Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias domingo, 08 de outubro de 2023

A MORTE DO PINTAINHO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MORTE DO PINTAINHO

Vinícius de Moraes

 

 

 

Quem matou o pintainho? 
Eu, disse o pato 
Com meu pé chato 
Eu matei o pintainho. 

Quem viu ele morto? 
Eu, disse o mocho 
Com meu olho torto 
Eu vi ele morto. 

Quem chupou seu sangue? 
Eu, disse o morcego 
Que não sou cego 
Eu chupei seu sangue. 

Quem lhe deu mortalha? 
Eu, disse a aranha 
Com teia e artimanha 
Eu lhe dei mortalha 

Quem vai ser o padre? 
Eu, o louva-a-deus 
Em nome de Deus 
Eu serei o padre. 

Quem será o sacrista? 
Eu, disse o frango 
Com a minha crista 
Eu serei o sacrista. 

Que leva o caixão? 
Eu, disse o gavião 
Sei bem porque não 
Eu levo o caixão 

Quem será o coveiro? 
Eu, a toupeira 
Eu que sou coveira 
Eu serei o coveiro. 

Quem fará o túmulo? 
Eu, disse o joão-de-barro 
Pois que tenho barro 
Eu farei o túmulo. 

Quem leva a vela? 
Eu, o vaga-lume 
Eu acendo o lume 
E eu levo a vela. 

Quem vai cantar? 
Eu, o pardal 
La-la-ri-la-ra 
Eu sei cantar. 

Quem leva as coroas? 
Eu, disse o cisne 
Já que não dou rima 
Eu levo as coroas. 

Quem toca o sino? 
Disse o suíno: 
Eu mais o boi 
Nós tocamos o sino. 

Quem vai na frente? 
Eu, o periquito 
Porque sou bonito 
Eu vou na frente. 

Todo o pássaro do ar 
Foi chorar lá no seu ninho 
Ao ouvir tocar o sino 
Pelo pobre pintainho.

 


Poemas e Poesias sábado, 07 de outubro de 2023

SPLEEN (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

SPLEEN

Vicente de Carvalho

 

 

Fora, na vasta noute, um vento de procela
Erra, aos saltos, uivando, em rajadas e em fúria;
E num rumor de choro, uma voz de lamúria,
Ouço a chuva a escorrer nos vidros da janela.

No desconforto do meu quarto de estudante,
Velo. Sinto-me como insulado da vida.
Eu imagino a morte assim, aborrecida
Solidão numa sombra infinita e constante...

Tu, que és forte, rebrame em fúria, natureza!
Eu, caído num fundo abismo de tristeza,
Invejo-te a expansão livre do temporal;

E, no tédio feroz que me assalta e me toma,
Sinto ansiarem-me n'alma instintos de chacal...
E compreendo Nero incendiando Roma.

 


Poemas e Poesias sexta, 06 de outubro de 2023

ZABELÊ (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

ZABELÊ

Torquato Neto

 

 

 

minha sabiá
minha zabelê
toda meia noite
eu sonho com você
se você duvida
eu vou sonhar pra você ver

minha sabiá
vem me dizer por favor
o quanto que eu devo amar
pra nunca morrer de amor
minha zabelê
vem correndo me dizer
porque eu sonho toda noite
e sonho só com você
se você não me acredita
vem pra cá
vou lhe mostrar
que riso largo é o meu sonho
quando eu sonho
com você
mas anda logo
vem que a noite
já não tarda a chegar
vem correndo
pro meu sonho escutar
que eu sonho falando alto
com você no meu sonhar


Poemas e Poesias quinta, 05 de outubro de 2023

MEMÓRIA DA ESPERASNÇA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

MEMÓRIA DA ESPERANÇA

Thiago de Mello

 

 

 

Na fogueira do que faço
por amor me queimo inteiro.
Mas simultâneo renasço
para ser barro do sonho
e artesão do que serei.
Do tempo que me devora
me nasce a fome de ser.
Minha força vem da frágil
flor ferida que se entreabre
resgatada pelo orvalho
da vida que já vivi.
Qual a flama que darei
para acender o caminho
da criança que vai chegar?
Não sei. Mas sei que já dança,
canção de luz e de sombra,
na memória da esperança.


Poemas e Poesias quarta, 04 de outubro de 2023

HARPA XXXII (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRDE)

HARPA XXXII

Sousândrade

 

 

 

Dos rubros flancos do redondo oceano
Com suas asas de luz prendendo a terra
O sol eu vi nascer, jovem formoso
Desordenando pelos ombros de ouro
A perfumada luminosa coma,
Nas faces de um calor que amor acende
Sorriso de coral deixava errante.
Em torno a mim não tragas os teus raios,
Suspende, sol de fogo! tu, que outrora
Em cândidas canções eu te saudava
Nesta hora d'esperança, ergue-te e passa
Sem ouvir minha lira. Quando infante
Nos pés do laranjal adormecido,
Orvalhado das flores que choviam
Cheirosas dentre o ramo e a bela fruta,
Na terra de meus pais eu despertava,
Minhas irmãs sorrindo, e o canto e aromas,
E o sussurrar de rúbida mangueira —
Eram teus raios que primeiro vinham
Roçar-me as cordas do alaúde brando
Nos meus joelhos tímidos vagindo.
Ouviste, sol minha'alma tênue d'anos
Toda inocente e tua, como o arroio
Em pedras estendido, em seus soluços
Andando, como o fez a natureza:
De uma luz piedosa me cercavas
Aquecendo-me o peito e a fronte bela.
Inda apareces como antigamente,
Mas o mesmo eu não sou: hoje me encontras
À beira do meu túmulo assentado
Com a maldição nos lábios branquecidos,
Azedo o peito, resfriada cinza
Onde resvalas como em rocha lôbrega:
Escurece essa esfera, os raios quebra,
Apaga-te p'ra mim, que tu me cansas!
A flor que lá nos vales levantaste
Subindo o monte, já na terra inclina.

Eu vi caindo o sol: como relevos
Dos etéreos salões, nuvens bordaram
As cintas do horizonte, e nas paredes
Estátuas negras para mim voltadas,
Tristes sombras daquelas que morreram;
Logo depois de funerais cobriu-se
Toda amplidão do céu, que recolheu-me.

 


Poemas e Poesias terça, 03 de outubro de 2023

PANDÊMICAS BOLHAS (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

PANDÊMICAS BOLHAS

Ricardo Lima

 

 

 

Bolhas, bolhas!

Aclama bolha, estoura, tola.

Murchas bolhas, não vindouras, poucas.

 

Estoura, bolhas.

Pandêmicas bolhas.

Poéticas bolhas.

 

Bolhas anis, bolhas viris.

“Rai-o-mundo” das bolhas sutis, “veronis”.

Reflexivas bolhas.

Pandêmicas bolhas.


Poemas e Poesias segunda, 02 de outubro de 2023

PLATÔNICO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

PLATÔNICO

Raul de Leôni

 

 

 

As idéias são seres superiores,
— Almas recônditas de sensitivas —
Cheias de intimidades fugitivas,
De crepúsculos, melindres e pudores.

Por onde andares e por onde fores,
Cuidado com essas flores pensativas,
Que tem pólen, perfumes, órgãos e cores
E sofrem mais que as outras cousas vivas.

Colhe-as na solidão... são obras-primas
Que vieram de outros tempos e outros climas
Para os jardins de tua alma que transponho,

Para com ela teceres, na subida,
A coroa votiva do teu Sonho
E a legenda imperial da tua Vida.


Poemas e Poesias domingo, 01 de outubro de 2023

CHIUITA E MÃE VÉIA, VÍDEO, COM PATATIVA DO ASSARÉ

CHIQUITA E MÃE VÉIA

Patativa do Assaré

 


Poemas e Poesias sábado, 30 de setembro de 2023

FULANINHA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

FULANINHA

Olegário Mariano

 

 

 

Foxtrotando pela rua
Vai Fulaninha, seminua,
Tem movimentos de onda do mar.
O corpo moço, a pele fresca,
Futurista, bataclanesca,
Chi! Eu gosto! Nem é bom falar...

Pisa a calçada, toc... toc...
No seu encalço vão a reboque
Peralvilhos, gênios do mal.
E ela nem liga... Continua
Foxtrotando pela rua...
Gentes, Que coisa mais fatal!

Figurino de dia cálido!
O seu semblante moreno-pálido
A mão de um gênio foi que compôs.
Como se chama? Vera? Estefânia?
Meu Luluzinho da Pomerânia,
Meu Luluzinho número 2!

Aonde vais, lindo vagalume?
— Vou ao Bazin comprar perfume...
Guerlain, Houbigant, Coty?
Todo o perfume é o mesmo, ardente,
E alucinante, e estuante, e quente,
Quando o perfume vem de ti.

— Meu bizarro João da Avenida!
Já ficou bom daquela ferida
Que lhe abriram no coração?
— Há muito tempo estou curado.
Por que falar-me do Passado?
E ela pôs os olhos no chão.

E dizer que tu foste... Perdoa...
— Pr'a que dizer? A lembrança é boa
— Lembrar é falta de educação.
— Mas a saudade purifica...
O sofrimento é o único bem que fica
Para a volúpia do perdão!


Poemas e Poesias sexta, 29 de setembro de 2023

AS CRUZADAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

AS CRUZADAS

Olavo Bilac

 

 

 

Fulge-te o morrião sobre o cabelo louro,
E avultas na moldura, alto, esbelto e membrudo,
Guerreiro que por Deus abandonaste tudo,
Desbaratando o Turco, o Sarraceno e o Mouro!
Brilha-te a lança à mão, presa ao guante de couro.
Nos peitorais de ferro arfa-te o peito ossudo,
E alça-se-te o brasão sobre a chapa do escudo,
Nobre: - em campo de blau sete besantes de ouro.
"Diex le volt!" E, barão entre os barões primeiros
Foste, através da Europa, ao Sepulcro ameaçado.
Dentro de um turbilhão de pajens e escudeiros...
E era-te o gládio ao punho um relâmpago ardente!
E o teu pendão de guerra ondeou, glorioso, ao lado
Do pendão de Balduíno, imperador do Oriente.

Poemas e Poesias quinta, 28 de setembro de 2023

O TEMPO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA) - VÍDEO, NARRAÇÃO DE MARCELL MENDONÇA

 


Poemas e Poesias quarta, 27 de setembro de 2023

ESTRADA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

ESTRADA

Manuel Bandeira

 

 

 

Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.

Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! Que a vida passa!
E a mocidade vai acabar.


Poemas e Poesias terça, 26 de setembro de 2023

O PALHAÇO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O PALHAÇO

Manoel de Barros

 

 

 

Gostava só de lixeiros crianças e árvores
Arrastava na rua por uma corda uma estrela suja.
Vinha pingando oceano!
Todo estragado de azul.


Poemas e Poesias segunda, 25 de setembro de 2023

NO ALTAR DA PÁTRIA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

NO ALTAR DA PÁTRIA

Júlio Dinis

 

 

 

 

(Ao meu amigo João Marques Nogueira
Uma)

1

Tinge do oriente as serras
O matutino alvor;
E do clarim das guerras
Se ouve o mortal clangor.

— «Ai, grata paz dos lares, Adeus, força é partir.
Ó sombra dos pomares! Ó rosas a florir!

«As hostes reunidas Chamam-me a combater, Ai, longas avenidas, Tornar-vos-ei
a ver ?

«Adeus, loucos amores! Adeus, beijos febris, Adeus, mudos verdores,
Que em sombras os encobris.»
— «Ô mãe, dá-me uma espada
Oiço da Pátria a voz!»
— «Ei-la. É imaculada, Era a de teus avós!»

— «Pura a trarei, voltando… Se não morrer ali.»
— «Vai! disse a mãe, chorando, Eu rezarei por ti.»

— «Filho, meu filho, espera! Não me ouve já. Partiu!»
E o ardor que a sustivera
De todo se extinguiu.

No campo já se escuta Das alas o marchar. Que agigantada luta Além
se vai travar?

Dá-se o sinal! Furiosas Partem as legiões; Encontram-se raivosas
Bramem como os leões.

Ai, que tinir de espadas! Que estrépito fatal!
Que vozes angustiadas
Se escutam no arraial!

O sangue rutilante Inunda e tinge o chão; Aos ais do agonizante
Responde a imprecação.

 

Em pé, os combatentes, Perdidos os corcéis, Cingem-se quais
serpentes Em pérfidos anéis.

A luta é braço a braço, A golpes de punhais;
Se caem de cansaço, Não se levantam mais.

A luta é peito a peito, Terrível e cruel!
Às cãs não há respeito, À dor não
há quartel

Findou! Tranqüilo é tudo… Já tudo emudeceu.
O campo é triste e mudo; É triste e escuro o céu!

A custa de mil vidas Salvou-se a Pátria enfim! Mas porque são
sentidas As vozes do clarim?

As hostes vitoriosas Porque tão tristes vêm? Ai, que ânsias
dolorosas Sentia a pobre mãe!

Passa a primeira fila… Mísera, que o não vês!… Outra,
outra mais. Vacila… Cresce-lhe a palidez!

Olha-as uma por uma, E a última passou;
E delas em nenhuma
Inquieta o filho achou!

E o céu mais se escurece ; O campo é envolto em pó
; E a triste permanece Absorta, muda e só I

Que solidão de morte! Que erma a planície jaz! Dorme no campo
o forte, Sono de glória e paz.

Dorme a valente raça
De intrépidos heróis!
Cegos, ao sol que passa
Saúdam novos sóis.

Que sepulcral figura
Se adianta além subtil;
Tão cheio de amargura
O gesto e o olhar febril!

À ensangüentada arena Os passos seus conduz; Raiou sobre esta
cena Da Lua a tarda luz.

Súbito em desvario
Solta um sentido ai,
Junto a um cadáver frio
Desfeita em pranto cai

«És tu! és tu? ai, filho! Ai, como te encontrei!
Como estão já sem brilho
Os olhos que eu beijei!

«Vai, sombra idolatrada, À tua Pátria, aos Céus!»
Cinge-lhe ao peito a espada; Morre ao dizer-lhe: < Adeus!»


Poemas e Poesias domingo, 24 de setembro de 2023

ZUMBI (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LMA)

ZUMBI

Jorge de Lima

 

Em meu torrão natal — Imperatriz —,

nas serras da Barriga e da Juçara,

um homem negro, muito negro, quis

mostrar ao mundo que tinha alma clara.

 

E tem o sonho que Platão sonhara: —

que um sonho nobre não possui matiz.

(O sol d’Egina é o mesmo sol do Saara,

da Senegâmbia, de qualquer país).

 

Em mil seiscentos e noventa e sete,

galgam o topo da montanha a pique,

os homens brancos de Caetano e Castro.

 

E o negro herói que não se curva e inflete,

faz-se em pedaços para que não fique

com os homens brancos, o seu negro rastro…

 


Poemas e Poesias sábado, 23 de setembro de 2023

UMA FACA SÓ LÁMINA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

UMA FACA SÓ LÂMINA

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

 

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A.
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B.
Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)

C.
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D.
Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)

E.
Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja em algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que esta tem as mãos férteis.
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.

F.
Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja mesmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.

G.
Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.

H.
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I.
Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.

*

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,
prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la

toda imagem rebenta.

 


Poemas e Poesias sexta, 22 de setembro de 2023

HOJE, ESTOU TRISTE (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

HOJE, ESTOU TRISTE

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Amor… Hoje, estou triste… Nesses dias
a vida de repente se reduz
a um punhado de inúteis fantasias…
… Sou uma procissão só de homens nus…

Olho as mãos, minhas pobres mãos vazias
sem esperas, sem dádivas, sem luz,
que hão semear vagas melancolias
que ninguém vai colher, mas que compus…

Amor, estou cansado, e amargo, e só…
Estou triste mais triste e pobre do que Jó,
– por que tentar um gesto? E para quê?

Dê-me, por Deus, um trago de esperança…
Fale-me, como se fala a uma criança
do amor, do mar, das aves… de você!


Poemas e Poesias quinta, 21 de setembro de 2023

PORQUE HÁ DESEJO EM MIM (POEMA DA PAULISTA HILDA HIST)

PORQUE HÁ DESEJO EM MIM

Hilda Hilst

 

 

 

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Poemas e Poesias quarta, 20 de setembro de 2023

MESTRE SILÊNCIO (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

MESTRE SILÊNCIO

Hermes Fontes

 

 

 

É a ti, Silêncio, amigo e mestre! é a ti que devo
a glória! a ti e à tua esposa, a Solidão!
Pois, indiretamente, é teu todo esse enlevo
das flores que ando a abrir, dos frutos que elas dão!
 
Procuro em ti, contigo, o quatrifólio trevo
da Arte! tudo o que penso, é ouro do teu filão.
Silêncio, vêm de ti o que falo e o que escrevo,
meu professor de calma e de meditação!
 
Paraninfas o idílio oculto à alma que cisma;
paraninfas a fé, no êxtase religioso
e elaboras a luz no sonho, a luz do Ideal!
 
E a luz é mais cambiante e irial sob o teu prisma;
e a paz é mais feliz… ó Silêncio! ó repouso
dos nervos! ó crysol da Vida-Espiritual!
 

Poemas e Poesias terça, 19 de setembro de 2023

HUMORISMO (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

HUMORISMO

Guilherme de Almeida

 

 

 

 

Sossego macio da tarde.
Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.

E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos
vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.


Poemas e Poesias segunda, 18 de setembro de 2023

REGRESSO AO LAR (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

 

REGRESSO AO LAR

Guerra Junqueiro

 

 

 

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?...há trinta? Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para eu me lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago damargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias dastros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!

Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Cante-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minhalma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...


Poemas e Poesias domingo, 17 de setembro de 2023

EM SONDA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

EM SONDA

Francisca Júlia

 

 

 

Quieta, enrolada a um tronco, ameaçadora e hedionda,
A boa espia ... Em cima estende-se a folhagem
Que um vento manso faz oscilar, de onda em onda,
Com a sua noturna e amorosa bafagem.

Um luar mortiço banha a floresta de Sonda,
Desde a copa da faia à esplêndida pastagem;
O ofidiano, escondido, olhos abertos, sonda ...
Vai passando, tranqüilo, um búfalo selvagem.

Segue o búfalo, só ... mas suspende-lhe o passo
O ofidiano cruel que o ataca de repente,
E que o prende, a silvar, com suas roscas de aço.

Tenta o pobre lutar; os chavelhos enresta;
Mas tomba de cansaço e morre ... Tristemente
No alto se esconde a lua, e cala-se a floresta ..


Poemas e Poesias sábado, 16 de setembro de 2023

ODOR DOS MANACÁS (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

ODOR DOS MANACÁS

Gilka Machado

 

 

 

De onde vem esta voz, este fundo lamento
com vagas vibrações de violino em surdina?
De onde vem esta voz que, nas asas, o vento
me traz, na hora violácea em que o dia declina?

Esta voz vegetal, que o meu olfato atento
ouve, certo é a expansão de uma mágoa ferina,
é o odor que os manacás soltam, num desalento,
sempre que a brisa os plange e as frondes lhes inclina.

Creio, aspirando-o, ouvir, numa metempsicose,
a alma errante e infeliz de uma extinta criatura
chamar ansiosamente outra alma que a despose...

Uma alma que viveu sozinha e incompreendida,
mas que, mesmo gozando uma vida mais pura,
inda chora a ilusão frustada noutra vida.


Poemas e Poesias sexta, 15 de setembro de 2023

DA MINHA JANELA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

DA MINHA JANELA

Florbela Espanca

 

 

 

Mar alto! Ondas quebradas e vencidas
Num soluçar aflito, murmurado..
Voo de gaivotas, leve, imaculado,
Como neves nos píncaros nascidas!

Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
Batendo ainda num arfar pausado...
Ó meu doce poente torturado
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!

Meu verso de Samain cheio de graça,
Inda não és clarão já és luar
Como um branco lilás que se desfaça!

Amor! Teu coração traga-o no peito...
Pulsa dentro de mim como este mar
Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!...


Poemas e Poesias quinta, 14 de setembro de 2023

PRIMEIROS ANOS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

PRIMEIROS ANOS

Ferreira Gullar

 

 

 

 

Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.

 
 
 
 

Poemas e Poesias quarta, 13 de setembro de 2023

DE ONDE É QUASE O HORIZONTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DE ONDE É QUASE O HORIZONTE

Fernando Pessoa

 

 

 

De onde é quase o horizonte

Sobe uma névoa ligeira

E afaga o pequeno monte

Que pára na dianteira.

 

E com braços de farrapo

Quase invisíveis e frios

Faz cair seu ser de trapo

Sobre os contornos macios.

 

Um pouco de alto medito

A névoa só com a ver.

A vida? Não acredito.

A crença? Não sei viver.


Poemas e Poesias terça, 12 de setembro de 2023

REBATE (AOS PADRES) - (POEMA D FLUINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

REBATE (AOS PADRES)

Euclides da Cunha

 

 

 

Rebate (Aos padres)

 

Sonnez! sonnez toujours, clairons de la pensée.

  1. Hugo

 

Ó pálidos heróis! ó pálidos atletas _

Que co'a razão sondais a profundez dos Céus _

Enquanto do existir no vasto Saara enorme

Embalde procurais essa miragem _ Deus!...

A postos!... É chegado o dia do combate...

_ As frontes levantai do seio das so'idões _

E as nossas armas vede _ os cantos e as idéias,

E vede os arsenais _ cérebros e corações.

De pé... a hora soa... esplêndida a Ciência

Com esse elo _ a idéia _ as mentes prende à luz

E ateia já, fatal, a rubra lavareda

Que vai _ de pé heróis! _ queimar a vossa Cruz...

Vos pesa sobre a fronte um passado de sangue.

_ A vossa veste negra a muit'alma envolveu!

E tendes que pagar _ ah! dívidas tremendas!

Ao mundo: João Huss _ e à Ciência: Galileu.

Vós sois demais na terra!... e pesa, pesa muito

O lívido bordel das almas, das razões,

Sobre o dorso do globo _ sabeis _ é o Vaticano,

Do qual a sombra faz a noite das nações...

Depois... o século expira e... padres, precisamos

Da ciência c'o archote _ intérmino, fatal _

A vós incendiar _ aos báculos e às mitras,

A fim de iluminar-lhe o grande funeral!

Já é, já vai mui longa a vossa fria noite,

Que em frente à Consciência, soubestes, vis, tecer...

Oh treva colossal _ partir-te-á a luz...

Oh noite, arreda-te ante o novo alvorecer...

Oh vós que a flor da Crença _ esquálidos _ regais

Co'as lágrimas cruéis _ dos mártires letais _

Vós, que tentais abrir um santuário _ a cruz,

Da multidão no seio a golpe de punhais...

O passado trazeis de rastro a vossos pés!

Pois bem _ vai-se mudar o gemer em rugir _

E a lágrima em lava!... ó pálidos heróis,

De pé! que conquistar-vos vamos _ o porvir!...


Poemas e Poesias segunda, 11 de setembro de 2023

TROVAS HUMORÍSTICAS - 22 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

TROVA HUMORÍSTICA 22

Eno Teodoro Wanke

 

 

 Há gente que casa e embroma

Sem dar multiplicação

Mas simplemente se soma

À espera da divisão


Poemas e Poesias domingo, 10 de setembro de 2023

O HOMEM QUE VOLTA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

O HOMEM QUE VOLTA

Da Costa e Silva

 

 

 

Quando fui, com o meu sonho ingênuo e lindo,
Pelas estradas amplas, luminosas,
Vinham as Graças desfolhando rosas.

Ergui os olhos para os céus, sorrindo,
A beleza da vida pressentindo...

Quando vim, com o meu tédio miserando,
Pelos estreitos e áridos caminhos,
Iam as Parcas espalhando espinhos...

Baixei o olhos para o chão, chorando,
E fiquei para sempre meditando...


Poemas e Poesias sábado, 09 de setembro de 2023

BELEZA MORTA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

BELEZA MORTA

Cruz e Sousa

 

 

 

De leve, louro e enlanguescido heliantho
Tens a flórea dolencia contristada…
Ha no teu riso amargo um certo encanto
De antiga formosura desthronada.

No corpo, de um lethargico quebranto,
Corpo de essência fina, delicada,
Sente-se ainda o harmonioso canto
Da carne virginal, clara e rosada.


Sente-se o canto errante, as harmonias
Quasi apagadas, vagas, fugidias
E uns restos de clarão de Estrella accêsa…

Corno que ainda os derradeiros haustos
De opulências, de pompas e de faustos,
As relíquias saudosas da belleza.


Poemas e Poesias sexta, 08 de setembro de 2023

SONETO V (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

SONETO V

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 

Se sou pobre pastor, se não governo

Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;

Se em frio, calma, e chuvas inclementes

Passo o verão, outono, estio, inverno;

 

Nem por isso trocara o abrigo terno

Desta choça, em que vivo, coas enchentes

Dessa grande fortuna: assaz presentes

Tenho as paixões desse tormento eterno.

 

Adorar as traições, amar o engano,

Ouvir dos lastimosos o gemido,

Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

 

Seja embora prazer; que a meu ouvido

Soa melhor a voz do desengano,

Que da torpe lisonja o infame ruído.


Poemas e Poesias quinta, 07 de setembro de 2023

NUM BAIRRO MODERNO (CRÔNICA DO ORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

NUM BAIRRO MODERNO

Cesário Verde

 

 

 

Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a.
Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." È muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, ao bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
"Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!..."

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

"Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!"
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário - que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.


Poemas e Poesias quarta, 06 de setembro de 2023

QUARTO MOTIVO DA ROSA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

QUARTO MOTIVO DA ROSA

Cecília Meireles

 

 

 

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.


Poemas e Poesias segunda, 04 de setembro de 2023

A MACIEL PINHEIRO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

A MACIEL PINHEIRO

Castro Alves

 

 

 

Dieu soit en aide au pieux pèlerin.
BOUCHARD

Partes, amigo, do teu antro de águias,
Onde gerava um pensamento enorme,
Tingindo as asas no levante rubro,
Quando nos vales inda a sombra dorme...
Na fronte vasta, como um céu de idéias,
Aonde os astros surgem mais e mais...
Quiseste a luz das boreais auroras...
Deus acompanhe o peregrino audaz.

Verás a terra da infeliz Moema,
Bem como a Vênus se elevar das vagas;
Das serenatas ao luar dormida,
Que o mar murmura nas douradas plagas.
Terra de glórias, de canções e brios,
Esparta, Atenas, que não tem rivais...
Que, à voz da pátria, deixa a lira e ruge...
Deus acompanhe o peregrino audaz.

E quando o barco atravessar os mares,
Quais pandas asas, desfraldando a vela,
Há de surgir-tesse gigante imenso,
Que sobre os morros campeando vela...
Símblo de pedra, que o cinzel dos raios
Talhou nos montes, que se alteiam mais...
Atlas com a forma do gigante povo...
Deus acompanhe o peregrino audaz.

Vai nas planícies dos infindos pampas
Erguer a tenda do soldado vate...
Livre... bem livre a Marselhesa aos ecos
Soltar bramindo no feroz combate
E após do fumo das batalhas tinto
Canta essa terra, canta os seus gerais,
Onde os gaúchos sobre as éguas voam...
Deus acompanhe o peregrino audaz.

E nesse lago de poesia virgem,
Quando boiares nas sutis espumas,
Sacode estrofes, qual do rio a garça
Pérolas solta das brilhantes plumas.
Pálido moço — como o bardo errante —
Teu barco voa na amplidão fugaz.
A nova Grécia quer um Byron novo...
Deus acompanhe o peregrino audaz.

E eu, cujo peito como ua harpa homérica
Ruge estridente do que é grande ao sopro,
Saúdo o artista, que ao talhar a glória,
Pega da espada, sem deixar o escopro.
Da caravana guarda a areia a pégada:
No chão da história o passo teu verás...
Deus, que o Mazeppa nos estepes guia...
Deus acompanhe o peregrino audaz.


Poemas e Poesias domingo, 03 de setembro de 2023

O BAILE! (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

O BAILE!

Casimiro de Abreu

 

 

 

Se junto de mim te vejo
Abre-te a boca um bocejo,
Só pelo baile suspiras!
Deixas amor - pelas galas,
E vais ouvir pelas salas
Essas douradas mentiras!

Tens razão! Mais valem risos
Fingidos, desses Narcisos
- Bonecos que a moda enfeita -
Do que a voz sincera e rude
De quem, prezando a virtude,
Os atavios rejeita.

Tens razão! - Valsa, donzela,
A mocidade é tão bela,
E a vida dura tão pouco!
No burburinho das salas,
Cercada de amor e galas,
Sê tu feliz - eu sou louco!

E quando eu seja dormido
Sem luz, sem voz, sem gemido,
No sono que a dor conforta;
Ao concertar tuas tranças
No meio das contradanças
Diz tu sorrindo: "- Qu'importa?..

"Era um louco, em noites belas
"Vinha fitar as estrelas
"Nas praias, co'a fronte nua!
"Chorava canções sentidas
"E ficava horas perdidas
"Sozinho, mirando a lua!

"Tremia quando falava
"E - pobre tonto - chamava
"O baile - alegrias falsas!
"- Eu gosto mais dessas falas
"Que me murmuram nas salas
"No ritornelo das valsas. - "

Tens razão! - Valsa, donzela,
A mocidade é tão bela
E a vida dura tão pouco!
P'ra que fez Deus as mulheres,
P'ra que há na vida prazeres?
Tu tens razão... eu sou louco!

Sim, valsa, é doce a alegria,
Mas ai! que eu não veja um dia
No meio de tantas galas -
Dos prazeres na vertigem,
A tua coroa de virgem
Rolando no pó das salas!...


Poemas e Poesias sábado, 02 de setembro de 2023

SONETO DA BUSCA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PELA FILHO)

SONETO DA BUSCA

Carlos Pena Filho

 

 

Eu quase te busquei entre os bambus

para o encontro campestre de janeiro

porém, arisca que és, logo supus

que há muito já compunhas fevereiro.

 

Dispersei-me na curva como a luz

do sol que agora estanca-se no outeiro

e assim também, meu sonho se reduz

de encontro ao obstáculo primeiro.

 

Avançada no tempo, te perdeste

sobre o verde capim, atrás do arbusto

que nasceu para esconder de mim teu busto.

 

Avançada no tempo, te esqueceste

como esqueço o caminho onde não vou

e a face que na rua não passou.


Poemas e Poesias sexta, 01 de setembro de 2023

CANTO ESPONJOSO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CANTO ESPONJOSO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Bela
esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfémia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.

Umidade de areia adere ao pé.
engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.

Bela,
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.


Poemas e Poesias quinta, 31 de agosto de 2023

SONETO 006 - DOCES AGUAS E CLARAS DO MONDEGO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)
SONETO 006- DOCES ÁGUAS E CLARAS DO MONDEGO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

 

DOCES ÁGUAS E CLARAS DO MONDEGO

Soneto 006

Luís de Camões 

 

Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e perfida esperança
Longo tempo apos si me trouxe cego,

De vós me aparto, si; porém não nego
Que inda a longa memoria, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego

Bem poderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Offerecido ao mar remoto, ao vento.

Mas a alma, que de cá vos acompanha,
Nas azas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, vôa, e em vós se banha.


Poemas e Poesias quarta, 30 de agosto de 2023

CEM TROVAS - 012 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 

TROVA 012

Belmiro Braga

                

Eu não lamento o revés           
do morto que se fez pó;                             

do vivo, que espera a vez                                 
desse sim, eu tenho dó.  

 


Poemas e Poesias terça, 29 de agosto de 2023

MATER (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

MATER

Augusto dos Anjos

 

 

 

Como a chrysalida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dôres, te emergiu do ventre!

E puzeste-lhe, haurindo amplo deleite,
No labio roseo a grande têta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite
Que amamentou os éphebos de Sparta. —

Com que avidez elle essa fonte suga!
Ninguem mais com a Belleza está de accordo,
Do que essa pequenina sanguesuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!

Pois, quanto a mim, sem pretenções, comparo,
Essas humanas cousas pequeninas
A um biscuit de quilate muito raro
Exposto ahi, á amostra, nas vitrinas.

 

Mas o ramo fragilimo e venusto
Que hoje nas debeis gemmulas se esboça,
Ha de crescer, ha de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.

Clara, a atmosphera se encherá de aromas,
O Sol virá das epochas sadias.
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Ha de beijar-te as mãos todos os dias!

Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos barbaros invernos,
Relembrarás chorando o que eu te disse,
Á sombra dos sycomoros eternos!


Poemas e Poesias segunda, 28 de agosto de 2023

MALVA-MAÇÃ (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

MALVA-MAÇÃ

Álvares de Azevedo

 

 

 

De teus seios tão mimosos
Dá que eu goze o talismã!
Dá que ali repouse a fronte
Cheia de amoroso afã!
E louco nele respire
A tua malva-maçã!

Dá-me essa folha cheirosa
Que treme no seio teu!
Dá-me a folha... hei de beijá-la
Sedenta no lábio meu!
Não vês que o calor do seio
Tua malva emurcheceu?...

A pobrezinha em teu colo
Tantos amores gozou,
Viveu em tanto perfume
Que de enlevos expirou!
Quem pudera no teu seio
Morrer como ela murchou!

Teu cabelo me inebria,
Teu ardente olhar seduz,
A flor de teus olhos negros
De tu'alma raia à luz...
E sinto nos lábios teus
Fogo do céu que transluz!

O teu seio que estremeceme
Enlanguesce-me de gozo:
Há um quê de tão suave
No colo voluptuoso...
Que num trêmulo delíquio
Faz-me sonhar venturoso!

Descansar nesses teus braços
Fora angélica ventura...
Fora morrer... nos teus lábios
Aspirar tu'alma pura!
Fora ser Deus dar-te um beijo
Na divina formosura!

Mas o que eu peço, donzela,
Meus amores, não é tanto!
Basta-me a flor do seio
Para que eu viva no encanto
E em noites enamoradas
Eu verta amoroso pranto!

Oh! virgem dos meus amores,
Dá-me essa folha singela!
Quero sentir teu perfume
Nos doces aromas dela...
E nessa malva-maçã
Sonhar teu seio, donzela!

Uma folha assim perdida
De um seio virgem no afã
Acorda ignotas doçuras
Com divino talismã!
Dá-me do seio esta folha
A tua malva-maçã!

Quero apertá-la a meu peito
E beijá-la com ternura...
Dormir com ela nos lábios
Desse aroma na frescura...
Beijando-a a sonhar contigo
E desmaiar de ventura!

A folha que tens no seio
De joelhos pedirei...
Se posso viver sem ela
Não o creio! bem o sei...
Dá-ma pelo amor de Deus,
Que sem ela morrerei!...

Pelas estrelas da noite,
Pelas brisas da manhã,
Por teus amores mais puros,
Pelo amor de tua irmã,
Dá-me essa folha cheirosa...
- A tua malva-maçã!


Poemas e Poesias domingo, 27 de agosto de 2023

NAU CATARINETA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

NAU CATARINETA

Almeida Garrett

 

 

 

Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar.
Deitaram sortes à ventura
qual se havia de matar;
Logo a sorte foi cair
no capitão general.

"Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal."
"Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas,
que estão para te matar."

"Acima, acima, gajeiro,
acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal."
"Alvíssaras, capitão,
meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha
areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas,
debaixo de um laranjal.
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar."

"Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar."
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."
(...)


Poemas e Poesias sábado, 26 de agosto de 2023

SONH HUMILDE (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

SONHO HUMILDE

Alceu Wamosy

 

 

Assim te quero amar; quero adorar-te assim,
sempre de joelhos, sempre, ó mármore sagrado;
e que teu corpo ideal não seja, para mim,
mais que um horto de sonho, ou que um jardim fechado.

Em todo amor defeso há um encanto sem fim,
que o faz extreme e leal, lúcido e iluminado:
A mulher que se adora é a Torre de Marfim,
mais alta do que o mal, para além do pecado.

O amor deve viver perpetuado no sonho!
Só desejar é bom: Possuir é renunciar
à ilusão, que nos torna o desejo risonho.

Ter só teu corpo é ter um tesouro maldito;
mas, possuir-te na alma e adorar-te no olhar,
é ter o céu inteiro, é ter todo o infinito!


Poemas e Poesias sexta, 25 de agosto de 2023

HORAS MORTAS (PLEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

HORAS MORTAS

Alberto de Oliveira

 

 

 

Breve momento após comprido dia
De incômodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia.

Desta janela aberta, à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica
Mas é tão tarde! Rápido flutuas
Tornando logo à etérea imensidade;

E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel — rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.

 


Poemas e Poesias quinta, 24 de agosto de 2023

HOMENAGEM AO ITABIRANO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

HOMENAGEM AO ITABIRANO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Teu aniversário, Poeta, no escuro
não se comemora. Antes, se celebra
no claro enigma das horas.

Tentas nos fugir. Em vão.
Tua poesia nos persegue
e revertida te alcança
como o sonho persegue
o sonhador fujão.

Podes te alojar — barroco e torto —
dentro de um santo de pau oco,
como aqueles que, em Minas,
ocultam a riqueza clandestina
de seu dono. Podes fingir
a indiferença do corpo
quando se refugia no sono.

Podes partir para Buenos Aires
Bombaim
ou Tapajós.
Não te deixaremos a sós,
pois ensinaste ao leitor mudo
a emoção da própria voz.

Independente de ti,
na luz renascente do dia,
como tua poesia, teu aniversário
se irradia.
Neste dia
não há vanguarda e academia,
prosa e poesia, nem à direita
e à esquerda, ideologia.
Teus versos se instalaram
nas dobras dos lençóis e cartas,
se infiltraram nos jornais,
viraram slogans, provérbios
e senhas matinais.
Não há quem te não saiba de cor.
A abelha de teus versos
segrega em nós o nosso mel melhor.

Hoje o jornaleiro
entregará na esquina
um jornal mais leve e limpo
onde a poesia abre espaço
nas guerras do dia-a-dia.
O porteiro de teu prédio
amanhecerá engalanado
como guarda da rainha,
protegendo-te do assédio
de quem quer te ver de perto.

O carteiro de tua rua
qual hércules moderno
trará pacotes, malotes
e pirâmides de afeto.

Certo, hoje não sairás à beira-mar, puro recato.
Mas as ondas, sabidas, guardarão para amanhã
as cabriolas e saltos, que brincalhonas
darão à tua passagem
— no calçadão da avenida.

Quando nasceu o poeta? Em 1902?
No ontem de Itabira? Ou depois
que alguma poetisa se iluminou
em reunião e epifania?
Como nasceu o poeta? Antes
do primeiro poema, quando ele ardia
a dor do mundo sozinho? Ou no dia
da primeira topada da crítica
com a "pedra no meio do caminho"?

Quem é esse poeta ambíguo e exilado
no umbigo do grande mundo
como um avesso Crusoé?
Qual a sua melhor máscara?
A de Carlos? O elefante de paina?
A letra K? Ou o absurdo José?

Ah, drummontanhosa criatura,
difícil esfinge de orgulho e ferro,
ostra enrodilhada no inexistente mar de Minas.

Pena que não te veja teu pai,
nesta hora nacional. Imagino-o
chegando de chapéu, com as botas dos currais
e encontrando na sala da fazenda
essa multidão de brasileiros
a louvar o filho gauche
— franzino e tímido —
num canto do salão.

Poeta, pai involuntário
de tantos poetas voluntários.
Teus descendentes literários te saúdam
e te beijam vivo
com aquele amor, que, em Minas, contido,
só se exibe diante do morto, no imaginário.

Não podemos esperar que partas em ausências
para te amar melhor. Nosso amor
se ilumina à luz de tua presença.
O amor, como a poesia, tem urgências.
Te amamos e não te ocultamos nosso gesto.
Te amamos como indivíduo — sozinhos e discretos
ou como um grande país
— com alarde e afeto.

 


Poemas e Poesias quarta, 23 de agosto de 2023

PARA O ZÉ (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

PARA O ZÉ

Adélia Prado

 

 

 

Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe – os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.


Poemas e Poesias terça, 22 de agosto de 2023

SONETO (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

SONETO

Virgínia Victorino

 

 

 

Pelo sagrado amor que vem de ti,
amor que eu amo com amor sagrado;
pelo Ideal descoberto e realizado,
- bendita seja a hora em que te vi!

Pelas malditas horas que vivi
no desejo de amor tão desejado;
pelas horas benditas. ao teu lado,
- bendita seja a hora em que nasci!

Pelo triunfo enorme; pelo encanto
que me trouxeste, é que eu bendigo tanto
a hora suave que te viu nascer...

Amor do meu amor! Amor tão forte,
que se um dia sentir a tua morte,
será bendita a hora em que eu morrer!


Poemas e Poesias segunda, 21 de agosto de 2023

A MORT DE MEU CARNEIRNHO (POEMA DE VINÍCIUS DE MORAES, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

A MORTE DE MEU CARNERINHO

Vinícius de Moaes

 

 

 

Não teve flores 
Não teve velas 
Não teve missa 
Caixão também… 
Foi enterrado 
Junto à maré 
Por operários 
Mesmos do trem… 

A flor do orvalho 
Pendeu da nuvem 
E pelo chão 
Despetalou… 
O céu ergueu 
A hóstia do sol 
E o mar em ondas 
Se ajoelhou… 

Cortejo lindo 
Maior não houve 
Desse amiguinho: 
Iam vestidas 
Com a lã das nuvens 
Todas as almas 
Dos carneirinhos! 

Os gaturamos 
Trinaram hinos 
No altar esplêndido 
Da madrugada; 
E o vento brando 
Desfeito em rimas 
Foi badalando 
Pelas estradas!


Poemas e Poesias domingo, 20 de agosto de 2023

SONHO PÕSTUMO - I (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CAVALHO)

SONHO PÓSTUMO - I

Vicente de Carvalho

 

 

 

 

 

Poupem-me, quando morto, à sepultura: odeio

A cova, escura e fria.

Ah! deixem-me acabar alegremente, em meio

Da luz, em pleno dia. 

 

O meu último sono eu quero assim dormi-lo:

- Num largo descampado,

Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranquilo

E a primavera ao lado. 

 

Bailem sobre o meu corpo asas trêmulas, asas

Palpitando de leve,

De insetos de ouro e azul, ou rubros como brasas,

Ou claros como neve. 

 

De entre moitas em flor, oscilantes na aragem,

Húmidas e cheirosas,

Espalhando em redor frescuras de folhagem,

E perfume de rosas. 

 

Subam, jovializando o ar, canções suaves

A música sonora

Em que parece rir a alegria das aves,

Encantadas da aurora. 

 

E cada flor que um galho acaso dependura

À beira dos caminhos

Entreabra o seio ao sol, às brisas, à doçura

De todos os carinhos. 

 

Passe em redor de mim um frêmito de gozo

E um calor de desejo,

E soe o farfalhar das árvores, moroso

Como o rumor de um beijo. 

 

Palpite a natureza inteira, bela e amante,

Voluptuosa e festiva.

E tudo vibre e esplenda, e tudo fulja e cante,

E tudo sonhe e viva. 

 

A sepultura é noite onde rasteja o verme...

Ó luz que eu tanto adoro,

Amortalha-me tu! E possa eu desfazer-me

No ar claro e sonoro!


Poemas e Poesias sábado, 19 de agosto de 2023

TRÊS DA MADRUGADA (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

TRÊS DA MADRUGADA

Torquato Neto

 

 

 

Três da madrugada
Quase nada
Na cidade abandonada
Nessa rua que não tem mais fim
três da madrugada
tudo é nada
a cidade abandonada
e essa rua não tem mais
nada de mim...
nada
noite alta madrugada
na cidade que me guarda
e esta cidade me mata
de saudade
é sempre assim...
triste madrugada
tudo é nada
minha alegria cansada
e a mão fria mão gelada
toca bem leve em mim
saiba:
meu pobre coração não vale nada
pelas três da madrugada
toda palavra calada
nesta rua da cidade
que não tem mais fim
que não tem mais fim

 


Poemas e Poesias sexta, 18 de agosto de 2023

FLOR D AÇUCENA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

FLOR DE AÇUCENA

Thiago de Mello

 

 

 

Quando acariciei o teu dorso,
campo de trigo dourado,
minha mão ficou pequena
como uma flor de açucena
que delicada desmaia
sob o peso do orvalho.
Mas meu coração cresceu
e cantou como um menino
deslumbrado pelo brilho
estrelado dos teus olhos.

 


Poemas e Poesias quinta, 17 de agosto de 2023

HARPA XXIV - O INVERNO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

HARPA XXIV - O INVERNO

Sousândrade

 

 

 

(...)

Salve! felicidade melancólica,
Doce estação da sombra e dos amores-
Eu amo o inverno do equador brilhante!
A terra me parece mais sensível.
Aqui as virgens não se despem negras
À voz do outono desdenhoso e déspota,
Ai delas fossem irmãs, filhas dos homens!
Aqui dos montes não nos foge o trono
Dessas aves perdidas, nem do prado
Desaparece a flor. A cobra mansa,
Cor d'azougue, tardia, umbrosa e dúctil,
No marfim do caminho endurecido
Serpenteia, como onda de cabelos

Da formosura no ombro. À noite a lua,
Qual minha amante d'inocente riso,
Co'a face branca assenta-se nas palmas
Da montanha estendendo os seus candores,
Mãe da poesia, solitária, errante:
O sol nem queima o céu como os desertos,
Simpáticas manhãs é sempre o dia.

Geme às canções d'aldeia apaixonadas
Mui saudoso violão: as vozes cantam
Com náutico e celeste modulado.
Chama às tácitas asas o silêncio
Ao repouso, aos amores: as torrentes
Prolongam uma saudade que medita:
Vaga contemplação descora um pouco
O adolescente e o velho: doce e triste
Eu vejo o meu sentir a natureza
Respirar do equador, selvagem bela
De olhos alados de viver, à sombra
Adormecendo d'árvore espaçosa.

(...)


Poemas e Poesias quarta, 16 de agosto de 2023

CALA, ALMA CALMA (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

CALA, ALMA CALMA

Ricardo Lima

 

 

 

Intenso, eferve!

Reclama, afaga a alma.

Raza calma, maltrata a alma.

Cala, alma calma.

Insatifeita alma, acalma alma.


Poemas e Poesias terça, 15 de agosto de 2023

PARA A VERTIGEM (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

PARA  A VERTIGEM!

Raul de Leôni

 

 

 

Alma em teu delirante desalinho,
Crês que te moves espontaneamente,
Quando és na Vida um simples rodamoinho,
Formado dos encontros da torrente!

Moves-te porque ficas no caminho
Por onde as cousas passam, diariamente:
Não é o Moinho que anda, é a água corrente
Que faz, passando, circular o Moinho...

Por isso, deves sempre conservar-te
Nas confluências do Mundo errante e vário.
Entre forças que vem de toda parte.

Do contrário, serás, no isolamento,
A espiral, cujo giro imaginário
É apenas a Ilusão do Movimento!...


Poemas e Poesias segunda, 14 de agosto de 2023

VACA ESTRELA E BO FUBÁ (POEMA DO CEASRENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

VACA ESTRELA E BOI FUBÁ

Patativa do Assaré

 

 

 

Seu doutó me dê licença pra minha história contar.
Hoje eu tô na terra estranha e é bem triste o meu penar
Mas já fui muito feliz vivendo no meu lugar.
Eu tinha cavalo bão, gostava de campear.
E todo dia aboiava na porteira do currá.

Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
Ô ô ô ô Boi Fubá.

Eu sou fio do Nordeste , não nego meu naturá
Mas uma seca medonha me tangeu de lá pra cá
Lá eu tinha o meu gadinho, num é bom nem imaginar,

Minha linda Vaca Estrela e o meu belo Boi Fubá
Quando era de tardezinha eu começava a aboiar

Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
Ô ô ô ô Boi Fubá.

Não nasceu capim no campo para o gado sustentar
O sertão esturricou, fez os açude secar
Morreu minha Vaca Estrela, se acabou meu Boi Fubá
Perdi tudo quanto tinha, nunca mais pude aboiar

Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
Ô ô ô ô Boi Fubá.

Hoje nas terra do sul, longe do torrão natá
Quando eu vejo em minha frente uma boiada passar,
As água corre dos óio, começo logo a chorá
Lembro a minha Vaca Estrela e o meu lindo Boi Fubá
Com saudade do Nordeste, dá vontade de aboiar

Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
Ô ô ô ô Boi Fubá.


Poemas e Poesias domingo, 13 de agosto de 2023

DESLUMBRAMENTO (POEMA DO PERNABUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

 

DESLUMBRAMENTO

Olegário Mariano

 

 

É amor? Não sei. Esta intranquilidade,
Este gozo na dor, esta alegria
Triste que vem de manso e que me invade
A alma, enchendo-a e tornando-a mais vazia;

Este cansaço extremo, esta saudade
De uma cousa que falta à vida… O dia
Sem sol, as noites ermas, a ansiedade
Que exalta e a solidão que anestesia,

É amor. Egoísmo de sofrer sozinho,
De as penas esconder do humano açoite,
De transformar as pedras do caminho

Em carícias sutis para colhê-las
E andar como um sonâmbulo, na noite,
Escancarando os olhos às estrelas …


Poemas e Poesias sábado, 12 de agosto de 2023

OS BÁRBAROS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

OS BÁRBAROS

Olavo Bilac

 

 

 

Ventre nu, seios nus, toda nua, cantando
Do esmorecer da tarde ao ressurgir do dia,
Roma lasciva e louca, ao rebramar da orgia,
Sonhava, de triclínio em triclínio rolando.

Mas já da longe Cítia e da Germânia fria,
Esfaimado, rangendo os dentes, como um bando
De lobos o sabor da presa antegozando,
O tropel rugidor dos Bárbaros descia.

Ei-los! A erva, aos seus pés, mirra. De sangue cheios
Turvam-se os rios. Louca, a floresta farfalha…
E ei-los, – torvos, brutais, cabeludos e feios!

Donar, Pai da Tormenta, à frente deles corre;
E a ígnea barba do deus, que o incêndio ateia e espalha,
Ilumina a agonia a esse império que morre…


Poemas e Poesias sexta, 11 de agosto de 2023

O MORTO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

O MORTO

Mário Quintana

 

 

 

Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco…
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!


Poemas e Poesias quinta, 10 de agosto de 2023

EPÍGRAFE (POEMA DO PERNAAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

EPÍGRAFE

Manuel Bandeira

 

 

 

Sou bem-nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

 

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração,

Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

 

Turbou, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó -

Ah, que dor!

                      Magoado e só,

- Só! - meu coração ardeu:

 

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

- Esta pouca cinza fria.


Poemas e Poesias quarta, 09 de agosto de 2023

O MURO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O MURO

Manoel de Barros

 

 

 

Não possuía mais a pintura de outros tempos.
Era um muro ancião e tinha alma de gente.
Muito alto e firme, de uma mudez sombria.

Certas flores do chão subiam de suas bases
Procurando deitar raízes no seu corpo entregue ao tempo.
Nunca pude saber o que se escondia por detrás dele.
Dos meus amigos de infância, um dizia ter violado tal
segredo,
E nos contava de um enorme pomar misterioso.

Mas eu, eu sempre acreditei que o terreno que ficava atrás
do muro era um terreno abandonado!


Poemas e Poesias terça, 08 de agosto de 2023

MORENA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

MORENA

Júlio Dinis

 

 

 

Morena, morena
Dos olhos castanhos,
Quem te deu morena,
Encantos tamanhos?

 

Encantos tamanhos

Não vi nunca assim.

Morena, morena
Tem pena de mim.

 

Morena, morena
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.

 

São os meus pecados

Uns olhos assim.

Morena, morena
Tem pena de mim.

 

Morena, morena

Dos olhos galantes,

Teus olhos morena
São dois diamantes.

 

São dois diamantes

Olhando-me assim.

Morena, morena

Tem pena de mim.

 

Morena, morena
Dos olhos morenos,
O olhar desses olhos
Concede-me ao menos.

 

Concede-me ao menos

Não sejas assim.

Morena, morena
Tem pena de mim.


Poemas e Poesias segunda, 07 de agosto de 2023

VEREIS QUE O OEMA CRESCE INDEPENDENTE (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

VEREIS QUE O POEMA CRESCE INDEPENDENTE

Jorge de Lima

 

 

 

Vereis que o poema cresce independente

e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,

algas e peixes lívidos sem dentes,

veleiros mortos, coisas imprecisas,

 

coisas neutras de aspecto suficiente

a evocar afogados, Lúcias, Isas,

Celidônias... Parai sombras e gentes!

Que este poema é poema sem balizas.

 

Mas que venham de vós perplexidades

entre as noites e os dias, entre as vagas

e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...

 

Qualquer poema é talvez essas metades:

essas indecisões das coisas vagas

que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.


Poemas e Poesias domingo, 06 de agosto de 2023

TECENDO A MANHÃ (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

TECENDO A MANHÃ

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


Poemas e Poesias sábado, 05 de agosto de 2023

GOSTO QUANDO ME FALAS DE TI (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

GOSTO QUANDO ME FALAS DE TI

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Gosto quando me falas de ti... e vou te percorrendo
e vou descortinando a tua vida
na paisagem sem nuvens, cenário de meus desejos
[tranqüilos

Gosto quando me falas de ti... e então percebo
que antes mesmo de chegar, me adivinhavas,
que ninguém te tocou, senão o vento
que não deixa vestígios, e se vai
desfeito em carícias vãs...

Gosto quando me falas de ti... quando aos poucos a luz
vasculha todos os cantos de sombra, e eu só te encontro
e te reencontro em teus lábios, apenas pintados,
maduros,
mas nunca mordidos antes da minha audácia.

Gosto quando me falas de ti... e muito mais adiantas
em teus olhos descampados, sem emboscadas,
e acenas a tua alma, sem dobras, como um lençol
distendido,
e descortino o teu destino, como um caminho certo, cuja
primeira curva
foi o nosso encontro.

Gosto quando me falas de ti... porque percebo que te
[desnudas
como uma criança, sem maldade,
e que eu cheguei justamente para acordar tua vida
que se desenrola inútil como um novelo
que nos cai no chão..."


Poemas e Poesias sexta, 04 de agosto de 2023

POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

POEMA AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO

Hilda Hilst

 

 

 

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.

***********

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.


Poemas e Poesias quinta, 03 de agosto de 2023

MÃE (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

MÃE

Hermes Fontes

 

 

 

Para dizer quem foi a minha mãe, não acho
Uma palavra própria, um pensamento bom
Diógenes — busco-o em vão; falta-me a luz de um facho
— Se acho som, falta a luz; se acho luz, falta o som!


Teu nome — ó minha mãe — tem o sabor de um cacho
De uvas diáfanas, cor de ouro e pérola, com
Polpa de beijos de anjo... ouvi-lo é ouvir um sacho
Merencóreo, a rezar, no seu eterno tom. ..


Minha mãe! Minha mãe! Eu não fui qual devera.
Morreste e eu não bebi nos teus lábios de cera
A doçura que as mães, ainda mortas, contêm...


Ao pé de nossas mães — todos nós somos crentes...
Um filho que tem mãe — tem todos os parentes...
— E eu não tenho por mim, ó minha mãe, ninguém!

 


Poemas e Poesias terça, 01 de agosto de 2023

HARMONIA VELHA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

HARMONIA VELHA

Guilherme de Almeida

 

 

 

O teu beijo resume
Todas as sensações dos meus sentidos
A cor, o gosto, o tato, a música, o perfume
Dos teus lábios acesos e estendidos
Fazem a escala ardente com que acordas o fauno encantador
Que, na lira sensual de cinco cordas,
Tange a canção do amor!

E o tato mais vibrante,
O sabor mais sutil, a cor mais louca,
O perfume mais doido, o som mais provocante
Moram na flor triunfal da tua boca!
Flor que se olha, e ouve, e toca, e prova, e aspira;
Flor de alma, que é também
Um acorde em minha lira,
Que é meu mal e é meu bem...

Se uma emoção estranha
o gosto de uma fruta, a luz de um poente -
chega a mim, não sei de onde, e bruscamente ganha
qualquer sentido meu, é a ti somente
que ouço, ou aspiro, ou provo, ou toco, ou vejo...
E acabo de pensar
Que qualquer emoção vem de teu beijo
Que anda disperso no ar...


Poemas e Poesias segunda, 31 de julho de 2023

O TEU ANIVERSÁRIO (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

O TEU ANIVERSÁRIO

Guerra Junqueiro

 

 

 

Pediste-me sorrindo, ó minha flor gentil,
Uns versos às tuas vinte alvoradas de Abril.
Vinte anos já!... não creio, estás equivocada...
Enganas-te. Eu irei perguntar à alvorada
Quantas vezes pousou em êxtase, ao de leve,
A sua boca de rosa em tua fronte de neve.
Vinte anos! Podes crer, pomba que eu idolatro,
Que se o corpo fez vinte, a alma, não: fez quatro.
A tua alma nasceu inefável, divina,
Para ser sempre grande e sempre pequenina.
É como a estrela d'alva; enche o seu esplendor
O Mundo, e ela não enche o cálix duma flor!...


Poemas e Poesias domingo, 30 de julho de 2023

EGITO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

EGITO

Francisca Júlia

 

 

 

No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito;
Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno;
Um velho ibe somente arranca um raro piorno
Que cresce pelos vãos das lájeas de granito.

A aura branda, que vem do deserto infinito,
Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno.
Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno
Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.

Destacando na luz, agora o vulto absorto
De um adelo que passa, em caminho da feira,
Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.

Bate na areia o sol. E, num sonho tranqüilo,
Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira,
A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.


Poemas e Poesias sábado, 29 de julho de 2023

O RETRATO FIEL (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

O RETRATO FIEL

Gilka Machado

 

 

 

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!


Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.


Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;


naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.


Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.


Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.


Poemas e Poesias sexta, 28 de julho de 2023

COTO DD FADAS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

CONTO DE FADAS

Florbela Espanca

 

 

 

Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.

Os meus gestos são ondas de Sorrento...
Trago no nome as letras duma flor...
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento...

Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é de oiro, a onda que palpita.

Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez!
Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A princesa de conto: "Era uma vez..."


Poemas e Poesias quinta, 27 de julho de 2023

A VOZ DO POETA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A VOZ DO POETA

Ferreira Gullar

 

 

 

Não é voz de passarinho
flauta do mato
viola

Não é voz de violão
clarinete pianola

É voz de gente
(na varanda? na janela?
na saudade? na prisão?)

é voz de gente - poema:
fogo logro solidão.

 


Poemas e Poesias quarta, 26 de julho de 2023

DA MINHA IDEIA DO MUNDO (POEMA DO PORTUGUÊS FERANNDO PESSOA)

DA MINHA IDEIA DO MUNDO

Fernando Pessoa

 

 

 

Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além do profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...


Poemas e Poesias terça, 25 de julho de 2023

PÁGINA VAZIA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

PÁGINA VAZIA

Euclides da Cunha

 

 

 

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora.

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De nossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?”


Poemas e Poesias segunda, 24 de julho de 2023

TROVAS HUMORÍSTICAS - 21 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 21

Eno Teodoro Wanke

 

Esbrajava um caipora:

– Dormiu com minha mulher?

E o outro, antes de ir-se embora:

– Nem um minuto sequer!

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de julho de 2023

O ETERNO MISTÉRIO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

O ETERNO  MISTÉRIO

Da Costa e Silva

 

 

 

Desde a tarde violácea em que partiste
Para tão longe, para não sei onde, 
Eu vivo a interrogar, calado e triste,
A natureza que me não responde.

Falo à estrela no espaço, à flor na fronde,
A perguntar em vão se o céu existe;
E tudo que a luz mostra e a treva esconde
À voz da minha súplica resiste.

Se há um mundo divino, além do humano,
Indago; e o vento, as águas, o arvoredo,
Têm o mesmo mistério soberano...

A vida não revela esse segredo,
Que a morte oculta num sombrio arcano,
Que enche os homens de dúvida e de medo.

 


Poemas e Poesias sábado, 22 de julho de 2023

APARIÇÃO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ SOUSA)

APARIÇÃO

Cruz e Sousa

 

 

 

Por uma estrada de astros e perfumes
A Santa Virgem veio ter comigo:
Doiravam-lhe o cabelo claros lumes
Do sacrossanto resplendor amigo.

Dos olhos divinais no doce abrigo
Não tinha laivos de Paixões e ciúmes:
Domadora do Mal e do perigo
Da montanha da Fe galgara os cumes.

Vestida na alva excelsa dos Profetas
Falou na ideal resignação de Ascetas,
Que a febre dos desejos aquebranta.

No entanto os olhos dela vacilavam,
Pelo mistério, pela dor flutuavam,
Vagos e tristes, apesar de Santa!


Poemas e Poesias sexta, 21 de julho de 2023

NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER

Cesário Verde

 

 

 

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


Poemas e Poesias quinta, 20 de julho de 2023

PRIMEIRO MOTIVO DA ROSA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

PRIMEIRO MOTIVO DA ROSA

Cecília Meireles

 

 

 

Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.


Poemas e Poesias terça, 18 de julho de 2023

O *ADEUS* DE TERESA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

O "ADEUS" DE TERESA

Castro Alves

 

 

 

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"


Poemas e Poesias segunda, 17 de julho de 2023

LEMBRANÇA - NUM ALBUM (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

LEMBRANÇA - NUM ÁLBUM

Casimiro de Abreu

 

 

 

NUM ÁLBUM.

Como o triste marinheiro
Deixa em terra uma lembrança,
Levando n'alma a esperança
E a saudade que consome,
Assim nas folhas do álbum
Eu deixo meu pobre nome.

E se nas ondas da vida
Minha barca for fendida
E meu corpo espedaçado,
Ao ler o canto sentido
Do pobre nauta perdido
Teus lábios dirão: - coitado!


Poemas e Poesias domingo, 16 de julho de 2023

AO RECANTO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO

POEMA AO RECANTO

Carlos Pena Filho

 

 

 

Num recanto sem data e sem ternura,
e mais, sem pretensão a ser recanto,
descobri em teu corpo o amargo canto
de quem despenca para a desventura.

Há nos recantos sempre uma segura
desvantagem de unir o desencanto
e é por isto talvez que não me espanto
de ali perder teu corpo e a ventura

de viver entre atento e descuidado,
mirando o pardo tédio que descansa
nos subúrbios do amor desmantelado.

E só para ganhar mais espessura
eu resolvi fazer esta lembrança
de um recanto sem data e sem ternura.

Poemas e Poesias sábado, 15 de julho de 2023

CANÇÃO FINAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRMMOND DE ANDRADE)

CANÇÃO FINAL

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.


Poemas e Poesias sexta, 14 de julho de 2023

SONETO 123 - DOCE SONHO, SUAVE E SOBERANO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

DOCE SONHO, SUAVE E SOBERANO

Soneto 123

Luís de Camões

 

 

Doce sonho, suave e soberano,
se por mais longo tempo me durara!
Ah! quem de sonho tal nunca acordara,
pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano,
se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara,
de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,
dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
pois sempre nas verdades fui mofino.


Poemas e Poesias quinta, 13 de julho de 2023

SONETO TO GOZADOR CAÇAOR (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DO GOZADOA CAÇADOR

Bocage

(Grafia original)

 

 

"Apre! não mettas todo... Eu mais não posso..."
Assim Marcia formosa me dizia;
— Não sou barbaro (à moça eu respondia)
Brandamente verás como te coço!

"Ai! por Deus, não... não mais, que é grande! e grosso!"
Quem resistir ao seu fallar podia?
Meigamente o conninho lhe battia;
Ella diz "Ah meu bem! meu peito é vosso!"

O rebolar do cu (ah!) não te esqueça
Como és bella, meu bem! (então lhe digo)
Ella em suspiros mil a ardencia expressa.

Por te unir fazer muito ao meu umbigo;
Assim, assim... menina, mais depressa!...
Eu me venho... ai Jesus!... vem-te commigo!

 


Poemas e Poesias quarta, 12 de julho de 2023

CEM TROVAS - 011 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

 

TROVA 011

Belmiro Braga

 

 Eu não lamento o revés
do morto que se fez pó;
do vivo, que espera a vez,
desse sim, eu tenho dó.

 


Poemas e Poesias terça, 11 de julho de 2023

A ILHA DE CYPANGO (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

A ILHA DE CYPANGO

Augusto dos Anjos

 

 

 

Estou sósinho! A estrada se desdobra
Como uma immensa e rutilante cobra
De epiderme finissima de areia
E por essa finissima epiderme
Eis-me passeiando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!

A agonia do sol vae ter começo
Caio de joelhos, tremulo... Offereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Occaso que nas aguas se retrata
Nitidamente reproduz, exacta,
A saudade interior que ha no meu peito...

Tenho allucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lazaro não sente,
Em negras nuanças lugubres e aziagas
Vejo terribilissimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.

 

Os olhos volvo para o ceu divino
E observo-me pygmeu e pequenino
Atravez de minusculos espelhos.
Assim, quem deante duma cordilheira,
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cahir de joelhos!

Sôa o rumor fatidico dos ventos,
Annunciando desmoronamentos
De mil lagedos sobre mil lagedos...
E ao longe sôam tragicos fracassos
De heroes, partindo e fracturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cypango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpetua, brilha
A arvore da perpetua maravilha,
Á cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cypango,
Verde, affectando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extincto
E como succedeu a Affonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O genio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iriamos a um paiz de eternas pazes
Onde em cada deserto ha mil oasis
E em cada rocha um crystallino veio.

 

Gozei numa hora seculos de affagos,
Banhei-me na agua de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o panno da mortalha,
Que estou cozendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo trio
Anesthesiou-me a sensibilidade
E a grande golpes arrancou as raizes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!

Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve zigzags tortos
Enviando á terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dous realejos
Estão chorando meus amores mortos!

E a treva occupa toda a estrada longa...
O Firmamento é unia caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-lactea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!


Poemas e Poesias segunda, 10 de julho de 2023

O LENÇO DELA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

O LENÇO DELA

Álvares de Azevedo

 

 

 

Quando, a primeira vez, da minha terra
Deixei as noites de amoroso encanto,
A minha doce amante suspirando
Volveu-me os olhos úmidos de pranto.
 
Um romance cantou de despedida,
Mas a saudade amortecia o canto!
Lágrimas enxugou nos olhos belos...
E deu-me o lenço que molhava o pranto.
 
Quantos anos, contudo, já passaram!
Não

olvido porém amor tão santo!
Guardo ainda num cofre perfumado
O lenço dela que molhava o pranto...
 
Nunca mais a encontrei na minha vida,
Eu contudo, meu Deus, amava-a tanto!
Oh! quando eu morra estendam no meu rosto
O lenço que eu banhei também de pranto!


Poemas e Poesias domingo, 09 de julho de 2023

NÃO ÉS TU (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

NÃO ÉS TU

Almeida Garrett

 

 

 

Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume ,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu... ai!, não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.


Poemas e Poesias sábado, 08 de julho de 2023

O GRANDE SONHO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

O GRANDE SONHO

Alceu Wamosy

 

 

 

 

... e eu sonho que hás de vir. Sonho que um dia
mais ardente e mais bela do que eras,
virás encher de graça e de harmonia
meu jardim de tristíssimas quimeras.

Sonho que hás de trazer toda a alegria,
todo o encanto das tuas primaveras,
ou que em um reino antigo de poesia,
o meu amor, entre rosais, esperas.

E fico na ilusão de que tu vieste
E nesse sonho de ouro mergulhado,
o teu vulto alvoral surgindo vejo
sobre as próprias feridas que fizeste...

E fico na ilusão de que tu vieste
o bálsamo estendendo do teu beijo,
sobre as próprias feridas que fizeste...


Poemas e Poesias sexta, 07 de julho de 2023

FONTE OCULTA (POEMA DO FLUMNENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

 

FONTE OCULTA

Alberto de Oliveira

 

 

 

Entre umas pedras metida,

Rolando clara e modesta,

No coração da floresta

Vive uma fonte escondida.

 

Receosa de ser ouvida,

Talvez abafando um ai,

Quase sem queixa ou murmúrio

Fluindo vai;

 

E de ser vista receosa,

O vivo fio adelgaça;

E assim ignorada passa,

Passa ligeira e medrosa.

 

Tal em alma desditosa

Que já não ama nem crê,

Se escoa um fio de lagrimas

Que ninguém vê...


Poemas e Poesias quinta, 06 de julho de 2023

FASCÍNIO (POMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA

FASCÍNIO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis.
Não deveria, dizem.
Me esforço. Aliás,
já nem me esforço.
Abertamente me ponho a admirá-las.
Não estou traindo ninguém, advirto.
Como pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me permito.


Poemas e Poesias quarta, 05 de julho de 2023

PAIXÃO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

PAIXÃO

Adélia Prado

 

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,
não é a bola bonita caminhando
solta no espaço.


Poemas e Poesias segunda, 03 de julho de 2023

REPOUSO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

REPOUSO

Adalgicsa Nery

 

 

 

Dá-me tua mão

E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas

Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos,

Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas.

Dá-me tua mão

E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido,

Te darei por leito a terra amiga

E repousarei tua cabeça envelhecida

Na relva silenciosa dos campos.

Nada te perguntarei,

Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes

E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada.


Poemas e Poesias domingo, 02 de julho de 2023

A MORTE DE MADRUGADA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MORTE DE MADRUGADA

Vinícius de Moraes

 

 

 

Muerto cayó Federico. 
Antonio Machado 

Uma certa madrugada 
Eu por um caminho andava 
Não sei bem se estava bêbado 
Ou se tinha a morte n'alma 
Não sei também se o caminho 
Me perdia ou encaminhava 
Só sei que a sede queimava-me 
A boca desidratada. 
Era uma terra estrangeira 
Que me recordava algo 
Com sua argila cor de sangue 
E seu ar desesperado. 
Lembro que havia uma estrela 
Morrendo no céu vazio 
De uma outra coisa me lembro: 
... Un horizonte de perros 
Ladra muy lejos del río... 

De repente reconheço: 
Eram campos de Granada! 
Estava em terras de Espanha 
Em sua terra ensangüentada 
Por que estranha providência 
Não sei... não sabia nada... 
Só sei da nuvem de pó 
Caminhando sobre a estrada 
E um duro passo de marcha 
Que em meu sentido avançava. 

Como uma mancha de sangue 
Abria-se a madrugada 
Enquanto a estrela morria 
Numa tremura de lágrima 
Sobre as colinas vermelhas 
Os galhos também choravam 
Aumentando a fria angústia 
Que de mim transverberava. 

Era um grupo de soldados 
Que pela estrada marchava 
Trazendo fuzis ao ombro 
E impiedade na cara 
Entre eles andava um moço 
De face morena e cálida 
Cabelos soltos ao vento 
Camisa desabotoada. 
Diante de um velho muro 
O tenente gritou: Alto! 
E à frente conduz o moço 
De fisionomia pálida. 
Sem ser visto me aproximo 
Daquela cena macabra 
Ao tempo em que o pelotão 
Se dispunha horizontal. 

Súbito um raio de sol 
Ao moço ilumina a face 
E eu à boca levo as mãos 
Para evitar que gritasse. 
Era ele, era Federico 
O poeta meu muito amado 
A um muro de pedra seca 
Colado, como um fantasma. 
Chamei-o: Garcia Lorca! 
Mas já não ouvia nada 
O horror da morte imatura 
Sobre a expressão estampada... 
Mas que me via, me via 
Porque em seus olhos havia 
Uma luz mal-disfarçada. 
Com o peito de dor rompido 
Me quedei, paralisado 
Enquanto os soldados miram 
A cabeça delicada. 

Assim vi a Federico 
Entre dois canos de arma 
A fitar-me estranhamente 
Como querendo falar-me. 
Hoje sei que teve medo 
Diante do inesperado 
E foi maior seu martírio 
Do que a tortura da carne. 
Hoje sei que teve medo 
Mas sei que não foi covarde 
Pela curiosa maneira 
Com que de longe me olhava 
Como quem me diz: a morte 
É sempre desagradável 
Mas antes morrer ciente 
Do que viver enganado. 

Atiraram-lhe na cara 
Os vendilhões de sua pátria 
Nos seus olhos andaluzes 
Em sua boca de palavras. 
Muerto cayó Federico 
Sobre a terra de Granada 
La tierra del inocente 
No la tierra del culpable. 
Nos olhos que tinha abertos 
Numa infinita mirada 
Em meio a flores de sangue 
A expressão se conservava 
Como a segredar-me: - A morte 
É simples, de madrugada...


Poemas e Poesias sábado, 01 de julho de 2023

SERENATA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

SERENATA

Vicente de Carvalho

 

 

Pela vasta noite indolente
          Voga um perfume estranho.
Eu sonho... E aspiro o vago aroma ausente
          Do teu cabello castanho.

        Pela vasta noite tranquilla
          Pairam, longe, as estrellas.
Eu sonho... O teu olhar tambem scintilla
          Assim, tão longe como ellas.

        Pela vasta noite povoada
          De rumores e arquejos
Eu sonho... E’ tua voz, entrecortada
          De suspiros e de beijos.

 

        Pela vasta noite sem termo,
          Que deserto sombrio!
Eu sonho... Inda é mais triste, inda é mais ermo
          O nosso leito vasio.

        Pela vasta noite que finda
          Sóbe o dia risonho...
E eu cerro os olhos para ver-te ainda,
          Ainda e sempre, em meu sonho.

 

 


Poemas e Poesias sexta, 30 de junho de 2023

QUANDO O SANTO GUERREIRO ENTREGA AS PONTAS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

QUANDO O SANTO GUERREIRO ENTGREGA AS PONTAS

Torquato Neto

 

 

 

nada de mais:
o muro pintado de verde
e ninguém que precise dizer-me
que esse verde que não quero verde
lírico
mais planos e mais planos
se desfaz:
nada demais:
aqui de dentro eu pego e furo a fogo
e luz
(é movimento)
vosso sistema protetor de incêndios
e pinto a tela o muro diferente
porque uso como quero minhas lentes
e filmo o verde,
que eu não temo o verde,
de outra cor:
diariamente encaro bem de perto
e escarro sobre o muro:
nada demais

a fruta não está verde nem madura
é dura
e dura
e dura o tempo
contratempo
de escolher
o enquadramento melhor — ver do outro lado
com olhos livres
(nem deus nem diabo), projetar
lado de dentro — a luz mais pura
embora a sala do cinema seja escura:
nada demais:
planos gerais sobre a paisagem
sobre o muro da passagem proibida
enquanto procuramos (encontramos)
infinitas brechas escondidas.
cuidado madame.
nada de mais: cadê o câncer
daquela tarde alucinante?
ai de mim, copacabana, desvairada, mon amour.
nada de mais
na tela do cinema oficial:
já não estamos nos formando com o tal,
o general da banda do cinema que deserta:
a arqueologia é na cinemateca. esquece.
e tudo começou de novo e já acontece
(sentença de deus)
e o resto aconteceu: the end.
fim.
não falem mais dessa mulher perto de mim.
depois da fruta podreverde que apodrece — a tela livre
de quem só tem memória
a aí só conta história,
o muro iluminado de outra cor
e outra glória
pois quem não morre não deserta nem se entrega
desprega o comovido verde lírico
e apronta e inventa e acontece com o perigo
(poesia)
a imagem nova — o arco tenso
os nove fora
(tema: cinema: lema)
a prova.


Poemas e Poesias quinta, 29 de junho de 2023

FIO DE VIDA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

FIO DE VIDA

Thiago de Mello

 

 

 

Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração

no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.


Poemas e Poesias quarta, 28 de junho de 2023

FRAGMENTOS DO MAR (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

FRAGMENTOS DO MAR

Sousândrade

 

 

 

Meneia a larga cauda e as barbatanas
Limoso leviatã cheio de conchas
Com dorso de rochedo que ondas cercam;
Cristalinos pendões planta nas ventas,
De brilhantes vapores, que em bandeiras
Íris enrolam de formosa sombra.
Negra fragata lá circula as asas
Sobre a nuvem dos peixes voadores.
Agora rompe a nau lençóis infindos
Que o mar tépido choca, e vindo a aurora
Já salta a criação d'escamas belas.


Poemas e Poesias terça, 27 de junho de 2023

COMPLETUDE (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

COMPLETUDE

Ricardo Lima

 

 

 

A profundidade humana que lamenta, adentra 

Sensatez insensata, imediata 

Nó e pauta, desata, ata. 

A completude humana, emana, insensata, mata.

 


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