Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias terça, 31 de dezembro de 2019

A SOLIDÃO E SUA PORTA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A SOLIDÃO E SUA PORTA

Carlos Pena Filho

 

A Solidão e Sua Porta
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.


Poemas e Poesias segunda, 30 de dezembro de 2019

A PAIXÃO MEDIDA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A  PAIXÃO MEDIDA

Carlos Drummond de Andrade

 

Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?


Poemas e Poesias domingo, 29 de dezembro de 2019

SONETO 096 - BEM SEI, AMOR, QUE É CERTO O QUE RECEIO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES

BEM SEI,  AMOR, QUE É CERTO O QUE RECEIO

Soneto 096

Luís de Camões

 

Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso, mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.

A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus danos às escuras;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.

Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mim me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar um moço cego?

 


Poemas e Poesias sábado, 28 de dezembro de 2019

SONETO AO VIL INSETO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO AO VIL INSETO

Bocage

 

Emquanto a rude plebe alvoroçada
Do rouco vate escuta a voz de mouro,
Que do peito inflammado sae d'estouro
Por estreito boccal desentoada:

Não cessa a cantilena acigarrada
Do vil insecto, do mordaz bezouro;
Que à larga se creou por entre o louro
De que a sabia Minerva está c'roada:

Emquanto o cego atheu, calvo da tinha,
Com parolas confunde alguns basbaques,
Psalmeando a amatoria ladainha:

Eu não me posso ter; cheio de achaques,
Cansado de lhe ouvir — "Bravo! Esta é minha!"
Cago sem me sentir, desando em traques.

Poemas e Poesias sexta, 27 de dezembro de 2019

OS DOENTES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

OS DOENTES

Augusto dos Anjos

 

Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!

Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de orfã que gemia!

Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...

E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de biliões de raças
Que há muitos anos desapareceram!


Poemas e Poesias quinta, 26 de dezembro de 2019

CANTO DE NATAL (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CANTO DE NATAL

Manuel Bandeira

 

 

 

O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer bem.

Nasceu sobre as palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.

Vem para sofrer
A morte na cruz,
O nosso menino.
Seu nome é Jesus.

Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.

 

 


Poemas e Poesias quinta, 26 de dezembro de 2019

HISTÓRIA PÁTRIA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

HISTÓRIA PÁTRIA

Ascenso Ferreira

 

Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha, cacau,
comendo pamonha, canjica, mingau,
rezando de tarde nossa ave-maria,
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
A gente vivia.

De festas no ano só quatro é que havia :
Entrudo e Natal, Quaresma e Sanjoão !
Mas tudo emendava num só carrilhão !
E a gente vadiava, dançava, comia...
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
Todo santo dia !

O Rei, entretanto, não era da terra !
E gente pra Europa mandou-se estudar...
Gentinha idiota que trouxe a mania
de nos transformar
da noite pro dia...

A gente que tão
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
Vivia !

(E foi um dia a nossa civilização
tão fácil de criar!)

Passou-se a pensar,
passou-se a cantar,
passou-se a dançar,
passou-se a comer,
passou-se a vestir,
passou-se a viver,
passou-se a sentir,
tal como Paris
pensava,
cantava,
comia,
sentia...
A gente que tão
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
Vivia !


Poemas e Poesias quarta, 25 de dezembro de 2019

IMPRESSÕES DE TEATRO (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

IMPRESSÕES DE TEATRO

Arthur Azevedo

 

Que dramalhão! Um intrigante ousado,
Vendo chegar da Palestina o conde,
Diz-lhe que a pobre da condessa esconde
No seio o fruto de um amor culpado.

Naturalmente o conde fica irado
— “O pai quem é?” pergunta — “Eu!” lhe responde
Um pajem que entra. — “Um duelo!” — “Sim! Quando? Onde?” —
No encontro morre o amante desgraçado.

Folga o intrigante... Porem surge um mano
E vendo morto o irmão, perde a cabeça:
Crava um punhal no peito do tirano.

É preso o mano, mata-se a condessa,
Endoidece o marido... e cai o pano,
Antes que outra catástrofe aconteça.


Poemas e Poesias terça, 24 de dezembro de 2019

A MULHER E O REINO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A MULHER E O REINO

Ariano Suassuna

 

Oh! Romã do pomar, relva esmeralda
Olhos de ouro e azul, minha alazã
Ária em forma de sol, fruto de prata
Meu chão, meu anel, cor do amanhã

Oh! Meu sangue, meu sono e dor, coragem
Meu candeeiro aceso da miragem
Meu mito e meu poder, minha mulher

Dizem que tudo passa e o tempo duro
tudo esfarela
O sangue há de morrer

Mas quando a luz me diz que esse ouro puro
se acaba pôr finar e corromper
Meu sangue ferve contra a vã razão
E há de pulsar o amor na escuridão


Poemas e Poesias sexta, 20 de dezembro de 2019

IDEAL (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

IDEAL

Antero de Quental

Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas languidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortaes entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra ás crinas
D'um corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...


Poemas e Poesias quinta, 19 de dezembro de 2019

ANJOS DO MAR (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

ANJOS DO MAR

Álvares de Azevedo

 

As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d'escuma revolvem-se nus!

E quando de noite vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear,
E a trança luzente da nuvem flutua,
As ondas são anjos que dormem no mar!

Que dormem, que sonham — e o vento dos céus
Vem tépido à noite nos seios beijar!
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!

E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar:
São beijos que queimam... e as noites deliram,
E os pobres anjinhos estão a chorar!

Ai! quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar,
Porque não consentes, num beijo de amor,
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar!


Poemas e Poesias quarta, 18 de dezembro de 2019

POETAS EXILADOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

POETAS EXILADOS

Alphonsus Guimaraens

 

 


A CRUZ E SOUSA


No Mosteiro, da velha arquitetura, de era
Remota, vão chegando os poetas exilados.
A porta principal é engrinaldada em hera...
Os sinos dobram nos torreões, abandonados.

Uns são bem velhos, e há moços, na primavera
Da idade humana. Alguns choram mortos noivados.
Sem esperança, cada um deles tudo espera...
Outros muitos tem o ar de monges maus, transviados.

E ninguém fala. O sonho é mudo: e sonham, quando
Ei-los todos de pé, estáticos, olhando
A branca aparição de hierático painel.

Chegaste enfim, magoado Eleito! Olham. Vermelhos
Tons de poente num fundo azul... Dobram-se os joelhos:
É Cruz e Sousa aos pés do arcanjo São Gabriel.

Poemas e Poesias terça, 17 de dezembro de 2019

A COISA PÚBLICA E PRIVADA (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

A COISA PÚBLICA E PRIVADA

Affonso Romano de Sant'anna

 

Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.

Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?

O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?

— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.

 


Poemas e Poesias segunda, 16 de dezembro de 2019

OHS! E AIS! (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

OHS! E AIS!

Adelino Fontoura

 

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?

É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?

Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,

Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os Subsídios o Filinto.


Poemas e Poesias domingo, 15 de dezembro de 2019

ANTES DO NOME (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

ANTES DO NOME 

Adélia Prado

 

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.


Poemas e Poesias sábado, 14 de dezembro de 2019

A AMADA É COMO A TERRA ( POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

A AMADA É COMO A TERRA

Adalgisa Nery

 

 

[Conservando a ortografia original]

 

Agachado, com a boca bem collada ao sólo
Fala para que a tua voz penetre na terra
E abasteça de harmonia e de vigor o grão que vae nascer.
Mergulha a tua voz no sólo para que os ramos dos arbustos
Tocados pelo ventos das manhãs
Sejam um mixto de amargor e de alegria
Acompanhando os desolados com essa melodia.
Falla bem dentro da terra e dize palavras de consolo
Que assim as flores terão quando brotarem
A belleza eterna em seus perfumes e em suas cores.
Colla a tua boca ao sólo
E envia com os sons da tua garganta
Os teus insuperaveis pensamentos de Unidade
Para que elles cainhem subterraneamente
E rebentem nomeio de outros povos
Cantando a glória da Verdade e da Fraternidade.
Abre com tuas mãos uma fenda na terra
Encosta a tua boca aflicta e diz bem no fundo
                    a razão dos teus tormentos
Para que a agua e o fogo central dissolvam os teus lamentos.
Colla a boca no ventre da Amada
E fala a seu corpo
Para que os seus filhos transportem a tua harmonia
                                        pelos tempos infindáveis
E possas ouvil-a em cada homem, em cada flor,
Na intensidade de todos os perfumes
E nos millesimos reflexos de cada côr!...


Poemas e Poesias sexta, 13 de dezembro de 2019

A BRUSCA POESIA DA MULHER AMADA - III (POEMA DO CARIOCA VINICIUS DE MORAES)

A BRUSCA POESIA DA MULHER AMADA

Vinícius de Moraes

 

 

Rio de Janeiro
A Nelita 

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado 
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido herói sem mácula 
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina 
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos 
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as confidências 
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas 
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia. 
Eis que se anuncia de modo sumamente grave 
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância já me chega o rastro. 
É ela uma menina, parece de plumas 
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos ventos 
Empós meu canto. É ela uma menina. 
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina 
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes 
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos 
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos 
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas 
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras. 
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa 
Em rodopios nítidos 
Criando vácuos onde morrem as aves. 
Seu corpo, pouco a pouco 
Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo 
Como uma escura rosa voltejante 
Surgida de um jardim imenso em trevas. 
Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos! 
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos! 
Alvoroçai-me, auroras nascituras! 
Eis que chega de longe, como a estrela 
De longe, como o tempo 
A minha amada última!

Poemas e Poesias quinta, 12 de dezembro de 2019

A PARTIDA DA MONÇÃO (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

A PARTIDA DA MONÇÃO

Vicente de Carvalho

 

I

Ei-las, as toscas naus de borda rastejante

À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;

Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante

O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.

 

Nem o porte arrogante, o sobranceiro aprumo

— Altivo no descanso e ousado nos tufões —

Dessas águias que vão bordejando sem rumo

Pelo acaso do mar, feito de turbilhões;

 

Nem a airosa altivez de velas desfraldadas

Fulgindo ao sol, ao vento abroquelando o bojo;

Nem proas a romper ondas e espumaradas,

Pelos parcéis em fúria arroteando o rebojo;

 

Nada disso que faz o petulante orgulho

De afoitos bergantins e galeras reais:

Calcar a onda, rompê-la, ouvindo no marulho

A comemoração de seus passos triunfais;

 

Nem adiante, acirrando o desejo atrevido

De aventura e perigo, ânsias de glória, em suma,

— A infinita extensão do mar ermo, perdido

Nos confins do horizonte amortalhado em bruma;

 

Nem o arroubo, a poesia, a esperança fogosa

De ir ao longe, através das ondas, conquistar

A nudeza pagã e a virgindade ociosa

De ermas ilhas em flor nas solidões do mar

 

 

II

 

Humildes, toscas naus de borda rastejante

À tona d’água, naus de estreitos rios quietos,

Vão apenas abrir para o sertão distante

O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.

 

Levadas no pendor macio da corrente,

Irão seguindo, irão seguindo sem rumor

E sem vontade, mole e resignadamente,

Por um rumo servil, forçado e encantador.

 

A raiva dos tufões (como a grita afastada

De eco em eco se adoça em suspiro de mágoas)

Esvaída, a morrer de quebrada em quebrada,

Mal roçará de leve a face azul das águas.

 

Em todo o curso, a terra ao lado, seio amigo,

Companheira constante e proteção fiel,

Pondo o socorro à mão nas ânsias do perigo,

Dando ao gozo do olhar delícias de um vergel.

 

E o rio, manso, manso, a ondular, murmurando

O seu murmúrio igual, monótono estribilho,

Morosa cantilena, em voz baixa e em tom brando,

De mãe que embala o berço onde repousa o filho.

 

E o rio, manso, manso, a embalá-las, descendo,

No balanço sutil da mole ondulação,

E a arrastá-las, de leve, assim, para o tremendo,

Para o longínquo, vago, infinito sertão.

 

 

III

 

Hão de em breve surgir, pelas margens sinuosas

Florestas virgens de onde um confuso rumor

Sobe de solidões profundas, misteriosas,

Como um uivo agourento, um uivo ameaçador.

 

Voz sem eco, a não ser na alma de quem a escuta,

Surdo resfolegar de monstro provocado

Que de repente acorda e, prestes para a luta,

Abre a goela de sombra, e espera, sossegado.

 

Sossegado, seguro, apercebido, espera,

Os que lhe vêm trazer, fanática oblação,

Corações para a flecha e sangue para a fera,

Carniça para o abutre e ossadas para o chão.

 

A oculta sucuri, das ervas no disfarce,

Ergue a cabeça, afirma o olhar esconso e fusco,

E vagarosamente, e como a espreguiçar-se,

Desenrodilha o corpo e apresta o salto brusco.

 

Na sombra eternamente apagada, noturna,

De fundos socavões virgens da luz solar,

Em cada gruta, em cada escuro, em cada furna,

Relampejam fuzis nos olhos de um jaguar

 

 

IV

 

Depois da mata escura, o campo undoso e verde,

Banhado em sol, fechado em céu ao longe; e assim

Tão vasto e nu, que o olhar se fatiga e se perde

Num esplendor sem sombra e num ermo sem fim.

 

Paira, grassa em redor, toda a melancolia

De uma paisagem morta, igual, deserta e imensa,

Pondo nos olhos e nas almas que enfastia

Um peso ainda maior que a dor, a indiferença.

 

Desanimado, absorto, ante essa indefinida

Solidão que se espraia além, além, o olhar

Tem a impressão que faz a tristeza da vida:

De ir seguindo, seguindo, e nunca mais voltar.

 

Sobre os dias irão caindo as noites. Vastas

Noites de um céu que é todo azul de lado a lado,

Quando, oh triste luar das planícies, afastas

Ainda mais, ainda mais, o horizonte afastado.

 

V

 

De repente, uma flecha alígera sibila.

De onde veio? Da sombra. E a sombra, de repente,

— Traição da cascavel numa alfombra tranquila —

Principia a silvar com silvos de serpente.

 

Por toda parte a larga escuridão se anima

Desse leve rumor que espalha a morte, e sai

Do chão e voa, ou vem rastejante, ou, de cima,

Salpicado, vivaz, como um granizo, cai.

 

Bruscamente borbulha em fantasmas a margem

Agitada do rio. O clarão da metralha

Responde à sombra. E de eco em eco a imensa vargem

Reboa de um fragor de guerra e de batalha.

 

Eis o caminho aberto ao triunfo e à conquista.

— Como a corça ferida escapa e foge em vão,

Deixando atrás, deixando, úmida e fresca, a pista

De seu flanco rasgado e sangrando no chão;

 

Fugitiva e dispersa, a turba dos vencidos

Atrai, guia, conduz para a tribo distante,

Para a perdida paz de seus lares traídos,

A guerra, o cativeiro, a morte: o bandeirante.

 

Ferve a luta. De serra a serra voa o rouco

Som da inúbia, acordando ecos e legiões;

Ouriço monstruoso, o sertão, pouco a pouco

Todo se erriça das flechas de cem nações.

 

 

VI

 

Ei-las, as toscas naus de borda rastejante,

À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;

Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante,

Para assombros de glória, o seu voo de insetos.

 

Apinhem-se na praia os velhos, derramando

De encarquilhadas mãos inúteis para mais

A bênção dos que já se sentem bruxuleando

Aos que lhes vão tornar os nomes imortais.

 

Mães, deixai que, sonhando, a vista embevecida

De vossos filhos pouse, e se ilumine, e aprenda

Nessa formosa folha em que o livro da vida

Tem estrofes de poema e proporções de lenda.

 

Noivas, com os corações envoltos na penumbra

Indecisa do amor que se orgulha e se doe,

Vinde trazer-lhes vosso olhar de que ressumbra

Saudade pelo amante e enlevo pelo herói.

 

Ao largo, enfim! Clarins e buzinas atroam.

E as canoas, na luz da manhã cor de rosa,

Pairam por um momento em pleno rio; aproam

Para o sertão. E rompe a marcha vagarosa.

 

Nos barrancos, até rente d’água investidos

De filhos a sorrir e de mães a chorar,

Lancem as frouxas mãos e os olhos comovidos

O derradeiro adeus e o derradeiro olhar

 

 

VII

 

Longe, na solidão do campo undoso e verde,

O rio serpenteia. Em cada contorção

Mais se afasta. E a fugir, pouco a pouco se perde

No majestoso, vago, infinito sertão.

 


Poemas e Poesias quarta, 11 de dezembro de 2019

MONJOLO (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

MONJOLO 

Raul Bopp

 

Fazenda velha. Noite e dia
Bate-pilão.

Negro passa a vida ouvindo
Bate-pilão.

Relógio triste o da fazenda.
Bate-pilão.

Negro deita. Negro acorda.
Bate-pilão.

Quebra-se a tarde. Ave-Maria.
Bate-pilão.

Chega a noite. Toda a noite
Bate-pilão.

Quando há velório de negro
Bate-pilão.

Negro levado pra cova
Bate-pilão.


Poemas e Poesias terça, 10 de dezembro de 2019

O CAVALO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

                         

O CAVALO

Quintino Cunha

 

                        – O mérito, em declínio, é sempre oriundo

                        De um suposto valor:

                        O Cavalo foi tudo, neste mundo,

                        Desde escravo a Senhor!

 

                        Na Arábia, foi herói; na Grécia, Trono;

                        Em Roma, Senador!

                        Hoje, no mais humílimo abandono,

                        Mal chega a ser Doutor!

 


Poemas e Poesias segunda, 09 de dezembro de 2019

O BURRO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O BURRO

Patativa do Assaré

 


Vai ele a trote, pelo chão da serra,
Com a vista espantada e penetrante,
E ninguém nota em seu marchar volante,
A estupidez que este animal encerra.

Muitas vezes, manhoso, ele se emperra,
Sem dar uma passada para diante,
Outras vezes, pinota, revoltante,
E sacode o seu dono sobre a terra.

Mas contudo! Este bruto sem noção,
Que é capaz de fazer uma traição,
A quem quer que lhe venha na defesa,

É mais manso e tem mais inteligência
Do que o sábio que trata de ciência
E não crê no Senhor da Natureza.


Poemas e Poesias domingo, 08 de dezembro de 2019

CONFIDÊNCIAS (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

CONFIDÊNCIAS

Padre Antônio Tomás

 

Eu fui contar, chorando, as minhas penas
Ao velho mar; e as ondas buliçosas,
Julgando que eu diria essas pequenas
Mágoas comuns ou queixas amorosas,

Não quiseram cessar as cantilenas
Que entoavam nas praias arenosas
Mas, pouco a pouco, imóveis e serenas,
Quedaram todas, por me ouvir ansiosas.

E concluída a narração de tudo,
Mostrou-se o mar (pois nunca tinha ouvido
História igual) sombrio e carrancudo.

Depois, rolando as gemedoras águas,
Pôs-se a chorar também compadecido
Das minhas fundas, dolorosas mágoas.


Poemas e Poesias sábado, 07 de dezembro de 2019

SACRILÉGIO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

SACRILÉGIO

Olavo Bilac

 

Como a alma pura, que teu corpo encerra,
Podes, tão bela e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
Bela demais para no céu viver.

Amo-te assim! - exulta, meu desejo!
É teu grande ideal que te aparece,
Oferecendo loucamente o beijo,
E castamente murmurando a prece!

Amo-te assim, à fronte conservando
A parra e o acanto, sob o alvor do véu,
E para a terra os olhos abaixando,
E levantando os braços para o céu.

Ainda quando, abraçados, nos enleva
O amor em que me abraso e em que te abrasas,
Vejo o teu resplandor arder na treva
E ouço a palpitação das tuas asas.

Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,
Os céus se estendem pelo teu olhar,
E, dentro dele, os serafins errantes
Passam nos raios claros do luar:

Em vão! - descerras úmidos, e cheios
De promessas, os lábios sensuais,
E, à flor do peito, empinam-se-te os seios,
Ameaçadores como dois punhais.

Como é cheirosa a tua carne ardente!
Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca.
Beijo-a, aspiro-a... Mas sinto, de repente,
As mãos geladas e gelada a boca:

Parece que uma santa imaculada
Desce do altar pela primeira vez,
E pela vez primeira profanada
Tem por olhos humanos a nudez...

Embora! hei de adorar-te nesta vida,
Já que, fraco demais para perdê-la,
Não posso um dia, deusa foragida,
Ir amar-te no seio de uma estrela.

Beija-me! Ficarei purificado
Com o que de puro no teu beijo houver;
Ficarei anjo, tendo-te ao meu lado:
Tu, ao meu lado, ficarás mulher.

Que me fulmine o horror desta impiedade!
Serás minha! Sacrílego e profano,
Hei de manchar a tua castidade
E dar-te aos lábios um gemido humano!

E à sombria mudez do santuário
Preferirás o cálido fulgor
De um cantinho da terra, solitário,
Iluminado pelo meu amor...


Poemas e Poesias sexta, 06 de dezembro de 2019

A VOZ DAS COISAS (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

A VOZ DAS COISAS

Menotti Del Picchia

 

E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"

E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?"

E a torrente que ia rolar para o abismo:
"Juca, fui eu quem deu a água do teu batismo".

Uma estrela, a fulgir, disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
— Será doutor! — a mãe disse, e teu pai, sensato:
— Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! —
Desde então foste nosso e, desde esse momento, nós
te amamos, seguindo o teu incerto trilho,
com carinhos de mãe que defende seu filho!"

Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços:

"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?
Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?"

"Não vás" — lhe disse o azul. "Os meus astros ideais
num forasteiro céu tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas
hão de relampejar como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas
correndo atrás de quem anda fugindo delas..."

Juca olhou para a terra e a terra muda e fria
pela voz do silêncio ela também dizia:
"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo...
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera
há uma cova que se abre, há meu ventre que espera...
Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.

Por isso o que vale ir fugitivo e a esmo
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo?
Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento...
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica, que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!"


Publicado no livro Juca Mulato (1917).

In: DEL PICCHIA, Menotti. Juca Mulato. Introd. Osmar Barbosa. Il. Tarsila do Amaral, Mozinha e Autor. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.59-60. (Prestígio)


Poemas e Poesias quinta, 05 de dezembro de 2019

CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO

Mário Quintana

 

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.


Poemas e Poesias quarta, 04 de dezembro de 2019

À MINHA EXTREMOSA AMIGA D. ANA FRANCISCA CORDEIRO (POEM DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

À  MINHA EXTREMOSA AMIGA D. ANA FRANCISCA CORDEIRO

Maria Firmina dos Reis

 

Donzela, tu suspiras - esse pranto,
Que vem do coração banhar teu rosto,
Esse gemer de lânguido penar,
Revela amarga dor - imo desgosto:
Amiga... acaso cismas ao luar,
Terno segredo de ignoto amor?!...

Soltas madeixas desprendidas voam
Por sobre os ombros de nevada alvura;
Tua fronte pálida os pesares c'roam
Como auréola de martírio... pura,
Cândida virgem... que abandono o teu?
Sonhas acaso com o viver do céu!

Sentes saudades da morada d'anjos,
D'onde emanaste? enlangueces, gemes?
É nostalgia o teu sofrer? de arcanjos
Perder o afeto que te votam - temes?
Ou temes, virgem - de perder na terra,
Toda a pureza que tu'alma encerra!?...

Não, minha amiga - que a pureza tua
Jamais o mundo poderá manchar:
Límpida vaga a melindrosa lua,
Vencendo a nuvem, que se esvai no ar,
E mais amena, mais gentil, e grata
Despede às águas refulgir de prata.

Que cismas pois? porque suspiras, virgem?
Porque divagas solitária, e triste?
Delira a flor - e na voraz vertigem
Dum louco afeto, té morrer persiste...
Pálida flor! o teu perfume exalas
Nesses suspiros, que equivalem falas.

Cismas à noite... que cismar o teu?
Sonhas acaso misterioso amor?
Vês nos teus sonhos o que encerra o céu?
Aspiras d'anjos o fragrante olor!?
Porque, não creio que a esta terra impura
Prendas tua alma, divinal feitura.

Não. É resumo dos afetos santos
Que além se gozam - que uma vez somente
À terra descem, semelhando prantos.
Que chora a aurora sobre a flor olente:
Meigos, sem mancha, vaporosos, ledos,
Puros, - de arcanjos divinais segredos.

Sentes saudades da morada d'anjos!
Sentes saudade do viver dos céus?
Ouves os carmes de gentis arcanjos!
Soluças n'harpa teu louvor a Deus!...
Anjo! descanta sobre a terra impia
Místicas notas de eternal poesia.


Poemas e Poesias terça, 03 de dezembro de 2019

A MORTE ABSOLUTA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A MORTE ABSOLUTA

Manuel Bandeira

 

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
Sem deixar sequer esse nome.


Poemas e Poesias segunda, 02 de dezembro de 2019

BORBOLETAS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

BORBOLETAS

Manoel de Barros

 

Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza, 
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de 
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.


Poemas e Poesias domingo, 01 de dezembro de 2019

ONTEM EU ERA CRIANÇA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ONTEM EU ERA CRIANÇA

Machado de Assis

 

Que brincava nos delírios,
Ontem, hoje, amanhã
Entre murta, rosa e lírios,
No meio d’etéreos círios,
Nos brincos que a gente alcança;
Que sonho p’ra mim, que vida
Nas ânsias tão bem traída!
Que noites de tanta lida,
Nos gozos em que não cansa!
Hoje sou qual triste bardo
Cismando na virgem bela,
Nos meigos sorrisos dela;
Que, porém, já se desvela
Do futuro vir mui tardo!
— Pranteio na pobre lira,
Qual nauta que já suspira
Nas ânsias em que delira,
Nas chamas em qu’eu só ardo!
 
Amanhã serei no mundo
Perseguido em meu cansaço,
Sem já ter amigo braço
Que me ajude a dar um passo
Neste pego sem ter fundo;
Nem sequer a minh’amada
Se julgando mal fadada
Não virá mui namorada
Me mostrar um rir jucundo!

Poemas e Poesias sábado, 30 de novembro de 2019

ATENTO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

ATENTO

Luís Turiba

 

tento ter medo e não tenho medo
tento ter depressão e não consigo
tento sentir culpa e culpa não há
tento me desentender da realidade
que pulsa me atentando sem parar

 

tento tento tento e tento
e nada nada nada: fico atentado
tento sentir o sangue pulsar nas veias
tento entender que o hoje veio do ontem
e o amanhã será outro tempo nesse
jogo do pêndulo da história de tentativas

 

parece que leio meu país radiograficamente
(mas não choro, meu segredo é que sou
um poeta esforçado)

 

eles tentam ser honestos e não conseguem
cometeram um atentado em minhas esperanças
agora tentam morder o próprio rabo com a língua
parece que já convivo com fantasmas há tempo
mesmo assim eu tento e não dá tempo
só uma coisa tenho e vou em frente
viver é o nosso maior templo
por isso tento, tento tento e tento
enquanto há tempo de continuar tentando


Poemas e Poesias sexta, 29 de novembro de 2019

ESSA INFANTA (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

ESSA INFANTA

Jorge de Lima

 

Essa infanta boreal era a defunta
em noturna pavana sempre ungida,
colorida de galos silenciosos,
extrema-ungida de óleos renovados.

Hoje é rosa distante prenunciada,
cujos cabelos de Altair são dela;
dela é a visão dos homens subterrâneos,
consolo como chuva desejada.

Tendo-a a insônia dos tempos despertado,
ontem houve enforcados, hoje guerras,
amanhã surgirão campos mais mortos.

Ó antípodas, ó pólos, somos trégua,
reconciliemo-nos na noite dessa
eterna infanta para sempre amada.


Poemas e Poesias quinta, 28 de novembro de 2019

A FLOR DO SONHO (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A FLOR DO SONHO 

Florbela Espanca

 

A Flor do Sonho, alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim! ...
Milagre ... fantasia ... ou, talvez, sina ...

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?! ...

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minha’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi ...


Poemas e Poesias quarta, 27 de novembro de 2019

A BICICLETA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

A BICICLETA

J. G. de Araújo Jorge

 


Me lembro, me lembro
foi depois do jantar, meu avô me chamou,
tinha um riso na cara, um riso de festa:

- Guilherme, vou tapar seus olhos,
venha cá.

Os tios, os primos, os irmãos, na grande mesa redonda
ficaram rindo baixinho, estou ouvindo, estou ouvindo:

- Abre os olhos, Guilherme!

Estava na sala de jantar, junto da porta do corredor,
como uma santa irradiando, num altar,
como uma coroa na cabeça de um rei,
a bicicleta novinha, com lanterna, campainha, lustroso selim de couro,
tudo.

Me lembrei hoje da minha bicicleta
quando chegou a minha geladeira.

Mas faltou qualquer coisa à minha alegria,
talvez a mesa redonda, os tios, os primos rindo baixinho,

– abre os olhos, Guilherme!

Oh! Faltou qualquer coisa à minha alegria!


Poemas e Poesias terça, 26 de novembro de 2019

COISAS DE CABECEIRA: RECIFE (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

COISAS DE CABECEIRA: RECIFE

João Cabral de Melo Neto

 

Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Recife.
Coisas como de cabeceira da memória.
a um tempo coisas e no próprio índice;
e pois que em índice: densas, recortadas,
bem legíveis, em suas formas simples.
2
Algumas delas, e fora as já contadas:
o combogó, cristal do número quatro;
os paralelepípedos de algumas ruas,
de linhas elegantes, mas grão áspero;
a empena dos telhados, quinas agudas
como se também para cortar, telhados;
os sobrados, paginados em romancero,
várias colunas por fólio, imprensados.
(Coisas de cabeceira, firmando módulos:
assim, o do vulto esguio dos sobrados).


Poemas e Poesias segunda, 25 de novembro de 2019

ARARAS VERSÁTEIS (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

ARARAS VERSÁTEIS

Hilda Hilst

 

Araras versáteis. Prato de anêmonas.
O efebo passou entre as meninas trêfegas.
O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do dia.
Ela abriu as coxas de esmalte, louça e umedecida laca
E vergastou a cona com minúsculo açoite.
O moço ajoelhou-se esfuçando-lhe os meios
E uma língua de agulha, de fogo, de molusco
Empapou-se de mel nos refolhos robustos.
Ela gritava um êxtase de gosmas e de lírios
Quando no instante alguém
Numa manobra ágil de jovem marinheiro
Arrancou do efebo as luzidias calças
Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiii...
E gozaram os três entre os pios dos pássaros
Das araras versáteis e das meninas trêfegas.


Poemas e Poesias domingo, 24 de novembro de 2019

A LUA BRASILEIRA (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

 A LUA BRASILEIRA

Maria Firmina dos Reis

 

Oferecida ao Ilmo. Sr. Dr. Adriano Manoel Soares.

Tributo de amizade e gratidão.

 

É tão meiga, tão fagueira,

Minha lua brasileira;

É tão doce, e feiticeira,

Quando airosa vai nos céus;

Quando sobre almos palmares,

Ou sobre a face dos mares,

Fixa, nívea, seus olhares,

Qu’enfeitiçam os olhos meus;

Quando traça na campina

Larga fita diamantina;

Quando sobre a flor marina,

Esparge seu níveo albor;

Quando manda brandamente

Sobre a campina virente,

Seu fulgir alvinitente,

O seu mágico esplendor;

Quando sobre a fina areia,

Que a onda beijar anseia

Molemente ela passeia,

Desdobrando alvo lençol;

Quando ao fim da tarde amena

Ressurge pura e serena,

Disputando nessa cena,

Primores co’o rubro sol;

Oh! eu sinto então meu peito,

A tanto encanto sujeito,

Tão comovido, e desfeito,

Por um sublime sentir,

Que dos ares n’amplidão,

Vagueia a imaginação,

Qual se me fora condão,

Outros mundos descobrir!

Podem outros seus encantos

Ver também, beber seus prantos,

Por seus vales, e recantos,

Por suas veigas, em flor;

Podem vê-la sobre os montes,

Trepando nos horizontes,

A retratar-se nas fontes,

C’roada de níveo albor;

Lá n’outros mundos; ─ mas, bela

Assim branca, assim singela,

Como pálida donzela,

Que geme na solidão;

Assim pura, acetinada,

Como flor na madrugada

Pelo rocio beijada,

Com mimo, com devoção;

Assim virgem na frescura,

Com tão maga formosura,

Percorrendo essa planura

De nossos formosos céus,

Isso não: Assim ninguém

Mimosa, leda, inocente,

Assim formosa, indolente,

Permitiu-nos vê-la Deus!

Quem não ama vê-la assim,

C’a candidez do jasmim,

Espargindo amor sem fim,

Na terra de Santa Cruz!

Quem não ama entusiasmado

Da noite o astro nevado,

Que, co’o rosto prateado,

Tão meigamente seduz!?!

Quem não sente uma saudade,

Vendo a lua em fresca tarde,

Branca ─ em plena soledade,

Vagar nos campos dos céus!

Quem não gera com fervor,

No peito em que ergue a dor,

Um hino sacro de amor,

Um hino eterno ao seu Deus!?…

Eu por mim amo-te, oh bela,

Que semelhas a donzela,

Com roupas de branca tela,

Com traços de fino albor.

Que vai pura aos pés do altar

Por muito saber amar,

Ao terno amado jurar,

Lealdade ─ fé ─ e amor.

Amo ver-te assim fagueira,

Minha lua brasileira,

Qual menina lisonjeira,

Que promete, e foge e ri;

E depois, inda voltando,

Vem com beijinhos pagando,

Aquele a quem se furtando,

De novo a chamara a si.

Assim, lua, teus encantos

Inspiram mimosos cantos:

Chora sobre mim teus prantos,

Vertidos na solidão!

Tens em mim, lua querida,

Uma amiga enternecida,

Que aninha n’alma sentida

Muita dor ─ muita aflição.

Só teus raios prateados,

Teus inocentes agrados,

Teus suspiros magoados,

Modificam tanta dor.

Vem pois com tuas carícias

Infundir brandas delícias,

E com suaves blandícias

Entusiasmar-me de amor.


Poemas e Poesias sábado, 23 de novembro de 2019

RECORDAÇÕES (POEMA DO CARIOCA FRANCISCO OTAVIANO)

RECORDAÇÕES

Francisco Otaviano

 

Oh! se te amei! Toda a manhã da vida
Gastei-a em sonhos que de ti falavam!
Nas estrelas do céu via teu rosto,
Ouvia-te nas brisas que passavam:
Oh! se te amei! Do fundo de minh’alma
Imenso, eterno amor te consagrei…
Era um viver em cisma de futuro!
Mulher! oh! se te amei!

Quando um sorriso os lábios te roçava,
Meu Deus! que entusiasmo que sentia!
Láurea coroa de virente rama
Inglório bardo, a fronte me cingia;
À estrela alva, às nuvens do Ocidente,
Em meiga voz teu nome confiei.
Estrela e nuvens bem no seio o guardam;
Mulher! oh! se te amei!

Oh! se te amei! As lágrimas vertidas,
Alta noite por ti; atroz tortura
Do desespero d’alma, e além, no tempo,
Uma vida sumir-se na loucura…
Nem aragem, nem sol, nem céu, nem flores,
Nem a sombra das glórias que sonhei…
Tudo desfez-se em sonhos e quimeras…
Mulher! oh! se te amei!


Poemas e Poesias sexta, 22 de novembro de 2019

AGOSTO 1964 (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

AGOSTO 1964

Ferreira Gullar

 

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,

mercados, butiques,

viajo

num ônibus Estrada de Ferro – Leblon.

Volto do trabalho, a noite em meio,

fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,

relógio de lilases, concretismo,

neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,

que a vida

eu a compro à vista aos donos do mundo.

Ao peso dos impostos, o verso sufoca,

a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão

mas não ao mundo. Mas não à vida,

meu reduto e meu reino.

Do salário injusto,

da punição injusta,

da humilhação, da tortura,

do terror,

retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema

uma bandeira


Poemas e Poesias quinta, 21 de novembro de 2019

ÀS VEZES ENTRE A TORMENTA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ÀS VEZES ENTRE A TORMENTA

Fernando Pessoa

 

Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.

Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.


Poemas e Poesias quarta, 20 de novembro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 27 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 27

Eno Teodoro Wanke

Na costa azul do horizonte

O sol, veleiro do céu

Bateu na cristas de um monte

E afundou nun fogaréu

 


Poemas e Poesias terça, 19 de novembro de 2019

À SOMBRA DO SALGUEIRO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

À SOMBRA DO SALGUEIRO

Da Costa e Silva

 

Porque fosses o sonho de ventura
Que eu tanto ambicionara e conseguira,
Nunca julgara, nem jamais previra
O transe cruel que agora me tortura.

 

Só a extensão de um grande mal sem cura
Poderia mostrar que me iludira;
Que a ventura na vida é uma mentira
Sempre falaz àquele que a procura.

 

Louco de dor, o espírito delira
E a Castália das lágrimas apura
A emoção de infortúnio que me inspira...

 

Mas foi tamanha a minha desventura,
Que pendurei, muda e quebrada, a lira 
No salgueiro da tua sepultura.

 


Poemas e Poesias segunda, 18 de novembro de 2019

DEIXAI QUE A MINH,ALMA ESCASSA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

DEIXAI QUE A MINH'ALMA ESCASSA

Cruz e Sousa

 

Deixai que a minh'alma escassa
De luz — aos astros emigre
Como gaivota que passa
Deixai que a minh'alma escassa
De amor — na plúmbea desgraça
De atrozes garras de tigre,
Deixai que a minh'alma escassa
De luz — aos astros emigre.


Poemas e Poesias domingo, 17 de novembro de 2019

CONCLUSÕES DE ANINHA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

CONCLUSÕES DE ANINHA

Cora Coralina

 

Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
“A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.”
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.


Poemas e Poesias sábado, 16 de novembro de 2019

DÁ-ME A TUA MÃO (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

DÁ-ME AS TUAS MÃOS

Clarice Lispector

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.


Poemas e Poesias sexta, 15 de novembro de 2019

CANÇÃO DE OUTONO (POEMA DA CARIOCA CECILIA MEIRELES)

CANÇÃO DE OUTONO

Cecília Meireles

 

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles
que não se levantarão...

Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...


Poemas e Poesias quarta, 13 de novembro de 2019

MÃE PENITENTE (23ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO DO BAIANO CASTRO ALVES)

 

MÃE PENITENTE

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Ouve-me, pois!... Eu fui uma perdida;
Foi este o meu destino, a minha sorte...
Por esse crime é que hoje perco a vida,
Mas dele em breve há de salvar-me a morte!

"E minhaalma, bem vês, que não se irrita,
Antes bendiz estes mandões ferozes,
Eu seria talvez por ti maldita,
Filho! sem o batismo dos algozes!

"Porque eu pequei... e do pecado escuro
Tu foste o fruto cândido, inocente,
— Borboleta, que sai do — lodo impuro...
— Rosa, que sai de — pútrida semente!

"Filho! Bem vês... fiz o maior dos crimes:
— Criei um ente para a dor e a fome!
Do teu berço escrevi nos brancos vimes
O nome de bastardo — impuro nome.

"Por isso agora tua mãe te implora
E a teus pés de joelhos se debruça.
Perdoa à triste — que de angústia chora,
Perdoa à mártir — que de dor soluça!

"Mas um gemido a meus ouvidos soa...
Que pranto é este que em meu seio rola?
Meu Deus, é o pranto seu que me perdoa...
Filho, obrigada pela tua esmola!"


Poemas e Poesias terça, 12 de novembro de 2019

NO LAR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

NO LAR

Casimiro de Abreu

 

Longe da pátria, sob um céu diverso
Onde o sol como aqui tanto não arde,
Chorei saudades do meu lar querido
— Ave sem ninho que suspira à tarde. —

No mar — de noite — solitário e triste
Fitando os lumes que no céu tremiam,
Ávido e louco nos meus sonhos d'alma
Folguei nos campos que meus olhos viam.

Era pátria e família e vida e tudo,
Glória, amores, mocidade e crença,
E, todo em choros, vim beijar as praias
Por que chorara nessa longa ausência.

Eis-me na pátria, no país das flores,
— O filho pródigo a seus lares volve,
E consertando as suas vestes rotas,
O seu passado com prazer revolve!

Eis meu lar, minha casa, meus amores,
A terra onde nasci, meu teto amigo,
A gruta, a sombra, a solidão, o rio
Onde o amor me nasceu — cresceu comigo.

Os mesmos campos que eu deixei criança,
Árvores novas... tanta flor no prado!...
Oh! como és linda, minha terra d'alma,
— Noiva enfeitada para o seu noivado! —

Foi aqui, foi ali, além... mais longe,
Que eu sentei-me a chorar no fim do dia;
— Lá vejo o atalho que vai dar na várzea...
Lá o barranco por onde eu subia!...

Acho agora mais seca a cachoeira
Onde banhei-me no infantil cansaço...
— Como está velho o laranjal tamanho
Onde eu caçava o sanhaçu a laço!...

Como eu me lembro dos meus dias puros!
Nada m'esquece -... e esquecer quem há de?..
— Cada pedra que eu palpo, ou tronco, ou folha,
Fala-me ainda dessa doce idade!

Eu me remoço recordando a infância,
E tanto a vida me palpita agora
Que eu dera oh! Deus! a mocidade inteira
Por um só dia de viver d'outrora!

É a casa!.. as salas, estes móveis... tudo,
O crucifixo pendurado ao muro...
O quarto do oratório... a sala grande
Onde eu temia penetrar no escuro!...

E ali... naquele canto... o berço armado!
E minha mana, tão gentil, dormindo!
E mamãe a contar-me histórias lindas
Quando eu chorava e a beijava rindo!

Oh! primavera! oh! minha mãe querida!
Oh! mana! — anjinho que eu amei com ânsia —
Vinde ver-me, em soluços — de joelhos —
Beijando em choros este pó da infância!


Poemas e Poesias segunda, 11 de novembro de 2019

A SOLIDÃO E O SEU DESGASTE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A SOLIDÃO E O SEU DESGASTE

Carlos Pena Filho

 

Frequentador da solidão, às vezes
Jogava ao ar um desespero ou outro,
Mas guardava os menores objetos
Onde a vida morava e o amor nascia.

Era uma carga enorme e sem sentido,
Um silêncio magoado e impermeável…
A solidão povoada de instrumentos,
Roubando espaço à andeja liberdade.

Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele
Passeia pelos campos e os despreza
E porque sabe com certeza clara,

O princípio e o fim da coisa amada,
Guarda pouco da vida e o que retém
É só pelo impossível de eximir-se


Poemas e Poesias domingo, 10 de novembro de 2019

A MOÇAS MOSTRAVA A COXA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A MOÇA MOSTRAVA A COXA

Carlos Drummond de Andrade

 

A moça mostrava a coxa,
a moça mostrava a nádega,
só não mostrava aquilo
– concha, berilo, esmeralda –
que se entreabre, quatrifólio,
e encerrra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea,
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
á visão dos seios claros,
qua pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o maximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-dalva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjoo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quando mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia...
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta...


Poemas e Poesias sábado, 09 de novembro de 2019

SONETO 001 - A TI, SENHOR, A QUEM AS SACRA MUSAS (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

A TI, SENHOR,  A QUEM AS SACRAS  MUSAS

Soneto 001

Luís de Camões

 

A ti, Senhor, a quem as sacras Musas
nutrem e cibam de poção divina
(não as da fonte Délia cabalina,
que são Medeias, Circes e Medusas,

mas aquelas, em cujo peito, infusas
as leis estão, que a lei da Graça ensina,
beninas no amor e na doutrina
e não soberbas, cegas e confusas),

este pequeno parto, produzido
de meu saber e fraco entendimento,
ũa vontade grande te oferece.

Se for de ti notado de atrevido,
daqui peço perdão do atrevimento,
o qual esta vontade te merece.


Poemas e Poesias sexta, 08 de novembro de 2019

SONETO DO ARCADE LERENO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO ARCADE LERENO

Bocage

Nojenta prole da rainha Ginga,
Sabujo ladrador, cara de nico,
Loquaz saguim, burlesco Teodorico,
Osga torrada, estúpido rezinga;
 
E não te acuso de poeta pinga;
Tens lido o mestre Inácio, e o bom Supico;
De ocas idéias tens o casco rico,
Mas teus versos tresandam a catinga:
 
Se a tua musa nos outeiros campa,
Se ao Miranda fizeste ode demente,
E o mais, que ao mundo estólido se incampa:
 
É porque sendo, oh! Caldas, tão somente
Um cafre, um gozo, um néscio, um parvo, um trampa,
Queres meter nariz em cu de gente.


Poemas e Poesias quinta, 07 de novembro de 2019

INSÂNIA DE UM SIMPLES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

INSÂNIA DE UM SIMPLES

Augusto dos Anjos

 

Em cismas patológicas insanas,
É-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;

Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,
Ter o destino de uma larva fria,
Deixar enfim na cloaca mais sombria
Este feixe de células humanas!

E enquanto arremedando Éolo iracundo,
Na orgia heliogabálica do mundo,
Ganem todos os vícios de uma vez,

Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho
No silêncio de minha pequenez!


Poemas e Poesias quarta, 06 de novembro de 2019

FILOSOFIA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FEREIRA)

FILOSOFIA

Ascenso Ferreira

 


Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!

Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!


Poemas e Poesias terça, 05 de novembro de 2019

ETERNA DOR (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

ETERNA DOR

Arthur Azevedo

 

Já te esqueceram todos neste mundo. . .
Só eu, meu doce amor, só eu me lembro,
Daquela escura noite de setembro
Em que da cova te deixei no fundo.

Desde esse dia um látego iracundo
Açoitando-me está, membro por membro.
Por isso que de ti não me deslembro,
Nem com outra te meço ou te confundo.

Quando, entre os brancos mausoléus, perdido,
Vou chorar minha acerba desventura,
Eu tenho a sensação de haver morrido!

E até, meu doce amor, se me afigura,
Ao beijar o teu túmulo esquecido,
Que beijo a minha própria sepultura!


Poemas e Poesias segunda, 04 de novembro de 2019

A MORTE DO TOURO MÃO DE PAU (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A MORTE DO TOURO MÃO DE PAU

Ariano Suassuna

(Grafia original)

 

 

"Ariano Suassuna escreveu

esse poema em memória de

seu pai, assassinado em 1930"

 

 

Corre a Serra Joana Gomes

galope desesperado:

um touro se defendendo,

homens querendo humilhá-lo,

um touro com sua vida,

os homens em seus cavalos.

 

Cortava o gume das pedras

um bramido angustiado,

se quebrava nas catingas

um galope surdo e pardo

e os cascos pretos soavam

nas pedras de fogo alado,

enquanto o clarim da morte,

ao vento seco e queimado,

na poeira avermelhada

envolvia os velhos cardos.

 

Rasgavam a serra bruta

aboios mal arquejados

e, nas trilhas já cobertas

pelo pó quente e dourado,

um gemido de desgraça,

um gemido angustiado:

 

- "Adeus, Lagoa dos Velhos!

adeus, vazante do gado!

adeus, Serra Joana Gomes

e cacimba do Salgado!

O touro só tem a vida:

os homens têm seus cavalos"!

 

O galopar recrescia:

brilhavam ferrões farpados

e algemas de baraúna

para o touro preparados.

Seu Sabino tinha dito:

- "Ele há de vir amarrado"!

 

Miguel e Antônio Rodrigues,

de guarda-peito e encourados,

na frente do grupo vinham,

montados em seus cavalos

de pernas finas, ligeiras,

ambos de prata arreados.

E, logo à frente, corria

o grande touro marcado,

manquejando sangue limpo

nos caminhos mal rasgados,

cortadas as bravas ancas

por ferrões ensangüentados.

 

A Serra se despenhava

nas asas de seus penhascos

e a respiração fogosa

dos dois fogosos cavalos

já requeimava, de perto,

as ancas do manco macho

quando ele, vendo a desonra,

tentando subjugá-lo,

mancando da mão preada

subiu num rochedo pardo:

 

Num grito, todos pararam,

pelo horror paralisados,

pois sempre, ao rebanho, espanta

que um touro do nosso gado

às teias da fama-negra

prefira o gume do fado.

E mal seus perseguidores

esbarravam seus cavalos,

viram o manco selvagem

saltar do rochedo pardo:

 

-"Adeus, Lagoa dos Velhos!

Adeus, vazante do gado!

Adeus, Serra Joana Gomes

e cacimba do Salgado!

Assim vai-se o touro manco,

morto mas não desonrado"!

 

Silêncio. A Serra calou-se

no poente ensangüentado.

Calou-se a voz dos aboios,

cessou o troar dos cascos.

E agora, só, no silêncio

deste sertão assombrado,

o touro sem sua vida,
os homens em seus cavalos.


Poemas e Poesias domingo, 03 de novembro de 2019

IDEAL (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

IDEAL

Antero de Quental

 

Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas languidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortaes entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra ás crinas
D'um corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...

 


Poemas e Poesias sábado, 02 de novembro de 2019

ANJOS DO CÉU (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

ANJOS DO CÉU

Álvares de Azevedo

 


As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d'escuma revolvem-se nus!
E quando de noite vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear,
E a trança luzente da nuvem flutua,
As ondas são anjos que dormem no mar!
Que dormem, que sonham- e o vento dos céus
Vem tépido à noite nos seios beijar!
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!
E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar:
São beijos que queimam... e as noites deliram,
E os pobres anjinhos estão a chorar!
Ai! quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar,
Por que não consentes, num beijo de amor
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?


Poemas e Poesias sexta, 01 de novembro de 2019

POETAS EXILADOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS

POETAS EXILADOS

Alphonsus Guimaraens

 

A CRUZ E SOUSA


No Mosteiro, da velha arquitetura, de era
Remota, vão chegando os poetas exilados.
A porta principal é engrinaldada em hera...
Os sinos dobram nos torreões, abandonados.

Uns são bem velhos, e há moços, na primavera
Da idade humana. Alguns choram mortos noivados.
Sem esperança, cada um deles tudo espera...
Outros muitos tem o ar de monges maus, transviados.

E ninguém fala. O sonho é mudo: e sonham, quando
Ei-los todos de pé, estáticos, olhando
A branca aparição de hierático painel.

Chegaste enfim, magoado Eleito! Olham. Vermelhos
Tons de poente num fundo azul... Dobram-se os joelhos:
É Cruz e Sousa aos pés do arcanjo São Gabriel.


Poemas e Poesias quinta, 31 de outubro de 2019

O RETRATO (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

O RFETRATO

Adelino Fontoura

 

                       Vou fazer-te, leitor, o seu retrato:

                   — É pálida, gentil, encantadora,

                   tem a doce atração fascinadora

                   das cristalinas águas dum regato.

 

                   O chic do dizer nervoso inato

                   tive-o voz vibrante, sedutora,

                   brilham nessa loquaz criança loura

                   a graça, a distinção, o fino trato.

 

                  É olhá-la uma vez e sentir presa

                   a vontade ao seu todo de burguesa

                   que conversa em francês e sabe história.

 

                   Mas o reverso da medalha espanta.

                   Tangendo o violão, lânguida, canta:

                   — Quis debalde varrer-te da memória!

 


Poemas e Poesias quarta, 30 de outubro de 2019

AGORA, Ó JOSÉ (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

AGORA, Ó JOSÉ

Adélia Prado

 

É teu destino, ó José,
a esta hora da tarde,
se encostar na parede,
as mãos para trás.
Teu paletó abotoado
de outro frio te guarda,
enfeita com três botões
tua paciência dura.
A mulher que tens, tão histérica,
tão histórica, desanima.
Mas, ó José, o que fazes?
Passeias no quarteirão
o teu passeio maneiro
e olhas assim e pensas,
o modo de olhar tão pálido.
Por improvável não conta
o que tu sentes, José?
O que te salva da vida
é a vida mesma, ó José,
e o que sobre ela está escrito
a rogo de tua fé:
“No meio do caminho tinha uma pedra”
“Tu és pedra e sobre esta pedra”.
A pedra, ó José, a pedra.
Resiste, ó José. Deita, José,
dorme com tua mulher,
gira a aldraba de ferro pesadíssima.
O reino do céu é semelhante a um homem
como você, José.


Poemas e Poesias segunda, 28 de outubro de 2019

A INVENÇÃO DO DIABO (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

A INVENÇÃO DO DIABO

Vicente de Carvalho

 

Deus, entregando ao Diabo a metade do mundo,
Deu-lhe a parte pior, como era de razão;
E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.

Tomando para si todo o imenso tesouro
Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pode o Senhor fazer esbanjamento de ouro
Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.

Pode esparzir na areia as pérolas do orvalho,
Marchetar de rubis a asa de um beija-flor,
Fazer a primavera — e por em cada galho
O gorjeio de uma ave e o riso de uma flor...

A Satanás, porém, coube em partilha a treva,
O ódio como prazer, como covil um poço,
E ele lá no seu reino escuro a vida leva
De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.

E, enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia
Astros de ouro no céu, messes de ouro no pó,
Satanás, furioso, a mão sacode, cheia
De lepra e maldição como o punho de Jó.

Só uma vez Satã respirou satisfeito,
E arregaçou-lhe o beijo um pérfido sorriso:
Quando, acaso, ao sair do seu covil estreito,
De repente se achou dentro do Paraíso.

A primeira impressão que teve foi de inveja:
Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor,
Só lhe pode arrancar à boca malfazeja
Uivos de cão ferido, imprecações de dor.

Mas, de repente, como o corisco clareia
O tenebroso céu nas borrascas de agosto,
Uma idéia triunfante, uma sinistra idéia,
Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.

Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,
Eva, formosa e nua, adormecera ao luar:
E sobre a alva nudez dessas formas graciosas
Satã deixou cair um desdenhoso olhar...

Mas num sonho talvez de cousas ignoradas,
Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os lábios abriu — e abriram-se, orvalhadas,
De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.

Espantado, Satã viu que esse mármore era
Animado e gentil, ardente e encantador;
Como um resumo viu de toda a primavera
Na frescura sem par daquela boca em flor.

E foi somente então que o Príncipe das Trevas
Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix consagrado às missas do Pecado.

Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os Satã, e enchendo-os de veneno,
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.


Poemas e Poesias domingo, 27 de outubro de 2019

FAVELA (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

FAVELA

Raul Bopp

 

Meio-dia.

O morro coxo cochila.
O sol resvala devagarzinho pela rua
torcida como uma costela.

Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado.

Um pé de meia faz exercícios no arame.

Vizinha da frente grita no quintal:
— João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora.
Mamoeiros estão de papo inchado.

Negra acocorou-se a um canto do terreiro.
Pôs as galinhas em escândalo.

Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça.

À porta da venda
negro bocejou como um túnel. 


Poemas e Poesias sábado, 26 de outubro de 2019

O BURRO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

O BURRO

Quintino Cunha

 

 

 

                  ― Chega à feira um sertanejo

                  montado num Burro arisco.

                  E, sem pensar nalgum risco,

                  daquele canto não sai.

                  Perto, apita um trem, e o Burro

                  salta com tal ligeireza,

                  que o pobre homem, de surpresa,

                  desiquilibra-se e cai!

 

                  Nesse momento, a assistência,

                  um tanto ou quanto educada,

                  prorrompeu em forte assuada,

                  quando o matuto caiu...

                  E, apenas como protesto,

                  àquele cena, tão séria,

                  vendo tamanha miséria,

                  somente o Burro não riu...


Poemas e Poesias sexta, 25 de outubro de 2019

COUSA ESTRANHA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

COUSA ESTRANHA

Patativa do Assaré

 

 


Esta noite, já quase madrugada,
No silêncio melhor de toda gente,
Despertei do meu sono inocente
Pelo doido ladrar da cachorrada.

E fiquei a dizer: não devo nada,
Criminoso não sou, vivo contente.
Quem me vem perturbar, tão insolente,
O repouso feliz desta morada?

Me fugiram os pulsos, pois sou fraco
E lembrei-me de gato, de cassaco
E raposa, mexendo no poleiro.

Porém logo notei estranha coisa:
Nem cassaco, nem gato, nem raposa.
Era um vice-prefeito em meu terreiro.


Poemas e Poesias quinta, 24 de outubro de 2019

COMPOSTURA (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

COMPOSTURA

Padre Antônio Tomás

 

Triste mortal que de contínuo choras,
Anunciando a todos, voz em grita,
A desventura que te infelicita
Para a qual lenitivo ao mundo imploras,

Deste modo de certo não minoras
A funda mágoa de tua alma aflita:
Riso somente e não piedade excita
O vão clamor com que teu mal deploras.

Se não sabes sofrer as tuas penas,
De rosto alegre e ânimo jucundo,
Como as almas estoicas e serenas,

Aprende ao menos a sofrer calado,
Pois a maior desgraça deste mundo
É parecer aos outros desgraçado.


Poemas e Poesias quarta, 23 de outubro de 2019

VINHA DE NABOT (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VINHA DE NABOT

Olavo Bilac

 

Maldito aquele dia, em que abriste em meu seio,
Cruel, esta paixão, como, ampla e iluminada,
Uma clareira verde, aberta ao sol, no meio
Da espessa escuridão de uma selva cerrada!

Ah! três vezes maldito o amor que me avassala,
E me obriga a viver dentro de um pesadelo,
Louco! por toda a parte ouvindo a tua fala,
Vendo por toda a parte a cor do teu cabelo!

De teu colo no vale embalsamado e puro
Nunca descansarei, como num paraíso,
Sob a tenda aromal desse cabelo escuro,
Olhando o teu olhar, sorrindo ao teu sorriso.

Desvairas-me a razão, tiras-me a calma e o sono!
Nunca te possuirei, bela e invejada vinha,
Ó Vinha de Nabot que tanto ambiciono!
Ó alma que procuro e nunca serás minha!


Poemas e Poesias terça, 22 de outubro de 2019

CANÇÃO DE BARCO E DE OLVIDO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

CANÇÃO DE BARCO E DE OLVIDO

Mário Quintana

 

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas…
Ai lampiões de fins de linha…
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares…
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares…

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.


Poemas e Poesias segunda, 21 de outubro de 2019

A MATA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A MATA

Manuel Bandeira

 

A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se!
A mata hoje tem alguma coisa para dizer.
E ulula, e contorce-se toda, como a atriz de uma pantomima
trágica.
Cada galho rebelado
Inculca a mesma perdida ânsia.
Todos eles sabem o mesmo segredo pânico.
Ou então - é que pedem desesperadamente a mesma instante coisa.

Que saberá a mata? Que pedirá a mata?
Pedirá água?
Mas a água despenhou-se há pouco, fustigando-a, escorraçando-a,
saciando-a como aos alarves.

Pedirá o fogo para a purificação das necroses milenárias?
Ou não pede nada, e quer falar e não pode?
Ter surpreendido o segredo da terra pelos ouvidos finíssimos
das suas raízes?

A mata agita-se, revuloteia, controce-se toda e sacode-se!
A mata está hoje como uma multidão em delírio coletivo.

Só uma touça de bambus, à parte,
Balouça... levemente... levemente... levemente...
E parece sorrir do delírio geral.


Poemas e Poesias domingo, 20 de outubro de 2019

AURORA NO FRONT (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

AURORA NO FRONT

Manoel de Barros

 

Das mãos caíam rezas como orvalho
Caíam rezas das mãos curvas
Sobre a aurora entrevista
No fantástico andar dos gatos.


Poemas e Poesias sábado, 19 de outubro de 2019

O VERME, POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS

O VERME

Machado de Assis

 

Existe uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de um nume.

Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.

Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix inclina;
As folhas, leva-as o vento,

Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.


Poemas e Poesias sexta, 18 de outubro de 2019

AMORAR (POMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

AMORAR

Luís Turiba 

 

 

 
Bendito beijo na boca de um amor que a si
se basta dois corpos uma só flecha um sopro
um impulso nada o acalma o tiro do sono
de um misto de almas que é um ente vivo que
borda e pinta a fantasia com morangos na pele
& azula a Terra com mel e pula-pula – ora
ninguém segura o pulsar apaixonado de um
coração apaixonado – oh o amor, meu Deus -,
como é bom amar passear nas nuvens sentir
o cheiro da maçã o dando está todo a ocupar
o vazio do poema como um frio gélido subindo
espinha acima assim com aquele riso que nasce
sozinho e amigo:
amorô
amorradíssimo
amoradão
amor grã
amor in
amor vermelho de campari com limão
amor zum
amor zaun
amor zum zum
amor zim zim
amor doce de leite
amor azeite (quente)
amor chocolate de bombom
amor de doer, de gritar, de ficar
sem falar sem comer sem dormir
amor hê!
amor ah!
amor de ninhos
amor de filhos
amor é coisa alegre
amor é coisa triste
amor é muito mais
eu que o vi quero vê-lo: vísse!

Poemas e Poesias quinta, 17 de outubro de 2019

EPICICLO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

EPICICLO

Jorge de Lima

 

Alma, sê forte; corpo, sê robusto!

Nesse conflito atávico e instintivo

Sê como o gênio que possante e altivo

Constrói antes de morto o próprio busto!

 

Refreia o teu instinto e o doma a custo

Da dor — da grande dor de seres vivo...

Eu quero! — esse presente indicativo

Otávio a conjugá-lo fez-se Augusto...

 

Mas nunca concretizes teu ideal!

Um ideal realizado é um transparente

Fruto que ao ser provado sabe mal!

 

O artista é como o Errático do mito:

Onde pensa que é o fim, surge-lhe à frente

A estrada interminável do Infinito!


Poemas e Poesias quarta, 16 de outubro de 2019

AQUELA (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

AQUELA

Hilda Hilst

Aflição de ser eu e não ser outra.

Aflição de não ser, amor, aquela

Que muitas filhas te deu, casou donzela

E à noite se prepara e se adivinha

 

Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha

Que te retém e não te desespera.

(A noite como fera se avizinha)

 

Aflição de ser água em meio à terra

E ter a face conturbada e móvel.

E a um só tempo múltipla e imóvel

 

Não saber se se ausenta ou se te espera.

Aflição de te amar, se te comove.

E sendo água, amor, querer ser terra.

 


Poemas e Poesias terça, 15 de outubro de 2019

MORRER... DORMIR (POEMA DO CARIOCA FRANCISCO OTAVIANO DE ALMEIDA ROSA)

VIVER... MORRER

Francisco Otaviano de Almeida Rosa

 

Morrer .. dormir .. não mais! Termina a vida
E com ela terminam nossas dores:
Um punhado de terra, algumas flores,
E às vezes uma lágrima fingida!

Sim! minha morte não será sentida;
Não deixo amigos, e nem tive amores!
Ou, se os tive, mostraram-se traidores,
Algozes vis de uma alma consumida.

Tudo é podre no mundo. Que me importa
Que ele amanhã se esbroe e que desabe,
Se a natureza para mim é morta!

É tempo já que o meu exílio acabe,
Vem, pois, ó Morte, ao Nada me transporta!
Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe?


Poemas e Poesias segunda, 14 de outubro de 2019

MAIO 1964 (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

MAIO 1964

Ferreira Gullar

 

Maio 1964

Na leiteira a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.
Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.
Mas quantos amigos presos!
quantos em cárceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.
Há muitas famí lias sem rumo esta tarde
nos subúrbios de ferro e gás
onde brinca irremida a infância da classe operária.
Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.
Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.

Poemas e Poesias domingo, 13 de outubro de 2019

AS TUAS MÃOS TERMINAM EM SEGREDO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AS TUAS MÃOS TERMINAM EM SEGREDO

Fernanado Pessoa

 

As tuas mãos terminam em segredo.

Os teus olhos são negros e macios

Cristo na cruz os teus seios (?) esguios

E o teu perfil princesas no degredo...

 

Entre buxos e ao pé de bancos frios

Nas entrevistas alamedas, quedo

O vento põe seu arrastado medo

Saudoso a longes velas de navios.

 

Mas quando o mar subir na praia e for

Arrasar os castelos que na areia

As crianças deixaram, meu amor,

 

Será o haver cais num mar distante...

Pobre do rei pai das princesas feias

No seu castelo à rosa do Levante!


Poemas e Poesias sábado, 12 de outubro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 26 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 26

Eno Teodoro Wanke

 

Na praia deserta, eu penso

Que a imagem da solidão

Começa no mar imenso

E finda em meu coração


Poemas e Poesias sexta, 11 de outubro de 2019

A MOENDA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A  MOENDA

Da Costa e Silva


Na remansosa paz da rústica fazenda,
À luz quente do sol e à fria luz do luar,
Vive, como a expiar uma culpa tremenda,
O engenho de madeira a gemer e a chorar.

Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;
E, ringindo a rangendo, a cana a triturar,
Parece que tem alma, advinha e desvenda
A ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar...

Movida pelos bois tardios e sonolentos,
Geme, como a exprimir, em doridos lamentos,
Que as desgraças por vir sabe-as todas de cor.

Ai! dos teus tristes ais! moenda arrependida!
- Álcool! para esquecer os tormentos da vida
E cavar, sabe Deus, um tormento maior!


Poemas e Poesias quinta, 10 de outubro de 2019

ZULMIRA DOS MEUS AMORES (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ZULMIRA DOS MEUS AMORES

Cruz e Sousa

 

Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas,
Resplandece como as flores,
Zulmira dos meus amores
Abre os olhos sedutores
Nos quais a minh'alma abismas,
Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas.


Poemas e Poesias quarta, 09 de outubro de 2019

ASSIM EU VEJO A VIDA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

ASSIM EU VEJO A VIDA

Cora Coralina

 


A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.


Poemas e Poesias terça, 08 de outubro de 2019

APENAS O VÁCUO (POEMA EM PROSA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

APENAS O VÁCUO

Clarice Lispector

 

Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada.
Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho...o de mais nada fazer."

 

 


Poemas e Poesias segunda, 07 de outubro de 2019

CANÇÃO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

CANÇÃO

Cecília Meireles

 

 

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Poemas e Poesias sábado, 05 de outubro de 2019

O ÚLTIMO ABRAÇO (22ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, CO BAIANO CASTRO ALVES)

O ÚLTIMO ABRAÇO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Filho, adeus! Já sinto a morte,
Que me esfria o coração.
Vem cá... Dá-me tua mão...
Bem vês que nem mesmo tu
Podes dar-lhe novo alento!...
Filho, é o último momento...
A morte — a separação!
Ao desamparo, sem ninho,
Ficas, pobre passarinho,
Neste deserto profundo,
Pequeno, cativo e nu!...

"Que sina, meu Deus! que sina
Foi a minha neste mundo!
Presa ao céu — pelo desejo,
Presa à terra — pelo amor!...
Que importa! é tua vontade?
Pois seja feita, Senhor!
"Pequei!... foi grande o meu crime,
Mas é maior o castigo...
Ai! não bastava a amargura
Das noites ao desabrigo;
De espedaçaram-me as carnes
O tronco, o açoite, a tortura,

De tudo quanto sofri.
Era preciso mais dores,
Inda maior sacrifício...
Filho! bem vês meu suplício...
Vão separar-me de ti!

"Chega-te perto... mais perto;
Nas trevas procura ver-te
Meu olhar, que treme incerto,
Perturbado, vacilante...
Deixa em meus braços prender-te
Pra não morrer neste instante;
Inda tenho que fazer-te
Uma triste confissão...
Vou revelar-te um segredo
Tão negro, que tenho medo
De não ter o teu perdão!...

Mas não!
Quando um padre nos perdoa,
Quando Deus tem piedade
De um filho no coração
Uma mãe não bate à toa.


Poemas e Poesias sexta, 04 de outubro de 2019

A VALSA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

A VALSA

Casimiro de Abreu

 

A M.***


Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranquila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

(...)

Calado
Sozinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

(...)


Poemas e Poesias quinta, 03 de outubro de 2019

A ROSA, NO ÍNTIMO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A ROSA, NO ÍNTIMO

Carlos Pena Filho

 

 

Entro em teu breve sono, onde os minutos

são três pássaros líquidos e enorme,

e descubro os gelados aquedutos


 guardiães do silêncio, enquanto dormes.

 

Pouso a cabeça nos teus lábios sujos

de mundo e tempo, e vejo que possuis

em teus seios, dois bêbados marujos

desesperados, sós, raros, azuis.

 

Enfim, além (no além de tuas pernas

onde Deus repousou a sua face,

cansado de inventar coisas eternas)

 

desvendo, ao desespero de quem passe,

a rosa que és, a mística e sombria

a noturna e serena rosa fria.

 

 

Entro em teu breve sono, onde os minutos

são três pássaros líquidos e enorme,

e descubro os gelados aquedutos
 guardiães do silêncio, enquanto dormes.

 

Pouso a cabeça nos teus lábios sujos

de mundo e tempo, e vejo que possuis

em teus seios, dois bêbados marujos

desesperados, sós, raros, azuis.

 

Enfim, além (no além de tuas pernas

onde Deus repousou a sua face,

cansado de inventar coisas eternas)

 

desvendo, ao desespero de quem passe,

a rosa que és, a mística e sombria

a noturna e serena rosa fria.

 


Poemas e Poesias quarta, 02 de outubro de 2019

A MÁQUINA DO MUNDO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A MÁQUINA DO TEMPO

Carlos Drummond de Andrade

 

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


Poemas e Poesias terça, 01 de outubro de 2019

SONETO 160 - A SEPULTURA DEL-REI DOM JOÃO TERCEIRO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

A SEPULTURA DEL-REI DOM JOÃO TERCEIRO

Soneto 160

Luís da Camões

 

«Quem jaz no grão sepulcro, que descreve
tão ilustres sinais no forte escudo?»
«Ninguém; que nisso, enfim, se torna tudo;
mas foi quem tudo pôde e tudo teve».

«Foi Rei?» «Fez tudo quanto a Rei se deve;
pôs na guerra e na paz devido estudo;
mas quão pesado foi ao Mouro rudo
tanto lhe seja agora a terra leve».

«Alexandre será?» «Ninguém se engane;
que sustentar mais que adquirir se estima».
«Será Adriano, grão senhor do mundo?»

«Mais observante foi da Lei de cima».
«É Numa?» «Numa, não; mas é Joane
de Portugal terceiro, sem segundo».


Poemas e Poesias segunda, 30 de setembro de 2019

SONETO DO PRAZER EFÊMERO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO PRAZER EFÊMERO

Bocage

 

Dizem que o rei cruel do Averno imundo
Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para meter do cu na aberta greta
A quem não foder bem cá neste mundo:
 
Tremei, humanos, deste mal profundo,
Deixai essas lições, sabida peta,
Foda-se a salvo, coma-se a punheta:
Este prazer da vida mais jucundo.
 
Se pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Senão para foder com liberdade?
 
Fodam-se, pois, casadas e solteiras,
E seja isto já; que é curta a idade,
E as horas do prazer voam ligeiras!


Poemas e Poesias domingo, 29 de setembro de 2019

INSÂNIA DE UM SIMPLES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

INSÂNIA DE UM SIMPLES

Augusto dos Anjos

Em cismas patológicas insanas,
É-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;

Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,
Ter o destino de uma larva fria,
Deixar enfim na cloaca mais sombria
Este feixe de células humanas!

E enquanto arremedando Éolo iracundo,
Na orgia heliogabálica do mundo,
Ganem todos os vícios de uma vez,

Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho
No silêncio de minha pequenez!


Poemas e Poesias sábado, 28 de setembro de 2019

CINEMA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

CINEMA

Ascenso Ferreira

 

“-Mas D. Nina,
aquilo que é o tal de cinema?

O homem saiu atrás da moça,
pega aqui, pega acolá,
pega aqui, pega acolá,
até que pégou-la.
Pegou-la e sustentou-la!
Danou-lhe um beijo,
danou-lhe um beijo!…

Depois entram pra dentro dum quarto!
Fêz-se aquela escuridão
e só se via o lençol bulindo…
…………………………………….

-Me diga uma coisa, D. Nina:
isso presta pra moça ver?”


Poemas e Poesias quinta, 26 de setembro de 2019

A MORTE - O SOL DO TERRÍVEL (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A MORTE - O SOL DO TERRIVEL

Ariano Suassuna

 

Com tema de Renato Carneiro Campos

Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.

Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.

Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.


Poemas e Poesias quarta, 25 de setembro de 2019

VISITA (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

VISITA

Antero de Quental

 

Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almiscar recendente;
Vesti-me com a purpura fulgente,
Ensaiando meus cantos, como um bardo;

Ungi as mãos e a face com o nardo
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Mysteriosa visita a quem aguardo.

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre á humida pousada?...

Nem princezas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
Ás portas de ouro e luz do meu amor!


Poemas e Poesias terça, 24 de setembro de 2019

ANJINHO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

ANJINHO

Álvares de Azevedo

 

 

And from her fair and unpolluted flesh
May violets spring!
HAMLET

Não chorem... que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!

Pobre criança! Dormia:
A beleza reluzia
No carmim da face dela!
Tinha uns olhos que choravam,
Tinha uns risos que encantavam!...
Ai meu Deus! era tão bela.

Um anjo d'asas azuis,
Todo vestido de luz,
Sussurrou-lhe num segredo
Os mistérios doutra vida!
E a criança adormecida
Sorria de se ir tão cedo!

Tão cedo! que ainda o mundo
O lábio visguento, imundo,
Lhe não passara na roupa!
Que só o vento do céu
Batia do barco seu
As velas d'ouro da poupa!

Tão cedo! que o vestuário
Levou do anjo solitário
Que velava seu dormir!

Que lhe beijava risonho
E essa florzinha no sonho
Toda orvalhava no abrir!

Não chorem! lembro-me ainda
Como a criança era linda
No fresco da facezinha!
Com seus lábios azulados,
Com os seus olhos vidrados
Como de morta andorinha!

Pobrezinho! o que sofreu!
Como convulso tremeu
Na febre dessa agonia!
Nem gemia o anjo lindo,
Só os olhos expandindo
Olhar alguém parecia!

Era um canto de esperança
Que embalava essa criança?
Alguma estrela perdida,
Do céu c'roada donzela...
Toda a chorar-se por ela
Que a chamava doutra vida?

Não chorem... que não morreu!
Que era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!

Era uma alma que dormia
Da noite na ventania
E que uma fada acordou!
Era uma flor de palmeira
Na sua manhã primeira
Que um céu d'inverno murchou!

Não chorem! abandonada
Pela rosa perfumada,
Tendo no lábio um sorriso,
Ela se foi mergulhar
- Como pérola no mar -
Nos sonhos do paraíso!

Não chorem! chora o jardim
Quando marchado o jasmim
Sobre o seio lhe pendeu?
E pranteia a noite bela

Pelo astro ou a donzela
Mortos na terra ou no céu?

Choram as flores no afã
Quando a ave da manhã
Estremece, cai, esfria?
Chora a onda quando vê
A boiar um irerê
Morta ao sol do meio-dia?

Não chorem!... que não morreu!
Era um anjinho do céu
Que um outro anjinho chamou!
Era uma luz peregrina,
Era uma estrela divina
Que ao firmamento voou!


Poemas e Poesias segunda, 23 de setembro de 2019

OSSA MEA (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

OSSA MEA

Alphonsus Guimaraens

 

Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar, mas que suplica.
Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica...
Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas...
Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...


Poemas e Poesias domingo, 22 de setembro de 2019

O NINHO (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

O NINHO

Adelino Fontoura

 

                    És como a doce juriti da mata,

                   Ligeira, esquiva, tímida e medrosa:

                   Foges de mim tremente e suspirosa,

                   Como quem de um perigo se recata.

 

                   Mas não sei, afinal, criança ingrata,

                   Porque foges: não sei porque amorosa

                   Tua alma casta, angélica e bondosa,

                   Com tão doce esquivança me maltrata.

 

                   Abre as asas à luz serenamente

                   E vem fugindo aos gelos do deserto

                   Buscar o sol do meu amor ardente.

 

                   Dirige para mim teu voto incerto,

                   Pois tens meu coração, pomba inocente,

                   Como um tépido ninho sempre aberto.

 


Poemas e Poesias sábado, 21 de setembro de 2019

AMOR VIOLETA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

AMOR VIOLETA

Adélia Prado

 

 
O amor me fere é debaixo do braço, 
de um vão entre as costelas. 
Atinge meu coração é por esta via inclinada. 
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele, 
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida. 

Poemas e Poesias quinta, 19 de setembro de 2019

A FLOR E A CONTE (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

A FLOR E A FONTE

Vicente de Carvalho

 

“Deixa-me, fonte!” Dizia

A flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria

Cantava, levando a flor.

 

“Deixa-me, deixa-me, fonte!”

Dizia a flor a chorar:

“Eu fui nascida no monte...

Não me leves para o mar.”

 

E a fonte, rápida e fria,

Com um sussurro zombador,

Por sobre a areia corria,

Corria levando a flor.

 

“Ai, balanços do meu galho,

Balanços do berço meu;

Ai, claras gotas de orvalho

Caídas do azul do céu!...”

 

Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror.

E a fonte, sonora e fria,

Rolava, levando a flor.

 

“Adeus, sombra das ramadas,

Cantigas do rouxinol;

Ai, festa das madrugadas,

Doçuras do pôr do sol;

 

Carícias das brisas leves

Que abrem rasgões de luar...

Fonte, fonte, não me leves,

Não me leves para o mar!”

                    *

As correntezas da vida

E os restos do meu amor

Resvalam numa descida

Como a da fonte e da flor...


Poemas e Poesias quarta, 18 de setembro de 2019

DONA CHICA (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

 

DONA CHICA

Raul Bopp

A negra serviu o café.

.

– A sua escrava tem uns dentes bonitos dona Chica.
– Ah o senhor acha?

.

Ao sair
a negra demorou-se com um sorriso na porta da varanda.

.

Foi cantando uma cantiga casa-a-dentro.

.

Ai do céu caiu um galho
Bateu no chão. Desfolhou.

.

Dona Chica não disse nada.
Acendeu ódios no olhar.

.

Foi lá dentro. Pegou a negra.
Mandou metê-la no tronco.
– Iaiá Chica não me mate!
– Ah! Desta vez tu me pagas.

.

Meteu um trapo na boca.
Depois
quebrou os dentes dela com um martelo.

.

– Agora
junte esses cacos numa salva de prata
e leve assim mesmo,
babando sangue,
pr’aquele moço que está na sala, peste!


Poemas e Poesias segunda, 16 de setembro de 2019

EPÍLOGO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

EPÍLOGO

Quintino Cunha

 


Só de um lance de vista a ideia morre,
Sem ver no Solimões grandeza alguma;
Porque assim de relance, mal parece
Um vasto espelho de moldura verde
Onde o Céu tem costume de mirar-se!

Vede-o alternadamente:

                                      É um mar tranquilo
Onde passa um navio. Agora, é a praia
— Branca toalha de Deus ao Sol corando,
Uma igara, que o desça, a vida lembra
No declive do mundo enfurecido,
E ora tão calmo, das paixões humanas.
A garça que ali pouse, é o ponto branco
Da pulcra proposição: — a ave é a poesia.
Se porventura o vento o agita, um coro
De banzeiros, em lágrimas desfeito,
Ecoa ao longe, no íntimo das matas!

O louro-rosa, o cedro, a samaumeira,
Quando derivam na voraz corrente,
Lembram destroços de cruel derrota
Da mais tremenda luta pela vida.
Quando à margem fervilha a piracema
De jaraquis, pacus, mandis, sardinhas,
Frágeis, cambiantes, madreperoladas,
Vezes subindo à flor d'água, e de novo,
Quando o dourado ou o boto lhes persegue,
Caindo como bátegas de chuva
Na coberta de zinco das barracas,
Igualando-os, no meio, a piraiua
Como a queda de um'árvore na mata,
Ou mesmo a pirarara, arremedando
As lavadeiras quando batem roupa;
Quando estrugindo o jacaré bubuia,
Na defesa dos filhos pequeninos,
Se humana voz em terra os arremeda;
Quando, à mercê da simples correnteza,
De bubuia, nas árvores que descem,
As gaivotas também descem reunidas,
Como um bando de náufragos, que buscam
Salvação nos destroços, que flutuam,
Da galera infeliz da humanidade,
Se tal galera a mata imensa fosse;
E quando outras no ar recurvam voares
E o corta-água e a ariramba gaivoteiam,
Assim, sim, já se pode ter em mente
Que o território desse rio imenso,
Sem marcos miliários confinantes,
É um país ideal, cheio de assombros,
E de verdades e d'encantos cheio!

Vede-o profundamente:

                                      No seu seio
Milhões de seres encantados moram,
Mitologicamente idealizados:
De Uirará, de Unutara, de Honorato,
À virginal Ararambóia, à Iara,
Iara — a formosa imperatriz netúnica,
A sereia fluvial, por cujo canto,
Perdera a fala a fauna ictiológica,
Subjugando-a, vencendo-a, dominando-a,
Como o próprio Tupã, do alto de Iuaca

Na pátria pois das ilhas flutuantes,
Onde Boiaçu nos dera a noite.
E onde Membiíra rosna como a onça,
Quando os botos suspiram como gente,
Os botos, filhos da encantada corte,
Nesse canto, patrícios, a poesia
Não flutua, mas vive como os peixes!...
.............................................................

Dá-me, Amor Pátrio, com que agora o veja
De um moroso galerno, espanejado,
Como uma taça imensa, onde Iara beba
À saúde do Sol que nos aclara,
Com esse licor original de sombras
— Sombras de nuvens, dissolvidas n'água!


Poemas e Poesias domingo, 15 de setembro de 2019

O SABIÁ E O GAVIÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O SABIÁ E O GAVIÃO

Patativa do Assaré

 


Eu nunca falei a toa
Sou um cabôco rocêro,
Que sempre das coisa boa
Eu  tive um certo tempero.
Não falo mal de ninguém,
Mas vejo que o mundo tem,
Gente que não sabe amá,
Não sabe fazê carinho,
Não qué bem a passarinho,
Não gosta dos animá.

Já eu sou bem deferente,
A coisa mió que eu acho
É num dia muito quente
Eu ia me sentá debaixo
De um copado juazêro,
prá escutá prazentêro
Os passarinho cantá,
Pois aquela poesia
Tem até a melodia
Dos anjo celestiá.

Não há frauta nem piston
Das banda ricas e granfina
Prá ser sonoroso e bom
Como o galo de campina,
Quando começa a cantá
Com sua voz naturá,
Onde a inocença se encerra,
Cantando na mesma hora
Que aparece a linda orora
Bejando o rosto da terra.

O sofreu e a patativa
Com o canaro e o campina
Tem canto que me cativa,
Tem musga que me domina,
E inda mais o sabiá,
Que tem premêro lugá.
É o chefe dos serestêro,
Passo nenhum lhe condena,
Ele é dos musgo da pena
O maió do mundo intêro.

Eu escuto aquilo tudo,
Com grande amô, com carinho,
Ma, as vez, fico sisudo,
Pruquê cronta os passarinho
Tem o gavião maldito,
Que, além de munto esquisito,
Como igual eu nunca vi,
Esse monstro miserave
É o assassino das ave
Que canta prá gente uvì.

Muntas vez, jogando o bote,
Mais pió do que a serpente,
leva dos ninho os fiote
Tão lindo e tão inocente.
Eu comparo o gavião
Com esses farão cristão,
Do instinto crué e feio,
Que sem liga gente pobre
Qué fazê papé de nobre
Chupando o suó alêio.
(...)
Quando eu era pequenino,
Saí um dia a vagá
Pelos mato sem destino,
Cheio de vida a iscutá
A mais subrime beleza
Das musga da natureza
E bem no pé d eum serrote
Achei num pé de juá
Um ninho de sabiá
Com dois mimoso fiote.
(...)
Eu mesmo não sei dizê
O quanto eu tava contente
Não me cansava de vê
Aqueles dois inocente.
Quanto mais dia passava,
Mais bonito eles ficava,
Mais maió e mais sabido,
Pos não tava mais pelado,
Os seus corpinho rosado
Já tava tudo vestido.

Mais tudo na vida passa,
Amanheceu certo dia
O mundo todo sem graça,
Sem graça e sem poesia.
(...)
Na copa dos arvoredo,
 Passarinho não cantava
Naquele dia bem cedo,
Somente a coâ mandava
Sua cantiga medonha.
A manhã tava tristonha
como casa de viúva,
Sem prazê, sem alegria
E de quando em vez caia
um sereninho de chuva.
(...)
Mas porém, eu satisfeito,
Sem com nada me importá,
Saí correndo aos pinote,
E fui repará os fiote
No ninho do sabiá.
(...)
Quage que eu dava um desmaio,
Naquele pé de juá
E lá da ponta da de um gaio,
Os dois véio sabiá
Mostrava no triste canto
Uma mistura de pranto,
Num tom penoso e funéro,
Parecendo mãe epai,
Na hora que o fio vai,
Se interrá no cimitéro.

Assistindo aquela cena,
Eu juro pelo Evangéio
Como solucei com pena
Dos dois passarinho véio
E ajudando aquelas ave,
Nesse ato desagradave,
Chorei fora do comum;
Tão grande desgosto tive,
Que o meu coração sensive
Omentou seus baticum.

E eu com o maió respeito
E com a suspiração perra,
As mão posta sobre o peito
E os dois juêio na terra,
Com uma dó que consome,
Pedi logo em santo nome
Do nosso Deus Verdadeiro,
Que tudo ajuda e castiga:
Espingarda te preciga,
Gavião arruacêro!
(..)
 Daquele dia azalado,
Quando eu sai animado
E andei bem meia légua
Prá beijá meus passarinho
E incrontei vazio o ninho!
Gavião fi duma égua!


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