lo.

 

— A morte é caminho de nós todos, disse ele, e demais o núncio já estava com os seus setenta e tantos anos. Em todo o caso aplaudo os seus sentimentos, são naturais de um bom coração.

 

— Muito obrigado, acudiu João da Cruz; pode V. Excia. estar certo de que se me dissesse o contrário, eu duvidaria da minha dor. E tanto prezo o seu conselho, que desejava saber se pareceria afetação que eu deitasse luto por tão grande homem.

 

— Não me parece que seja...

 

— Não? Pois vou pô-lo; não direi a ninguém o motivo, como digo aqui, pois é só para a alma dele, que me agradecerá... Pobre cardeal... Vou ver...

 

Como o general se levantasse e fosse para dentro, João da Cruz ficou um pouco vacilante, ao que parece; então a mãe de José Leandro disse-lhe que ficasse para jantar.

 

— Agradeço... agradeço... Vou ver se arranjo... se posso...

 

Disse isso, entre pausas e suspiros, olhando para a roupa; mas D. Luísa pegou no filho pela mão e retirou-se da sala. João da Cruz saiu; chegando ao saguão parou e não vendo o porteiro que estava no pátio, ao fundo, e que depois contou o caso à família, fez um gesto de desespero, dizendo:

 

— Esta gente ainda está mais defunta que o cardeal.

 

José Leandro cuidou logo de ver as exéquias, e pediu ao pai que o levasse; o pai noticiou à mulher que el-rei ordenara grandes honras ao finado; o cadáver, embalsamado, ficaria em casa três dias, celebrando-se diante dele missas e responsos. O enterro seria em Santo Antônio. Não se falava de outra coisa. Mas nessa noite aconteceu adoecer o general; sobre a madrugada foi sangrado; a moléstia agravou-se; era impossível levar o filho às exéquias. A mãe não havia de abandonar o marido. José Leandro, criado a mimos, teimava em querer ir, ainda que com um escravo; mas a mãe vendo que um escravo não poderia arranjar ao filho algum bom lugar na igreja, pediu a João da Cruz o obséquio de o levar a Santo Antônio.

 

— Obséquio? diga obrigação, minha senhora; mas V. Excia. sabe... que... que... eu... não poderei... sem... 

 

O general concordou que era constrangê-lo a assistir ao enterro de um amigo que lhe deixara tantas saudades... E voltando-se para o pequeno, prometeu levá-lo à procissão de S. Sebastião, que era muito bonita, e que ele nunca vira. José Leandro reprimiu as lágrimas; ficava uma coisa pela outra; mas João da Cruz fez logo uma descrição vivíssima das exéquias, disse que seriam tão pomposas ou mais que as da rainha D. Maria I, no ano anterior; falou em cinco bispos, muitos frades, tochas e coches reais, tropa... uma coisa única. O menino agarrou-se-lhe que o levasse. João da Cruz não se negava a isso, uma vez que era vontade de pessoa tão distinta; nem o cadáver de um amigo eminente era espetáculo de fazer recuar a uma alma rija. Ao contrário, esse último encontro dava fortaleza ao coração...

 

— Bem, se não há dúvida... disse o general.

 

Lá isso, pedia licença para dizer que sim, que havia sempre uma dúvida, uma triste dúvida, uma coisa que o vexava; não lhe perguntasse o que era, não o podia dizer sem lágrimas... Mas se o general insistisse em saber, ele fecharia a boca, falariam por ele aquelas miseráveis calças de cor. Tinham sido pretas algum dia, mas o tempo... e tudo o mais, tudo, até os rasgões dos sapatos. Era luto aquilo? era luto apropriado a um príncipe da Igreja? etc., etc. Não, não; o menino que esperasse a procissão, que fosse a ela com seu ilustre pai; deixasse as exéquias, por mais que fossem de estrondo...

 

— De estrondo? interrompeu o pequeno.

 

E chorando, chorando, pediu outra vez que o levasse. O pai na cama agitava-se, sem saber o que fizesse; era avaro, diziam, e custava-lhe abrir mão de algumas patacas. Teimou com o filho, o filho com ele, até que, desesperado:

 

— João da Cruz, disse o pai, entenda-se com esta senhora, a respeito do luto; leve uma recomendação minha ao alfaiate e ao sapateiro. Também precisa de chapéu? Há de haver algum servido cá em casa... Ela que lho dê... Vão e deixem-me em paz!

 

Foi assim que ele arranjou a roupa nova, — embora de luto — luto que fosse, era nova. José Leandro lembrava-se ainda das exéquias, quando me contou este caso; tinha diante de si a figura pomposa de João da Cruz, vendo e ouvindo tudo com interesse de pessoa estranha. Ensinava-lhe o nome de tudo, cerimônias e alfaias, os dois bispos, que eram cinco ou seis, mas ele só se lembrava do de Angola, e do de Pernambuco, e os das ordens religiosas, e os de alguns cônegos. De quando em quando esticava o braço, e mirava-se. Com o andar das horas ficou até alegre. Cá fora, ladeira abaixo, vinha falando da “bonita festa” e recitando-lhe pedaços inteiros do sermão. No Largo da Carioca entraram na sege que os esperava; à porta de casa, é que João da Cruz pôs outra vez os óculos da melancolia, desceu trôpego e entrou.

 

Não imagina como achei esta anedota engraçada; José Leandro contava bem, é certo, mas toda essa história pareceu-me engraçadíssima. Ria-me a não poder mais, e repetia a exclamação que fez render a roupa ao outro. Pobre cardeal! Já entendeste que ele nunca trocou uma só palavra com o núncio, e se o viu algum dia, foi na igreja ou de coche; mas mentia com tanto aprumo, a invenção era tão graciosa e pronta, a peta tão bem concertada, aproveitados todos os incidentes, que era difícil não cair na esparrela. Mas, realmente, a coisa tinha graça; agora mesmo, após tantos anos, acho-lhe muito pico. Mas, vamos ao resto; eis aqui o que eu só confiaria a Deus ou a você.

 

No dia seguinte fui para o júri, com a anedota fresca de memória, até porque sonhara com ela, tanto que acordei rindo. Cheguei a tempo, e fui logo sorteado para o conselho de jurados. Quando vi o réu, não pude deixar de sorrir. Era aquilo mesmo, devia ter sido assim no dia do óbito do núncio; cabeça um pouco torta, olhos mortificados e baixos, tipo de astúcia. Não parecia velho, apesar dos anos longos e desvairados; devia contar uns sessenta e tantos, perto de setenta. Trazia raspado o lábio superior, e toda a mais barba, grisalha e fina, dava-lhe ao rosto muita gravidade. De quando em quando tomava rapé; reparei logo que a boceta era de ouro.

 

O interrogatório durou cerca de quarenta minutos. João da Cruz respondeu claro e firme, negou a autoria da falsificação, explicou algumas contradições que lhe assacaram. Confesso-lhe que ouvi as respostas dele com interesse e sem desprazer. De quando em quando a anedota do cardeal vinha dar uma nota graciosa à situação. Imaginava-o então em Mata-cavalos, no tal dia, em frente do general, referindo as petas de Lisboa, as desculpas, as lágrimas aparentes, até o desfecho. Lá, engenhoso era ele, e divertido. Não pude atender à leitura do processo; ouvi algumas páginas, depois disse a mim mesmo que os autos eram grossos, e a leitura fastienta...

 

Não era isto; era a narração dos feitos do réu que começava a constranger-me. Para distrair-me entrei a mirar a beca do advogado, a cara dos meus colegas do conselho, a cabeleira do escrivão, as suíças do juiz, e finalmente o retrato do imperador, que pendia da parede. Aqui foi maior a distração, porque cuidei de recordar as festas da coroação, tanto as públicas como as particulares, entre estas um banquete a que fui, e no qual ouvi recitar duas odes bem bonitas. Quis recompô-las e não pude; trabalhei de memória, e fui arrancando ora um verso, ora outro, alguns truncados, e quando dei por mim, acabara a leitura.

 

Ouvi depois a acusação, que me deixou em alternativas de acordo e desacordo; veio, porém, a defesa e equilibrou-me o espírito. Minha alma sentia grelar um grão de simpatia, ou outra coisa, que desafiava a causa do João da Cruz. Não podia olhar para ele sem sorrir; de uma vez, para não rir alto, sufoquei uma tosse com o lenço. A exposição do juiz durou pouco mais de quarto de hora. Os autos foram entregues ao conselho e nós saímos da sala.

 

Lá, na sala secreta, os debates foram longos e complicados, mas não tanto como na minha consciência; aqui é que era preciso decidir. A justiça dizia-me que condenasse, a simpatia pedia-me que absolvesse, e o diabo — não podia ser outra pessoa — o diabo clama do fundo do meu ser estas palavras: “Pobre Cardeal! Ah! minha senhora D. Luiza!” que grande desgraça! Pobre Cardeal! E a minha consciência ria, porque era amiga de rir. Já não negava o crime, mas punha na outra concha da balança a vergonha pública, e a prisão longa; depois, os velhos anos do pobre diabo...

 

Enfim, contados os votos, acharam-se divididos seis que sim, seis que não; ia decidir o voto de Minerva, e o réu foi absolvido. Saí contente de mim mesmo; se votasse contra, teria feito inclinar a balança, e era certa a condenação. Saí alegre; não contei nada do que se passara dentro de mim, senão a você agora; mas a anedota do cardeal lá foi correr mundo.

 

E foi ela que trouxe a absolvição de João da Cruz; foi essa empulhação de 1817, jovial e pífia, que deu ao réu de 1851 a minha simpatia e o meu voto, não por ser pífia, mas por ser jovial. Os anos, porém, foram passando, e agora ainda que sou o homem mais alegre do século, acho em mim este ponto negro de melancolia. Quem sabe? Pode ser que este erro me condene no outro mundo.

 

— Tudo são mistérios indecifráveis, respondeu o amigo íntimo do Martins Netto. Os fatos e os tempos ligam-se por fios invisíveis. Suponha que o João da Cruz não tem empulhado o general em 1817, não teria sido absolvido pelo seu voto em 1851, você não teria uma ponta de remorso, nem eu este conto.

 

— Pobre cardeal!

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 06 de março de 2022

A CHUVA LUMINOSA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A CHUVA LUMINOSA 

Humberto de Campos

 

 

 

— Maravilhoso colar este seu, senhora Viscondessa; é pena que dê, aos meus olhos, uma sensação de tragédia, embora de linda tragédia!

 

As senhoras voltaram-se, todas, para a Viscondessa de São Germano, e admiraram. Emergindo do vestido solferino, graciosamente decotado, o seu colo parecia mais alvo do que nunca; e o que realçava ainda mais essa alvura de leite era a graça de um colar de rubis que lhe volteava o pescoço de linhas puríssimas, dando a impressão de um crime sinistro, horrendo, brutal, que lhe fizesse florescer a garganta de neve com um vivo círculo de gotas de sangue.

 

— É lindo, mesmo! — confirmou o general Tasso Fragoso, assestando na jovem senhora o seu fortíssimo "pince-nez" de míope.

 

— É um deslumbramento! — asseguraram, ao mesmo tempo, o senador Azeredo e a Baronesa de Pereira Alves.

 

Percebendo, perspicaz, a tortura a que o seu galanteio estava submetendo a beleza honesta da Viscondessa, o almirante Ribas resolveu correr em seu auxílio, arrancando-a daquela deliciosa e, ao mesmo tempo, angustiosa situação. E tentou:

 

— As pedras preciosas, aliás, foram atiradas à terra para punição e glorificação das mulheres.

 

As senhoras olharam-no sorridentes, na certeza de mais um conto oriental do velho marinheiro, e ele; compreendendo o que aqueles olhos lhe pediam, começou, acariciando o rosto escanhoado e cor de rosa, coroado por uma fina cabeleira de prata:

 

— Antes do Dilúvio e do Pecado Original, os astros que ornavam o céu tinham, cada um, a sua cor peculiar. Sírios era verde, como as águas do oceano. Saturno era de um azul pálido, como os olhos da Sra. condessa de Souza Furtado. Marte era vermelho como o sangue. Júpiter, de um amarelo vivo. Netuno, roxo. Urano, azul, forte. O Sol, cor de púrpura. E a Lua e Vênus, alvas como a inocência.

 

— Devia ser lindo, o céu! — comentou, encantada, a Baronesa.

 

O general Tasso Fragoso aparteou, erudito, contando que, de Marte, segundo Flamarion, ainda se viam dessas paisagens celestes, e o almirante continuou:

 

— Resplendente de astros de todas as cores, o céu era, em verdade, um deslumbramento.

 

Endireitou-se na grande "maple" tauxiada de prata, e contou:

 

— Uma tarde, vinha o Onipotente por uma das alamedas do Paraíso, quando se lhe deparou um quadro revoltante: abraçados, trêmulos, conscientes do próprio crime, Adão e Eva escondiam-se, horrorizados de si mesmos, entre as árvores enormes daqueles primeiros dias da Criação. Compreendendo, na sua sabedoria, o que havia sucedido às duas fragilíssimas criaturas a que pretendera conceder a graça da imortalidade, trovejou o Senhor que eles abandonassem, de pronto, os limites do Éden. Súplices, os réprobos imploraram perdão, pedindo clemência. A resposta foi, porém, uma ordem severa, brutal, imperiosa, para que o anjo Gabriel manejasse a sua espada de chama. E, enquanto isto acontecia, deu-se, de súbito, o milagre deslumbrante: a um gesto do Senhor, os astros todos começaram a lançar sobre os perseguidos uma chuva de fogo, como aquela que destruiu, mais tarde, Gomorra e Sodoma, a qual, desfeita em gotas de todas as cores, em pingos luminosos de todas as cambiantes, fustigavam, numa apoteose terrível e magnífica, a sublime fraqueza dos dois pecadores!

 

As senhoras fitavam, mudas e encantadas, o delicioso narrador, e este continuou:

 

— Essas gotas de fogo, tombadas na terra poluída pelo pecado, coagularam-se, cristalizaram-se, consolidaram-se.

 

Firmou as mãos no apoio da "maple" e, fazendo menção de erguer-se, concluiu:

 

— E apareceram na terra, minhas senhoras, as ametistas, os diamantes, os topázios, as opalas, os berilos, as esmeraldas, as safiras, as turmalinas, os rubis, essas gotas de fogo, em suma, que são, pelo desejo que vos despertam e pelo realce que vos dão à beleza, a vossa glória e o vosso castigo!

 

E levantou-se, entre palmas.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 04 de março de 2022

O PAÍS DAS QUIMERAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O PAÍS DAS QUIMERAS

Machado de Assis

 

 

 

Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também por esta circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.

Mas, para justificar o provérbio que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.

Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma vela.

Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.

Tito não é nem alto nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.

Como as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e para os pés.

No moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua, e sobre a qual ia quase passando um carro. A galga, salva por Tito, afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.

Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que, sabendo da facilidade com que Tito rimava, apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:

— Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China…

— Pode falar, respondeu Tito.

— Ouvi dizer que você fazia versos… É verdade?

Tito conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:

— É verdade.

— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?

Quando o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar!”

O meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.

Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda ao pescoço.

A mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga.

À hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência, e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.

Mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legitima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama, e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.

Passado o período agudo da doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.

O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível boa fé, que, neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito.

Desenganado de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.

Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo! mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos loiros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.

Tito estava assombrado. Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se defronte dele e começou a brincar com a galga que dava mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma doçura de voz nunca ouvida:

— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?

Esta indagação era feita de um modo tão insinuante que Tito, sem inquirir o motivo da curiosidade, respondeu imediatamente:

— Penso na injustiça de Deus.

— É contraditória a expressão; Deus é a justiça.

— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse olhos de amor para ela.

— Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.

— Coitado de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!

— De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?

— Preciso do que me falta… e falta-me tudo.

— Tudo? És exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?

— É verdade.

— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?

— Para onde?

— Que importa? Queres vir?

— Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?

— Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar.

Tito levantou-se e recuou. A visão levantou-se também.

— Tens medo? perguntou ela.

— Medo, não, mas…

— Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.

— Vamos.

Não sei se Tito esperava um balão para a viagem aérea a que o convidava a inesperada visita; mas, o que é certo, é que os seus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viu abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.

— Vamos, disse a visão.

Tito repetiu maquinalmente:

— Vamos!

E ela tomou-o nos braços, subiu com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e a relva dos campos.

Os dois subiram.

Durou a ascensão algum tempo. Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos loiros da visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava.

Isto passou rápido pela mente do poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.

Em breve começou Tito a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e loira que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza. Tito teve um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subiam sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis desenfreados. Afinal penetraram em uma região inteiramente diversa das que haviam atravessado naquela assombrosa viagem. Tito sentiu expandir-se-lhe a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se a alma do poeta rompendo em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a fada depôs o poeta e começaram a fazer o trajeto a pé.

Caminhando, os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Tito pôde ver então que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha: o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética Nápoles. Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegaram à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do palácio.

Tito quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurou uma pergunta à sua companheira.

— Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.

— No país das Quimeras?

— Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência.

Tito contentou-se com a explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À entrada dos dois houve continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter aos andares superiores.

— Vamos falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.

Afinal penetraram na grande sala. O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.

Quando Tito entrou na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo, porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.

Depois da cerimônia da apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para dar-se-lhe cicerone correspondente.

— Eu, disse Tito, tenho, se tanto, uma triste Mercê.

— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa, tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.

A este tempo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado do poeta, voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso.

Tito quis perguntar à sua companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.

Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e loiras… oh! mas de um loiro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios da corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.

Quem eram aquelas raparigas? O meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.

As Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da sala, não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas sem saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu te conheço!

Depois que saíram todas, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.

Os três, o poeta, a fada condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.

Tito não disfarçou a impressão que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a companheira de viagem e perguntou como se chamava aquela deusa.

— Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.

A estas palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é preciso que cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.

Houve apresentação com o cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psiquê, onde se mirava de momento em momento.

Impetraram os três licença para continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e salas do alcáçar. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito percorria essas diversas salas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma iguaria singular para o almoço do rei. Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:

— Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as classes: estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que, no seu planeta, vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos presente deste elemento constitutivo.

— É massa quimérica?

— Da melhor que se há visto até hoje.

— Pode ver-se?

O cicerone sorriu; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso; mas o chefe, batendo-lhe no ombro:

— Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos; e a nossa atmosfera não se esgota.

Este chefe tinha uma cara insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao dizer as últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.

Este caso atraiu os companheiros que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.

Os três continuaram caminho.

Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma calamidade pública.

Andou o meu poeta de sala em sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu, ali, um trabalho ou um jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.

Entretanto era a hora do almoço real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico e a encantadora fada que havia levado o meu poeta àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam aquelas assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe:

— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?

— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.

— Oh! sempre poeta!

— É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?

— Em tua própria casa.

— Oh!

— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas raparigas… somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.

Tito compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os seus belos e namorados olhos nos da Utopia, que tinha diante de si, disse:

— Ah! sois vós, é verdade! Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas de face e embaixo de forma palpável.

— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.

O poeta voltou a cabeça e viu a peregrina visão, sua companheira de viagem.

— Ah! é ela! disse o poeta.

— É verdade. É a loira Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.

A Fantasia e a Utopia entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer algumas perguntas, mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal saiu à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco Tito sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.

Nesta situação soltou um grito de dor. Fechou os olhos e deixou-se ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte.

Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até fazer-se do tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica; ele soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra! disse Tito consigo.

Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto.

A primeira impressão, quando se viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em que região do planeta se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se achava a dois passos de casa. Apressou-se o poeta a voltar aos seus pacíficos lares.

A vela estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer.

Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não façam provisão desta última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 03 de março de 2022

EFEITOS DO TANINO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

EFEITOS DO TANINO

Humberto de Campos

 

Preocupado com a mocidade da sua linda companheira e temendo, ao mesmo tempo, a decadência de tão maravilhosa formosura, principalmente daquele admirável colo de neve, que era o seu orgulho e que ela mostrava, contente, até aonde lhe era possível mostrar, o coronel Epifânio Fonteneles procurou, uma tarde, a proprietária de um famoso Instituto de Beleza, e expôs claramente o seu caso. A Circe francesa ouviu-lhe a narrativa, compreendeu-lhe os temores, percebeu-lhe as apreensões, e, com um sorriso nos lábios artificialmente vermelhos, tranquilizou-o:

 

— Pode ficar tranquilo, coronel. O preparado que possuímos para conservar a graça do busto, a mocidade da pele, enfim, a beleza do colo, é infalível. É uma loção adstringente, de efeito seguro e poderoso, que tem realizado verdadeiros milagres. Basta dizer que entram nela, em dose elevadíssima, a pedra-ume, a casca de romã, a folha de carvalho, a casca de manga, enfim, todas as substâncias taninosas, que fazem contrair e fortalecer a epiderme, conservando-lhe a juventude.

 

E retirando um vidro da prateleira:

 

— O senhor leva um vidro, e recomende a madame que o use todos os dias. Toma-se de um pouco de algodão delicado, molha-se no líquido, e umedece-se com ele a pele do colo, principalmente o seio, cuja rijeza é preciso conservar. Deixa-se secar o líquido na pele, põe-se uma ligeira camada de pó de arroz, e está feito o remédio, e, com ele, a "toilette" do dia.

 

Balançando a cabeça a cada informação, o coronel mostrou haver entendido bem, pediu dois vidros da loção, pagou-os, recebeu-os, e tocou-se para casa, onde os entregou à encantadora D. Ignezinha, a quem transmitiu, palavra por palavra, todas as explicações.

 

No dia seguinte, à tarde, usado o líquido de acordo com as instruções do marido, e enfiado o seu vestido de decote mais longo e mais frouxo, desceu a linda senhora, sem colete, a fim de patentear melhor a graça do busto deslumbrante, para a sala de visitas, onde já se havia feito anunciar, como um dos amigos mais frequentes da casa, o jovem engenheiro militar Dr. Epaminondas Rufino.

 

Pausado, meticuloso, disciplinado em tudo, o coronel demorou-se ainda nos seus aposentos, vestindo-se para jantar. Meia hora depois, ouviam-se os seus passos na escada, e, logo, em seguida, a sua entrada no salão, onde madame sorria, discreta, contando uma história qualquer ao capitão Epaminondas.

 

— Então, como vai essa bravura? bradou, jovial, o velho coronel, estendendo a grande mão gloriosa, para apertar a do amigo.

 

O engenheiro ia responder no mesmo tom, mas, de repente, contraiu o rosto, empalideceu, e continuou mudo.

 

— Que é isto? Está se sentindo mal? — tornou o coronel apreensivo.

 

O capitão fez um novo esforço, com os músculos de todo o rosto, procurando descerrar os lábios apertados, contraídos num espasmo da mucosa e, com uma dificuldade horrível, quase com a boca cerrada, respondeu, apenas, num sibilo, com a língua presa, dura, paralisada pelo tanino:

 

— Nun... tãnho... nada!

 

E ganhou a rua.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 01 de março de 2022

PAI CONTRA MÃE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

PAI CONTRA MÃE

Machado de Assis

 

 

 

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", - ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves, – em família, Candinho, – é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.

Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.

Contava trinta anos. Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

– Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.

– Não, defunto não; mas é que...

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

– Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

– Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.

Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

– Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.

– Vocês verão a triste vida, suspirava ela.

– Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.

– Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco...

– Certa como?

– Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.

– A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...

– Bem sei, mas somos três.

– Seremos quatro.

– Não é a mesma coisa.

– Que quer então que eu faça, além do que faço?

– Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.

– Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.

Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.

– É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

– Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio.

– Titia não fala por mal, Candinho.

– Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, – crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

– Quem é? perguntou o marido.

– Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

– Não é preciso...

– Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.

– Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.

– Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.

Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.

– Mas...

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.

– Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.

– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!

– Siga! repetiu Cândido Neves.

– Me solte!

– Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes, – cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.

– Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

– Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.

– É ela mesma.

– Meu senhor!

– Anda, entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 28 de fevereiro de 2022

MME. LONDON BANK (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

MME. LONDON BANK

Humberto de Campos

 

 

 

Contam as crônicas do Império Romano que Mitridates, o famoso rei do Ponto, que enfrentou as hostes de Sila, de Pompeu e de Lúculo, apanhou, um dia, de surpresa, um general inimigo, e, para matar-lhe a fome de riquezas, fez-lhe derramar pela garganta uma panela de ouro derretido. Incompletos nas suas informações, os historiadores antigos não dizem, de modo claro, como ficou a boca da vítima; a impressão que eu tenho, em seguida a essas leituras, é, porém, que o general se tornou, com isso, o grande antepassado de certas senhoras e cavalheiros do nosso tempo, e que eu encontro diariamente na cidade, os quais transformaram a boca em Caixa de Conversão, depositando alí, em obturações dispendiosíssimas, grande parte da sua fortuna.

Felizmente, há, entre as senhoras, espíritos esclarecidos, que movem, contra esse abuso, uma campanha infatigável. Ainda ontem, uma destas beneméritas, D. Clara de Souza Castelo, que me fora apresentada pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto, me informava, preocupadíssima:

- Esta moda das dentaduras de ouro está se desenvolvendo, Sr. conselheiro, como o senhor não imagina.

E após uma dúzia de nomes próprios, aludindo a pessoas notabilizadas por esse mão gosto, assinalou, penalizada, uma ilustre dama atualmente em Petrópolis, cuja boca é considerada, ali, pela quantidade de ouro que encerra, uma verdadeira sucursal dos cofres do London Bank.

- E não é só a falta de gosto, senhor conselheiro - acentuava a minha curiosa conhecida da véspera. - O pior de tudo, é o perigo a que está exposta uma criatura nessas condições. O senhor não conhece o caso de D. Laurentina, mulher do Dr. Filomeno Miranda?

A minha resposta foi, como era natural, negativa, e ela contou:

- D. Laurentina tem, como o senhor sabe, uma grande fortuna, herdada do pai. Aos vinte e cinco anos, os seus dentes começaram a estragar-se, e ela, que possuía dinheiro, mandou obturá-los a ouro. E de tal maneira procedeu, que, hoje, possui a boca inteiramente dourada! Quando ela fala, e os lábios se lhe descerram, é um deslumbramento, um luxo de ouro, que se tem a impressão de que se abriu, de repente, a porta grande da igreja da Candelária!

Eu tossi, estranhando a imagem, e Dona Clara continuou:

- O pior, porém, era o que lhe ia sucedendo. Imagine o senhor que, uma destas noites, ao regressar de uma visita, o Dr. Filomeno percebeu que havia ladrão na casa. Corajoso, hábil, experiente, empunhou ele o revolver, chamou os criados, e começou a percorrer o palacete. No quarto de dormir, o jardineiro abaixou-se, e olhou para debaixo da cama. E deu um grito, de horror e de alarma. O ladrão estava lá, debaixo do leito, escondido!

Por essa altura, D. Clara tomou fôlego, e reatou:

- Arrancado, à força, do esconderijo, pelo pulso dos criados, o miserável não negou o crime premeditado. Estava ali para roubar a fortuna da dona da casa!

- E estava armado? - indaguei, aflito.

- Estava, Sr. conselheiro, estava! - acudiu a minha informante.

E, olhando para um lado e outro, soprou-me, perversa, ao ouvido:

- Levava... um boticão!...

E soltou uma gargalhada sonora, demorada, reboante, dessas que somente sabem dar, na terra, as mulheres de dentes bonitos.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 27 de fevereiro de 2022

CARTA A F. (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

CARTA A F.

Guerra Junqueiro

 

 

 

És tu quem me conduz, és tu quem me alumia,
Para mim não desponta a aurora, não é dia,
Se não vejo os dois sóis azuis do teu olhar.
Deixei-te há pouco mais dum mês, – mês secular
E nessa noite imensa, ah, digo-te a verdade,
Iluminou-me sempre o luar da saudade.
E nesses montes nus por onde eu tenho andado,
Trágicos vagalhões dum mar petrificado,
Sempre adiante de mim dentre a aridez selvagem,
Vi como um lírio branco erguer-se a tua imagem.
Nunca te abandonei! Nunca me abandonaste!
És o sol e eu a sombra. És a flor e eu a haste.
Na hora em que parti meu coração deixei-o
Na urna virginal desse divino seio,
E o teu sinto-o eu aqui a bater de mansinho
Dentro em meu peito, como uma rola em seu ninho!


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 26 de fevereiro de 2022

ORAI POR ELE! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ORAI POR ELE!

Machado de Assis

 

 

 

Orai por ele! * (fragmento de narrativa)
- Não, isso não; os discursos eram dele mesmo. Nem era possível que não fossem. Como se há de levar de cor um discurso, para uma assembleia de acionistas, em que tantos falam e sem ordem?
- Você está enganado. O comendador proferia discursos muito bem dispostos, não respondia aos apartes que, às vezes, destruíam um argumento, e não replicava nunca a outro orador. Quando era o primeiro que falava, podia disfarçar um pouco; mas quando era o segundo ou terceiro, é que se via bem. Por isso empenhava-se sempre em falar antes de todos. 
- Pois olhe, não me parecia... Ele era entendido em negócios. 
- Era, isso era, mas decorava os discursos. 
O carro chegou à
praia de Botafogo, voltando do
cemitério. Pedro e Paulo tinham ido enterrar o comendador, que falecera na véspera de um tifo. Vieram calados, a princípio, depois falaram das novas casas do bairro, afinal caiu a conversa no defunto, a propósito de uma casa que ele vendera três meses antes. Paulo dizia que a casa fora mal vendida. Pedro ponderou que os dinheiros mal ganhos não aproveitavam aos donos. Ao que Paulo redarguiu que não, que o comendador era homem honesto, posto que burro.
- Burro não digo - replicou Pedro -; era finório e grande finório. 
- Um homem pode ser finório e besta - explicou Paulo. - Tinha faro e prática, mas era incapaz de distinguir uma ideia de outra. Olhe, nas assembleias de acionistas... 
Foi assim que falaram dos discursos do comendador, dizendo Paulo que eram decorados, e concluindo por afirmar que conhecia o autor deles; era o advogado do
Banco Econômico.
- Realmente, tinham muita citação de leis - concordou Pedro -; um deles chegou a trazer uma citação em latim, mas então foi caçoada do advogado. 
- Não; foi naturalmente pedido do próprio comendador, que era dado a latinórios. Mas eu mesmo aturei alguns discursos dele em casa, eu e a mulher, na véspera das assembleias. Começava dizendo que me queria consultar sobre a ordem das ideias. Mas ligava duas palavras, e fingindo que improvisava, proferia o discurso todo: era para ver o efeito. Da primeira vez, como os jornais deram o discurso, disse-me ele: "Foi bom que falássemos anteontem do negócio, assentei as ideias, e você viu que o discurso saiu quase igual". Quase igual! 
Riam ambos, a praia estava bonita, conversaram dela alguns minutos, mas tornaram logo ao finado, cuja vida foi longamente analisada. Pedro insistia em não admitir que ele fosse honesto; Paulo dizia que sim, que nesse particular não havia que dizer. Não seria homem de sacrificar-se, é verdade... 
- Nem beneficiar aos outros - acudiu Pedro. - Sabe o que me fez, não? 
Paulo respondeu que sim; nem por isso evitou que Pedro lhe contasse a grande mágoa que tinha do defunto. Quando ia a estabelecer-se pela primeira vez, há dez anos, pediu de empréstimo ao comendador quinze contos, para pagar em dois anos, com juro de oito por cento. Pois o comendador, que aliás acabava de assinar dez contos para as
festas do Paraguai, negou-lhe o pedido.
- Talvez não pudesse na ocasião... 
- Qual não pudesse! Era sovina. Ficamos brigados por algum tempo; depois, quando eu já estava estabelecido, foi ele mesmo que me procurou para uma companhia... Fizemos as pazes, mas eu sempre lhe disse umas duas palavras, que ele ficou amarelo. 
Paulo tirou a conversação desse terreno, falando nas manias do comendador que eram muitas; depois contaram anedotas, ditos ridículos, erros de prosódia, pacholices. Paulo referiu que o finado, depois de ler um
romance de Dumas, passado na corte de França, começou a beijar a mão à mulher, quando entrava ou saía de casa. A mulher é que
não esteve pelos autos, e o costume durou cinco dias. Pedro piscou o olho e sorriu.
- Era um tolo - concordou. 
- Quando andava, você não reparou que ele, quando andava, tinha uns ares adamados? - continuou Paulo, e recordou que era vaidoso até das barbas; nunca estava ao pé da gente que não as puxasse muito, olhando para elas, como se procurasse um argueiro, mas era para que vissem que eram finas e luzidias. 
- E música? - acudiu Pedro. - Tinha a mania de entender de música, de julgar artistas. Na praça, em chegando companhia lírica, era o assunto predileto dele. Tomava assinatura no
Teatro Lírico, para fazer crer que era doido por música, mas eu aposto que nem gostava.
- Não, lá gostar, gostava. 
- Gostava, mas fingia gostar mais. 
- Isso sim. 
Vieram os sestros do comendador. Paulo não podia suportar o costume que o finado tinha de fazer uma cruz na boca, com o polegar, quando bocejava; nem o de palitar os dentes com a língua. Pedro não conhecia muitos, era menos assíduo na casa que Paulo. 
- Você, sim, ia lá todas as noites. Jogavam o voltarete sempre? 
- Algumas vezes; mas logo que chegava terceiro parceiro, eu deixava as cartas. Não gosto de cartas. 
- A mulher também jogava? 
- D. Josefina? Qual! 
- Jogava a bisca de dois com você, naturalmente. 
- A bisca? - repetiu Paulo
enfiado.
- Deixe-se de partes; toda a gente sabe disso.

Literatura - Contos e Crônicas sexta, 25 de fevereiro de 2022

MILITIA SEXUS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

MILITIA SEXUS

Humberto de Campos

 

 

 

Não obstante as teorias espalhadas pelos moralistas modernos, a virtude máxima da mulher será, sempre, o pudor. Afirmem embora que este não é um aliado permanente da inocência, argumentando, para isso, com as crianças e os selvagens; eu continuarei a considerá-lo a flor mais mimosa da castidade e a atribuir à sua ausência a maior parte dos venenos que dissolvem a sociedade e a família. Aos meus olhos, o pudor está para a honestidade como o fumo está para o fogo. Compreender honestidade sem pudor seria admitir fogo sem fumo.

Essa convicção não é, entretanto, privilegio meu; e não foi sem alegria que li há dias, em uma revista européia, a solidariedade de um eminente magistrado francês, patenteada em uma lição oportuna, e rigorosa, a algumas dúzias de senhoras parisienses.

Em um dos tribunais de Paris debatia-se, em uma das últimas sessões do ano último, um processo escandaloso, cujas peças documentais, que deviam ser lidas e mostradas, atentavam, de modo clamoroso, contra a pudicícia das damas que enchiam, naquele momento, a sala do tribunal. Constrangido ante aquele publico feminino, o velho magistrado que presidia a sessão fez tilintar o tímpano, pedindo atenção. Feito silêncio, o juiz avisou:

- É dever meu, como magistrado e chefe de família, comunicar às damas presentes neste recinto que vão ser exibidos, aqui, alguns documentos do processo capazes de ferir as susceptibilidades femininas. Nessas condições, eu peço, pois, às senhoras pundonorosas que se afastem da sala, de modo que os interessados possam discutir essas provas sem constrangimento.

A esse aviso, as sessenta ou setenta senhoras presentes no tribunal entreolharam-se, consultando-se tacitamente. De tantas, porém, duas, apenas, se levantaram, retirando-se, deixando-se ficar as demais nos seus respectivos lugares.

Ao fim de dois minutos, o juiz indagou, alto:

- Nenhuma das senhoras que se deixaram ficar sentadas se mostrarão escandalizadas com as peças repugnantes que vão ser exibidas?

Silêncio geral.

Ante essa resposta muda, o magistrado enrubesceu, revoltado com aquele espetáculo de despudor, e, virando-se para o comandante da força, ordenou:

- Chefe da guarda, mande pôr fora da sala o resto das senhoras!

E a guarda cumpriu a ordem.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 23 de fevereiro de 2022

O ORÁCULO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O ORÁCULO

Machado de Assis

 

 

 

Conheci outrora um sujeito que era um exemplo de quanto pode a má fortuna quando se dispõe a perseguir um pobre mortal.

Leonardo (era o nome dele) começara por ser mestre de meninos, mas tão mal se houve que no fim de um ano perdera o pouco que possuía e achou-se reduzido a três alunos.

Tentou depois um emprego público, arranjou as cartas de empenho necessárias, chegou mesmo a dar um voto contra as suas convicções, mas quando tudo lhe sorria, o ministério, na forma do geral costume, achou contra si a maioria da véspera e pediu demissão. Subiu um ministério do seu partido, mas o infeliz tinha-se tornado suspeito ao partido por causa do voto e teve uma resposta negativa.

Auxiliado por um amigo da família, abriu uma casa de comércio; mas, tanto a sorte, como a velhacaria de alguns empregados, deram com a casa em terra, e o nosso negociante levantou as mãos para o céu quando os credores concordaram em receber uma certa quantia inferior ao débito, isto em tempo indeterminado.

Dotado de alguma inteligência e levado pela necessidade mais que pelo gosto, fundou uma gazeta literária; mas os assinantes, que eram da massa dos que preferem ler sem pagar a impressão, deram à gazeta de Leonardo uma morte prematura no fim de cinco meses.

Entretanto, subiu de novo o partido a que ele sacrificara a sua consciência e pelo qual sofrera os ódios de outro. Leonardo foi a ele e lembrou-lhe o direito que tinha à sua gratidão; mas a gratidão não é a bossa principal dos partidos, e Leonardo teve de ver-se preterido por algumas influências eleitorais de quem os novos homens dependiam.

Nesta sucessão de contratempos e azares, Leonardo não chegara a perder a confiança na Providência. Doam-lhe os golpes sucessivos, mas uma vez recebidos, ele preparava-se para tentar de novo a fortuna, fundado neste pensamento que havia lido, não me lembra aonde: “.

Preparava-se, pois, a tentar novo assalto, e para isso tinha arranjado uma viagem ao norte, quando viu pela primeira vez Cecília B…, filha do negociante Atanásio B…

Os dotes desta moça consistiam nisto: um rosto simpático e cem contos limpos, em moeda corrente. Era a menina dos olhos de Atanásio. Só constava que tivesse amado uma vez, e o objeto do seu amor era um oficial de marinha de nome Henrique Paes. O pai opôs-se ao casamento por antipatizar com o genro, mas parece que Cecília não amava muito Henrique, visto que apenas chorou um dia, acordando no dia seguinte tão fresca e alegre como se lhe não houvesse empalmado um noivo.

Dizer que Leonardo se apaixonou por Cecília é mentir à história, e eu prezo, antes de tudo, a verdade dos fatos e dos sentimentos; mas é por isso mesmo que eu devo dizer que Cecília não deixou de fazer alguma impressão em Leonardo.

O que causou profunda impressão no ânimo do nosso mal-aventurado e conquistou desde logo todos os seus afetos, foram os cem contos que a pequena trazia em dote. Leonardo não hesitou em abençoar o mau destino que tanto o perseguira para atirar-lhe aos braços uma fortuna daquela ordem.

Que impressão produziu Leonardo no pai de Cecília? Boa, excelente, maravilhosa. Quanto à menina, recebeu-o indiferente. Leonardo confiou em que venceria a indiferença da filha, visto que já possuía a simpatia do pai.

Em todo o caso desfez a viagem.

A simpatia de Atanásio foi ao ponto de fazer de Leonardo um comensal indispensável. À espera do mais, o mal-aventurado Leonardo foi aceitando aqueles adiantamentos.

Dentro de pouco tempo era ele um íntimo da casa.

Um dia Atanásio mandou chamar Leonardo ao gabinete e disse-lhe com ar paternal:

— Tem sabido corresponder à minha estima. Vejo que é um bom moço, e segundo me disse tem sido infeliz.

— É verdade, respondeu Leonardo, sem poder conter um sorriso de júbilo que lhe assomou aos lábios.

— Pois bem, depois de estudá-lo tenho resolvido fazê-lo aquilo que o céu não me concedeu: um filho.

— Ah!

— Espere. Já o é pela estima, quero que o seja pelo auxílio à nossa casa. Tem, desde já, um emprego no meu estabelecimento.

Leonardo ficou um pouco enfiado; esperava que o próprio velho fosse oferecer-lhe a filha, e apenas recebia dele um emprego. Mas depois refletiu; um emprego era aquilo que depois de tanto cuidado vinha encontrar; não era pouco; e daí podia ser que lhe resultasse mais tarde o casamento.

Assim, respondeu beijando as mãos do velho:

— Oh! obrigado!

— Aceita, não?

— Oh! sem dúvida!

O velho ia levantar-se quando Leonardo, tomando subitamente uma resolução, fê-lo conservar-se na cadeira.

— Mas escute…

— O que é?

— Não quero ocultar-lhe uma coisa. Devo-lhe tantas bondades que não posso deixar de ser inteiramente franco. Eu aceito o ato de generosidade com uma condição. Amo D. Cecília com todas as forças de minha alma. Vê-la é aumentar este amor já tão ardente e tão poderoso. Se o coração de V. S. leva a generosidade ao ponto de me admitir na sua família, como me admite na sua casa, aceito. De outro modo é sofrer de um modo que está acima das forças humanas.

Em honra da perspicácia de Leonardo devo dizer que, se ele ousou arriscar assim o emprego, foi por ter descoberto em Atanásio uma tendência para dar-lhe todas as felicidades.

Não se enganou. Ouvindo aquelas palavras, o velho abriu os braços a Leonardo e exclamou:

— Oh! se eu não desejo outra coisa!

— Meu pai! exclamou Leonardo abraçando o pai de Cecília.

O quadro tornou-se comovente.

— De há muito, disse Atanásio, que eu noto a impressão produzida por Cecília e pedia no meu íntimo que uma tão feliz união se pudesse efetuar. Creio que agora nada se oporá. Minha filha é uma menina sisuda, não deixará de corresponder ao seu afeto. Quer que lhe fale já ou esperemos?

— Como queira…

— Ou antes, seja franco; possui o amor de Cecília?

— Não posso dar uma resposta positiva. Creio que não lhe sou indiferente.

— Eu me incumbo de investigar o que há. Demais, a minha vontade há de entrar por muito neste negócio; ela é obediente…

— Oh! forçada, não!

— Qual forçada! É sisuda e há de ver que lhe convém um marido inteligente e laborioso…

— Obrigado!

Separaram-se os dois.

No dia seguinte devia Atanásio instalar o seu novo empregado.

Nessa mesma noite, porém, o velho tocou no assunto de casamento à filha. Começou por perguntar-lhe se acaso não tinha vontade de casar-se. Ela respondeu que não havia pensado nisso; mas disse-o com um sorriso tal que o pai não hesitou em declarar que tivera um pedido formal da parte de Leonardo.

Cecília recebeu o pedido sem dizer palavra; depois, com o mesmo sorriso, disse que ia consultar o oráculo.

O velho não deixou de admirar-se com esta consulta de oráculo e interrogou a filha sobre a significação das suas palavras.

— É muito simples, disse ela, vou consultar o oráculo. Nada faço sem consultar; não dou uma visita, não faço a menor coisa sem consultá-lo. Este ponto é importante; como vê, não posso deixar de consultá-lo. Farei o que ele mandar.

— É esquisito! mas que oráculo é esse?

— É segredo.

— Mas posso dar esperanças ao rapaz?

— Conforme; depende do oráculo.

— Ora, tu estás caçoando comigo…

— Não, meu pai, não.

Era necessário conformar-se à vontade de Cecília, não porque realmente fosse imperiosa, mas porque no modo e no sorriso com que a moça falou o pai descobriu que ela aceitava o noivo e apenas fazia aquilo por espírito de casquelhice.

Quando Leonardo soube da resposta de Cecília não deixou de ficar um tanto atrapalhado. Mas Atanásio tranqüilizou-o comunicando ao pretendente as suas impressões.

No dia seguinte é que Cecília devia dar a resposta do oráculo. A intenção do velho Atanásio estava decidida; no caso de ser contrária a resposta do misterioso oráculo, ele persistiria em obrigar a filha a casar com Leonardo. Em todo o caso far-se-ia o casamento.

Ora, no dia aprazado apresentaram-se em casa de Atanásio duas sobrinhas dele, casadas ambas, e de muito tempo retiradas da casa do tio pelo interesse que tinham tomado por Cecília quando esta quis casar-se com Henrique Paes. A menina reconciliou-se com o pai; mas as duas sobrinhas, não.

— A que lhes devo esta visita?

— Vimos pedir-lhe desculpa do nosso erro.

— Ah!

— Tinha razão, meu tio; e, demais, parece que há um novo pretendente.

— Como souberam?

Cecília mandou-nos dizer.

— Vêm então opor-se?

— Não; apoiar.

— Ora, graças a Deus!

— Nosso desejo é que Cecília se case, com este ou com aquele; é todo o segredo da nossa intervenção em favor do outro.

Feita assim a reconciliação, Atanásio participou às sobrinhas o que havia e qual a resposta de Cecília. Disse igualmente que era aquele o dia marcado pela moça para dar a resposta do oráculo. Riram-se todos da singularidade do oráculo, mas resolveram esperar a resposta dele.

— Se for contrária, apoiar-me-ão?

— Decerto, responderam as duas sobrinhas.

Os maridos destas chegaram pouco depois.

Enfim apareceu Leonardo de casaca preta e gravata branca, trajo muito diverso daquele com que os antigos iam buscar as respostas dos oráculos de Delfos e de Dodona. Mas cada tempo e cada terra com seu uso.

Durante todo o tempo em que as duas moças, os maridos e Leonardo estavam de conversa, Cecília demorava-se no seu quarto consultando, dizia ela, o oráculo.

A conversa versou a respeito do assunto que reunia a todos.

Enfim, seriam oito horas da noite quando Cecília apareceu na sala.

Todos foram a ela.

Depois de feitos os primeiros cumprimentos, Atanásio, meio sério, meio risonho, perguntou à filha:

— Então? que disse o oráculo?

— Ah! meu pai! o oráculo disse que não!

— Então o oráculo, continuou Atanásio, é contrário ao teu casamento com o sr. Leonardo?

— É verdade.

— Pois sinto dizer que sou de opinião contrária ao sr. oráculo, e como a minha pessoa é conhecida enquanto a do sr. oráculo é inteiramente misteriosa, há de fazer-se o que eu quiser, mesmo apesar do sr. oráculo.

— Ah! não!

— Como, não? Queria ver isso! Se eu aceitei essa idéia de consultar bruxarias foi para brincar. Nunca me passou pela cabeça ceder lá às decisões de oráculos misteriosos. Tuas primas são de minha opinião. E demais, eu quero desde já saber que bruxarias são essas… Meus senhores, vamos descobrir o tal oráculo.

A este tempo apareceu um vulto na porta e disse:

— Não precisa!

Todos voltaram-se para ele. O vulto deu alguns passos e parou no meio da sala. Tinha um papel na mão.

Era o oficial de marinha de que falei acima, trajando casaca e luva branca.

— Que faz aqui o senhor? perguntou o velho espumando de raiva.

— Que faço? Sou o oráculo.

— Não aturo caçoadas desta natureza. Com que direito se acha neste lugar?

Henrique Paes por única resposta deu a Atanásio o papel que trazia na mão.

— Que é isto?

— E a resposta à sua pergunta.

Atanásio chegou-se para a luz, tirou os óculos do bolso, pô-los no nariz e leu o papel.

Durante este tempo, Leonardo tinha a boca aberta sem compreender nada.

Quando o velho chegou ao meio do escrito que tinha na mão, voltou-se para Henrique e disse com o maior grau de assombro:

— O senhor é meu genro!

— Com todos os sacramentos da igreja. Não leu?

— E se isto for falso!

— Alto lá, acudiu um dos sobrinhos, nós fomos os padrinhos, e estas senhoras as madrinhas do casamento de nossa prima D. Cecília B… com o sr. Henrique Paes, o qual se efetuou há um mês no oratório de minha casa.

— Ah! disse o velho caindo numa cadeira.

— Mais esta! exclamou Leonardo procurando sair sem ser visto.

Epílogo

Se perdeu a noiva, e tão ridiculamente, nem por isso Leonardo perdeu o lugar. Declarou ao velho que faria um esforço, mas que ficava para corresponder à estima que o velho lhe tributava.

Mas estava escrito que a sorte tinha de perseguir o pobre rapaz.

Daí a quinze dias Atanásio foi acometido de uma congestão de que morreu.

O testamento, que fora feito um ano antes, nada deixava a Leonardo.

Quanto à casa, teve de liquidar-se. Leonardo recebeu a importância de quinze dias de trabalho.

O mal-aventurado deu o dinheiro a um mendigo e foi atirar-se ao mar, na praia de Icaraí.

Henrique e Cecília vivem como Deus com os anjos.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 22 de fevereiro de 2022

PELE CURTA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

PELE CURTA

Humberto de Campos

 

 

 

Dize-me como dormes que eu te direi os pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência se revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um coração atormentado pela consciência. A consciência tranqüila dorme com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.

As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o dia.

Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.

A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue, já, ao primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos portais.

- Quem é? - gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.

- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.

Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.

- Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz, desconfiado.

- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.

- Que moléstia é essa?

- A minha? Eu sofro de pele curta.

- Pele curta? - estranhou o morador.

Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:

- Entre p'ra cá. A casa é sua.

E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.

Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o aposento.

- Camarada!... Camarada!... - chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você está morrendo?

- Hein?... Hein?... - acordou o caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...

- Você está roncando como um trovão. Que é isso?

- É "pele curta", homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.

O outro não compreendeu, e ele explicou:

- A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!

E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 20 de fevereiro de 2022

UMA EXCURSÃO MILAGROSA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UMA EXCURSÃO MILAGROSA

Machado de Assis

 

 

 

Tenho uma viagem milagrosa para contar aos leitores, ou antes uma narração para transmitir, porque o próprio viajante é quem narra as suas aventuras e as suas impressões.

 

Se a chamo milagrosa é porque as circunstâncias em que foi feita são tão singulares, que a todos há de parecer que não podia ser senão um milagre. Todavia, apesar das estradas que o nosso viajante percorreu, dos condutores que teve e do espetáculo que viu, não se pode deixar de reconhecer que o fundo é o mais natural e possível deste mundo.

 

Suponho que os leitores terão lido todas as memórias de viagem, desde as viagens do Capitão Cook às regiões polares até as viagens de Gulliver, e todas as histórias extraordinárias desde as narrativas de Edgar Poe até os contos de Mil e Uma Noites. Pois tudo isso é nada à vista das excursões singulares do nosso herói, a quem só falta o estilo de Swift para ser levado à mais remota posteridade.

 

As histórias de viagem são as de minha predileção. Julgue-o quem não pode experimentá-lo, disse o épico português. Quem não há de ir ver as coisas com os próprios olhos da cara, diverte-se ao menos em vê-las com os da imaginação, muito mais vivos e penetrantes.

 

Viajar é multiplicar-se.

 

Mas, devo dizê-lo com toda a franqueza, quando ouço dizer a alguém que já atravessou por gosto doze, quinze vezes o Oceano, não sei que sinto em mim que me leva a adorar o referido alguém. Ver doze vezes o Oceano, roçar-lhe doze vezes a cerviz, doze vezes admirar as suas cóleras, doze vezes admirar os seus espetáculos, não é isto gozar na verdadeira extensão da palavra?

 

Se em vez do Oceano me falam nas florestas e contam-me mil episódios de uma viagem através do templo dos cedros e dos jequitibás, ouvindo o silêncio e a sombra, respirando os faustos daqueles palácios da natureza, gozando, vivendo, apesar dos tigres, das serpes, então o gozo pode mudar de aspecto, mas é o mesmo gozo elevado, puro, grandioso.

 

O mesmo se dá se a viagem for através dos cadáveres das cidades antigas, dos desertos da Arábia, dos gelos do Norte. Tudo chama o espírito, e o educa, e o eleva, e o transforma.

 

Das viagens sedentárias só conheço duas capazes de recrear. A Viagem à Roda do Meu Quarto, e a Viagem à Roda do Meu Jardim, de Maistre e Alphonse Karr.

 

Ora, com todo este gosto pelas viagens, ainda assim eu não desejaria fazer a viagem do herói desta narrativa. Viu muita coisa, é certo; e voltou de lá com a bagagem cheia dos meios de apreciar os fracos da humanidade. Mas por tantas coisas quantos trabalhos!

 

* * *

 

Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.

 

Mas para justificar o provérbio que diz: — debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.

 

Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo. Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma vela.

 

Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.

 

Tito não é nem alto, nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante, na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.

 

Como as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o reverso da cara e da cabeça. Parece que a natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e para os pés.

 

No moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua e sobre a qual ia quase quase passando um carro. A galga salva por Tito afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.

 

Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito de paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês, era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que sabendo da facilidade com que Tito rimava apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:

 

— Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China...

 

— Pode falar, respondeu Tito.

 

— Ouvi dizer que você fazia versos... É verdade?

 

Tito conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:

 

— É verdade.

 

— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte. Compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?

 

Quando o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se, e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar”.

 

O meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos polacos.

 

Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéias, tal era o seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.

 

Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda ao pescoço.

 

A mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo, herdara-o de uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga. À hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que nada ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.

 

Mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legítima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira que os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.

 

Passado o período agudo da doença, ficou-lhe esse resto de amor que, apesar da calma e da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.

 

O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real e deixar musas e amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes: recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível boa-fé, que neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito. Desenganado de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.

 

Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo, o outro limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios tinham seus inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar.

 

Aqui deixa de falar o autor para falar o protagonista. Não quero tirar o encanto natural que há de ter a narrativa do poeta reproduzindo as suas próprias impressões.

 

O poeta foi, como disse, abrir a porta.

 

Diz ele:

 

* * *

 

“... Mas, oh! pasmo! eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos louros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodita; eis que uma criatura assim invade o meu aposento, e estendendo a mão ordena-me que feche a porta e tome assento à mesa.

 

Eu estava assombrado. Maquinalmente voltei ao meu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se defronte de mim e começou a brincar com a galga, que dava mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a singular criatura, cravando os seus olhos nos meus, perguntou-me com uma doçura de voz nunca ouvida:

 

— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça alheia ou é a própria que te sombreia a fronte?

 

Esta indagação era feita de um modo tão insinuante que eu, sem inquirir o motivo da curiosidade, respondi imediatamente:

 

— Penso na injustiça de Deus.

 

— É contraditória a expressão: Deus é a justiça.

 

— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem quando o homem levantasse os olhos de amor para ela.

 

— Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as musas? Ainda não vieram a ti, como eternas consoladoras que são? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.

 

— Coitado de mim, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração.

 

— De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?

 

— Preciso do que me falta... e falta-me tudo.

 

— Tudo? É exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens, e isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?

 

— É! verdade.

 

— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?

 

— Para onde?

 

— Que importa? Queres vir?

 

— Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?

 

— Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje e pelo ar.

 

Levantei-me e recuei. A visão levantou-se também.

 

— Tens medo? perguntou ela.

 

— Medo, não, mas...

 

— Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.

 

Era de esperar um balão para a viagem aérea a que me convidava a inesperada visita; mas os meus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viram abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.

 

— Vamos, disse a visão.

 

E eu maquinalmente repeti:

 

— Vamos!

 

E ela tomou-me nos braços, subimos até o teto que se rasgou, e passamos ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado, estava o céu limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celestial, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e a relva dos campos.

 

Subimos.

 

Durou a ascensão algum tempo. Eu não podia pensar; ia atordoado e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos loiros da visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Eu, que me havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que naquele subir contínuo breve chegaríamos a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano meu! Subíamos sempre e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais subíamos, melhor respirávamos.

 

Isto passou rápido pela minha mente. Como disse, eu não pensava: ia subindo sem olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzir-me senão ao céu.

 

Em breve comecei a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e loura que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza. Lancei um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subíamos sempre. Os planetas passavam à minha ilharga como se foram corcéis desenfreados. Afinal penetramos em uma região inteiramente diversa das que havíamos atravessado naquela assombrosa viagem. Eu senti expandir-se-me a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? Não ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetrávamos nessa região ia-se a minha alma rompendo em júbilo; daí a algum tempo entrávamos em um planeta; começamos a fazer o trajeto a pé.

 

Caminhando, os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Pude ver então que me achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha; o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Stambul ou a poética Nápoles. Mais entrávamos, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegamos à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do palácio.

 

Eu quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurei uma pergunta à minha companheira.

 

— Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.

 

— No país das Quimeras?

 

— Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência.

 

Contentei-me com a explicação. Mas refleti sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era levado? Estava nisto, quando a fada me advertiu de que éramos chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grossos cachimbos de escumas do mar, e que se embriagavam, como outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À nossa entrada houve continência militar. Subimos pela grande escadaria, e fomos ter aos andares superiores.

 

— Vamos falar aos soberanos, disse a minha companheira.

 

Atravessamos muitas salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.

 

Afinal penetramos na grande sala. O Gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés, a uma espécie de solidéu, maior que o dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste mundo, e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a minuto armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.

 

Quando entrei na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que fui eu o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os gênios presentes fizeram o mesmo, porque segundo ouvi depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida. Depois da cerimônia da apresentação perguntou-me o soberano que tratamento tinha eu na terra para dar-me um cicerone correspondente.

 

— Eu tenho, se tanto, uma triste Mercê.

 

— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas quanto à Mercê, essa tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.

 

A este termo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado de mim, voltaram-me as costas, encolhendo os ombros e deitando-me um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso. Eu quis perguntar à minha companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão puxou-me pelo braço, e fez-me ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante. Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras... Oh! mas de um louro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios de corte, foram ao gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.

 

Quem eram aquelas raparigas? Eu estava de boca aberta. Indaguei da minha guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde havia passado a noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.

 

As Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetições das anteriores, foram-se da sala, não sem abraçarem-me ou beliscarem-me, quando espantado eu olhava para elas sem saber por que me tornara objeto de tanta jovialidade. O meu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu te conheço!

 

Depois que saíram todos, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo. Os três, eu, a fada condutora e o cicerone passamos à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaza e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.

 

Não pude disfarçar a impressão que me causava um todo assim. Voltei-me para a companheira de viagem e perguntei como se chamava aquela deusa.

 

— Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? É a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.

 

A estas palavras eu lembrei-me do Hissope. Não duvidava já de que estava no País das Quimeras; mas, raciocinei, para que Dinis falasse de algumas destas coisas é preciso que cá tivesse vindo, e voltasse como está averiguado.

 

Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passei a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam arranjando para vir a este mundo substituir as antigas.

 

Houve apresentação com o cerimonial do estilo. Estremeci quando pousei os lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psyché, onde se mirava de momento a momento.

 

Impetramos os três licença para continuar a visita do palácio e seguimos pelas galerias e salas. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Percorria essas salas diversas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a ucharia, dizia comigo; estão preparando alguma iguaria singular para o almoço do rei. Indaguei do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:

 

— Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as classes, estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que no seu planeta vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos presente deste elemento constitutivo.

 

— É massa quimérica?

 

— Da melhor que se há visto até hoje.

 

— Pode ver-se?

 

O cicerone sorriu-se; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco da massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou-me. Mal o tomei das mãos do chefe desfez-se a massa como se fora composta de fumo. Fiquei confuso; mas o chefe bateu-me no ombro:

 

— Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos e a nossa atmosfera não se enxota.

 

Este chefe tinha uma cara insinuante, mas como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo que não pude arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele ao dizer as últimas começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca. Este caso atraiu os companheiros, que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.

 

Os três continuamos o nosso caminho.

 

Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos à roda de mesas discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma calamidade pública. Continuei com o cicerone e fui ter a outra sala onde muitos Quiméricos, de boca aberta, escutavam as preleções de um filósofo do país.

 

O filósofo falava pausado e parecia embebido na música das próprias palavras. Tinha um gesto estudado, cheio de si, como de Vadius falando a Trissotin. Detive-me aí.

 

Dizia o filósofo:

 

— Meus caros filhos, o universo é um composto de maldade e invejas. Não há talento, por mais prodigioso, que não seja ferido pela seta da calúnia e do desdém dos egoístas. Como fugir a esta triste situação? De um modo único. Que cada um começando a viver deve logo compenetrar-se de que nada há acima de si, e desta convicção própria nascerá a convicção alheia. Quem há de contestar o talento a um homem que começa por senti-lo em si e diz que o tem?

 

Os ouvintes alçaram a voz e num coro exclamaram:

 

— Muito bem.

 

O filósofo continuou:

 

— Dirão que isso é vaidade; mas se bem compreendeis a nossa natureza e a natureza dos outros deveis saber que isso que lá embaixo se chama vaidade não é entre nós outra coisa mais do que a verdadeira tensão do espírito, a consciência da nossa elevação moral.

 

A preleção acabou com estas palavras. O filósofo desceu do espaldar em que estava e todas as Quimeras fizeram alas para deixá-lo passar.

 

Continuei a minha viagem.

 

Andei de sala em sala, de galeria em galeria, aqui visitando um museu, ali um trabalho ou um jogo; tive tempo de ver tudo, de tudo examinar com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, vi que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um Quimérico que havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.

 

Entretanto era a hora do almoço real.

 

À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico, e a encantadora fada que me havia levado àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir-me ao almoço; a resposta foi afirmativa; tomei assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; fui assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigaram-se fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Aproveitei a ocasião para saber como é que me conheciam aquelas assanhadas raparigas. Encostei-me a uma cadeira e indaguei da Utopia que se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se a uma das salas comigo, e aí perguntou-me:

 

— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?

 

— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.

 

— Oh! sempre poeta!

 

— É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?

 

— Em tua própria casa.

 

— Oh!

 

— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.

 

Compreendi afinal uma coisa que se me estava a dizer há tanto tempo. Sorri-me, e cravando os meus olhos nos da Utopia que tinha diante de mim, disse:

 

— Ah! sois vós, é verdade. Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem. Conforta-me ver-vos a todas de face e debaixo de forma palpável.

 

— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para a tua companhia? Olha, vê.

 

Voltei-me e vi a peregrina visão, minha companheira de viagem.

 

— Ah! é ela, respondi.

 

— É verdade. É a loura Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.

 

A Fantasia e a Utopia entrelaçaram as mãos e olhavam para mim. Eu, como que enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; quis fazer algumas perguntas, mas quando ia falar reparei que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulei alguma coisa; porém vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-se-lhes já pouco as feições, soltei estas palavras:

 

— Então, que é isto? por que se desfazem assim? — mais e mais as sombras desapareciam, corri à sala do jogo; espetáculo idêntico me esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, percorri algumas galerias e afinal saí à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco eu senti que me faltava o apoio aos pés e vi que estava solto no espaço.

 

Nesta situação soltei um grito de dor. Fechei os olhos e deixei-me ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte. Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, abri os olhos e vi que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que me parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu e cresceu até fazer-se do tamanho de uma grande esfera. A minha queda tinha alguma coisa de diabólica; soltava de vez em quando um gemido; o ar batendo-me nos olhos obrigava-me a fechá-los de instante a instante.

 

Afinal o ponto negro que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer-me com o aspecto da Terra. É Terra! disse comigo.

 

Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu a minha alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria; pensava, e pensava bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais se levantar. Tive um calafrio: vi a morte diante de mim e encomendei a minha alma a Deus. Assim fui, fui, ou antes vim, vim, até que — milagre dos milagres! — caí sobre a praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto. A primeira impressão, quando me vi em terra, foi de satisfação; depois tratei de ver em que região do planeta me achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verifiquei que me achava a dois passos de casa. Apressei-me a voltar aos meus pacíficos lares.

 

A vela estava gasta; a galga, estendida sobre a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Entrei e atirei-me sobre a cama, onde adormeci, refletindo no que acabava de acontecer-me.

 

* * *

 

Tal é a narrativa de Tito.

 

Esta pasmosa viagem serviu-lhe de muito.

 

Desde então adquiriu um olhar de lince capaz de descobrir, à primeira vista, se um homem tem na cabeça miolos ou massa quimérica.

 

Não há vaidade que possa com ele. Mal a vê lembra-se logo do que presenciou no reino das Bagatelas, e desfia sem preâmbulo a história da viagem.

 

Daqui vem que se era pobre e infeliz, mais infeliz e mais pobre ficou depois disto.

 

É a sorte de todos quantos entendem dever dizer o que sabem; nem se compra por outro preço a liberdade de desmascarar a humanidade.

 

Declarar guerra à humanidade é declará-la a toda a gente, atendendo-se a que ninguém há que mais ou menos deixe de ter no fundo do coração esse áspide venenoso.

 

Isto pode servir de exemplo aos futuros viajantes e poetas, a quem acontecer a viagem milagrosa que aconteceu ao meu poeta.

 

Aprendam os outros no espelho deste. Vejam o que lhes aparecer à mão, mas procurem dizer o menos que possam as suas descobertas e as suas opiniões.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 19 de fevereiro de 2022

AS GARRAFAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

AS GARRAFAS

Humberto de Campos

 

 

D. Eleonora havia mandado chamar o seu primo, o Dr. Alfredo Bonifácio, para uma consulta íntima, sobre diversos remédios que lhe haviam recomendado, quando abriram inesperadamente o portão da casa.

- É o Augusto! - exclamou, horrorizada, a pobre senhora, apanhando com o pente os lindos cabelos em desordem.

E torcendo as mãos, aflita, a andar de um lado para outro da sala de jantar:

- Minha Nossa Senhora! que horror! que eu hei de fazer, meu Deus!...

E ia, já, nos extremos da aflição, da angustia, do desespero, quando, abrindo a porta que comunicava aquele compartimento com a cozinha, teve uma ideia providencial:

- Esconde-te ali, Alfredo! Depressa! anda! anda!

E empurrou o primo, com o chapéu na mão, para dentro da despensa completamente às escuras.

O velho magistrado não era, felizmente, homem de grande perspicácia, desses que adivinham a passagem de estranhos por obra e graça do indício mais simples. Casado em segundas núpcias, confiava na mulher como confiava no Código. E enganando-se, tanto com o Código como com a mulher, foi com a alma tranquila, calma, satisfeita, que penetrou em casa, naquela noite, após uma palestra sisuda na residência do presidente do Tribunal.

Aberta a porta, o ilustre chefe de família entrou, e, pendurando a cartola na chapeleira, sentou-se, grave, à mesa do chá, ao lado da esposa carinhosa. E ia contar-lhe a sua conversa com o outro sacerdote da Justiça, quando ouviu um barulho de garrafas na dispensa

– Que é isso? Ouviste, Eleonora? - exclamou, assustado.

A mulher empalideceu, e ia, talvez, comprometer-se com uma denúncia, quando o velho, ouvindo de novo o barulho, se levantou de repente, encaminhando-se, firme, para a porta da despensa.

- Quem está aí? - gritou o magistrado, com o terror na garganta..

Na despensa escura, semeada de garrafas de cerveja e águas minerais, a situação do Dr. Bonifácio era delicadíssima. De pé, no meio do compartimento, não podia, sequer, mexer-se. Cada passo que aventurava, era um desastre, uma calamidade, que ia despertar, fora, com um rumor de vidros partidos, a atenção do dono da casa. Ao terceiro barulho, o velho tornou, severo, com o revólver em punho:

- Quem está aí?

E estava, já, resolvido a conformar-se com o silêncio das vezes anteriores, quando uma voz surda, cava, soturna, respondeu, de dentro:

- São as garrafas...

Satisfeito com a descoberta, o magistrado embolsou o revolver, e voltou, sereno, a tomar o seu chá.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 17 de fevereiro de 2022

EX CATHEDRA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

EX CATHEDRA

Machado de Assis
(Grafia original)

 

 

 

— Padrinho, vosmecê assim fica cégo.

— O que?

— Vosmecê fica cégo; lê que é um desespero. Não, senhor, dê cá o livro.

Caetaninha tirou-lhe o livro das mãos. O padrinho deu uma volta, e foi metter-se no gabinete, onde lhe não faltavam livros; fechou-se por dentro e continuou a ler. Era o seu mal; lia com excesso, lia de manhã, de tarde e de noute, ao almoço e ao jantar, antes de dormir, depois do banho, lia andando, lia parado, lia em casa e na chacara, lia antes de ler e depois de ler, lia toda a casta de livros, mas especialmente direito (em que era graduado), mathematicas e philosophia; ultimamente dava-se tambem ás sciencias naturaes.

Peior que cégo, ficou aluado. Foi pelos fins de 1873, na Tijuca, que elle começou a dar signaes de transtorno cerebral; mas, como eram leves e poucos, só em Março ou Abril de 1874 é que a afilhada lhe percebeu a alteração. Um dia, almoçando, interrompeu elle a leitura para lhe perguntar:

— Como é que eu me chamo?

— Como é que padrinho se chama? repetiu ella espantada. Chama-se Fulgencio.

— De hoje em diante, chamar-me-has Fulgencius.

E, enterrando a cara no livro, proseguiu na leitura. Caetaninha referiu o caso ás mucamas, que lhe declararam desconfiar desde algum tempo, que elle não andava bom. Imagine-se o medo da moça; mas o medo passou depressa para só deixar a piedade que lhe augmentou a affeição. Tambem a mania era restricta e mansa; não passava dos livros. Fulgencio vivia do escripto, do impresso, do doutrinal, do abstracto, dos principios e das formulas. Com o tempo chegou, não já á superstição, mas á allucinação da theoria. Uma de suas maximas era, que a liberdade não morre onde restar uma folha de papel para decretal-a; e um dia, acordando com a idea de melhorar a condição dos turcos, redigiu uma constituição, que mandou de presente ao ministro inglez, em Petrópolis. De outra occasião, metteu-se a estudar nos livros a anatomia dos olhos, para verificar se realmente elles podiam vêr, e concluiu que sim.

Digam-me, se, em taes condições, a vida de Caetaninha podia ser alegre. Não lhe faltava nada, é verdade, porque o padrinho era rico. Foi elle mesmo que a educou, desde os sete annos, quando perdeu a mulher; ensinou-lhe a ler e escrever, francez, um pouco de historia e geographia, para não dizer quasi nada, e incumbiu uma das mucamas de lhe ensinar crivo, renda e costura. Tudo isso é verdade. Mas Caetaninha fizera quatorze annos; e, se nos primeiros tempos bastavam os brinquedos e as escravas para divertil-a, era chegada a idade em que os brinquedos perdem de moda e as escravas de interesse, em que não ha leituras nem escripturas que façam de uma casa solitaria na Tijuca um paraiso. Descia algumas vezes, raras, e de corrida; não ia a theatros nem bailes; não fazia nem recebia visitas. Quando via passar na estrada uma cavalgada de homens e senhoras, punha a alma na garupa dos animaes, e deixava-a ir com elles, ficando-lhe o corpo, ao pé do padrinho, que continuava a ler.

Um dia, estando na chacara, viu parar ao portão um rapaz, montado n'uma bestinha, e ouviu que lhe perguntava se era alli a casa do doutor Fulgencio.

— Sim, senhor, é aqui mesmo.

— Podia fallar-lhe?

Caetaninha respondeu que ia ver; entrou em casa, e foi ao gabinete, onde achou o padrinho remoendo, com a mais voluptuaria e beata das expressões, um capitulo de Hegel. Mocinho? Que mocinho? Caetaninha disse-lhe que era um mocinho vestido de luto. De luto? repetiu o velho doutor fechando precipitadamente o livro; ha de ser elle. Esquecia-me dizer (mas ha tempo para tudo) que, tres mezes antes, fallecera um irmão de Fulgencio, no norte, deixando um filho natural. Como o irmão, dias antes de morrer, lhe escrevera recommendando o orphão que ia deixar, Fulgencio mandou que este viesse para o Rio de Janeiro. Ouvindo que estava alli um mocinho de luto, concluiu que era o sobrinho, e não concluiu mal. Era elle mesmo.

Parece que até aqui nada ha que destoe de uma historia ingenuamente romanesca: temos um velho lunatico, uma mocinha solitaria e suspirosa, e vemos despontar inopinadamente um sobrinho. Para não descer da região poetica em que nos achamos, deixo de dizer que a mula em que o Raymundo veiu montado, foi reconduzida por um preto ao alugador; passo tambem por alto as circumstancias da accommodação do rapaz, limitando-me a dizer que, como o tio, á força de viver lendo, esquecera inteiramente que o mandára buscar, nada havia em casa preparado para recebel-o. Mas a casa era grande e abastada; uma hora depois, estava o rapaz aposentado n'um lindo quarto, d'onde podia ver a chacara, a cisterna antiga, o lavadouro, basta folha verde e vasto céu azul.

Creio que ainda não disse a idade do hospede; tem quinze annos e um ameaço de buço; é quasi uma criança. Logo, se a nossa Caetaninha ficou alvoroçada, e as mucamas andam de um lado para outro espiando e fallando do «sobrinho de sinhô velho que chegou de fóra», é porque a vida alli não tem outros episodios, não porque elle seja homem feito. Essa foi tambem a impressão do dono da casa; mas, aqui vae a differença. A afilhada não advertia que o officio do buço é virar bigode, ou, se pensou n'isso, fel-o tão vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. Não assim o velho Fulgencio. Comprehendeu este que havia alli a massa de um marido, e resolveu casal-os; mas viu tambem que, a menos de lhes pegar nas mãos e mandar que se amassem, o acaso podia guiar as cousas por modo differente.

Uma idéia traz outra. A idéia de os casar pegou por um lado com uma de suas opiniões recentes. Era esta que as calamidades ou os simples dissabores nas relações do coração provinham de que o amor era praticado de um modo empyrico; faltava-lhe a base scientifica. Um homem e uma mulher, desde que conhecessem as razões physicas e metaphysicas d'esse sentimento, estariam mais aptos a recebel-o e nutril-o com efficacia, do que outro homem e outra mulher que nada soubessem do phenomeno.

— Os meus pequenos estão verdes, dizia elle comsigo: tenho tres a quatro annos diante da mim, e posso começar desde já a preparal-os. Vamos com logica; primeiro os alicerces, depois as paredes, depois o tecto..., em vez de começar pelo tecto... Dia virá em que se aprenda a amar como se aprende a ler... Nesse dia...

Estava atordoado, deslumbrado, delirante. Foi ás estantes, desceu alguns tomos, astronomia, geologia, physiologia, anatomia, jurisprudencia, politica, linguistica, abriu-os, folheou-os, comparou-os, extractou d'aqui e d'ali, até formular um programma de ensino. Compunha-se este de vinte capitulos, nos quaes entravam as noções geraes do universo, uma definição da vida, demonstração da existencia do homem e da mulher, organisação das sociedades, definição e analyse das paixões, definição e analyse do amor, suas causas, necessidades e effeitos. Em verdade, as materias eram crespas; elle entendeu tornal-as doceis, tratando-as em phrase corriqueira e chã, dando-lhes um tom puramente familiar, como a astronomia de Fontenelle. E dizia com emphasis que o essencial da fructa era o miolo, não a casca.

Tudo isso era engenhoso; mas aqui vai o mais engenhoso. Não os convidou a aprender. Uma noite, olhando para o céo, disse que as estrellas estavam brilhando muito; e o que eram as estrellas? acaso sabiam elles o que eram as estrellas?

— Não senhor.

D'aqui a iniciar uma descripção do universo era um passo. Fulgencio deu o passo, com tal presteza e naturalidade, que os deixou encantados e elles pediram a viagem toda.

— Não, disse o velho; não esgotemos tudo hoje, nem isto se entende bem se não de vagar; amanhã ou depois...

Foi assim, sorrateiramente, que elle começou a executar o plano. Os dois alumnos, assombrados com o mundo astronomico, pediam-lhe todos os dias que continuasse, e, posto que no fim dessa primeira parte Caetaninha ficasse um tanto confusa, ainda assim quiz ouvir as outras cousas que o padrinho lhe prometteu.

Não digo nada da familiaridade entre os dois alumnos, por ser cousa obvia. Entre quatorze e quinze annos a differença é tão pequena, que os portadores das duas edades, não tinha mais que dar a mão um ao outro. Foi o que aconteceu.

No fim de tres semanas pareciam ter sido criados juntos. Só isto bastava a mudar a vida de Caetaninha; mas Raymundo trouxe-lhe mais. Não ha dez minutos, vimol-a olhar com saudade as cavalgadas de homens e damas que passavam na estrada. Raymundo matou-lhe a saudade, ensinando-lhe a montaria, apezar da relutancia do velho, que temia algum desastre; mas este cedeu e alugou dois cavallos. Caetaninha mandou fazer uma linda amazona, Raymundo veiu á cidade comprar-lhe as luvas e um chicotinho, com o dinheiro do tio— já se sabe— que tambem lhe deu as botas e o demais apparelho masculino. D'ahi a pouco era um gosto vel-os ambos, galhardos e intrepidos, abaixo e acima da montanha.

Em casa, brincavam á larga, jogavam damas e cartas, cuidavam de aves e plantas. Brigavam muita vez; mas, segundo as mucamas, eram brigas de mentira, só para fazerem as pazes depois. Era o pico do arrufo. Raymundo vinha ás vezes á cidade, a mandado do tio. Caetaninha ia esperal-o ao portão, espiando anciosa. Quando elle chegava, brigavam, porque ella queria tirar-lhe os maiores embrulhos, a pretexto de que elle vinha cançado, e elle queria dar-lhe os mais leves, allegando que ella era fraquinha.

No fim de quatro mezes, a vida era totalmente outra. Póde-se até dizer que só então é que Caetaninha começou a usar rosas no cabello. Antes d'isso vinha muita vez despenteada para a mesa do almoço. Agora, não só se penteava logo cedo, mas até, como digo, trazia rosas, uma ou duas; estas eram, ou colhidas na vespera, por ella mesma, e guardadas em agua, ou na propria manhã, por elle, que ia levar-lh'as á janella. A janella era alta, mas Raymundo, pondo-se na ponta dos pés, e levantando o braço, conseguia dar-lhe as rosas em mão. Foi por esse tempo que elle adquiriu o séstro de mortificar o buço, puchando-o muito de um e outro lado. Caetaninha chegava a bater-lhe nos dedos, para lhe tirar tão máo costume.

Entretanto, as licções continuavam regularmente. Já tinham uma idéa geral do universo, e uma definição da vida, que nenhum d'elles entendeu. Assim chegaram ao quinto mez. No sexto, começou a demonstração da existencia do homem. Caetaninha não pôde suster o riso, quando o padrinho, expondo a materia, perguntou-lhes se elles sabiam que existiam e porque; mas ficou logo séria, e respondeu que não.

— Nem você?

— Nem eu, não, senhor, concordou o sobrinho,

Fulgencio iniciou uma demonstração em regra, profundamente cartesiana. A seguinte licção foi na chacara. Chovera muito nos dias anteriores; mas o sol agora alagava tudo de luz, e a chacara parecia uma linda viuva, que troca o véo do luto pelo do noivado. Raymundo, como se quizesse copiar o sol, (copiam-se naturalmente os grandes) despedia das pupillas um olhar vasto e longo, que Caetaninha recebia, palpitando, como a chacara. Fusão, transfusão, diffusão, confusão e profusão de seres e de cousas.

Emquanto o velho fallava, recto, logico, vagaroso, curtido de formulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dous alumnos faziam trinta mil esforços para escutal-o, mas vinham trinta mil incidentes distrahil-os. Foi a principio um casal de borboletas que brincavam no ar. Façam-me o favor de dizer o que é que póde haver extraordinario n'um casal de borboletas? Concordo que eram amarellas, mas esta circumstancia não basta a explicar a distracção. O facto de voarem uma atraz da outra, ora á direita, ora á esquerda, ora abaixo, ora acima, tambem não dá a razão do desvio, visto que nunca as borboletas voaram, em linha recta, como simples militares.

— O entendimento, dizia o velho, o entendimento, segundo eu já expliquei...

Raymundo olhou para Caetaninha, e achou-a olhando para elle. Um e outro pareciam confusos e acanhados. Ella foi a primeira que baixou os olhos ao regaço. Depois, levantou-os, afim de os levar a outra parte, mais remota, o muro da chacara; na passagem como os de Raymundo ali estivessem, ella encarou-os o mais rapidamente que pôde. Felizmente, o muro apresentava um expectaculo que a encheu de admiração: um casal de andorinhas (era o dia dos casaes) saltitava n'elle, com a graça peculiar ás pessoas aladas. Saltitavam piando, dizendo cousas uma á outra, o que quer que fosse, talvez isto— que era bem bom não haver philosophia nos muros das chacaras. Se não quando, uma d'ellas voou, provavelmente a dama, e a outra, naturalmente o garção, não se deixou ficar atraz: esticou as azas e seguiu o mesmo caminho. Caetaninha desceu os olhos á gramma do chão.

Quando a licção acabou, d'ahi a alguns minutos, ella pediu ao padrinho que continuasse, e, recusando este, tomou-lhe o braço e convidou-o a dar um giro na chacara.

— Está muito sol, contestou o velho.

— Vamos pela sombra.

— Faz muito calor.

Caetaninha propoz irem continuar na varanda; mas o padrinho disse-lhe mysteriosamente que Roma não se fez n'um dia, e acabou declarando que só dois dias depois continuaria a licção. Caetaninha recolheu-se ao quarto, esteve ali tres quartos de hora fechada, sentada, á janella, de um lado para outro, procurando as cousas que tinha na mão, e chegando ao cumulo de ver-se a si mesma, cavalgando, estrada acima, ao lado de Raymundo. De uma vez aconteceu-lhe ver o rapaz no muro da chacara; mas attentou bem, reconheceu que era um par de bezouros que zumbiam no ar. E dizia um d'elles ao outro:

— Tu és a flor da nossa raça, a flor do ar, a flor das flôres, o sol e a lua da minha vida.

Ao que respondia o outro:

— Ninguem te vence na belleza e na graça; o teu zumbir é um éco das fallas divinas; mas, deixa-me... deixa-me...

— Porque deixar-te, alma d'estes bosques?

— Já te disse, rei dos ares puros, deixa-me.

— Não me falles assim, feitiço e gala das mattas. Tudo por cima e em volta de nós está dizendo que me deves fallar de outra maneira. Conheces a cantiga dos mysterios azues?

— Vamos ouvil-a nas folhas verdes da larangeira.

— As da mangueira são mais bonitas.

— Tu és mais linda que umas e outras.

— E tu, sol da minha vida?

— Lua do meu ser, eu sou o que tu quizeres...

Era assim que os dous bezouros fallavam. Ella ouviu-os scismando. Como elles desapparecessem, ella entrou, viu as horas e saiu do quarto. Raymundo estava fóra; ella foi esperal-o ao portão, dez, vinte, trinta, quarenta, cincoenta minutos. Na volta disseram pouco; uniram-se e separaram-se duas ou tres vezes. Da ultima vez foi ella que o trouxe á varanda, para mostrar-lhe um enfeite que julgava perdido e acabava de achar. Façam-lhe a justiça de crer que era pura mentira. Entretanto, Fulgencio antecipou a licção; deu-a no dia seguinte, entre o almoço e o jantar. Nunca a palavra lhe saiu tão limpida e singella. E assim devia ser; tratava-se da existencia do homem, capitulo profundamente methaphysico, em que era preciso considerar tudo e por todos os lados.

— Estão entendendo? perguntava elle.

— Perfeitamente.

E a licção seguia até o fim. No fim, deu-se a mesma cousa da vespera; Caetaninha, como se tivesse medo de ficar só, pediu-lhe para continuar ou passear; elle recusou uma e outra cousa, bateu-lhe paternalmente na cara, e foi encerrar-se no gabinete.

— Para a semana, pensava o velho doutor, dando volta á chave, para a semana entro na organisação das sociedades; todo o mez que vem e o outro é para a definição e classificação das paixões; em maio, passaremos ao amor... já será tempo...

Emquanto elle dizia isto, e fechava a porta, alguma cousa resoava do lado da varanda— um trovão de beijos, segundo disseram as lagartas da chacara; mas, para as lagartas qualquer pequeno rumor vale um trovão. Quanto aos auctores do ruido nada positivo se sabe. Parece que um maribondo, vendo Caetaninha e Raymundo unidos n'essa occasião, concluiu da coincidencia para a consequencia, e entendeu que eram elles; mas um velho gafanhoto demonstrou a inanidade do fundamento, allegando que ouvira muitos beijos, outr'ora, em logares onde nem Raymundo nem Caetaninha puzera os pés. Convenhamos que este outro argumento não prestava para nada; mas, tal é o prestigio de um bom caracter, que o gafanhoto foi acclamado como tendo ainda uma vez defendido a verdade e a razão. E d'ahi pode ser que fosse assim mesmo. Mas um trovão de beijos? Supponhamos dous; supponhamos tres ou quatro.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 16 de fevereiro de 2022

MILITARISMO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

MILITARISMO

Humberto de Campos

 

 

 

O militar, por menos apegado que seja as coisas da sua profissão, acaba necessariamente se habituando com elas, identificando-se com o quartel. A influência das armas é tamanha, naqueles que a elas se votam, que se reconhece na rua, ao menor golpe de vista, mesmo quando vestido à paisana, o tenente, o capitão, o major, o coronel. Ao ver, na via pública, um oficial do Exército envergando um jaquetão ou um fraque, a impressão que se tem é de que falta alguma coisa à sua elegância. Por mais correto que ele esteja nas suas roupas apuradas, lembra-nos, sempre, um tigre metido na pele de um urso, ou um leão enfiado, por modéstia, no couro de um elefante.

 

E essa tirania da farda não se mostra de modo menos acentuado na fisionomia moral das suas vítimas. Absorvido pelo seu pensamento de glória, o soldado revela-se em toda a parte e em todas as circunstâncias: no calor das palestras, na energia da vontade, na severidade da vida, na intransigência das atitudes, na disciplina do porte, e, até, às vezes, no emprego do vocabulário, a que procura dar, aqui fora, as mesmas aplicações. O caso do tenente Panfílio Godofredo de Medeiros é uma demonstração pública e policial dessa verdade.

 

Militar garboso, bravo, decidido, o tenente Panfílio utilizava os dias de serenidade da pátria passeando elegantemente na Avenida, quando viu, uma tarde, em certa casa de chá, uma criatura que lhe fez acordar, tocando alvorada, todos os clarins do coração. Ousado e robusto, pôs-se, logo, em atividade, e de tal modo que, no dia seguinte, sabia já o suficiente para um vigoroso ataque aos muros da fortaleza: a dama era casada, morava à rua Voluntários da Pátria, em uma casa de portão de ferro, o qual só se abria com ordem especial do marido.

 

Informado de tudo isso, o tenente apareceu, no dia seguinte, diante do palacete, e espremeu, comovido, o tumor sonoro da campainha. O silêncio era absoluto na casa, e ninguém atendeu. Duas, três, quatro vezes repetiu ele o sinal, mas inutilmente. E batia, já, em retirada, quando ouviu um chocalhar de corrente no portão. Voltou-se, e viu: era o jardineiro que abria a grade para dar passagem ao dono da casa, passando, de novo, a corrente de cadeado.

 

Atordoado pelo seu pensamento de ventura, e, não menos, pela consciência da sua superioridade de militar, o oficial não teve dúvidas: parou, deu meia volta, e marchou, firme, no rumo do cavalheiro que saíra da casa. Estacaram, pálidos, um diante do outro.

 

— Que deseja o senhor? — bradou, com a alma nos olhos, o marido da moça.

 

Mão no revólver, disfarçando a tempestade do coração, o tenente rugiu, apenas, seco:

 

— A senha.

 

E atracaram-se.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 14 de fevereiro de 2022

EVOLUÇÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

EVOLUÇÃO

Machado de Assis

 

 

 

Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta: “Que valem nomes? perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.” Vamos ao cheiro do Benedito.

E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eram usava um processo químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros — salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do… lá me ia escapando o nome do joalheiro; — fiquemos na Rua do Ouvidor.

Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom, — ou para melhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter idéias de toda parte e de toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.

Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber quem éramos.

Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens.

— Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele.

— Não, decerto. O senhor tem filhos?

— Nenhum.

— Nem eu. Não será ainda em cinqüenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

— Bonita idéia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos.

— Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa.

— Bonita e justa, redargüiu ele com amabilidade. Sim, senhor, tem razão: — o Brasil está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem — arejando o espírito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o café e o cognac, disse-me ele, apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:

— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela idéia do Brasil engatinhando.

— Ah!

— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade.

E referiu muita coisa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.

— Não irei adiante, disse eu sorrindo também.

— Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a beleza que era. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza.

Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-múndi, dois mapas do Brasil. A secretária era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de cristal, — “cristal de rocha”, disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras coisas. Na sala contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões.

Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele pegou da idéia, e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o Benedito.

— Que é isto? exclamei.

— Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa.

Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a idéia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano.

— Quero vê-lo ministro, disse-lhe.

Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa.

— Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão-somente ministro industrial. Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos. Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro…

— Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as coisas arranjadas em Londres.

— Sim?

— Perfeitamente.

Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também coligir algumas coisas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns. Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens.

Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o discurso de estréia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatórios, livros de economia política, alguns com páginas marcadas, por meio de tiras de papel rubricadas assim: — Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era sincero, minucioso e cálido. Falava-me daquelas coisas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia.

— Dentro de dois anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada.

— E os capitalistas ingleses?

— Que tem?

— Estão contentes, esperançados?

— Muito; não imagina.

Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, — ou porque a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio do discurso que devia proferir dali a dias.

— Está ainda em borrão, explicou-me; mas as idéias capitais ficam. E começou:

No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro…

Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação), achei ali mais um efeito da lei da evolução, tal como a definiu Spencer, — Spencer ou Benedito, um deles.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 13 de fevereiro de 2022

LÂMPADAS E VENTILADORES (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS

 

LÂMPADAS E VENTILADORES

Humberto de Campos

 

 

 

— A resistência física da mulher, senhor conselheiro, — dizia-me, uma destas tardes, saboreando voluptuosamente o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o conselheiro Abelardo de Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno que merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos psicólogos. O poder da vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário, formidável. Senão, observe. Há um baile na sua casa, ao qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que lhes empresta a alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente, continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou, como hoje acontece, "rag time" sobre "rag time", "fox-trot" sobre "fox-trot", tango sobre tango, maxixe sobre maxixe.

 

— Perdão! — interrompi. Em minha casa não se dançaria isso!

 

— Eu sei! eu sei! — tornou o antigo magistrado, batucando a colherinha no fundo da taça, para dissolver o sorvete. — Eu sei disso. É uma simples comparação!

 

E continuou:

 

— Na festa, enquanto se dança ninguém se fatiga. As moças rodopiam, correm, pulam, divertem-se com alarido, sem atentarem para as horas, que se passam. Às três da manhã estão ainda tão lépidas, tão dispostas, como no momento em que entraram. E assim continuam, pela festa adiante. De repente, dá-se o baile por terminado. A música retira-se, começam as despedidas, aproximam-se, buzinando, os "landaulets" dos convidados. E é uma calamidade: as moças, que, dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal podem, agora, dar um passo! Estão todas cansadas, fatigadas, com os pés rebentados, de modo a ser necessário levá-las, uma a uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...

 

A tarde estava quente, abafada, ameaçando tempestade. Na sala da sorveteria onde tomávamos chá, os ventiladores ronronavam, como gatos, refrescando o ambiente. Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto da Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou, rolando pelo céu. Nesse momento, as lâmpadas do salão, abertas àquela hora, apagaram-se todas, ao mesmo tempo que, dependendo da mesma corrente elétrica, os ventiladores foram, pouco a pouco, diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves que acabam de chegar de um grande voo. Estranhando aquela interrupção, ao mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a cabeça venerável, e sentenciou, apontando o teto:

 

— As moças, meu velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que rodopiaram sem descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores, cansadas, exaustas, quase mortas!

 

Lá fora, no ar pesado, um novo trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como grãos de milho, tamborilando descompassadamente no chão.

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 11 de fevereiro de 2022

ETERNO! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ETERNO!

Machado de Assis

 

 

 

- Não me expliques nada, disse eu, entrando no quarto; é o negócio da baronesa.

Norberto enxugou os olhos e sentou-se na cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma cadeira, pousei a barba no dorso, e proferi este breve discurso:

- Mas, meu pateta, quantas vezes queres que te diga que acabes com essa paixão ridícula e humilhante? Sim, senhor, humilhante e ridícula, porque ela não faz caso de ti; e demais, é arriscado. Não? Verás se o é, quando o barão desconfiar que lhe arrastas a asa à mulher. Olha que ele tem cara de maus bofes.

Norberto meteu as unhas na cabeça, desesperado. Tinha-me escrito cedo, pedindo que fosse confortá-lo e dar-lhe algum conselho; esperara-me na rua, até perto de uma hora da noite, defronte da casa de pensão em que eu morava; contava-me na carta que não dormira, que recebera um golpe terrível, falava em atirar-se ao mar. Eu, apesar de outro golpe que também recebera, acudi ao meu pobre Norberto. Éramos da mesma idade, estudávamos medicina, com a diferença que eu repetia o terceiro ano, que perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; não em cabendo igual fortuna, por havê-los perdido, vivia de uma mesada que me dava um tio da Bahia, e das dívidas que o bom velho pagava semestralmente. Pagava-as, e escrevia-me logo uma porção de coisas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse estudando até ser doutor. Doutor, para quê? dizia comigo. Pois se nem o sol, nem a lua, nem as moças, nem os bons charutos Vilegas eram doutores, que necessidade tinha eu de o ser? E tocava a rir, a folgar, a deixar correr semanas e credores.

Falei de um golpe recebido. Era uma carta do tio, vinda com a do Norberto, naquela mesma manhã. Abri-a antes da outra, e li-a com pasmo Já me não tuteava; dizia cerimoniosamente: "Sr. Simeão Antônio de Barros, estou farto de gastar à toa o meu dinheiro com o senhor. Se quiser concluir os estudos, venha matricular-se aqui, e morar comigo. Se não, procure por si mesmo recursos; não lhe dou mais nada." Amarrotei o papel, finquei os olhos numa litografia muito ruim do Visconde de Sepetiba, que já achei pendente de um prego, no meu quarto de pensão, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco para baixo. Bradei que podia guardar o seu dinheiro, que eu tinha vinte anos, - o primeiro dos direitos do homem, anterior aos tios e outras convenções sociais.

A imaginação, madre amiga, apontou-me logo uma infinidade de recursos, que bastavam a dispensar os magros cobres de um velho avarento, mas, passada essa primeira impressão, e relida a carta, entrei a ver que a solução era mais árdua do que parecia. Os recursos podiam ser bons e até certos; mas eu estava tão afeito a ir a Rua da Quitanda receber a pensão mensal e a gastá-la em dobro, que mal podia adotar outro sistema.

Foi neste ponto que abri a carta do amigo Norberto e corri à casa dele. Já sabem o que lhe disse; viram que ele meteu as unhas na cabeça, desesperado. Saibam agora que, depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de mim outros conselhos.

- Quais?

Não me respondeu.

- Que compres uma pistola ou uma gazua? algum narcótico?

- Para que estás caçoando comigo?

- Para fazer-te homem.

Norberto deu de ombros, com um laivozinho de escárnio ao canto da boca. Que homem? Que era ser homem senão amar a mais divina criatura do mundo e morrer por ela?

A Baronesa de Magalhães, causa daquela demência, viera pouco antes da Bahia, com o marido, que antes do baronato, adquirido para satisfazer a noiva, era Antônio José Soares de Magalhães. Vinham casados de fresco; a baronesa tinha menos trinta anos que o barão; ia em vinte e quatro. Realmente era bela. Chamavam-lhe, em família, Iaiá Lindinha. Como o barão era velho amigo do pai de Norberto, as duas famílias uniram-se desde logo.

- Morrer por ela? disse eu.

Jurou-me que sim; era capaz de matar-se. Mulher misteriosa! A voz dela entrava-lhe pelos ossos... E, dizendo isto, rolava na cama, batia com a cabeça, mordia os travesseiros. Às vezes, parava, arquejando; logo depois tornava às mesmas convulsões, abafando os soluços e os gritos, para que os não ouvissem do primeiro andar.

Já acostumado às lágrimas do meu amigo, desde a vinda da baronesa, esperei que elas acabassem, mas não acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a ele, bradei-lhe que era uma criançada, e despedi-me; Norberto pegou-me na mão, para que ficasse, não me tinha dito ainda o principal.

- É verdade; que é?

- Vão-se embora. Estivemos lá ontem, e ouvi que embarcam sábado.

- Para a Bahia?

- Sim.

- Então, vão comigo.

Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao pé dele. Norberto escutou-me alvoroçado. Na Bahia? Iríamos juntos; éramos íntimos, os pais não recusariam este favor à nossa jovem amizade. Confesso que o plano pareceu-me excelente, e demo-nos a ele com afinco. A mãe, apesar de muita lágrima que teria de verter ao despegar-se do filho, cedeu mais prontamente do que supúnhamos. O pai é que não cedeu nada. Não houve rogos nem empenhos; o próprio barão, que eu tive a arte de trazer ao nosso propósito, não alcançou do velho amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa e velar por ele. O pai foi inflexível.

Podem imaginar o desespero do meu amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa dela, com a família, até onze horas; mas, com o pretexto de passar comigo a última noite da minha estada aqui, veio realmente chorar tantas e tais lágrimas, como nunca as vi chorar jamais, nem antes nem depois. Não podia descrer da paixão, nem presumir consolá-la; era a primeira. Até então, ambos nós só conhecíamos os trocos miúdos do amor; e, por desgraça dele a primeira moeda grande que achara, não era ouro nem prata, senão ferro, duro ferro, como a do velho Licurgo, forjada como mesmo amargo vinagre.

Não dormimos. Norberto chorava, arrepelava-se, pedia a morte, construía planos absurdos ou terríveis. Eu, arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma coisa que o consolasse; era pior, era como se falasse de dança a uma perna dolorida. Consegui que fumasse um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os às dúzias, sem acabar nenhum. Às três horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro, - não logo, mas daí a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa idéia da cabeça unicamente no interesse dele próprio.

- Ainda se fosse útil, vá, disse-lhe eu; mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na porta, porque a mulher, se não gosta de ti, e te vê lá, é capaz de perceber logo o motivo da tua viagem, e não te recebe.

- Que sabes tu?

- Pode receber-te, mas não há certeza, acho eu. Crês que ela goste de ti?

- Não digo que sim, nem que não.

Contou-me episódios, gestos, ditos, coisas ambíguas ou insignificantes; depois vinha uma reticência de lágrimas, murros no peito, clamor de angústia, a dor ia-se-me comunicando; padecia com ele, a razão cedia à compaixão, as nossas naturezas fundiam-se em uma só lástima. Daí esta promessa que lhe fiz.

- Tenho uma idéia. Vou com eles, já nos conhecemos, é provável que freqüente a casa; eu então farei uma coisa: sondo-a a teu respeito. Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses em outra coisa; mas se achar alguma inclinação, pouca que seja, aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca.

Norberto aceitou alvoroçado a proposta; era uma esperança. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que a observaria bem, sem temor, e, pela sua parte, jurou-me que não hesitaria um instante. E teimava comigo que não perdesse nada; que, às vezes, um indício pequeno valia muito, uma palavrinha era um livro; que, se pudesse, aludisse ao desespero em que o deixava. Para peitar a minha sagacidade, afirmou que o desengano matá-lo-ia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na morte e na eternidade. Não achei boca para replicar-lhe que isto era o mesmo que obrigar-me a só mandar boas notícias. Naquela ocasião, apenas sabia chorar com ele.

A aurora registrou o nosso pacto imoral. Não consenti que ele fosse a bordo despedir-se. Parti. Não falemos da viagem... Ó mares de Homero, flagelados por Euros, Bóreas e o violento Zéfiro, mares épicos, podeis sacudir Ulisses, mas não lhe dais as aflições do enjôo. Isso é bom para os mares de agora, e particularmente para aqueles que me levaram daqui à Bahia. Só depois de chegar ante a cidade, ousei aparecer à nossa dona magnífica, tão senhora de si, como se acabasse de dar um passeio apenas longo.

- Não tem saudades do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de intróito.

- Certamente.

O barão veio indicar-me os lugares que a gente via do paquete, - ou a direção de outros. Ofereceu-me a casa dele, no Bonfim. Meu tio veio a bordo, e, por mais que quisesse fazer-se tétrico, senti-lhe o coração amigo. Via-me, único filho da irmã finada, - e via-me obediente. Não podia haver para mim melhores impressões de entrada. Divina juventude! as coisas novas pagavam-me em dobro as coisas velhas.

Dei os primeiros dias ao conhecimento da cidade; mas não tardou que uma carta do meu amigo Norberto me chamasse a atenção para ele. Fui ao Bonfim. A baronesa - ou Iaiá Lindinha, que era ainda o nome dado por toda a gente, - recebeu-me com tanta graça, e o marido era tão hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular comissão que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu amigo, e a necessidade de consolá-lo ou desenganá-lo era superior a qualquer outra consideração. Confesso até uma singularidade; agora que estavam separados entrou-me na alma a esperança de que ela não desgostasse dele, - justamente o que eu negava antes. Talvez fosse o desejo de o ver feliz; podia ser uma instigação da vaidade que me acenasse com a vitória em favor do desgraçado.

Naturalmente, conversamos do Rio de Janeiro. Eu dizia-lhe as minhas saudades, falava das coisas que estava acostumado a ver, das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras de todos os dias das casas, das afeições... Oh! as afeições eram os laços mais apertados. Tinha amigos: os pais de Norberto...

- Dois santos, interrompeu a moça; meu marido, que conhece o velho desde muitos anos, conta dele coisas curiosas. Sabe que casou por uma paixão fortíssima?

- Adivinha-se. O filho é o fruto expressivo do amor dos dois. Conheceu bem o meu pobre Norberto?

- Conheci; ia lá à casa muitas vezes.

- Não conheceu.

Iaiá Lindinha franziu levemente a testa.

- Perdoe-me se a desminto, continuei com vivacidade. Não conheceu a melhor alma, a mais pura e a mais ardente que Deus criou. Talvez que ache parcial por ser amigo. A verdade é que ninguém me prende mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Norberto! Não imagina que homem talhado para dois ofícios ao mesmo tempo, arcanjo e herói, - para dizer à terra as delícias do céu, e para escalar o céu, se for preciso ir lá levar as lamentações humanas...

Só no fim desta fala compreendi que era ridícula. Iaiá Lindinha, ou não a entendeu assim, ou disfarçou a opinião; disse-me somente que a minha amizade era entusiasta, mas que o meu amigo parecia boa pessoa. Não era alegre, ou tinha crises melancólicas. Disseram-lhe que ele estudava muito...

- Muito.

Não insisti para não atropelar os acontecimentos... Que o leitor me não condene sem remissão nem agravo. Sei que o papel que eu fazia não era bonito; mas já lá vão vinte e sete anos. Confio do Tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes; quando menos, em cascalho. Assim é que, se um homem de Estado escrever e publicar as suas memórias, tão sem escrúpulo, que lhes não falte nada, nem confidências pessoais, nem segredos do governo, nem até amores, amores particularíssimos e inconfessáveis, verá que escândalo levanta o livro. Dirão e dirão bem, que o autor é um cínico, indigno dos homens que confiaram nele e das mulheres que o amaram. Clamor sincero e legítimo, porque o caráter público impõe muitos resguardos; os bons costumes e o próprio respeito às mulheres amadas constrangem ao silêncio...

... Mas deixai pingar os anos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico, psicológico, anedótico. Hão de lê-lo a frio; estudar-se-á nele a vida íntima do nosso tempo a maneira de amar, a de compor os ministérios e deitá-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam eleições e galanteios, se eram usados xales ou capas, que veículos tínhamos, se os relógios eram trazidos à direita ou à esquerda, e multidão de coisas interessantes para a nossa história pública e íntima. Daí a esperança que me fica, de não ser condenado absolutamente pela consciência dos que me lêem. Já lá vão vinte e sete anos!

Gastei mais de meio em bater à porta daquele coração, a ver se lá achava o Norberto; mas ninguém me respondia de dentro, nem o próprio marido. Não obstante, as cartas que mandava ao meu pobre amigo, se não levavam esperanças, também não levavam desenganos. Houve-as até mais esperançosas que desenganadas. A afeição que lhe tinha e o meu amor-próprio conjugavam as forças todas para espertar nela a curiosidade e a sedução de um mistério remoto e possível.

Já então as nossas relações eram familiares. Visitava-os a miúdo. Quando lá não ia três noites seguidas, vivia aflito e inquieto; corria a vê-los na quarta noite, e era ela que me esperava ao portão da chácara, para dizer-me nomes feios, ingrato, preguiçoso, esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa não deixava de estar ali à espera, com a mão prestes a apertar a minha, - às vezes, trêmula, - ou seria a minha que tremia; não sei.

- Amanhã não posso vir, dizia-lhe algumas noites, à despedida, baixo, no vão de uma janela.

- Por quê?

Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma obrigação de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de promessa, mas ficava desconsolada. Comecei a escrever menos ao Norberto e a falar pouco de Iaiá Lindinha, como quem não ia à casa dela. Tinha fórmulas diferentes: "Ontem encontrei o barão no largo do Palácio; disse-me que a mulher está boa". Ou então: "Sabes quem vi há três dias no teatro? A baronesa". Não relia as cartas, para não encarar a minha hipocrisia. Ele, pela sua parte, também ia escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moça não aparecia mais o nome de Norberto; convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste defunto sem galas mortuárias

Beirávamos o abismo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula celeste, - incongruência para os que não andam namorados. A morte resolveu o problema, levando consigo o barão, por meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e três de março de 1861, às seis horas da tarde. Era um excelente homem, a quem a viúva pagou em preces o que lhe não dera em amor.

Quando eu lhe pedi, três meses depois, que, acabado o luto, casasse comigo, Iaiá Lindinha não estranhou nem me despediu. Ao contrário, respondeu que sim, mas não tão cedo; punha uma condição: que concluísse primeiro os estudos, que me formasse. E disse isto com os mesmos lábios, que pareciam ser o único livro do mundo, o livro universal, a melhor das academias, a escola das escolas. Apelei dela para ela; escutou-me inflexível. A razão que me deu foi que meu tio podia recear que, uma vez casado, interromperia a carreira.

- E com razão, concluiu. Ouça-me: só me caso com um doutor.

Cumprimos ambos a promessa. Durante algum tempo andou ela pela Europa, com uma cunhada e o marido desta; e as saudades foram então as minhas disciplinas mais duras. Estudei pacientemente; despeguei-me de todas as vadiações antigas. Recebi o capelo na véspera da bênção matrimonial; e posso dizer, sem hipocrisia, que achei o latim do padre muito superior ao discurso acadêmico.

Semanas depois, pediu-me Iaiá Lindinha que viéssemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido, confesso que um pouco atordoado. Cá viria achar o meu amigo Norberto, se é que ele ainda residia aqui. Ia em mais de três anos que nos não escrevíamos; já antes disso as nossas cartas eram breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento? Dos precedentes? Viemos; não contei nada a minha mulher.

Para quê? Era dar-lhe notícia de uma aleivosia oculta, dizia comigo. Ao chegar, pus esta questão a mim mesmo, se esperaria a visita dele, se iria visitá-lo antes; escolhi o segundo alvitre, para avisá-lo das coisas. Engenhei umas circunstâncias especiais, curiosas, acarretadas pela Providência, cujos fios ficam sempre ocultos aos homens. Não me ria, note-se bem; minha imaginação compunha tudo isso com seriedade.

No fim de quatro dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio Comprido, estava casado. Tanto melhor. Corri a casa dele. Vi no jardim uma preta amamentando uma criança, outra criança de ano e meio, que recolhia umas pedrinhas do chão, acocorada.

- Nhô Bertinho, vai dizer a mamãe que está aqui um moço procurando papai.

O menino obedeceu; mas, antes que voltasse, chegava de fora o meu velho amigo Norberto. Conheci-o logo, apesar das grandes suíças que usava; lançamo-nos nos braços um do outro.

- Tu aqui? Quando chegaste?

- Ontem:

- Estás mais gordo, meu velho! Gordo e bonito. Entremos. Que é? continuou ele inclinando-se para Nhô Bertinho, que lhe abraçava uma das pernas.

Pegou dele, alçou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco menos depois, tendo-o num braço, apontou para mim.

- Conheces este moço?

Nhô Bertinho olhava espantado, com o dedo na boca. O pai contou-lhe então que eu era um amigo de papai, muito amigo, desde o tempo em que vovô e vovó eram vivos...

- Teus pais morreram?

Norberto fez-me sinal que sim, e acudiu ao filho, que com as mãozinhas espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois, foi à criança que mamava, não a tirou do regaço da ama, mas disse-lhe muitas coisas ternas, chamou-me para vê-la, era uma menina. Revia-se nela, encantado. Tinha cinco meses por ora; mas se eu voltasse ali quinze anos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos gordos! Não podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a.

- Entra, anda ver minha mulher. Jantas conosco.

- Não posso.

- Mamãe, está espiando, disse Nhô Bertinho.

Olhei, vi uma moça à porta da sala, que dava para o jardim; a porta estava aberta, ela esperava-nos. Subimos os cinco degraus; entramos na sala. Norberto pegou-lhe nas mãos, e deu-lhes dois beijos. A moça quis recuar, não pôde, ficou muito corada.

- Não te vexes, Carmela, disse ele. Sabes quem é este sujeito? É aquele Barros de quem te falei muitas vezes, um Simeão, estudante de medicina... A propósito, por que é que não me respondeste à participação do casamento?

- Não recebi nada, respondi.

- Pois afirmo que foi pelo correio.

Carmela ouvia o marido com admiração; ele tanto fez, que foi sentar-se ao pé dela, para lhe reter a mão, às escondidas. Eu fingia não ver nada, falava dos tempos acadêmicos, de alguns amigos, da política, da guerra, tudo para evitar que ele me perguntasse se estava ou não casado. Já me arrependia de ter ido ali; que lhe diria, se ele tocasse ao ponto e indagasse da pessoa? Não me falou em nada; talvez soubesse tudo.

A conversação prolongou-se; mas eu teimei em sair, e levantei-me, Carmela despediu-se de mim com muita afabilidade. Era bela; os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de santa. Certo é que o marido tinha-lhe adoração.

- Viste-a bem? perguntou-me ele à porta do jardim. Não te digo o sentimento que nos prende, estas coisas sentem-se, não se exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente criança. Creio que sim; criança eterna, como é eterno o meu amor.

Entrei no tílburi, prometendo ir lá jantar um daqueles dias.

- Eterno! disse comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher.

E, voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe:

- O que é eterno?

- Com perdão de V.S.a, acudiu ele, mas eu acho que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que, se não lhe quebro a cara um destes dias, a minha alma se não salve. Pois o maroto parece eterno no lugar; tem aí não sei que compadres... Outros dizem que... Não me meto nisso... Lá quebrar-lhe a cara...

Não ouvi o resto: fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glória. O demônio continuava a falar; paguei, e desci até à Praia da Glória, meti-me pela do Russell e fui sair à do Flamengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e morrer. Cá dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro: O que é eterno? As ondas, mais discretas que ele, não me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam.

Cheguei ao Hotel de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe:

- O que é eterno, Iaiá Lindinha?

Ela, suspirando:

- Ingrato! é o amor que te tenho.

Jantei sem remorsos; ao contrário, tranqüilo e jovial. Coisas do Tempo! Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes...

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 10 de fevereiro de 2022

O LEILÃO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O LEILÃO

Humberto de Campos

 

 

 

- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!

Foi ao som desse pregão intempestivo que o Dr. Alfredo Camilo despertou, alta madrugada, na sua cama de casal, na alcova suavemente iluminada por uma pequenina lâmpada de cabeceira. Espantado, o ilustre médico voltou-se no leito, e percebeu que era a sua jovem esposa, a formosíssima D. Belita, que insistia, no meio de um sono agitado:

- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!

Sentando-se na cama, o Dr. Alfredo bateu no ombro nu da esposa, sacudindo-a, com força:

- Belitinha! Belitinha! Que é isso? Que é que tens? Acorda!

- Hein? Hein? Que é? Que é que tem? - exclamou a moça, despertando, espantada, esfregando os olhos com as mãos.

- Estás com pesadelo? - indagou o marido.

- Não! Era um sonho... Por que?

- Estavas para aí fazendo leilão...

- Ahn! - exclamou a linda senhora, espreguiçando-se. - Uma extravagância... uma tolice...

- Conta! Quero saber o que era! - pediu o esposo; enciumado.

- Não vale a pena, Alfredo!

- Conta! - exigiu o Otelo.

D. Belita agasalhou a cabecita de ouro no peito do marido, e começou a narrar, de olhos fechados:

- Eu sonhei que me achava em um mercado, não sei em que cidade, nem em que país onde estavam fazendo um leilão de homens, para maridos, os quais eram disputados por centenas de mulheres. De repente, depois de várias arrematações, levaram um rapagão alto, forte, formoso, uma verdadeira beleza, que encantou, logo, todas as pretendentes. Ao vê-lo, a Luisinha, mulher do Alonso, que também estava presente, lançou duzentos mil réis. Eu lancei trezentos. A Abigail ofereceu quinhentos. Eu cobri o lance com oitocentos, e estava oferecendo um conto e duzentos quando tu me despertaste.

Com os olhos presos na cabeça da esposa, o Dr. Alfredo ouvia, em silêncio, essa história, quando, chegada a narração ao fim, protestou, revoltado:

- Sim, senhora! Uma senhora honesta, e casada, a ter sonhos destes!...

Não convindo, porém, brigar, àquela hora, por um simples sonho, um mero fenômeno de imaginação, procurou consolar-se, indagando:

- E eu, não estava lá, não?

- Você? Não vi.

- Mas, se eu estivesse lá, as mulheres dariam uma fortuna... Não?

D. Belita sorriu, e, esfregando os olhos:

- Você?

E com desprezo, rindo:

- Como você havia lá às dúzias, a cinquenta mil réis, e ninguém queria!

E virou-se para o outro lado, roncando...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 08 de fevereiro de 2022

UM ESQUELETO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM ESQUELETO

Machado de Assis

 

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

Eram dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e política. Alguma anedota vinha de quando em quando temperar a seriedade da conversa. Deus me perdoe! parece que até se fizeram alguns trocadilhos.

 

O mar batia perto na praia solitária... estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva. É provável que se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos, os méritos de um artista ou de um escritor, ou simplesmente em rir de uma pilhéria intercalada a tempo.

 

Aconteceu no meio da noite que um dos convivas falou na beleza da língua alemã. Outro conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a aprendera com o Dr. Belém.

 

— Não conheceram o Dr. Belém? perguntou ele.

 

— Não, responderam todos.

 

— Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava duma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um chapéu-de-chile de abas extremamente largas.

 

— Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?

 

— Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um planeta...

 

— Mas esse homem?

 

— Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.

 

Um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era muita desgraça junta. A atitude porém do narrador tirou-lhe o gosto do riso. Alberto (era o nome do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou depois de algum tempo de muda e vaga contemplação, e continuou:

 

— Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha vida.

 

Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse:

 

— Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do esqueleto.

 

A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann.

 

Alberto começou a narração.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto.

 

Representava ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinqüenta. O estudo o abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a esse respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara, cuja pele era fria como o mármore e branca como a de um morto.

 

Um dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O doutor sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de lha ter feito.

 

— Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra vez: sou casado.

 

— Vai casar?

 

— Vou.

 

— Com quem?

 

— Com a D. Marcelina.

 

  1. Marcelina era uma viúva de Ouro Preto, senhora de vinte e seis anos, não formosa, mas assaz simpática, possuía alguma coisa, mas não tanto como o doutor, cujos bens orçavam por uns sessenta contos.

 

Não me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal coisa.

 

— Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei os olhos da memória a todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais possível do que essa. Daqui a três meses assistirá ao nosso casamento. Promete?

 

— Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.

 

— Não será uma formosura.

 

— Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.

 

— Simpática, educada e viúva. Minha idéia é que todos os homens deviam casar com senhoras viúvas.

 

— Quem casaria então com as donzelas?

 

— Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor e a maioria do gênero humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas...

 

O doutor estacou, como se receasse entrar em maiores confidências, e tornou a falar da viúva Marcelina cujas boas qualidades louvou com entusiasmo.

 

— Não é tão bonita como a minha primeira esposa, disse ele. Ah! essa... Nunca a viu?

 

— Nunca.

 

— É impossível.

 

— É a verdade. Já o conheci viúvo, creio eu.

 

— Bem; mas eu nunca lha mostrei. Ande vê-la...

 

Levantou-se; levantei-me também. Estávamos assentados à porta; ele levou-me a um gabinete interior. Confesso que ia ao mesmo tempo curioso e aterrado. Conquanto eu fosse amigo dele e tivesse provas de que ele era meu amigo, tanto medo inspirava ele ao povo, e era efetivamente tão singular, que eu não podia esquivar-me a um tal ou qual sentimento de medo.

 

No fundo do gabinete havia um móvel coberto com um pano verde; o doutor tirou o pano e eu dei um grito.

 

Era um armário de vidro, tendo dentro um esqueleto. Ainda hoje, apesar dos anos que lá vão, e da mudança que fez o meu espírito, não posso lembrar-me daquela cena sem terror.

 

— É minha mulher, disse o Dr. Belém sorrindo. É bonita, não lhe parece? Está na espinha, como vê. De tanta beleza, de tanta graça, de tanta maravilha que me encantaram outrora, que a tantos mais encantaram, que lhe resta hoje? Veja, meu jovem amigo; tal é última expressão do gênero humano.

 

Dizendo isto, o Dr. Belém cobriu o armário com o pano e saímos do gabinete. Eu não sabia o que havia de dizer, tão impressionado me deixara aquele espetáculo.

 

Viemos outra vez para as nossas cadeiras ao pé da porta, e algum tempo estivemos sem dizer palavra um ao outro. O doutor olhava para o chão; eu olhava para ele. Tremiam-lhe os lábios, e a face de quando em quando se lhe contraía. Um escravo veio falar-lhe; o doutor saiu daquela espécie de letargo.

 

Quando ficamos sós parecia outro; falou-me risonho e jovial, com uma volubilidade que não estava nos seus usos.

 

— Ora bem, se eu for feliz no casamento, disse ele, ao senhor o deverei. Foi o senhor quem me deu esta idéia! E fez bem, porque até já me sinto mais rapaz. Que lhe parece este noivo?

 

Dizendo isto, o Dr. Belém levantou-se e fez uma pirueta, segurando nas abas da casaca, que nunca deixava, salvo quando se recolhia de noite.

 

— Parece-lhe capaz o noivo? disse ele.

 

— Sem dúvida, respondi.

 

— Também ela há de pensar assim. Verá, meu amigo, que eu meterei tudo num chinelo, e mais de um invejará a minha sorte. É pouco; mais de uma invejará a sorte dela. Pudera não? Não há muitos noivos como eu.

 

Eu não dizia nada, e o doutor continuou a falar assim durante vinte minutos. A tarde caíra de todo; e a idéia da noite e do esqueleto que ali estava a poucos passos de nós, e mais ainda as maneiras singulares que nesse dia, mais do que nos outros, mostrava o meu bom mestre, tudo isso me levou a despedir-me dele e a retirar-me para casa.

 

O doutor sorriu-se com o sorriso sinistro que às vezes tinha, mas não insistiu para que ficasse. Fui para casa aturdido e triste; aturdido com o que vira; triste com a responsabilidade que o doutor atirava sobre mim relativamente ao seu casamento.

 

Entretanto, refleti que a palavra do doutor podia não ter pronta nem remota realização. Talvez não se case nunca, nem até pense nisso. Que certeza teria ele de desposar a viúva Marcelina daí a três meses? Quem sabe até, pensei eu, se não disse aquilo para zombar comigo?

 

Esta idéia enterrou-se-me no espírito. No dia seguinte levantei-me convencido de que efetivamente o doutor quisera matar o tempo e juntamente aproveitar a ocasião de me mostrar o esqueleto da mulher.

 

Naturalmente, disse eu comigo, amou-a muito, e por esse motivo ainda a conserva. É claro que não se casará com outra; nem achará quem case com ele, tão aceita anda a superstição popular que o tem por lobisomem ou quando menos amigo íntimo do diabo... ele! o meu bom e compassivo mestre!

 

Com estas idéias fui logo de manhã à casa do Dr. Belém. Achei-o a almoçar sozinho, como sempre, servido por um escravo da mesma idade.

 

— Entre, Alberto, disse o doutor apenas me viu à porta. Quer almoçar?

 

— Aceito.

 

— João, um prato.

 

Almoçamos alegremente; o doutor estava como me parecia na maior parte das vezes, conversando de coisas sérias ou frívolas, misturando uma reflexão filosófica com uma pilhéria, uma anedota de rapaz com uma citação de Virgílio.

 

No fim do almoço tornou a falar do seu casamento.

 

— Mas então pensa nisso deveras?... perguntei eu.

 

— Por que não? Não depende senão dela; mas eu estou quase certo de que ela não recusa. Apresenta-me lá?

 

— Às suas ordens.

 

No dia seguinte era apresentado o Dr. Belém em casa da viúva Marcelina e recebido com muita afabilidade.

 

“Casar-se-á deveras com ela?” dizia eu a mim mesmo espantado do que via, porque, além da diferença da idade entre ele e ela, e das maneiras excêntricas dele, havia um pretendente à mão da bela viúva, o Tenente Soares.

 

Nem a viúva nem o tenente imaginavam as intenções do Dr. Belém; daqui podem já imaginar o pasmo de D. Marcelina quando ao cabo de oito dias, perguntou-lhe o meu mestre, se ela queria casar com ele.

 

— Nem com o senhor nem com outro, disse a viúva; fiz voto de não casar mais.

 

— Por quê? perguntou friamente o doutor.

 

— Porque amava muito a meu marido.

 

— Não tolhe isso que ame o segundo, observou o candidato sorrindo.

 

E depois de algum tempo de silêncio:

 

— Não insisto, disse ele, nem faço aqui uma cena dramática. Eu amo-a deveras, mas é um amor de filósofo, um amor como eu entendo que deviam ser todos. Entretanto deixe-me ter esperança; pedir-lhe-ei mais duas vezes a sua mão. Se da última nada alcançar consinta-me que fique sendo seu amigo.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

O Dr. Belém foi fiel a este programa. Dali a mês pediu outra vez a mão da viúva, e teve a mesma recusa, mas talvez menos peremptória do que a primeira. Deixou passar seis semanas, e repetiu o pedido.

 

— Aceitou? disse eu apenas o vi vir da casa de D. Marcelina.

 

— Por que havia de recusar? Eu não lhe disse que me casava dentro de três meses?

 

— Mas então o senhor é um adivinho, um mágico?...

 

O doutor deu uma gargalhada, das que ele guardava para quando queria motejar de alguém ou de alguma coisa. Naquela ocasião o motejado era eu. Parece que não fiz boa cara porque o douto imediatamente ficou sério e abraçou-me dizendo:

 

— Oh! meu amigo, não desconfie! Conhece-me de hoje?

 

A ternura com que ele me disse estas palavras tornava-o outro homem. Já não tinha os tons sinistros do olhar nem a fala saccadée (vá o termo francês, não me ocorre agora o nosso) que era a sua fala característica. Abracei-o também, e falamos do casamento e da noiva.

 

O doutor estava alegre; apertava-me muitas vezes as mãos agradecendo-me a idéia que lhe dera; fazia seus planos de futuro. Tinha idéias de vir à corte, logo depois do casamento; aventurou a idéia de seguir para a Europa; mas apenas parecia assentado nisto, já pensava em não sair de Minas, e morrer ali, dizia ele, entre as suas montanhas.

 

— Já vejo que está perfeitamente noivo, disse eu; tem todos os traços característicos de um homem nas vésperas de casar.

 

— Parece-lhe?

 

— E é.

 

— De fato, gosto da noiva, disse ele com ar sério; é possível que eu morra antes dela; mas o mais provável é que ela morra primeiro. Nesse caso, juro desde já que irá o seu esqueleto fazer companhia ao outro.

 

A idéia do esqueleto fez-me estremecer. O doutor, ao dizer estas palavras, cravara os olhos no chão, profundamente absorto. Daí em diante a conversa foi menos alegre do que a princípio. Saí de lá desagradavelmente impressionado.

 

O casamento dentro de pouco tempo foi realidade. Ninguém queria acreditar nos seus olhos. Todos admiraram a coragem (era a palavra que diziam) da viúva Marcelina, que não recuava àquele grande sacrifício.

 

Sacrifício não era. A moça parecia contente e feliz. Os parabéns que lhe davam eram irônicos, mas ela os recebia com muito gosto e seriedade. O Tenente Soares não lhe deu os parabéns; estava furioso; escreveu-lhe um bilhete em que lhe dizia todas as coisas que em tais circunstâncias se podem dizer.

 

O casamento foi celebrado pouco depois do prazo que o Dr. Belém marcara na conversa que tivera comigo e que eu já referi. Foi um verdadeiro acontecimento na capital de Minas. Durante oito dias não se falava senão no caso impossível; afinal, passou a novidade, como todas as coisas deste mundo, e ninguém mais tratou dos noivos.

 

Fui jantar com eles no fim de uma semana; D. Marcelina parecia mais que nunca feliz; o Dr. Belém não o estava menos. Até parecia outro. A mulher começava a influir nele, sendo já uma das primeiras conseqüências a supressão da singular casaca. O doutor consentiu em vestir-se menos excentricamente.

 

— Veste-me como quiseres, dizia ele à mulher; o que não poderás fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca.

 

— Nem quero.

 

— Nem podes.

 

Parecia que os dois estavam destinados a gozar uma eterna felicidade. No fim de um mês fui lá, e achei-a triste.

 

“Oh! disse eu comigo, cedo começam os arrufos.”

 

O doutor estava como sempre. Líamos então e comentávamos à nossa maneira o Fausto. Nesse dia pareceu-me o Dr. Belém mais perspicaz e engenhoso que nunca. Notei, entretanto, uma singular pretensão: um desejo de se parecer com Mefistófeles.

 

Aqui confesso que não pude deixar de rir.

 

— Doutor, disse eu, creio que o senhor abusa da amizade que lhe tenho para zombar comigo.

 

— Sim?

 

— Aproveita-se da opinião de excêntrico para me fazer crer que é o diabo...

 

Ouvindo esta última palavra, o doutor persignou-se todo, e foi a melhor afirmativa que me poderia fazer de que não ambicionava confundir-se com o personagem aludido. Sorriu-se depois benevolamente, tomou uma pitada e disse:

 

— Ilude-se meu amigo, quando me atribui semelhante idéia, do mesmo modo que se engana quando supõe que Mefistófeles é isso que diz.

 

— Essa agora!...

 

— Noutra ocasião lhe direi as minhas razões. Por agora vamos jantar.

 

— Obrigado. Devo ir jantar com meu cunhado. Mas, se me permite ficarei ainda algum tempo aqui lendo o seu Fausto.

 

O doutor não pôs objeção; eu era íntimo da casa. Saiu dali para a sala do jantar. Li ainda durante vinte minutos, findos os quais fechei o livro e fui despedir-me do Dr. Belém e sua senhora.

 

Caminhei por um corredor fora que ia ter à sala do jantar. Ouvia mover os pratos, mas nenhuma palavra soltavam os dois casados.

 

“O arrufo continua”, pensei eu.

 

Fui andando... Mas qual não foi a minha surpresa ao chegar à porta? O doutor estava de costas, não me podia ver. A mulher tinha os olhos no prato. Entre ele e ela, sentado numa cadeira vi o esqueleto. Estaquei aterrado e trêmulo. Que queria dizer aquilo? Perdia-me em conjeturas; cheguei a dar um passo para falar ao doutor, mas não me atrevi; voltei pelo mesmo caminho, peguei no chapéu, e deitei a correr pela rua fora.

 

Em casa de meu cunhado todos notaram os sinais de temor que eu ainda levava no rosto. Perguntaram-me se havia visto alguma alma do outro mundo. Respondi sorrindo que sim; mas nada contei do que acabava de presenciar.

 

Durante três dias não fui à casa do doutor. Era medo, não do esqueleto, mas do dono da casa, que se me afigurava ser um homem mau ou um homem doido. Todavia, ardia por saber a razão da presença do esqueleto na mesa do jantar. D. Marcelina podia dizer-me tudo; mas como indagaria isso dela, se o doutor estava quase sempre em casa?

 

No terceiro dia apareceu-me em casa o Doutor Belém.

 

— Três dias! disse ele, há já três dias que eu não tenho a fortuna de o ver. Onde anda? Está mal conosco?

 

— Tenho andado doente, respondi eu, sem saber o que dizia.

 

— E não me mandou dizer nada, ingrato! Já não é meu amigo.

 

A doçura destas palavras dissipou os meus escrúpulos. Era singular como aquele homem, que por certos hábitos, maneiras e idéias, e até pela expressão física, assustava a muita gente e dava azo às fantasias da superstição popular, era singular, repito, como me falava às vezes com uma meiguice incomparável e um tom patriarcalmente benévolo.

 

Conversamos um pouco e fui obrigado a acompanhá-lo à casa. A mulher ainda me pareceu triste, mas um pouco menos que da outra vez. Ele tratava-a com muita ternura e consideração, e ela se não respondia alegre, ao menos falava com igual meiguice.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

No meio da conversa vieram dizer que o jantar estava na mesa.

 

— Agora há de jantar conosco, disse ele.

 

— Não posso, balbuciei eu, devo ir...

 

— Não deve ir a nenhuma parte, atalhou o doutor; parece-me que quer fugir de mim. Marcelina, pede ao Dr. Alberto que jante conosco.

 

  1. Marcelina repetiu o pedido do marido, mas com um ar de constrangimento visível. Ia recusar de novo, mas o doutor teve a precaução de me agarrar no braço e foi impossível recusar.

 

— Deixe-me ao menos dar o braço a sua senhora, disse eu.

 

— Pois não.

 

Dei o braço a D. Marcelina que estremeceu. O doutor passou adiante. Eu inclinei a boca ao ouvido da pobre senhora e disse baixinho:

 

— Que mistério há?

 

  1. Marcelina estremeceu outra vez e com um sinal impôs-me silêncio.

 

Chegamos à sala de jantar.

 

Apesar de já ter presenciado a cena do outro dia não pude resistir à impressão que me causou a vista do esqueleto que lá estava na cadeira em que o vira com os braços sobre a mesa.

 

Era horrível.

 

— Já lhe apresentei minha primeira mulher, disse o doutor para mim; são conhecidos antigos.

 

Sentamo-nos à mesa; o esqueleto ficou entre ele e D. Marcelina; eu fiquei ao lado desta. Até então não pude dizer palavra; era porém natural que exprimisse o meu espanto.

 

— Doutor, disse eu, respeito os seus hábitos; mas não me dará a explicação deste?

 

— Este qual? disse ele.

 

Com um gesto indiquei-lhe o esqueleto.

 

— Ah!... respondeu o doutor; um hábito natural; janto com minhas duas mulheres.

 

— Confesse ao menos que é um uso original.

 

— Queria que eu copiasse os outros?

 

— Não, mas a piedade com os mortos...

 

Atrevi-me a falar assim porque, além de me parecer aquilo uma profanação, a melancolia da mulher parecia pedir que alguém falasse duramente ao marido e procurasse trazê-lo a melhor caminho.

 

O doutor deu uma das suas singulares gargalhadas, e estendendo-me o prato de sopa, replicou:

 

— O senhor fala de uma piedade de convenção; eu sou pio à minha maneira. Não é respeitar uma criatura que amamos em vida, o trazê-la assim conosco, depois de morta?

 

Não respondi coisa nenhuma a estas palavras do doutor. Comi silenciosamente a sopa, e o mesmo fez a mulher, enquanto ele continuou a desenvolver as suas idéias a respeito dos mortos.

 

— O medo dos mortos, disse ele, não é só uma fraqueza, é um insulto, uma perversidade do coração. Pela minha parte dou-me melhor com os defuntos do que com os vivos.

 

E depois de um silêncio:

 

— Confesse, confesse que está com medo.

 

Fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça.

 

— É medo, é, como esta senhora que está ali transida de susto, porque ambos são dois maricas. Que há entretanto neste esqueleto, que possa meter medo? Não lhes digo que seja bonito; não é bonito segundo a vida, mas é formosíssimo segundo a morte. Lembrem-se que isto somos nós também; nós temos de mais um pouco de carne.

 

— Só? perguntei eu intencionalmente.

 

O doutor sorriu-se e respondeu:

 

— Só.

 

Parece que fiz um gesto de aborrecimento, porque ele continuou logo:

 

— Não tome ao pé da letra o que lhe disse. Eu também creio na alma; não creio só, demonstro-a, o que não é para todos. Mas a alma foi-se embora; não podemos retê-la; guardemos isto ao menos, que é uma parte da pessoa amada.

 

Ao terminar estas palavras, o doutor beijou respeitosamente a mão do esqueleto. Estremeci e olhei para D. Marcelina. Esta fechara os olhos. Eu estava ansioso por terminar aquela cena que realmente me repugnava presenciar. O doutor não parecia reparar em nada. Continuou a falar no mesmo assunto, e por mais esforços que eu fizesse para o desviar dele era impossível.

 

Estávamos à sobremesa quando o doutor, interrompendo um silêncio que durava já havia dez minutos perguntou:

 

— E segundo me parece, ainda lhe não contei a história deste esqueleto, quero dizer a história de minha mulher?

 

— Não me lembra, murmurei.

 

— E a ti? disse ele voltando-se para a mulher.

 

— Já.

 

— Foi um crime, continuou ele.

 

— Um crime?

 

— Cometido por mim.

 

— Pelo senhor?

 

— É verdade.

 

O doutor concluiu um pedaço de queijo, bebeu o resto do vinho que tinha no copo, e repetiu:

 

— É verdade, um crime de que fui autor. Minha mulher era muito amada de seu marido; não admira, eu sou todo coração. Um dia porém, suspeitei que me houvesse traído; vieram dizer-me que um moço da vizinhança era seu amante. Algumas aparências me enganaram. Um dia declarei-lhe que sabia tudo, e que ia puni-la do que me havia feito. Luísa caiu-me aos pés banhada em lágrimas protestando pela sua inocência. Eu estava cego; matei-a.

 

Imagina-se, não se descreve a impressão de horror que estas palavras me causaram. Os cabelos ficaram-me em pé. Olhei para aquele homem, para o esqueleto, para a senhora, e passava a mão pela testa, para ver se efetivamente estava acordado, ou se aquilo era apenas um sonho.

 

O doutor tinha os olhos fitos no esqueleto e uma lágrima lhe caía lentamente pela face. Estivemos todos calados durante cerca de dez minutos.

 

O doutor rompeu o silêncio.

 

— Tempos depois, quando o crime estava de há muito cometido, sem que a justiça o soubesse, descobri que Luísa era inocente. A dor que então sofri foi indescritível; eu tinha sido o algoz de um anjo.

 

Estas palavras foram ditas com tal amargura que me comoveram profundamente. Era claro que ainda então, após longos anos do terrível acontecimento, o doutor sentia o remorso do que praticara e a mágoa de ter perdido a esposa.

 

A própria Marcelina parecia comovida. Mas a comoção dela era também medo; segundo vim a saber depois, ela receava que no marido não estivessem íntegras as faculdades mentais.

 

Era um engano.

 

O doutor era, sim, um homem singular e excêntrico; doido lhe chamavam os que, por se pretenderem mais espertos que o vulgo, repeliam os contos da superstição.

 

Estivemos calados algum tempo e dessa vez foi ainda ele que interrompeu o silêncio.

 

— Não lhes direi como obtive o esqueleto de minha mulher. Aqui o tenho e o conservarei até à minha morte. Agora naturalmente deseja saber por que motivo o trago para a mesa depois que me casei.

 

Não respondi com os lábios, mas os meus olhos disseram-lhe que efetivamente desejava saber a explicação daquele mistério.

 

— É simples, continuou ele; é para que minha segunda mulher esteja sempre ao pé da minha vítima, a fim de que se não esqueça nunca dos seus deveres, porque, então como sempre, é mui provável que eu não procure apurar a verdade; farei justiça por minhas mãos.

 

Esta última revelação do doutor pôs termo à minha paciência. Não sei o que lhe disse, mas lembra-me que ele ouviu-me com o sorriso benévolo que tinha às vezes, e respondeu-me com esta simples palavra:

 

— Criança!

 

Saí pouco depois do jantar, resolvido a lá não voltar nunca.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

A promessa não foi cumprida.

 

Mais de uma vez o Doutor Belém mandou à casa chamar-me; não fui. Veio duas ou três vezes instar comigo que lá fosse jantar com ele.

 

— Ou, pelo menos, conversar, concluiu.

 

Pretextei alguma coisa e não fui.

 

Um dia porém, recebi um bilhete da mulher. Dizia-me que era eu a única pessoa estranha que lá ia; pedia-me que não a abandonasse.

 

Fui.

 

Eram então passados quinze dias depois do célebre jantar em que o doutor me referiu a história do esqueleto. A situação entre os dois era a mesma; aparente afabilidade da parte dela, mas na realidade medo. O doutor mostrava-se afável e terno, como sempre o vira com ela.

 

Justamente nesse dia, anunciou-me ele que pretendia ir a uma jornada dali a algumas léguas.

 

— Mas vou só, disse ele, e desejo que o senhor me faça companhia a minha mulher vindo aqui algumas vezes.

 

Recusei.

 

— Por quê?

 

— Doutor, por que razão, sem urgente necessidade, daremos pasto às más línguas? Que se dirá...

 

— Tem razão, atalhou ele; ao menos, faça-me uma coisa.

 

— O quê?

 

— Faça com que em casa de sua irmã possa Marcelina ir passar as poucas semanas de minha ausência.

 

— Isso com muito gosto.

 

Minha irmã concordou em receber a mulher do Dr. Belém, que daí a pouco saía da capital para o interior. Sua despedida foi terna e amigável para com ambos nós, a mulher e eu; fomos os dois, e mais minha irmã e meu cunhado acompanhá-lo até certa distância, e voltamos para casa.

 

Pude então conversar com D. Marcelina, que me comunicou os seus receios a respeito da razão do marido. Dissuadi-a disso; já disse qual era a minha opinião a respeito do Dr. Belém.

 

Ela referiu-me então que a narração da morte da mulher já ele lha havia feito, prometendo-lhe igual sorte no caso de faltar aos seus deveres.

 

— Nem as aparências te salvarão, acrescentou ele.

 

Disse-me mais que era seu costume beijar repetidas vezes o esqueleto da primeira mulher e dirigir-lhe muitas palavras de ternura e amor. Uma noite, estando a sonhar com ela, levantou-se da cama e foi abraçar o esqueleto pedindo-lhe perdão.

 

Em nossa casa todos eram de opinião que D. Marcelina não voltasse mais para a companhia do Dr. Belém. Eu era de opinião oposta.

 

— Ele é bom, dizia eu, apesar de tudo; tem extravagâncias, mas é um bom coração.

 

No fim de um mês recebemos uma carta do doutor, em que dizia à mulher fosse ter ao lugar onde ele se achava, e que eu fizesse o favor de a acompanhar.

 

Recusei ir só com ela.

 

Minha irmã e meu cunhado ofereceram-se porém para acompanhá-la.

 

Fomos todos.

 

Havia entretanto uma recomendação na carta do doutor, recomendação essencial; ordenava ele à mulher que levasse consigo o esqueleto.

 

— Que esquisitice nova é essa? disse meu cunhado.

 

— Há de ver, suspirou melancolicamente D. Marcelina, que o único motivo desta minha viagem, são as saudades que ele tem do esqueleto.

 

Eu nada disse, mas pensei que assim fosse.

 

Saímos todos em demanda do lugar onde nos esperava o doutor.

 

Íamos já perto, quando ele nos apareceu e veio alegremente cumprimentar-nos. Notei que não tinha a ternura de costume com a mulher, antes me pareceu frio. Mas isso foi obra de pouco tempo; daí a uma hora voltara a ser o que sempre fora.

 

Passamos dois dias na pequena vila em que o doutor estava, dizia ele, para examinar umas plantas, porque também era botânico. Ao fim de dois dias dispúnhamos a voltar para a capital; ele porém pediu que nos demorássemos ainda vinte e quatro horas e voltaríamos todos juntos.

 

Acedemos.

 

No dia seguinte de manhã convidou a mulher a ir ver umas lindas parasitas no mato que ficava perto. A mulher estremeceu, mas não ousou recusar.

 

— Vem também? disse ele.

 

— Vou, respondi.

 

A mulher cobrou alma nova e deitou-me um olhar de agradecimento. O doutor sorriu à socapa. Não compreendi logo o motivo do riso; mas daí a pouco tempo tinha a explicação.

 

Fomos ver as parasitas, ele adiante com a mulher, eu atrás de ambos, e todos três silenciosos.

 

Não tardou que um riacho aparecesse aos nossos olhos; mas eu mal pude ver o riacho; o que eu vi, o que me fez recuar um passo, foi um esqueleto.

 

Dei um grito.

 

— Um esqueleto! exclamou D. Marcelina.

 

— Descansem, disse o doutor, é o de minha primeira mulher.

 

— Mas...

 

— Trouxe-o esta madrugada para aqui.

 

Nenhum de nós compreendia nada.

 

O doutor sentou-se numa pedra.

 

— Alberto, disse ele, e tu, Marcelina. Outro crime devia ser cometido nesta ocasião; mas tanto te amo, Alberto, tanto te amei, Marcelina, que eu prefiro deixar de cumprir a minha promessa...

 

Ia interrompê-lo; mas ele não me deu ocasião.

 

— Vocês amam-se, disse ele.

 

Marcelina deu um grito; eu ia protestar.

 

— Amam-se que eu sei, continuou friamente o doutor; não importa! É natural. Quem amaria um velho estúrdio como eu? Paciência. Amem-se; eu só fui amado uma vez; foi por esta.

 

Dizendo isto abraçou-se ao esqueleto.

 

— Doutor, pense no que está dizendo...

 

— Já pensei...

 

— Mas esta senhora é inocente. Não vê aquelas lágrimas?

 

— Conheço essas lágrimas; lágrimas não são argumentos. Amam-se, que eu sei; desejo que sejam felizes, porque eu fui e sou teu amigo, Alberto. Não merecia certamente isso...

 

— Oh! meu amigo, interrompi eu, veja bem o que está dizendo; já uma vez foi levado a cometer um crime por suspeitas que depois soube serem infundadas. Ainda hoje padece o remorso do que então fez. Reflita, veja bem se eu posso tolerar semelhante calúnia.

 

Ele encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares.

 

— Isto é indigno! clamei.

 

— Talvez, murmurou ele.

 

E depois de um silêncio:

 

— Em todo o caso, minha resolução está assentada, disse o doutor. Quero fazê-los felizes, e só tenho um meio: é deixá-los. Vou com a mulher que sempre me amou. Adeus!

 

O doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei; tudo foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara desmaiada no chão.

 

Vim socorrê-la; chamei gente. Daí a uma hora, a pobre moça, viúva sem o ser, lavava-se em lágrimas de aflição.

                                                                         

 

 

CAPÍTULO VI

 

Alberto acabara a história.

 

— Mas é um doido esse teu Dr. Belém! exclamou um dos convivas rompendo o silêncio de terror em que ficara o auditório.

 

— Ele doido? disse Alberto. Um doido seria efetivamente se porventura esse homem tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.

 

É inútil dizer o efeito desta declaração.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 07 de fevereiro de 2022

O MILAGRE DE SÃO BENEDITO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O MILAGRE DE SÃO BENEDITO

Humberto de Campos

 

 

 

O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite encostada à parede, agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a pretinha recolhida, então, por misericórdia, como um cão sem préstimo que se apanhasse piedosamente na rua.

 

Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedrouço do calçamento, e recebendo na carapinha descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a negrinha, medrosa:

 

— Onde está minha mãe?

 

As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava:

 

— Carlotinha?

 

A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma aureola e o mesmo burel, a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão!

 

— Meu São Benedito!... — gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto escuro.

 

E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal:

 

— Carlotinha, junta estas pedras.

 

A pretinha arrepanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus, a mandado do santo, sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para sempre.

 

De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:

 

— Carlota?

 

E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.

 

Diante da pretinha, que orava, de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 05 de fevereiro de 2022

O ESPELHO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O ESPELHO

Machado de Assis

 

 

 

Esboço de uma nova teoria da alma humana

 

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a

 

demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

– Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dous ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião – uma conjetura, ao menos.

– Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

– Duas?

– Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

– Não?

– Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, – na verdade, gentilíssima, – que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

– Perdão; essa senhora quem é?

– Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas.

 

 

Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

– Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

– Espelho grande?

– Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas cousas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

– Não.

– O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

– Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

– Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! Adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! Pérfidos! Mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

– Matá-lo?

– Antes assim fosse.

– Coisa pior?

– Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? Era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não

 

desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! – For ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: – Never, for ever! – For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

– Sim, parece que tinha um pouco de medo.

– Oh! Fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra cousa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: – o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien (re) venirNada, cousa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma cousa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Cousa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

– Mas não comia?

– Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de

 

cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

– Na verdade, era de enlouquecer.

– Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dous, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dous. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. – Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

– Diga.

– Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

– Mas, diga, diga.

– Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... Não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 04 de fevereiro de 2022

A CORNUCÓPIA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A CORNUCÓPIA

Humberto de Campos

 

 

 

O Gabrielzinho havia regressado da rua intrigadíssimo com aquela novidade. Por que motivo, realmente, a prosperidade havia de ser simbolizada sempre por um chifre repleto de moedas, que uma mulher despejava de cima, com o sorriso nos lábios? Que significaria aquele anúncio berrante da casa de loterias, no qual se via a Fortuna a derramar o ouro da sua cornucópia sobre a cabeça irrequieta dos homens? Ingênuo, puro, infantil, o seu primeiro cuidado, ao chegar em casa, foi perguntar ao velho Gabriel:

 

— Papai, por que é que a Fortuna é representada, sempre, com um chifre na mão?

 

O honrado comerciante coçou a calva, atrapalhado, mas D. Lavínia o tirou da dificuldade, insistindo:

 

— Responde, Gabriel! Você não tem lá dentro um livrinho que trata dessas coisas? Essa figura, como ele diz, representa, mesmo, a Fortuna. Se você duvida, veja o livro.

 

— É verdade! — exclamou o velho. — Aquele livro deve dar.

 

E, indo buscar um volume, pequeno, miúdo, edição popular, do "Dicionário da Fábula", de Chompré, tradução portuguesa, leu, alto, à pag. 165:

 

— "FORTUNA —, deusa que preside ao bem e ao mal."

 

— Não é aqui, — acrescentou.

 

Folheou para trás, e tornou a ler, à pag. 4:

 

— "ABUNDÂNCIA — divindade alegórica que se representa na figura de uma donzela no meio de todo o gênero de bens, grossa de carnes, com vivas cores, e tendo na mão um corno cheio de flores e frutos. Dizem ser filha de Acheres ou da cabra Amaltea."

 

Folheou para a frente, e continuou, à página 31:

 

— "AMALTEA — É o nome da cabra que deu leite a Júpiter. Em reconhecimento deste bom serviço, ele a colocou, com dois cabritos, seus filhos, no céu, e deu um dos seus cornos às ninfas que cuidaram dele desde a sua infância, com a virtude de produzir quanto elas apetecessem. Chamava-se-lhe o "Corno da Abundância".

 

Terminada a leitura, D. Lavínia observou, teimosa:

 

— Então, é ou não é?

 

— O quê? — indagaram, ao mesmo tempo, o pai e o filho.

 

— O chifre, nas mãos de uma mulher, é, ou não é, o símbolo da Fartura?

 

Os dois calaram-se, e D. Lavínia continuou, ingênua, na sua honestidade:

 

— Eu, que digo, é porque sei.

 

E, simples, boa, cândida na sua virtude, recomeçando o seu "crochet":

 

— Eu estou cansada de dizer a teu pai...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 02 de fevereiro de 2022

O ESCRIVÃO COIMBRA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O ESCRIVÃO COIMBRA

Machado de Assis

 

 

 

Aparentemente há poucos espetáculos tão melancólicos como um ancião comprando um bilhete de loteria. Bem considerado, é alegre; essa persistência em crer, quando tudo se ajusta ao descrer, mostra que a pessoa é ainda forte e moça. Que os dias passem e com eles os bilhetes brancos, pouco importa; o ancião estende os dedos para escolher o número que há de dar a sorte grande amanhã — ou depois — um dia enfim, porque todas as coisas podem falhar neste mundo, menos a sorte grande a quem compra um bilhete com fé.

 

Não era a fé que faltava ao escrivão Coimbra. Também não era a esperança. Uma coisa não vai sem outra. Não confundas a fé na Fortuna com a fé religiosa. Também tivera esta em anos verdes e maduros, chegando a fundar uma irmandade, a irmandade de S. Bernardo, que era o santo de seu nome; mas aos cinqüenta, por efeito do tempo ou de leituras, achou-se incrédulo. Não deixou logo a irmandade; a esposa pôde contê-lo no exercício do cargo de mesário e levava-o às festas do santo; ela, porém, morreu, e o viúvo rompeu de vez com o santo e o culto. Resignou o cargo da mesa e fez-se irmão remido para não tornar lá. Não buscou arrastar outros nem obstruir o caminho da oração; ele é que já não rezava por si nem por ninguém. Com amigos, se eram do mesmo estado de alma, confessava o mal que sentia da religião. Com familiares, gostava de dizer pilhérias sobre devotas e padres.

 

Aos sessenta anos já não cria em nada, fosse do céu ou da terra, exceto a loteria. A loteria, sim, tinha toda a sua fé e esperança. Poucos bilhetes comprava a princípio, mas a idade, e depois a solidão, vieram apurando aquele costume e o levaram a não deixar passar loteria sem bilhete.

 

Nos primeiros tempos, não vindo a sorte grande, prometia não comprar mais bilhetes, e durante algumas loterias cumpria a promessa. Mas lá aparecia alguém que o convidava a ficar com um bonito número, comprava o número e esperava. Assim veio andando pelo tempo fora até chegar aquele em que loterias rimaram com dias, e passou a comprar seis bilhetes por semana; repousava aos domingos. O escrevente juramentado, um Amaral que ainda vive, foi o demônio tentador nos seus desfalecimentos. Tão depressa descobriu a devoção do escrivão, começou a animá-lo nela, contando-lhe lances de pessoas que tinham enriquecido de um momento para outro.

 

— Fulano foi assim, Sicrano assim, dizia-lhe Amaral expondo a aventura de cada um.

 

Coimbra ouvia e cria. Já agora cedia às mil maneiras de convidar a sorte, a que a superstição pode emprestar certeza, número de uns autos, soma de umas custas, um arranjo casual de algarismos, tudo era combinação para encomendar bilhetes, comprá-los e esperar. Na primeira loteria de cada ano comprava o número do ano; empregou este método desde 1884. Na última loteria de 1892 inventou outro, trocou os algarismos da direita para a esquerda e comprou o número 2981. Já então não cansava por duas razões fundamentais e uma acidental. Sabeis das primeiras, a necessidade e o costume, a última é que a Fortuna negaceava com gentileza. Nem todos os bilhetes saíam brancos. Às vezes (parecia de propósito) Coimbra dizia de um bilhete que era o último e não compraria outro se lhe saísse branco; corria a roda, tirava cinqüenta mil-réis, ou cem, ou vinte, ou ainda o mesmo dinheiro. Quer dizer que também podia tirar a sorte grande; em todo caso, aquele dinheiro dava para comprar de graça alguns bilhetes. “Comprar de graça” era a sua própria expressão. Uma vez a sorte grande saiu dois números adiante do dele, 7377; o dele era 7375. O escrivão criou alma nova.

 

Assim viveu os últimos anos do império e os primeiros da república, sem já crer em nenhum dos dois regimes. Não cria em nada. A própria justiça em que era oficial, não tinha a sua fé; parecia-lhe uma instituição feita para conciliar ou perpetuar os desacordos humanos, mas por diversos e contrários caminhos, ora à direita, ora à esquerda. Não conhecendo as Ordenações do Reino, salvo de nome, nem as leis imperiais e republicanas, acreditava piamente que tanto valiam na boca de autores como de réus, isto é, que formavam um repositório de disposições avessas e cabidas a todas as situações e pretensões. Não lhe atribuas nenhum ceticismo elegante; não era dessa casta de espíritos que temperam a descrença nos homens e nas coisas com um sorriso fino e amigo. Não, a descrença era nele como uma capa esfarrapada.

 

Uma só vez saiu do Rio de Janeiro; foi para ir ao Espírito Santo à cata de uns diamantes que não achou. Houve quem dissesse que essa aventura é que lhe pegou o gosto e a fé na loteria; também não faltou quem sugerisse o contrário, que a fé na loteria é que lhe dera a vista antecipada dos diamantes. Uma e outra explicação é possível. Também é possível terceira explicação, alguma causa comum a diamantes e prêmios. A alma humana é tão sutil e complicada que traz confusão à vista nas suas operações exteriores. Fosse como fosse, só daquela vez saiu do Rio de Janeiro. O mais do tempo viveu nesta cidade, onde envelheceu e morreu. A irmandade de S. Bernardo tomou a si dar-lhe cova e túmulo, não que lhe faltassem a ele meios disso, como se vai ver, mas por uma espécie de obrigação moral com o seu fundador.

 

Morreu no começo da presidência Campos Sales, em 1899, fins de abril. Vinha de assistir ao casamento do escrevente Amaral, na qualidade de testemunha, quando foi acometido de uma congestão, e antes da meia-noite era defunto. Os conselhos que se lhe acharam no testamento podem todos resumir-se nesta palavra: persistir. Amaral requereu traslado daquele documento para uso e guia do filho, que vai em cinco anos, e entrou para o colégio. Fê-lo com sinceridade, e não sem tristeza, porque a morte de Coimbra sempre lhe pareceu efeito de seu caiporismo; não dera tempo a nenhuma lembrança afetuosa do velho amigo, testemunha do casamento e provável compadre.

 

Antes do golpe que o levou, Coimbra não padecia nada, não tinha a menor lesão, apenas algum cansaço. Todos os seus órgãos funcionavam bem, e o mesmo cérebro, se nunca foi grande coisa, não era agora menos que dantes. Talvez a memória acusasse alguma debilidade, mas ele consolava-se do mal dizendo que “com a memória lhe saíram muitas coisas ruins da cabeça”. No foro era benquisto e no cartório respeitado. Em 1897, pelo S. João, o escrevente Amaral insinuou-lhe a conveniência de descansar e propôs-se a ficar à testa do cartório para seguir “o exemplo fortificante do amigo”. Coimbra recusou, agradecendo. Entretanto, não deixava de temer que viesse a fraquear e cair de todo, sem mais corpo nem alma que dar ao ofício. Já não saía do cartório, às tardes, sem um olhar de saudades prévias.

 

Chegou o Natal de 1898. Desde a primeira semana de dezembro foram postos à venda os bilhetes da grande loteria de quinhentos contos, chamada por alguns cambistas, nos anúncios, loteria-monstro. Coimbra comprou um. Parece que dessa vez não cedeu a nenhuma combinação de algarismos; escolheu o bilhete dentre os que lhe apresentaram no balcão. Em casa, guardou-o na gaveta da mesa e esperou.

 

— Desta vez, sim, disse ele no dia seguinte ao escrevente Amaral, desta vez cesso de tentar fortuna; se não tirar nada, deixo de jogar na loteria.

 

Amaral ia aprovar a resolução, mas uma idéia contrária suspendeu a palavra antes que ela lhe caísse da boca, e ele trocou a afirmação por uma consulta. Por que deixar para sempre? Loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.

 

— Já não estou em idade de esperar, retrucou o escrivão.

 

— Esperança não tem idade, sentenciou Amaral, recordando uns versos que fizera outrora, e concluiu com este velho adágio: Quem espera sempre alcança.

 

— Pois eu não esperarei e não alcançarei, teimou o escrivão; este bilhete é o último.

 

Tendo afirmado a mesma coisa tantas vezes, era provável que ainda agora desmentisse a afirmação, e, malogrado no dia de Natal, voltaria à sorte no dia de Reis. Foi o que Amaral pensou e não insistiu em convencê-lo de um vício que estava no sangue. A verdade, porém, é que Coimbra era sincero. Tinha aquela tentação por última. Não pensou no caso de ser favorecido, como de outras vezes, com alguns cinqüenta ou cem mil-réis, quantia mínima para os efeitos da ambição, mas bastante para convidá-lo a reincidir. Pôs a alma nos dois extremos: nada ou quinhentos contos. Se fosse nada, era o fim. Faria como fez com a irmandade e a religião; deitaria o hábito às urtigas, remia-se de freguês e iria ouvir a missa do Diabo.

 

Os dias começaram a passar, como eles costumam, com as suas vinte e quatro horas iguais umas às outras, na mesma ordem, com a mesma sucessão de luz e trevas, trabalho e repouso. A alma do escrivão aguardava o dia 24, véspera do Natal, quando devia correr a roda, e continuou os traslados, juntadas e conclusões dos seus autos. Convém dizer, em louvor deste homem, que nenhuma preocupação estranha lhe tirara o gosto à escrivania, por mais que preferisse a riqueza ao trabalho.

 

Só quando o dia 20 alvoreceu e pôs a menor distância à data fatídica é que a imagem dos quinhentos contos veio interpor-se de vez aos papéis do foro. Mas não foi só a maior proximidade que trouxe este efeito, foram as conversas na rua e no mesmo cartório acerca de sortes grandes, e, mais que conversas, a própria figura de um homem beneficiado com uma delas, cinco anos antes. Coimbra recebera um tal Guimarães, testamenteiro de um importador de sapatos, que ali foi assinar um termo. Enquanto se lavrava o termo, alguém que ia com ele perguntou-lhe se estava “habilitado para a loteria do Natal”.

 

— Não, disse Guimarães.

 

— Também nem sempre há de ser feliz.

 

Coimbra não teve tempo de perguntar nada; o amigo do testamenteiro deu-lhe notícia de que este, em 1893, tirara duzentos contos. Coimbra fitou o testamenteiro cheio de espanto. Era ele, era o próprio, era alguém que, mediante uma pequena quantia e um bilhete numerado, entrara na posse de duzentos contos de réis. Coimbra olhou bem para o homem. Era um homem, um feliz.

 

— Duzentos contos? disse ele para ouvir a confirmação do próprio.

 

— Duzentos contos, repetiu Guimarães. Não foi por meu esforço nem desejo, explicou; não costumava comprar, e daquela vez quase quebro a cabeça ao pequeno que me queria vender o bilhete; era um italiano. Guardate, signore, implorava ele metendo-me o bilhete à cara. Cansado de ralhar, entrei num corredor e comprei o bilhete. Três dias depois tinha o dinheiro na mão. Duzentos contos.

 

O escrivão não errou o termo porque nele já os dedos é que eram escrivães; realmente, não pensou em nada mais que decorar esse homem, reproduzi-lo na memória, escrutá-lo, bradar-lhe que também tinha bilhete para os quinhentos contos do dia 24 e exigir-lhe o segredo de os tirar. Guimarães assinou o termo e saiu; Coimbra teve ímpeto de ir atrás dele, apalpá-lo, ver se era mesmo gente, se era carne, se era sangue... Então era verdade? Havia prêmios? Tiravam-se prêmios grandes? E a paz com que aquele sujeito contava o lance da compra! Também ele seria assim, se lhe saíssem os duzentos contos, quanto mais os quinhentos!

 

Essas frases cortadas que aí ficam dizem vagamente a confusão das idéias do escrivão. Até agora trazia em si a fé, mas já reduzida a costume só, um costume longo e forte, sem assombros nem sobressaltos. Agora via um homem que passara de nada a duzentos contos com um simples gesto de fastio. Que ele nem sequer tinha o gosto e a comichão da loteria; ao contrário, quis quebrar a cabeça da Fortuna; ela, porém, com olhos de namorada, fê-lo trocar a impaciência em condescendência, pagar-lhe cinco ou dez mil-réis, e três dias depois... Coimbra fez todo o mais trabalho do dia automaticamente.

 

De tarde, caminhando para casa, foi-se-lhe metendo na alma a persuasão dos quinhentos contos. Era mais que os duzentos do outro, mas também ele merecia mais, teimando como vinha de anos estirados, desertos e brancos, mal borrifados de algumas centenas, raras, de mil-réis. Tinha maior direito que o outro, talvez maior que ninguém. Jantou, foi à casa pegada, onde nada contou pelo receio de não tirar coisa nenhuma e rirem-se dele. Dormiu e sonhou com o bilhete e o prêmio; foi o próprio cambista que lhe deu a nova da felicidade. Não se lembrava bem, de manhã, se o cambista o procurou ou se ele procurou o cambista; lembrava-se bem das notas, eram parece que verdes, grandes e frescas. Ainda apalpou as mãos ao acordar; pura ilusão!

 

Ilusão embora, deixara-lhe nas palmas a maciez do sonho, o fresco, o verde, o avultado dos contos. Ao passar pelo Banco da República pensou que poderia levar ali o dinheiro, antes de o empregar em casas, títulos e outros bens. Esse dia 21 foi pior, em ânsia, que o dia 20. Coimbra estava tão nervoso que achou o trabalho demasiado, quando de ordinário ficava alegre com a concorrência de papéis. Melhorou um pouco, à tarde; mas, ao sair, entrou a ouvir meninos que vendiam bilhetes de loteria, e esta linguagem, gritada da grande banca pública, novamente lhe fez agitar a alma.

 

Ao passar pela igreja onde era venerada a imagem de S. Bernardo, cuja irmandade ele fundou, Coimbra deitou olhos saudosos ao passado. Tempos em que ele cria! Outrora faria uma promessa ao santo; agora...

 

— Infelizmente, não! suspirou consigo.

 

Sacudiu a cabeça e guiou para casa. Não jantou sem que a imagem do santo viesse espreitá-lo duas ou três vezes, com o olhar seráfico e o gesto de imortal bem-aventurança. Ao pobre escrivão vinha agora mais esta mágoa, este outro deserto árido e maior. Não cria; faltava-lhe a doce fé religiosa, dizia consigo. Saiu a passeio, à noite e, para encurtar caminho, enfiou por um beco. Deixando o beco, pareceu-lhe que alguém chamava por ele, voltou a cabeça e viu a pessoa do santo, agora mais celeste; já não era a imagem de madeira, era a pessoa, como digo, a pessoa viva do grande doutor cristão. A ilusão foi tão completa que lhe pareceu ver o santo estender-lhe as mãos, e nelas as notas do sonho, aquelas notas largas e frescas.

 

Imagina essa noite de 21 e a manhã de 22. Não chegou ao cartório sem passar pela igreja da irmandade e entrar outra vez nela. A razão que deu a si mesmo foi saber se a gente local trataria a sua instituição com o zelo do princípio. Achou lá o sacristão, um velho zeloso que veio para ele com a alma nos olhos, exclamando:

 

— Vossa senhoria por aqui!

 

— Eu mesmo, é verdade. Passei, lembrou-me saber como é aqui tratado o meu hóspede.

 

— Que hóspede? perguntou o sacristão sem entender a linguagem figurada.

 

— O meu velho S. Bernardo.

 

— Ah! S. Bernardo! Como há de ser tratado um santo milagroso como ele é? Vossa Senhoria veio à festa deste ano?

 

— Não pude.

 

— Pois esteve muito bonita. Houve muitas esmolas e grande concorrência. A mesa foi reeleita, sabe?

 

Coimbra não sabia, mas disse que sim, e sinceramente achou que devia sabê-lo; chamou-se descuidado, relaxado, e voltou para a imagem olhos que supôs contritos e pode ser que o fossem. Ao sacristão pareceram devotos. Também este elevou os seus à imagem e fez a reverência habitual, inclinando meio corpo e dobrando a perna. Coimbra não foi tão extenso, mas imitou o gesto.

 

— A escola vai bem, sabe? disse o sacristão.

 

— A escola? Ah! sim. Ainda existe?

 

— Se existe? Tem setenta e nove alunos.

 

Tratava-se de uma escola que ainda em tempo da esposa do escrivão, a irmandade fundara com o nome do santo, a escola de S. Bernardo. O desapego religioso do escrivão chegara ao ponto de não acompanhar a prosperidade do estabelecimento, quase esquecê-lo de todo. Ouvindo a notícia, ficou pasmado. No tempo dele não houve mais de uma dúzia de alunos, agora eram setenta e nove. Por algumas perguntas sobre a administração, soube que a irmandade pagava a um diretor e três professores. No fim do ano ia haver a distribuição dos prêmios, grande festa a que esperavam trazer o arcebispo.

 

Quando saiu da igreja, trazia Coimbra não sei que ressurreições vagas e cinzentas. Propriamente não tinham cor, mas esta expressão serve a indicar uma feição nem viva, como dantes, nem totalmente morta. O coração não é só berço e túmulo, é também hospital. Guarda algum doente, que um dia, sem saber como, convalesce do mal, sacode a paralisia e dá um salto em pé. No coração de Coimbra o enfermo não deu salto, entrou a mover os dedos e os lábios, com tais sinais de vida que pareciam chamar o escrivão e dizer-lhe coisas de outro tempo.

 

— O último! Quinhentos contos! bradavam os meninos, quando ele ia a entrar no cartório. Quinhentos contos! O último!

 

Estas vozes entraram com ele e repetiram-se várias vezes durante o dia, ou da boca de outros vendedores ou dos ouvidos dele mesmo. Quando voltou para casa, passou novamente pela igreja mas não entrou; um diabo ou o que quer que era desviou o gesto que ele começou a fazer.

 

Não foi menos inquieto o dia 23. Coimbra lembrou-se de passar pela escola de S. Bernardo; já não era na casa antiga; estava em outra, uma boa casa assobradada, de sete janelas, portão de ferro ao lado e jardim. Como é que ele fora um dos primeiros autores de obra tão conspícua? Passou duas vezes por ela, chegou a querer entrar, mas não saberia que dissesse ao diretor e temeu o riso dos meninos. Foi para o cartório e, de caminho, mil recordações lhe restituíam o tempo em que aprendia a ler. Que ele também andou na escola, e evitou muita palmatoada com promessas de orações a santos. Um dia, em casa, ameaçado de apanhar por haver tirado ao pai um doce, aliás indigesto, prometeu uma vela de cera a Nossa Senhora. A mãe pediu por ele, e alcançou perdoá-lo; ele pediu à mãe o preço da vela e cumpriu a promessa. Reminiscências velhas e amigas que vinham temperar o árido preparo dos papéis. Ao mesmo S. Bernardo fizera mais de uma promessa, quando era irmão efetivo e mesário, e cumpriu-as todas. Onde iam tais tempos?

 

Enfim, surdiu a manhã de 24 de dezembro. A roda tinha de correr ao meio-dia. Coimbra acordou mais cedo que de costume, mal começava a clarear. Conquanto trouxesse de cor o número do bilhete, lembrou-se de o escrever na folha da carteira para havê-lo bem fixo, e no caso de tirar a sorte grande... Esta idéia fê-lo estremecer. Uma derradeira esperança (que o homem de fé nunca perde) lhe perguntou sem palavras: que é que lhe impedia tirar os quinhentos contos? Quinhentos contos! Tais coisas viu neste algarismo que fechou os olhos deslumbrados. O ar, como um eco, repetiu: Quinhentos contos! E as mãos apalparam a mesma quantia.

 

De caminho, foi à igreja, que achou aberta e deserta. Não, não estava deserta. Uma preta velha, ajoelhada diante do altar de S. Bernardo, com um rosário na mão, parecia pedir-lhe alguma causa, se não é que lhe pagava em orações o beneficio já recebido. Coimbra viu a postura e o gesto. Advertiu que ele era o autor daquela consolação da devota e olhou também para a imagem. Era a mesma do seu tempo. A preta acabou beijando a cruz do rosário, persignou-se, levantou-se e saiu.

 

Ia a sair também, quando duas figuras lhe passaram pelo cérebro: a sorte grande, naturalmente, e a escola. Atrás delas veio uma sugestão, depois um cálculo. Este cálculo, por mais que digam do escrivão que ele amava o dinheiro (e amava), foi desinteressado; era dar de si muita coisa, contribuir para elevar mais e mais a escola, que era também obra sua. Prometeu dar cem contos de réis para o ensino, para a escola, Escola de S. Bernardo, se tirasse a sorte grande. Não fez a promessa nominalmente, mas por estas palavras sem sobrescrito, e todavia sinceras: “Prometo dar cem contos de réis à Escola de S. Bernardo, se tirar a sorte grande”. Já na rua, considerou bem que não perdia nada se não tirasse a sorte, e ganharia quatrocentos contos, se a tirasse. Picou o passo e ainda uma vez penetrou no cartório, onde buscou enterrar-se no trabalho.

 

Não se contam as agonias daquele dia 24 de dezembro de 1898. Imagine-as quem já esperou quinhentos contos de réis. Nem por isso deixou de receber e contar as quantias que lhe eram devidas por atos judiciais. Parece que entre onze horas e meio-dia, depois de uma autuação e antes de uma conclusão, repetiu a promessa de cem contos à Escola: “Prometo dar, etc.” Bateu meio-dia e o coração do Coimbra não bateu menos, com a diferença que as doze pancadas do relógio de S. Francisco de Paula foram o que elas são desde que se inventaram relógios, uma ação certa, pausada e acabada, e as do coração daquele homem foram precipitadas, convulsas, desiguais, sem acabar nunca. Quando ele ouviu a última de S. Francisco, não se pôde ter que não pensasse mais vivo na roda ou o que quer que era que faria sair os números e os prêmios da loteria. Era agora... Teve idéia de ir dali saber notícias, mas recuou. Mal se concebe tanta impaciência em jogador tão velho. Parece que estava adivinhando o que lhe ia acontecer.

 

Desconfias o que lhe aconteceu? Às quatro horas e meia, acabado o trabalho, saiu com a alma nas pernas e correu à primeira casa de loterias. Lá estavam, escritos a giz em tábua preta, o número do bilhete dele e os quinhentos contos. A alma, se ele a tinha nas pernas, era de chumbo, porque elas não andaram mais, nem a luz lhe tornou aos olhos senão alguns minutos depois. Restituído a si, consultou a carteira, era o número exato. Ainda assim, podia ter-se enganado, ao copiá-lo. Voou num tílburi a casa; não se enganara, era o número dele.

 

Tudo se cumpriu com lealdade. Cinco dias depois, a mesa da irmandade recebia os cem contos de réis para a Escola de S. Bernardo e expedia um oficio de agradecimento ao fundador das duas instituições, entregue a este por todos os membros da mesa em comissão.

 

No fim de abril, casara o escrevente Amaral, servindo-lhe Coimbra de testemunha, e morrendo na volta, como ficou dito atrás. O enterro que a irmandade lhe fez e o túmulo que lhe mandou levantar no cemitério de S. Francisco Xavier corresponderam aos benefícios que lhe devia. A escola tem hoje mais de cem alunos e os cem contos dados pelo escrivão receberam a denominação de patrimônio Coimbra.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 01 de fevereiro de 2022

BARBA DE BODE (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

BARBA DE BODE

Humberto de Campos

 

 

 

Foi recolhida, segunda-feira última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva erroneamente receitada por um herbanário dos subúrbios, a encantadora senhorita Carmélia Passos, filha única e inteligentíssima da viúva Carlota Passos, proprietária nesta capital.

 

Eu desconhecia ainda este caso, e já aplaudia com todo o meu coração a atitude da Saúde Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da lei a praga dos curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um episódio doloroso, que me fora narrado, semanas antes, pelo meu prestimoso amigo o Sr. senador Elói de Souza.

 

O coronel Raimundo de Araújo, comerciante em Natal, capital do Rio Grande do Norte, havia entrado na casa dos sessenta anos quando, após quatorze de viuvez, entendeu de contrair novas núpcias com uma sólida moçoila de São Gonçalo. Pedida, porém, a rapariga, começaram as complicações, as dificuldades, os obstáculos e, com eles, o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada, sujeito, portanto, ao efeito das emoções violentas, o coronel, assim que ficou noivo, começou a declinar de forças, de coragem, de saúde, e de tal forma que, após um mês de noivado, parecia haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado, combalido, o abastado comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os médicos da cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu compadre, o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem participara a sua infelicidade, lhe perguntou, interessado:

 

— O compadre já usou chá de barba de bode?

 

— Barba de bode? — indagou o outro, espantado.

 

— Sim. Pega-se todo o dia um punhado de barba de bode, faz-se um chá bem forte, e toma-se três vezes por dia.

 

E acentuou, sincero:

 

— É um santo remédio, compadre!

 

Animado com a nova esperança; o coronel Araújo mandou chamar à sua casa de negócio um caboclo de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de caprinos naquela parte do sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda, pediu que lhe mandasse na primeira oportunidade, e a qualquer preço, um saco com barbas de bode.

 

— Que quantidade, coronéo? — indagou o sertanejo.

 

— Uns dez quilos.

 

Duas semanas depois recebia o coronel Araújo a sua encomenda, entrando, de pronto, no uso da medicina receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia efeitos exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de chorar, de berrar, de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível de fugir às mulheres. No fim de um mês, a situação do enfermo era, mesmo, desesperadora: magro, nervoso, espumando pelo canto da boca, passava as noites na rua, encostando-se às paredes, às árvores, às pedras das estradas, nas proximidades do porto, do mercado e do quartel, e em estado tal de desmoralização que os amigos, penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então governador do Estado, em uma casa de saúde de Pernambuco!

 

Esse desfecho de uma vida honrada e laboriosa impressionou, como era natural, o meio em que vivia o conhecido negociante. Quem, entretanto, mais pensava naquele infortúnio era o seu compadre Ferreira, autor da receita. Preocupado com o caso, e sem encontrar para ele uma explicação aceitável, ia o velho tabelião um dia pela praça do mercado quando sentiu, de repente, uma pancada no ombro. Era o Antônio Severo, de Currais Novos, que havia chegado naquele dia com uma partida de couros. A figura do sertanejo avivou-lhe, naquele momento, uma lembrança; e como esta fosse teimosa, forte, renitente, o velho Ferreira não se conteve, e indagou:

 

— Diga-me uma coisa, Severo: o coronel Araújo não lhe fez, quando você esteve aqui da última vez, uma encomenda de barba de bode?

 

— Fez, sim, senhor; e eu mandei, logo que cheguei lá.

 

— E você tem certeza de que era, mesmo, barba de bode?

 

Ante essa insistência, o matuto sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e, com a sua vozinha de ingênuo e de esperto, confessou:

 

— Home, "seu" capitão, garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou, é verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode p'ra tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de cabra!


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 30 de janeiro de 2022

UM ERRADIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM ERRADIO

Machado de Assis

 

 

 

A porta abriu-se... Deixa-me contar a história à laia de novela, disse Tosta à mulher, um mês depois de casados, quando ela lhe perguntou quem era o homem representado numa velha fotografia, achada na secretária do marido. A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e sério, moreno, metido numa infinita sobrecasaca cor de rapé, que os rapazes chamavam opa.

- Aí vem a opa do Elisiário.

- Entre a opa só.

- Não, a opa não pode; entre só o Elisiário, mas, primeiro há de glosar um mote. Quem dá o mote?

Ninguém dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um alfaiate, que morava nos fundos com a família; Rua do Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia ali, a convite de um dos rapazes. Não podes ter idéia da sala e da vida. Imagina um município do país da Boêmia, tudo desordenado e confuso; além dos poucos móveis pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, uma canastra, um cabide, um baú de folha-de-flandres, livros, chapéus, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas apareciam outros, e todos eram tudo, estudantes, tradutores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava tempo para redigir uma folha política e literária, publicada aos sábados. Que longas palestras que tínhamos! Solapávamos as bases da sociedade, descobríamos mundos novos, constelações novas, liberdades novas. Tudo era o novíssimo.

- Lá vai mote, disse afinal um dos rapazes, e recitou:

Podia embrulhar o mundo

A opa do Elisiário.

Parado à porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu, que não tinha idéia do que era improviso, cuidei a princípio que a composição era velha e a cena um logro para mim. Elisiário despiu a sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triunfal, e foi pendurá-la a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o chapéu ao teto, apanhou-o entre as mãos, e foi pô-lo em cima do aparador.

- Lugar para um! disse finalmente.

Dei-me pressa em ceder-lhe o sofá; ele deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia.

- Que o jantar é duvidoso, respondeu o redator principal do Cenáculo; o Chico foi ver se cobrava alguma assinatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o jantar da casa de pasto. Você já jantou?

- Já e bem, respondeu Elisiário, jantei numa casa de comércio. Mas vocês por que é que não vendem o Chico? é um bonito crioulo. É livre, não há dúvida, mas por isso mesmo compreenderá que, deixando-se vender como escravo, terão vocês com que pagar-lhe os ordenados... Dois mil-réis chegam? Romeu, vê ali no bolso da sobrecasaca. Há de haver uns dois mil-réis.

Havia só mil e quinhentos, mas não foram precisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, trazendo um tabuleiro com o jantar e o resto da assinatura de um semestre.

- Não é possível! bradou Elisiário. Uma assinatura! Vem cá Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? Não é possível que fosse baixo; a ação é tão sublime que nenhum homem baixo podia praticá-la. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimarães? Rapazes, vamos perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito que não lhe deste recibo, Chico.

- Dei, sim, senhor.

- Recibo! Mas a um assinante que paga não se dá recibo, para que ele pague outra vez, não se matam esperanças, Chico.

Tudo isto, dito por ele, tinha muito mais graça que contado. Não te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que não ria, um riso único, sem alterar a face, nem mostrar os dentes. Essa feição era a menos simpática; mas tudo o mais, a fala, as idéias, e principalmente a imaginação fecunda e moça, que se desfazia em ditos, anedotas, epigramas, versos, descrições, ora sério, quase sublime, ora familiar, quase rasteiro, mas sempre original, tudo atraía e prendia. Trazia a barba por fazer, o cabelo à escovinha, a testa, que era alta, tinha grossas rugas verticais. Calado, parecia estar pensando. Voltava-se a miúdo no sofá, erguia-se, sentava-se, tornava a deitar-se. Lá o deixei, quando saí, às nove horas da noite.

Comecei a freqüentar a casa da Rua do Lavradio, mas durante os primeiros dias não apareceu o Elisiário. Disseram-me que era muito incerto. Tinha temporadas. Às vezes, ia todos os dias; repentinamente, falhava uma, duas, três semanas seguidas, e mais. Era professor de latim e explicador de matemáticas. Não era formado em coisa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito deixando em todas as faculdades fama de grande talento sem aplicação. Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever vinte minutos seguidos; era poeta de improviso, não escrevia os versos, os outros é que os ouviam e transladavam ao papel, dando-lhe cópias, muitas das quais perdia. Não tinha família; tinha um protetor, o Dr. Lousada, operador de algum nome, que devera obséquios ao pai de Elisiário, e quis pagá-los ao filho. Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor-próprio, que não tolerava a menor picada. Naquela casa era bonachão. Trinta e cinco anos; o mais velho dos rapazes contava apenas vinte e um. A familiaridade entre ele e os outros era como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de liberdade.

No fim de uma semana, apareceu Elisiário na Rua do Lavradio. Vinha com a idéia de escrever um drama, e queria ditá-lo. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta colaboração mental e manual durou duas noites e meia. Escreveu-se um ato e as primeiras cenas de outro; Elisiário não quis absolutamente acabar a peça. A princípio disse que depois, mais tarde, estava indisposto, e falava de outras coisas; afinal, declarou-nos que a peça não prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excelente, e ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia coisa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Nós contestávamos; eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo - achava um crime não acabar o drama, que era de primeira ordem.

- Não vale nada, dizia ele sorrindo para mim com simpatia. Menino, você quantos anos tem?

- Dezoito.

- Tudo é sublime aos dezoito anos. Cresça e apareça. O drama não presta; mas, deixe estar que havemos de escrever outro daqui a dias. Ando com uma idéia.

- Sim?

- Uma boa idéia, continuou ele com os olhos vagos; essa, sim, creio que dará um drama. Cinco atos; talvez faça em verso. O assunto presta-se...

Nunca mais falou em tal idéia; mas o drama começado fez com que nos ligássemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou amor-próprio satisfeito, por ver que o mais consternado com a interrupção e condenação do trabalho fui eu, - ou qualquer outra causa que não achei nem vale a pena buscar, Elisiário entrou a distinguir-me entre os outros. Quis saber quem eram meus pais e o que fazia. Disse-lhe que não tinha mãe, meu pai era lavrador em Baturité, eu estudava preparatórios, intercalando-os com versos, e andava com idéias de compor um poema, um drama e um romance. Tinha já uma lista de subscritores para os versos. Parece que, de envolta com as notícias literárias, alguma coisa lhe disse ou ele percebeu acerca dos meus sentimentos de moço. Propôs-se a ajudar-me nos estudos com o seu próprio ensino, latim, francês, inglês, história... Cheio de orgulho, não menos que de sensibilidade, proferi algumas palavras que ele gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente:

- Quero fazer de você um homem.

Estávamos sós; eu nada contei aos outros, para os não molestar, nem sei se eles perceberam daí em diante alguma diferença no trato do Elisiário, em relação a mim. É certo, porém, que a diferença não era grande, nem o plano de "fazer-me um homem" foi além da simpatia e da benevolência. Ensinava-me algumas matérias, quando eu lhe pedia lições, e eu raramente as pedia. Queria só ouvi-lo, ouvi-lo, ouvi-lo até não acabar. Não imaginas a eloqüência desse homem, cálida e forte, mansa e doce, as imagens que lhe brotavam no discurso, as idéias arrojadas, as formas novas e graciosas. Muita vez ficávamos os dois sós na Rua do Lavradio, ele falando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vagamente que para os lados da Gamboa, mas nunca me convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente onde era.

Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, e, se falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroço quase sem prazer, ouvia-me atento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte, era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, S. Cristóvão, Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.

- Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto.

Um dia encontrei-o na Rua de S. José. Disse-lhe que ia ao Castelo ver a igreja dos Jesuítas, que nunca vira.

- Pois vamos, disse ele.

Subimos a ladeira, achamos a igreja aberta e entramos. Enquanto eu mirava os altares, ele ia falando, mas em poucos minutos o espetáculo era ele só, um espetáculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi os primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida monástica e leiga, os nomes principais e os fatos culminantes. Quando saímos, e fomos até à muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisiário fez-me viver dois séculos atrás. Vi a expedição dos franceses, como se a houvesse comandado ou combatido. Respirei o ar da colônia, contemplei as figuras velhas e mortas. A imaginação evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar vida às coisas extintas e realidade às inventadas.

Mas não era só do passado local que ele sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquela estatuazinha que ali tenho na parede? Sabes que é uma redução da Vênus de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposição das belas-artes, fui visitá-la; achei lá o meu Elisiário, passeando grave, com a sua imensa sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura, dei com os olhos na cópia desta Vênus. Era a primeira vez que a via. Soube que era ela pela falta dos braços.

- Oh! admirável! exclamei.

Elisiário entrou a comentar a bela obra anônima, com tal abundância e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de coisas me disse a propósito da Vênus de Milo, e da Vênus em si mesma! Falou da posição dos braços, que gesto fariam, que atitude dariam à figura, formulando uma porção de hipóteses graciosas e naturais. Falou da estética, dos grandes artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que ali me aparecia e transportava de uma rua estreita para diante do Partenon. A opa do Elisiário transformou-se em clâmide, a língua devia ser a da Hélade, conquanto eu nada soubesse a tal respeito, nem então, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem.

Saímos; fomos até o Campo da Aclamação, que ainda não possuía o parque de hoje, nem tinha outra polícia além da natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiário, ao lado dele, que levava a cabeça baixa e os olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho:

- Adeus, Ioiô!

Era uma quitandeira de doces, uma crioula baiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e da camisa. Vinha da Cidade Nova e atravessava o campo. Elisiário respondeu à saudação:

- Adeus, Zeferina.

Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns segundos:

- Não se espante, menino. Há muitas espécies de Vênus. O que ninguém dirá é que a esta lhe faltem braços, continuou olhando para os braços da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta e alva da camisa.

Eu, de vexado, não achei resposta.

Não contei esse episódio na Rua do Lavradio; podiam meter à bulha o Elisiário, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe não sei que veneração particular, que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos a jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe custava no teatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atrás de si. Nas noites de enchente, em que eram precisas travessas na platéia, ficava aflito com a idéia de não poder sair no meio de um ato, se quisesse. Naquela, acabado o terceiro ato (a peça tinha cinco), disse-me que não podia mais e que ia embora.

Fomos tomar chá ao botequim próximo, e deixei-me estar, esquecido do espetáculo. Ficamos até o fechar das portas. Tínhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do sertão cearense, ele ouviu e projetou mil jornadas ao sertão do Brasil inteiro, por serras, campos e rios, de mula e de canoa. Colheria tudo, plantas, lendas, cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de Enéias, citou Virgílio e Camões, com grande espanto dos criados, que paravam boquiabertos.

- Você era capaz de ir daqui a pé, até S. Cristóvão, agora? perguntou-me na rua.

- Pode ser.

- Não, você está cansado.

- Não estou, vamos.

- Está cansado, adeus; até depois, concluiu.

Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se ele iria sozinho, àquela hora, e deu-me vontade de acompanhá-lo de longe, até certo ponto. Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação, enfiou pela Rua de S. Pedro e meteu-se pelo Aterrado acima. Eu, no Campo, quis voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se esse erradio não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei desta reflexão, e quis punir-me desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor às pernas. Fui andando atrás do Elisiário. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o Saco do Alferes. Maré frouxa, apenas o ressonar manso da água. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo à cidade. Não sei quanto ofereceu; vi que, depois de alguma relutância, aceitaram a proposta.

Elisiário entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a água, e lá se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e explicador de matemáticas. Também eu me achei perdido, longe da cidade e exausto. Valeu-me um tílburi, que atravessava o Campo de S. Cristóvão, tão cansado como eu, mas piedoso e necessitado.

- Você não quis ir comigo anteontem a São Cristóvão? Não sabe o que perdeu; a noite estava linda, o passeio foi muito agradável. Chegando ao cais da Igrejinha meti-me num bote e vim desembarcar no Saco do Alferes. Era um bom pedaço até a casa; fiquei numa hospedaria do Campo de Santana. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Saco, e por dois na Rua de S. Diogo, mas não senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um justo. E você que fez?

- Eu?

Não querendo mentir, se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi sumariamente:

- Eu? Eu também dormi como um justo.

Justus, justa, justum.

Estávamos na casa da Rua do Lavradio. Elisiário trazia no peito da camisa um botão de coral, objeto de grande espanto e aclamação da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com jóias. Maior, porém, foi o meu espanto, depois que os rapazes saíram. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar sapatos, Elisiário sacou o botão de coral e disse que me fosse calçar com ele. Recusei energicamente, mas tive de aceitá-lo à força. Não o vendi nem empenhei; no dia seguinte pedi algum dinheiro adiantado ao correspondente de meu pai, calcei-me de novo, e esperei que chegasse o paquete do Norte, para restituir o botão ao Elisiário. Se visses a cara de desconsolo com que o recebeu!

- Mas o senhor não disse outro dia que lhe tinham dado este botão de presente? repliquei à proposta que me fez de ficar com a jóia.

- Sim, disse e é verdade; mas para que me servem jóias? Acho que ficam melhor nos outros. Bem pensado, como é presente, posso guardar o botão. Deveras, não o quer para si?

- Não, senhor; um presente...

- Presente de anos, continuou mirando a pedra com o olhar vago. Fiz trinta e cinco. Estou velho, meu menino; não tardo em pedir reforma e ir morrer em algum buraco.

Tinha acabado de repor o botão na camisa.

- Fez anos, e não me disse.

- Para quê? Para visitar-me? Não recebo nesse dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Lousada, que também faz o seu versinho, às vezes, e outro dia brindou-me com um soneto impresso em papel azul... Lá o tenho em casa; não é mau.

- Foi ele que lhe deu o botão...

- Não, foi a filha... O soneto tem um verso muito parecido, com outro de Camões; o meu velho Lousada possui as suas letras clássicas, além de ser excelente médico... Mas o melhor dele é a alma...

Quiseram fazê-lo deputado. Ouvi que dois amigos dele, homens políticos, entenderam que o Elisiário daria um bom orador parlamentar. Não se opôs, pediu apenas aos inventores do projeto que lhe emprestassem algumas idéias políticas; riram-se, e o projeto não foi adiante.

Quero crer que lhe não faltassem idéias, talvez as tivesse de sobra, mas tão contrárias umas às outras que não chegariam a formar uma opinião. Pensava segundo a disposição do dia, liberal exaltado ou conservador corcunda. O principal motivo da recusa era a impossibilidade de obedecer a um partido, a um chefe, a um regimento de câmara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da sessão, uma de manhã, outra de noite, outra de madrugada, ao acaso da freqüência, sem ordem do dia, com direito de discutir o anel de Saturno ou os sonetos de Petrarca, o meu erradio Elisiário aceitaria o cargo, contanto que não fosse obrigado a estar calado, nem a falar, quando lhe chegasse a vez.

Aí tens o que era esse homem fotografado em 1862. Em suma, boa criatura, muito talento, excelente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada e irritadiça, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambições, um erradio. Senão quando... Mas é muito falar sem fumar um charuto... Consentes? Enquanto acendo o charuto, olha para esse retrato, descontando-lhe os olhos, que não saíram bem; parecem olhos de gato e inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a consciência. Não eram isso; olhavam mais para dentro que para fora, e quando olhavam para fora derramavam-se por toda a parte.

Senão quando, uma tarde, já escuro, por volta das sete horas apareceu-me na casa de pensão o meu amigo Elisiário. Havia três semanas que o não via, e, como tratava de fazer exames, e passava mais tempo metido em casa, não me admirei da ausência nem cuidei dela. Demais, já me acostumara aos seus eclipses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisiário apareceu à porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao pé dele, perguntei-lhe por onde andara. Elisiário abraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada; abracei-o também, ele enxugou os olhos com o lenço, que de costume trazia fechado na mão, e suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosamente, porque enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais assombrado, esperava que ele me dissesse o que tinha; afinal murmurei:

- Que é? que foi?

- Tosta, casei-me sábado.

Cada vez mais espantado, não tive tempo de lhe pedir outra explicação, porque o Elisiário continuou logo, dizendo que era um casamento de gratidão, não de amor, uma desgraça. Não sabia que respondesse à confidência, não acabava de crer na notícia, e principalmente, não entendia o abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisiário, qual a recompus depois, não me aparecia por esse tempo com a significação verdadeira. Cheguei a supor alguma coisa mais que o simples casamento; talvez a mulher fosse idiota ou tísica; mas quem o obrigaria a desposar uma doente?

"Uma desgraça! repetia baixinho, falando para si, uma desgraça!"

Como eu me levantasse dizendo que ia acender uma vela, Elisiário reteve-me pela aba do fraque.

- Não acenda, não me vexe, o escuro é melhor, para lhe expor esta minha desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que ela me não ame; ao contrário, morria por mim há sete anos. Tem vinte e cinco... Boa criatura! Uma desgraça!

A palavra desgraça era a que mais vezes lhe tornava ao discurso. Eu, para saber o resto, quase não respirava; mas não ouvi grande coisa, pois o homem, depois de algumas palavras descosidas, suspendeu a conferência. Fiquei sabendo só que a mulher era filha do Dr. Lousada, seu protetor e amigo, a mesma que lhe dera o botão de coral. Elisiário calou-se de repente, e depois de alguns instantes como arrependido ou vexado, pediu-me que não referisse a pessoa alguma aquela cena dele comigo.

- O senhor deve conhecer-me...

- Conheço, e porque o conheço é que vim aqui. Não sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiança. Adeus, não lhe digo mais nada, não vale a pena. Você é moço, Tosta; se não tiver vocação para o casamento, não se case nunca, nem por gratidão, nem por interesse. Há de ser um suplício. Adeus. Não lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas não me procure.

Abraçou-me e saiu. Fiquei à porta do quarto. Quando me lembrei de acompanhá-lo até escada, era tarde; ia descendo os últimos degraus. O lampião de azeite alumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa, apoiada ao corrimão, cabeça baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste.

Só dez meses depois tornei a ver o Elisiário. A primeira ausência foi minha; tinha ido ao Ceará, ver meu pai, durante as férias. Quando voltei, soube que ele fora ao Rio Grande do Sul. Um dia, almoçando, li nos jornais que chegara na véspera, e corri a buscá-lo. Achei-o em Santa Teresa, uma casinha pequena, com um jardim, pouco maior que ela. Elisiário abraçou-me com alvoroço; falamos de coisas passadas; perguntei-lhe pelos versos.

- Publiquei um volume em Porto Alegre. Não foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ela mesma os copiou. Tem alguns erros, hei de fazer aqui uma segunda edição.

Elisiário deu-me um exemplar do livro, mas não consentiu que lesse ali nada. Queria só falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma coisa, e ia continuar a lecionar, para ver se achava as impressões de outrora. Onde estavam os rapazes da Rua do Lavradio? Recordava cenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam lembrando coisas análogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando me despedi, pegou-me para jantar.

- Você ainda não viu minha mulher, disse ele. E indo à porta que dava para dentro: - Cintinha!

- Lá vou! respondeu uma voz doce.

D. Jacinta chegou logo depois, com os seus vinte e seis anos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expressão boa e séria, grande quietação de maneiras. Quando ele lhe disse o meu nome, olhou para mim espantada.

- Não é um bonito rapaz?

Ela confirmou a opinião inclinando modestamente a cabeça. Elisiário disse-lhe que eu jantava com eles, a moça retirou-se da sala.

- Boa criatura, disse-me ele; dedicada, serviçal. Parece que me adora. Já me não faltam botões nos paletós que trago... Pena! melhor que eles eram os botões que faltavam. A sobrecasaca de outrora, lembra-se?

 

Podia embrulhar o mundo

A opa do Elisiário.

 

- Lembra-me.

- Creio que me durou cinco anos. Onde vai ela! Hei de fazer-lhe um epicédio, com uma epígrafe de Horácio...

Jantamos alegremente. D. Jacinta falou pouco; deixou que eu e o marido gastássemos o tempo em relembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha surtos de eloqüência, como outrora; a mulher era pouca para ouvi-lo. Elisiário esquecia-se de nós, ela de si, e eu achava a mesma nota antiga, tão viva e tão forte. Era costume dele concluir um discurso desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer? Continuava a mesma ordem de idéias? Deixava-se ir ainda pela música da palavra? Não sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas ocasiões a mulher calava-se também, a olhar para ele, não cheia de pensamento, mas de admiração. Sucedeu isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita.

Elisiário disse-me, ao café, que viria comigo abaixo.

- Você deixa, Cintinha?

D. Jacinta sorriu para mim, como se dissesse que o pedido era desnecessário. Também ela falou no livro de versos do marido.

- Elisiário é preguiçoso; o senhor há de ajudar-me a fazer com que ele trabalhe.

Meia hora depois descíamos a ladeira. Elisiário confessou-me que, desde que casara, não tivera ocasião de relembrar a vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que iríamos ao teatro.

- Mas você não avisou em casa...

- Que tem? Aviso depois. Cintinha é boa, não se zanga por isso. Que teatro há de ser?

Não foi nenhum; falamos de outras coisas, e às nove horas, tornou para casa. Voltei a Santa Teresa poucos dias depois, não o achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, não tardaria.

- Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse ela; há de gostar muito de o ver.

Enquanto falava, ia fechando dissimuladamente um livro, e foi pô-lo em uma mesa, a um canto. Tratamos do marido; ela pediu-me que lhe dissesse o que pensava dele, se era um grande espírito, um grande poeta, um grande orador, um grande homem, em suma. As palavras não seriam propriamente essas, mas vinham a dar nelas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe o sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforço que empreguei para dar à minha opinião a mesma ênfase.

- Faz bem em ser amigo dele, concluiu; ele sempre me falou bem do senhor, dizia que era um menino muito sério.

O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada coisa em seu lugar, obra visível da mulher. Daí a pouco entrou Elisiário, com a gravata no pescoço, o laço na frente, a barba rapada, correto e em flor. Só então notei a diferença entre este Elisiário e o outro. A incoerência dos gestos era já menor, ou estava prestes a acabar inteiramente. A inquietação desaparecera. Logo que ele entrou, a mulher deixou-nos para ir mandar fazer café, e voltou pouco depois, com um trabalho de agulha.

- Não, senhora, vamos primeiro ao latim, bradou o marido.

D. Jacinta corou extraordinariamente, mas obedeceu ao marido e foi buscar o livro, que estava lendo quando eu cheguei.

- Tosta é de confiança, continuou Elisiário, não vai dizer nada a ninguém.

E voltando-se para mim:

- Não pense que sou eu que lhe imponho isto; ela mesma é que quis aprender.

Não crendo o que ele me dizia, quis poupar à moça a lição de latim, mas foi ela própria que me dispensou o auxílio, indo buscar alegremente a gramática do Padre Pereira. Vencida a vergonha, deu a lição, como um simples aluno. Ouvia com atenção, articulava com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o marido quis passar à lição de história; mas foi ela, dessa vez, que recusou obedecer, para me não roubá-lo a mim. Eu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava tão fora de propósito aquela escola de latim conjugal, que não alcançava explicação, nem ousava pedi-la.

Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas vezes. Ao domingo ia só almoçar. D. Jacinta era um primor. Não imaginas a graça que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mãos, apesar do latim e da história que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os cabelos lisos e não trazia jóia alguma, podia ser afetação, mas tal era a sinceridade que punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto.

Ao domingo, o almoço era no jardim. Já achava o Elisiário à minha espera, à porta, ansioso que eu chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as flores e folhagens que tinham de adornar a mesa. Além disso e do mais, adornava cartões contendo a lista dos pratos, com emblemas poéticos e nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar, eles não eram ricos, nem nós tão comilões, entravam as que podiam. Era ao almoço que Elisiário, nos primeiros tempos, mais geralmente improvisava alguma coisa. Improvisava décimas, - ele preferia essa estrofe a qualquer outra; mais tarde, foi diminuindo o número delas, e para diante não passava de duas ou de uma. D. Jacinta pedia-lhe então sonetos; sempre eram quatorze versos. Ela e eu copiávamos logo, a lápis, com retificações que ele fazia, rindo: - "Para que querem vocês isso?" Afinal perdeu o costume, com grande mágoa da mulher, e minha também. Os versos eram bons, a inspiração fácil; faltava-lhes só o calor antigo.

Um dia perguntei a Elisiário por que não reimprimia o livro de versos, que ele dizia ter saído com incorreções; eu ajudaria a ler as provas. D. Jacinta apoiou com entusiasmo a proposta.

- Pois, sim, disse ele, um dia destes; começaremos domingo.

No domingo, D. Jacinta, estando a sós comigo, um instante, pediu-me que não esquecesse a revisão do livro.

- Não, senhora, deixe estar.

- Não enfraqueça, se ele quiser adiar o trabalho, continuou a moça; é provável que ele fale em guardar para outra vez, mas teime sempre, diga que não, que se zanga, que não volta cá..

Apertou-me a mão com tanta força, que me deixou abalado. Os dedos tremiam-lhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o que disse, ela ajudou-me, e ainda assim gastamos meia hora antes que ele se dispusesse ao trabalho. Afinal pediu-nos que esperássemos, ia buscar o livro.

- Desta vez, vencemos, disse eu.

D. Jacinta fez com a boca um gesto de desconfiança, e passou da alegria ao abatimento.

- Elisiário está preguiçoso. Há de ver que não acabamos nada. Pois não vê que não faz versos senão à força de muito pedido, e poucos? Podia escrever também, quando mais não fosse alguns daqueles discursos que costuma improvisar, mas os próprios discursos são raros e curtos. Tenho-me oferecido tantas vezes para escrever o que ele mandar. .. Chego a preparar o papel, pego na pena e espero; ele ri, disfarça, diz um gracejo, e responde que não está disposto.

- Nem sempre estará.

- Pois sim, mas então declaro que estou pronta para quando vier a inspiração, e peço-lhe que me chame. Não chama nunca. Uma ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no mesmo. Entretanto, o livro que ele imprimiu em Porto Alegre foi bem recebido, podia animá-lo.

- Animá-lo? Mas ele não precisa de animações; basta-lhe o grande talento que tem.

- Não é verdade? disse ela chegando-se a mim, com os olhos cheios de fogo. Mas é pena! tanto talento perdido!

- Nós o acharemos, hei de tratá-lo como se ele fosse mais moço que eu. O mau foi deixá-lo cair na ociosidade...

Elisiário tornou com um exemplar do livro. Não trazia tinta nem pena; ela foi buscá-las. Começamos o trabalho da revisão; o plano era emendar, não só os erros de imprensa, mas o próprio texto. A novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas. Verdade é que a maior parte do tempo era interrompido com a história das poesias, a notícia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das composições era dedicada a amigos ou homens públicos. Naturalmente fizemos pouco: não passamos de vinte páginas. Elisiário confessou que estava com sono, adiamos o trabalho, e nunca mais pegamos nele.

D. Jacinta chegou a pedir ao marido que nos deixasse a nós a tarefa de emendar o livro, ele veria depois o texto emendado e pronto. Elisiário respondeu que não, que ele mesmo faria tudo, que esperássemos, não havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos no livro. Já raro improvisava, e, como não tinha paciência para compor escrevendo, os versos iam escasseando mais. Já lhe saíam frouxos; o poeta repetia-se. Quisemos ainda assim propor-lhe outro livro, recolhendo o que havia, e antes de o propor, tratamos de compilá-lo. O todo precisava de revisão; Elisiário consentiu em fazê-la, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os próprios discursos iam acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos nós falamos; não era já nem sombra daquela catadupa de idéias, de imagens, de frases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem falava; já me recebia sem entusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal vivia aborrecido.

Com poucos anos de casada, D. Jacinta tinha no marido um homem de ordem, de sossego, mas sem inspiração nem calor. Ela própria foi mudando também. Não instava já pela composição de versos novos, nem pela correção dos velhos. Ficou tão desinteressada como ele. Os jantares e os almoços eram como os de qualquer pessoa que não cuide de letras. D. Jacinta buscava não tocar em tal assunto que era penoso ao marido e a ela; eu imitava-os. Quando me formei, Elisiário compôs um soneto em honra minha, mas já lhe custou muito, e, a falar verdade, não era do mesmo homem de outro tempo.

D. Jacinta vivia então, não direi triste, mas desencantada. A razão não se compreenderá bem, senão sabendo as origens da afeição que a levara ao casamento.

Pelo que pude colher e observar, nunca essa moça amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisiário acreditou que sim, e o disse, porque o pai dela pensava que era deveras um amor como os outros. A verdade porém, é que o sentimento de D. Jacinta era pura admiração. Tinha uma paixão intelectual por esse homem, nada mais, e nos primeiros anos não pensou em casar com ele. Quando Elisiário ia à casa do Dr. Lousada, D. Jacinta vivia as melhores horas da vida, escutando-lhe os versos, novos ou velhos, - os que trazia de cor e os que improvisava ali mesmo. Possuía boa cópia deles. Mas, ainda que não fossem versos, contentava-se em ouvi-lo para admirá-lo. Elisiário, que a conhecia desde pequena, falava-lhe como a uma irmã mais moça. Depois viu que era inteligente, mais do que o comum das mulheres, e que havia nela um sentimento de poesia e de arte que a faziam superior. O apreço em que a tinha era grande, mas não passava disso.

Assim se passaram anos. D. Jacinta começou a pensar em um ato de pura dedicação. Conhecia a vida de Elisiário, os dias perdidos, as noitadas, a incoerência e o desarranjo de uma existência que ameaçava acabar na inutilidade. Nenhum estímulo, nenhuma ambição de futuro. D. Jacinta acreditava no gênio de Elisiário. Muitos eram os admiradores, nenhum tinha a fé viva a devoção calada e profunda daquela moça. O projeto era desposá-lo. Uma vez casados, ela lhe daria a ambição que não tinha, o estímulo, o hábito do trabalho regular, metódico, e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspiração em coisas fúteis ou conversas ociosas, comporia obras de fôlego, nas boas horas e para ele quase todas as horas eram excelentes. O grande poeta afirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, não lhe foi difícil obter a colaboração do pai, sem todavia confessar-lhe o motivo secreto da ação; seria dizer que se casava sem amor. O que ela disse foi que o amava deveras.

Que haja nisso uma nota romanesca, é verdade; mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admiração, e podia ser um sacrifício. Talvez mais de um tentasse casar com ela. D. Jacinta não pensou em ninguém, até que lhe surdiu a idéia generosa de seduzir o poeta. Já sabes que este casou por obediência.

O resultado foi inteiramente oposto às esperanças da moça. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapuça na cabeça, e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem lia já obras de arte. D. Jacinta padeceu grandemente; viu esvair-se-lhe o sonho, e, se não perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquela língua sublime em que cuidou falar às ambições de um grande espírito. A conclusão a que chegou foi ainda um desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilizara uma inspiração que só tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, além de não achar as doçuras do casamento na união com Elisiário, perdeu a única vantagem a que se propusera no sacrifício.

Errava naturalmente. Para mim Elisiário era o mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era também um talento de pouca dura; tinha de acabar, ainda que não casasse. Não foi a ordem que lhe tirou a inspiração. Certamente, a desordem ia mais com ele que tanto tinha de agitado, como de solitário; mas a quietação e o método não dariam cabo do poeta, se a poesia nele não fosse uma grande febre da mocidade... Em mim é que não passou de ligeira constipação da adolescência. Pede-me tu amor, que o terás; não me peças versos, que desaprendi há muito, concluiu Tosta, beijando a mulher.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 29 de janeiro de 2022

O PRESTÍGIO DO ROUGE (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O PRESTÍGIO DO ROUGE 

Humberto de Campos

 

 

 

Quando a gripe devorava, no Rio de janeiro, diariamente, centenas de vidas, a porta do Céu fazia, recordar, lá em cima, as portas de cinema, em dia de programa sensacional. Homens, mulheres, crianças, pessoas cuja morte estava iminente ou marcada para uma época muito distante, amontoavam-se diante da grande fachada refulgente de estrelas, reclamando, com o bilhete de entrada, o prêmio das suas boas obras ou do seu martírio.

 

— Antônio Esmeraldino Gomes de Albuquerque! — chamava, em voz alta, o santo do dia, lendo uma lista de nomes.

 

— Presente! — respondia o invocado, encaminhando-se para a porta.

 

São Pedro conferia os sinais da pessoa e dava-lhe, então, entrada, entre o coro festivo dos anjos.

 

Uma tarde, porém, chegou à fachada do Paraíso, entre milhares de vítimas da epidemia, uma senhora de uns quarenta e tantos anos, vitimada naquele dia. Pálida, com os lábios alvos como a cera dos círios que deixara na terra, a sua fisionomia denunciava cansaço, tristeza, sofrimento. De repente, chamaram um nome:

 

— D. Luíza Gonçalves Pedreira.

 

— Presente! — confirmou a nobre defunta, pondo, já um dos pés no batente sagrado.

 

Uma grande mão desceu, porém, sobre o seu ombro, detendo-a.

 

— É a senhora? — indagou, severo, o chaveiro.

 

— Sou eu mesma, meu santo!

 

— Mas a outra, a que vivia na terra, tinha, segundo os sinais que me fornecem, as faces muito coradas.

 

A dama não respondeu.

 

— E os lábios muito vermelhos.

 

Novo silêncio.

 

— E os cabelos muito negros.

 

Silêncio ainda.

 

— E umas olheiras muito pronunciadas.

 

Nesse ponto, antes que a enumeração tomasse um caráter comprometedor, D. Luisinha teve uma ideia: mergulhou as mãozinhas pálidas no forro da mortalha, arrancou de lá um lápis de "rouge", um pedaço de bistre, um canudo de cosmético, penteou-se, empoou-se, endireitou-se, e, levantando a cabeça, encarou o apóstolo.

 

— Pronto! — exclamou a dama.

 

São Pedro mirou-a, sorrindo. E, escancarando a porta, convidou:

 

— Ahn! É a senhora mesmo... Entre!

 

E ela entrou.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 27 de janeiro de 2022

ENTRE SANTOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ENTRE SANTOS

Machado de Assis

 

 

Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho), aconteceu-me uma aventura extraordinária.

Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.

O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.

Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranqüilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma idéia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante idéia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma coisa extraordinária.

Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos.

Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.

Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.

Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma coisa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as coisas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.

Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.

- Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.

- Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha - ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.

- Eu?

- Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.

- Que pessoa?

- Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel...

- Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.

- Melhor é o meu caso.

- Melhor que isto? perguntou S. José curioso.

- Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.

Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que vêem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar.

- Tem cinqüenta anos o meu homem, disse ele, a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura.

- Bem podia ser que sim, ponderou S. João.

- Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...

E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros.

- O cadáver?

- Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma coisa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito.

- Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel.

- Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das coisas. O mundo não vê que, além de caseira eminente educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas, entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim, que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra coisa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.

Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substância.

- Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma idéia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher - intuição de avaro; - despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar.

- Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.

- Alguma tem, mas vaga, e econômica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.

- Bem, ajoelhou-se e rezou.

- Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...

No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre.

Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas coisas soltas, - Deus, - os anjos do Senhor, - as bentas chagas, - palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem.

O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse...

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, - não menos, - trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000 - 1.000 - 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.

E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranqüilo, beato e católico.

Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 26 de janeiro de 2022

LADRÃO!... (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

LADRÃO!...

Humberto de Campos

 

 

A sala do júri da cidade provinciana enchera-se, desde o amanhecer, da melhor gente, não só do lugar, do perímetro urbano, como de todo o município e, ainda, dos municípios vizinhos. O processo que naquele dia se ia julgar, era, talvez, o mais sensacional formado na comarca. Tratava-se, na opinião geral, de um desses casos de degradação pela miséria ou pelo vício, da queda inesperada de um rapaz ainda novo, e dos mais considerados na sociedade local, da revelação, em suma, de um caráter baixo e depravado, que se disfarçara, até então, sob a roupagem do brio, da honra e das boas maneiras.

Amplo e simples, o salão do tribunal era uma grande peça com doze janelas, na ala direita do andar térreo e único da Câmara Municipal. Sobre um estrado, a mesa pesada e tradicional, para o juiz e os auxiliares. Em frente ao magistrado, o tosco banco dos réus. Ao lado, separado por uma grade convencional, os membros do conselho de sentença. Do lado oposto, a tribuna, pequeno púlpito de roça. E atrás, como no recinto de um cinema, os bancos para os espectadores, nos quais a multidão se comprimia, abanando-se com os leques, com os lenços, com os chapéus. Pintadas recentemente, as paredes eram brancas, de cal. Nestas, uma nódoa única, e essa mesma, sagrada: a imagem do Crucificado, a cabeça pendente, os braços abertos e flácidos ao peso do corpo, como num conforto triste aos que fossem, como ele, vitimas da justiça dos homens.

Embrulhado na sua toga, o juiz apareceu, cercado pelo silêncio geral. Era um homem alto, seco, de tez tostada, bigode curto e grisalho. Houve um movimento de cadeiras. A campainha soou, como nos atos litúrgicos. E a uma ordem do magistrado, entrou o réu, entre dois soldados.

Abelardo Padilha Porto era acadêmico de medicina no Rio quando, com a morte do pai, teve de interromper os estudos e regressar precipitadamente à sua cidade natal. Os negócios do velho agricultor não tinham corrido bem, nos últimos tempos. Endividado, os credores, logo após a morte do devedor, haviam-se apossado da fazenda, da casa, do gado, das plantações. E se ele, e a velha mãe, ainda viviam na propriedade, era apenas enquanto esta não era vendida, para rateio judiciário do produto. Era esta a sua situação de pobreza, e de vergonha iminente, quando se deu o crime, que espantara a cidade.

Entre os estabelecimentos mais movimentados da rua do Sal, estava o do português Antônio Rocha, constituído por uma casa de secos e molhados, cujo comércio diário subia a várias centenas de mil réis. A casa de negócio do gordo comerciante era, como em geral sucede no interior, o desdobramento, apenas, da sua casa de moradia. Com quatro portas de frente, três pertenciam ao armazém, e uma, apenas, à família, instalada nos fundos do prédio. A entrada para a casa de residência era, assim, independente; e feita por um corredor, comunicando-se, embora, a sala de jantar com o armazém, para o trânsito dos moradores.

Era aí, segregada do mundo, sem uma janela por onde olhasse a rua, que vivia, há dois anos, uma das moças mais bonitas da modesta cidade provinciana. Casada por necessidade, escondera no seu coração, ao entregar-se para sempre ao homem que era o seu marido, uma afeição que lhe nascera na infância, e que sabia correspondida. Por vários anos relutara, na esperança de uma longínqua felicidade. E quando não pudera mais, quando a velha mãe, já tuberculosa, lhe anunciou que não duraria muito na terra, foi que resolveu aceder ao pedido de casamento do vendeiro português, entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua alma.

A chegada de Abelardo Padilha ao município, para liquidar os negócios paternos, havia abalado, fundo, o coração de Santinha Rocha. Amava-o como nos tempos de menina, e, se a sua virtude, a sua condição de mulher honesta, lhe não permitiam mais a realização de um sonho que alimentara desde criança, restava-lhe, pelo menos, o consolo de dar-lhe, na situação que atravessava, uma demonstração concreta, e pura, da sua amizade de irmã. Possuía economias, feitas pouco a pouco, possuía jóias, que o marido lhe havia dado; e tudo aquilo seria dele, do homem a quem amara sempre, daquele que fora, na vida, a única esperança do seu destino irremediável. E se ela possuía meios, recursos sem aplicação, por que não o socorria, evitando-lhe uma vergonha, e, com a vergonha, a miséria, a fome, e, quem sabe? o suicídio aos olhos da pobre mãe entrevada? Urgia, pois, chamá-lo, falar com ele, socorrê-lo. Procurá-lo, não ser ia possível, pois que o marido não a deixava sair desacompanhada. O remédio, era, portanto, fazê-lo vir à sua casa, sem testemunhas, na noite em que Antônio estivesse ausente.

O processo era perigoso, mas era o único. Ademais, onde a estrada escura e coberta de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores? E foi instado, solicitado, insistido, por dois, cinco, dez bilhetes de coração, que o Abelardo aquiescera em penetrar, naquela noite triste, na casa do comerciante.

Antônio da Rocha havia saído, já há meia hora, em visita a um amigo, quando o vulto do antigo estudante surgiu à esquina, à claridade medrosa do pequeno lampião solitário. Parou, olhou em torno, examinando a rua. Não havia ninguém. Cauteloso, mergulhou de novo na sombra, e caminhava cosido com a parede, quando, em frente, exatamente, à porta do Antônio da Rocha, ouviu o seu nome, num sussurro, que o fizera estremecer:

- Abelardo... Entra!...

E logo duas mãos esguias, geladas, que apertavam as suas no escuro, e que, posta a porta no trinco, pois que o marido havia levado a chave, o conduziam, amigas, para a sala de jantar.

Pondo o coração nas palavras, a moça contou-lhe, nervosa, os olhos cheios dágua, o motivo daquela temeridade. Que ele não fizesse mau juízo da sua virtude, da sua seriedade de mulher. Amava-o, sem dúvida; mas amava-o com saudade, não com esperança. Quem o havia chamado ali, não era a noiva, era a irmã, a companheira dos outros tempos. Queria-o de todo o coração. E não consentiria que ele, e principalmente sua mãe, tão idosa e tão santa, passassem pela vergonha de serem postos na rua, sem um abrigo ou um pedaço de pão.

- Não é uma esmola que te dou, Abelardo; é um empréstimo que te faço! - disse, estendendo-lhe um maço de cédulas, que o rapaz, com a vergonha no rosto, recusava aceitar.

Nesse momento, porém, a porta estalou na fechadura.

- Meu Deus!... O Antônio!... - gemeu a moça, com olhos de terror.

E como alucinada, empurrando o rapaz pela porta que dava para o armazém:

- Foge!... Foge!... Pelo amor de Deus!...

E enfiando-lhe o dinheiro no bolso do casaco, às pressas:

- Toma!... Foge!...

Pesado e mole, com a atenção emaranhada nas cifras, o vendeiro levou, ainda, alguns minutos para limpar os pés no capacho, trancar a porta, experimentar os ferrolhos; e minutos tão longos que, quando chegou à sala de jantar, a mulher já estava no quarto de dormir, simulando o primeiro sono.

Antônio da Rocha fora criado, porém, com espírito de prudência e sentido de previsão. Três vezes por semana, antes de deitar-se, tomava de uma vela e percorria, examinando meticulosamente os menores recantos, os dois compartimentos do armazém. E naquela noite, mandava-lhe a consciência, mecanicamente, que cumprisse aquela obrigação.

A vela na mão esquerda, a direita no bolso da calça, o comerciante caminhava, despreocupado, entre pilhas de charque e sacos de arroz, quando ouviu, de súbito, um rumor de papéis remexidos. Estacou desconfiado e, depois de prestar melhor ouvido ao barulho, regressou ao quarto de dormir, apanhando o revólver e dizendo, para a mulher:

- Temos ladrão em casa... Vem cá!

- Antônio!... - exclamou a moça, sentando-se repentinamente na cama, as mãos na cabeça.

Tomando aquela exclamação como um grito de medo, Antônio da Rocha marchou, resoluto, para o armazém. E, à porta do compartimento das vendas, gritou:

- Quem está aí?

E outra vez:

- Se não responder, eu atiro!

E esse tempo, o comerciante, que apagara a vela, havia já alcançado o comutador da eletricidade. E quando uma onda de claridade se espalhou pela casa, iluminando tudo, Antônio da Rocha estacou, estarrecido: diante dele, encostado a uma das prateleiras, estava o "doutor" Abelardo Padilha, corretamente vestido, a fisionomia serena, tendo nas mãos, amontoadas em pilhas, várias mercadorias apanhadas apressadamente no escuro: latas de leite condensado, vidros de conserva, maços de fósforos, um queijo, um pequeno embrulho de café.

- O senhor... um ladrão!... - exclamou o vendeiro, a boca torcida, em uma ironia que era, ao mesmo tempo, de raiva e prazer.

A essas palavras, Abelardo Padilha estremeceu. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto, cegando-o. Teve ímpetos de atirar tudo aquilo para o lado, e estrangular o miserável que assim o insultava. Lembrou-se, porém, de Santinha, da sua reputação, do seu destino, do dever, que lhe cabia, de salvá-la, dando a sua honra de homem pela sua honra de mulher. E, baixando a cabeça, deixou cair, tudo aquilo, com estrondo, no chão.

E ali estava, agora, diante da cidade toda, para ser julgado.

- O acusado - indagou o juiz, a voz pausada e serena, - o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas... Que motivo o levou ali?

- O roubo, sr. juiz! - declarou Padilha, a voz trêmula.

E mergulhando a cabeça entre os braços desatou a chorar...


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 24 de janeiro de 2022

ENTRE DUAS DATAS (CONTO DO CARIOCA MARHADO DE ASSIS)

ENTRE DUAS DATAS

Machado de Assis

 

 

 

Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta (consultem La Palise) para cavar um abismo entre duas pessoas.

 

Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.

 

Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada, — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo. Era filha de um coronel.

 

Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “complexo das circunstâncias da vida”, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.

 

Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.

 

Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.

 

Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.

 

Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.

 

E é agora, em 1862, estando ele tranqüilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.

 

Poupo às pessoas que me lêem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.

 

— Nunca mais a viste?

 

— Nunca.

 

— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande?

 

— Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.

 

— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.

 

— À toa? repetiu Duarte rindo.

 

— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...

 

— Por quê?

 

— A turvação de ontem...

 

— Que turvação?

 

— Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...

 

— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado. Presentemente...

 

Daí a dias, estando com a prima, — a intermediária antiga das notícias, — contou-lhe o caso do Ginásio.

 

— Você ainda se lembra disso? disse ela.

 

— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...

 

— Em todo caso, não é a mesma.

 

— Por quê? Está muito diferente?

 

— Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.

 

— Em Jaguarão?

 

— Não; depois da morte do marido...

 

— Enviuvou?

 

— Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.

 

Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.

 

Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.

 

Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas. Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem. Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a criminemos por um pecado tão comum.

 

Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.

 

— Querem ver que você está querendo recordar-se...

 

Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento. Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças?

 

— As mesmas.

 

— Não mudou nada?

 

— Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.

 

— Usa suíças?

 

— Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...

 

Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.

 

— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.

 

Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.

 

Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominou-se e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.

 

A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles:

 

— O Rio Grande é bonito?

 

— Muito: gosto muito de Porto Alegre.

 

— Parece que há muito frio?

 

— Muito.

 

E depois, ela:

 

— Tem tido bons cantores por cá?

 

— Temos tido.

 

— Há muito tempo não ouço uma ópera.

 

Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-se-ia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.

 

Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los. Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.

 

Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.

 

Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela. Duas pessoas que se vêem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro. Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.

 

Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.

 

“Quem sabe se deu em namoradeira?” pensou ele.

 

E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.

 

Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.

 

O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco. Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas. Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.

 

— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.

 

— Vejo que fiz mal em falar a você, redargüiu ele rindo.

 

— Por quê?

 

— Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.

 

— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...

 

Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a freqüentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.

 

“Nem parece a mesma” disse ele consigo.

 

Outra coisa que ele lhe notou, — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar. Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal. Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.

 

E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.

 

— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.

 

— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.

 

Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.

 

— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar?

 

— Nada.

 

— Então...

 

Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.

 

— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.

 

— Pois só mudada; mas está mudada.

 

— Mudada...

 

Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.

 

Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.

 

E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.

 

Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha as mesmas características da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 23 de janeiro de 2022

O ELEFANTE (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O ELEFANTE

Humberto de Campos

 

 

 

Abu-Beker, o mercador opulento que espantava Bagdá com os esplendores do seu luxo, encontrou, um dia, entre as suas quatrocentas mulheres, uma, de beleza excepcional, que lhe enchera do vinho do desejo a bilha de ouro do coração. Chamava-se Kiusa, e sua língua era doce como uma tâmara. Adorando-a até o desespero, uma dúvida o atormentava, dia e noite, na suntuosidade do seu palácio: a dúvida de que aquele corpo era seu, apenas, e de que ninguém lhe violava, subornando os eunucos, a honestidade do gineceu. E foi atormentado que, um dia, se dirigiu à mesquita, e pediu, com o rosto em terra, soluçando versículos do Alcorão:

 

— Alá, tu, que abranges o universo com teu poder, consente que seja minha, unicamente, a esposa do meu amor. Eu tenho pensado, nas minhas vigílias aflitas, no meio de conservá-la virgem de beijos alheios; e encontrei um remédio: arrebatá-la para as montanhas, para os desertos, para as florestas que marcam os limites do mar, onde não haja outros seres senão eu e ela. Transforma-me, pois, na tua misericórdia, em um elefante soberbo e poderoso, para que eu atravesse, puxando o seu carro, as regiões desertas da Arábia!

 

Instantes depois, graças a um sortilégio comum nas terras do Crescente, saía as portas de Bagdá um carro suntuoso, tauxiado de ouro e forrado de púrpura, puxado pesadamente por um elefante. E foi de coração sossegado que Abu-Beker penetrou, transformado no monstruoso plantígrado, as florestas da Índia, arrastando pacientemente o carro do seu amor.

 

Certo dia, após uma viagem penosa e longa, o elefante parou de repente, desatrelou-se com o auxílio da tromba, e, abandonando os varais, deu volta em torno do carro, cuja entrada era por trás. E soltou um rugido de dor e de espanto: dentro, nos coxins que a sua opulência amontoara, deitavam-se enlaçados, Kiusa, maravilhosa de formosura, e bêbada de desejo, e, ao seu lado, beijando-lhe os olhos, Ebn-Ali, mercador de Alexandria! Ele tinha vindo, desde Bagdá, a puxar o carro dos dois amantes, que, dentro, se enlaçavam amorosos, enquanto ele, confiado e sereno, feria as patas pelo caminho!

 

Um barrido de desespero marcou o fim daquele encantamento humilhante. E era tornado homem, com o seu manto de mercador despedaçado pelos espinhos da viagem, que Abu-Beker gemia, com o rosto no solo.

 

— Alá, bendito sejas tu, na tua gloriosa sabedoria! Debalde tentarão os homens, mesmo com o teu auxílio, forçar as mulheres à honestidade, quando dias querem traí-los!

 

E debulhava-se em lágrimas, quando ouviu, de súbito, uma voz poderosa, que lhe disse:

 

— Mortal, aprende, tu mesmo, à tua custa, esta grande verdade; nenhum homem poderá, jamais, subtrair a mulher à traição, quando ela o queira enganar. O insensato que, como tu, trouxer, por prevenção, o leito às costas, terá, ao fim da viagem, uma surpresa dolorosa: verá que arrastou pelos caminhos, sem o saber, a mulher e o amante!

 

Abu-Beker levantou-se, enxugou os olhos, e, para esquecer, começou a ler o Alcorão.

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 21 de janeiro de 2022

O ENFERMEIRO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O ENFERMEIRO

Machado de Assis

 

 

 

Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.

Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras coisas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu- me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol. nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.

Já sabe que foi em l860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo. - quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava. delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao Coronel Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou- me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.

Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dois deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.

Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dois olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumino-lhe as feições. que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dois eram até gatunos!

- Você é gatuno?

- Não, senhor.

Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias.

No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.

Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dois ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.

- Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo. Procópio?

- Qual o quê!

- E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu vivamente, arregalando os olhos.

Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d'asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário. ia ficando.

Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.

Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram- me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.

Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio; o prato foi cair na parede, onde se fez em pedaços.

- Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.

Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d'Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.

Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava uma vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!

Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa, na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. - "Maldita a hora em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.

Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a urna recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro, espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.

Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.

A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma coisa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:

- Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.

Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da meia-escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...

- Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia.

E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E, elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n'alma!" E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...

Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma coisa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.

- Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.

- Não sei, mas era rico.

- Realmente, provou que era teu amigo.

- Era... Era...

Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma coisa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas.

Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime...

Crime ou luta? Realmente, foi uma luta em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéia. E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra coisa. Fixei-me também nessa idéia...

Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei- me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.

- Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.

Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí advogado; as coisas correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me coisas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero...

- Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.

E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu, sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando.

As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o plano primitivo; distribuí alguma coisa aos pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dois contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai.

Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...

Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados."

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 20 de janeiro de 2022

PAVORES DE ENFERMO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

PAVORES DE ENFERMO

Humberto de Campos

 

 

 

Não obstante a sua aparência de homem grave, circunspecto, ponderado, que lhe assegurara aquele emprego de confiança, o coronel Bonifácio Coutinho, diretor do Asilo de Senhoras Arrependidas, era, intimamente, um dos temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades daquelas funções. Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade, defrontavam-se, nele, o desejo e o interesse. E não era sem custo, sem violência, que este se superpunha à brutalidade dos seus nervos, tornando-lhe possível a manutenção daquela sinecura amável, que lhe amenizava as infinitas asperezas da vida. Assim constituído, o coronel resolveu, um dia, quebrar a sua couraça e, chamando em particular o médico do estabelecimento, pediu-lhe um conselho:

 

— Diga-me cá, doutor, diga-me, com reserva: o senhor acha que me fica mal conquistar uma ou outra das nossas asiladas?

 

— Absolutamente, não! — acudiu o facultativo. — Desde que elas queiram, não há, mal nenhum. Eu próprio tenho me prevalecido dessa faculdade, procurando, apenas, não investir contra aquelas que, de antemão, parecem rigidamente sérias.

 

— E que faz o doutor para diferençar umas das outras? — objetou o velho. — Como que o senhor as distingue?

 

O galeno tomou-o pelo braço, arrastou-o para o silêncio de uma janela deitando sobre jardim, e revelou-lhe o seu segredo:

 

— Olhe: o senhor, quando se quiser aventurar a uma destas conquistas, faça o seguinte: chegue perto da asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se ela lhe disser uma idade visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua declaração, que será, por força, bem sucedido.

 

E apertando-lhe a mão

 

— Experimente.

 

Um mês depois foi o médico chamado para ver o diretor do Asilo, cujas condições de saúde preocupavam seriamente os seus subordinados. O estado de depressão era visível. O pulso, irregular, incerto, descompassado, denunciava um profundo abalo orgânico, que os seus cinquenta e cinco anos haviam tornado perigoso. À vista do enfermo, o médico compreendeu a sua missão, e, pedindo que os enfermeiros se retirassem, começou:

 

— Meu caro coronel, é preciso que o senhor mude de vida.

 

— Eu?

 

— Sim, senhor. O senhor abusou do meu conselho, e deve lembrar-se que não é mais uma criança, um moço, um rapaz no vigor dos anos.

 

E interrompendo-se:

 

— Que idade o senhor tem?

 

— Como? — atalhou o doente, alarmado.

 

— Eu estou perguntando que idade tem o senhor.

 

A essa confirmação da consulta, passou pelo cérebro do enfermo um pensamento sinistro. Com que ideia lhe fazia o médico aquela pergunta? E foi com o pavor nos olhos que se sentou, de repente, no leito, bradando, horrorizado, com os olhos fora das órbitas:

 

— Cento e cinquenta anos doutor! Duzentos! Duzentos e cinquenta anos, doutor!

 

E disparou, escada abaixo.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 18 de janeiro de 2022

O EMPRÉSTIMO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O EMPRÉSTIMO

Machado de Assis

 

 

 

Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.

E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?

Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.

Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.

– Quem é? perguntou ele de repente olhando para a porta da rua.

Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.

– Não se lembra de mim?

– Não me lembro…

– Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca… Não se lembra? Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde… Veja se se lembra do Custódio.

– Ah!

Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um exército. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n’en vois pas la nécessité, redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida.

Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.

Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.

– Venho pedir-lhe uma escritura…

Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou para cima dos óculos e esperou.

– Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo…

– Se estiver nas minhas mãos…

– O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, – ou a três, com juro módico…

– Cinco contos?

– Sim, senhor.

– Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?

– Ora, se o senhor quisesse…

– Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.

A alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regime do eventual, o do Custódio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.

– Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo. . .

– Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida; mas…

Estendeu a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma razoável, quinhentos mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele ia ver surdir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.

– Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos… Quanto?

– Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.

– Quinhentos mil-réis?

– Não; não posso.

– Nem quinhentos mil-réis?

– Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares… Diga-me, não está empregado?

– Não, senhor.

– Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da justiça, tenho relações com ele, e…

Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, – “tapar um buraco”. E então relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos…

– Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora…

– Não imagina os apuros em que estou!

– Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria… Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as penas-d’água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água…

– Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.

– Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores… Creia o senhor que também eu tenho credores.

– Nem cem mil-réis!

– Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é verdade. Nem cem mil-réis. Que horas são?

Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil-réis. Quem é que não tem cem mil-réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro… Este incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; – não de desdém, não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinqüenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.

Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira… Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos; invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não levasse ali vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem. . .

– Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.

Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabelião, um convite ao menos, para jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos supremos pedem energias supremas. Custódio sentiu toda a força deste lugar-comum, e, súbito, como um tiro, perguntou ao tabelião se não lhe podia dar ao menos dez mil-réis.

– Quer ver?

E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil-réis.

– Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?

Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, – um até breve cheio de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 17 de janeiro de 2022

OS HORRORES DA GUERRA (CONT DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OS HORRORES DA GUERRA

Humberto de Campos

 

 

 

O caso policial contado há dias pelos jornais, é, ao que parece, mera reprodução de uma infinidade de outros, ocorridos no Rio, e, em geral, no mundo inteiro. A guerra, principalmente, com os seus horrores, com as suas violências, com as suas brutalidades inomináveis, tem fornecido exemplares curiosíssimos de certas vergonhas, que constituem, como se sabe, a nódoa de lama da túnica das sociedades.

 

A prova mais amarga, e mais típica, desse gênero de verdades dolorosas, é, entretanto, a que Banville apresenta em um quadro melancólico, desenhado com a delicadeza inimitável do seu estilo. As cores da tela são tão leves, tão doces, tão brandas, que eu me permito a mim próprio, a audácia de retocá-la, na blasfêmia de uma ligeira adaptação.

 

Em um salão triste e antigo, ressumando saudades, meditam, com a alva cabeça pendida sobre o peito, três velhinhas setuagenárias, cujos olhos se perdem, quase sem brilho, nas brumas longínquas do passado. Procedem, as três, do tumulto do mundo, de que são ali, meros despojos de um naufrágio, atirados à praia, como tantos outros, pelas eternas tempestades da vida. Cabeça baixa, olhos baixos, a mais velha das três solta, de repente, um suspiro tão fundo, que lhe traz aos olhos uma lágrima. As outras olham-na, compadecidas, e, para matar as horas, que, por sua vez, as vão matando, resolvem contar os seus amores, as suas aventuras, resumindo nestas o braço mau, ou leviano, que as atirou à desgraça.

 

— Eu, — contou a mais velha — fui vítima do meu noivo, o tenente Balduino, do antigo batalhão de lanceiros. Confiando nele, nas suas juras, nas suas promessas apaixonadas e ardentes, deixei-me arrastar, um dia, pela sua palavra e pelo seu braço, até à sua casa, e, quando despertei no dia seguinte, foi para chorar, como até hoje, a minha infelicidade...

 

— A minha história, — principiou a segunda, — não é muito diferente. Passeava uma tarde com o meu primo, o Barão Reinaldo, pelas alamedas do jardim de meu pai, quando, embriagada pela amavio dos seus juramentos de amor, me deixei cingir pelos seus braços. O beijo pecador que pôs, como uma brasa, na minha boca virgem, fez-me desmaiar. Meses depois o Barão partia para o Oriente, enquanto meu pai me atirava à rua, com o meu filho e a minha vergonha!

 

A terceira velhinha mantinha-se em silêncio, meditativa, quando as outras a interrogaram:

 

— E a senhora, mãe Georgete?

 

— Eu? Eu vivia na Alsácia, em 1870, com meu pai e minha mãe. Era jovem e linda. Um dia, ouvimos troar a artilharia nas vizinhanças da aldeia. Era o inimigo!

 

E calou-se. Mas as outras exigiram:.

 

— E o resto?

 

— Que resto?

 

As duas se entreolharam, e insistiram, falando claro:

 

— Quem foi?

 

E a velhinha, limpando os olhos:

 

— Foram os alemães...


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 15 de janeiro de 2022

ELOGIO DA VAIDADE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ELOGIO DA VAIDADE

Machado de Assis

 

 

 

I

 

Logo que a Modéstia acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse:

 

Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais peca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste.

 

Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mas na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival.

 

Digo a todos, porque a todos cobiço, ou sejais formosos como Páris, ou feios como Tersites, gordos como Pança, magros como Quixote, varões e mulheres, grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o não tenha alçado ou consolado.

 

 

 

II

 

Onde é que eu não entro? Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro. Faço exceções, é certo (infelizmente!); mas, em geral, tu que possuis, busca-me no encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da tua carruagem; que digo? busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca, no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada, perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me acharás entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou entre os fios da tua grenha sem óleo.

 

Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônico, e pediste ao pomar os melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu casamento um coche, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando podias ir à igreja com teus pés? Por que compras essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a troco de um sacrifício grande benefício ainda maior?

 

 

 

III

 

Quem é esse que aí vem, com os olhos no eterno azul? É um poeta; vem compondo alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe. — Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com ele, — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra dos doutores de Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve. Ouve-me, ouve-se; eis tudo.

 

Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao voltar à esquina, dizem-lhe que o caluniador o elogiou.

 

— Não me fales nesse maroto.

 

— Elogiou-te; disse que és um poeta enorme.

 

— Outros o têm dito, mas são homens de bem, e sinceros. Será ele sincero?

 

— Confessa que não conhece poeta maior.

 

— Peralta! Naturalmente arrependeu-se da injustiça que me fez. Poeta enorme, disse ele?

 

— O maior de todos.

 

— Não creio. O maior?

 

— O maior.

 

— Não contestarei nunca os seus méritos; não sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial.

 

Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.

 

Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se, como os zoilos de Bocage. Desgosto, convenho, mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que um atrevido lhe negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! a mãe que gerou o filho, que o amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os amores, essa mãe é Medéia, se a compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se; porque se o amor de mãe é a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.

 

 

 

IV

 

Vede estoutro que palestra com um homem público. Palestra, disse eu? Não; é o outro que fala; ele nem fala, nem ouve. Os olhos entornam-se-lhe em roda, aos que passam, a espreitar se o vêem, se o admiram, se o invejam. Não corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer as portas da atenção respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com familiaridade, com indiferença, quase com enfado. Tu, que passas, dizes contigo:

 

— São íntimos; o homem público é familiar deste cidadão; talvez parente. Quem lhe faz obter esse teu juízo, senão eu? Como eu vivo da opinião e para a opinião, dou àquele meu aluno as vantagens que resultam de uma boa opinião, isto é, dou-lhe tudo.

 

Agora, contemplai aquele que tão apressadamente oferece o braço a uma senhora. Ela aceita-lho; quer seguir até a carruagem, e há muita gente na rua. Se a Modéstia animara o braço do cavalheiro, ele cumprira o seu dever de cortesania, com uma parcimônia de palavras, uma moderação de maneiras, assaz miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e é por isso que ele cuida menos de guiar à dama, do que de ser visto dos outros olhos. Por que não? Ela é bonita, graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é verdadeiramente senhoril. Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se? Não vos iludais com aquele riso familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o calor é grande. Mas é tão bom rir para os outros! é tão bom fazer supor uma intimidade elegante!

 

Não deveríeis crer que me é vedada a sacristia? Decerto; e contudo, acho meio de lá penetrar, uma ou outra vez, às escondidas, até às meias roxas daquela grave dignidade, a ponto de lhe fazer esquecer as glórias do céu, pelas vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no coração, e ela sente-se melhor, mais excelsa, mais sublime do que esse outro ministro subalterno do altar, que ali vai queimar o puro incenso da fé. Por que não há de ser assim, se agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona, ataviada das melhores fitas, para vir falar ao seu Criador? Que farfalhar! que voltear de cabeças! A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe as rendas, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste, colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.

 

 

 

V

 

Mas eu perderia o tempo, se me detivesse a mostrar um por um todos os meus súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los, arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a natureza dá-lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada, que recebe o homem no berço, para deixá-lo somente na cova. Que digo? Na eternidade; porque o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento, essa recomendação de ser levado ao chão por quatro mendigos, essa cláusula sou eu que a inspiro e dito; última e genuína vitória do meu poder, que é imitar os meneios da outra.

 

Oh! a outra! Que tem ela feito no mundo que valha a pena de ser citado? Foram as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que entreteceu os louros de Temístocles? Que vale a charrua do seu Cincinato, ao pé do capelo do meu cardeal de Retz? Virtudes de cenóbios, são virtudes? Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga-ma, e eu a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim.

 

Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia: é a virtude dos pecos. Achareis decerto, algum filósofo, que vos louve, e pode ser que algum poeta, que vos cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem, mas morrem depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao cabo definhareis na soledade. Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que vos talhe na pele; algum frade que vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Petas! Não sou inimiga da consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la, quando a vejo em frangalhos; se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de cristal, vidro de aumento. Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia, dizei-o; mas ficai certos de que excluireis do mundo o fervor, a alegria, a fraternidade.

 

Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério, segundo um antigo rifão; mas eu não faço caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do contentamento, o vínculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos homens; alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer de quem não é nada.

 

E reparai que nenhum grande vício se encobriu ainda comigo; ao contrário, quando Tartufo entra em casa de Orgon, dá um lenço a Dorina para que cubra os seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos. E por que não seria assim, se ela ali está de olhos baixos, rosto caído, boca taciturna? Poderíeis afirmar que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou outra, porque ninguém lhe vê o coração. Mas comigo? Quem se pode enganar com este riso franco, irradiação do meu próprio ser; com esta face jovial, este rosto satisfeito, que um quase nada obumbra, que outro quase nada ilumina; estes olhos, que não se escondem, que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas fitam serenamente o sol e as estrelas?

 

 

 

VI

 

O quê? Credes que não é assim? Querem ver que perdi toda a minha retórica, e que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se-á caso que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém do leque daquela matrona. Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas: outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é a vaidade da modéstia.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 14 de janeiro de 2022

O PÉ E O SAPATO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O PÉ E O SAPATO

Humberto de Campos

 

 

 

Uma das novidades elegantes que mais têm merecido o meu aplauso, é a condenação das danças, dos bailes retumbantes e demorados, nas festas de casamento. A ligação de dois destinos constitui um ato tão solene, um acontecimento tão grave na vida das criaturas, que se lhes deve dar, a elas, todo o sossego, toda a calma, e o tempo necessário para que sintam, sem obstáculos nem constrangimentos, todas as suaves emoções desse dia.

 

E esse meu modo de pensar não data de hoje. Vem de longe, de onze anos atrás, do casamento do Dr. Otaviano Peixoto Ferreira, antigo juiz substituto em Barra Mansa, com a minha afilhada Odete Costa, do qual fui testemunha, por insistência imperdoável das duas ilustres famílias fluminenses.

 

O casamento, que se efetuou a 11 de Maio de 1090, na fazenda Água Funda, no município de Cantagalo, foi o mais suntuoso, talvez, e o mais bulhento, que já se realizou no Estado do Rio. Os convidados, vindos das fazendas e cidades vizinhas, subiram a centenas. E as danças prolongaram-se por dias e dias, que encheram, se bem me lembro, o vasto espaço de uma semana.

 

No dia seguinte ao do casamento, porém, sucedeu o desastre que dá motivo à minha prevenção contra os bailes em tais ocasiões: devido ao excesso das danças, das polcas, valsas, mazurcas e quadrilhas, dançados com o noivo, a moça amanheceu coxeando, doente do pé, de modo a locomover-se com enorme dificuldade. Penalizado, perguntei-lhe o que era:

 

— Então, afilhada, que é isso? Como foi? Quem lhe pisou o pé?

 

A pequena sorriu, pálida, cobrindo com as violetas das olheiras, os formosos miosótis dos olhos, e tranquilizou-me, triste:

 

— Não é nada, padrinho; não se aflija!

 

E explicou:

 

— É uma unha encravada...

 

Não obstante a festa haver continuado, a noiva, nesse dia, não dançou, nem no segundo dia, nem, mesmo, no terceiro. No quarto dia, porém, amanheceu inteiramente boa, voltando a valsar, alegre e jovial, contentíssima como se nada tivesse acontecido. Encontrando-a a deslizar, feliz, no calor de uma valsa, detive-a pelo braço, e indaguei, carinhoso:

 

— Então, está melhor do pé?

 

— Estou boa, já! respondeu-me, risonha.

 

— A unha desencravou?

 

— Não! — retrucou-me, vermelha, com o rosto em fogo.

 

E ao meu ouvido, rindo:

 

— O pé acostumou no sapato...

 

E, arrancando-se das minhas, mãos, desapareceu, num rodopio, no tumulto dos outros pares.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 12 de janeiro de 2022

DUAS JUÍZAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

DUAS JUÍZAS

Machado de Assis

 

 

 

Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.

Tudo corria de modo costumeiro naquela igreja. Que igreja?

Bem, este é o ponto falho do conto, porém, que importa? “Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa”.

Nessa igreja desconhecida, ou supostamente desconhecida, os sentimentos religiosos eram fervorosos. As irmandades ali estabelecidas, ainda que compartilhando de diferentes devoções, buscavam nessa aparente rivalidade motivos para tornar ainda mais fervorosas essas mesmas devoções.

As coisas permaneceram assim durante muitos anos. A amizade entre as duas devoções materializavam-se mediante a troca de obséquios, empréstimos de utensílios religiosos, e, como demonstração de alicerçada comunhão, as irmandades revezavam-se nas festas que se realizavam na comunidade.

Vencido o prazo dessas duas associações, realizou-se como de costume, uma nova eleição, cujo objetivo era o mesmo de antes, ou seja, “dar mais alguma vida ao culto”. Foram eleitas duas distintas senhoras que, como “irmãs” na fé, nutriam entre si uma bela e sincera amizade.

A primeira, D. Matilde, viúva bonita, abastada e “fresca”. A segunda, D. Romualda, também bonita, e, por ser esposa de um comendador, há de se supor que era não menos abastada. Embora tais “virtudes” não determinaram o resultado da eleição, ao menos “agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro das belas formas”.

Inicialmente nada mudou. Nenhuma medida drástica foi tomada, nada que pudesse caracterizar as novas devoções. “Roma não se fez num dia”, consolavam-se. Entretanto, algo novo aconteceu em entre as devoções, consequência, ao que parece, de um súbito estímulo religioso ou da vontade ardorosa de renovar o culto. A iniciativa foi da viúva que, tomada de certo ímpeto “espiritual”, decidiu levantar a associação: “Vamos trabalhar. A deste ano deve ser esplêndida... A orquestra deve ser de primeira qualidade; podemos ter uma cantora italiana”. Quinze dias depois, D. Romualda, numa sessão solene, exprimia iguais sentimentos.

A partir dali as devoções ganharam vida. As duas juízas empenharam-se por levar a cabo seus planos. Parece que tanto Nossa Senhora da Conceição quanto Nossa Senhora das Dores estavam “gloriosamente” satisfeitas com tamanho fervor.

Supunha-se que as duas juízas haveriam de continuar as mesmas cortesias. Se a finalidade era puramente espiritual, haveria, como era de se esperar de duas respeitadas e sinceras religiosas, o interesse em manter a troca de serviços e mesmo a amizade. Haveria? “- Não; antes vendamos a última joia”, bradou D. Matilde. “- Vender a última joia? Talvez ela já tenha as suas empenhadas!”, respondia a esposa do Comendador Nóbrega. A briga, ao que parece, fruto do estímulo religioso, aumentava: “Creio, creio... Creio que trabalhe mais do que eu, mas há de ser com a língua”, respondia a viúva.

Após muitas acusações e muitas discussões entre as duas devoções, realizou-se para contentamentos dos paroquianos, a festa das Dores. Foi uma festa realmente bonita: muita gente, boa música, excelente sermão. Não fez por menos D. Romualda: a orquestra foi a melhor da cidade, dirigiu o sermão um monge beneditino.

A batalha durou uns dois anos. Com a morte da D. Romualda, cessou o estímulo da D. Matilde. E já a primeira festa esteve muito aquém das anteriores.

Cessou o estímulo? Mas, que estímulo?

Bem. Com o decorrer dos dias, descobriu-se que toda aquela intriga foi apenas o resultado de uma insignificante questão acerca de um simples vestido.

Um acontecimento banal, digno apenas de uma ligeira conversa de botequim, transformou-se num caso realmente interessante, digno apenas de um escritor como Machado de Assis.

O conto Duas Juízas é uma pequena mostra da ironia machadiana. Com seu humor mordaz, ele faz aparecer tudo que acontece debaixo dos “lençóis” da elite brasileira: vaidade, intrigas e exageros. E mais: a própria igreja, não a instituição em si, mas aqueles que dela fazem parte, também ficam na mira da corrosiva ironia do “Bruxo do Cosme Velho”.

Sintetizando, o conto apresenta as seguintes características machadianas:

1 - Inspiração nas pessoas comuns, com suas ações quotidianas; a busca do mínimo e do escondido, onde ninguém mete o nariz: “Um dia a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a Conceição punha à frente a esposa do Comendador Nóbrega, D. Romualda”.

2 - A penetração na consciência da personagem, revelando de maneira aguda e impiedosa, a vaidade, a hipocrisia, a futilidade: “Um paroquiano curioso tratou de indagar, se além das causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que as duas damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão por causa de um corte de vestido”.

3 - O humor crítico, a ironia: “Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.

4 - Como é comum em seus contos, o mais importante não é ação que ocorre entre os personagens, mas os processos mentais, a psique humana que os envolve: “Qual Igreja? Este é justamente o ponto falho do meu conto; não posso lembrar-me em qual das nossas igrejas era. Mas, pensando bem, que necessidade há de saber-lhe o nome? Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa”.

5 - Extraordinária capacidade em caracterizar as personagens: “Um dia, a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca...”.


É isso!


Literatura - Contos e Crônicas terça, 11 de janeiro de 2022

O BRAVO DOS BRAVOS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O BRAVO DOS BRAVOS

Humberto de Campos

 

 

 

 

Quando o tenente Felisberto regressou do "front", precedia-o a mais invejável das famas. Notícias dos jornais, telegramas do governo e cartas dos camaradas, haviam espalhado, realmente, pelo Brasil, os ecos da sua bravura. Em Verdun, no forte de Vaux, fora ele o herói por excelência, defendendo, uma a uma, as pedras daquele reduto. Na Champagne, comandando um pelotão de "poilus", operara prodígios, resistências assombrosas, a ponto de ser preciso arrancá-lo, às vezes, do seu entrincheiramento, rilhando os dentes, coberto de lama e de sangue. O seu heroísmo tornou-se, em suma, tão acentuado, tão famoso, tão evidente, que o seu nome se constituíra, em toda a extensão do setor, uma espécie de grito de guerra. A Morte passava por ele, medrosa, de asas fechadas, como se temesse cair ferida, ela própria, atingida pela sua espada.

 

Ao chegar ao Rio, eram conhecidos, já, de toda a cidade, os seus feitos, as suas investidas corajosas, o ímpeto das suas cargas de baioneta, a que correspondia, sempre, uma nova trincheira arrancada ao inimigo. E foi por isso mesmo que o seu desembarque teve o caráter de uma verdadeira apoteose, que envolvia na mesma auréola o glorioso exército nacional.

 

Festejado e querido, foi, aqui, o tenente Felisberto rodeado pelos amigos e, principalmente, pelos colegas de classe, que se disputavam, gentis, a sua companhia. E tanto o cercaram, tanto o arrastaram pelos lugares festivos da cidade, que ele foi acabar, uma noite, no Assírio, onde se realizava um ruidoso baile de Carnaval.

 

Desconfiado no meio daquele tumulto, que lhe entontecia mais os sentidos do que o perturbavam, na França, as tempestades de fogo e de fumo da formidável artilharia alemã, o tenente observava aquelas danças, aquela orgia, aquela alegria desordenada, quando um dos camaradas lhe pediu, insistente, à mesa da ceia:

 

— Conta as tuas aventuras de guerra, Felisberto! Que diabo! tudo que nós sabemos de ti, é por intermédio dos outros. Ainda não nos contaste nada!

 

— Conta! — pediu outro, pondo-se de pé.

 

— Conta! Conta! — reclamaram todos.

 

O tenente sorriu modesto, mas, reclamado pelos colegas, começou a narrar singelamente os seus feitos.

 

— O que eu fiz — começou, — qualquer de vocês o faria, estando no meu lugar. Fui eu, efetivamente, quem defendeu o forte de Vaux, durante três dias, com pouco mais de duzentos homens. O rompimento da linha de Hindemburgo foi, também, obra minha, que obteve, como é sabido, os resultados mais felizes. Tomei, a arma branca, dezessete trincheiras; subjuguei algumas dezenas de soldados, corpo a corpo; conquistei, a sabre, oito canhões; destruí, em suma, todo o poder ofensivo do inimigo, no setor a meu cargo.

 

Nesse momento, alarmando a sala, ouve-se, a alguns metros de distância, um tiro de revólver, e, em seguida, o barulho da multidão elegante, a precipitar-se no rumo da detonação. Ao segundo tiro, porém, o capitão, que se calara com o primeiro, empalidece, e, sem dissimular o seu pavor, põe-se a tremer, a ponto de se não poder sustentar nas pernas. Espantados com aquela modificação, os amigos entreolham-se, duvidando, já, da bravura do herói, quando um deles, indignado, pergunta:

 

— Está com medo?

 

— Estou! — confessou o bravo dos bravos.

 

E explicou:

 

— Imaginem que isto degenera em rolo, em barulho, em conflito...

 

E concluindo, aterrorizado, batendo o queixo:

 

— E minha mulher sabe... que eu vim aqui!...


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