Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quarta, 29 de maio de 2019

EVOLUÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

EVOLUÇÃO

Antero de Quental

 

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo 
tronco ou ramo na incógnita floresta... 
Onda, espumei, quebrando-me na aresta 
Do granito, antiquíssimo inimigo... 

Rugi, fera talvez, buscando abrigo 
Na caverna que ensombra urze e giesta; 
O, monstro primitivo, ergui a testa 
No limoso paúl, glauco pascigo... 

Hoje sou homem, e na sombra enorme 
Vejo, a meus pés, a escada multiforme, 
Que desce, em espirais, da imensidade... 

Interrogo o infinito e às vezes choro... 
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro 
E aspiro unicamente à liberdade. 


Poemas e Poesias terça, 28 de maio de 2019

ADEUS, MEUS SONHOS (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

ADEUS, MEUS SONHOS

Álvares de Azevedo

 


Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!


Poemas e Poesias segunda, 27 de maio de 2019

ESTÂNCIA (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ESTÂNCIA

Alphonsus Guimaraens

 

Foi a tua beleza?
Foi toda a minha Dor?
Não sei, nem sabes, mas na devesa
Chorou cantando o rouxinol do amor.
Ias de preto, leve,
Como uma andorinha no ar.
Pelo céu tranquilo tombava a neve
Do meu pesar.
Como tinhas de ser crucificada,
Abri-te os braços…
O luar, mais brando do que tu, Amada,
Vinha guiar os nossos passos.
Agora que cheguei e que chegaste
Ao fim da vida,
Bem sabes que a ilusão com que sonhaste
Foi pérola de bem alto caída
E que vimos enfim no mar perdida…
No mesmo mar ebúrneo do teu seio,
Donde ela em tempos mais felizes veio!


Poemas e Poesias domingo, 26 de maio de 2019

CELESTE (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

CELESTE

Adelino Fontoura

 

 

 

É tão divina a angélica aparência 
e a graça que ilumina o rosto dela, 
que eu concebera o tipo de inocência 
nessa criança imaculada e bela.

 

Peregrina do céu, pálida estrela, 
exilada na etérea transparência, 
sua origem não pode ser aquela 
da nossa triste e mísera existência.

 

Tem a celeste e ingênua formosura 
e a luminosa auréola sacrossanta 
de uma visão do céu, cândida e pura.

 

E quando os olhos para o céu levanta, 
inundados de mística doçura, 
nem parece mulher - parece santa.

 


Poemas e Poesias sábado, 25 de maio de 2019

A INVENÇÃO DE UM MODO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

A INVENÇÃO DE UM MODO

Adélia Prado

 

 

Entre paciência e fama quero as duas,

pra envelhecer vergada de motivos.

Imito o andar das velhas de cadeiras duras

e se me surpreendem, explico cheia de verdade:

tô ensaiando. Ninguém acredita

e eu ganho uma hora de juventude.

Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,

a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"

Fico entre montanhas,

entre guarda e vã,

entre branco e branco,

lentes pra proteger de reverberações.

Explicação é para o corpo do morto,

de sua alma eu sei.

Estátua na Igreja e Praça

quero extremada as duas.

Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,

vendo televisão,

ou tirando sorte com quem vou casar.

Porque que tudo que invento já foi dito

nos dois livros que eu li:

as escrituras de Deus,

as escrituras de João.

Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão. 

Em busca de um conceito de relação.


Poemas e Poesias sexta, 24 de maio de 2019

A AUSENTE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A AUSENTE

Vinícius de Moraes

 

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...


Poemas e Poesias quinta, 23 de maio de 2019

COBRA NORATO - FRAGMENTOS (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

COBRA NORATO

Raul Bopp

 

(Fragmentos)

I
Um dia
ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.

Vou andando, caminhando, caminhando;
me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato.

— Quero contar-te uma história:
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar.

A noite chega mansinho.
Estrelas conversam em voz baixa.

O mato já se vestiu.
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a cobra.

Agora, sim,
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo:

Vou visitar a rainha Luzia.
Quero me casar com sua filha.

— Então você tem que apagar os olhos primeiro.
O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas.
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.

II
Começa agora a floresta cifrada.
A sombra escondeu as árvores.
Sapos beiçudos espiam no escuro.

Aqui um pedaço de mato está de castigo.
Árvorezinhas acocoram-se no charco.
Um fio de água atrasada lambe a lama.

— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!

Agora são os rios afogados,
bebendo o caminho.
A água vai chorando afundando afundando.

Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.

— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!

Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré.

— Eu só quero a filha da rainha Luzia.

Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.

— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!

A selva imensa está com insônia.

Bocejam árvores sonolentas.
Ai, que a noite secou. A água do rio se quebrou.
Tenho que ir-me embora.

E me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas cochilam.

De todos os lados me chamam:
— Onde vai, Cobra Norato?
Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.

— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

IV
Esta é a floresta de hálito podre,
parindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhar.

A correnteza arrepiada junto às margens
descasca barrancos gosmentos.

Raízes desdentadas mastigam lodo.

A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole
com medo de cair.

A lama se amontoa.

Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé.

Fede...

Vento mudou de lugar.

Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
Um assobio assusta as árvores.

Silêncio se machucou.

Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum

Um berro atravessa a floresta.

Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
Amarram as árvorezinhas contrariadas.

Chegam vozes.

Dentro do mato
pia a jurucutu.

— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

XXXII
— E agora, compadre,
eu vou de volta pro Sem-Fim.

Vou lá para as terras altas,
onde a serra se amontoa,
onde correm os rios de águas claras
em matos de molungu.

Quero levar minha noiva.
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar,
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor.

Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém.
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem, bem;

Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu,
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar,

E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
eu hei de contar histórias
(histórias de não-dizer-nada)
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar.


Poemas e Poesias quarta, 22 de maio de 2019

S PIRACEMA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

A PIRACEMA

Quntino Cunha

 

Aqui é um lago, feito de água clara,

Visualmente negro se mostrando;

Calmo que sobre si passa uma igara,

Como no espaço um passarinho voando.

 

Sol das dez da manhã. O amor compara

Este quadro à virtude. Um vento brando...

Mas lá fora no rio. Ele aqui para,

O lago, a mata e o céu quietos deixando.

 

Do anivelado espelho dágua, apenas

Manchado levemente por pequenas

Nódoas que lhe colorem, nódoas cérulas,

 

Aos bandos, as sardinhas vão surgindo,

Frágeis, cambiantes, rápidas, fugindo,

Como travessas conchas madrepérolas.


Poemas e Poesias terça, 21 de maio de 2019

APELO DE UM AGRICULTOR (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

APELO DE UM AGRICULTOR

Patativa do Assaré

 

 

Seu dotô, não lhe aborreço,
Venho é fazê um pedido
E como sei qui merêço,
Espero sê atendido.
Não quera se aborrecê,
Pois antes de lhe dizê
O meu desejo sagrado,
Vou minha históra contá
E o senhô vai iscutá
Todo meu palavriado.

 

 
Vevi sempre a trabaiá
De ferramenta na mão
Tenho no rosto o siná
Do quente só do sertão.
Tratando de agricurtura
Já mostrei grande bravura
Sempre dei uma premêra
Naquele tempo passado,
Fui o herói do machado
Foice, inxada e roçadeira.

 

 
Sei qui o dotô inguinora,
E tem bastante razão,
Pois quem na cidade mora,
Não vai pensá no Sertão,
E por isso eu vou assim
Contá tin-tin por tin-tin
Como é que tenho vivido,
Minhas razão eu dizendo
O dotô fica sabendo
Quanto eu lhe tenho servido.
 
Sou pai de quatôze fio,
Cabras macho de valô,
Pois num tem nenhum vadio,
São todos trabaiadô,
Cada um destes cabôco
Aprendeu a lê um pôco,
Mais porém mode votá,
Nunca nenhum levô pau,
Já são quatôze degrau
Pra seu dotô se atrepá.
 
Quando o dia amanhecia,
Que meu café eu tomava,
Pra meu roçado  ia
E os fio me acompanhava;
Pra roça eu levava tudo
Era os miúdo e os graúdo,
Era os menino e os rapaz,
Eu satisfeito e contente
Ia seguindo na frente
E aquela infiêra atráz.

O mais véio dava um grito:
__Anima rapaziada!
Era um truvejo bonito
No manejá das inxada;
Com licença da palavra,
Eu tinha da minha lavra
Munta gente em serviço
Trabaiando no roçado
Mode abastecê os mercado
Com os geno alimenticio
 
Defendendo a vida alêia,
Vivi sempre a trabaiá
E nunca fiz cara feia
Promode imposto pagá,
Pois todos aquele que tem
Budega, loja , armazém
E ôtras vendas de valô
O seu lucro nunca estraga,
Pruquê o imposto quem paga
É sempre o consumidô.
 
Fui um  correto sujeito 
E nunca baruio fiz.
Bradando contra os dereito
Criado em nosso país,
Eu nunca me revortava 
Quando pra fêra eu levava
Mio, farinha e feijão
Mode vendê no mercado
Qui chegava um impregado
Trazendo um papé na mão.
 
O agricurtô é desposto
Ele vende , paga imposto,
Se compra, paga também.
Nesta coisa maginando
Vejo qui venho pagando
Imposto derne menino,
Quando comprava bom-bom
Qui chupava e achava bom
Quando eu era pequeninino.
 
Mesmo assim , falando errado,
Já contei a seu dotô,
Quem eu já fui no passado,
Honesto e trabaiadô.
A linguage tá errada
Mas a verdade é sagrada.
E agora preste tensão,
Tenha a bondade de uvi
O qui eu venho lhe pedi
Com dereito e com razão:
 
Não lhe minto e nem lhe nego
Já tenho sessenta ano,
Sofro munto, não sossego,
Já vivo mole, sem prano;
E por isto, nesta idade,
Eu venho aqui lhe rogá
Pra eu sê apusentado
Com dereito carimbado,
Por meio do FUNRURÁ.
 
Sessenta ano, pra mim,
É uma carga pesada,
Tô achando munto ruim,
O peso da minha inxada;
Os fio todos casado
Eu, doente, fracassado,
E além de vivê doente,
Sou da percisão cativo
Sei lá se eu ainda vivo
Mais cinco ano pra frente?
 
Sei que o dotô considera
O meu dito verdadêro.
Que diabo é que a gente espera
Já com sessenta janêro?
Esta idade é um castigo
E é por isto que lhe digo:
Minha aposentadoria
Já é tempo de fazê,
Eu passos mais vivê
Dando murro todo dia.
 
Eu, novo, resovi tudo
Qui fiquei de péia grossa,
Fui cabra bamba, peitudo
Iguá um boi de carroça;
Passei minha vida intêra
Naquela grande cansêra
Da paioça pro roçado.
Se o nosso Brasi falasse
O lucro que eu tenho dado.
 
Já tô de cabelo branco,
A cara toda incuída,
Eu lhe digo e falo franco
Nesta viage da vida
Já tô no fim do caminho;
Seu dotô ,  vá de pouquinho
Mandando de lá pra cá,
Pra este meu cativêro,
Uma parte do dinhêro
Que mandei daqui pra lá.

Poemas e Poesias segunda, 20 de maio de 2019

A MORTE DO JANGADEIRO (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

A MORTE DO JANGADEIRO 

Padre Antônio Tomás

 

Ao sopro do terral abrindo a vela, 
Na esteira azul das águas arrastada, 
Segue veloz a intrépida jangada 
Entre os uivos do mar que se encapela. 

Prudente, o jangadeiro se acautela 
Contra os mil acidentes da jornada; 
Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada 
O vento, a chuva, os raios, a procela. 

Súbito, um raio o prostra e, furioso, 
Da jangada o despeja na água escura; 
E, em brancos véus de espuma, o desditoso. 

Envolve e traga a onda intumescida, 
Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura 
O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.
 


Poemas e Poesias domingo, 19 de maio de 2019

DENTRO DA NOITE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

DENTRO DA NOITE

Olavo Bilac

 

Ficas a um canto da sala,
Olhas-me e finges que lês..
Ainda uma vez te ouço a fala,
Olho-te ainda uma vez;
Saio... Silêncio por tudo:
Nem uma folha se agita;
E o firmamento, amplo e mudo,
Cheio de estrelas palpita.
E eu vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Mas não sei que luz me banha
Todo de um vivo clarão;
Não sei que música estranha
Me sobe do coração.
Como que, em cantos suaves,
Pelo caminho que sigo,
Eu levo todas as aves,
Todos os astros comigo.
E é tanta essa luz, é tanta
Essa música sem par,
Que nem sei se é a luz que canta,
Se é o som que vejo brilhar.

Caminho em êxtase, cheio
Da luz de todos os sóis,
Levando dentro do seio
Um ninho de rouxinóis.
E tanto brilho derramo,
E tanta música espalho,
Que acordo os ninhos e inflamo
As gotas frias do orvalho.
E vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Caminho. A terra deserta
Anima-se. Aqui e ali,
Por toda parte desperta
Um coração que sorri.
Em tudo palpita um beijo,
Longo, ansioso, apaixonado,
E um delirante desejo
De amar e de ser amado.
E tudo, - o céu que se arqueia
Cheio de estrelas, o mar,
Os troncos negros, a areia,
- Pergunta, ao ver-me passar:

"O Amor, que a teu lado levas,
A que lugar te conduz,
Que entras coberto de trevas,
E sais coberto de luz?
De onde vens? que firmamento
Correste durante o dia,
Que voltas lançando ao vento
Esta inaudita harmonia?
Que país de maravilhas,
Que Eldorado singular
Tu visitaste, que brilhas
Mais do que a estrela polar?"

E eu continuo a viagem,
Fantasma deslumbrador,
Seguido por tua imagem,
Seguido por teu amor.
Sigo... Dissipo a tristeza
De tudo, por todo o espaço,
E ardo, e canto, e a Natureza
Arde e canta, quando eu passo,
- Só porque passo pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar...


Poemas e Poesias sábado, 18 de maio de 2019

A LARANJA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

A LARANJA

Mário Quintana

 

 

A laranja cortada ao meio, 
Úmida de amor, anseia pela outra... 
É assim, é bem assim que eu te desejo!


Poemas e Poesias sexta, 17 de maio de 2019

A CAMÕES (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A CAMÕES

Manuel Bandeira

 

 

Quando n'alma pesar de tua raça 
A névoa da apagada e vil tristeza, 
Busque ela sempre a glória que não passa, 
Em teu poema de heroismo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça, 
Tu resumiste em ti toda a grandeza: 
Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça 
O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente 
Da estirpe que em perigos sublimados 
Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá sem poetas nem soldados 
A língua em que cantaste rudemente 
As armas e os barões assinalados. 


Poemas e Poesias quinta, 16 de maio de 2019

ARRANJOS PARA ASSOBIO (POEMAS DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

ARRANJOS PARA ASSOBIO

Manoel de Barros


ARRANJOS PARA ASSOBIO
OFERTA
Arcado ser — 
eu sou o apogeu do chão. Deixa passar o meu 
estorvo o meu trevo a minha corcova 
Senhor! 
(este assobio vai para todas as pessoas pertencidas 
pelos antros)

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
O PULO
Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo 
sapo ficou teso de flor! 
e pulou o silêncio

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
SERVIÇOS
Catar um por um os espinhos da água 
restaurar nos homens uma telha de menos 
respeitar e amar o puro traste em flor


Poemas e Poesias quarta, 15 de maio de 2019

NO ALTO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

NO ALTO

Machado de Assis


O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta 
O outro lhe deu a mão.


Poemas e Poesias terça, 14 de maio de 2019

AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS

Jorge de Lima

 

Aqui foi um lugar de calmas horas,
ali era a distância. Em cima o pássaro.
Na planta essa raiz, e agora a ausência,
agora esse tecido alinhavado
por entre unhas de dedos invisíveis.
Apagaram-se as coisas tintas com
o sopro das palavras: geografias,
paciências, velhos trigos, decisões.
Aqui era um sinal, ali um número,
em cima esse fagote, e o anzol das plantas
fisgando o grão já grávido de sumos.
Agora esses molares ruminando
amargores sumidos, sais de medos;
agora a linha preta, a fronte baixa,
a luz escurecida, as mariposas.


Poemas e Poesias segunda, 13 de maio de 2019

A LIÇÃO DA POESIA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A LIÇÃO DA POESIA

João Cabral de Melo Neto

 

1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis — naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.


Poemas e Poesias domingo, 12 de maio de 2019

SER MÃE (POEMA DO MARANHENSE COELHO NETO)

SER MÃE

Coelho Neto

 

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
O coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio, que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor cantando vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormido; é ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Poemas e Poesias domingo, 12 de maio de 2019

AMA-ME (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

AMA-ME

Hilda Hilst

 

Aos amantes é lícito a voz desvanecida. 
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido: 
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora, 
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês 
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo 
Ronda escurecida? 

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento 
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor 
Quando tudo anoitece? Antes lamenta 
Essa teia de seda que a garganta tece. 

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito 
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome 
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido 
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo. 


Poemas e Poesias sábado, 11 de maio de 2019

NÃO HÁ VAGAS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NÃO HÁ VAGAS

Ferreira Gullar

 

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira


Poemas e Poesias sexta, 10 de maio de 2019

AO LONGE, AO LUAR (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AO LONGE, AO LUAR

Fernando Pessoa

 

Ao longe, ao luar, 
No rio uma vela, 
Serena a passar, 
Que é que me revela? 

Não sei, mas meu ser 
Tornou-se-me estranho, 
E eu sonho sem ver 
Os sonhos que tenho. 

Que angústia me enlaça? 
Que amor não se explica? 
É a vela que passa 
Na noite que fica. 


Poemas e Poesias quinta, 09 de maio de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 21 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA

Eno Teodoro Wanke

 

Senhor! Que eu partique o bem

Separe o joio do trigo

E tenha forças, também

De amar o irmão inimigo

 


Poemas e Poesias quarta, 08 de maio de 2019

A ESCADA DE SONHO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A ESCADA DE SONHO

Da Costa e Silva

 

 
Sobe ao céu meu pensamento, 
Como uma espiral de incenso...

E eis numa névoa de sol, 
Minha escada de Jacó!

É por ela, quando cismo, 
Que desces ao meu abismo...

E ascendo aonde vives tu 
Entre as estrelas, no Azul...

A escada de sonho, à tarde, 
É um íris para a saudade.

É a luz eterna do Amor 
Que irradia entre nós dois...

E eleva-se o pensamento,  
Além da morte e do tempo.


Poemas e Poesias terça, 07 de maio de 2019

FRÊMITOS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

FRÊMITOS 

Cruz e Sousa

 

 

I

Arriba, abajo ó pombas luminosas                

que passais neste mundo eternamente                      

só a cantar os madrigais de rosas,                 

atravessados de um luar veemente,              

inundados de estrelas e esplendores, 5        

de carinhos, de bênçãos e de amores.                       

 

 

II

 

Ó virgens peregrinas,            

de meigo olhar banhado de esperanças,                   

que perfumais com lírios e boninas              

a aurora de cristal das louras tranças,            10      

que atravessais constantemente a vida                     

do sol eterno, da visão florida.                     

 

 

III

 

Amadas e felizes                   

gêmeas da luz das frescas alvoradas,           

vós que trazeis nas almas as raízes    15      

do que é são, do que é puro -ó vós amadas              

prendas gentis do paternal tesouro,              

iriados corações de fluidos de ouro.             

 

 

IV

 

É para vós que eu quero                    

engrinaldar de tropos e de rimas,       20      

num doce verso artístico e sincero,               

esgrimir com belíssimas esgrimas                

a estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros               

para que brilhe como uns astros puros.                    

 

 

V

 

É só a vós, apenas,      25      

que eu me dirijo, límpidas auroras,              

que pelas tardes plácidas, serenas,                

passais, galantes como ingênuas Floras,                  

coroadas de flor de laranjeira,                       

noivas, sorrindo à mocidade inteira.  30      

 

 

VI

 

Porque é de vós que deve,                

de vós que o sonho eterno dulcifica,            

partir o lume quando cai a neve,                  

surgir a crença poderosa e rica.                    

Porque afinal, o que se chama crença,           35      

senão o amor e a caridade imensa?               

 

 

VII

 

Os tristes e os pequenos                    

em quem descansam brandamente os olhos,            

esses humildes, rotos Nazarenos                  

que vivem, morrem suportando abrolhos,     40      

senão nos grandes entes piedosos                 

que dão-lhes força aos transes dolorosos?               

 

 

VIII

 

Oh, sim que a força eterna                

parte dos corpos rijos da saúde,                   

perante a lei da vida que governa,     45      

o nobre, o rei, o proletário rude;                   

parte dos seres fartos de carinhos                 

como de paz e de alegria os ninhos.             

 

 

IX

 

Eu peço para todos               

e peço a vós que sois as fortalezas     50      

da esperança, da fé -a vós que os lodos                   

da miséria, do vício, das baixezas,               

não denegriram essas consciências               

castas e brancas como as inocências.            

 

 

X

 

Nem se esperar devia 55      

que eu tentasse bater a outras portas,           

quando vós sois o exemplo de Maria;                      

não andais mudas, regeladas, mortas            

pela noite voraz da sepultura            

e escutareis os dramas da amargura.  60      

 

 

XI

 

Não julgueis que eu vos peça,                      

uma alvorada feita de um sorriso;                 

a minh'alma garante e vos confessa             

que se crê nas mansões do Paraíso,              

é porque vós reinais por sobre a terra            65      

e o Paraíso dentro em vós se encerra.                       

 

 

XII

 

A vós, a vós compete            

a glória do dever -porque assim como                     

a luz do sol na lua se reflete,             

também das aflições no duro assomo,           70      

da pobreza refletem-se nas almas,                

vossas imagens, como auroras calmas.                    

 

 

XIII

 

Portanto, a mocidade            

vossa, terá de ser de hoje em diante,            

enquanto a esmagadora atrocidade    75      

da peste -nos vorar d'instante a instante,                  

quem se há de encarregar desta manobra                 

do galeão da vida que sossobra.                   

 

 

XIV

 

E para isso, ó rainhas             

da juventude -tendes as quermesses   80      

que dão bons frutos assim como as vinhas;              

as matinées de cânticos e preces,                  

os cintilantes, pródigos bazares                    

onde a luz salta extravasando em mares.                  

 

 

XV

 

Enquanto a mim, na arena      85      

da heroicidade humana que consola,            

oh, faz-me bem a vibração da pena,             

pelo amor , pelo afago, pela esmola,            

como um radiante e fúlgido estilhaço                      

de sol febril no mármore do Espaço!


Poemas e Poesias segunda, 06 de maio de 2019

AINDA NÃO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

AINDA NÃO

Cora Coralina

 

I
Ainda não…
É a espera.
Afirmação
do tempo que vai chegar
no tempo que está passando.
 
II
Ainda não…
É a promessa.
Certeza
do tempo de querer
no tempo que vai chegando.
A mulher é a terra —
terra de semear.
 
III
Ainda não…
O tempo disse dormindo:
Por que esperar?
Plantar, colher
no amanhecer.
Não retardar o instante
maravilhoso da colheita.
 
IV
Veio o semeador,
semearam juntos
e colheram
o encantamento do fruto.
Lamentaram juntos
Retardamos tanto… no tempo.
 

Poemas e Poesias domingo, 05 de maio de 2019

A NOSSA VITÓRIA DE CADA DIA (POEMA EM PROSA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

A NOSSA VITÓRIA DE CADA DA

Clarice Lispector

 

Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. 


Poemas e Poesias sábado, 04 de maio de 2019

A BAILARINA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

A BAILARINA

Cecília Meireles

 

 

Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

 

Não conhece nem dó nem ré

mas sabe ficar na ponta do pé.

 

Não conhece nem mi nem fá

Mas inclina o corpo para cá e para lá.

 

Não conhece nem lá nem si,

mas fecha os olhos e sorri.

 

Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar

e não fica tonta nem sai do lugar.

 

Põe no cabelo uma estrela e um véu

e diz que caiu do céu.

 

Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

 

Mas depois esquece todas as danças,

e também quer dormir como as outras crianças.


Poemas e Poesias quinta, 02 de maio de 2019

AMANTE (18ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

AMANTE

(Do  poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"BASTA, criança! Não soluces tanto...
Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!
Que culpa tem a clícia descaída
Se abelha envenenada o mel lhe suga?
"Basta! Esta faca já contou mil gotas
De lágrimas de dor nos teus olhares.
Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas
No sangue dele em gotas aos milhares.

"Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Estalma é como o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.

"Se a justiça da terra te abandona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força...
E quem tem um punhal nada carece! ...

"Vamos! Acaba a história ... Lança a presa...
Não vês meu coração, que sente fome?
Amanhã chorarás; mas de alegria!
Hoje é preciso me dizer — seu nome!"


Poemas e Poesias quarta, 01 de maio de 2019

JURAMENTO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU

JURAMENTO

Casimiro de Abreu

Tu dizes oh Mariquinhas
Que não crês nas juras minhas,
Que nunca cumpridas são!
Mas se eu não te jurei nada,
Como hás de tu, estouvada,
Saber se eu as cumpro ou não?!

Tu dizes que eu sempre minto,
Que protesto o que não sinto,
Que todo o poeta é vário,
Que é borboleta inconstante;
Mas agora, neste instante,
Eu vou provar-te o contrário.

Vem cá, sentada a meu lado
Com esse rosto adorado
Brilhante de sentimento,
Ao colo o braço cingido,
Olhar no meu embebido,
Escuta o meu juramento.

Espera: - inclina essa fronte...
Assim!... - Pareces no monte
Alvo lírio debruçado!
- Agora, se em mim te fias,
Fica séria, não te rias,
O juramento é sagrado.

"- Eu juro sobre estas tranças,
"E pelas chamas que lanças
"Desses teus olhos divinos;
"Eu juro, minha inocente,
"Embalar-te docemente
"Ao som dos mais ternos hinos!

"Pelas ondas, pelas flores,
"Que se estremecem de amores
"Da brisa ao sopro lascivo;
"Eu juro, por minha vida,
"Deitar-me a teus pés, querida,
"Humilde como um cativo!

"Pelos lírios, pelas rosas,
"Pelas estrelas formosas,
"Pelo sol que brilha agora,
"- Eu juro dar-te, Maria,
"Quarenta beijos por dia
"E dez abraços por hora!"

O juramento está feito,
Foi dito co'a mão no peito
Apontando ao coração;
E agora - por vida minha,
Tu verás oh! moreninha,
Tu verás se o cumpro ou não!...


Poemas e Poesias terça, 30 de abril de 2019

A LUA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A LUA

Carlos Pena Filho

 

 


Mas, enquanto tudo é fome,
por todo o reino animal,
existe ainda fartura
na “terceira capital”,
pois os que forem passear
no cais da rua Aurora,
em certa noite do mês,
poderão sair dizendo,
todos juntos, de uma vez:
Era uma lua tão grande,
de tão vermelha amplidão
que mesmo Ascenso Ferreira,
comendo só a metade,
morria de indigestão.


Poemas e Poesias segunda, 29 de abril de 2019

A BRUXA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A BRUXA

Carlos Drummond de Andrade

 


Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes
Estou sozinho no quarto
Estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
Anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
Mas é vida. E sinto a Bruxa
Presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
E a essa hora tardia
Como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
Que entrasse nesse minuto,
Recebesse esse carinho
Salvasse do aniquilamento
Um minuto e um carinho loucos
Que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes
Quantas mulheres prováveis
Interrogam-se no espelho
Medindo o tempo perdido
Até que venha a manhã
Trazer leite, jornal, calma.
Porém a essa hora vazia
Como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
Conheço vozes de bichos,
Sei os beijos mais violentos,
Viajei, briguei, aprendi
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras

Mas se tento comunicar-me,
O que há é apenas a noite
E uma espantosa solidão

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
Querendo romper a noite
Não é simplesmente a Bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem.


Poemas e Poesias domingo, 28 de abril de 2019

SONETO 098 AQUELA QUE, DE PURA CASTIDADE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AQUELA QUE, DE PURA CASTIDADE

Luís de Camões

 

Aquela que, de pura castidade,
de si mesma tomou cruel vingança
por üa breve e súbita mudança
contrária a sua honra e qualidade,

venceu à fermosura a honestidade,
venceu no fim da vida a esperança,
por que ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade.

De si, da gente e do mundo esquecida,
feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.

Estranha ousadia! Estranho feito!
Que, dando morte breve ao corpo humano,
tenha sua memória larga vida!

 


Poemas e Poesias sábado, 27 de abril de 2019

SONETO DO PAU DECIFRADO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO PAU DECIFRADO

Bocage

 


É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser arvore de figo,
Da glande o fructo tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está comsigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-sancto mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um U; [carualho]
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar metta-o no cu.

 


Poemas e Poesias sexta, 26 de abril de 2019

O CAIXÃO FANTÁSTICO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

O CAIXÃO FANTÁSTICO

Augusto dos Anjos

 

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam, talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia multo frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!


Poemas e Poesias quarta, 24 de abril de 2019

A CHEGADA DE SUASSUNA NO CÉU (POEMA RECITADO POR ROLANDO BOLDRIN)


Poemas e Poesias terça, 23 de abril de 2019

ASPIRAÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

ASPIRAÇÃO

Antero de Quental

 

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gosos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do presentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!


Poemas e Poesias segunda, 22 de abril de 2019

À T... (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

À T...

Álvares de Azevedo

 

No amor basta uma noite para fazer de um homem um Deus.
PROPÉRCIO.


Amoroso palor meu rosto inunda,
Mórbida languidez me banha os olhos,
Ardem sem sono as pálpebras doridas,
Convulsivo tremor meu corpo vibra:
Quanto sofro por ti! Nas longas noites
Adoeço de amor e de desejo
E nos meus sonhos desmaiando passa
A imagem voluptosa da ventura...
Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens,
E ela mesma suave descorando
Os alvacentos véus soltar do colo,
Cheirosas flores desparzir sorrindo
Da mágica cintura.
Sinto na fronte pétalas de flores,
Sinto-as nos lábios e de amor suspiro.
Mas flores e perfumes embriagam,
E no fogo da febre, e em meu delírio
Embebem na minh'alma enamorada
Delicioso veneno.

Estrela de mistério, em tua fronte
Os céus revela, e mostra-me na terra,
Como um anjo que dorme, a tua imagem
E teus encantos onde amor estende
Nessa morena tez a cor de rosa
Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
O languor de teus olhos me enlanguesce,
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh'alma!

Ah! vem, pálida virgem, se tens pena
De quem morre por ti, e morre amando,
Dá vida em teu alento à minha vida,
Une nos lábios meus minh'alma à tua!
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Na tua alma infantil; na tua fronte
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as virações do paraíso;
E a teus pés, de joelhos, crer ainda
Que não mente o amor que um anjo inspira,
Que eu posso na tua alma ser ditoso,
Beijar-te nos cabelos soluçando
E no teu seio ser feliz morrendo!


Poemas e Poesias domingo, 21 de abril de 2019

É NECESSÁRIO AMAR (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

É NECESSÁRIO AMAR

Alphonsus Guimaraens

 

 

É necessário amar... Quem não ama na vida?
Amar o sol e a lua errante! amar estrelas,
Ou amar alguém que possa em sua alma contê-las,
Cintilantes de luz, numa seara florida!

Amar os astros ou na terra as flores... Vê-las
Desabrochando numa ilusão renascida...
Como um branco jardim, dar-lhes na alma guarida,
E todo, todo o nosso amor para aquecê-las...

Ou amar os poentes de ouro, ou o luar que morre breve,
Ou tudo quanto é som, ou tudo quanto é aroma...
As mortalhas do céu, os sudários de neve!

Amar a aurora, amar os flóreos rosicleres,
E tudo quanto é belo e o sentido nos doma!
Mas, antes disso, amar as crianças e as mulheres...


Poemas e Poesias sábado, 20 de abril de 2019

A IGNORÂNCIA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

A IGNORÂNCIA

Quintino Cunha

 

Na história da teimosia
Entre a rudeza e a arrogância
É tão forte a ignorância

Tão cruenta, tão mendaz
Que a própria Sabedoria
De tudo, sabendo tanto
Não pode saber de quanto 
O ignorante é capaz


Poemas e Poesias sexta, 19 de abril de 2019

A ARANHA, POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA

A ARANHA

Da Costa e Silva

 

Num ângulo do teto, ágil e astuta, a aranha,

Sobre invisível tear tecendo a tênue teia,

Arma o artístico ardil em que as moscas apanha

E, insidiosa e sutil, os insetos enleia.

 

Faz do fluido que flui das entranhas a estranha

E fina trama ideal  de seda que a rodeia

E, alargando o aranhol, os elos emaranha

Do alvo, disco nupcial, que a luz do sol prateia.

 

Em flóculos de espuma urde, borda e desenha

O arabesco fatal, onde os palpos apoia

E tenaz, a caçar os insetos se empenha.

 

Vive, mata e produz, nessa fana enfadonha;

E, o fascinante olhar a arder como uma joia,

Morre na própria teia, onde trabalha e sonha.


Poemas e Poesias quinta, 18 de abril de 2019

ATRAÇÃO E REPULSÃO (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

ATRAÇÃO E REPULSÃO

Adelino Fontoura 

 


Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui té junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.


Poemas e Poesias quarta, 17 de abril de 2019

A FORMALÍSTICA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

A FORMALÍSTICA

Adélia Prado

 

O poeta cerebral tomou café sem açúcar

e foi pro gabinete concentrar-se.

Seu lápis é um bisturi

que ele afia na pedra,

na pedra calcinada das palavras,

imagem que elegeu porque ama a dificuldade,

o efeito respeitoso que produz

seu trato com o dicionário.

Faz três horas já estuma as musas.

O dia arde. Seu prepúcio coça.

Daqui a pouco começam a fosforecer coisas no mato.

A serva de Deus sai de sua cela à noite

e caminha na estrada,

passeia porque Deus quis passear

e ela caminha.

O jovem poeta,

fedendo a suicídio e glória,

rouba de todos nós e nem assina:

"Deus é impecável."

As rãs pulam sobressaltadas

e o pelejador não entende,

quer escrever as coisas com as palavras.


Poemas e Poesias terça, 16 de abril de 2019

A ARCA DE NOÉ (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A ARCA DE NOÉ

Vinícius de Moraes

 

Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata

E abre-se a porta da arca
Lentamente surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante

E de dentro de um buraco
De uma janela aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece

 
 

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta, e o tigre - "Não"

A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Entre os pulos da bicharada
Toda querendo sair

Afinal com muito custo
Indo em fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida

Longe o arco-íris se esvai
E desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Erguem-se os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
Em meio à noite calada
Ouve-se a fala dos bichos
Na terra repovoada


Poemas e Poesias segunda, 15 de abril de 2019

A TERRA É NATURÁ (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A TERRA É NATURÁ

Patativa do Assaré

 

Sinhô dotô, meu ofiço
É serví ao meu patrão.
Eu não sei fazé comiço,
Nem discuço, nem sermão;
Nem sei as letras onde mora,
Mas porém, eu quero agora
Dizê, com sua licença,
Uma coisa bem singela,
Que a gente pra dizê ela
Não precisa de sabença.
 
Se um pai de famia honrado
Morre, deixando a famia,
Os seus fiinho adorado
Por dono da moradia,
E aquêles irmão mais véio,
Sem pensá no Evangeío,
Contra os nôvo a tôda hora
Lança da inveja o veneno
Até botá os mais pequeno
Daquela casa pra fora.
 
Disso tudo o resurtado
Seu dotô sabe a verdade,
Pois, logo os prejudicado
Recorre às oturidade
E no chafurdo infeliz
Depressa vai o juiz
Fazê a paz dos irmão
E se êle fô justicêro,
Parte a casa do herdêro
Pra cada quá seu quinhão.
 
Seu dotô, que estudou munto
E tem boa inducação,
Não ignore êste assunto
Da minha comparação,
Pois êste pai de famia
É o Deus de Soberania,
Pai do sinhô e pai meu,
Que tudo cria e sustenta,
E esta casa representa
A terra que êle nos deu.
 
O pai de famia honrado,
A quem tô me referindo,
É Deus Nosso Pai Amado,
Que lá do céu tá me uvindo,
O Deus justo que não erra
E que pra nós fez a terra,
Êste praneta comum,
Pois a terra, com certeza,
É obra da Natureza
Que pertence a cada um.
 
Se a terra foi Deus quem fez,
Se é obra da Criação,
Divia cada freguês
Ter seu pedaço de chão.
Munta gente não combina
Esta verdade divina,
Mas um jurgamento eu faço,
E vejo que jurgo bem,
Se eu sou da terra também,
Onde é que tá meu pedaço?
 
Esta terra é desmedida,
E divia ser comum,
Divia ser repartida
Um taco pra cadaum
Mode morrar sossegado.
Eu ja tenho maginado,
Que abaixo o sertão e a serra
Divia ser coisa nossa,
Quem não trabaia na roça
Que diabo é que quer com terra?
 
Esta terra é como o Só,
Que nasce todos os dia,
Briando o grande, o menó
E tudo o que a terra cria.
O Só quilareia os monte.
Também as água das fonte.
Com a sua luz amiga,
Potrege no mesmo instante,
Do grandaião elefante
À pequenina formiga.
 
Esta terra é como a chuva,
Que vai da praia à campina,
Móia a casada, a viúva,
A véia, a môça, a menina.
Quando sangra os nevuêro,
Pra conquistá o aguacêro
Ninguém vai fazê fuchico,
Pois a chuva tudo cobre,
Móia a tapera do pobre
E a grande casa do rico.
 
Esta terra é como a lua,
Êste foco prateado,
Que é do campo até a rua,
A lampa dos namorado,
Mas, mesmo ao véio cacundo,
Já com ar de moribundo,
Sem amô, sem vaidade,
Esta lua cô de prata,
Não lhe dêxa de sê grata,
Lhe manda quilaridade.
 
Esta terra é como o vento,
O vento, que, por capricho
Assopra, às vez, um momento,
Brando, fazendo cuchicho,
Outras vez, vira o capeta,
Vai fazendo pirueta,
Rocando com desatino,
Levando tudo de móio,
Jogando arguêro nos óio
Do grande e do pequenino.
 
Se o orgüioso pudesse,
Com seu rancô desmedido,
Tarvez até já tivesse
Êste vento repartido,
Ficando com a viração
E dando ao pobre o furacão.
Pois sei que ele tem vontade,
E acha mesmo que precisa
Gozá do frescô da brisa,
Dando ao pobre a tempestade.
 
Pois o vento, o Só, a Lua,
A chuva e a terra também,
Tudo é coisa minha e sua,
Seu dotô conhece bem.
Pra se sabê disso tudo
Ninguém precisa de estudo.
Eu sem escrevê, nem lê,
Conheço desta verdade.
Seu dotô, tenha a bondade
De uvi o que vou dizê.
 
Não invejo o seu tesôro,
Sua mala de dinhêro,
A sua prata, seu ôro,
O seu boi, o seu carnêro,
Seu repôso, seu recreio,
Seu bom carro de passeio,
Sua casa de morá
E a sua loja surtida,
O que quero nesta vida
É terra pra trabaiá.
 
Escute o que tou dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão, nem guerra,
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!
Tenha pena do agregado,
Não me dêxe deserdado
Daquilo que Deus me deu!
 
 
 

Poemas e Poesias domingo, 14 de abril de 2019

A MERETRIZ (POEMA D CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

A MERETRIZ

Padre Antônio Tomás

 

Essa mulher de face encaveirada
Que vês tremendo em ânsias de fadiga
Estendendo a quem passa a mão mirrada
Foi meretriz, antes de ser mendiga.

Em breve fugiu-lhe a sorte airada
A mocidade, a doce quadra amiga
E ela se viu pobre e desgraçada
Antes de tempo, a tanto o vício obriga.

Ontem, do gozo e da volúpia ardente
Fosse a quem fosse dava a qualquer hora
O seio branco e o lábio sorridente

Hoje, triste sina, embalde chora
Pedindo esmola àquela mesma gente
Que de seus beijos se fartara outrora.


Poemas e Poesias sábado, 13 de abril de 2019

MANHÃ DE VERÃO (POEMA D CARIOCA OLAVO BILAC)

MANHÃ DE VERÃO

Olavo Bilac

 

As nuvens, que, em bulcões, sobre o rio rodavam,

Já, com o vir de manhã, do rio se levantam.

Como ontem, sob a chuva, estas águas choravam!

E hoje, saudando o sol, como estas águas cantam!

 

A estrela, que ficou por último velando,

Noive que espera o noivo e suspira em segredo,

- Desmaia de pudor, apaga, palpitando,

- A pupila amorosa, e estremece de medo.

 

Há pelo Paraíba um sussurro de vozes,

Tremor de seios nuns corpos brancos luzindo...

E, alvas, a cavalgar broncos monstros ferozes,

Passam, como num sonho, as náiades fugindo.

 

A rosa, que acordou sob as ramas cheirosas,

Diz-me: “Acorda com um beijo as outras flores quietas!

Poeta! Deus criou as mulheres e as rosas

Para os beijos do sol e os beijos dos poetas!”

 

E a ave diz: “Sabes tu? Conheço-a bem... Parece

Que os Gênios de Oberon bailam pelo ar dispersos,

E que o céu se abre todo, e que a terra floresce,

- Quando ela principia a recitar teus versos!”

 

E diz a luz: “Conheço a cor daquela boca!

Bem conheço a maciez daquelas mãos pequenas!

Não fosse ela aos jardins roubar, trêfega e louca,

O rubor da papoula e o alvor das açucenas!”

 

Diz a palmeira: “Invejo-a! ao vir a luz radiante,

Vem o vento agitar-me e desnastrar-me a coma:

E eu pelo vento envio ao seu cabelo ondeante

Todo o meu esplendor e todo o meu aroma!”

 

E a floresta, que canta, e o sol, que abre a coroa

De ouro fulvo, espancando a matutina bruma,

E o lírio, que estremece, e o pássaro, que voa,

E a água, cheia de sons e de flocos de espuma,

 

Tudo, - a cor, o clarão, o perfume e o gorjeio,

Tudo, elevando a voz, nesta manhã de estio,

Diz: “Pudesses dormir, poeta! No seu seio,

Curvo como este céu, manso como este rio!”

 

 


Poemas e Poesias sexta, 12 de abril de 2019

A CANÇÃO DA VIDA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

A CANÇÃO DA VIDA

Mário Quintana

 

A vida é louca 
a vida é uma sarabanda 
é um corrupio... 
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando 
de raparigas em flor 
e está cantando 
em torno a ti: 
Como eu sou bela 
amor! 
Entra em mim, como em uma tela 
de Renoir 
enquanto é primavera, 
enquanto o mundo 
não poluir 
o azul do ar! 
Não vás ficar 
não vás ficar 
aí... 
como um salso chorando 
na beira do rio... 
(Como a vida é bela! como a vida é louca!) 


Poemas e Poesias quinta, 11 de abril de 2019

A CAMÕES (POEMA DO PERNAMBUCANO MANOEL BANDEIRA)

A CAMÕES

Manuel Bandeira

 

Quando n'alma pesar de tua raça 
A névoa da apagada e vil tristeza, 
Busque ela sempre a glória que não passa, 
Em teu poema de heroismo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça, 
Tu resumiste em ti toda a grandeza: 
Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça 
O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente 
Da estirpe que em perigos sublimados 
Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá sem poetas nem soldados 
A língua em que cantaste rudemente 
As armas e os barões assinalados. 
  


Poemas e Poesias quarta, 10 de abril de 2019

APRENDIMENTOS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

APRENDIMENTOS

Manoel de Barros

 

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.

Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.

E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.

Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.


Poemas e Poesias terça, 09 de abril de 2019

NAQUELE ETERNO AZUL, ONDE COEMA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

NAQUELE ETERNO AZUL, ONDE COEMA

Machado de Assis

 

Naquele eterno azul, onde Coema,
Onde Lindoia, sem temor dos anos,
Erguem os olhos plácidos e ufanos,
Também os ergue a límpida Iracema.
 
Elas foram, nas águas do poema,
Cantadas pela voz de americanos,
Mostrar às gentes de outros oceanos
Jóias do nosso rútilo diadema.
 
E, quando a magna voz inda afinavas
Foges-nos, como se a chamar sentiras
A voz da glória pura que esperavas.
 
O cantor do Uruguai e o dos Timbiras
Esperavam por ti, tu lhe faltavas
Para o concerto das eternas liras.


Poemas e Poesias segunda, 08 de abril de 2019

AQUI É O FIM DO MUNDO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

AQUI É O FIM DO MUNDO

Jorge de Lima

 


Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo
em que até aves vêm cantar para encerrá-lo.
Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo,
e nos vastos areais — ossadas de cavalo.

Entre as aves do céu: igual carnificina:
se dormires cansado, à face do deserto,
quando acordares hás de te assustar. Por certo,
corvos te espreitarão sobre cada colina.

E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que é debaixo dos céus, a mais triste canção),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.

E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tangê-las-ás de ti, de ti mesmo, em que estão
esses corvos fatais. E esses corvos não vão.


Poemas e Poesias domingo, 07 de abril de 2019

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

João Cabral de Melo Neto

 

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.


Poemas e Poesias sábado, 06 de abril de 2019

A MÃO, POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA

A MÃO

Adelino Fontoura

 

 

                   Quando meu lábio trêmulo te oscula

                   A pequenina mão delgada e fina,

                   Como uma pomba trêmula que arrula

                   Minha vida, mal sabes! — canta e pula

                   Na rósea palma dessa mão divina!


Poemas e Poesias sexta, 05 de abril de 2019

A CARNAUBEIRA (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

A CARNAUBEIRA

Padre Antônio Tomás

 


Nascida dos sertões na gleba adusta,
Sob os raios do sol abrasador,
Garbosa e altiva, ostenta o seu vigor,
Das nossas várzeas, a princesa augusta.

Princesa... Bem que o nome se lhe ajusta
Tal dos seus benefícios o primor,
Pois dá sustento e teto protetor
E cama e luz ao pobre, à sua custa.

Tem certos modos de mulher faceira,
Os longos verdes cachos exibindo
Como tranças de enorme cabeleira.

E quando o sol a pino a terra escalda,
Abana a fronte, as asas sacudindo
Com o seu formoso leque de esmeralda.


Poemas e Poesias quinta, 04 de abril de 2019

ALMA (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

ALMA 

Hilda Hilst

 

Que te devolvam a alma
Homem do nosso tempo.
Pede isso a Deus
Ou às coisas que acreditas
À terra, às águas, à noite
Desmedida,
Uiva se quiseres,
Ao teu próprio ventre
Se é ele quem comanda
A tua vida, não importa,
Pede à mulher
Àquela que foi noiva
À que se fez amiga,
Abre a tua boca, ulula
Pede à chuva
Ruge
Como se tivesses no peito
Uma enorme ferida
Escancara a tua boca
Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA.


Poemas e Poesias quarta, 03 de abril de 2019

POEMA BRASILEIRO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

POEMA BRASILEIRO

Ferreira Gullar

 


No  Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
De cada cem crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

N Piauí
De cada 100 crianças
Que nascem
78 morrem
Antes
De completar
8 anos de idade

Antes de completar 8 anos de idade
Antes de completar 8 anos de idade
Antes de completar 8 anios de idade
Antes de completar 8 anos de idade


Poemas e Poesias terça, 02 de abril de 2019

ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA

Fernando Pessoa

 

Andei léguas de sombra 
Dentro em meu pensamento. 
Floresceu às avessas 
Meu ócio com sem-nexo, 
E apagaram-se as lâmpadas 
Na alcova cambaleante. 

Tudo prestes se volve 
Um deserto macio 
Visto pelo meu tato 
Dos veludos da alcova, 
Não pela minha vista. 
Há um oásis no Incerto 
E, como uma suspeita 
De luz por não-há-frinchas, 
Passa uma caravana. 

Esquece-me de súbito 
Como é o espaço, e o tempo 
Em vez de horizontal 
É vertical. 


Poemas e Poesias segunda, 01 de abril de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 21 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 21

Eno Teodoro Wanke

 

Despedir-se é ver no imenso

Queixume negro do cais

A  alva gaivota de um lenço

Acenando o nunca mais...


Poemas e Poesias domingo, 31 de março de 2019

ROSA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ROSA

Cruz e Sousa

 

Rosa — chamava-se a estrela

Daquelas flóreas paragens;

Era escutá-la e era vê-la

Metida em brancas roupagens

Todas de pregas e tufos,

De laçarotes e rendas,

Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos

Ou surpreender-lhe as contendas

Nas lindas tardes radiadas

Por cores de silforamas

E sentir logo, inspiradas

Do amor, as férvidas chamas.

Ela era um beijo fundido

Ao cintilar de uma aurora,

Um sonho eterno espargido

Nos belos sonhos de Flora.

E tinha uns longes sublimes

De grande força lasciva,

A transudar, como uns crimes

Do sangue, da carne altiva.

Contava tudo... mas tanto,

Em turbilhões, em cascata,

Que recordava esse canto

Uma garganta de prata.

E quando os poetas, rapazes,

A viam passar, vibrante,

Mostrando as curvas audazes,

Do corpo todo radiante,

Diziam de entre os primores

De estrofes mais dulçurosas:

— Tu és a gêmea das flores,

Das rosas, perfeitas rosas.

Convulsionado e sem regra

O coração nos palpita;

Andas alegre e se alegra

A gente quando te fita.

Tens umas coisas estranhas

Nas refrações da pureza...

Umas finuras tamanhas...

Uma sutil gentileza...

Ficas rosada se um tico

Alguém te diz, de mais franco...

Mas como fica tão rico,

Tão belo o rubro no branco,

Nesse grácil e tão claro,

Sereno e cândido rosto

Que é mesmo um céu puro e raro

Das alvoradas de agosto.

Depressa cobre-te o pejo

A face nova e adorada,

De sorte que sem desejo

És — Rosa e ficas rosada.

Dos risos colhes a messe

E és doce como o conforto,

És casta como uma prece

Gemida ao lado de um morto.

Para que a dor não te obumbre

A glória de flores junca

Tua vida e, por isso, nunca

Nas mágoas terás vislumbre.

Permita o bom sol que inunda

De luz os bosques — permita

Que sejas sempre fecunda

De gozo e sempre bonita.

............................

Agora, quando alguém passa

Por onde a estrela morava,

Olhando pela vidraça

Bem junto da qual bordava,

Repara um silêncio triste

Na sala — em crepes envolta,

Onde parece que existe

Profunda lágrima solta.

E sente por dentro d’alma

Aquela angústia que esmaga

Bem como em noites sem calma

A vaga esmaga outra vaga.

Apenas as flores lindas

Que vendo Rosa morriam

Com brejeirices infindas

De invejas que renasciam,

Sem mais inúteis ciúmes,

Abrem os frescos pistilos,

Jogando aos céus, em perfumes,

Os seus melhores sigilos.

..........................

No entanto à luz soberana

Do amor desfilam as rimas

Dos poetas — como um hosana

A quem já goza outros climas.

Rosa — chama-se a estrela

Daquelas flóreas paragens;

Era escutá-la e era vê-la

Metida em brancas roupagens,

Para exclamar: — Dentro dela

Existe a fibra gloriosa...

Ninguém viu coisa mais bela

Nem Rosa... tão bela rosa!...


Poemas e Poesias sábado, 30 de março de 2019

A ANUNCIAÇÃO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A  ANUNCIAÇÃO

Vinícius de Moraes

 

Virgem! filha minha 
De onde vens assim 
Tão suja de terra 
Cheirando a jasmim 
A saia com mancha 
De flor carmesim 
E os brincos da orelha 
Fazendo tlintlin? 
Minha mãe querida 
Venho do jardim 
Onde a olhar o céu 
Fui, adormeci. 
Quando despertei 
Cheirava a jasmim 
Que um anjo esfolhava 
Por cima de mim...


Poemas e Poesias sexta, 29 de março de 2019

BRUXO (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

BRUXO

Raul Bopp

 

Longe
léguas adentro o Brasil parou
Parou a estrada
 
O homem pôs-se a decifrar a floresta
Deus ficou lá em cima recolhendo os silêncios
 
Curandeiro tomou diamba
Fez cosquinha de chamar sono
e virou bruxo
 
Estendeu a alma do lado de fora
Veio o gato e comeu
 
- Ai me leva! O rio crescia
Ficou só uma canoinha
- O vira-sebo te come!
 
Chegavam árvores e mais árvores
uma delas de raízes imensas
mastigando o Brasil
 
Vieram depois outros homens
Mandaram buscar o metro para medir a paisagem
Cobra Grande deu um peido: fium
Arvorezinha secou
 
Trovão tossiu feio
Tartaruga pôs a cabeça do lado de fora
ver se vinha chuva
 
- Ai me leva que está escuro
Bruxo esfregou os olhos
 
Floresta estava com fome
Formiga virou cipó
Vento assobiou Curupira passou
Cortou um pedaço da perna
A carne começou a gritar na barriga
 
Canoinha piquininha
desfiou-se na fumaça
Fumaça virou fumacinha
 
Ficou só o olho do bruxo
inchado
enorme
crescendo
 
Quando a sombra chegou
as árvores tinham fugido
 
Então a noite dissolveu sono
e meteu a floresta num saco

Poemas e Poesias quinta, 28 de março de 2019

A ARTE DE VIVER (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

A ARTE DE VIVER

Mário Quintana

 

A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!
 
 
Mario Quintana,
in Velório sem defunto

 


Poemas e Poesias quarta, 27 de março de 2019

A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU UDO DOMÉSTICO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU USO  DOMÉSTICO

Manoel de Barros

 


IV. A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU USO DOMÉSTICO
O POETA (por trás de uma rua minada de seu rosto 
andar perdido nela) 
— Só quisera trazer pra meu canto o que pode ser 
carregado como papel pelo vento

A LUA (com a noite nos lábios) 
— Pelo nome do rosto se apostava que era cálido

O PÁSSARO (olhos enraizados de sol) 
— Ainda que seu corpo permanecesse ardendo, o 
amor o destruiria

O CÓRREGO (perdido de borboletas) 
— O dia todo ele vinha na pedra do rio escutar a 
terra com a boca e ficava impregnado de árvores

O PÁSSARO (em dia ramoso, roçando seu rosto na erva 
dos ventos) 
— Há réstias de dor em teus cantos, poeta, como um 
arbusto sobre ruínas tem mil gretas esperando chuvas…

O CÓRREGO (apertado entre dois vaga-lumes) 
— … como no fundo de um homem uma árvore não 
tem pássaros!

O MAR (encostado na rã) 
— Em cima das casas um menino avino assobia 
de sol!

O SOL (sobre caules de passarinhos e pedras com 
rumores de rios antigos) 
— Iam caindo umas folhas de mar sobre as casas 
dos homens

A ESTRELA (sentada nos ombros de Ezequiel, o 
profeta, em Congonhas do Campo) 
— … e o silêncio escorava as casas!

O POETA (se usando em farrapos) 
— Meu corpo não serve mais nem para o amor nem 
para o canto

O CARAMUJO (olhos embaraçados de noite) 
— E a Máquina de Chilrear, Poeta?

A ÁRVORE (desinfluída de cantos) 
— É possessão de ouriços

A RÃ (de dentro de sua pedra) 
— … sua voz parece vir de um poço escuro

O PÁSSARO (cheiroso som de asas no ar) 
— Ela está enferrujada

A ÁRVORE (apoderada de estrelas) 
— Até o chão se enraíza de seu corpo!

O CÓRREGO (no alto de seus passarinhos) 
— Ervas e grilos crescem-lhe por cima

O PÁSSARO (submetido de árvores) 
— A Máquina de Chilrear está enferrujada e o limo 
apodreceu a voz do poeta

CHICO MIRANDA (na rua do Ouvidor) 
— O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, 
das pedras. Sua gramática se apoia em contaminações 
sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de 
árvores, de rãs

A ESTRELA (com ramificações de luar) 
— Muitos anos o poeta se empassarou de escuros, 
até ser atacado de árvore

O POETA (lesmas comendo seus cadernos relógios 
telefones) 
— Ai, meu lábio dormia no mar estragado!

O MAR (restos de crustáceos agarrados em suas pernas) 
— Parecia ter dado à praia como um pedaço de pau

A FORMIGA (carregando um homem na rua, de 
atravessado) 
— Eu vi o chão, era uma boca de gente comida de 
lodo!

O POETA (ventos o assumindo como roupas) 
— Os indícios de pessoas encontrados nos homens 
eram apenas uma tristeza nos olhos que empedravam

O CARAMUJO (se tirando de escuros, cheirando a 
seus frutos)
— Restos de pessoas saindo de dentro delas mesmas 
aos tropeços, aos esgotos, cheias de orelhas enormes 
como folhas de mamona

O CÓRREGO (mudando de passarinhos entardecentes) 
— Mas o que trinca está maduro, poeta

O POETA (ensinado de terra) 
— Amar é dar o rosto nas formigas

A PÁSSARA (nas frondes do mar) 
— Meus filhos também construíram suas casas com 
vigas de chuva

FRANCISCO (cumprimentando aos arbustos) 
— Olhai os cogumelos pondo as bocas!


Poemas e Poesias terça, 26 de março de 2019

A MÃO ENORME (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

A MÃO ENORME

Jorge de Lima

 

Dentro da noite, da tempestade, 
a nau misteriosa lá vai. 
O tempo passa, a maré cresce, 
O vento uiva. 
A nau misteriosa lá vai. 
Acima dela
que mão é essa maior que o mar? 
Mão de piloto? 
Mão de quem é? 
A nau mergulha, 
o mar é escuro, 
o tempo passa. 
Acima da nau 
a mão enorme 
sangrando está. 
A nau lá vai. 
O mar transborda, 
as terras somem, 
caem estrelas. 
A nau lá vai. 
Acima dela 
a mão eterna 
lá está.


Poemas e Poesias segunda, 25 de março de 2019

A BOMBA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A BOMBA

Carlos Drummond de Andrade

 

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos
interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,
de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera

A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,
cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos
de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger
velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação
em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.


Poemas e Poesias domingo, 24 de março de 2019

A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A CARLOS DRUMMOND DE ANDRDE

João Cabral de Melo Neto

 

Não há guarda-chuva

contra o poema

subindo de regiões onde tudo é surpresa

como uma flor mesmo num canteiro.

 

Não há guarda-chuva

contra o amor

que mastiga e cospe como qualquer boca,

que tritura como um desastre.

 

Não há guarda-chuva

contra o tédio:

o tédio das quatro paredes, das quatro

estações, dos quatro pontos cardeais.

 

Não há guarda-chuva

contra o mundo

cada dia devorado nos jornais

sob as espécies de papel e tinta.

 

Não há guarda-chuva

contra o tempo,

rio fluindo sob a casa, correnteza

carregando os dias, os cabelos.


Poemas e Poesias sábado, 23 de março de 2019

A VIDA É LÍQUIDA (POEMA D APAULISTA HILDA HILST)

A VIDA É LÍQUIDA

Hilda Hilst

 

 É crua a vida. Alça de tripa e metal. 
Nela despenco: pedra mórula ferida. 
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. 
Como-a no livro da língua 
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me 
No estreito-pouco 
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida 
Tua unha púmblea, me casaco rosso 
E perambulamos de coturno pela rua 
Rubras, góticas, altas de corpo e copos. 
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. 
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima 
Olho d’água, bebida. A vida é liquída. 

Também são cruas e duras as palavras e as caras 
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida 
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos 
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes 
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos 
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas 
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo 
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas 
Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte 
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra. 
Sussuras: ah, a vida é liquída. 


Poemas e Poesias sexta, 22 de março de 2019

O POETA E A POESIA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

O POETA E A POESIA

Cora Coralina 

 

Não é o poeta que cria a poesia.
E sim, a poesia que condiciona o poeta.


Poeta é a sensibilidade acima do vulgar.
Poeta é o operário, o artífice da palavra.
E com ela compõe a ourivesaria de um verso.

Poeta, não somente o que escreve.
É aquele que sente a poesia,
se extasia sensível ao achado
de uma rima, à autenticidade de um verso.


Poeta é ser ambicioso, insatisfeito,
procurando no jogo das palavras,
no imprevisto do texto, atingir a perfeição inalcançável.
O autêntico sabe que jamais
chegará ao prêmio Nobel.
O medíocre se acredita sempre perto dele.

Alguns vêm a mim.
Querem a palavra, o incentivo, a apreciação.
Que dizer a um jovem ansioso na sede precoce de lançar um livro...
Tão pobre ainda a sua bagagem cultural,
tão restrito seu vocabulário,
enxugando lágrimas que não chorou,
dores que não sentiu,
sofrimentos imaginários que não experimentou.

Falam exaltados de fome e saudades, tão desgastadas
de tantos já passados.
Primários nos rudimentos de escrita
e aquela pressa moça de subir.
Alcançar estatura de poeta, publicar um livro.

Oriento para a leitura, reescrever,
processar seus dados concretos.
Não fechar o caminho, não negar possibilidades.
É a linguagem deles, seus sonhos.


Poemas e Poesias quinta, 21 de março de 2019

A LUCIDEZ PERIGOSA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

A LUCIDEZ PERIGOSA

Clarice Lispector

 

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes.

Pois sei que
– em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.


Poemas e Poesias quarta, 20 de março de 2019

A ARTE DE SER FELIZ (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

A ARTE DE SER FELIZ

Cecília Meireles

 

 


Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Poemas e Poesias terça, 19 de março de 2019

A LAGARTIXA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

A LAGARTIXA

Álvares de Azevedo

 

 A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.

Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.

Possa agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores.

Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha;
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.

 


Poemas e Poesias segunda, 18 de março de 2019

A BELA ADORMECIDA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

 A BELA ADORMECIDA

Adélia Prado

 

Estou alegre e o motivo
beira secretamente à humilhação, 
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.
No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa dele que volta 
e põe tudo arcaico, como a matéria da alma, 
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.
O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja
quando ele vem eu sei,
porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço 
a cada ano mais. 
Sob juramento lhes digo: 
tenho 18 anos. Incompletos.


Poemas e Poesias sábado, 16 de março de 2019

SANGUE DE AFRICANO (17ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO DO BAIANO CASTRO ALVES)

SANGUE DE AFRICANO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Aqui sombrio, fero, delirante
Lucas ergueu-se como o tigre bravo...
Era a estátua terrível da vingança...
O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

Crispado o braço, no punhal segura!
Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam,
Qual das janelas de um palácio em chamas
As labaredas, irrompendo, saltam.

Com o gesto bravo, sacudido, fero,
A destra ameaçando a imensidade...
Era um bronze de Aquiles furioso
Concentrando no punho a tempestade!

No peito arcado o coração sacode
O sangue, que da raça não desmente,
Sangue queimado pelo sol da Líbia,
Que ora referve no Equador ardente.


Poemas e Poesias sexta, 15 de março de 2019

A ANTÔNIO NOBRE (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A ANTÔNIO NOBRE

Manuel Bandeira

 

Tu que penaste tanto e em cujo canto
Há a ingenuidade santa do menino;
Que amaste os choupos, o dobrar do sino,
E cujo pranto faz correr o pranto:

Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino,
A esmorecer e desejando tanto...

Mas tu dormiste em paz como as crianças.
Sorriu a Glória às tuas esperanças
E beijou-te na boca... O lindo som!

Quem me dará o beijo que cobiço?
Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...
Eu, não terei a Glória... nem fui bom.


Poemas e Poesias quinta, 14 de março de 2019

A CHARLES BAUDELAIRE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)E

A CHARLES BAUDELAIRE

Carlos Pena Filho

 

Carlos também
embora sem
flores nem aves
vinho nem naves,

eu te remeto
este soneto
para saberes,
se o acaso o leres,

que existe alguém
no mundo, cem
anos após

que não vaiou
e nem magoou
teu albatroz.


Poemas e Poesias quarta, 13 de março de 2019

A CAVALHADA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

A CAVALHADA

Ascenso Ferreira

 

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis,

Alegria nervosa de bandeirinhas trêmulas!
Bandeirinhas de papel bulindo no vento!...

Foguetes do ar...

— "De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai começar!"

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis...

— Lá vem Papa-Légua em toda carreira
e vem com os arreios luzindo no sol!
— Danou-se! Vai tirar a argolinha!

— Pra quem será?
— Lá vem Pé-de-Vento!
— Lá vem Tira-Teima!
— Lá vem Fura-Mundo!
— Lá vem Sarará!
— Passou lambendo!
— Se tivesse cabelo, tirava!...
— Andou beirando!...
— Tirou!!!
— Música, seu mestre!
— Foguetes, moleque!
— Palmas, negrada!
— Tiraram a argolinha!
— Foi Sarará!

Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Fitas e fitas...
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis...

— Viva a cavalhada!
— Vivôô!!!

— De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai terminar!


Poemas e Poesias terça, 12 de março de 2019

ACAUHAN, A MALHAÇÃO DA ONÇA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A ACAUHAN – A MALHADA DA ONÇA
(com mote de Janice Japiassu)
Ariano Suassuna
 
Aqui morava um Rei, quando eu menino:
vestia ouro e Castanho no gibão.
Pedra da sorte sobre o meu Destino,
pulsava, junto ao meu, seu Coração.
Para mim, seu Cantar era divino,
quando, ao som da Viola e do bordão,
cantava com voz rouca o Desatino,
o Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu Pai. Desde esse dia,
eu me vi, como um Cego, sem meu Guia,
que se foi para o Sol, transfigurado.
Sua Efígie me queima. Eu sou a Presa,
Ele, a Brasa que impele ao Fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto ensanguentado.

Poemas e Poesias segunda, 11 de março de 2019

SONETO 041 (AQUELA FERA HUMANA QUE ENRIQUECE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AQUELA FERA HUMANA QUE ENRIQUECE

Soneto 041

Luís de Camões

 

Aquela fera humana que enriquece 
A sua presuntuosa tirania 
Destas minhas entranhas, onde cria 
Amor um mal, que falta quando cresce; 

Se nela o Céu mostrou (como parece) 
Quanto mostrar ao mundo pretendia, 
Porque de minha vida se injuria? 
Porque de minha morte se enobrece? 

Ora, enfim, sublimai vossa vitória, 
Senhora, com vencer-me e cativar-me: 
Fazei dela no mundo larga história. 

Pois, por mais que vos veja atormentar-me, 
Já me fico logrando desta glória 
De ver que tendes tanta de matar-me. 


Poemas e Poesias domingo, 10 de março de 2019

SONETO DO PRAZER MAIOR (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)
 
 
SONETO DO PRAZER MAIOR
Bocage

 

Amar dentro do peito uma donzella;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Fallar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janella:

Fazel-a vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertal-a nos braços casta e bella:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a bocca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vel-a rendida emfim a Amor fecundo;
Dictoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

 


Poemas e Poesias sábado, 09 de março de 2019

ÚLTIMO CREDO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

 

ÚLTIMO CREDO

Augusto dos Anjos

 

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o trancendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui ...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!


Poemas e Poesias sexta, 08 de março de 2019

HINO À RAZÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

     HINO À RAZÃO

Antero de Quental


     
     Razão, irmã do Amor e da Justiça,
     Mais uma vez escuta a minha prece,
     É a voz dum coração que te apetece,
     Duma alma livre, só a ti submissa.
     
     Por ti é que a poeira movediça
     De astros e sóis e mundos permanece;
     E é por ti que a virtude prevalece,
     E a flor do heroísmo medra e viça.
     
     Por ti, na arena trágica, as nações 
     Buscam a liberdade, entre clarões; 
     E os que olham o futuro e cismam, mudos,
     
     Por ti, podem sofrer e não se abatem, 
     Mãe de filhos robustos, que combatem 
     Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

          


Poemas e Poesias quinta, 07 de março de 2019

A PASSIFLORA (POEMA DO MINEIRO AUGUSTO GUIMARAENS)

A PASSIFLORA

Alphonsus Gumaraens

 

A Passiflora, flor da Paixão de Jesus,
Conserva em si, piedosa, os divinos Tormentos:
Tem cores roxas, tons magoados e sangrentos
Das Chagas Santas, onde o sangue é como luz.

Quantas mãos a colhê-la, e quantos seios nus
Vêm, suaves, aninhá-la em queixas e lamentos!
Ao tristonho clarão dos poentes sonolentos,
Sangram dentro da flor os emblemas da Cruz...

Nas noites brancas, quando a lua é toda círios,
O seu cálice é como entristecido altar
Onde se adora a dor dos eternos Martírios...

Dizem que então Jesus, como em tempos de outrora,
Entre as pétalas pousa, inundado de luar...
Ah! Senhor, a minha alma é como a passiflora!


Poemas e Poesias quarta, 06 de março de 2019

SAUDADE (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

SAUDADE

Raimundo Correia

 

Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito côche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os européis mais finos...

Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, badeiras desfraldadas,
Girândolas, clarins, atropeladas
Legiões de povo, bimbalar de sinos...

Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;

E, em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia e chora, como Jeremias,
Sobra a Jerusalém de tantos sonhos!...


Poemas e Poesias terça, 05 de março de 2019

CRIME IMPERDOÁVEL (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

CRIME IMPERDOÁVEL

Patativa do Assaré

 

 

Com sua filha de bondade infinda,

Maria Rita, encantadora e bela,

Morava a viúva dona Carolinda,

Junto ao engenho do senhor Favela.

Paciente e boa e cheia de carinho,

Passava os dias sem pensar na dor

Reinava ali, naquele tosco ninho,

Um grande exemplo do mais puro amor.

A linda jovem, flor de simpatia,

De olhos brilhantes e cabelo louro,

Além de arrimo e doce companhia

Era da mãe o virginal tesouro.

Tinha uma voz harmoniosa e grata

Maria Rita, a filha da viúva,

Igual a voz do sabiá da mata,

Quando êle canta na primeira chuva.

Maurício, um filho do senhor do engenho,

Um estudante, bacharel futuro,

Apaixonou-se, com o maior empenho

De saciar o coração impuro.

E com promessas de um porvir brilhante,

Fazendo juras de casar com ela,

Tanto insistiu o traidor pedante

Que conquistou a infeliz donzela.

Tornou-se em pranto da menina o riso,

Anuveou-se o doce amor materno,

Aquêle rancho, que era um paraíso,

Foi transformado em verdadeiro inferno.

Depois, expulsas pelo mundo afora,

Sorvendo a taça de amargo fel,

Soluça a mãe e a triste filha chora,

Horrorizadas do chacal cruel.

Vive o monstro a prosseguir no estudo,

Enquanto o manto da miséria as cobre,

Porque só o rico tem direito a tudo,

Não há justiça para quem é pobre...

 


Poemas e Poesias segunda, 04 de março de 2019

VITA NUOVA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VITA NUOVA

Olavo Bilac

 

Se ao mesmo gozo antigo me convidas, 
Com esses mesmos olhos abrasados, 
Mata a recordação das horas idas, 
Das horas que vivemos apartados! 

Não me fales das lágrimas perdidas, 
Não me fales dos beijos dissipados! 
Há numa vida humana cem mil vidas, 
Cabem num coração cem mil pecados! 

Amo-te! A febre, que supunhas morta, 
Revive. Esquece o meu passado, louca! 
Que importa a vida que passou? que importa, 

Se inda te amo, depois de amores tantos, 
E inda tenho, nos olhos e na boca, 
Novas fontes de beijos e de prantos?! 


Poemas e Poesias domingo, 03 de março de 2019

LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL

Mário de Andrade

 


Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!

Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês "singe"
Mas não sabe o que é guariba?
- Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.


Poemas e Poesias sábado, 02 de março de 2019

EU QUERO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

EU QUERO

(Patativa do Assaré)

 

Quero um chefe brasileiro 
Fiel, firme e justiceiro 
Capaz de nos proteger 
Que do campo até à rua 
O povo todo possua 
O direito de viver

Quero paz e liberdade 
Sossego e fraternidade 
Na nossa pátria natal 
Desde a cidade ao deserto 
Quero o operário liberto 
Da exploração patronal

Quero ver do Sul ao Norte 
O nosso caboclo forte 
Trocar a casa de palha 
Por confortável guarida 
Quero a terra dividida 
Para quem nela trabalha

Eu quero o agregado isento 
Do terrível sofrimento 
Do maldito cativeiro 
Quero ver o meu país 
Rico, ditoso e feliz 
Livre do jugo estrangeiro

A bem do nosso progresso 
Quero o apoio do Congresso 
Sobre uma reforma agrária 
Que venha por sua vez 
Libertar o camponês 
Da situação precária

Finalmemte, meus senhores, 
Quero ouvir entre os primores 
Debaixo do céu de anil 
As mais sonoras notas 
Dos cantos dos patriotas 
Cantando a paz do Brasil


Poemas e Poesias sexta, 01 de março de 2019

MUNDO INTERIOR (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

MUNDO INTERIOR

Machado de Assis

 


Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
Do sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, - a natureza externa, -
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida,
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E, contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia, - e dorme.


Poemas e Poesias quinta, 28 de fevereiro de 2019

A BOMBA SUJA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A BOMBA SUJA

Ferreira Gullar

 

Introduzo na poesia 
A palavra diarreia. 
Não pela palavra fria 
Mas pelo que ela semeia. 

Quem fala em flor não diz tudo. 
Quem me fala em dor diz demais. 
O poeta se torna mudo 
sem as palavras reais. 

No dicionário a palavra 
é mera ideia abstrata. 
Mais que palavra, diarreia 
é arma que fere e mata. 

Que mata mais do que faca, 
mais que bala de fuzil, 
homem, mulher e criança 
no interior do Brasil. 

Por exemplo, a diarréia, 
no Rio Grande do Norte, 
de cem crianças que nascem, 
setenta e seis leva á morte. 
É como uma bomba D 
que explode dentro do homem 
quando se dispara, lenta, 
a espoleta da fome. 

É uma bomba-relógio 
(o relógio é o coração) 
que enquanto o homem trabalha 
vai preparando a explosão. 

Bomba colocada nele 
muito antes dele nascer; 
que quando a vida desperta 
nele, começa a bater. 

Bomba colocada nele 
Pelos séculos de fome 
e que explode em diarreia 
no corpo de quem não come. 

Não é uma bomba limpa: 
é uma bomba suja e mansa 
que elimina sem barulho 
vários milhões de crianças. 

Sobretudo no nordeste 
mas não apenas ali 
que a fome do Piauí 
se espalha de leste a oeste. 

Cabe agora perguntar 
quem é que faz essa fome, 
quem foi que ligou a bomba 
ao coração desse homem. 

Quem é que rouba a esse homem 
o cereal que ele planta, 
quem come o arroz que ele colhe 
se ele o colhe e não janta. 

Quem faz café virar dólar 
e faz arroz virar fome 
é o mesmo que põe a bomba 
suja no corpo do homem. 

Mas precisamos agora 
desarmar com nossas mãos 
a espoleta da fome 
que mata nossos irmãos. 

Mas precisamos agora 
deter o sabotador 
que instala a bomba da fome 
dentro do trabalhador. 

E sobretudo é preciso 
trabalhar com segurança 
pra dentro de cada homem 
trocar a arma de fome 
pela arma da esperança.


Poemas e Poesias quarta, 27 de fevereiro de 2019

A MORTE CHEGA CEDO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

A MORTE CHEGA CEDO

Fernando Pessoa

 

 

A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

 

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

 

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.


Poemas e Poesias terça, 26 de fevereiro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 20 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 20

Eno Teodoro Wanke

 

Seguindo a trilha infinita

Do meu destino estrelado

Eu sou aquele que habita

A ilusão de ser amado


Poemas e Poesias segunda, 25 de fevereiro de 2019

AMOR (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

AMOR

Cruz e Sousa

 

Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos
à fresca exalação salúbrica das flores...

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor — na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...


Poemas e Poesias sábado, 23 de fevereiro de 2019

NO MONTE (16ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

NO MONTE

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

"PAREI... Volvi em torno os olhos assombrados...
Ninguém! A solidão pejava os descampados...
Restava inda um segundo... um só pra me salvar;
Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...
E do peito arranquei um pavoroso grito,
Que foi bater em cheio às portas do infinito!
Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte
Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...
Depois a solidão ainda mais calada
Na mortalha envolveu a serra descampada!...

"Ai! que pode fazer a rola triste
Se o gavião nas garras a espedaça?
Ai! que faz o cabrito do deserto,
Quando a jibóia no potente aperto
Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

"Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,
E finalmente expiram de tortura.
Ou, se escapam trementes, arquejantes,
Vão, lambendo as feridas gotejantes,
Morrer à sombra da floresta escura! ...

"E agora está concluída
Minha história desgraçada.
Quando caí — era virgem!
Quando ergui-me — desonrada!"


Poemas e Poesias sábado, 23 de fevereiro de 2019

NO MONTE (16ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, CO BAIANO CASTRO ALVES)

NO MONTE

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"PAREI... Volvi em torno os olhos assombrados...
Ninguém! A solidão pejava os descampados...
Restava inda um segundo... um só pra me salvar;
Então reuni as forças, ao céu ergui o olhar...
E do peito arranquei um pavoroso grito,
Que foi bater em cheio às portas do infinito!
Ninguém! Ninguém me acode... Ai! só de monte em monte
Meu grito ouvi morrer na extrema do horizonte!...
Depois a solidão ainda mais calada
Na mortalha envolveu a serra descampada!...

"Ai! que pode fazer a rola triste
Se o gavião nas garras a espedaça?
Ai! que faz o cabrito do deserto,
Quando a jibóia no potente aperto
Em roscas férreas o seu corpo enlaça?

"Fazem como eu?... Resistem, batem, lutam,
E finalmente expiram de tortura.
Ou, se escapam trementes, arquejantes,
Vão, lambendo as feridas gotejantes,
Morrer à sombra da floresta escura! ...

"E agora está concluída
Minha história desgraçada.
Quando caí — era virgem!
Quando ergui-me — desonrada!"


Poemas e Poesias sexta, 22 de fevereiro de 2019

CENA ÍNTIMA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

CENA ÍNTIMA

Casimiro de Abreu

 

Como estás hoje zangada
E como olhas despeitada
Só pra mim!
- Ora diz-me: esses queixumes,
Esses injustos ciúmes
No têm fim?


Que pequei eu bem conheço,
Mas castigo não mereço
Por pecar;
Pois tu queres chamar crime
Render-me à chama sublime
Dum olhar!


Porventura te esqueceste
Quando de amor me perdeste
Num sorrir?
Agora em cólera imensa
Já queres dar a sentença
Sem me ouvir!


E depois, se eu te repito
Que nesse instante maldito
- sem querer -
Arrastado por magia
Mil torrentes de poesia
Fui beber!


Eram uns olhos escuros
Muito belos, muito puros,
Como os teus!
Uns olhos assim tão lindos
Mostrando gozos infindos,
Só dos céus!


Quando os vi fulgindo tanto
Senti no peito um encanto
Que não sei!
Juro falar-te a verdade...
Foi decerto - sem vontade -
Que eu pequei!


Mas hoje, minha querida,
Eu dera até esta vida
Pra poupar
Essas lágrimas queixosas,
Que as tuas faces mimosas
Vêm molhar!


Sabe ainda ser clemente,
Perdoa um erro inocente,
Minha flor!
Seja grande embora o crime
O perdão sempre é sublime
Meu amor!


Mas se queres com maldade
Castigar quem - sem vontade
Só pecou;
Olha, linda, eu não me queixo;
A teus pés cair me deixo...
Aqui ' stou!


Mas se me deste, formosa,
De amor na taça mimosa
Doce mel;
Ai! Deixa que peça agora
Esses extremos d'outrora
O infiel:


Das brisas do sul;


Prende-me... nesses teus braços
Em doces, longos abraços
Com paixão;
Ordena com gesto altivo...
Que te beije este cativo
Essa mão!


Mata-me sim... de ventura,
Com mil beijos de ternura
Sem ter dó
Que eu prometo, anjo querido,
Não desprender um gemido,
Nem um só!


Poemas e Poesias quinta, 21 de fevereiro de 2019

APOLO E AS NOVE MUSAS DISCANTANDO - SONETO 051 (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

APOLO E AS NOVE MUSAS DISCANTANDO

Soneto 051

Luís de Camões

 

Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influíam
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:

«Ditoso seja o dia e hora, quando
tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar-se em seu desejo traspassando»...

Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corrria
tão ligeira que quase era invisível.

Converteu-se-me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possível.


Poemas e Poesias quarta, 20 de fevereiro de 2019

SONETO DA CÓPULA ESCULPIDA (POEMA DO PORTUGUÊS MANOEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA CÓPULA ESCULPIDA

Bocage

 

Nesta, cuja memória esquece à Fama,

Feira, que de Santarém vem de ano em ano,

Jazia co'uma freira um franciscano;

Eram de barro os dois, de barro a cama:

 

Co'a mão, que à virgindade injúrias trama,

Pretendia o cabrão ferrar-lhe o pano;

Eis que um negro barrasco, um Frei Tutano

O espetáculo vê, que os rins lhe inflama:

 

"Irra! Vens me atiçar, gente danada!

Não basta a felpa dos buréis opacos,

Com que a carne rebelde anda ralada?"

 

"Fora, vis tentações, fora, velhacos!..."

Disse, e ao ríspido som de atroz patada

O escandaloso par converte em cacos.

 


Poemas e Poesias terça, 19 de fevereiro de 2019

IDEALISMO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

IDEALISMO

Augusto dos Anjos

 

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo
O amor na Humanidade é uma mentira.
E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!


Poemas e Poesias segunda, 18 de fevereiro de 2019

CONTEMPLAÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ATERO DE QUENTAL)

CONTEMPLAÇÃO

Antero de Quental

 

Sonho de olhos abertos, caminhando 
Não entre as formas já e as aparências, 
Mas vendo a face imóvel das essências, 
Entre ideias e espíritos pairando... 

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando, 
Visões sem ser, fragmentos de existências... 
Uma névoa de enganos e impotências 
Sobre vácuo insondável rastejando... 

E d'entre a névoa e a sombra universais 
Só me chega um murmúrio, feito de ais... 
É a queixa, o profundíssimo gemido 

Das coisas, que procuram cegamente 
Na sua noite e dolorosamente 
Outra luz, outro fim só presentido... 


Poemas e Poesias domingo, 17 de fevereiro de 2019

A CATEDRAL (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

A CATEDRAL

Alphonsus Guimaraens

 

 

Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino geme em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"


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