Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias sábado, 26 de novembro de 2022

LUA NOVA (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

LUA NOVA

Torquato Neto

 

 

 

É lua nova
é noite derradeira
vou passar a vida inteira
esperando por você (BIS)

Andei perdido nas veredas da saudade
veio o dia, veio a tarde
veio a noite e me cobriu
é lua nova
nessa noite derradeira
vou me embora dentro dela
perguntar por quem te viu.


É lua nova
é noite derradeira
vou passar a vida inteira
esperando por você (BIS)


Essa noite é que é meu guia
essa lua é quem me guia
e você é o meu amor
meu amor...

Vou pela Estrada tão comprida
quem me diz não ser perdida
essa viagem que eu vou

É lua nova
é noite derradeira
vou passar a vida inteira
esperando por você 


Poemas e Poesias sexta, 25 de novembro de 2022

AS ENSINANÇAS DA VIDA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)
AS ENSINANÇAS DA VIDA
Thiago de Mello
 
 
 
Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas
tão duras como lajedos.

Agora (o tempo é que fez)
tenho um caminho de barro
umedecido de dúvidas.

Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza
de que vale a pena o amor.
 

Poemas e Poesias quinta, 24 de novembro de 2022

CANTO DÉCIMO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

CANTO DÉCIMO

Sousândrade

 

 

 

(O GUESA, tendo atravessado as ANTILHAS, crê-se livre dos
XEQUES e penetra em NEW-YORK-STOCK-EXCHANGE; a Voz dos
desertos:)



— Orfeu, Dante, Enéias, ao inferno
Desceram, o Inca há de subir...
— Ogni sp'ranza lasciate,
Che entrate...
— Swedenborg, há mundo porvir?

(Xeques surgindo risonhos e disfarçados em Railroad-
managers, Stockjobbers, Pimpbrokers, etc., etc.,
apregoando:)

— Harlem! Erie! Central! Pennsylvania!
— Milhão! cem milhões!! mil milhões!!!
— Young é Grant! Jackson.
Atkinson!
Vanderbilts, Jay Goulds, anões!

(A Voz mal ouvida dentre a trovoada:)

— Fulton's Folly, Codezo's Forgery...
Fraude é o clamor da nação!
Não entendem odes
Railroads;
Paralela Wall-Street à Chattám...

(Corretores continuando:)

— Pigmeus, Brown Brothers! Bennett! Stewart!
Rotschild e o ruivalho d'Astor!!
— Gigantes, escravos
Se os cravos
Jorram luz, se finda-se a dor!...

(Norris, Attorney; Codezo, inventor; Young; Esq.,
manager; Atkinson, agent; Armstrong, agent; Rodhes,
agent; P. Offman & Voldo, agents; algazarra, miragem; ao
meio, o GUESA:)

— Dois! três! cinco mil! se jogardes,
Senhor, tereis cinco milhões!
— Ganhou! ha! haa! haaa!
— Hurrah! ah!...
— Sumiram... seriam ladrões?...


Poemas e Poesias quarta, 23 de novembro de 2022

INCERTEZAS (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

INCERTEZAS

Rcardo Lima

 

 

 

O incerto é poetizar a alma!

Afagar o tântrico coração, emoção.

O incerto é o propério da certeza, leveza

Ora! Veja.

Sobre a mesa, almeja, peleja.

Peleja da alma incerta, certeza, proeza.

 

Incerto são os certos das certezas, incertezas.

Destino da alma, incertezas... leveza

Finda respostas, postas à mesa.

Certezas, incertezas...

 


Poemas e Poesias terça, 22 de novembro de 2022

DESCONFIANDO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

DESCONFIANDO

Raul de Leôni

 

 

 

Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,

Atento tu me escutas quando falo;

Bem antes que te exponha o meu desejo

Já pronto estás correndo a executá-lo.

 

Achas em tudo um venturoso ensejo

De servir-me de servo e de vassalo;

Perdoa-me a verdade num gracejo.

Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

 

Mas não penses que estólido eu te creia

Como um Patroclo abnegado, não:

De todos os excessos se receia...

 

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;

Odeias-me, que eu sei, mas, histrião,

Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...


Poemas e Poesias segunda, 21 de novembro de 2022

TRÊS COISAS (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

TRÊS COISAS

Paulo Mendes Campos

 

 

 

Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido

Não consigo medir
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo, quando é que cessa?
A morte, quando começa?
Teu olhar, quando se expressa?

Muito medo tenho
Do tempo
Da morte
De teu olhar

O tempo levanta o muro.

A morte será o escuro?

Em teu olhar me procuro.


Poemas e Poesias domingo, 20 de novembro de 2022

ABC DO NORDESTE FLAGELADO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

ABC DO NORDESTE FLAGELADO

Patativa do Assaré

 

 

 

A — Ai, como é duro viver
nos Estados do Nordeste
quando o nosso Pai Celeste
não manda a nuvem chover.
É bem triste a gente ver
findar o mês de janeiro
depois findar fevereiro
e março também passar,
sem o inverno começar

 

B — Berra o gado impaciente
reclamando o verde pasto,
desfigurado e arrasto,
com o olhar de penitente;
o fazendeiro, descrente,
um jeito não pode dar,
o sol ardente a queimar
e o vento forte soprando,
a gente fica pensando
que o mundo vai se acabar.


 


C — Caminhando pelo espaço,
como os trapos de um lençol,
pras bandas do pôr do sol,
as nuvens vão em fracasso:
aqui e ali um pedaço
vagando… sempre vagando,
quem estiver reparando
faz logo a comparação
de umas pastas de algodão
que o vento vai carregando.


 


D — De manhã, bem de manhã,
vem da montanha um agouro
de gargalhada e de choro
da feia e triste cauã:
um bando de ribançã
pelo espaço a se perder,
pra de fome não morrer,
vai atrás de outro lugar,
e ali só há de voltar,
um dia, quando chover.


 


E — Em tudo se vê mudança
quem repara vê até
que o camaleão que é
verde da cor da esperança,
com o flagelo que avança,
muda logo de feição.
O verde camaleão
perde a sua cor bonita
fica de forma esquisita
que causa admiração.


 


F — Foge o prazer da floresta
o bonito sabiá,
quando flagelo não há
cantando se manifesta.
Durante o inverno faz festa
gorjeando por esporte,
mas não chovendo é sem sorte,
fica sem graça e calado
o cantor mais afamado
dos passarinhos do norte.


 


G — Geme de dor, se aquebranta
e dali desaparece,
o sabiá só parece
que com a seca se encanta.
Se outro pássaro canta,
o coitado não responde;
ele vai não sei pra onde,
pois quando o inverno não vem
com o desgosto que tem
o pobrezinho se esconde.


 


H — Horroroso, feio e mau
de lá de dentro das grotas,
manda suas feias notas
o tristonho bacurau.
Canta o João corta-pau
o seu poema funério,
é muito triste o mistério
de uma seca no sertão;
a gente tem impressão
que o mundo é um cemitério.


 


I — Ilusão, prazer, amor,
a gente sente fugir,
tudo parece carpir
tristeza, saudade e dor.
Nas horas de mais calor,
se escuta pra todo lado
o toque desafinado
da gaita da seriema
acompanhando o cinema
no Nordeste flagelado.


 


J — Já falei sobre a desgraça
dos animais do Nordeste;
com a seca vem a peste
e a vida fica sem graça.
Quanto mais dia se passa
mais a dor se multiplica;
a mata que já foi rica,
de tristeza geme e chora.
Preciso dizer agora
o povo como é que fica.


 


L — Lamento desconsolado
o coitado camponês
porque tanto esforço fez,
mas não lucrou seu roçado.
Num banco velho, sentado,
olhando o filho inocente
e a mulher bem paciente,
cozinha lá no fogão
o derradeiro feijão
que ele guardou pra semente.


 


M — Minha boa companheira,
diz ele, vamos embora,
e depressa, sem demora
vende a sua cartucheira.
Vende a faca, a roçadeira,
machado, foice e facão;
vende a pobre habitação,
galinha, cabra e suíno
e viajam sem destino
em cima de um caminhão.


 


N — Naquele duro transporte
sai aquela pobre gente,
agüentando paciente
o rigor da triste sorte.
Levando a saudade forte
de seu povo e seu lugar,
sem um nem outro falar,
vão pensando em sua vida,
deixando a terra querida,
para nunca mais voltar.


 


O — Outro tem opinião
de deixar mãe, deixar pai,
porém para o Sul não vai,
procura outra direção.
Vai bater no Maranhão
onde nunca falta inverno;
outro com grande consterno
deixa o casebre e a mobília
e leva a sua família
pra construção do governo.


 


P – Porém lá na construção,
o seu viver é grosseiro
trabalhando o dia inteiro
de picareta na mão.
Pra sua manutenção
chegando dia marcado
em vez do seu ordenado
dentro da repartição,
recebe triste ração,
farinha e feijão furado.


 


Q — Quem quer ver o sofrimento,
quando há seca no sertão,
procura uma construção
e entra no fornecimento.
Pois, dentro dele o alimento
que o pobre tem a comer,
a barriga pode encher,
porém falta a substância,
e com esta circunstância,
começa o povo a morrer.


 


R — Raquítica, pálida e doente
fica a pobre criatura
e a boca da sepultura
vai engolindo o inocente.
Meu Jesus! Meu Pai Clemente,
que da humanidade é dono,
desça de seu alto trono,
da sua corte celeste
e venha ver seu Nordeste
como ele está no abandono.


 


S — Sofre o casado e o solteiro
sofre o velho, sofre o moço,
não tem janta, nem almoço,
não tem roupa nem dinheiro.
Também sofre o fazendeiro
que de rico perde o nome,
o desgosto lhe consome,
vendo o urubu esfomeado,
puxando a pele do gado
que morreu de sede e fome.


 


T — Tudo sofre e não resiste
este fardo tão pesado,
no Nordeste flagelado
em tudo a tristeza existe.
Mas a tristeza mais triste
que faz tudo entristecer,
é a mãe chorosa, a gemer,
lágrimas dos olhos correndo,
vendo seu filho dizendo:
mamãe, eu quero morrer!


 


U — Um é ver, outro é contar
quem for reparar de perto
aquele mundo deserto,
dá vontade de chorar.
Ali só fica a teimar
o juazeiro copado,
o resto é tudo pelado
da chapada ao tabuleiro
onde o famoso vaqueiro
cantava tangendo o gado.


 


V — Vivendo em grande maltrato,
a abelha zumbindo voa,
sem direção, sempre à toa,
por causa do desacato.
À procura de um regato,
de um jardim ou de um pomar
sem um momento parar,
vagando constantemente,
sem encontrar, a inocente,
uma flor para pousar.


 


X — Xexéu, pássaro que mora
na grande árvore copada,
vendo a floresta arrasada,
bate as asas, vai embora.
Somente o saguim demora,
pulando a fazer careta;
na mata tingida e preta,
tudo é aflição e pranto;
só por milagre de um santo,
se encontra uma borboleta.


 


Z — Zangado contra o sertão
dardeja o sol inclemente,
cada dia mais ardente
tostando a face do chão.
E, mostrando compaixão
lá do infinito estrelado,
pura, limpa, sem pecado
de noite a lua derrama
um banho de luz no drama
do Nordeste flagelado.


 


Posso dizer que cantei
aquilo que observei;
tenho certeza que dei
aprovada relação.
Tudo é tristeza e amargura,
indigência e desventura.
— Veja, leitor, quanto é dura
a seca no meu sertão.


Poemas e Poesias sábado, 19 de novembro de 2022

CASTELOS NA AREIA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

CASTELOS NA AREIA

Olegário Mariano

 

 

 

— Que iluminura é aquela, fugidia,
Que o poente à beira-mar beija e incendeia?
— É apenas a criação da fantasia: —
São castelos na areia.

Andam, tontas de sol, brincando as crianças
Como abelhas que voaram da colmeia.
Erguem torreões fictícios de esperanças...
São castelos na areia.

Ao canto de um jardim adormecido:
"Por que não crês no afeto que me enleia?
E as palavras que eu disse ao teu ouvido?"
— São castelos na areia.

E o tempo vai tecendo, da desgraça,
Na roca do destino, a eterna teia.
— "E os beijos que trocamos?" — Tudo passa,
São castelos na areia.

Coração! Por que bates com ansiedade?
Que dor é a grande dor que te golpeia?
Ouve as palavras da Fatalidade:
Ventura, Amor, Sonho, Felicidade,
São castelos na areia.


Poemas e Poesias sexta, 18 de novembro de 2022

OS FENÍCIOS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

OS FENÍCIOS

Olavo Bilac

 

 

 

Ávida gente, ousada e moça! Ávida gente!

Desse estéril torno, desse areal maninho

Entre o Líbano e o mar da Síria, - que caminho

Busca, turvo de febre, o vosso olhar ardente?

Tiro, do vivo azul do pélago marinho;

Branca, nadando em luz, surge resplandecente...

Na água, aberta em clarões, chocam-se de repente

Os remos. Rangem no ar os velames de linho.

Hiram, com o cetro negro em que ardem pedrarias,

Conta as barcas de cedro, atupidas de fardos

De ouro, púrpura, ônix, sedas e especiarias.

Sus! Ao largo! Melcarte abençoe a partida

Dos que vão de Sídon, de Gebel e de Antardus

Dilatar o comércio e propagar a Vida!

 


Poemas e Poesias quinta, 17 de novembro de 2022

SONETO (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

SONETO

Menotti Del Picchia

 

 

 

 

Soneto! Mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar com uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu…


Poemas e Poesias quarta, 16 de novembro de 2022

INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO

Mário Quintana

 

 

 

Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"


Poemas e Poesias terça, 15 de novembro de 2022

UNS OLHOS (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS, NA VOZ DE FERNANDA VENTURA) VÍDEO

Maria Firmina dos Reis

 

 


Poemas e Poesias segunda, 14 de novembro de 2022

CREPÚSCULO DE OUTONO (POEMA CO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CREPÚSCULO DE OUTONO

Manuel Bandeira

 

 

 

O crepúsculo cai, manso como uma bênção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale... o horizonte purpúreo...
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.


Poemas e Poesias domingo, 13 de novembro de 2022

O FINGIDOR (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS

O FINGIDOR

Manoel de Barros

 

 

 

O ermo que tinha dentro do olho do menino era um
defeito de nascença, como ter uma perna mais curta.
Por motivo dessa perna mais curta a infância do
menino mancava.
Ele nunca realizava nada.
Fazia tudo de conta.
Fingia que lata era um navio e viajava de lata.
Fingia que vento era cavalo e corria ventena.
Quando chegou a quadra de fugir de casa, o menino
montava num lagarto e ia pro mato.
Mas logo o lagarto virava pedra.
Acho que o ermo que o menino herdara atrapalhava
as suas viagens.
O menino só atingia o que seu pai chamava de ilusão.


Poemas e Poesias sábado, 12 de novembro de 2022

UM SONHO (POEMA DO PERNAMBUCANO MACIEL MONTEIRO)

UM SONHO

Maciel Monteiro

 

 

 

Ela foi-se! E com ela foi minh’alma
N’asa veloz da brisa sussurrante,
Que ufana do tesouro que levava,
Ia... corria... e como vai distante!
Voava a brisa e no atrevido rapto
Frisava do Oceano a face lisa:
Eu que a brisa acalmar tentava insano,
Com meus suspiros alentava a brisa!

No horizonte esconder-se anuviado
Eu a vi; e dois pontos luminosos
Apenas onde ela ia me mostravam:
Eram eles seus olhos lacrimosos!

Pouco e pouco empanou-se a luz confusa,
Que me sorria lá dos olhos seus;
E dalém ondulando uma aura amiga
Aos meus ouvidos repetiu adeus!

Nada mais via eu, nem mesmo um raio
Fulgir a furto a esperança bela;
Mas meus olhos ilusos descobriram
Numa amável visão a imagem dela.

Esvaiu-se a visão, qual nuvem áurea
Ao bafejar da vespertina aragem;
Se aos olhos eu perdia a imagem sua,
No meu peito eu achava a sua imagem.

Ela foi-se! ... E com ela foi minh’alma
Na asa veloz da brisa sussurrante,
Que ufana do tesouro que levava,
Ia... corria... e como vai distante!

 


Poemas e Poesias sexta, 11 de novembro de 2022

PASSAGEM (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

PASSAGEM

Luís Turiba

 

quanto mais leve o fardo
mais farta é a levitação

e cada passo
um descongelamento
de um futuro avivamento

o bom da morte
é a inacessível condição
de cerimônia de passagem
deixa tudo em suspensão
no mergulho fascinante
compromissos amores certezas
e as contas a pagar
tal qual porto
ou parto


Poemas e Poesias quinta, 10 de novembro de 2022

LA VIA GRACIA! (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

LA VIA GRACIA!

Luís Edmundo

 

 

 

Calle Alcalá: Manolita

Que vais a Puerta del Sol.

Consuelo, Concha ou Paquita,

És de Madri, senorita,

De SegÓvia ou de Ferrol?

 

Tens dos versos de Zorilla

A essência meridional.

Com o teu manton de manilla

Lembras noites de Sevilla

Perfumes de naranjal.

 

Dias de toiros, fanfarras,

O estouvamento febril

Das seguidillas bizarras

Com Xerez e com guitarras

E requebros de quadril.

 

De onde vens, flor rescendente,

Nessa alegria louçã

Que perturba toda gente?

De um livro de Benavente?

De um quadro de ZurbarÁn?

 

E Manolita, apressada,

Indiferente e veloz

Nem vê minha alma abrasada

Que a segue pela calçada...

Viva la Gracia. Por Diós!


Poemas e Poesias quarta, 09 de novembro de 2022

A ESPERANÇA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

A ESPERANÇA

Júlio Dinis

 

 

 

No passado, uma saudade, No presente, uma amargura, E no futuro, uma esp’rança
De imaginária ventura;

Eis no que consiste a vida Imposta por Deus ao homem. Nisto se consomem
dias!
Nisto anos se consomem!

Saudade é flor sem perfumes
Quando ainda verdejante,
Mas à medida que murcha,
Ai, que aroma inebriante!

A amargura é duro espinho Que nas carnes penetrando, Faz desesperar
da vida,
Suas flores definhando.

A esperança é frouxa luz
Que nas trevas nos fulgura;
Vendo-a, ousados caminhamos:
Mas, ai, que bem pouco dura;

Quantos mais passos andados Na agra senda desta vida, Mais amargo é
o presente,
E a saudade mais sentida.

Mas a esperança não; os anos Fazem-lhe perde r o brilho; Caem-lhe
uma a uma as folhas Da existência pelo trilho.

A velhice nada espera,
Nada da esperança lhe dura…
Mas não, cansada da vida,
Tem a paz da sepultura.

Tem a morada fulgente
Da inteligência divina;
Tem as regiões sagradas,
Que eterno sol ilumina.

Bendito sejas, meu Deus! Que nos dás na vida inteira
A filha dos céus, a esperança, Por suave companheira.

Ela nos enxuga o pranto
O pranto alegre e amargoso;
Não a acusemos de pérfida,
Esperar já é um gozo.

A mente, esperando, concebe, Concepção sempre iludida, Prazeres
talvez entrevistos
Nas cenas duma outra vida.

Esperemos, pois, companheiros
Desta fadigosa viagem!
Se a esp’rança é a imagem do gozo,
Adoremos essa imagem.

E cruzando este oceano Com os olhos no porvir. Esqueçamos no presente
Seu horroroso bramir.

E quando enfim, já cansados, Reclinarmos nossa fronte.
Que a esperança nos revele
Mais dilatado horizonte.


Poemas e Poesias terça, 08 de novembro de 2022

POEMA RELATIVO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

POEMA RELATIVO

Jorge de Lima

 

 

 

Vem, ó
bem-amada
Junto à minha casa
Tem um regato (até quieto o regato).

Não tem pássaros que pena!

Mas os coqueiros fazem,
Quando o vento passa,
Um barulho que às vezes parece
Bate-bate de asas.

Supõe, ó bem-amada,
Se o vento não sopra,
Podem vir borboletas
À procura das minhas jarras
Onde há flores debruçadas,
Tão debruçadas que parecem escutar.

Todos os homens têm seus crentes,
Ó bem-amada:
- os que pregam o amor ao próximo
e os que pregam a morte dele.

Mas tudo é pequeno
E ligeiro no mundo, ó amada.
Só o clamor dos desgraçados
É cada vez mais imenso!

Vem, ó bem-amada.
Junto à minha casa
Tem um regato até manso.
E os teus passos podem ir devagar
Pelos caminhos:
- aqui não há a inquietação
de se atravessar o asfaalto

Vem, ó bem-amada,
Porque como te disse
Se não há pásssaros no meu parque,
Pode ser, se o vento
Não soprar forte
Que venham borboletas.
Tudo é relativo
E incerto no mundo.
Também tuas sobrancelhas
Parecem asas abertas.


Poemas e Poesias segunda, 07 de novembro de 2022

PARA A FEIRA DO LIVRO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

PARA A FEIRA DO LIVRO

João Cabral de Melo Neto

 

 

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anónimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.”


Poemas e Poesias domingo, 06 de novembro de 2022

E O RESTO É SILÊNCIO (POEMA DO ACRANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

E  RESTO É SILÊNCIO

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

E então ficamos os dois em silêncio, tão quietos
como dois pássaros na sombra, recolhidos
ao mesmo ninho,
como dois caminhos na noite, dois caminhos
que se juntam
num mesmo caminho...
.
Já não ouso... já não coras...
E o silêncio é tão nosso, e a quietude tamanha
que qualquer palavra bateria estranha
como um viajante, altas horas...

Nada há mais a dizer, depois que as próprias mãos
silenciaram seus carinhos...

Estamos um no outro
como se estivéssemos sózinhos...


Poemas e Poesias sábado, 05 de novembro de 2022

HOJE TE CANTO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

HOJE TE CANTO

Hilda Hilst

 

 

Hoje te canto e depois no pó que hei de ser
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teu pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E de um verde negro teu casco e os areais
Onde me pisas fundo. Hoje te canto
E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.
De escarlate.


Poemas e Poesias sexta, 04 de novembro de 2022

FLOR DE CHAMA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

FLOR DE CHAMA

Hermes Fontes

 

 

 

Hastil branco a florir em luz e flama, esguio
lírio seco, que o vento aniquilar promete –
há uma vela a esvair-se… E isso, deve-o ao pavio,
que é a sua alma, que é o eixo, a arder, do espermacete.

Mal o pavio esplende, ei-la que se derrete:
chama – parece estar tiritando de frio…
É uma criatura humana, alanceada das sete
dores da Virgem-mãe, lagrimejando, a fio…

É um ser anímico esse objeto inanimado:
– arde o pavio, e, entanto, o que se esvai é a cera…
– dói a alma, e o corpo é que se faz mortificado…

É uma agonia humana… Um suor febril escorre…
E, tal o humano ser desmaiara e morrera,
a vela luz… reluz… vai desmaiando… morre.


Poemas e Poesias quinta, 03 de novembro de 2022

ESSA QUE EU HEI DE AMAR (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

ESSA QUE EU HEI DE AMAR

Guilherme de Almeida

 

 

 

 

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia

serão tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,

que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,

trazer luz e calor a esta alma escura e fria.

E, quando ela passar, tudo o que eu não sentia

da vida há de acordar no coração, que vela...

E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela

como sombra feliz... – tudo isso eu me dizia,

quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,

e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro

do poente, me dizia adeus, como um sol triste...

E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,

mas ias tão perdido em teu sonho dourado,

meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!"

 


Poemas e Poesias quarta, 02 de novembro de 2022

GÊNIOS (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

GUERRA JUNQUEIRO

Gênios

 

 

 

.....................................
.....................................


E disse-me: Poeta, ao longe no horizonte
Não vês quase a lamber a abóbada do céu
Brilhante e luminoso um túmido escarcéu?
Como alvacento leão, na rápida carreira
Vem sacudindo a juba... A natureza inteira
Cisma, contempla, escuta o cântico profundo
Em trágico silêncio. O Sol já moribundo
Resvala-lhe no dorso, iria-lho de chamas,
Como dum monstro enorme as fúlgidas escamas...
Rugindo enovelada em turbilhão insano,
A vaga colossal, rasoira do oceano,

Lá vem rolando grave, e deixa ao caminhar
Um campo atrás dum monte, um lago atrás dum
                                                            [mar!
Qual lúcida serpente agora ei-la decresce
Em curva indefinida;—alonga-se... parece
Que a terra há-de estoirar em brancos estilhaços
No círculo fatal dos seus enormes braços.
Como galope infrene! Ei-la que chega!... voa
Num ímpeto feroz, num salto de leoa
Aos rudes alcantis! e em hórrida tormenta
Na rígida tranqueira o vagalhão rebenta,
Bramindo pelo ar: trepa, vacila, nuta,
E exânime por fim, vencida nesta luta,
Sem voz, sem força, inerte, exausta, esfarrapada   .
Lá vai... aonde a leve a ríspida nortada.
No entanto uma outra vaga e outra e outra e mais,
Exército sem fim de monstros colossais,
Lá partem do horizonte e vem uma por uma
Rugir e desfazer-se em flocos de alva espuma.

Mas neste galopar indómito, infinito
As ondas vão minando a rocha de granito...


Poemas e Poesias terça, 01 de novembro de 2022

IMPRESSÕES DO GESTO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

IMPRESSÕES DO GESTO

Gilka Machado

 

 

 

(A uma bailadeira)

A tua dança indefinida,
que me retém extática, surpresa,
guarda em si resumida
a harmonia orquestral da natureza,
a euritmia da Vida.

(...)

Danças, os membros novamente agitas,
todo teu ser parece-me tomado
por convulsões de dores infinitas...
E desse trágico crescendo
de gestos que enchem o silêncio de ais,
vais
smorzando, descendo,
como que por encanto,
presa de um místico quebranto...
Danças e cuido estar em ti me vendo.

Os teus meneios
são
cheios
de meus anseios;
a tua dança é a exteriorização
de tudo quanto sinto:
minha imaginação
e meu instinto
movem-se nela alternadamente;
minha volúpia, vejo-a torça, no ar,
quando teu corpo lânguido, indolente,
sensibiliza a quietação do ambiente,
ora a crescer, ora a minguar
numa flexuosidade de serpente
a se enroscar
e a se desenroscar.
Em tua dança agitada ou calma,
de adejos cheia e cheia de elastérios,
materializa-se minha alma,
pois nos teus membros leves, quase etéreos,
eu contemplo os meus gestos interiores,
meus prazeres, meus tédios, minhas dores!


Poemas e Poesias segunda, 31 de outubro de 2022

CARIDADE (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

CARIDADE

Francisca Júlia

 

 

 

A alma do homem se torna egoísta e má
Porque a impiedade de hoje é a sua escola.
Essa, que no Evangelho se acrisola,
Caridade cristã, onde é que está?

Capazes, hoje em dia, poucos há
Dessa piedade rara, que consola,
Que os olhos fecha para dar a esmola,
A fim de que não veja a quem a dá.

Sede piedosos. Bem-aventurado
Os que fazem o bem de olhos fechados.
Pois a esmola é só útil e eficaz,

Só tem justo valor, sem dano ou perda,
Se não chega a saber a mão esquerda
O benefício que a direita faz.


Poemas e Poesias domingo, 30 de outubro de 2022

AS QADRAS DELE (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

AS QUADRAS DELE

Florbela Espanca

 

 

 

Digo pra mim quando oiço
O teu lindo riso franco,
"São seus lábios espalhabdo,
As folhas dum lírio branco..."

Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, porque 'scondidas
Na folhagem sempre estão?!

Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?

Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um lírio,
Banhado pelo luar.

Quando o ouvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.

Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar,
O amor quando é sentido
Não se pode disfarçar.

Os olhos são indiscretos;
Revelam tudo que sentem,
Podem mentir os teus lábios,
Os olhos, esses, não mentem.

Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade,
Bendito sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.

Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti,
Que me ofertou a desgraça
No momento em que te vi.

O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã,
Como a rosa da canção.

Quando falas, dizem todos:
Tem uma voz que é um encanto
Só falando, faz perder
Todo juízo a um santo.

Enquanto eu longe de ti
Ando, perdida de zelos,
Afogam-se outros olhares
Nas ondas dos teus cabelos.

Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!

Tanto ódio e tanto amor
Na minha alma contenho;
Mas o ódio inda é maior
Que o doido amor que te tenho.

Odeio teu doce sorriso,
Odeio teu lindo olhar,
E ainda mais a minh'alma
Por tanto e tanto te amar!

Quando o teu olhar infindo
Poisa no meu, quase a medo,
Temo que alguém advinhe
O nosso casto segredo.

Logo minh'alma descansa;
Por saber que nunca alguém
Pode imaginar o fogo
Que o teu frio olhar contém.

Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar
Daquele que muito sente.

Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o outono,
Nos lábios a primavera...

Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar,
Soluça cheio de mágua
O teu misterioso olhar...

Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente?
És alegre como a aurora,
E triste como um poente...

Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca,
Que é tortura nos teus olhos
E riso na tua boca!

Os teus dente pequeninos
Na tua boca mimosa,
São pedacitos de neve
Dentro de um cálix de rosa.

O lindo azul do céu
E a amargura infinita
Casaram. Deles nasceu
A tua boca bendita!


Poemas e Poesias sábado, 29 de outubro de 2022

A CASA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A CASA

Ferreira Gullar

 

 

Debaixo do assoalho da casa
no talco preto da terra prisioneira,
quem fala?
.
naquela
noite menor sob os pés da família
naquele
território sem flor
debaixo das velhas tábuas
que pisamos pisamos pismos
quando o sol ia alto
quando o sol já morria
quando o sol já morria
e eu morria
quem fala?
quem falou? quem falará?
na língua de fogo azul do país debaixo da casa? (...)
.
E ninguém mais?
E o verão? e as chuvas
torrenciais? e a classe
operária? as poucas
festas de aniversário
não falam?
.
A rede suja, a bilha
na janela, o girassol
no saguão clamando contra o muro
as formigas
no cimento da cozinha
Bizuza morta
Maria Lúcia, Adi, Papai
mortos
não falam.
(...)


Poemas e Poesias sexta, 28 de outubro de 2022

COMO UMA VOZ DE FONTE QUE CESSASSE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

COMO UMA VOZ DE FONTE QUE CESSASSE

Fernando Pessoa

 

 

 

Como uma voz de fonte que cessasse

(E uns para os outros nossos vãos olhares

Se admiraram), para além dos meus palmares

De sonho, a voz que do meu tédio nasce

 

Parou... Apareceu já sem disfarce

De música longínqua, asas nos ares,

O mistério silente como os mares,

Quando morreu o vento e a calma pasce...

 

A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida

Para o mistério, silêncio a que a hora assiste...

 

E, perto ou longe, grande lago mudo,

O mundo, o informe mundo onde há a vida...

E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...


Poemas e Poesias quinta, 27 de outubro de 2022

MUNDOS EXTINTOS (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

MUNDOS EXTINTOS

Euclides da Cunha

 

 

 

São tão remotas as estrelas que, apesar da vertiginosa velocidade da luz, elas se apagam, e continuam a brilhar durante séculos.

Morrem os mundos… Silenciosa e escura,
Eterna noite cinge-os. Mudas, frias,
Nas luminosas solidões da altura
Erguem-se, assim, necrópoles sombrias…

Mas para nós, di-lo a ciência, além perdura
A vida, e expande as rútilas magias…
Pelos séculos em fora a luz fulgura
Traçando-lhes as órbitas vazias.

Meus ideais! extinta claridade –
Mortos, rompeis, fantásticos e insanos
Da minh’alma a revolta imensidade…

E sois ainda todos os enganos
E toda a luz, e toda a mocidade
Desta velhice trágica aos vinte anos…


Poemas e Poesias quarta, 26 de outubro de 2022

TROVAS HUMORÍSTICAS - 16 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 16

Eno Teodoro Wanke

 

Garçom, me diz, por fineza

Chove lá fora? É favor

– Desculpe, msa sua mesa

Não está no meu setor

 

 


Poemas e Poesias terça, 25 de outubro de 2022

TERRA DO BRASIL (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

TERRA DO BRASIL

Dom Pedro II

 

 

 

Espavorida agita-se a criança,
De noturnos fantasmas com receio,
Mas se abrigo lhe dá materno seio,
Fecha os doridos olhos e descansa.

Perdida é para mim toda a esperança
De volver ao Brasil; de lá me veio
Um pugilo de terra; e neste creio
Brando será meu sono e sem tardança...

Qual o infante a dormir em peito amigo,
Tristes sombras varrendo da memória,
ó doce Pátria, sonharei contigo!

E entre visões de paz, de luz, de glória,
Sereno aguardarei no meu jazigo
A justiça de Deus na voz da história!


Poemas e Poesias segunda, 24 de outubro de 2022

NÃO DESEJES, NEM SONHES (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

NÃO DESEJES, NEM SONHES

Da Costa e Silva

 

 

 

Não desejes, nem sonhes, alma incauta,
Que a ilusão tem o encanto da sereia,
Que em noites aromais de lua cheia
Seduz e perde, em alto-mar, o nauta.

Feliz daquele que os seus atos pauta
Dentro dos dons da vida que o rodeia,
E acha o leito macio e a mesa lauta
Na indiferença da fortuna alheia.

Feliz de quem, da vida para a morte,
Embora pobre, de pobreza triste,
Se contenta, afinal, com a própria sorte.

Se há ventura no mundo, essa consiste,
Talvez, em suportar, de ânimo forte,
A renúncia de um bem que não existe.


Poemas e Poesias domingo, 23 de outubro de 2022

ACROBATA DA DOR (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ACROBATA DA DOR

Cruz e Sousa

 

 

 

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! reteza os músculos, reteza
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.

 

 


Poemas e Poesias sábado, 22 de outubro de 2022

POEMINHA AMOROSO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

POEMINHA AMOROSO

Cora Coralina

 

 

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
"eu te amo, perdoa-me, eu te amo..."
 

Poemas e Poesias sexta, 21 de outubro de 2022

SONETO I (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA!

SONETO I

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 

I

Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.


Poemas e Poesias quinta, 20 de outubro de 2022

FLORES VELHAS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

FLORES VELHAS

Cesário Verde

 

 

 

Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um vôo.

Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimado às luzes dos planetas:
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as vibrações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios imortais.

E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.

Mas tu agora nunca, ah! Nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não te beijarei, às horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados...

Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos
E tenho um riso meu como o sorrir de Judas.

E tudo enfim passou, passou como uma pena
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,
E aquela doce vida, aquela vida amena,
Ah! Nunca mais virá, meu lírio, nunca mais!

Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando ontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia roçagante,
Que foi na minha vida o céu aurirrosado,

Diziam-me que tu, no flórido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e de emoções mimosas;

E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura,
Que não me desgostou nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do cálix da ventura
O néctar que nos vem dos mimos da mulher.

Falou-me tudo, tudo, em tons comovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quase irmãs do vento com as flores
E a mole exalação das várzeas recendentes.

Inda pensei ouvir aquelas coisas mansas
No ninho de afeições criado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das crianças,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.

Lembre-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

Eu tinha tão impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas ilusões
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as asas ir abrindo às minhas impressões.

Soltei com devoção lembranças inda escravas,
No espaço construí fantásticos castelos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,
E onde o luar parava os raios amarelos.

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, num véu consolador,
O teu divino olhar que as pedras amolece,
E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas mãos,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As célicas canções dos anjos teus irmãos.

E como na minha alma a luz era uma aurora,
A aragem ao passar parece que me trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,
E o teu perfume forte, o teu perfume doce,

Agonizava o Sol gostosa e lentamente,
Um sino que tangia, austero e com vagar,
Vestia de tristeza esta paixão veemente,
Esta doença enfim, que a morte há de curar.

E quando me envolveu a noite, noite fria,
Eu trouxe do jardim duas saudades roxas,
E vim a meditar em que me cerraria,
Depois de eu morrer, as pálpebras já frouxas.

Pois que, minha adorada, eu peço que não creias
Que eu amo esta existência e não lhe queira um fim;
Há tempos que não sinto o sangue pelas veias
E a campa talvez seja afável para mim.

Portanto, eu, que não cedo às atrações do gozo,
Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo,
E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,
Em breve te olharei calado e moribundo.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres,
Só quero abandonar a vida triste e má
Na véspera do dia em que também morreres,
Morreres de pesar, por eu não viver já!

E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes,
Com lágrimas regar as plantações ruins;
E esperarão por ti, naqueles alegretes,
As dálias a chorar nos braços dos jasmins!


Poemas e Poesias quarta, 19 de outubro de 2022

NOTURNO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

NOTURNO

Cecília Meireles

 

 

 

Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?

Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?

Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?

Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?

O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.

E o homem tão inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.

Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.

Grandes animais sem passado, sem antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.

Mas a noite desmanchava-se no oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.

Ah! o despertar dos animais no vasto campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!


Poemas e Poesias segunda, 17 de outubro de 2022

O FANTASMA E A CANÇÃO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

O FANTASMA E A CANÇÃO

Castro Alves

 

 

Orgulho! desce os olhos dos céus
        sobre ti mesmo; e vê como os nomes
        mais poderosos vão se refugiar n'uma
        canção.

                BYRON   

        — Quem bate? — "A noite é sombria!"
        — Quem bate? — "É rijo o tufão! ...
        Não ouvis? a ventania
        Ladra à lua como um cão."
        — Quem bate? — "0 nome qu'importa?
        Chamo-me dor...  abre a porta!
        Chamo-me frio... abre o lar!
        Dá-me pão... chamo-me fome!
        Necessidade é o meu nome!"
        — Mendigo! podes passar!

        "Mulher, se eu falar, prometes
        A porta abrir-me?" — Talvez.
        — "Olha... Nas cãs deste velho
        Verás fanados lauréis.
        Há no meu crânio enrugado
        O fundo sulco traçado
        Pela c'roa imperial.
        Foragido, errante espectro,
        Meu cajado — já foi cetro!
        Meus trapos — manto real!"

        — Senhor, minha casa é pobre...
        Ide bater a um solar!
        — "De lá venho... O Rei-fantasma
        Baniram do próprio lar.
        Nas largas escadarias,
        Nas vetustas galerias,
        Os pajens e as cortesãs
        Cantavam! ... Reinava a orgia! ... 
        Festa! Festa! E ninguém via 
        O Rei coberto de cãs!"

        — Fantasmas! Aos grandes, que tombam, 
        É palácio o mausoléu! 
        — "Silêncio! De longe eu venho... 
        Também meu túmulo morreu.
        O séc’lo — traça que medra
        Nos livros feitos de pedra —
        Rói o mármore, cruel.
        O tempo — Átila terrível
        Quebra co'a pata invisível
        Sarcófago e capitel.

        "Desgraça então para o espectro,
        Quer seja Homero ou Solon,
        Se, medindo a treva imensa
        Vai bater ao Panteon...
        o motim — Nero profano —
        No ventre da cova insano
        Mergulha os dedos cruéis.
        Da guerra nos paroxismos
        Se abismam mesmo os abismos
        E o Morto morre outra vez!

        "Então, nas sombras infindas,
        S'esbarram em confusão
        Os fantasmas sem abrigo
        Nem no espaço, nem no chão...
        As almas angustiadas,
        Como águias desaninhadas,
        Gemendo voam no ar.
        E enchem de vagos lamentos
        As vagas negras dos ventos,
        Os ventos do negro marl

        "Bati a todas as portas 
        Nem uma só me acolheu!..." 
        — "Entra! — : Uma voz argentina 
        Dentro do lar respondeu. 
        — "Entra, pois!  Sombra exilada, 
        Entra!  O verso — é uma pousada 
        Aos reis que perdidos vão.  
        A estrofe — é a púrpura extrema, 
        Último trono — é o poema! 
        Último asilo — a Canção!..."

Poemas e Poesias domingo, 16 de outubro de 2022

NOIVADO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

NOIVADO

Casimiro de Abreu

 

 

 

Filha do céu - oh flor das esperanças,
Eu sinto um mundo no bater do peito!
Quando a lua brilhar num céu sem nuvens
Desfolha rosas no virgíneo leito.


Nas horas do silêncio inda és mais bela!
Banhada do luar, num vago anseio,
Os negros olhos de volúpia mortos
Por sob a gaze te estremece o seio!

Vem! a noite é linda, o mar é calmo,
Dorme a floresta - meu amor só, vela;
Suspira a fonte e minha voz sentida
É doce e triste como as vozes dela.

Qual eco fraco de amorosa queixa
Perpassa a brisa na magnólia verde,
E o som magoado do tremer das folhas
Longe - bem longe - devagar se perde.

Que céu tão puro! que silêncio augusto!
Que aromas doces! que natura esta!
Cansada a terra adormeceu sorrindo
Bem como a virgem no cair da sesta!

Vem! tudo é tranqüilo, a terra dorme,
Bebe o sereno o lírio do valado...
- Sozinhos, sobre a relva da campina,
Que belo que será nosso noivado!

Tu dormirás ao som dos meus cantares
Oh! filha do sertão! sobre o meu peito.
O moço triste, o sonhador mancebo
Desfolha rosas no teu casto leito.


Poemas e Poesias sábado, 15 de outubro de 2022

RETRATO DO PINTOR REINALDO FONSECA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

RETRATO DO PINTOR REINALDO FONSECA

Carlos Pena Filho

 

 

Mas tanta cor não cabe neste espaço
e arrebenta os limites que a circundam
as meninas de luto que aqui dormem
dentro do próprio sono se equilibram

Em tuas mão manchadas de ternura,
pousam brancos pássaros. por isso
falas atrás da sombra, e à luz mais forte
ruminas teu silêncio inquebrantável

Se o que possui o céu de puro e simples
algum dia cair sobre o teus ombros
imperturbável, pintarás um anjo

E nunca mais palavras além da sombra
que o que restar de ti será somente
o profundo silêncio inquebrantável


Poemas e Poesias sexta, 14 de outubro de 2022

AUSÊNCIA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AUSÊNCIA

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Poemas e Poesias quinta, 13 de outubro de 2022

SONETO 137 - DIANA PRATEADA, ESQUECIDA (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

DIANA PRATEADA, ESQUECIDA

Soneto 137

Luís de Camões

 

 

 

 

Diana prateada, esclarecia
com a luz que do claro Febo ardente,
por ser de natureza transparente,
em si, como em espelho, reluzia.

Cem mil milhões de graças lhe influía,
quando me apareceu o excelente
raio de vosso aspecto, diferente
em graça e em amor do que soía.

Eu, vendo-me tão cheio de favores
e tão propinco a ser de todo vosso,
louvei a hora clara, e a noite escura,

pois nela destes cor a meus amores;
donde colijo claro que não posso
de dia para vós já ter ventura.


Poemas e Poesias quarta, 12 de outubro de 2022

SONETTO DO CORNO CHOROSO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO CORNO CHOROSO

Bocage

 

 

 

Se o grão serralho do Sophi potente,

Ou do Sultão feroz, que rege a Trácia,

Mil Vênus de Geórgia, oh! da Circássia

Nuas prestasse ao meu desejo ardente:

 

 Se negros brutos, que parecem gente,

Ministros fossem de lasciva audácia,

Inda assim do ciúme a pertinácia

No peito me nutria ardor pungente:

 

Erraste em produzir-me, oh! Natureza,

Num país onde todos fodem tudo,

Onde leis não conhece a porra tesa!

 

Cioso afeto, afeto carrancudo!

Zelar moças na Europa é árdua empresa,

Entre nós ser amante é ser cornudo


Poemas e Poesias terça, 11 de outubro de 2022

CEM TROVAS - 006 (POEMA DE BELMIRO BRAGA)

 

TROVA 006

Belmiro Braga

 

A beleza não te atrai?
Só te casas por dinheiro?
Tu pensas como teu pai,
que morreu velho e … solteiro.


Poemas e Poesias segunda, 10 de outubro de 2022

O CORRUPIÃO (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

O CORRUPIÃO

Augusto dos Anjos

(Grafia original)

 

 

 

Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosphera livre, o amplo ether bello,
E a alga cryptógama e a usnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o anno brota!

Mas a ancia de alto voar, de á antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarello,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebello
A gargalhada da ultima derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!.
Ah! Tu somente ainda és egual a mim.

Continúa a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôz assim!


Poemas e Poesias sábado, 08 de outubro de 2022

IDEIAS ÍNTIMAS (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

IDEIAS ÍNTIMAS

Álvares de Azevedo

 

 

 

Fragmento
La chaise où je m’assieds, la natte où je me couche,
La table ou je t’écris .................................................
...................................................................................
Mes gros souliers ferrés, mon baton, mon chapeau,
Mês libres pêle-mêle entassés sur leur planche.
...................................................................................
De cet espace étroit sont tout l’ameublement.
LAMARTINE, Jocelyn

I


Ossian — o bardo é triste como a sombra
Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas...
Mas pranteia uma eterna monodia,
Tem na lira do gênio uma só corda,
— Fibra de amor e Deus que um sopro agita!
Se desmaia de amor... a Deus se volta,
Se pranteia por Deus... de amor suspira.
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
Fantástico alemão, poeta ardente
Que ilumina o clarão das gotas pálidas
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se... Contudo,
Parece-me que vou perdendo o gosto,
Vou ficando blasé: passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar... Vivo fumando.
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu d’inverno... Solitário
Passo as noites aqui e os dias longos...
Dei-me agora ao charuto em corpo e alma:
Debalde ali de um canto um beijo implora,
Como a beleza que o Sultão despreza,
Meu cachimbo alemão abandonado!
Não passeio a cavalo e não namoro,
Odeio o lasquenet... Palavra d’honra!
Se assim me continuam por dois meses
Os diabos azuis nos frouxos membros,
Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.

II


Enchi o meu salão de mil figuras.
Aqui voa um cavalo no galope,
Um roxo dominó as costas volta
A um cavaleiro de alemães bigodes,
Um preto beberrão sobre uma pipa,
Aos grossos beiços a garrafa aperta...
Ao longo das paredes se derramam
Extintas inscrições de versos mortos,
E mortos ao nascer!... Ali na alcova
Em águas negras se levanta a ilha
Romântica, sombria, à flor das ondas
De um rio que se perde na floresta...
— Um sonho de mancebo e de poeta,
El-Dorado de amor que a mente cria,
Como um Éden de noites deleitosas...
Era ali que eu podia no silêncio
Junto de um anjo... Além o romantismo!
Borra adiante folgaz caricatura
Com tinta de escrever e pó vermelho
A gorda face, o volumoso abdômen,
E a grossa penca do nariz purpúreo
Do alegre vendilhão entre botelhas,
Metido num tonel... Na minha cômoda
Meio encetado o copo, inda verbera
As águas d’oiro do Cognac ardente:
Negreja ao pé narcótica botelha
Que da essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo...
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titâneo Digesto, e ao lado dele
Childe-Harold entreaberto... ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.

III


Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas
À estante pulvurenta. A roupa, os livros
Sobre as poucas cadeiras se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
E Alfredo de Musset encobre, às vezes
De Guerreiro, ou Valasco, um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhotas,
Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!

IV


Na minha sala três retratos pendem:
Ali Victor Hugo. — Na larga fronte
Erguidos luzem os cabelos louros,
Como c’roa soberba. Homem sublime!
O poeta de Deus e amores puros!
Que sonhou Triboulet, Marion Delorme
E Esmeralda — a Cigana... E diz a crônica
Que foi aos tribunais parar um dia
Por amar as mulheres dos amigos
E adúlteros fazer romances vivos.

V


Aquele é Lamennais — o bardo santo,
Cabeça de profeta, ungido crente,
Alma de fogo na mundana argila
Que as harpas de Sion vibrou na sombra,
Pela noite do século chamando
A Deus e à liberdade as loucas turbas.
Por ele a George Sand morreu de amores,
E dizem que... Defronte, aquele moço
Pálido, pensativo, a fronte erguida,
Olhar de Bonaparte em face austríaca,
Foi do homem secular as esperanças:
No berço imperial um céu de agosto
Nos cantos de triunfo despertou-o...
As águias de Wagram e de Marengo
Abriam flamejando as longas asas
Impregnadas do fumo dos combates
Na púrpura dos Césares, guardando-o...
E o gênio do futuro parecia
Predestiná-lo à glória. A história dele?...
Resta um crânio nas urnas do estrangeiro...
Um loureiro sem flores nem sementes...
E um passado de lágrimas... A terra
Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma
Pode o mundo chorar sua agonia
E os louros de seu pai na fronte dele
Infecundos depor... Estrela morta,
Só pode o menestrel sagrar-te prantos!

VI


Junto a meu leito, com as mãos unidas,
Olhos fitos no céu, cabelos soltos,
Pálida sombra de mulher formosa
Entre nuvens azuis pranteia orando.
É um retrato talvez. Naquele seio
Porventura sonhei douradas noites,
Talvez sonhando desatei sorrindo
Alguma vez nos ombros perfumados
Esses cabelos negros e em delíquio
Nos lábios dela suspirei tremendo,
Foi-se a minha visão... E resta agora
Aquele vaga sombra na parede
— Fantasma de carvão e pó cerúleo! —
Tão vaga, tão extinta e fumacenta
Como de um sonho o recordar incerto.

VII


Em frente do meu leito, em negro quadro,
A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se...
E como a nívea mão recata o seio...
Oh! quanta s vezes, ideal mimoso,
Não encheste minh’alma de ventura,
Quando louco, sedento e arquejante
Meus tristes lábios imprimi ardentes
No poento vidro que te guarda o sono!

VIII


O pobre leito meu, desfeito ainda,
A febre aponta da noturna insônia.
Aqui lânguido à noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo...
E a donzela ideal nos róseos lábios,
No doce berço do moreno seio
Minha vida embalou estremecendo...
Foram sonhos contudo! A minha vida
Se esgota em ilusões. E quando a fada
Que diviniza meu pensar ardente
Um instante em seus braços me descansa
E roça a medo em meus ardentes lábios
Um beijo que de amor me turva os olhos...
Me ateia o sangue, me enlanguece a fronte...
Um espírito negro me desperta,
O encanto do meu sonho se evapora...
E das nuvens de nácar da ventura
Rolo tremendo à solidão da vida!

IX


Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro:
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?

X


Meu pobre leito! eu amo-te contudo!

Aqui levei sonhando noites belas;
As longas horas olvidei libando
Ardentes gotas de licor dourado,
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance...

Meu leito juvenil, da minha vida
És a página d’oiro. Em teu asilo
Eu sonho-me poeta e sou ditoso...
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas,
Mais trêmulo que Faust, eu não beijava...
Mais feliz que Don Juan e Lovelace
Não apertei ao peito desmaiando!

Ó meus sonhos de amor e mocidade,
Porque ser tão formosos, se devíeis
Me abandonar tão cedo... e eu acordava
Arquejando a beijar meu travesseiro?

XI


Junto do leito meus poetas dormem
— O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir a formatura.
Ó meu amigo, ó velador noturno,
Tu não me abandonaste nas vigílias,
Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
Quer, sentado no leito, pensativo
Relesse as minhas cartas de namoro...
Quero-te muito bem, ó meu comparsa
Nas doudas cenas de meu drama obscuro!
E num dia de spleen, vindo a pachorra,
Hei de evocar-te dum poema heróico
Na rima de Camões e de Ariosto,
Como padrão às lâmpadas futuras!
.............................................................................

XII


Aqui sobre esta mesa junto ao leito
Em caixa negra dois retratos guardo:
Não os profanem indiscretas vistas.
Eu beijo-os cada noite: neste exílio
Venero-os juntos e os prefiro unidos...
— Meu pai e minha mãe! Se acaso um dia,
Na minha solidão me acharem morto,
Não os abra ninguém. Sobre meu peito
Lancem-os em meu túmulo. Mais doce
Será certo o dormir da noite negra
Tendo no peito essas imagens puras.

XIII


Havia uma outra imagem que eu sonhava
No meu peito, na vida e no sepulcro,
Mas ela não o quis... rompeu a tela,
Onde eu pintara meus dourados sonhos.
Se posso no viver sonhar com ela,
Essa trança beijar de seus cabelos
E essas violetas inodoras, murchas,
Nos lábios frios comprimir chorando,
Não poderei na sepultura, ao menos,
Sua imagem divina ter no peito.

XIV


Parece que chorei... Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando...
Satã leve a tristeza! Olá, meu pagem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra...
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
Filtram no sangue meu correndo a vida,
Vibram-me os nervos e as artérias queimam,
Os meus olhos ardentes se escurecem
E no cérebro passam delirosos
Assomos de poesia... Dentre a sombra
Vejo num leito d’ouro a imagem dela
Palpitante, que dorme e que suspira,
Que seus braços me estende...

Eu me esquecia:
Faz-se noite; traz fogo e dois charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada...


Poemas e Poesias sexta, 07 de outubro de 2022

DESTINO (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

DESTINO

Almeida Garrett

 

 

 

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Florece!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai!, não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino .
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.


Poemas e Poesias quinta, 06 de outubro de 2022

DUAS ALMAS (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

DUAS ALMAS

Alceu Wamosy

 

A Coelho da Costa

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...


Poemas e Poesias quarta, 05 de outubro de 2022

ALMA EM FLOR (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

ALMA EM FLOR

Alberto de Oliveira

 

 

 

 

Que ânsia de amar! E tudo a amar me ensina;

A fecunda lição decoro atento.

Já com liames de fogo ao pensamento

Incoercível desejo ata e domina...

...E sorrindo-me, ardente e vaporosa,

Sinto-a vir ( vem em sonho ) une –me ao seio,

Junta o rosto ao meu rosto e diz – me :― Eu te amo!

 


Poemas e Poesias terça, 04 de outubro de 2022

DESEJOS (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

DESEJOS

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

Disto eu gostaria:
ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.

Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
– Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação,
e não: –Os preços do mercado estão um horror!

Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
-As formigas neste inverno estão dando tempo às flores,
e não: -Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.

Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações dos pássaros,
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro.

Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.

Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos.


Poemas e Poesias segunda, 03 de outubro de 2022

MURAL (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

MURAL

Adélia Prado

 

 

 

Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
seu próprio gosto
em ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela não sabe que sabe,
a rotina perfeita é Deus:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá sua saia,
a árvore a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.


Poemas e Poesias domingo, 02 de outubro de 2022

POEMA AO FAROL DA ILHA RASA (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

POEMA AO FAROL DA ILHA RASA

Adalgisa Nery

 

 

 

O aviso da vida
Passa a noite inteira dentro do meu quarto
Piscando o olho.
Diz que vigia o meu sono
Lá da escuridão dos mares
E que me pajeia até o sol chegar.
Por isso grita em cores
Sobre meu corpo adormecido ou
Dividindo em compassos coloridos
As minhas longas insônias.
Branco
Vermelho
Branco
Vermelho
O farol é como a vida
Nunca me disse: Verde.


Poemas e Poesias sábado, 01 de outubro de 2022

MEDO (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

MEDO

Virgínia Victorino

 

 

 

Ouve o grande silêncio destas horas!
Há quanto tempo não dizemos nada…
Tens no sorriso uma expressão magoada,
tens lágrimas nos olhos, e não choras!

As tuas mãos nas minhas mãos demoras
numa eloquência muda, apaixonada…
Se o meu sombrio olhar de amargurada
procura o teu, sucumbes e descoras…

O momento mais triste de uma vida
é o momento fatal da despedida,
- Vê como o medo cresce em mim, latente…

Que assustadora, enorme sombra escura!
Eis afinal, amor, toda a tortura:
- vejo-te ainda, e já te sinto ausente!


Poemas e Poesias sexta, 30 de setembro de 2022

A MANHÃ DO MORTO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MANHÃ DO MORTO

Vinícius de Moraes

 

 

 

O poeta, na noite de 25 de fevereiro de 1945, sonha que vários amigos seus perderam a vida num desastre de avião, em meio a uma inexplicável viagem para São Paulo.

Noite de angústia: que sonho
Que debater-se, que treva...

...é um grande avião que leva amigos meus no seu bojo...
...depois, a horrível notícia:
FOI UM DESASTRE MEDONHO!

A mulher do poeta dá-lhe a dolorosa nova às oito da manhã, depois de uma telefonada de Rodrigo M. F. de Andrade.

Me acordam numa carícia... 
O que foi que aconteceu? Rodrigo telefonou:

MÁRIO DE ANDRADE MORREU.

Ao se levantar, o poeta sente incorporar-se a ele o amigo morto.

Ergo-me com dificuldade
Sentindo a presença dele
Do morto Mário de Andrade
Que muito maior do que eu
Mal cabe na minha pele.

Escovo os dentes na saudade
Do amigo que se perdeu
Olho o espelho: não sou eu
É o morto Mário de Andrade
Me olhando daquele espelho
Tomo o café da manhã:
Café, de Mário de Andrade.

A necessidade de falar com o amigo denominador comum, e o eco de Manuel Bandeira.

Não, meu caro, que eu me digo
Pensa com serenidade
Busca o consolo do amigo
Rodrigo M. F. de Andrade

Telefono para Rodrigo
Ouço-o; mas na realidade
A voz que me chega ao ouvido
É a voz de Mário de Andrade.

O passeio com o morto
Remate de males


E saio para a cidade
Na canícula do dia
Lembro o nome de Maria
Também de Mário de Andrade
Do poeta Mário de Andrade.

Gesto familiar

Com grande dignidade
A dignidade de um morto
Anda a meu lado, absorto
O poeta Mário de Andrade
Com a manopla no meu ombro.

Goza a delícia de ver
Em seus menores resquícios.
Seus olhos refletem assombro.
Depois me fala: Vinicius
Que ma-ra-vilha é viver!

A cara do morto

Olho o grande morto enorme
Sua cara colossal
Nessa cara lábios roxos
E a palidez sepulcral
Específica dos mortos.

Essa cara me comove
De beatitude tamanha.
Chamo-o: Mário! ele não ouve
Perdido no puro êxtase
Da beleza da manhã.

Mas caminha com hombridade
Seus ombros suportam o mundo
Como no verso inquebrável
De Carlos Drummond de Andrade
E o meu verga-se ao defunto...

O eco de Pedro Nava

Assim passeio com ele
Vou ao dentista com ele
Vou ao trabalho com ele
Como bife ao lado dele
O gigantesco defunto
Com a sua gravata brique
E a sua infantilidade.

À tarde o morto abandona subitamente o poeta para ir enterrar-se.

Somente às cinco da tarde
Senti a pressão amiga
Desfazer-se do meu ombro...
Ia o morto se enterrar
No seu caixão de dois metros.

Não pude seguir o féretro
Por circunstâncias alheias
À minha e à sua vontade
(De fato, é grande a distância
Entre uma e outra cidade...
Aliás, teria medo
Porque nunca sei se um sonho
Não pode ser realidade).
Mas sofri na minha carne
O grande enterro da carne
Do poeta Mário de Andrade
Que morreu de angina pectoris:

Vivo na imortalidade.


Poemas e Poesias quinta, 29 de setembro de 2022

OLHOS VERDES (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

OLHOS VERDES

Vicente de Carvalho

 

Olhos encantados, olhos cor do mar,
Olhos pensativos que fazeis sonhar!

Que formosas cousas, quantas maravilhas
Em vos vendo sonho, em vos fitando vejo;
Cortes pitorescos de afastadas ilhas
Abanando no ar seus coqueirais em flor,
Solidões tranquilas feitas para o beijo,
Ninhos verdejantes feitos para o amor...

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noute, vai subindo a lua...
O horizonte, como para recebê-las,
De uma fímbria de ouro todo se debrua;

Afla a brisa, cheia de ternura ousada,
Esfrolando as ondas, provocando nelas
Bruscos arrepios de mulher beijada...

Olhos tentadores da mulher amada!

Uma vela branca, toda alvor, se afasta
Balançando na onda, palpitando ao vento;
Ei-la que mergulha pela noute vasta,
Pela vasta noute feita de luar;
Ei-la que mergulha pelo firmamento
Desdobrado ao longe nos confins do mar...

Olhos cismadores que fazeis cismar!

Branca vela errante, branca vela errante,
Como a noute é clara! como o céu é lindo!
Leva-me contigo pelo mar... Adiante!
Leva-me contigo até mais longe, a essa
Fímbria do horizonte onde te vais sumindo
E onde acaba o mar e de onde o céu começa...

Olhos abençoados, cheios de promessa!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,
Olhos cor do mar!


Poemas e Poesias quarta, 28 de setembro de 2022

LOUVAÇÃO (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

LOUVAÇÃO

Torquato Neto

 

 

 

Vou fazer a louvação
Louvação, louvação
Do que deve ser louvado
Ser louvado, ser louvado
Meu povo, preste atenção
Atenção, atenção
Repare se estou errado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
E louvo, pra começar
Da vida o que é bem maior
Louvo a esperança da gente
Na vida, pra ser melhor
Quem espera sempre alcança
Três vezes salve a esperança!
Louvo quem espera sabendo
Que pra melhor esperar
Procede bem quem não pára
De sempre mais trabalhar
Que só espera sentado
Quem se acha conformado

Vou fazendo a louvação
Louvação, louvação
Do que deve ser louvado
Ser louvado, ser louvado
Quem 'tiver me escutando
Atenção, atenção
Que me escute com cuidado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo agora e louvo sempre
O que grande sempre é
Louvo a força do homem
E a beleza da mulher
Louvo a paz pra haver na terra
Louvo o amor que espanta a guerra
Louvo a amizade do amigo
Que comigo há de morrer
Louvo a vida merecida
De quem morre pra viver
Louvo a luta repetida
A vida pra não morrer

Vou fazendo a louvação
Louvação, louvação
Do que deve ser louvado
Ser louvado, ser louvado
De todos peço atenção
Atenção, atenção
Falo de peito lavado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo a casa onde se mora
De junto da companheira
Louvo o jardim que se planta
Pra ver crescer a roseira
Louvo a canção que se canta
Pra chamar a primavera
Louvo quem canta e não canta
Porque não sabe cantar
Mas que cantará na certa
Quando enfim se apresentar
O dia certo e preciso
De toda a gente cantar

E assim fiz a louvação
Louvação, louvação
Do que vi pra ser louvado
Ser louvado, ser louvado
Se me ouviram com atenção
Atenção, atenção
Saberão se estive errado
Louvando o que bem merece
Deixando o ruim de lado


Poemas e Poesias terça, 27 de setembro de 2022

ARTE DE AMAR (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

ARTE DE AMAR

Thiago de Mello

 

 

 

Não faço poemas como quem chora,
nem faço versos como quem morre.
Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeira
quando muito moço; achava que tinha
os dias contados pela tísica
e até se acanhava de namorar.
Faço poemas como quem faz amor.
É a mesma luta suave e desvairada
enquanto a rosa orvalhada
se vai entreabrindo devagar.
A gente nem se dá conta, até acha bom,
o imenso trabalho que amor dá para fazer.

Perdão, amor não se faz.
Quando muito, se desfaz.
Fazer amor é um dizer
(a metáfora é falaz)
de quem pretende vestir
com roupa austera a beleza
do corpo da primavera.
O verbo exato é foder.
A palavra fica nua
para todo mundo ver
o corpo amante cantando
a glória do seu poder.


Poemas e Poesias segunda, 26 de setembro de 2022

CANTO QUINTO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

CANTO QUINTO

Sousândrade

 

 

Vede a tremente
Ondulação de malhas luminosas.
Num relâmpago,
o tigre atrás da corça.


Poemas e Poesias domingo, 25 de setembro de 2022

TRANSITAR (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

TRANSITAR

Ricardo Lima

 

 

 

 

Transitar é o que transita, a vida.

Sempre haverá uma despedida,

Que afagará, o fervor da vida.

 

Nenhum amor será uma partida,

Mas, uma breve ida de uma decisão, decidida.


Poemas e Poesias sábado, 24 de setembro de 2022

DECADÊNCIA (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

DECADÊNCIA

Raul de Leôni

 

 

 

Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...


Poemas e Poesias sexta, 23 de setembro de 2022

TEMPO ETERNIDADE (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

TEMPO ETERNIDADE

Paulo Mendes Campos

 

 

 

O instante é tudo para mim que ausente
do segredo que os dias encadeia
me abismo na canção que pastoreia
as infinitas nuvens do presente.

Pobre de tempo fico transparente
à luza desta canção que me rodeia
como se a carne se fizesse alheia
à nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
e a minha eternidade uma bandeira
aberta em céu azul de solidões.

Sem margens sem destino sem história
o tempo que se esvai é minha glória
e o susto de minha alma sem razões.


Poemas e Poesias quinta, 22 de setembro de 2022

A ESTRADA DE MINHA VIDA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A ESTRADA DE MINHA VIDA

Patativa do Assaré

 

 

 

Trilhei, na infância querida,
Composta de mil primores,
À estrada de minha vida,
Ornamentada de flores.
E que linda estrada aquela!
Sempre havia ao lado dela
Encanto, paz e beleza;
Desde a terra ao grande espaço,
Em tudo eu notava um traço
Do pincel da Natureza.

Viajei de passo lento,
Pisando rosas e relvas,
Ouvindo a cada momento
Gemer o vento nas selvas;
Colibris e borboletas
Dos ramos das violetas
Vinham render-me homenagem,
E do cajueiro frondoso,
O sabiá sonoroso
Saudava a minha passagem.

O sol, quando despontava,
Convertendo a terra em ouro,
Em seus raios eu notava
0 mais sublime tesouro;
E de noite, a lua bela
Era qual linda donzela,
De uma beleza sem fim;
A sua luz prateada
Tinha a cor imaculada
Das vestes de um querubim.

Se a noite escura chegava
Envolvida em seus negrores,
Uma santa me embalava,
Cantando trovas de amores.
E quando raiava o dia,
Que do bercinho eu descia,
Chegava aos ouvidos meus,
Pelas brisas matutinas,
O som das harpas divinas
Dos santos anjos de Deus.

E eu seguia o meu caminho,
Sempre alegre e sorridente,
Balbuciando baixinho
Minha canção de inocente.
E enquanto, sem embaraço,
Eu transpunha, passo a passo,
Os tapetes da campina,
No centro da espessa mata,
As águas de uma cascata
Cantavam ao pé da colina.

Nessa viagem de amor
Nada me causava tédio,
Tudo vinha em meu favor
Pelo divino intermédio,
Mas a torpe sedução,
Qual fera na escuridão,
Manhosa, sagaz e astuta,
Atirou sem piedade
Sua seta de maldade
Contra minha alma impoluta.

Desde esse dia maldito,
Tudo tornou-se o contrário,
Foi se tornando esquisito
Meu luzente itinerário.
Segui pela minha estrada
Como a folha arrebatada
Na correnteza de um rio;
Entre a grande natureza,
Tudo quanto era beleza
Apresentou-se sombrio.

O sabiá não cantava
Pelos bosques e colinas,
Nem pela brisa chegava
0 som das harpas divinas.
Só me ficou na memória
Aquela quadra de glória
Da minha infância feliz,
Lá onde deixei guardados,
Entre as roseiras dos prados,
Meus brinquedos infantis.

Qual peregrino sem fé
Atrás de um santo socorro,
Um dia cheguei ao pé
Do mais altaneiro morro,
E subi pelos escombros,
Levando sobre meus ombros
Um fardo de paciência,
Sem encontrar obstáculo,
Galguei o alto pináculo
Do monte da decadência.

Na mais horrível peleja,
Vivo hoje em cima do cume,
Onde a brisa não bafeja

E as flores não têm perfume.
A vagar triste e sozinho.
Sem conforto e sem carinho,
Na solidão deste monte,
Não ouço o canto das aves,
Nem os sussurros suaves
Das claras águas da fonte.

No deserto desta crista,.
Ninguém consola meus ais,
Fugiram da minha vista
As belezas naturais.
Tudo, tudo me embaraça,
A lua pelo céu passa
Desmaiada e já sem cor,
E as lanternas das estrelas
Procuro e não posso vê-las,
É triste o meu dissabor!

E aqui o que mais me pasma,
Me faz tremer e chorar,
É ver um negro fantasma
Com as mãos a me acenar;
Sempre, sempre me rodeia,
E com voz horrenda e feia
De quando em quando murmura
Baixinho, nos meus ouvidos,
Para descermos unidos
Os degraus da sepultura.


Poemas e Poesias quarta, 21 de setembro de 2022

ARCO-ÍRIS (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

ARCO-ÍRIS

Olegário Mariano

 

 

 

Choveu tanto esta tarde
Que as árvores estão pingando de contentes.
As crianças pobres, em grande alarde,
Molham os pés nas poças reluzentes.

A alegria da luz ainda não veio toda.
Mas há raios de sol brincando nos rosais.
As crianças cantam fazendo roda,
Fazendo roda como os tangarás:

"Chuva com sol!
Casa a raposa com o rouxinol."

De repente, no céu desfraldado em bandeira,
Quase ao alcance da nossa mão,
O Arco-da-Velha abre na tarde brasileira
A cauda em sete cores, de pavão.


Poemas e Poesias terça, 20 de setembro de 2022

PRIMIR AMIGRAÇÃO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

PRIMEIRA MIGRAÇÃO

Olavo Bilac

 

 

 

Sinto as vezes ferir-me a retina ofuscada

Um sonho: - A Natureza abre as perpétuas fontes;

E, ao dano criador que invade os horizontes,

Vejo a Terra sorrir à primeira alvorada.

 

Nos mares e nos céus, nas rechãs e nos montes,

A Vida canta, chora, arde, delira, larada.

E arfa a Terra, num parto horrendo, carregada

De monstros, de mamuts e de rinocerontes.

 

Rude, uma geração de gigantes acorda

Para a conquista. A uivar, do refugio das furnas

A migração primeira, em torvelins, transborda.

 

E ouço, longe, rodar, nas primitivas eras,

Como uma tempestade entre as sombras noturnas,

O estrupido brutal dessa invasão de feras.

 


Poemas e Poesias segunda, 19 de setembro de 2022

SER FELIZ (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

SER FELIZ

Menotti Del Picchia

 

 

 

Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora.. .
Este sonho que ergui o poderia pôr
onde quisesse, longe até da minha dor,
em um lugar qualquer, onde a ventura mora;

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos… Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto o meu sonho de amor…
Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.

O homem foi sempre assim… Em sua ingenuidade
teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber se depois o achará…

E, quando vai buscar sua felicidade,
ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,
escondeu-a tão bem, que nem sabe onde está !


Poemas e Poesias domingo, 18 de setembro de 2022

EU QUERO ´TEU CALOR ANIMAL (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

EU QUERO É TEU CALOR ANIMAL

Mário Quintana

 

 

 

Mas onde já se ouviu falar num amor à distância,
Num teleamor ?!
Num amor de longe…
Eu sonho é um amor pertinho…
E depois
Esse calor humano é uma coisa que todos - até os executivos têm
É algo que acaba se perdendo no ar
No vento
No frio que agora faz…
Escuta!
O que eu quero
O que eu amo
O que eu desejo em ti
È teu calor animal…

 


Poemas e Poesias sábado, 17 de setembro de 2022

UMA TARDE EM CUMAN (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

UMA TARDE EM CUMAN

Maria Firmina dos Reis

 

 

 

Aqui minh'alma expande-se, e de amor
Eu sinto transportado o peito meu;
Aqui murmura o vento apaixonado,
Ali sobre uma rocha o mar gemeu.

E sobre a branca areia - mansamente
A onda enfraquecida exausta morre;
Além, na linha azul dos horizontes,
Ligeirinho baixel nas águas corre.

Quanta doce poesia, que me inspira
O mago encanto destas praias nuas!
Esta brisa, que afaga os meus cabelos,
Semelha o acento dessas frases tuas.

Aqui se ameigam de meu peito as dores,
Menos ardente me goteja o pranto;
Aqui, na lira maviosa e doce
Minha alma trina melodioso canto.

A mente vaga em solidões longínquas,
Pulsa meu peito, e de paixão se exalta;
Delírio vago, sedutor quebranto,
Qual belo íris, meu desejo esmalta.

Vem comigo gozar destas delícias,
Deste amor, que me inspira poesia;
Vem provar-me a ternura de tu'alma,
Ao som desta poética harmonia.

Sentirás ao ruído destas águas,
Ao doce suspirar da viração,
Quanto é grato o amor aqui jurado,
Nas ribas deste mar, - na solidão.

Vem comigo gozar um só momento,
Tanta beleza a me inspirar poesia!
Ah! vem provar-me teu singelo amor
Ao som das vagas, no cair do dia.

NB - Cuman - praias de Guimarães


Poemas e Poesias sexta, 16 de setembro de 2022

COTOVIA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

COTOVIA

Manuel Bandeira

 

 

 

— Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?

— Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe . . .
Voltei, te trouxe a alegria.

— Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.

— Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia . . .

— E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

— Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.

— Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!

— Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
— Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.


Poemas e Poesias quinta, 15 de setembro de 2022

O FAZEDOR DE AMANHECER (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O FAZEDOR DE AMANHECER

Manoel de Barros

 

 

 

Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
Três máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.


Poemas e Poesias quarta, 14 de setembro de 2022

POSTURAS MUNICIPAIS (POEMA DO PERNAMBUCANO MACIEL MONTEIRO)

POSTURAS MUNICIPAIS

Maciel Monteiro

 

 

 

Epigrama
(de Poesias, 1905)

 

Se há posturas de galinhas,
também há municipais;
aquelas produzem ovos,
estas sono e nada mais!

          Recife, 1905.

 


Poemas e Poesias terça, 13 de setembro de 2022

ORAÇÃO PARA NOSSA SENHORA DA BALA PERDIDA (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

ORAÇÃO PARA NOSSA SENHORA DA BALA PERDIDA

Luís Turiba

 

 

 

Mãe,
Afaste de mim esta bala
Este dardo inflamável
Esta seta diuturna
Este terror sem rumo
Este projétil alado e raso

Pois já que elas não cessam
Que pelo menos nos errem

Rogai por nós os passantes
Os transeuntes os pedestres
Os motoristas e as crianças
E principalmente as mães

Não nos faça alvos fáceis
Desta chuva de petardo
Não nos atinja o corpo
Nem a alma nem os prantos

Que veloz, não me alcance
Que sua força não me curve
Que seu fogo não me queime
Que o acaso não me derrube

Eu que diariamente passo
Por favelas becos vielas
Por túneis curvas células
Eu que faço o bom combate

Protegei as nossas vísceras
Das emboscadas bandidas
Dos acertos entre quadrilhas
Do fogo amigo ou polícia
Só te peço oh mãe amiga
Santa do cotidiano
Poupe-nos o banho de sangue

De passagem tão insana


Poemas e Poesias segunda, 12 de setembro de 2022

VERSOS A CLÃUDIO (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

VERSOS A CLÁUDIO

Luís Edmundo

 

 

 

 

Olha este riacho azul que vem da serra

E é um fio de cristal que vai rasgando

O seio bom e ubérrimo da terra,

O campo das lavouras fecundando.

 

Veio claro brotado entre açucenas,

Junto a um rochedo negro e luzidio,

Nem vai ao mar, que o pobre rio apenas

É o simples tributário de outro rio.

 

No entanto, olhe-se o campo em que ele desce,

A paisagem que o beira e que o emoldura,

O arvoredo copado, o trigo em messe,

Das campinas, a esplêndida fartura.

 

Tudo é fecundação, vida. A semente

Cai sobre a terra e brota. E, caminhando,

Lá vai ele descendo, lentamente,

A riqueza dos homens espalhando.

 

Vai; adiante, na curva de um caminho,

Num movimento de águas, em cachão,

Ele é que faz mover o velho moinho,

O trigo moendo e preparando o pão.

 

E, quando a noite, pelo céu sombrio,

Desce por sobre o campo e sobre a vila,

O homem na paz dos seus bendiz o rio

Que a existência lhe torna mais tranquila.

 

Deus, ao fazer a natureza, um dia,

Pôs nela toda a luz do seu ensino.

Por isso este regato cristalino

Vale um compêndio de filosofia.

 

Busca nele, meu filho, o teu retrato.

Sê útil, simples, bom, pra ser humano.

Muita vez a humildade de um regato

Vale todas as glórias de um oceano.


Poemas e Poesias domingo, 11 de setembro de 2022

ÉS BELA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

ÉS BELA

Júlio Dinis

 

 

 

És bela, sim, quando, corando, foges
De um beijo perseguida;
Ou quando cedes com mais pejo ainda,
Mas na luta vencida.

És bela, sim, quando, banhada em lágrimas,
Soltas mimosas queixas;
Ou quando, comovida por maus choros,
Já ameigar-te deixas.

És bela, sim, à luz do Sol nascente
Regando as tuas flores,
Ou com os olhos no ocaso e o pensamento
No país dos amores.

És bela sempre, e o mesmo fogo acendes
No coração do poeta;
És bela sempre, ó linda flor do prado,
Ó mimosa violeta.


Poemas e Poesias sábado, 10 de setembro de 2022

POEMA DO NADADOR (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

POEMA DO NADADOR

Jorge de Lima

 

 

 

A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador !
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a água é fêmea.
Nada, nadador !
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador !
A água te lambe, a água te abraça,
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador !
Senão , que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.


Poemas e Poesias sexta, 09 de setembro de 2022

OS TRÊE MAL-AMADOS (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)O

OS TRÊS MAL-AMADOS

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

 

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


Poemas e Poesias quinta, 08 de setembro de 2022

DUETO (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

DUETO

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

 

Bendita sejas tu, que escancaraste
uma janela em minha solidão,
e trouxeste com a luz, esse contraste
de luz e sombra em que meus passos vão…

Bendita sejas tu, que me encontraste
como um mendigo a te estender a mão,
e que inteira te deste, e assim, tornaste
milionário o meu pobre coração…

Bendita sejas tu, que, de repente
fizeste renascer um sol no poente
reacendendo esse ardor com que arremeto

e com que espero novamente a vida,
e transformaste, sem saber, querida,
a cantiga do só… num canto em dueto!


Poemas e Poesias quarta, 07 de setembro de 2022

EASPERANÇA (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

ESPERANÇA

Hilda Hilst

 

 

 

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.
Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.
E pensas maravilha quando pensas anca
Quando pensas virilha pensas gozo.
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas
Luta, ascese, e as mós do tempo vão triturando
Tua esmaltada garganta... Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.


Poemas e Poesias terça, 06 de setembro de 2022

EXORTAÇÃO (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

EXORTAÇÃO

Hermes Fontes

 

 

 

Noite..., silêncio..., paz..., calma..., sossego..., inércia..

Noite quer dizer sono e quer dizer loucura:

aquele - exerce-o o corpo em tréguas; esta, exerce-a

a alma - boêmia, a alma-louca, a alma leviana e impura.

Noite:...estrelas e luar... colmeia astral... Disperse-a

o sol - o caçador desalmado da Altura,

e as estrelas virão, novamente á solércia,

à atividade, à lei que as harmoniza e apura.
 

Noite - árvore de sóis, hospitaleira e boa!

Oásis de redenção - para as consciências presas

pelo Amor e que o Amor povoa e despovoa!

Noite: as estrelas são como chagas acesas...

Noite - viúva do Sol - acolhe-me e perdoa

minhas divagações e minhas incertezas...


Poemas e Poesias segunda, 05 de setembro de 2022

DESPERTAR (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

DESPERTAR

Guilherme de Almeida

 

 

Todo o meu medo
Todo o meu horror
O frio
A dor

Toda minha angústia
E meu tormento
Do ócio ao ódio
Virando desprezo

Tudo parte de mim

E talvez
Nada esteja errado
E todo o mal que eu enxergo
Estava todo em mim
Enterrado

 


Poemas e Poesias domingo, 04 de setembro de 2022

EVOLUÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

EVOLUÇÃO

Guerra Junqueiro

 

 

 

Arde o corpo do sol, brotam feixes de luz:
O que é a luz?
Sol que morreu.

Dardeja a luz, dardeja e pulveriza a fraga:
Vai nesse pó, que há-de ser terra,
A luz extinta.

Gerou a terra a seara verde:
Hastes e folhas da seara verde
Comeram terra.

A seara é grada, o trigo é loiro:
Deu trigo loiro,
Morrendo ela.

O trigo é pão, é carne e é sangue:
Sangue vermelho, carne vermelha,
Trigo defunto.

Em carne e em sangue, eis o desejo:
Vive o desejo,
De carne morta.

Arde o desejo, eis o pecado:
Que são pecados?
Desejos mortos.

Queima o pecado o pecador:
Nasceu a dor; findou na dor
Pecado e morte.

A alma branca, iluminada,
Transfigurada pela dor,
Essa não vai à sepultura
Porque é já Deus na criatura,
Porque é o Espírito, é o Amor.

Na vida vã da terra sepulcral
Só o amor é infinito e só ele é imortal.

Morreu a luz, pulverizando a fraga,
Morreu a poeira, alimentando a seara;
Morreu a seara, que gerou o trigo;
Morreu o trigo, que deu vida à carne;
Morreu a carne, que nutriu desejo;
Morreu desejo, que se fez pecado;
Morreu pecado, que floriu em dor;
Morreu a dor, para nascer o Amor!

E só o Amor na vida sepulcral
É infinito e é imortal!


Poemas e Poesias sábado, 03 de setembro de 2022

FECNDAÇÃO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

FECUNDAÇÃO

Gilka Machado

 

Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente...
de dentro deles teu amor me espia.

Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a pesuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas


Poemas e Poesias sexta, 02 de setembro de 2022

VILANCETE (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

VILANCETE

Gil Vicente 

 

 

 

Adorai, montanhas,
o Deus das alturas,
também das verduras.

Adorai, desertos
e serras floridas,
o Deus dos secretos,
o Senhor das vidas.
Ribeiras crescidas
louvai nas alturas
o Deus das criaturas.

Louvai arvoredos
de fruto prezado,
digam os penedos:
Deus seja louvado!
E louve meu gado,
nestas verduras,
o Deus das alturas.


Poemas e Poesias quinta, 01 de setembro de 2022

ÂNGELUS (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

ÂNGELUS

Francisca Júlia

 

 

 

A Filinto D'Almeida


Desmaia a tarde. Além, pouco e pouco, no poente,
O sol, rei fatigado, em seu leito adormece:
Uma ave canta, ao longe; o ar pesado estremece
Do Ângelus ao soluço agoniado e plangente.

Salmos cheios de dor, impregnados de prece,
Sobem da terra ao céu numa ascensão ardente.
E enquanto o vento chora e o crepúsculo desce,
A ave-maria vai cantando, tristemente.

Nest'hora, muita vez, em que fala a saudade
Pela boca da noite e pelo som que passa,
Lausperene de amor cuja mágoa me invade,

Quisera ser o som, ser a noite, ébria e douda
De trevas, o silêncio, esta nuvem que esvoaça,
Ou fundir-me na luz e desfazer-me toda.


Poemas e Poesias quarta, 31 de agosto de 2022

ÁRVORES DO ALENTEJO (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

ÁRVORES DO ALENTEJO

Florbela Espanca

 

 

Ao Prof. Guido Battelli

A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

<Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

<Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
– Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!


Poemas e Poesias terça, 30 de agosto de 2022

MADRUGADA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

 

MADRUGADA

Ferreira Gullar

 

 

Do fundo do meu quarto, do fundo
do meu corpo
clandestino
eu ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes.


Poemas e Poesias segunda, 29 de agosto de 2022

COMO INÚTIL TAÇA CHEIA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

COMO INÚTIL TAÇA CHEIA

Fernando Pessoa

 

 

 

Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.
Sonhos de mágoa figura
Só para Ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir.

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

 


Poemas e Poesias domingo, 28 de agosto de 2022

O RELÓGIO DO AMOR (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

O RELÓGIO DO AMOR

Fabrício Carpinejar

 

 

 

Até que ponto é possível amar sem ser amado?
Quando amamos platonicamente, o amor pode durar muito tempo. Pois não tem ninguém para estragar nossa idealização. Não há convivência para nos desafiar. É uma paixão estanque, feita de sonho e névoa. É uma vontade desligada da realidade. Temos a expectativa intacta, longe de contratempos. Acordamos e dormimos com o mesmo sentimento, longe de interrupção em nossa fantasia.
Mas quando amamos dentro de um casamento e quem nos acompanha não retribui o amor? Quanto tempo dura? Quanto tempo você suporta a secura, o desaforo, a grosseria? Quantos meses, se cada dia é um ano?
Nem estou falando de falta de sexo, mas a falta de beijo, de abraço, do colo, de perceber seus cabelos sendo penteados pelas mãos, de ver seu rosto encarado de forma única e brilhante.
Nem estou falando da falta de aventura, mas do conforto protetor, da cumplicidade, do afago que é viver com a certeza de que é admirado.
Nem estou falando da falta de viagens, mas do mínimo da rotina apaixonada, ser cuidado mesmo quando está distraído.
Nem estou falando de arroubos e arrebatamentos, mas da vontade de esperar o final de semana para estar junto.
Quanto tempo dura o amor sem retorno, sem reconhecimento?
Pouco, quase nada. Não é problema de carência, é questão de tortura.
É como dançar valsa sozinho, é como dançar tango sozinho, não tem como. É abraçar pateticamente o invisível e não ter o outro corpo para garantir seu equilíbrio.
Você se verá um mendigo em sua própria casa, diminuído, triste, desvalorizado, esmolando ternura e atenção. Todo o corredor torna-se pedágio da hostilidade. Passará a evitar os cômodos para não brigar, passará a evitar certos horários para não se encontrar, passará a prolongar os períodos na rua, passará apenas a passar. Comerá de pé para evitar o silêncio insuportável entre os dois.
Por ausência de gentileza, perdemos romances. O que todos desejam é alguém que diga: não vou desperdiçar essa chance de amar. Alguém que não canse das promessas, que não sucumba ao egoísmo da indiferença.
A gentileza é tão fácil. É fazer uma comida de surpresa, é convidar a um cinema de imprevisto, é pedir uma conversa séria para apenas se declarar, é comprar uma lembrancinha, é chamar para um banho junto, é oferecer massagem nos pés, é perguntar se está bem e se precisa de alguma coisa, é tentar diminuir a preocupação do outro com frases de incentivo.
Quando alguém não dá corda ao relógio do coração, o pêndulo do amor para. Não se vive desprovido de gentileza. A gentileza é o amor em movimento.

Poemas e Poesias sábado, 27 de agosto de 2022

MARAT (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

MARAT

Euclides da Cunha

 

 

 

Foi a alma cruel das barricadas!…
Misto de luz e lama!… se ele ria,
As púrpuras gelavam-se e rangia
Mais de um trono, se dava gargalhadas!…

Fanático da luz… porém seguia
Do crime as torvas, lívidas pisadas.
Armava, à noite, aos corações ciladas,
Batia o despotismo à luz do dia.

No seu cérebro tremente negrejavam
Os planos mais cruéis e cintilavam
As idéias mais bravas e brilhantes.

Há muito que um punhal gelou-lhe o seio.
Passou… deixou na história um rastro cheio
De lágrimas e luzes ofuscantes.


Poemas e Poesias sexta, 26 de agosto de 2022

TROVAS HUMORÍSTICAS - 15 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 15

Eno Teodoro Wanke

 

Filhinho, vai dar um beijo

Aqui na moça! Não vai?

Não dou! Se eu der, ela bate

Como fez com o papai


Poemas e Poesias quinta, 25 de agosto de 2022

SONETO (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

SONETO

Dom Pedro II

 

 

 

Segredo d'alma, da existência arcano,
Eterno amor num instante concebido,
Mal sem esperança, oculto a ente humano,
E nunca de quem fê-lo conhecido.

Ai! Perto dela desapercebido
Sempre a seu lado, e só, cruel engano,
Na terra gastarei meu ser insano
Nada ousando pedir e havendo tido!

Se Deus a fez tão doce e carinhosa,
Contudo anda inatenta e descuidosa
Do murmúrio de amor que a tem seguido.

Piamente ao cru dever sempre fiel
Dirá lendo a poesia, seu painel:
"Que mulher é?" Sem tê-lo compreendido.

 


Poemas e Poesias quarta, 24 de agosto de 2022

SÃO LUÍS (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)

SÃO LUÍS

Dagmar Destêrro

 

 

 

 

São Luís

pequena sala de objetos antigos

do nosso imenso e querido Brasil.

 

São Luís

dos sobradões de azulejos,

do lendário Ribeirão,

do cuxá com peixe frito

e do gostoso camarão.

 

São Luís

da canção dolente

que mexe com o coração da gente

na voz doce de um Romeu.

 

São Luís

é antiga

e tão cheia de ladeiras!

Nestas, as casas inclinadas

parecem moças cansadas,

recurvadas,

fatigadas,

depois de um baile infernal.

São Luís é tão linda!

É minha terra natal!

 

São Luís

de Ana Jansen,

Pai-Avô

e o pobre Maia,

que pela rua, cantando,

deixava a gente pensando,

dava trabalho à memória:

qual será sua história?

 

São Luís

é saudade!

Dantes havia,

bem me lembro,

casinhas pobres,

na porta,

uma luz vermelha,

morta,

era a trombeta silenciosa

anunciando·a existência

da tainha frita, gostosa.

 

Isso foi quando eu era

bem criança.

Essa luz vermelha, morta,

guardei sempre na lembrança.

 

São Luís

é sala antiga

é o retrato da saudade;

desafio da esperança

transformado em realidade.

 

Vibrante, alegre, altaneira,

romântica e cultural.

São Luís é terra linda.

É minha terra-natal! 


Poemas e Poesias terça, 23 de agosto de 2022

NA TARDE AZUL E TRISTE (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

NA TARDE AZUL E TRISTE

Da Costa e Silva

 

 

 

O meu jardim amanhecera
Constelado de brancas margaridas,
Que orvalhadas, ao sol, eram estrelas
Desencantadas e pensativas...

Depois, na tarde azul e triste,
A terra abriu-se para receber-te!

Adormeceste para sempre,
Baixando à terra com as margaridas...
E à noite o céu era um jardim do Oriente
Florindo em luzes pela tua vinda!

Anoitecia no meu pensamento...


Poemas e Poesias segunda, 22 de agosto de 2022

A DOR (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

A DOR

Crua e Sousa

 

 

 

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! reteza os músculos, reteza
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.


Poemas e Poesias domingo, 21 de agosto de 2022

ORAÇÃO DO MILHO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

ORAÇÃO DO MILHO

Cora Coralina

 

 

 

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. Ponho folhas e haste e se me ajudares Senhor, mesmo planta de acaso, solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos, o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo. E de mim, não se faz o pão alvo, universal.
O Justo não me consagrou Pão da Vida, nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre. Alimento de rústicos e animais do jugo.
Fui o angú pesado e constante do escravo na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante. Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paiois.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o carcarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizeste necessária e humilde
Sou o milho.


Poemas e Poesias sábado, 20 de agosto de 2022

ANTANDRA - ROMANCE II (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

ANTANDRA - ROMANCE II

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 

Pastora do branco arminho,
Não me sejas tão ingrata:
Que quem veste de innocente,
Não se emprega em matar almas.
 
5Deixa o gado, que conduzes;
Não o guies á montanha:
Porque em poder de uma fera,
Não póde haver segurança.
 
Mas ah! Que o teu privilegio,
10É louco, quem não repara:
Pois suavizando o martyrio,
Obrigas mais, do que matas.
 
Eu fugirei; eu, Pastora,
Tomarei sómente as armas;
15E hão de conspirar comigo
Todo o campo, toda a praia.
 
Tenras ovelhas,
Fugi de Antandra;
Que é flor fingida,
20Que aspides cria, que venenos guarda.


Poemas e Poesias sexta, 19 de agosto de 2022

EU QUE SOU FEIO, SÓLIDO, LEAL (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

EU QUE SOU FEIO, SÓLIDO, LEAL

Cesário Verde

 

 

Eu que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa de um café devasso,
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,
Nesta babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorrestes um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, sudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
...
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

«Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!»
De repente, parastes embaraçada
Ao pé de um numeroso ajuntamento,

E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Um pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.


Poemas e Poesias quinta, 18 de agosto de 2022

NOÇÕES (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

NOÇÕES

Cecília Meireles

 

 

 

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que
a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
inúmera...


Poemas e Poesias terça, 16 de agosto de 2022

OS TRÊS AMORES (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

OS TRÊS AMORES

Castro Alves

 

 

 

Minh’alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes...
— Tu és Eleonora...

II

Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta.
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
- E tu és Julieta...

III

Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha
Eu morro, se desfaço-te a mantilha
Tu és — Júlia, a Espanhola!...


Busca


Leitores on-line

Carregando

Arquivos


Colunistas e assuntos


Parceiros