Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 22 de junho de 2018

O MAIOR ABANDONADO

 

A festa na casa de Rita e Eudo, em Nova-Cruz (RN), num dia de sábado, começou ao meio dia. Era o aniversário do dono da casa. Vários amigos e familiares foram convidados.

Dona Leide e Seu Vítor, exímio violonista, tinham chegado de Natal, para prestigiar o aniversário do filho.

A família gostava muito de música. Quase todos os membros tocavam algum instrumento e cantavam bem, como amadores.

No alpendre da casa, formou-se uma animada roda de amigos, com violão, cavaquinho, sanfona, pandeiro, afoxé e tantã.

Logo começaram as rodadas de cerveja e tira-gostos, muita música e muita animação.

Depois do almoço, a farra continuou, entrando pela noite. A turma demorou muito a dar sinal de cansaço. Aos poucos, alguns convidados foram se despedindo, mas a música custou a parar. A bebedeira tinha sido pesada e o sono estava chegando.

Altas horas da noite, ainda estavam no alpendre, conversando, o amigo Carlito, o aniversariante e o seu pai. Os três, mesmo exaustos, ainda tomavam cerveja.

Entretanto, pela madrugada, já cansados de beber, os três ficaram sem assunto e o astral baixou.

Antes de se despedir, o amigo Carlito, completamente embriagado, resolveu “fazer uma fala.” Dizendo-se emocionado e feliz, por estar ali ao lado de dois grandes amigos, pai e filho, o “orador” assim se expressou:

– Não tive a felicidade de conhecer meu Pai! Como eu gostaria de ter convivido com ele! Mas nem sequer me lembro do seu rosto, pois eu só tinha três meses quando ele morreu!

Que coisa linda, pai e filho, grandes amigos e bebendo juntos! Como esta cena que estou vendo me comove! Ô coisa do meu agrado! Foi a cena mais bonita, que encontrei no meu caminho! Como eu tenho inveja de quem tem pai vivo!

A emoção também dominou Eudo e o pai, e os três amigos choraram abraçados. Pai e filho abriram as torrentes, em solidariedade à orfandade do amigo Carlito.

Controladas as emoções, o aniversariante também resolveu falar, para consolar o amigo órfão, que, por sinal, já tinha 50 anos de idade:

– Carlito, a partir de agora, quero que você me chame de PAPAI…

O órfão se abraçou com seu novo pai, aceitando a simpática proposta. Em lágrimas e com voz pastosa, de quem passara o dia bebendo, falou:

– A “BENÇA”, PAI!

Por coincidência, Eudo, naquele dia, estava completando 50 anos, a mesma idade do amigo Carlito. Jamais poderiam ser pai e filho.

Enquanto os três amigos choravam de emoção, as três esposas, que haviam escutado a conversa dos bêbados, não paravam de rir.

A cena ficou na história.

 

 

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 15 de junho de 2018

A DEVOÇÃO A SÃO MURALHAS

 

Antigamente, nas Escolas Públicas, uma vez por semana havia uma “hora cívica”, antes do início das aulas. A Diretora se reunia no pátio da escola, com os professores e todos os alunos. Havia o hasteamento da Bandeira Brasileira e todos cantavam o Hino Nacional, com a mão no coração.

Uma das matérias que faziam parte do currículo escolar era Canto Orfeônico. A professora, geralmente uma musicista, ensinava aos alunos a cantar todos os hinos cívicos brasileiros. Todos eram obrigados a decorar as letras.

 

 

Depois do Hino Nacional, o Hino mais cantado no Colégio era o Hino da Independência, principalmente na Semana da Pátria.

Rosinha, uma aluna do Colégio das Freiras, desde criança aprendeu a cantar os hinos cívicos. Muito religiosa, tornou-se devota de São Muralhas, e o elegeu seu santo protetor. Era com ele que se pegava quando tinha prova de Matemática, o terror das alunas. Entretanto, nunca viu no colégio ou em nenhuma Igreja uma imagem do santo da sua devoção.

A jovem pagava promessas a São Muralhas, acendendo velas para ele ou rezando terços em sua intenção.

Certo dia, Rosinha pediu à Dona Neusa, sua mãe, que lhe comprasse uma imagem de São Muralhas. Apesar de ser católica, a mulher disse à filha que não conhecia esse santo, mas iria à lojinha da Igreja Matriz, para ver se conseguia comprar alguma coisa relacionada com ele. Não encontrou imagem, retrato, nem oração de São Muralhas. Dona Neusa resolveu, então, falar com o Vigário da Paróquia, para obter informações sobre esse santo. Padre José lhe garantiu que esse santo não existia.

Rosinha não se conformou com a notícia e continuou devota de São Muralhas.

Era a Semana da Pátria. No Colégio, houve a “hora cívica”, com o hasteamento da Bandeira Brasileira. Todos os presentes cantaram o Hino Nacional, e em seguida o Hino da Independência.

Foi aí que Rosinha fortaleceu a sua fé em São Muralhas. Ele realmente existia e era um santo forte e poderoso. O povo é que era burro, pois nem ao menos o Padre José sabia da sua existência..

O problema é que a terceira estrofe do Hino da Independência diz:

“Não temais ímpias falanges,
Que apresentam face hostil;
Vossos peitos, vossos braços
“SÃO MURALHAS DO BRASIL”

Depois da solenidade, Rosinha foi perguntar à Madre Superiora por que São Muralhas era tão desprezado, se até no Hino da Independência do Brasil ele era citado. Sabia que ele era poderoso, pois quando ela queria alcançar uma graça era a ele que fazia promessas, e nunca deixou de ser atendida.

A religiosa ficou chocada com a fraca inteligência de Rosinha. Foi difícil fazê-la aceitar que esse santo não existia. Simplesmente, a jovem não conseguia entender o significado da letra do Hino da Independência.

Aliás, os antigos hinos cívicos usavam uma linguagem erudita, que nem todas as pessoas compreendiam. Foi o caso de Rosinha.

As “ímpias falanges” significavam as tropas inimigas, que estavam prestes a enfrentar as forças brasileiras. E o Hino dava força aos brasileiros, dizendo:

“VOSSOS PEITOS, VOSSOS BRAÇOS
“SÃO MURALHAS” DO BRASIL”

Esse hino foi composto em homenagem à Independência do Brasil, do domínio da Coroa Portuguesa (07.09.1822), pelo poeta, jornalista, político e livreiro brasileiro, Evaristo da Veiga. No estilo árcade, o Hino da Independência pretende engrandecer o Brasil e o seu principal produto, o brasileiro.

Na letra, há uma saudação ao povo brasileiro, desejando-se que a servidão à Coroa Portuguesa não mais retorne.

A decepção de Rosinha foi grande, ao saber que São Muralhas do Brasil só existia na cabeça dela.

 

 

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 08 de junho de 2018

O CAMPEÃO

 

Décadas atrás, em Natal, na descida do Baldo, um pequeno grupo de boêmios gostava de se reunir na calçada de uma bodega muito simples, onde só havia uma mesa velha e algumas cadeiras. No começo, eram poucos frequentadores, mas depois houve outras adesões. Os novatos sentavam-se até em caixotes vazios. Não queriam perder as boas conversas e o bom humor dos frequentadores.

 

O tira-gosto era sardinha, cujas latas ornamentavam as duas prateleiras da bodega. As bebidas disponíveis eram cerveja, cachaça e refrigerantes.

A bodega era humilde, e o próprio dono fazia as vezes de empregado da limpeza e de garçom. Era um senhor alto, forte e careca, muito receptivo e carismático. Zé Coroa, como era chamado, era muito querido pelos boêmios. Eles preferiam passar o dia todo nessa simples calçada, bebendo e batendo papo, a frequentar barzinhos de luxo. Só funcionava durante o dia.

Havia uma hierarquia entre os bebedores, de acordo com a capacidade etílica de cada um. Nilton, o líder dos frequentadores, tinha o apelido de “Campeão”, pois já tinha chegado a beber sozinho, num dia, uma grade de cerveja, ganhando uma aposta. O apelido pegou. Os mais fracos, que não aguentavam o rojão e se embriagavam rapidamente, eram chamados de “sem futuro”. Se atrapalhassem o ambiente, recebiam cartão vermelho do dono da bodega.

Campeão, representante comercial, era o mais falante da turma, simpático e o mais atualizado com as notícias de jornais. Por isso, era muito respeitado, e considerado “intelectual”. Quando falava, sua voz bonita e eloquente fazia com que todos o ouvissem com atenção.

Certa vez, Campeão conheceu Anita, uma jovem muito bonita, novata no bairro. Foi paixão mútua, à primeira vista. Ao vê-lo ser tratado com respeito e ser chamado de Campeão, a moça imaginou que ele fosse lutador de artes marciais.

Pouco tempo depois, conversando com uma conhecida, Anita falou no seu novo namorado, e ficou sabendo que ele era “campeão de bebedeira”. O rapaz era um alcoólico inveterado. Divorciado e com dois filhos, não havia jeito de maneirar a bebida. A cerveja e o cigarro, para ele, eram sagrados. A moça ficou decepcionada, mas preferiu ignorar o que considerou um “boato”. Foi a segunda esposa de Campeão, mas a paixão violenta que os uniu logo se transformou em “fogo de palha”.

O cervejeiro, vencedor de apostas, algum tempo depois estragou sua saúde. Não acreditou nos médicos. Quando resolveu levar o tratamento a sério e parar de beber, já era tarde. Dessa vez, ele perdeu o título de Campeão. Venceu a cirrose.

 

 

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 01 de junho de 2018

O PALHAÇO

 

O mundo mágico do Circo sempre encantou crianças e adultos.

Rute aprendeu a gostar de Circo desde criança. Sempre que chegava um bom Circo ao Recife, seus pais a levavam, nas tardes de domingo, para assistir aos divertidos espetáculos. Entre todos os Circos que passavam temporadas em Recife, o que mais se destacava, pelo luxo, beleza e talento dos artistas, era o Circo Nerino. Eram números de palco e picadeiro, com acrobatas, trapezistas, palhaços, além dos belos animais.

Mesmo passando temporadas em todos os Estados do Brasil, houve ocasião do Circo Nerino permanecer um ano inteiro no Recife, mudando apenas de bairro. Às vezes, também percorria as melhores cidades do interior de Pernambuco.

Depois de muitos anos, as idas do Circo Nerino ao Recife foram diminuindo, até que cessaram definitivamente.

 

 

As lembranças do Circo Nerino nunca saíram da memória de Rute, mesmo depois de casada. Seu sonho era levar as duas filhas a esse mundo mágico, no dia em que ele retornasse ao Recife. As meninas ouviam a mãe falar desse fantástico espetáculo de beleza e alegria, como se fosse um conto de fadas.

Certa vez, no final de 1969, Rute soube que havia chegado a Olinda um maravilhoso Circo, chamado Circo Garcia. Entretanto, sendo da “torcida organizada” do Circo Nerino, tal qual uma torcedora fanática de um time de futebol, não admitia que nenhum outro Circo pudesse superá-lo. Mesmo assim, entregou os pontos e numa tarde de domingo, foi com as filhas ao Circo Garcia.

Quando passava pela entrada, Rute olhou para o porteiro, enquanto lhe entregava os ingressos, e no mesmo instante reconheceu nele um dos mais famosos acrobatas do Circo Nerino. Sem conter a emoção, falou:

– Seu Gaetan!

E o homem respondeu:

– A senhora me conhece?

– Conheço! O senhor é do Circo Nerino! .

O homem ficou calado. A mulher insistiu:

– Seu Gaetan, onde está o Circo Nerino? Onde estão os outros artistas? Onde está o Roger?

O porteiro nada respondeu.

Gaetan acompanhou Rute e as filhas até as cadeiras, mesmo ela tendo comprado entradas para os poleiros, de onde se podia ver melhor o Picadeiro.

No intervalo, Rute viu Gaetan vendendo pipocas, pirulitos e balas.

Quando o espetáculo acabou, o homem chamou Rute e as filhas e as levou aos camarins. Foi então que a mulher se emocionou, ao ver Roger, o mais bonito galã do Circo Nerino, e filho do dono, com uma toalha na mão, tirando a maquiagem de palhaço. Era ele que, no Circo Nerino, sabia se equilibrar com perfeição nas ancas de um belo cavalo. Agora, era um simples palhaço, do Circo Garcia.

Rute ficou sabendo que as famílias Avanzi e Garcia haviam se unido, com o casamento de Roger e Anita.

Soube também que, há muito tempo, Roger se tornara o Palhaço Picolino, substiuindo o pai, o saudoso Nerino Avanzi. Sua mãe, Armandine Avanzi e seu tio Gaetan Ribolá estavam com ele, há meses, no Circo Garcia.

A permanência do Circo Garcia, em Olinda, passou despercebida pela imprensa, até que no dia 10 de março de 1970, o Diário de Pernambuco noticiou: “Gaetan Ribolá, do Circo Nerino, que se encontrava no Circo Garcia, está morto.” O artista sofrera um enfarte fulminante.

Gaetan Ribolá, irmão de Nerino Avanzini, foi velado no Recife, na Capela do Hospital Santa Maria, no Bairro Cordeiro. Presentes ao velório, um pequeno número de amigos da cidade e alguns artistas do Circo Garcia.

Roger Avazani passou o dia providenciando os documentos, para transportar o corpo do tio para João Pessoa (PB), onde a família tinha um jazigo. Chegou ao velório no final da tarde, e, logo que anoiteceu, precisou ir para o Circo, porque naquela noite teve espetáculo. E o espetáculo não pode parar. O espetáculo continua!

Sendo palhaço há mais de dez anos, Roger já tinha sentido o amargor de ter que fazer rir, com vontade de chorar. Mas, naquela noite, vestido de palhaço, e executando seu número de ciclismo cômico, ele abriu as comportas e chorou copiosamente.

Ainda de madrugada, encerrou-se o velório. O caixão foi fechado e colocado na carroceria da caminhonete do Circo Garcia.

Roger na direção, sua mãe Armandine e uma amiga apertaram-se no banco da caminhonete, e seguiram para João Pessoa (PB).

Inúmeras vezes, desde a década de 1940, Gaetan percorreu aquela estrada. Dirigiu os primeiros caminhões da frota que o Circo Nerino viria a adquirir, até o início de 1950. Comandava uma caravana de carros-moradia, que ele próprio ajudara a construir.

Ao amanhecer, a caminhonete chegou a João Pessoa, e logo depois estacionou na frente do Cemitério. Um grupo de pessoas aproximou-se. Eram os radioamadores que souberam da morte de Gaetan, por meio de uma colega do Recife, que se encarregara de divulgar a notícia e que se chamava Nerina. Por sinal, essa radioamadora era muito amiga de Dr. Ernani Hugo, ex -titular da Delegacia de Ordem Política e Social do Rio Grande do Norte.

Eles estranharam a solidão daquela caminhonete. Esperavam uma grande carreata. O sol já ia alto e os radioamadores precisavam trabalhar. Não puderam ficar até o fim do ato.

E assim, Gaetan Ribolá, que já havia sustentado uma pirâmide de cinco homens, e foi a viga mestra do Circo Nerino, e irmão do dono, foi enterrado sem nenhuma pompa. Não teve grinaldas, salva de tiros, ramalhetes de flores, nem discursos de “autoridades civis, militares ou eclesiásticas”. Não teve, sequer, os aplausos daquele a quem dedicou sua vida: O RESPEITÁVEL PÚBLICO.

“Aplauso não se pede. O povo aplaude quando quer”.

 

 

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 25 de maio de 2018

A PROMESSA

São Severino do Ramo (ou São Severino dos Ramos) é uma imagem devocional católica, centro de um importante culto religioso, em alguns estados do Nordeste do Brasil, como Pernambuco e estados vizinhos.

A estátua em tamanho natural, cuja origem é incerta, representa São Severino de Nórica, deitado e vestido em trajes de soldado romano. Encontra-se na Igreja de Nossa Senhora da Luz, no município pernambucano de Paudalho, em uma capela ao lado do altar principal.

Os primeiros relatos da realização de milagres por intermédio de São Severino do Ramo datam do século XIX, quando se espalhou o boato de que a estátua seria o próprio cadáver incorrupto de São Severino, de tal maneira preservado, que se fosse furado, verteria sangue.

A notícia se espalhou entre os habitantes das regiões circunvizinhas. Chegou a outros estados do Nordeste, e passou a atrair grande número de romeiros, para visitar a Igreja de Nossa Senhora da Luz, no Engenho Ramos, onde a estátua se encontrava. Logo o São Severino do Engenho Ramos tornou-se São Severino do Ramo, nome pelo qual a devoção é até hoje conhecida.

A devoção a São Severino do Ramo continua sendo uma manifestação religiosa, ainda importante nesses estados, tendo sido mencionada por João Cabral de Melo Neto, no poema “Morte e Vida Severina”.

Essa devoção é fundamentada na Devoção de São Severino, soldado romano, martirizado nos primeiros séculos do cristianismo.

O Martirológio Romano de 1930 acrescenta que São Severino foi martirizado no tempo de Diocleciano, e que as suas relíquias se conservaram em catacumbas romanas.

Pois bem. Décadas atrás, em Nova-Cruz, cidade do interior do Rio Grande do Norte, era comum o deslocamento de devotos até o santuário de São Severino do Ramo, para o pagamento de promessas alcançadas. A viagem de ida e volta era feita no trem que trafegava de Natal para Recife, e de Recife para Natal, com parada na Estação Ferroviária de Nova-Cruz. Os romeiros costumavam regressar no dia seguinte. Levavam objetos de cera, como cabeças, braços, mãos, joelhos ou pernas, para depositar aos pés do altar, conforme o milagre alcançado.

Certa vez, a devota dona Luísa, de Nova-Cruz, viajou até Paudalho, (PE), para pagar uma promessa a São Severino do Ramo. Foi na companhia do marido Dilermano e da filha Rose, de 8 anos. Levava numa bolsa uma cabeça de cera, para depositar aos pés do altar e uma oferta em dinheiro.

A menina passara mais de um ano se tratando de uma impingem na cabeça, doença de pele, cujo nome científico é “Tinha Corporis” (Tinea Corporis), provocada por um fungo altamente contagioso. Em vez de cicatrizar com os unguentos indicados pelo médico consultado, a “Tinha” se alastrava cada vez mais, com forma arredondada e atingindo o tamanho de um pires. Na parte afetada, o cabelo caiu todo, ficando exposto o couro cabeludo. Era uma ferida repugnante, que causava à doente ardores insuportáveis.

Desesperada, vendo a filha piorar cada vez mais, Dona Luísa se pegou com São Severino do Ramo, fazendo uma promessa de viajar até o seu santuário, para dar o seu testemunho, se a menina fosse curada. Levaria também uma cabeça de cera e uma oferta em dinheiro.

Depois de dois meses, Rose estava curada. A ferida sarou completamente. Aos poucos, os cabelos foram nascendo novamente.

A notícia do milagre se espalhou em Nova-Cruz e o número de devotos de São Severino do Ramo aumentou bastante.

Dona Luísa, o marido e a filha foram, de trem, a São Severino do Ramo pagar a promessa. Desembarcaram na Estação Ferroviária de Paudalho, e se hospedaram num pequeno hotel da cidade. Chegaram com antecedência ao santuário, para a Missa que seria celebrada às 10 horas da manhã.

Depois de falar com o celebrante da Missa, entregar sua oferta e depositar a cabeça de cera aos pés do altar de São Severino do Ramo, Dona Luísa, ao lado do marido e da filha curada, deu o seu testemunho, sob um clima de grande emoção. Para os fiéis, estava configurado mais um milagre, com a cura da menina Rose.

Voltaram para o hotel, onde almoçaram e depois foram a uma feirinha de artesanato nas imediações, onde predominavam motivos religiosos.

Nessa feirinha, Dona Luísa notou que sua bolsa estava aberta e dela tinham furtado a “capanga” do seu marido, portando o dinheiro para as despesas, documentos e talão de cheque.

Desesperados, o casal e a filha curada voltaram ao santuário, na intenção de pedir que lhes fosse devolvida uma parte da oferta que tinham feito. Mas o vigário já tinha se retirado, levando consigo todo o dinheiro.
Ajoelhados, os romeiros rezaram muito, e imploraram a São Severino do Ramo que lhes concedesse a graça de recuperar o que lhes fora furtado. A fé que tinham nesse santo milagroso continuava inabalável.

A viagem, de volta para Nova-Cruz, seria às 5 horas da manhã, no trem de Recife.

Um caminhoneiro, hóspede do mesmo hotel, ouviu o casal contar ao gerente o furto ocorrido, e se ofereceu para levá-los à Delegacia de Polícia, para prestar queixa, e registrar o B.O.  (Boletim de Ocorrência). Ao chegarem à Delegacia, viram entrar um casal, preso, conduzido por dois policiais.

Imediatamente, Dona Luísa reconheceu a “capanga” do seu marido, que a mulher trazia na mão, e, sem se controlar, falou para o Delegado, em voz alta:

– Esta “capanga” é a do meu marido!!!

Depois de confrontados o conteúdo da “capanga” e o furto registrado em B.O.  Dilermano recuperou totalmente o que lhe tinha sido furtado. Estava tudo intacto: O dinheiro, os documentos e o talão de cheque.

Mais um testemunho de uma graça alcançada. Outro milagre de São Severino do Ramo.


A fé remove montanhas.

 

 

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 18 de maio de 2018

O RIRRI

 

A história do zíper, fecho éclair ou simplesmente “fecho”, começou em 1893, na Exposição Mundial de Chicago, nos EUA, onde esse objeto deslizante, para fechar e abrir roupas, foi apresentado pela primeira vez. Tratava-se de uma versão primitiva do dispositivo, com minúsculos ganchos e argolas, desenvolvida pelo engenheiro americano Whitcomb Judson. Cansado de abrir e fechar todos os dias os cordões dos seus sapatos, ele teve a ideia de criar um artefato rústico, composto de ganchos e furos, para facilitar. Porém, esse tipo de zíper não era muito eficiente: não fechava com facilidade e abria em horas impróprias.

O mecanismo atual do zíper, com o uso de dentes que se engancham, surgiu, somente, em 1912, desenvolvido por Gideon Sundback, um engenheiro elétrico sueco, que trabalhava nos Estados Unidos. No mesmo ano, a patente para um sistema semelhante foi concedida na Europa em nome de uma mulher chamada Catharina Kuhn-Moos. A indústria de confecção foi a mais beneficiada com essa invenção, que facilitou, de maneira fantástica, o abrir e fechar de roupas.

Antes do zíper, as roupas tinham fileiras intermináveis de botões.

A palavra “zíper” só surgiu em 1923. Ela foi criada por um funcionário da empresa americana B.F. Goodrich, que usou o termo para dar nome ao fecho deslizante, que acabava de ser lançado numa linha de galochas de borracha, as chamadas Zipper Boots (“Botas Zipper”).

Antigamente, no interior nordestino, os fechos de saias e vestidos eram chamados de “Rirri”. Zíper e Fecho-Eclair não eram palavras conhecidas. Toda saia ou vestido tinha um “Rirri”, costurado numa fenda lateral ou nas costas, que variava de 20 a 35 centímetros. Tinha a finalidade de facilitar o vestimento da peça, na passagem pela cabeça. O nome está ligado ao som, provocado pelo seu fechamento ou abertura, quando as duas carreiras de dentinhos de metal deslizam sobre os trilhos que o compõem.

De acordo com o costume, as barguilhas (ou braguilhas) das calças masculinas eram fechadas com botões. Somente com a moda de calças Jeans (Faroeste, Lee etc), tecido bastante pesado, os botões foram substituídos pelo Rirri.

Convém salientar que, enquanto os botões nunca causaram danos físicos ao homem, o “Rirri” lhe tem causado muitos “acidentes”. Já houve casos do homem ficar preso a ele, pela pele do membro sexual, ao abrir ou fechar a calça ou bermuda, com necessidade de procedimento cirúrgico.

A primeira participação desse utilitário, na indústria do vestuário, aconteceu durante a I Guerra Mundial, quando os uniformes dos soldados norte- americanos foram confeccionados com zíper nas calças.
Na II Guerra, foi usado em sacos de dormir, uniformes, malas e sacolas para transporte de mortos.

Na década de 50, a calça “LEE” fez, a união do z¡per com jeans, quando lançou a calça de jeans feminina.
Na década de 70, o zíper triunfou no setor do vestuário, entrando em contato com a alta costura. Também esteve a serviço do vestuário dos Hippies e dos Astronautas.

No Brasil o maior fabricante do zíper é a YKK, Yoshida Brasileira Indústria e Comércio, com sede no Japão e atuando em 44 países. Os outros fabricantes são: Linhas Correntes e Metalúrgica Ultra.
Há casos hilários, envolvendo o zíper.

Uma certa noite, um jovem casal de “sem carro”, com os hormônios fervendo, estava namorando na calçada da casa da moça. Já era tarde, a rua deserta, e o pai da jovem assobiou, dando sinal de que estava na hora de entrar. Ao ver a filha demorando, o homem foi até a calçada e flagrou o casal abraçado, debaixo de um pé de Castanhola, sem poder se apartar. O rapaz, em pânico, tentava fechar o zíper da calça, que ele mesmo abrira, e não conseguia. O pai da moça deu um escândalo com os dois e marcou a data do casamento na hora.

 

 

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 11 de maio de 2018

O JOGO
 

Cena ocorrida no caminho do século passado, meados da década de 60. Numa cidade do interior nordestino,. Seu Messias, comerciante e religioso fanático, sabia a Bíblia decorada, e gostava de pregar a palavra de Deus a toda hora. Falava difícil e gostava de impressionar os ouvintes, usando sempre palavras desconhecidas, tiradas do dicionário. As pessoas simples, que o escutavam, não entendiam nada.

Era convencido de que o homem mais santo, mais honesto e mais inteligente do mundo era ele mesmo. Acima dele, só havia Jesus Cristo. Gabava-se de respeitar a lei e tinha horror a jogo de azar, principalmente ao jogo do bicho. Sabia que, de acordo com a lei, jogo de azar era contravenção penal. Gostava de dizer que o seu dinheiro era fruto do trabalho honesto. Ficava no balcão da sua mercearia, das 7 horas da manhã às 5 da tarde. Ia em casa almoçar ao meio dia e antes das 2 estava de volta.

Certa manhã, entrou no seu estabelecimento comercial um cambista chamado Chicão, com o talão de apostas na mão, insistindo para que ele jogasse no bicho:

– Seu Messias, faça aqui uma aposta no bicho, pra me ajudar! Meu talão ainda está inteiro… Tenho um palpite pra hoje, e tenho certeza que vai dar Galo, 13. Tive um sonho de ontem pra hoje e quando eu sonho, é “batata”! .

Seu Messias danou-se de raiva e disse uns desaforos ao cambista:

– Rapaz, como é que você tem um atrevimento desse? Adentrar ao meu estabelecimento comercial, propondo-me que cometa uma contravenção penal!! Jogo do bicho é contra a lei e coisa do Satanás! Eu sou um homem temente a Deus e um cidadão íntegro! Tenho princípios morais!!! Você me respeite!!!

O cambista não conseguia entender o motivo de tanta indignação. Afinal, muita gente boa da cidade jogava no bicho, abertamente. E ainda insistiu:

– Estou precisando de dinheiro pra feira, seu Messias. Meu trabalho de cambista é o que me sustenta. Jogue, ao menos pra me ajudar!

O comerciante, para se ver livre do cambista, e também para ajudá-lo, deu-lhe 5 cruzeiros, e pediu que fosse oferecer jogo a outra pessoa.

O cambista saiu encabulado e nem sequer agradeceu os 5 cruzeiros.

No final do expediente, Chicão entrou novamente na mercearia e foi recebido pelo comerciante com “quatro pedras na mão”:

– Não acredito que você voltou aqui para me encher o saco novamente!

E o cambista, sorrindo, respondeu:

– Seu Messias, o bicho foi GALO e o senhor ganhou na milhar!!!

Perplexo, o comerciante perguntou:

– Como ganhei, se nem ao menos joguei?!!!

Chicão respondeu:

– O senhor ganhou na milhar. do Galo. Já trouxe seu prêmio. Com aquele dinheiro que o senhor me deu, fiz uma aposta pequena pro senhor e ainda fiz uma feirinha..

Seu Messias, fingindo indignação, rapidamente, respondeu:

– Para não ser grosseiro com o distinto, vou receber este vil metal, mesmo contra os meus princípios morais!

E, por curiosidade, perguntou:

– Que sonho foi esse que você teve?

Orgulhoso por saber interpretar sonhos, Chicão respondeu:

– Eu sonhei que estava trepado num coqueiro, tirando coco. Um coco, quando a gente parte, vira duas quengas. Quenga é “mulher da vida”. “Mulher da vida” é galinha. E quem gosta de galinha é GALO!!! Foi o meu palpite do dia!

Seu Messias deu uma pequena gratificação a Chicão e nunca mais deixou de jogar no bicho.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sábado, 05 de maio de 2018

XEXÉU

Alexino, desde menino, por ser muito briguento, foi apelidado de XEXÉU. Tornou-se um rapaz bonito, boêmio e seresteiro, dono de uma belíssima voz. Por causa disso, continuou sendo chamado de Xexéu, pássaro de canto melodioso, que, facilmente, pode ser confundido com um coral de vozes harmoniosas.
Xexéu era um conquistador nato. As mulheres eram loucas por ele.

Numa época em que não se falava em preservativo, nem em pílula anticoncepcional, Xexéu contribuiu para o aumento da população do Rio Grande do Norte. Casou-se com Luzia, uma jovem de boa família, e muito religiosa.

Muito dedicada ao lar, a moça não queria saber de falatório sobre a vida do seu marido, da porta da sua casa para fora. Chegou a expulsar da sua sala pessoas fofoqueiras, que a visitavam, levando “historinhas” sobre o comportamento de Xexéu fora de casa.

Luzia nunca estragou seu casamento, com ciúme ou desconfiança do marido. Afinal, ele sempre se mostrava apaixonado, e respeitava o lar, como se fosse um templo sagrado. A esposa e filhos eram sua maior ventura.

Quando Xexéu chegava em casa, era sempre muito carinhoso com Luzia, e fazia-lhe um filho atrás do outro. A mulher, literalmente, vivia grávida.

Se cego “é aquele que não quer ver”, Luzia se fazia de cega. Nunca teve uma briga com Xexéu. O casal teve 8 filhos, sendo três meninas e 5 meninos.

Extra-oficialmente, Xexéu teve mais 4 filhos, completando, assim, uma dúzia. Paralelamente, pelos caminhos percorridos como caixeiro-viajante, em cidades distantes, Xexéu deve ter deixado outra porção de filhos, frutos de relações casuais e paixões sem amanhã.

A fama de mulherengo acompanhou Xexéu por toda a sua vida. E, por brincadeira dos amigos, foi rotulado com um jargão:

“Por onde Xexéu passa, nasce um menino”.

Luzia, esposa de Xexéu, pertencia a uma irmandade de 9 irmãos, que, ainda crianças, perderam o pai e alguns anos depois, a mãe. Depois de adultos, apenas uma das irmãs, Ivanilda, ficou no “caritó”. E foi quem mais ajudou a Luzia na criação dos filhos.

Já idosa, Ivanilda ainda era revoltada com um caso, ocorrido em Natal, há muitos anos, envolvendo pessoas conhecidas. Aproveitando a oportunidade para destacar seus valores morais, gostava de contar:

“Décadas atrás, Dorinha, 25 anos, tinha vindo do interior para morar com sua irmã mais velha, Silvina, casada com Zé Vitor, e ajudá-la com as crianças e serviços domésticos. Dois anos depois, Dorinha apareceu grávida, sem sequer ter namorado.

Voltou para o interior, e pariu um menino, que parecia um clone de Zé Vitor, o marido da irmã, no caso, o cunhado que lhe dera guarida em Natal. Foi um escândalo!

Nesse tempo, não se fazia exame para provar a paternidade. Mas, ainda que houvesse, nesse caso, o exame seria plenamente dispensável. O menino era Zé Vítor, “em carrara esculpido”, ou, para ficar mais claro, “cagado e cuspido”, como diz o ditado popular.

Abafaram a história, e Zé Vitor não admitia que se falasse nessa “infâmia”. Jurava que não era o pai da criança. Dorinha também nunca disse que era ele.

E a “Santa” Silvina engoliu com água, como se fosse um comprimido, essa traição do marido e da irmã, até morrer.”

E a idosa continuava o discurso:

“Pois bem. Eu, na minha mocidade, como era solteira, passei muitas temporadas com as minhas irmãs casadas. Ajudei a criar meus sobrinhos e passei muitas noites em claro, balançando rede de menino doente, que chorava inquieto, sem poder dormir. Minhas irmãs, exaustas do trabalho doméstico, deixavam que eu tomasse conta dos seus filhos, durante a noite, enquanto elas dormiam. Convivi com vários cunhados, e nenhum deles nunca me faltou com o respeito, nem tentou me seduzir.

Fui cunhada de Xexéu, o homem mais mulherengo que Natal já teve. Por onde Xexéu passava, ficava um menino. Parecia que tinha nascido para ajudar a povoar o mundo.

Digo e repito: Xexéu sempre me respeitou. Da mesma forma, eu sempre o respeitei, como marido da minha irmã e, por conseguinte, também meu irmão. “

E Ivanilda se orgulhava dessa convivência respeitosa com Xexéu, jogando farpas em Dorinha, a moça que engravidou do cunhado, “nas barbas da irmã”. Para ela, isso foi o cúmulo da traição!

E a idosa continuou soltando seu veneno:

– Essa Dorinha engravidou porque quis. Deve ter se botado para o cunhado. Homem é igual a cachorro. Se alguém lhe oferece um osso, ele não enjeita. A culpa foi exclusivamente dela. Ela devia ter espírito de “Messalina”,- “a mulher que tinha o reino entre as pernas”.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 04 de maio de 2018

MORREU MARIA PREÁ

 

MORREU MARIA PREÁ

História de domínio público, resgatada por

VIOLANTE PIMENTEL

 

Em uma pequena cidade de um Estado nordestino, havia uma paroquiana muito fogosa, conhecida por MARIA PREÁ, do tipo que gosta de adular o Padre, arrumando a igreja, organizando as Missas, a comida, e até suas roupas, inclusive as batinas. Era uma mulher bonitona, com atributos femininos bem salientes (seios e ancas), que provocavam desejo em qualquer homem normal. O Padre José que, antes de tudo, era homem, não escapava dessa tentação. Como a carne é fraca, o voto de castidade do Padre fracassou, e ele se envolveu com a tal paroquiana, numa atração fatal, do jeito que o diabo gosta.

 

Certo dia, numa ocasião em que as portas da igreja ainda estavam fechadas, o Sacristão flagrou o Padre José e Maria Preá em plena conjunção carnal, transando, num sofá que havia na Sacristia, como se fossem Adão e Eva no Paraíso. O susto que o Sacristão levou foi tão grande, que ele não se conteve e deu um grito de espanto. O Padre, envergonhado, não encontrou palavras para justificar o óbvio ululante. A partir de então, nunca mais teve sossego, passando a ser chantageado, constantemente, pelo Sacristão. Sem qualquer escrúpulo, o rapaz sempre relembrava o flagrante, e lhe exigia propinas e regalias, em troca do seu silêncio com relação a Maria Preá. Se o escândalo se espalhasse, o Padre sabia que sua vida sacerdotal sucumbiria.

 

Alguns meses depois, o Padre José, dirigindo sua Rural antiga, deslocou-se até o lugarejo vizinho, para participar de uma reunião que envolvia atividades da igreja. A reunião terminou antes da hora de costume, e ele retornou bem mais cedo do que das outras vezes. A igreja ainda estava fechada.

 

O Padre entrou na Casa Paroquial, que ficava ao lado. O costumeiro silêncio estava sendo quebrado por alguns gemidos e sussurros, que vinham de um dos quartos. O Padre se aproximou e deparou-se com uma cena grotesca e chocante, que ele jamais poderia esperar: O Sacristão que o vivia chantageando, por tê-lo flagrado transando com Maria Preá, encontrava-se, simplesmente, em decúbito dorsal, numa cena de sexo animalesco, servindo de fêmea ao Coroinha. Em suma, o Sacristão foi flagrado pelo Padre José, numa cena de homossexualismo, ocupando a passividade do ato. Dessa vez, quem deu um grito de horror foi o Padre, diante da surpresa e da aberração!

 

O Sacristão se ajoelhou aos seus pés, e implorou para que ele não contasse nada a ninguém, pois também seria um verdadeiro escândalo. O Padre José, sentindo-se vingado, respondeu:

 

– Sacristão, safado e veado! Esta história não vai sair daqui!!! Mas preste bem atenção:

"DE HOJE EM DIANTE, MORREU MARIA PREÁ, ENTENDEU?!!!"

 

E a chantagem do Sacristão terminou aí!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 27 de abril de 2018

O CHAPÉU

Numa noite, demorou mais do que o normal. As crianças já estavam dormindo, quando ele chegou. A esposa, como sempre, ainda estava acordada.Tinha lhe pedido um presente. Logo que viu o marido, perguntou?

– Comprou meu presente?

Nervoso, Genésio respondeu:

– Que presente? É seu aniversário?

– Não é meu aniversário, mas eu lhe pedi um chapéu…

Sem graça, Genésio respondeu:

– Daqui a alguns dias, eu comprarei. Vá se arranjando com o antigo, por enquanto. Ando gastando muito…

Friamente, os dois adormeceram.

Desapontada, Josina acordou cedo e foi cuidar dos afazeres domésticos, inclusive do café da manhã. Usando o chapéu velho, foi levar as filhas à Escola.

Essa rotina se arrastava com muita compreensão. Josina e as filhas sentiam a falta de Genésio na hora do jantar, mas acabaram se acostumando.

Genésio ganhava bem, e há dez anos tinha uma amante, teúda e manteúda, com casa por ele montada, bem melhor e mais moderna do que a casa onde vivia com a esposa e filhas.

Antigamente, na linguagem arcaica, chamava-se “teúda e manteúda”, a amante sustentada pelo companheiro. A expressão sobrevive no “juridiquês”.

Por economia, Josina não tinha empregada. Mas, agora, com 50 anos, sentia-se cansada e resolvera arranjar uma boa cozinheira. Vivia pedindo ao marido que arranjasse uma, nos classificados do jornal onde trabalhava, mas ele lhe devolveu a tarefa.

Por outro lado, Zilda, a teúda e manteúda, tinha uma cozinheira excelente, que também cuidava da casa.

Muito vaidosa, a amante frequentava academia e se cuidava muito. Tinha 45 anos, mas parecia menos.

Pois bem. Num fim de tarde, ao chegar à casa da outra, Genésio a encontrou chorando. Não havia jantar preparado. A empregada pedira as contas, sem mais nem menos.

Genésio, de táxi, chegara com um pacote na mão, para levar para sua casa, e pôs em cima de uma cadeira. Era o presente de Josina, Zilda, sem perguntar nada, abriu o pacote e se deparou com um chapéu muito cafona, cheio de laço de fita. Genésio não teve coragem de dizer que não era para ela, e sim para Josina, a esposa, a quem ele prometera..

Pediram sanduíche pelo telefone e Zilda se acalmou. Às 11 horas em ponto, Genésio pediu um táxi, saindo sutilmente, para não acordar a filial.

Como sempre, chegou em casa, cansado e com sono. A esposa disse que tinha arranjado uma cozinheira, que já viria pela manhã cedo.

“Para variar” , depois de um beijo na testa, adormeceram de costas, um para o outro.

Pela manhã, Genésio tomou um susto, ao ver a cara da empregada que a esposa havia arranjado. Era a ex-empregada da teúda e manteúda, que lhe preparava o jantar todas as noites.

Aproveitando a saída de Josina, para deixar as filhas na escola, ele indagou à empregada o motivo que a fizera sair da casa de Zilda. Muito franca, ela confessou que não aguentava mais, ver a ex-patroa, abrindo a porta para um rapaz, que todas as noites dormia com ela. Esse namorado era antigo e ela o sustentava.

Genésio só acreditou na empregada, após pegar Zilda em flagrante.

Depois dessa decepção, Genésio acabou o relacionamento com Zilda e passou a jantar em casa.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 20 de abril de 2018

O PNEU FURADO

Na década de 60, Tarcilda, uma balzaquiana, foi passar alguns dias na casa de uma tia, no interior do Rio Grande do Norte, incluindo as festas de final de ano.

Dessa vez, já com trinta anos, a moça foi disposta a arranjar um namorado, para fins de “um relacionamento sério”. Era louca para se casar, e, por ser muito conservadora, era virgem como nasceu.

Por sorte, arranjou um namorado viúvo, Patrocínio, comerciante rico, considerado um partidão, mas feio de dar dó e piedade. As informações sobre esse homem eram as melhores possíveis.

Patrocínio, o viúvo, apaixonou-se por Tarcilda e foi correspondido. Logo fez questão de apresentar os filhos, já adultos, à atual candidata a “madrasta”, cuja fama, na filosofia de pára-choque de caminhão, “só o nome basta”.

Feitos os “comerciais”, Tarcilda se esforçou para parecer simpática aos possíveis futuros enteados. Fazendo das tripas coração, num esforço sobre-humano, engoliu a antipatia das duas filhas do namorado, de 13 e 15 anos. O filho, entretanto, era simpático e educado, mostrando-se receptivo ao novo relacionamento amoroso do pai. Afinal, um homem de 75 anos, acostumado a ter uma boa esposa ao seu lado, dificilmente iria permanecer sozinho, em caso de viuvez.

Quem foi bem casado, sempre se arrisca a uma segunda união. E para o homem, é difícil viver sozinho, pois é sempre mal-acostumado a depender da esposa para tudo, como dependia da mãe ou avó. Manhoso, quase sempre conta com a cumplicidade da mulher para tudo, principalmente nas lidas domésticas.

Tarcilda ainda sonhava com a lua de mel e com uma futura vida conjugal. Todo namorado que arranjava, acreditava que fosse o seu príncipe encantado, e que iria fazê-la feliz pelo resto de sua vida. Apaixonava-se facilmente, da mesma forma que se desapaixonava.

Num dia de domingo, Tarcilda aceitou o convite do namorado, para um almoço na fazenda de um amigo, que estava aniversariando. Muito arrumada e perfumada, a futura segunda esposa do viúvo foi com ele e o filho ao tal almoço.

Patrocínio foi dirigindo o seu antigo “Jeep Willys 51”, seu carro de estimação, entre os dois carros modernos que possuía na garagem da sua suntuosa casa.

Era verão e o mormaço pedia roupas leves. Tarcilda vestia uma bonita bermuda e uma blusa decotada. Pai e filho usavam bermudas bem diferentes uma da outra. A do filho era moderna e justa. A do viúvo era muito folgada e parecia antiga. Era “démodé”, como dizem os franceses.

A fazenda ficava a 15 quilômetros da cidade, e a estrada ainda era de barro. O Jeep ia devagar, livrando buracos e dando muitos solavancos.

Num dado momento, Patrocínio parou, ao perceber que um dos pneus havia furado. Todos desceram do Jeep.

Sob um sol causticante, pai e filho cuidaram de resolver o problema, enquanto Tarcilda observava de perto.

O viúvo se acocorou, para colocar o macaco e suspender o Jeep, para retirar o pneu furado. Enquanto isso, o filho tratava de pegar o pneu de suporte.

De repente, Tarcilda mudou de cor, diante de uma “visage” que viu na sua frente, e que parecia ter saído do inferno. Os “possuídos” do namorado, de tão avantajados, haviam escapado completamente pela perna da folgada bermuda e estavam arrastando no chão de barro.

A virgem se controlou para não dar um grito de pavor. Essa coisa descomunal fez com que se sentisse ameaçada de morte.

Sua atração pelo viúvo terminou aí. Nunca imaginou que pudesse existir uma arrumação tão feia como aquela. Para ela, na sua frente estava o próprio personagem do filme “O Homem de Itu”, de que já ouvira falar. Jamais enfrentaria aquele perigo iminente.

Tarcilda, completamente sem graça, afastou-se dali e foi se abrigar à sombra de uma árvore. A tenebrosa “visage” foi “água na fervura”. Ficou sem fala e tomou abuso do homem na hora.

Nisso, ouviu a voz do ex-futuro enteado:

-Pai, se ajeite! Tá tudo de fora!!!

Hoje, sessentona, Tarcilda ainda sonha com um príncipe encantado.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sábado, 14 de abril de 2018

O ESTRESSE

O esgotamento nervoso, ou estresse, é uma constante na sociedade atual.

A insegurança em que vivem os servidores públicos e empregados de empresas privadas deixa-os em suspense, vendo a hora o Governo lhes puxar o tapete e jogá-los na rua da amargura, contando seus trocados para sobreviver. Esse drama psicológico atinge também os aposentados. Em cima disso, o Governo suga o que lhes sobra, extorquindo-lhes impostos exorbitantes e absurdos.

Entretanto, ninguém perde por ser honesto. Nada melhor do que poder repousar a cabeça no travesseiro e sentir-se em paz com a sua consciência, sem procurar enriquecer ilicitamente.

O clima de impunidade e violência que assola o País deixa o povo brasileiro cada vez mais estressado, com crises de ansiedade e pânico.

Isso tudo justifica o título do livro de Millôr Fernandes, “Que País é Este?” – publicado em 1978, e ainda atual.

Pois bem. Para falar em estresse, palavra da moda, cujas consequências poderão ter fins trágicos, vai o caso de Jatobá, mais um nordestino, que, décadas atrás, iludido com o que ouvia falar da Cidade Maravilhosa, foi para o Rio de Janeiro, tentar ganhar a vida. Seu maior desejo era arranjar um trabalho, que lhe permitisse mandar um dinheiro certo, mensalmente, para o sustento dos pais e irmãos, que moravam numa pequena cidade do interior nordestino.

No Rio, conseguiu emprego em uma empresa de vigilância. Com o passar dos anos, passou a trabalhar no escritório da empresa. Ganhava uma boa gratificação, além do salário, e era comedido em seus gastos.

Dessa forma, conseguiu seu intento de poder ajudar seu pai no sustento da família. Todos os meses, religiosamente, enviava-lhe uma boa quantia em dinheiro. Isso lhe dava a certeza de que estava cumprindo com o seu dever de filho.

Apesar de gostar muito da cidade grande, depois de alguns anos o nordestino começou a ficar nervoso, com medo de bala perdida e da violência generalizada, mostrada na televisão. Diante disso, resolveu voltar para a sua terra, logo que juntasse um “pé de meia”. Morava no subúrbio, em companhia de dois colegas de trabalho, e só ficava tranquilo quando entrava em casa.

Num dia de muita agitação, começo de mês, Jatobá, ansioso e preocupado com o tempo, sem almoçar, aproveitou o intervalo, para fazer a remessa do dinheiro do pai. O vai-e-vem de transeuntes, na Praça 15, era constante e interminável. Jatobá olhava para o relógio, controlando os minutos que teria para resolver seus problemas. Num dado momento, foi abordado por um rapaz bem parecido, que muito nervoso e agitado lhe falou:

– Corra, Seu José, volte pra Niterói! Sua casa está pegando fogo e sua mulher está dentro, com seu filho, gritando por socorro! Os bombeiros ainda não chegaram!!!

Jatobá entrou em pânico e, desesperado, tomou a barca “Cantareira”, para atravessar a Baía da Guanabara, e chegar a Niterói. Por alguns minutos, esqueceu do depósito que iria fazer. Na sua cabeça, só via a esposa e seu filho prestes a morrerem queimados, no incêndio que estava destruindo sua casa.
Quando a barca alcançou a outra margem, Jatobá teve um momento de lucidez e caiu na realidade:

-Ai, meu Deus! Eu não me chamo José, não tenho mulher nem filho e não moro em Niterói!!! O que foi que eu vim fazer aqui?!!!

E voltou na mesma barca para o Rio.

Muito nervoso e apavorado com a violência da cidade grande, o vigilante deu um jeito de apressar sua volta para o nordeste.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho terça, 03 de abril de 2018

O LENHADOR

 

Antônio era um lenhador muito pobre, que todos os dias ia com a mulher e os quatro filhos cortar lenha na floresta. A lenha se destinava a uso caseiro. Sempre traziam alguma caça para alimentação. A família vivia numa tremenda miséria. . Os filhos eram todos crianças de 7 a 12 anos. Toninho, o mais velho, era o que mais ajudava ao pai.

Levavam a vida “como Deus permitia”. Antônio tinha se acomodado à pobreza e não tinham esperança de melhorar. Para aumentar a miséria em que a família vivia, veio um inverno violento e as coisas se modificaram para pior. Apavorado, ante a perspectiva dos filhos passarem fome, o homem entrou em desespero. Passava horas perdido em seus pensamentos, à espera de uma luz que lhe mostrasse o caminho que deveria seguir. As caças sumiram com o inverno, e a lenha molhada não acendia o fogo. O feijão e a mandioca que tinham em casa, não garantiam a eles o sustento, por mais um mês completo.

Toninho era muito esperto e logo percebeu a preocupação que afligia seus pais.

À noite, inquieto em sua rede, ouviu o pai dizer para sua mãe:

– Não quero ver meus filhos morrerem de fome. Amanhã, vou levar todos para passear na floresta e lá eles irão ficar. Tenho certeza de que vai aparecer gente caridosa que tomará conta deles e eles não irão passar fome.

A mãe se desfez em lágrimas e protestou:

– Como você pode ser tão cruel?- Se eles tiverem de morrer de fome, que morram ao nosso lado. Morreremos todos juntos.

Porém, o marido completamente transtornado, não quis ouvir mais nada. Também amava seus filhos, mas não podia suportar a ideia de vê-los sofrer..

Pela madrugada, antes mesmo das aves começarem a cantar, o menino levantou-se, correu até junto de um regato, e ali encheu os bolsos com pequenas pedras brancas. Voltou, então, para casa e deitou-se outra vez na rede, fingindo dormir. Estava apavorado, diante da certeza de que, no dia seguinte, o pai iria se livrar dele e dos irmãos. Abafou seus soluços e amargou suas lágrimas em silêncio.

Pela manhã, depois do todos comerem um bico de pão duro com água, disse o pai que todos teriam que ir passar o dia na floresta, para buscar lenha e procurar caças.

No trajeto, Toninho atrasou os passos, e, à medida que andava, ia deixando pelo caminho as pedrinhas que tinha nos bolsos. Bem depressa, chegaram a uma parte da floresta muito espessa, onde as árvores se juntavam muito. Aí, o pai parou e começou a cortar uma árvore, dizendo aos meninos que fizessem feixes com as toras de lenha.

Quando estavam muito ocupados e distraídos com esse serviço, o pai desapareceu. Quando viram que ia escurecer e ele não voltava, as crianças se encheram de medo e os menores começaram a chorar. Toninho os tranquilizou, dizendo:

– Não se assustem. Eu sei voltar para casa. Venham atrás de mim, e chegaremos lá.

Ali muito perto, estava a última pedrinha que ele tinha deixado cair, depois outra e outra, e assim seguindo as pedrinhas, Toninho e os três irmãos chegaram ao casebre onde moravam, sãos e salvos.

Enquanto isso se passava, a mãe, muito triste, chorava sem parar, certa de que tinha visto os filhos pela última vez. Imaginava o que estaria acontecendo com eles, naquela hora, todos ainda tão crianças.

Nesse momento, bateram à porta e chegou um guarda da floresta dizendo que vinha da parte do seu amo, trazer-lhes um bom presente de caça, pois ele tinha sabido da miséria em que estavam vivendo. Antes que a mulher pudesse agradecer, ouviu a porta se abrir novamente e por ela entraram os seus quatro filhos, gritando eufóricos:

– Estamos aqui, mãe! Ficamos perdidos na floresta, mas Toninho acertou o caminho de volta! .

Chorando de alegria, a mulher os abraçou e jurou para si mesma, que isso jamais iria acontecer novamente. Quando o pai chegou, depois de ter passado a noite vagando pela estrada, sem coragem de encarar a mulher, a alegria foi grande. Todos pareciam formar uma família feliz.

Mas, a caça recebida não podia durar para sempre. Dias depois, a situação se agravou novamente e para comer, só restava um bocado de pão seco. Toninho percebendo a situação, imaginou logo o que iria novamente acontecer com ele e os irmãos.

Nessa mesma noite, o menino ouviu o lenhador dizer à mulher que levaria, mais uma vez, os quatro filhos para a floresta, na esperança de que pessoas ricas e generosas pudessem encontrá-los e dar-lhes casa e comida.

Mal rompeu a aurora, Toninho saltou da rede e foi abrir a porta para sair, à procura das pedrinha salvadoras. Dessa vez, a porta estava trancada e sem a chave.. Desapontado, voltou para a sua rede, sentindo-se perdido, diante da maldade do pai.

Na hora de tomarem café com pão, Toninho teve outra ideia. Em vez de comer o seu pão, guardou-o no bolso do casaco, para fazer com as migalhas o mesmo que tinha feito com as pedrinhas, marcando o caminho por onde passassem. Logo depois, o pai chamou os filhos e convidou-os a irem com ele, novamente, para a floresta, procurar caça e buscar lenha.

Repetindo a cena, o homem entreteve-se com o seu serviço, e quando viu os meninos distraídos, amarrando os feixes de toras de lenha, fugiu como um ladrão.

Dessa vez, os seus filhos não se assustaram, “Toninho sabe voltar” pensaram os menores. Mas quando o irmão foi procurar as migalhas que tinha cuidadosamente espalhado pelo caminho, não encontrou nenhuma. Os pássaros tinham comido todas. “Estamos perdidos!”. Pensou Toninho, dizendo para os irmãos:

– Venham, meninos! Não podemos ficar aqui!, Daqui a pouco estará escuro”. Disse ele , visivelmente nervoso.

Depressa, o sol se pôs e Toninho, que ia na frente, disse:

– Vejo uma luz! Ali tem uma casa! Vamos pedir para passarmos a noite lá.

Correram todos até a casa e bateram à porta. Uma mulher, com cara de boa pessoa, veio abrir. Mas quando lhe disseram o que queriam, abanou tristemente a cabeça.

“Ai, disse ela, meu marido é um homem mau e não vai gostar de ver vocês aqui. É melhor irem embora..”

Os meninos tremiam de frio e se viram perdidos. A noite já estava totalmente escura, sem lua e sem estrelas.

Cheios de medo, saíram correndo estrada afora, até que, cansados, deitaram-se abraçados debaixo de uma árvore, esperando o dia amanhecer..

Quando viu o dia clarear, Toninho chamou os irmãos, para saírem dali o mais rápido possível. Saíram correndo em disparada, à procura de alguém que os pudesse ajudar.

Vendo o cansaço dos irmãos menores, Toninho resolveu ir sozinho à procura de socorro. Pediu-lhes que ficassem ali sentados, aguardando sua volta.

Muito cansado, chegou a uma enorme casa. Era uma fazenda. Encontrou, no terraço, um senhor muito gordo, risonho e simpático, que lhe perguntou o que fazia por ali. Com muito medo da reação daquele homem que parecia rico, Toninho contou-lhe que ele e seus três irmãos tinham passado a noite na estrada e estavam com muita fome. Tinham sido abandonados pelo pai, que se encontrava sem condições de sustentar a família, na esperança de que pessoas boas os pudessem ajudar. O fazendeiro se compadeceu daquela história e quis ver os outros meninos.

Toninho conquistou logo a simpatia do bom homem, ao dizer que sabia amarrar feixes de toras de lenha, cortadas pelo pai , que era lenhador. Também sabia limpar mato. Disse que ele e os irmãos gostavam de ajudar ao pai, na lida. Obedecendo ao fazendeiro, o menino foi correndo à procura dos irmãos. Em meia hora, estavam os quatro ali, todos tremendo de frio e fome. O homem, imediatamente, conduziu as crianças até uma enorme mesa, onde um lauto café da manhã os esperava. A esposa do fazendeiro, uma boníssima e simpática senhora de 60 anos, também se penalizou com a situação dos garotos. Combinaram, então, de lhes dar abrigo imediato e tomar as providências necessárias, para localizar seus pais.

Ao ficar provado que Antônio, o lenhador, abandonou os filhos, levado pelo desespero, o fazendeiro lhe deu emprego na fazenda.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 23 de março de 2018

O CIRCO

 

No mundo do entretenimento, o circo ocupa uma posição privilegiada entre todas as formas de diversão existentes. Mesmo em tempos de rádio, TV e internet essa antiga arte ainda atrai a atenção de muitos espectadores. Circulando por espaços da cultura erudita e popular, a arte circense impressiona pela grande variabilidade de atrações e o rico campo de referências culturais utilizado.

Antigamente, o espetáculo circense no Brasil era apresentado em duas partes. Na primeira, acrobacia, malabarismo, trapézio, animais como o elefante, o leão, tigre, onça, macacos e cavalos de raça, números musicais, bailados e palhaços. Na segunda parte, era encenada uma peça teatral de autor nacional ou internacional.

Certa vez, chegou a uma capital nordestina, um dos melhores circos do Brasil, o Grande Circo Continental. O espetáculo, além das atrações de praxe, apresentava diversos animais, como o elefante, o leão, o tigre, a onça, macacos e cavalos de raça nobre.

Num domingo à tarde, Maria Pia foi com Zezinho, o filho de oito anos, assistir ao espetáculo para atender ao pedido do filho, ansioso para ver os animais. Antes de entrarem para se sentar nos poleiros, onde o ingresso era mais barato, a mãe deu uma volta com o filho ao redor do circo, para que ele visse de perto os animais enjaulados.

O menino se empolgou com aquele espetáculo à parte e fez muitas perguntas à mãe sobre a vida daqueles animais.

Distraída, respondendo às perguntas do filho, Maria Pia deixou a bolsa cair do seu braço, bem perto da jaula do elefante. Num minuto, o animal estirou a tromba e alcançou a bolsa, engolindo-a completamente.

A mulher pediu socorro aos seguranças do circo, e disse que queria sua bolsa de volta, pois ali estavam a chave da sua casa, o dinheiro da pipoca, carteira de identidade, e outras coisas mais.

Um dos em pregados do circo, que cuidava dos animais, pediu que ela se acalmasse, pois naquele momento estava sem jeito. O elefante tinha comido a bolsa, com tudo o que tinha dentro.

O dono do circo, ao saber do ocorrido, ficou indignado com os empregados, por não terem impedido a mulher de se aproximar das jaulas dos animais. O elefante estava correndo risco de morte, pois sua alimentação não incluía bolsas de nenhuma espécie.

Segundo o biólogo americano Samuel Wasser, professor da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), os elefantes expelem, em média, 90 quilos de fezes por dia.

A mulher, muito religiosa, pediu a Deus e a São Francisco de Assis, protetor dos animais, para que o elefante “descomesse” sua bolsa com tudo o que tinha dentro dela, principalmente a chave da casa.

O espetáculo terminou e a dona da bolsa voltou pra casa com o filho Zezinho, arrependida, desde o dia em que nasceu, de ter ido ao circo. O menino também estava sem graça, com o ocorrido.

No dia seguinte, a mulher foi falar com o dono do circo, para saber se o animal tinha “descomido” a bolsa, ou se tinha morrido de indigestão.

Irritado, o dono do circo perguntou à mulher o que havia na bolsa, pois o elefante estava passando mal, gemendo alto e sem poder evacuar. Ao saber do conteúdo da bolsa, o dono do circo ficou mais preocupado ainda, pensando na despesa que iria ter e a burocracia que teria que enfrentar, para enterrar o elefante, em caso de morte.

A dona da bolsa ficou penalizada e imaginou a quantidade de fezes que um elefante devia produzir por dia. Mesmo enojada, precisava ter sua bolsa de volta.

A mulher, vendo a aflição do dono do circo, com medo que o elefante fosse a óbito, avisou-lhe que dentro da sua bolsa havia uma caixa de diazepam, um tranquilizante muito forte, que ela sempre tomava. O remédio, com certeza, teria um efeito benéfico sobre o elefante. Ele iria relaxar, e logo iria “descomer” a sua bolsa, sã e salva.

Ledo engado. O caso complicou e o elefante precisou ser submetido a um procedimento cirúrgico, para retirada de um tumor fecal.

O dono do circo gastou um dinheirão, para salvar a vida do animal empanzinado.. A bolsa de Maria Pia se misturou com as fezes, ficando irreconhecível.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sábado, 17 de março de 2018

OS PASSARINHOS

 

Major Enéas, residente em Natal, reformado da Polícia Militar, há três meses, havia recebido de presente de um amigo do interior, uma Graúna e um Sabiá. As gaiolas dos dois passarinhos foram penduradas num pé de Jatobá, que ficava perto da janela do quarto do casal.

O Major e a esposa, Almira, acordavam muito cedo e se deliciavam, ouvindo o belíssimo canto dos pássaros.

O casal tinha o hábito de assistir filmes na televisão, à noite, até o sono chegar. Num sábado, quase de madrugada, enquanto se preparava para dormir, o Major ouviu um barulho no quintal. Muito corajoso, pegou sua arma e foi até lá, verificar o que estava acontecendo. Deparou-se, então, com um rapaz de estatura média e entroncado, que, ao vê-lo empunhando a arma, pôs uma das mãos para trás, e gritou:

– Não me mate não, doutor! Eu sou pai de família!

O Major também gritou:

– Jogue no chão a arma que está escondendo ou eu estouro seu miolos! Mando você pro inferno, agora mesmo, ladrão safado!

O ladrão, tremendo mais do que vara verde, quis entregar ao Major a “arma”, escondida numa das mãos. A surpresa foi grande. Não era arma e sim a Graúna recebida de presente.

Indignado, o Major ordenou:

– Coloque o passarinho de volta na gaiola, seu marginal! Depois se ajoelhe e me peça perdão por ter invadido o meu quintal para roubar!

O ladrão, chorando como criança, colocou a Graúna de volta na gaiola. Obedecendo às ordens do Major, ajoelhou-se, pediu-lhe perdão e jurou que nunca mais passaria por perto daquele bairro, daquela rua e muito menos daquela casa.

Dona Almira, que era muito religiosa, tinha seguido o marido e, penalizada, pediu-lhe que deixasse o rapaz ir embora, sem entregá-lo à polícia.

Ao se convencer de que o ladrão era mesmo “sem futuro” e covarde, o Major resolveu liberá-lo, ameaçando-o, entretanto, de mandar prendê-lo, em caso de reincidência.

O marginal saiu do quintal, empurrado pelo cano da pistola do Major. Pulou o muro por onde tinha entrado e sumiu no meio da noite.

A esposa deu uma garapa ao marido e os dois se recolheram aos aposentos, para tentar dormir.

Quando o dia amanheceu, o casal não ouviu o canto da Graúna nem do Sabiá. O Major abriu a janela do quarto e viu que as duas gaiolas haviam sumido.

E o Major Enéas ficou sem os dois passarinhos.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 09 de março de 2018

OS URUBUS

 

Antigamente, roupa preta era sinal de luto, pela morte de um ente querido.

A rainha Victoria, que governou a Inglaterra de 1837 a 1901, foi quem inventou a “moda” do luto. Quando morreu seu marido, o príncipe consorte do Reino Unido da Grã-Bretanha, e Irlanda, Francisco Alberto Augusto Carlos Emanuel, ela se cobriu de luto permanente. O costume se espalhou por alguns países.

No Brasil, principalmente no Nordeste, o costume do luto fechado, para viúvas, perdurou até há poucas décadas, mas por um período determinado. Os viúvos usavam um fumo (tecido preto) no bolso da camisa ou gravata preta.

Pois bem. Num país que nunca teve prumo e que viveu sempre como um barco à deriva, sob os efeitos da corrupção, uma família burguesa, decadente, comprou um palacete, onde passou a residir. 

 

O enorme telhado do casarão servia de abrigo para centenas de urubus, atraídos pelo odor fétido de um matadouro, localizado nas imediações. O aspecto do palacete era tétrico, lembrando uma casa mal-assombrada. O palacete ficou conhecido como “casa dos urubus”.

Por ordem da viúva Dona Céfora, uma mulher austera e guerreira, muito alta e gorda, todas as pessoas da casa usavam roupa preta, em sinal de luto pela morte do seu marido, o chefe da família. Por coincidência, o luto combinava com a cor dos urubus.

O “de cujus”, senhor Ursulino, um próspero fazendeiro da região norte, era considerado o maior plantador de bananas da região. Por isso, era chamado o “Rei das Bananas”. Era grande colaborador das campanhas políticas do governo, no jogo do “toma lá, dá cá”, comum no País. Com isso, obtinha grandes benefícios fiscais, conforme a antiga praxe.

Dona Céfora, a viúva amantíssima, era conhecida como Madame Banana.

Com a morte do chefe da família, Madame Banana, dependente emocional do marido, entrou em parafuso. O “de-cujus” centralizava todos os negócios da família, sempre em guerra com dois filhos irresponsáveis, que gastavam seu dinheiro em orgias, jogos e cavalos. Mas, agora, ela passara a ser o homem e a mulher da casa. Tinha que botar ordem, ou os filhos acabariam, em pouco tempo, com tudo o que o pai, ao longo de sua vida, lutou para conseguir.

Antes da morte do “Rei das Bananas”, a fazenda parecia uma “terra de ninguém.” Quem mandava e desmandava eram os filhos. O pai se contrariava, mas não tinha força moral sobre eles.

De repente, a viúva decidiu puxar as rédeas da casa. Dona Céfora, ou Madame Banana, transformou-se numa mulher altiva e determinada. Passou a impor condições aos familiares, sob pena de serem expulsos da casa, em caso de desobediência.

Revoltada com a crise política que dominava o País, Madame Banana protestava contra os tubarões da mordomia, que se aproveitavam do dinheiro público. Não se conformava com o festival de desonestidade que reinava no País. Era indignada com os ladrões de colarinho branco, e com o “prende e solta” que dominava os tribunais.

Com medo de desequilibrar as finanças, Madame Banana baixou algumas ordens, a serem cumpridas por todos da família, que viviam às suas expensas.

Da sua fazenda, Urubutinga, entregue ao antigo e fiel capataz, vinham bananas em abundância, sendo as únicas frutas que entravam na casa.

Por economia, só havia no palacete três refeições por dia: café, almoço e jantar. Entretanto, as refeições eram fartas e a comida era simples e gostosa. Todos podiam comer à vontade, com direito à sobremesa, que era sempre à base de bananas.

Para moralizar o andamento da casa, Madame Banana, organizou uma espécie de estatuto particular, que deveria ser obedecido pela família:

1 – Fica proibido tirar o luto, até segunda ordem;

2 – Fica proibido mascar chicletes, para não estragar os dentes;

3 – Fica proibido tomar sucos, para economizar o açúcar;

4 – Fica proibido falar palavrões;

5 – Fica proibido dar gargalhadas;

6 – Fica proibido reclamar da comida;

7 – Fica proibido conversar durante as refeiçoes;

8 – O horário do café da manhã passa a ser 6:30 h, inclusive aos domingos e feriados;

9 – O horário do almoço passa a ser 12;h , inclusive aos domingos e feriados;

10 – O horário do jantar passa a ser 18:30;

11 – Quem perder o horário das refeições, terá que esperar pela próxima;

12 – Fica proibido lanchar no intervalo das refeições.

13 – Fica proibido falar em voz alta;

14 – Fica proibido discussão acirrada, nas dependências da casa

 

RECOMENDAÇÃO PRINCIPAL:

TODOS ESTÃO OBRIGADOS, A SE VACINAR CONTRA A FEBRE AMARELA, A MAIOR INIMIGA DO PAÍS.

Atualizada, através dos noticiários da televisão, Madame Banana chegou a uma conclusão:

O problema principal da Nação, no momento, é a Febre Amarela, que, depois de erradicada há décadas, voltou com “gosto de gás”, abocanhando indispensáveis verbas para dizimá-la novamente. É a Febre Amarela, que precisamos vencer.

Madame Banana não entendia para que havia ministros de Educação, Saúde, e outros, se o povo vivia sem qualquer tipo de assistência.

Perguntava a si própria, que país era esse, em que os políticos não respeitavam a Constituição.

Ela só queria entender…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 02 de março de 2018

O TIMOTE

 

Apesar de não constar em nenhum dicionário da língua portuguesa, a palavra “timote” faz parte do Dicionário de Gírias Nordestinas de BY MIA, que assim se expressa:

Timote – Diz-se da pessoa que não segue padrões sociais de beleza; sinônimo de horroroso. Variações: atimotado, timotento.

Entretanto, no interior nordestino esse vocábulo tem vários significados. Tanto pode ser a pessoa feia, chata, metida, bajuladora, idiota, como a pessoa desastrada, golpista, desonesta, cuja presença é sempre indesejável. “Timote” é um termo pejorativo. Aplica-se ao homem ou à mulher.

Realmente, em quase todas as famílias, ricas ou pobres, sempre há um membro desastrado ou idiota, que destoa do restante dos parentes, passando a ser apontado, como o “timote” da família. É o parente trabalhoso, que vive nas costas dos outros; é o filho que não trabalha nem quis estudar; o que não ouve conselho e só se acompanha de quem não presta, e também aqueles que se desviam para os vícios.

O “timote” acaba sendo um estorvo para a família, especialmente para os pais.

Às vezes, a família é rica e poderosa e consegue infiltrar o “timote” na política.

Outras vezes, o “timote” arranja um casamento com alguma moça mais velha e rica, e termina se dando muito bem.

Pois bem. Desde menina, Malvina ouvia sua mãe dizer que em toda família havia um “timote” para atanazar.

Já moça feita, passou a ouvir da mãe essa recomendação:

– Quando arranjar um namorado, mesmo que ele seja rico e bem nascido, procure ter certeza de que ele não é o “timote” da família”.

Talvez por isso, Malvina passou a mocidade escolhendo marido, com medo de arranjar um “timote”. O tempo passou e ela se transformou numa balzaquiana muito pudica.

Já beirando os 40 anos, aceitou um pedido de casamento de Virgulino, um rapaz de 35 anos, filho de um fazendeiro rico da cidade, que tinha passado 10 anos no Rio de Janeiro e agora retornara.

O casamento foi por pura conveniência. Malvina queria sair da condição de “encalhada”. Achou Virgulino um grande partido. Mas se enganou redondamente. Virgulino era o “timote” da família. Viveu no Rio de Janeiro uma vida de orgias, recebendo mesada do pai, que preferia vê-lo distante.

Na noite de núpcias, a noiva sofreu uma grande decepção. O noivo comeu e bebeu muito na festa do casamento e adormeceu profundamente, deixando-a no “ora, veja”. Teve de dormir também.

No dia seguinte, a cena se repetiu. Virgulino comeu feito um bicho e bebeu exageradamente. Mostrou que era “bom de cama”, pois dormiu quase 24 horas. Usava a cama somente para dormir. Além disso, roncava feito um porco.

Malvina não sabia se sorrisse ou se chorasse, diante daquela situação ridícula por que estava passando.

Os sonhos fantasiosos que alimentava para a noite de núpcias e para toda a sua vida em comum com Virgulino, desapareceram como por encanto.

E o noivo continuou completamente frio para ela. Passaram a lua de mel, indiferentes um ao outro. A decepção da moça foi grande e logo ela se convenceu de que Virgulino, na verdade, era o “timote” da família dele. Casara com ela, por interesse financeiro.

E lembrou-se das palavras fatídicas da sua saudosa mãe:

” Quando arranjar um namorado, procure saber se ele é o “timote” da família.”

Virgulino nem sequer tentou cumprir a “obrigação do matrimônio”. A “noiva” continuou incólume.

Pouco tempo depois, veio à tona uma inesperada realidade: Virgulino tinha um romance com um rapaz do Rio de Janeiro, que chegara na cidade, para fixar residência.

A chocante descoberta desse lado de Virgulino juntou-se à aversão sexual, que, claramente, ele demonstrava pela esposa.

O fato resultou na anulação do casamento, por erro essencial de pessoa, prevista no artigo 1.557 do Código Civil Brasileiro, postulada por Malvina.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 23 de fevereiro de 2018

O PIRÃO

 

Nos meados do século passado, em Nova-Cruz não havia água, luz, nem hospital.

Certo dia, Seu Silvino, dono de uma mercearia, sofreu uma queda e foi levado para Natal, para ser socorrido. O acidentado quebrou a clavícula e sofreu uma fratura que comprometia o funcionamento da veia Aorta. O diagnóstico, na época, foi feito através de exame clínico.

O acidentado voltou para Nova-Cruz, com um péssimo prognóstico. Devido ao comprometimento da veia Aorta, recebeu recomendação médica, de permanecer em repouso absoluto e manter uma dieta leve, à base de leite, sucos e frutas.

Ao se ver obrigado a permanecer deitado e proibido de comer o que gostava, o homem entrou em depressão. Passou a se sentir muito fraco, chegando a sofrer vertigens esporadicamente. A fraqueza, ele atribuía à dieta exagerada, prescrita pelo médico, a qual estava seguindo religiosamente. Dois meses depois, Seu Silvino começou a definhar. Bem mais magro e triste, sentia suas forças irem embora, e a fraqueza se acentuou.

Num sábado pela manhã, o doente, chorando, chamou a esposa e implorou:

– Régia, eu sinto que estou no fim. Mas não quero morrer de fome! Quero lhe fazer um pedido:

– Manda a empregada preparar uma perua torrada, com muita graxa, pirão e arroz mole bem temperado! É o que eu quero almoçar, nem que seja o meu último almoço.

A esposa, submissa ao marido, mandou que a empregada fizesse o almoço, seguindo sua recomendação. O doente comeu exageradamente, até matar a fome. Como diz o ditado popular, “matou quem estava lhe matando.”

De barriga cheia e bem alimentado, Seu Silvino chegou a suar frio. Em seguida, adormeceu na sua rede no terraço e acordou no começo da noite, sentindo fome novamente. Chamou a esposa e ordenou:

– Mulher, manda esquentar o que sobrou do almoço. Não se esqueça do pirão de perua.

E lá se foi Dona Régia esquentar a comida, com a qual o marido se fartou mais uma vez.

Depois de dois meses, praticamente, de “fome”, nesse sábado, pela primeira vez, Seu Silvino se alimentou com gosto. Literalmente, tirou a barriga da miséria. Comeu até se fartar.

Na sua rede, dormiu como um rei e acordou na manhã seguinte, sentindo-se outro homem. Suas forças voltaram e a disposição para trabalhar também. A fraqueza desapareceu completamente.

O comerciante não quis mais saber da dieta prescrita pelo médico.

Com o tempo, a fratura se consolidou, com remédio do mato: Uma pasta feita de arnica com casca de PAU D’ARCO ralada.

Aos poucos, a vida de Seu Silvino voltou ao normal, sem qualquer sequela do acidente. Voltou a ser um homem corado e saudável, com saúde para dar e vender. Graças à comida caseira a que estava acostumado.

Nessa pisada, Seu Silvino morreu com quase 100 anos.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 16 de fevereiro de 2018

BURGUESIA

 

Burguês, na Idade Média, era o indivíduo que morava nos Burgos, povoados protegidos por muros.

Os Burgos surgiram na época da decadência feudal e crescimento comercial e urbano.

Os burgueses se preocupavam em acumular bens de capital. Eram os vendedores dos burgos, que depois passaram a ser denominados de comerciantes ou mercadores.

Durante a Revolução industrial, eram chamados de burgueses os industriais, possuidores de riqueza e dos meios de produção. Eram ricos, mas não eram nobres. Não tinham requinte nem fidalguia.

Mr. Taylor, um burguês de 45 anos, ficara rico como comerciante de tecidos. Quando se viu nadando em dinheiro, quis mudar de classe social. Além de rico, queria passar a frequentar os salões da Aristocracia. Sua primeira providência foi pedir orientação ao alfaiate mais importante da cidade. De início, o homem lhe sugeriu substituir suas roupas simples por roupas chiques e suntuosas, iguais àquelas usadas pelos fidalgos. Mr. Taylor sentiu-se o homem mais feliz do mundo, quando o alfaiate o tratou com deferência, como se estivesse diante de um nobre.

Em seguida, o profissional o aconselhou a aprender as artes que os aristocratas praticavam, como esgrima, polo, dança e música. Também lhe sugeriu contratar os melhores professores de Etiquetas, Gramática e Literatura, da cidade. Afinal, aquele homem rico e rude tinha a pretensão de se transformar em um nobre.

Durante as aulas, Mr. Taylor demonstrava não assimilar nada. Seu raciocínio era muito lento. Os professores, decepcionados, esforçavam-se para que ele aprendesse alguma coisa, mas de nada adiantava.

Mary, a esposa de Mr. Taylor, que era mais inteligente, percebeu que o marido estava se tornando ridículo. Preferia mil vezes a vida de burgueses que eles levavam. A mulher tentou fazê-lo desistir dessa idiotice, mas seus apelos foram em vão.

Um forasteiro que chegou à cidade, tomando conhecimento de que Mr. Taylor era muito rico e estava prestes a se tornar aristocrata, procurou dele se aproximar, para dar-lhe um golpe. Passando por nobre, conseguiu que o burguês pagasse todas as suas dívidas, sob a promessa de que, em troca, facilitaria sua entrada na Aristocracia. O tolo burguês caiu como um “patinho”. A certeza de que se tornaria aristocrata aumentou ainda mais. Mr. Taylor passou, então, a alimentar o sonho de casar sua filha Lili, de 20 anos, com alguém da nobreza. No entanto, Lili já estava apaixonada por Joselito, um burguês. O pai, então, negou sua permissão para que o casamento se realizasse. Agora, só permitiria o casamento de sua única filha, com um homem que pertencesse à Aristocracia.

Desesperada, a moça procurou um modo de enganar Mr. Taylor, fazendo com que o namorado se disfarçasse de fidalgo, e fosse pedir sua mão em casamento. Com a ajuda de um criado, o plano foi posto em prática. Caracterizado de fidalgo, o amado de Lili se apresentou perante o seu pai, dizendo pertencer à alta nobreza de um país distante. Mr. Taylor acreditou na trapaça e, cheio de alegria, consentiu que sua filha se casasse com esse “príncipe estrangeiro”.

Para completar a alegria de Mr. Taylor, o trapaceiro lhe comunicou que, na qualidade de pai da sua noiva, ele também receberia um título de nobreza, numa festa solene.

E o ingênuo burguês acreditou.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 09 de fevereiro de 2018

O BOBO DA CORTE

 

“Bobo da Corte” era o nome que se dava ao “funcionário” contratado pelas cortes europeias, na Idade Média, com a finalidade de divertir o rei, a rainha e seu séquito.

Como um palhaço, era considerado cômico, mas, muitas vezes, suas brincadeiras eram desagradáveis, pois apontavam de forma grosseira os defeitos da sociedade.

Esse “funcionário” era o único que podia fazer críticas irônicas ao rei, sem correr o risco de ser punido. Também participava dos banquetes do reino. Usava uniformes coloridos, espalhafatosos, e chapéus bizarros, com pontas e alguns chocalhos amarrados.

Além de fazer a corte rir com palhaçadas, o Bobo da Corte também declamava poesias, tocava algum instrumento, dançava, cantava, fazia mímicas e malabarismos. Era o cerimonialista das festas. Sua característica principal era o exibicionismo e o exagero, tanto nos trajes usados, como nos gestos e palavras.

Esses plebeus, pagos para divertir a nobreza e a realeza, não eram loucos nem tinham deformidades físicas. Também não faziam parte do grupo de corcundas e anões, que muitas cortes adotavam como circo particular.

Para alguns estudiosos, o “Bobo da Corte”, de bobo só tinha o nome.

Na opinião do grande filósofo do século XVI, Erasmo de Rotterdan, o Bobo tinha, paralelamente, um papel principal, oculto, na Corte: Era ele quem contava ao rei o que ninguém queria que o rei ficasse sabendo. Era o espelho de todo o grotesco dos hábitos da Corte. Era uma espécie de “dedo duro” ou informante, com livre acesso ao rei.

A figura do Bobo da Corte sempre esteve associada ao divertimento, palhaçadas, e ao prazer que davam ao rei suas piadas e brincadeiras.

Usando-se a caracterização do Bobo da Corte, foi criada a décima terceira carta do baralho, o Curinga, a carta que pode alterar o jogo completamente.

Entre as habilidades do Bobo da Corte, estava ainda a de imitar ou “arremedar” as atitudes e gestos faciais e corporais das pessoas do reino. Também contava histórias por ele criadas, cheias de disparates e indiretas, incitando a reflexão das pessoas para a incoerência do comportamento dos poderosos.

O gênio do teatro inglês, William Shakespeare (1564 – 1616), deu destaque à figura dos bobos, dando a eles papeis de grande importância em sua obra. Nas suas peças “Rei Lear” e “A Noite de Reis”, o autor elevou a posição do bobo junto aos poderosos, com interpretações de papeis de grande importância e destaque. O bobo, nessas peças, é o personagem que se sobressai pela esperteza e inteligência. Pode fazer críticas aos próprios reis, com comentários picantes, mas com os quais o público vai às gargalhadas.

No baralho, o Bobo da Corte é representado pelo Curinga, a carta que pode alterar o jogo completamente.

A figura do Bobo da Corte existiu até o século XVII.

O vocábulo “bobo” consta no MINIDICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, de Ruth Rocha, como “Palhaço que divertia os nobres”.

Nos tempos atuais, a expressão “bobo da corte” é usada de forma pejorativa. Caracteriza alguém, sem conteúdo ou sem seriedade, uma figura tola e hilária, que não pode ser levada a sério.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 02 de fevereiro de 2018

MEDO DE DENTISTA

 

Antigamente, no interior nordestino, não havia “fobia” . Essa palavra era totalmente desconhecida. Existia mesmo era medo, sinônimo de pantim, cavilação, drama, astúcia e manha. Esses medos de injeção, dentista, barata, rato, cachorro, aranha, morcego, escuro, trovão etc., eram combatidos com exemplos, explicações, “carões”, e, no último caso, com castigos. A criança chorava e esperneava, mas os pantins, gradativamente, desapareciam. Eram medos facilmente tratáveis, em casa mesmo.

O medo maior que havia, entretanto, era o medo de dentista ou de tratamento dentário. Esse medo era acompanhado de crises de ansiedade.

Está provado que a metade da população mundial sofre desse tipo de medo.

Décadas atrás, numa conhecida cidade nordestina, a ida ao dentista apavorava crianças e alguns adultos, independentemente de classe social.

Nessa cidade, havia um médico da capital, que trabalhava numa fundação de saúde e que, por incrível que pareça, também tinha horror a dentista. Por esse motivo, seus dentes eram todos estragados. Na sua boca, só haviam pedaços de dentes, o que chamava a atenção dos colegas de trabalho e até dos pacientes. Esse médico, Dr. Vicenço, anos depois, viu-se obrigado a se submeter a um tratamento odontológico de urgência, para poder viajar ao exterior, onde foi fazer um curso de Especialização. Dizem que teve que tomar uma anestesia geral, para retirada das raízes e cacos de dentes que ainda lhe restavam, para dar tempo de colocar uma prótese.

Por outro lado, o matuto, na sua ignorância e com seu medo exagerado, preferia extrair todos os dentes, mesmo sãos, e colocar uma dentadura postiça. Somente assim, estaria livre de futuras dores de dentes e tratamentos dentários.

Na mesma cidade, residia Regina, uma jovem de 15 anos, cheia de pantim e que também tinha verdadeiro pavor a dentista. Preferia viver sofrendo constantes dores de dentes e tomando analgésicos, a procurar o socorro de um desses profissionais. Fugia do dentista, como o diabo foge da cruz.

Certa vez, depois de muita insistência, Dona Lili, sua madrinha, conseguiu convencê-la a ir ao único dentista da cidade, e se prontificou a custear o tratamento que fosse necessário. Dona Lili marcou um horário com Dr. Gilvandro, e às 15 horas de uma terça-feira, Regina estava no consultório para ser atendida.

Hesitante, a moça demorou a se sentar na cadeira do profissional e também demorou a abrir a boca. Dr. Gilvandro já estava impaciente e quase desistindo de atendê-la.

Finalmente, o dentista conseguiu examinar os dentes de Regina e constatou a necessidade de um tratamento sério.Todos os dentes da jovem estavam bastante estragados e alguns não davam mais para restaurar. Outros precisavam de coroas. Com a paciência de Jó, Dr. Gilvandro convenceu a moça a fazer, naquela ocasião, a primeira extração de um resto de dente, que só tinha a raiz. A paciente concordou, mesmo com os olhos arregalados e o medo estampado no rosto. O dentista chegou a colocar o anestésico na seringa. Quando ia aplicá-lo, Regina, muito nervosa, praticamente pulou da cadeira. Disse-lhe que iria até a calçada, ver se sua mãe já estava vindo ao seu encontro, conforme prometera. Não deu tempo de Dr. Gilvandro dizer nada. Como um furacão, a moça saiu numa carreira só e nunca mais voltou. O dentista ficou com a seringa na mão até o anoitecer. A jovem nunca mais cruzou o seu caminho.

Dona Lili ficou muito contrariada com o comportamento da afilhada e pediu mil desculpas ao dentista.

Anos depois, Regina disse a Dona Lili que passara a ser adepta da Macrobiótica e estava convencida de que os seus dentes iriam “renascer”, com essa dieta. Ninguém sabe de onde ela tirou essa ideia.

Atualmente, já sessentona, Regina ainda continua esperando esse milagre.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 26 de janeiro de 2018

O CASTIGO

 

Obedecendo ao seu instinto predador e carnívoro, a raposa, animal mamífero, apanha suas presas vivas, pulando sobre elas para matá-las. O resultado é imediato. Muito veloz, num minuto é capaz de devorar um galinheiro inteiro, ou outras aves que estejam ao seu alcance.

Certa vez, um pato, imprudente e inquieto, fugiu dos irmãos que tomavam banho na lagoa e se embrenhou no mato, perseguindo insetos. De repente, deparou-se com uma raposa e ficou paralisado. Muito vermelha, de boca aberta e engasgada, a raposa tossia muito e quase não podia respirar. Mesmo apavorado, por saber que a raposa era devoradora de patos e galinhas, procurou ajudá-la. E perguntou:

– Dona raposa, o que é isso? Um osso de galinha ou de pato?

A raposa olhou para ele, sem poder responder, mas com o olhar de quem pedia socorro.

Vendo a raposa quase morta, o pato subiu num tronco na beira da estrada e procurou salvá-la. Com muito esforço, meteu a patinha lá dentro e retirou o enorme osso de galinha que lhe atravessava a garganta. Se não fosse ele, esse engasgo teria sido fatal.

“Muito grata”, a raposa prometeu, daquele dia em diante, ser sua amiga e protegê-lo contra todos os animais. Disse que ele lhe salvara a vida e isso ela jamais esqueceria. Entretanto, mal se refez do engasgo, esqueceu a bondade do pato e se preparou para devorá-lo. Percebendo o perigo, o pato falou:

– Dona raposa, a senhora está com a garganta ferida. Está sangrando. Deixe eu passar uma peninha molhada na sua boca! Um pouco d’água vai lhe fazer bem.
A raposa concordou e escancarou a boca novamente. Rapidamente, o pato molhou uma pena na água do rio. Voltou para o tronco e, tomando ares de médico, antes que ela percebesse, meteu-lhe de volta na garganta o osso que acabara de tirar.

O pato deixou a raposa engasgada e fugiu correndo à procura dos seus irmãos.

A lei da sobrevivência também existe entre os animais. Entre os humanos, é o “estado de necessidade”.

E foi assim que a ingrata raposa sofreu o seu castigo.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 19 de janeiro de 2018

CONFISSÃO

 

Antes do advento da televisão e da Internet, era comum , nas cidades do interior nordestino, o preenchimento da noite, até chegar o sono, com conversas nas calçadas ou nas praças.

A vida calma de antigamente proporcionava às pessoas maior calor humano, amizades consistentes e conversas cheias de humor, que amenizavam as tensões do dia. As rodas nas calçadas ou nas praças serviam de palco para se ouvir histórias engraçadas, verdadeiras ou fictícias, piadas e anedotas. Essa relativa tranquilidade durou até o início da década de 60, quando a televisão chegou ao Nordeste do Brasil.

O progresso tecnológico pôs fim a essas reuniões, que todas as noites aconteciam nas calçadas ou nos bancos de praças.

A televisão, desde o início, interferiu nas relações humanas, passando a influenciar as pessoas, que passaram a dar prioridade às novelas e outros programas. As antigas rodas onde as pessoas amigas conversavam todas as noites foram se dispersando e sendo substituídas pelos programas de televisão. Nas casas, as conversas passaram a se limitar aos intervalos desses programas. As relações humanas ficaram em segundo plano.

Para acabar de vez com o tempo dedicado às conversas “olho no olho”, surgiram o telefone celular e depois a Internet, com suas redes sociais, disponibilizando aos usuários amizades virtuais, com imagens fantasiosas, que diferem das amizades verdadeiras, que tem raízes consolidadas. 
O relacionamento humano perdeu sua prioridade. Acabaram-se os flertes, a alegria das cartas recebidas pelo correio e as fotografias com oferecimento. Em suma, o romantismo de antigamente foi substituído por relacionamentos, às vezes iniciados através da Internet, que, dificilmente, correspondem à realidade. Os personagens reais do cotidiano tornaram-se virtuais e passageiros.

A televisão e a informática puseram fim às conversas pessoais, “ao vivo e a cores”. A criatividade das pessoas foi mutilada, pois a televisão já entrega o “prato feito”, castrando o raciocínio.

Os costumes mudaram com o progresso tecnológico, o romantismo acabou e o amor tornou-se “genitalizado”.

Até as cartas anônimas, meio de agressão muito usado antigamente, no interior nordestino, desapareceram. Na época em que eram usadas, essas cartas tornavam-se folclóricas e, através delas, muitos “pecados” eram descobertos.

Certa vez, numa cidade do interior, um conhecido cidadão, cuja mulher não era confiável, recebeu uma carta anônima, avisando-lhe que ele estava levando chifres. Isso, a cidade toda sabia. Mas, muito apaixonado, o homem preferiu acreditar que se tratava de uma infâmia. Guardou a carta e fez de conta que não a tinha recebido. Não comentou nada com ninguém, principalmente com a mulher. Dias depois, o autor da carta, que era alcoólatra, encheu a cara de cachaça e, ao se encontrar com o destinatário, não se conteve e perguntou, na frente de várias pessoas da cidade:

-E aí, Seu Jordão! É verdade que o senhor recebeu uma carta anônima, dizendo que o senhor é corno?

Indignado com o atrevimento do conhecido, o homem respondeu:

– Você me respeite, canalha! Não recebi carta anônima nenhuma!!!

Inconformado, o bêbado insistiu:

-Deixe de mentira, homem! Eu sei que o senhor recebeu, mas não quer dizer! Pois, fique sabendo que quem lhe mandou aquela carta fui eu!!!

Com essa confissão, foi inevitável que o corno reagisse, trocando murros com o autor da carta anônima e prestando queixa contra ele à Polícia.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 12 de janeiro de 2018

AVE DE RAPINA

 

Os urubus fazem parte do grupo de aves de rapina, que a mãe natureza criou para manter a limpeza da terra. São aves que se alimentam da carcaça de animais mortos.

Existem muitas espécies de urubus. No Brasil, podemos encontrar o urubu-rei, o urubu-da-mata, o urubu-preto, o urubu-de-cabeça-vermelha e o urubu-de-cabeça-amarela.

Um cavalo morto estava sendo devorado por urubus, quando passou o mendigo Josias e notou que uma das aves estava com uma das asas quebradas. O homem se apiedou do urubu mutilado e o levou consigo, estrada afora. Depois de algum tempo, a fome chegou e Josias bateu palmas numa casa, cujo cheiro de comida de longe se sentia. Uma senhora abriu a porta e disse que não iria dar comida a um vagabundo, com um urubu nas costas. Deu tempo do pedinte ver um leitão assado, em cima do fogão e ficar com a boca cheia de saliva. Viu também a mesa repleta de bolos, doces e outras iguarias.

A mulher, praticamente, bateu a porta na cara do mendigo. Mas, pelas frestas, Josias a viu guardar no forno o leitão assado.

Muito desanimado e com fome, o mendigo sentou-se numa pedra ao lado da casa, para refazer as forças, com o seu amigo urubu. 

De repente, o dono da casa chegou e avistou Josias ali sentado. Aproximou-se e lhe perguntou o que desejava, com aquele urubu nas costas. O bom homem se compadeceu do mendigo, que lhe confessou estar com muita fome dormida.

A dona da casa abriu a porta para o marido entrar, reclamando por ele ter antecipado sua volta. Disse que não tinha preparado nada para o jantar. Iriam comer feijão de corda com jabá e mandioca.

Seu Josué, o dono da casa, convidou o maltrapilho para matar a fome à sua mesa. Mesmo temeroso, Josias entrou e sentou-se, tendo o cuidado de acomodar o urubu doente aos seus pés, com as pernas amarradas com um pedaço de corda. Indignada com a presença do maltrapilho, a mulher fechou a cara.

Os dois homens estavam conversando, quando, de repente, o urubu começou a gritar. O dono da casa se assustou, mas o mendigo lhe disse que a ave estava se comunicando com ele. Estava dizendo que a dona da casa tinha preparado uma grande surpresa para o marido. No forno havia um leitão assado e na cozinha uma variedade de iguarias, como doces, bolos e bebidas.

O marido, então, exigiu que a esposa trouxesse tudo para a mesa. O homem estranhou que ela houvesse escondido dele aquele banquete.

O destinatário, entretanto, não era o marido e sim um amante da infiel mulher. Questionada, a dona da casa, falsamente, respondeu:

-Quis lhe fazer uma surpresa no fim do jantar, senhor meu marido!

A resposta da mulher não convenceu.

Acreditando na magia daquela ave de rapina, o dono da casa propôs a Josias, o mendigo, pagar um bom preço por aquele urubu. Afinal, nunca tivera notícia de que um urubu fosse capaz de falar com alguém. E aquele banquete que sua mulher preparara e lhe escondera, só lhe tinha sido servido porque o urubu avisara. Aquele urubu era um gênio!

Mas a proposta foi recusada e o mendigo seguiu sua caminhada, levando às costas o seu mais novo amigo, o urubu.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 05 de janeiro de 2018

O BICHO HOMEM

 

Não tem bicho mais valente do que o bicho-homem. Ele, sim, é o rei dos animais.”

Essa foi uma conversa ouvida entre uma onça e um lobo. A onça estava descansando, quando recebeu a visita do lobo, para lhe contar a novidade. Maldoso e falso, chegou com o intuito de perturbar a onça. Começou dizendo que ela e o leão só tinham fama de ferozes, mas o verdadeiro rei dos animais era o bicho- homem. Com uns espirros de fogo, ele matava qualquer animal feroz, que aparecesse em sua frente.

A onça ficou furiosa e quis conhecer esse tal “bicho-homem”, para acabar com a sua raça. Os animais da floresta não podiam ser desmoralizados por espirros de fogo. Mereciam respeito, e o leão jamais deixaria de ser o rei dos animais.

Ao ver a onça furiosa, o lobo quis se desculpar:

– Comadre, eu lhe peço perdão. Já estou arrependido de ter dito essa asneira. Eu quis apenas lhe prevenir da maldade do bicho-homem. Vi de longe esse bicho matar um leão, com dois espirros de fogo. Sem fazer qualquer força.

O lobo e a onça fizeram uma parceria, para destruir o bicho- homem. Como o lobo era mais veloz do que a onça, amarrou uma ponta de um cipó muito forte no pescoço da comadre e a outra ponta na sua cintura, para irem à luta. Se precisassem correr, a onça seria puxada por ele.

Feito o acordo, os parceiros saíram à procura do perigo ameaçador. A onça, inicialmente, acompanhou o lobo na sua velocidade, com muita resistência.

Ao avistar os dois animais, o bicho-homem tirou da cintura sua arma de fogo e disparou vários tiros na direção deles, sem conseguir atingi-los. Assustado, o lobo desabou numa corrida desenfreada, arrastando a onça pelo cipó atado aos dois. De repente, começou a sentir dificuldade de correr, pois o peso da onça havia aumentado. Com esforço, correu até se sentir seguro. Então, parou e viu que a onça estava sem respirar e mostrando todos os dentes. Sem entender que a comadre estava morta, o lobo a repreendeu:

– Comadre onça, não ria desse jeito! Estou cansado de puxar a senhora!

O lobo foi, literalmente, “amigo da Onça.” Agiu com leviandade, provocando a morte da comadre.

A expressão amigo da onça, usada como sinônimo de amigo falso ou pessoa em quem não se deve confiar, teve origem na década de 40.

Inspirado em uma piada que fazia muito sucesso na época, o cartunista Péricles de Andrade Maranhão batizou seu novo personagem como Amigo da Onça, que foi publicado em uma charge, pela primeira vez, na revista O Cruzeiro, em 23 de outubro de 1943. A página de Péricles foi a mais lida da revista de 1943 até 1961, ano de sua morte.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 29 de dezembro de 2017

A FELICIDADE

 

Josimar, um marceneiro pobre, de uma cidade do interior nordestino, trabalhava o dia todo, para sustentar a mulher e os seis filhos. Conformado com a pobreza em que vivia, o casal era muito feliz e a família harmoniosa.

À noite, todos se sentavam na calçada, e Josimar dedilhava a viola, herdada do pai, cantando repentes e improvisos. Exaltava a mulher e os filhos e lamentava a pobreza em que viviam. Mas, agradecia a Deus por ter filhos saudáveis e bonitos e uma mulher dedicada à família. 

Na rua principal, morava Seu Santino, um fazendeiro muito rico, casado e pai de dois filhos, que sempre chamava Josimar para consertar e envernizar os móveis antigos de sua suntuosa casa. Com o tempo, o velho passou a admirar a honestidade do marceneiro e a observar a pobreza em que ele e sua família viviam. Josimar nunca o explorara e nunca lhe pedira dinheiro emprestado.

 

Era a época do Natal e Seu Santino resolveu dar um bom presente em dinheiro a Josimar, para ajudá-lo na educação dos filhos. Costumava fazer isso, esporadicamente, quando encontrava na sua frente uma pessoa honesta e trabalhadora. Na semana do Natal, mandou seu motorista entregar a Josimar uma maleta, embrulhada com papel de presente. Ao abrir a encomenda, o marceneiro ficou assustado com a quantidade de dinheiro que viu na sua frente. Esperava que fossem roupas usadas. Chamou a mulher para ver e ela ficou ainda mais assustada. Os dois se entreolharam, sem coragem de tocar no dinheiro. Puseram a maleta debaixo da cama, para depois resolver o que iriam fazer com aquele dinheiro fácil, para eles sem qualquer sabor.

Anoiteceu e a casa continuou em profundo silêncio. Naquela noite, as crianças sentiram falta do pai na calçada, tocando viola e fazendo repentes. Ninguém riu nem conversou. Josimar e Luzia estavam calados, sem assunto. No dia seguinte, a casa continuou em silêncio. As crianças foram brincar no terreiro, mas quando começaram a falar alto e correr, levaram gritos do pai que ameaçou lhes bater, se continuassem fazendo barulho. Nunca tinha acontecido isso antes. O filho mais velho, de 9 anos, percebeu a cara de choro da mãe e os olhos inchados. Houve um silêncio sepulcral e a família se entreolhou com olhos de pavor.

O marceneiro não teve coragem de contar o dinheiro. Sentiu dor de cabeça e medo de ser acusado de roubo. Também teve medo que um ladrão invadisse sua casa e levasse a maleta. Não sentiu mais vontade de admirar o céu, a lua e as estrelas, como sempre fazia. Não dedilhou mais a viola, nem versejou, como costumava fazer todas as noites.

Josimar estava vivendo as noites mais tristes da sua vida. Ele, a mulher e os filhos formavam um ninho de amor, e nada perturbava a paz que reinava naquela simples casa. Josimar ficou nervoso e ameaçou de bater nos filhos, porque estavam rindo alto e brincando. A mulher se voltou contra ele. O choro das crianças encheu a casa de tristeza.

Os pensamentos confusos do marceneiro, sobre o que poderia fazer com aquele dinheiro, não combinavam com os pensamentos da mulher. Os ânimos se acirraram e houve uma grande briga entre o casal, provocando grande choradeira entre os filhos.

Depois da terceira noite em claro, Josimar disse à mulher:

– O dinheiro tirou a alegria que havia aqui na nossa casa! Tirou a nossa paz! A melhor coisa que eu posso fazer é devolver esse presente. Vamos continuar com a nossa pobreza, mas com a nossa alegria!

Prefiro continuar caminhando com as minhas próprias pernas! Deus proverá!

A mulher foi com o marido devolver o presente ao fazendeiro, com mil pedidos de desculpas e agradecimentos. O casal voltou para casa, e a alegria da família voltou a reinar.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 22 de dezembro de 2017

O MISTÉRIO

 

Na noite de Natal, os pobres se sentem mais pobres e mais tristes, do que em qualquer outra data. Aqueles que não tem um teto para morar ou um pão para comer, esperam sempre um milagre. Sonham com mesa farta e moradia, onde possam se abrigar contra a chuva, o sol e o sereno.

Josué e Mariana, sem teto, tinham certeza de que a melhor coisa do mundo era a pessoa ter quatro paredes para morar. Sem moradia, as pessoas não passam de animais errantes.

 

 

Chegou a noite de Natal. O casal ia caminhando na escuridão da noite, amargando a miséria e a falta de esperança. De repente, Mariana tropeçou em um pequeno cachorro, que dormia numa calçada. Muito magro, o animal se assustou olhando para o casal, como quem pedia proteção. Parecia ser um cachorro tão pobre quanto eles próprios, pois não tinha mais do que a pele em cima dos ossos, e quase não tinha pelo.

Os pobres são bons para os pobres. O espírito de solidariedade reina entre eles. Por isso, ajudam-se mutuamente.

Os dois pobres se compadeceram do cachorro. Apesar de ainda não terem comido nada, deram ao animal um pouco do pão com manteiga que haviam recebido de esmola, quando vagavam pela cidade. O cachorro comeu e saiu andando à frente deles, sempre olhando para trás, como se os estivesse chamando para acompanhá-lo. Eles seguiram o animal até um casebre abandonado. Com o clarão da lua, viram dentro dele dois bancos e um fogão apagado. Um raio de luz aparecia e desaparecia, iluminando o ambiente. Fazia muito frio e os mendigos desejaram que aquele fogão fosse uma lareira. De repente, viram nele duas brasas acesas, brilhando como ouro.

Contente e esfregando as mãos, o homem aconchegou a companheira ao seu corpo, para que, deitados no chão e abraçados, pudessem desfrutar melhor daquele calor. O casal já não se sentiu tão pobre e triste. As brasas arderam, misteriosamente, aquecendo o casebre.

Os mendigos sentiram-se abençoados, pois, naquela noite de Natal, puderam se aquecer até amanhecer o dia. O Menino Jesus lhes dera aquele presente. Pela manhã, viram os olhos amarelos do cachorro os observando, do outro lado do fogão apagado.

Tudo não passara de um delírio. Talvez, o delírio provocado pela fome e pelo desalento. O reflexo dos olhos do cachorro parecia duas brasas vivas. Essa ilusão fez com que os pobres adormecessem, sentindo-se abrigados. Ao amanhecer o dia, voltaram à triste realidade: Não tinham teto para morar, nem comida para comer.

Saíram caminhando, seguidos pelo cachorro, que a eles se apegou, completando a família.

Na realidade, o que se passou com os mendigos, naquela Noite de Natal, foi um mistério. E mistério não tem explicação.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 15 de dezembro de 2017

A ARMA

 

Seu Lúcio, trabalhador rural, era aposentado pelo INSS e residia num bairro simples de uma pequena cidade do interior nordestino. Todo começo de mês, ia à agência bancária pagadora, receber o dinheiro do seu “aposento”, como ele costumava chamar. Mal sabia ler e escrever, mas acompanhava os noticiários da televisão. Por isso, estava sempre por dentro da onda de violência que assola o País e dos escândalos praticados pela banda podre dos nossos políticos. Era revoltado com a insegurança que vitimava pessoas inocentes, todos os dias, nas grandes cidades. Entretanto, sentia-se seguro na localidade onde morava, pois ali a violência ainda não havia chegado.

Por via das dúvidas, tinha em casa uma espingarda pendurada na parede da sala, sempre carregada de chumbo, que usava para caçar. Essa arma, em caso de necessidade, seria usada por ele, na defesa da sua vida e da sua família. Mas, com fé em Deus, isso nunca iria ser preciso.

Seu Lúcio morava numa rua muito calma, onde ainda se usava colocar cadeiras nas calçadas para se prosear, até o sono chegar.

Certo dia, como fazia todo mês, foi à Agência bancária, enfrentar uma grande fila, para receber seus proventos. Recebeu o dinheiro, contou e guardou no bolso da calça, voltando para casa, em seguida.

Logo que chegou, pegou a vassoura e começou a varrer a calçada, para apanhar as folhas de um pé de Castanhola, que ali havia. Mal começou o serviço, viu parar uma moto, de onde desceram dois malandros, usando boné, um deles com um revólver na mão. Anunciaram que era um assalto e exigiram o dinheiro da aposentadoria, que o homem recebera há poucos minutos, na Agência bancária. Disfarçadamente, eles haviam acompanhado a entrada do idoso no banco e viram quando ele guardou no bolso da calça o dinheiro recebido.

Na mira do revólver, Seu Lúcio ficou paralisado e lhe faltou a voz. Mas, de repente, uma força superior o dominou, e ele usou a vassoura para se defender. Inesperadamente, com uma vassourada, derrubou o revólver de um dos assaltantes e distribuiu outras grandes vassouradas, atingindo os dois.

A força de sertanejo se apossou de Seu Lúcio, e os malandros, sumiram na moto, em disparada.

Um vizinho telefonou para a Polícia, que compareceu ao local do frustrado assalto. Foi constatado que o revólver usado pelos assaltantes, e que estava jogado ao pé da calçada, era de brinquedo.

Seu Lúcio foi levado à Delegacia de Polícia, para registrar a queixa, empunhando sua extraordinária arma: A “bassoura”, como ele chamava.

O dinheiro da aposentadoria continuava no bolso de sua calça.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 08 de dezembro de 2017

OS GATOS

 

José Alpiniano, professor aposentado e escritor, era viúvo e tinha como companhia dois gatos de estimação, a quem muito mimava. Um deles era da raça Angorá, preto retinto, porte elegante e pelo longo e sedoso. Chamava-se Koruga. Tinha ares de soberano e passeava por todos os lugares da casa, dormindo nas poltronas ou nos melhores tapetes.

O outro, chamado Kontik, era um gatinho “vira-lata”, ainda “bichano”, bonitinho e brincalhão, Os dois gatos pulavam sobre o birô do seu dono e por cima dos seus escritos, revirando tudo.

José Alpiniano era muito intolerante com as pessoas, mas se divertia com as peripécias dos dois gatos. Tinha prazer de alimentá-los com boa comida.

A companhia dos dois gatos supria a sua solidão. Eram considerados filhos, uma vez que seus dois filhos verdadeiros moravam em outro Estado.

Os gatos eram dóceis, amigos entre si e obedientes às ordens do seu dono. Tinham o lugar certo para satisfazer suas necessidades fisiológicas.

Maria, a antiga criada, cuidava da casa, e também da roupa e alimentação do patrão.

José Alpiniano gostava que os dois gatos estivessem sempre ao seu lado. Isso, para ele, era uma terapia. Entretanto, às vezes, fechava-se no escritório, para se concentrar melhor nos seus escritos. Os dois gatos, quando notavam que a porta estava fechada, miavam desesperadamente. Arranhavam a porta com as unhas, até que fosse aberta.

Desejando evitar estresse nos queridos gatinhos, José Alpiniano mandou chamar um conhecido marceneiro e lhe deu a seguinte ordem:

– Jocildo, quero que abra duas passagens, na parte inferior desta porta. Uma, grande, para o gato maior, e outra, pequena, para o gato menor. Quero que os dois possam entrar e sair livremente do meu escritório.

O marceneiro, admirado, respondeu:

-Mas, Seu Alpiniano, basta fazer uma passagem grande! Servirá para os dois gatos! Não há necessidade de duas.

Contrariado, o homem retrucou, grosseiramente:

-Não precisa? E por onde o gatinho pequeno passará? Faça o que eu estou mandando! Quero duas passagens!

O marceneiro nunca tinha se deparado com uma pessoa tão opiniosa.

E obedeceu à ordem recebida.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 01 de dezembro de 2017

ZÉ BESTA

 

Jonas era um homem muito bom, que residia numa cidade do interior nordestino. Ele e Nalva, sua esposa, mal sabiam ler e escrever. Entretanto, faziam questão de que os três filhos estudassem no melhor colégio da cidade.Tinham uma pequena propriedade rural, onde cultivavam, entre outros produtos, feijão, milho, mandioca, macaxeira, inhame e bata-doce. A família era religiosa e tinha o sentimento da caridade inserido no coração. Mesmo não sendo ricos, não negavam um prato de comida a ninguém. Jonas gostava de dizer que a porta da sua casa estava sempre aberta para os amigos e para os necessitados. Era comum, ao amanhecer o dia, encontrar à sua porta pessoas famintas, pedindo para tomar o café da manhã. Sua esposa oferecia aos pedintes café com pão, cuscuz e batata doce. O fogão à lenha estava sempre aceso, com alguma coisa cozinhando.

 

 

Na hora do almoço, a cena se repetia. Os pobres ficavam na sua calçada, à espera de comida. Não lhes faltava o prato de feijão com farinha e um pedaço de mistura. Era comida simples, mas que saciava a fome dos mais pobres.Com a hospitalidade típica do nordestino, no tempo das “vacas gordas”, o casal também tinha o maior prazer em receber pessoas amigas e parentes em sua casa, hospedar e compartilhar as refeições. Jonas fazia isso gratuitamente, sem qualquer interesse. Não era político nem cabo eleitoral, o que justificaria a receptividade.

A casa de Jonas e Nalva parecia um albergue. Com o passar do tempo, forasteiros e oportunistas passaram a se aproveitar da bondade do casal. Na hora das refeições, sempre chegavam alguns desconhecidos, com conversa mole, praticamente se convidando para almoçar ou jantar. Pediam até dormida.

Certo dia, ele caminhava pela cidade e, casualmente, ouviu três malandros conversando à sua frente e fazendo planos de não gastar um centavo naquele dia. Iriam fazer as refeições na casa de Zé Besta. Curioso, ele perguntou a alguém que também ouvira a conversa, quem era esse tal de Zé Besta, a quem eles se referiam. E o homem respondeu:

-Zé besta é um velho muito caridoso, chamado Jonas, que dá comida e abrigo aos necessitados. Mas, as pessoas que costumam comer na casa dele saem de lá fazendo chacota, e lhe apelidaram de Zé Besta. O povo é mal agradecido. Ninguém reconhece a bondade de ninguém.

Decepcionado com a humanidade, Jonas limitou-se a ajudar, apenas, às pessoas muito pobres, que já conhecia. O apelido de Zé Besta lhe serviu de lição. Para ele, a partir de então, qualquer estranho passou a ser um inimigo em potencial.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 24 de novembro de 2017

A FAMA

Jerson sempre foi uma criança tímida. Apanhava dos coleguinhas e, mesmo instigado pelos pais, não tinha coragem de reagir. Não levava jeito para esportes, que exigissem esforço físico. Gostava de futebol, mas se fosse jogo de botão ou totó.

Os pais eram católicos e o acostumaram a frequentar a Igreja aos domingos. No colégio, seus colegas o disputavam nos trabalhos de grupo, por ser bastante inteligente e um aluno exemplar.

 

Tornou-se adolescente, com a mesma timidez. Não paquerava, não namorava nem gostava de dançar. Já rapaz, beirando os 18 anos, era sempre assediado por amigas, mas não se envolvia com nenhuma.

Os colegas achavam estranho o seu comportamento e a rejeição que demonstrava pelas moças. Começaram a achar que ele tinha outras preferências. Entretanto, nunca o viram investir em rapazes, como também não apresentava trejeitos efeminados.

Todos os seus amigos eram pegadores e não podiam ver um rabo de saia. Todos tinham namorada fixa e pensavam em casar.

Os rapazes combinavam com as amigas, para se insinuarem para Jerson, mas as tentativas eram em vão. Jerson fugia de namoro, como o diabo foge da cruz.

Certo dia, Josué, seu melhor amigo, criou coragem e conversou com ele sobre o seu estranho comportamento. Disse-lhe que ele estava dando margens a comentários maldosos no que se referia à sua masculinidade. Indignado, Jerson reagiu e disse que era um homem normal. Era romântico e sonhador. Apenas, ainda não havia encontrado a parceira ideal. Ainda não tinha sentido atração sexual por nenhuma moça. Mas tinha certeza de que a sua alma gêmea estava a caminho. Lembrava as palavras da sua avó materna:

“Casamento e mortalha, no céu se talha”.

Pretendia se casar, futuramente, em vez de ficar de galho em galho, como a maioria dos rapazes.

Disse ao amigo que, em todas as moças que se insinuavam para ele, faltava o brilho no olhar, que ele tanto procurava. Antes de qualquer atributo físico, admirava nas pessoas a beleza interior.

Afinal, como já disse o poeta, os olhos são o espelho da alma.

Certo dia, os amigos convidaram Jerson para o aniversário de 19 anos de um deles. Por influência, ele também tomou algumas cervejas. De repente, chegaram ao restaurante algumas moças conhecidas, acompanhadas de amigas bastante atraentes. Uma delas passou a se insinuar para Jerson e, no final, amanheceu o dia com ele num motel. Foi a primeira experiência sexual de Jerson. Rápida e sem graça.

Logo depois, Jerson alegou estar com dor de cabeça e os dois foram para suas respectivas casas, sem trocar uma só palavra.

Jerson se sentiu um babaca, por ter cedido às pressões dos amigos, ainda mais com uma moça de programa. Isso lhe provocou uma certa revolta. Resolveu que, pelo menos por uns tempos, iria se afastar de todos e se dedicar apenas aos estudos.

Os amigos estavam curiosos, para saber como tinha sido a noitada de Jerson com a garota. Também estavam certos de que, depois daquele encontro, o querido amigo despertaria para as alegrias do sexo e passaria a se interessar pelas mulheres.

Depois de dois dias sem se encontrar com a turma, nem atender telefone, Jerson resolveu procurá-los. Todos queriam saber, ao mesmo tempo, como tinha sido aquela famosa noite. E a pergunta era a mesma:

– E então, Jerson, valeu a pena? Mulher é bicho bom ou não é?

Demonstrando muita irritação, o rapaz respondeu:

– Querem saber a verdade?

Cheguei à seguinte conclusão:

– “XIRANHA” só tem mesmo é FAMA!!!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 17 de novembro de 2017

O SONO

Durante a Segunda Guerra Mundial (1942 a 1945), Natal abrigou tropas norte-americanas. Para esse apoio, na capital potiguar foi instalada uma base militar dos Estados Unidos.

A escolha de Natal se deu em decorrência da sua posição geográfica privilegiada, facilitando deslocamentos para os continentes africano e europeu.

No auge da II Guerra, Parnamirim era o aeroporto mais congestionado do Brasil, com inúmeros pousos e decolagens diárias.

Criado para proteger o continente americano das investidas do Eixo – composto pela Alemanha, Itália e Japão -, o Parnamirim Field era, na década de 1940, a maior base aérea estadunidense em território estrangeiro. Ao fim da guerra, o fato rendeu à capital potiguar o apelido de “Trampolim da Vitória”.

Antes do conflito armado internacional, Natal tinha 55 mil habitantes e era uma cidade tranquila. Com a instalação da base norte-americana, houve um aumento populacional de mais de 10 mil novos habitantes.

A presença de soldados americanos modificou a vida social da cidade. Surgiram namoros, noivados e até casamentos de moças de famílias natalenses com os americanos. As jovens se libertaram do controle paterno, que até então ia muito além da maioridade. Aumentou o consumo de álcool e cigarro. Natal conheceu produtos como a Coca-cola e o Chiclete. As moças passaram a fumar e a beber, principalmente, “Cuba Libre”, bebida feita à base de rum, refrigerante coca-cola e limão.

Atribui-se a invenção dessa bebida aos soldados norte-americanos, que ajudaram nas guerras da independência cubana, em 1898. Seria a explicação do seu nome.

Também aumentou, em Natal, a prostituição.

O dólar tornou-se quase a moeda-corrente da capital. A economia cresceu bastante.

Logo que chegaram os primeiros norte-americanos a Natal, o Consulado criou os “Clubes 50”, visando a integração das tropas militares com as famílias norte-rio-grandenses. Surgiram associações recreativas, e tanto o Aero Clube como o Clube Hípico, alternadamente, foram alugados para a realização de bailes. Dizem os historiadores que, nesses bailes, a disputa de pares para dançar era na proporção de 200 americanos para 30 ou 40 moças. Entrava um par no salão e logo vinha um colega, batia nas costas do outro e tomava a “dama”, sem problemas. Esse gesto era chamado de “tag”, uma invenção americana, para que todos tivessem par para dançar.

Houve uma invasão de novos ritmos musicais, como o “jazz”, “conga”, “rumba” e outros.

Também havia bailes na Base Aérea de Parnamirim. No sábado, os bailes eram somente para os americanos. Mas no domingo, eram para todos (For Hall).

Há quem diga que vem daí a palavra “forró”, o famoso ritmo nordestino. Mas, segundo o historiador Luis da Câmara Cascudo, a palavra “forró” é derivada do termo africano “forrobodó”, festa transformada em gênero musical.

Os americanos disponibilizavam ônibus para levar e trazer as moças natalenses, para participar dos bailes. Entretanto, exigiam que estivessem sempre acompanhadas por um rapaz parente ou amigo, ou então por uma “chaperone” (acompanhante). A “chaperone” podia ser a mãe ou uma mulher mais velha. Depois, essa exigência foi abrandada, podendo as moças se fazerem acompanhar de irmãs.

A invasão da cidade por americanos despertou a ira dos rapazes natalenses, pois todas as moças só queriam namorar ou dançar com os gringos. Rejeitados, os rapazes da terra se uniram para se vingar do sexo feminino, passando a chamar os ônibus da Base Aérea, que levavam e traziam as moças que participavam dos bailes, pejorativamente, de “Marmita”. Vaiavam os ônibus, e diziam que eles estavam levando “comida” para os soldados americanos.

Esses ônibus saíam da Praça Augusto Severo, na Ribeira. Era lá que os rapazes se concentravam para fazer algazarra.

Minha saudosa tia Carmen Pimentel, sua irmã Gilka e diversas amigas, eram jovens nessa época, e participaram ativamente dos bailes oferecidos pelos americanos. Falavam Inglês fluentemente e eram muito disputadas.

Carmen e Gilka levavam como “chaperone” Dona Francisquinha, a 2ª esposa do Professor Celestino Pimentel, madrasta de Carmen e mãe de Gilka. Aliás, a mulher fazia questão de acompanhá-las, para que não ficassem faladas.

A filha Gilka, quando tinha um namorado, ficava na sala, à noite, sozinha com ele, até que o relógio da catedral tocasse nove badaladas. A partir de então, a mãe se sentava na sala, esperando que o namorado da filha se despedisse. Na cabeça de Dona Francisquinha, antes das nove horas da noite, não poderia acontecer nenhum agarrado.Mas depois das nove da noite, para ela, o cenário mudava.

Já beirando os 60 anos, Dona Francisquinha tinha o maior zelo pela virgindade da filha e da enteada, e fazia questão de acompanhá-las nos “ônibus/marmita”.

Pois bem. Numa dessas festas da Base Aérea, quando Dona Francisquinha servia de “chaperone” da filha, enteada e algumas amigas, mesmo cansada de um exaustivo dia de trabalho doméstico, foi dominada pelo sono. Para ver se despertava, foi ao toalete. A sua ausência foi notada com naturalidade pelas moças. Entretanto, depois da festa terminar, com os dois ônibus lotados de jovens para o retorno a Natal, Gilka, que ia em um ônibus com amigas, sentiu falta da mãe. Então, desceu do ônibus e foi ao outro onde estava Carmen com outras amigas e perguntou?

– Carmen, mamãe está aí com você?

A irmã respondeu:

– Não, Gilka! Francisquinha não está aqui!!!

Gilka pediu ao motorista para esperar um pouco, enquanto iria ao toalete, ver se a mãe estava lá.

Não deu outra. Dona Francisquinha estava dormindo profundamente, num sofá que havia no toalete. Se Gilka, sua filha, não tivesse sentido sua falta, a mulher teria amanhecido o dia dormindo no toalete, do salão de festa da Base Aérea.

O sono é uma coisa incontrolável!!!

Carmen Pimentel e as amigas, na idade madura e na velhice, quando conversavam, relembravam o tempo da Guerra, com saudade. Todas eram unânimes em dizer:

– A Guerra foi formidável!!

Gilka, depois da Guerra, foi para os Estados Unidos, trabalhar no Consulado Brasileiro. Casou-se com um americano, teve um casal de filhos, e lá viveu até o fim dos seus dias.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sábado, 11 de novembro de 2017

A TINTA

Seu João Bento vendia madeira (caibros e linhas) e residia no mesmo local onde trabalhava. Todos os dias, ia à bodega de Dona Luíza, vizinha à sua casa, e tomava algumas bicadas de cachaça.

 

 

Certo dia, comprou um galão de tinta, para pintar a frente da pequena casa onde morava. Quando começou a pintura, viu que a tinta não correspondia à cor escolhida na loja. Já tinha pintado a parede quase toda e não tinha mais como trocar a lata de tinta. Contrariado, ficou esbravejando, achando a cor da parede horrorosa. Realmente, o amarelo marfim que ele comprara tinha sido trocado, por um amarelo-ferrugem, avermelhado. Como já estava usando a tinta, estava sem jeito. Sua vontade era voltar à loja e quebrar a cara do vendedor irresponsável, que lhe entregou a tinta errada. Muito triste, ele começou a desabafar com todas as pessoas que por sua casa passavam. Elas foram unânimes em concordar com ele, dizendo que, de fato, a tinta era muito feia.

Seu João Bento, antes de começar a pintura da frente da casa, já tinha tomado a primeira chamada de cachaça do dia. Quando percebeu a troca da tinta, já tinha usado uma boa parte do galão. Ficou contrariado, até a medula óssea.

De repente, mudou o cenário. Pela frente da sua casa, vinha passando a professora Dona Elisa, que era incapaz de um comentário depreciativo, que contrariasse alguém. E a bondosa senhora cumprimentou o homem, delicadamente:

– Bom dia, Seu João Bento! Como está ficando linda sua casa! Que cor bonita e diferente! Está formidável!

Contrariado, Seu João Bento respondeu:

-Bom dia, Dona Elisa! Veja que moleza a minha: Comprei uma tinta amarela, linda, e me mandaram esta cor horrível! Estou com vontade de voltar na loja e quebrar a cara do vendedor!

Muito inteligente, Dona Elisa, vendo o estado de nervos do homem, procurou acalmá-lo:

-Seu João Bento, a cor da tinta está linda! Um amarelo diferente! Está formidável! Pode acreditar! Da próxima vez que eu mandar pintar minha casa, vai ser da cor da sua!

Seu João Bento ficou mais calmo e Dona Elisa seguiu para a escola onde lecionava.

O homem entrou novamente na bodega de dona Luíza e tomou mais três chamadas de cachaça, uma atrás da outra. Embriagado, fez um verdadeiro discurso. Mesmo revoltado com a cor da tinta, teceu grandes elogios à Dona Elisa:

-Dona Elisa é uma santa! Não faz mal a ninguém. Achou linda a tinta que veio trocada. Disse até que vai mandar pintar a casa dela da mesma cor da minha!

Também, mesmo que eu estivesse pintando a casa com tinta cor de “bosta” ela teria dito a mesma coisa:

“Está FORMIDÁVEL, Seu João Bento!”


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 03 de novembro de 2017

A CASA E O BOTÃO

Matilde, 23 anos, vitalidade de 16 e juízo de um pinto com um dia de nascido, era alta, bonita, exuberante, seios e quadris avantajados. Depois de passar dois anos no Rio de Janeiro, voltou para Natal muito traquejada. Leviana e coquete, todo namorado que arranjava, só queria mesmo se aproveitar dos seus dotes físicos.

Estava no auge, a marchinha de carnaval que dizia:

“Ei, como é que é? É pra casar, ou pra que é?”
Matilde só arranjava namorados do tipo “pra que é”.

Conheceu Joanildo, contador, 23 anos, noivo da sua amiga Soninha. Na mesma hora, lançou sobre o rapaz um olhar “pidão”, e a atração foi mútua. Surgiu entre os dois uma paixão violenta. Nas “entrelinhas” do dia, Joanildo investiu em telefonemas e galanteios, marcando encontros para “bater papo” com a amiga de sua noiva. Como grande caçador que era, sua intenção era apenas levar a rês ao “matadouro”. Afinal, era noivo de Soninha e a data do casamento estava próxima.

Entretanto, conseguido o seu intento, Joanildo sentiu-se perdidamente apaixonado por Matilde, sendo por ela correspondido. Sem que a noiva suspeitasse, passaram a se encontrar diariamente, e os encontros eram cada vez mais quentes. A paixão entre os dois  tornou-se avassaladora e já não dava para controlar.

 

Joanildo e Soninha estavam noivos há mais de um ano e já de casamento marcado. A casa onde iriam residir já estava mobiliada. Diariamente, Soninha ia até lá, levando coisas do enxoval para guardar. Às vezes, a amiga Matilde a acompanhava e a ajudava a guardar peças do enxoval, na cômoda e no guarda-roupa. Sem escrúpulos, Matilde dava risadas, vendo a pureza de Soninha, preocupada com a noite de núpcias, que estava próxima.

O noivo passou a viver um dilema. Chegara à conclusão de que o amor de sua vida era Matilde. Entretanto, não tinha coragem de acabar o noivado com Soninha. Estava envolvido com os sogros, que lhe confiaram a mão de sua filha. A festa já estava organizada, convites distribuídos e a casa onde iriam morar estava pronta para recebê-los.

Na hora em que Joanildo trocava juras de amor com Matilde, confessava que não sabia o que fazer para acabar o noivado com Soninha. Seria uma grande desfeita, dar um fora na noiva, quase na porta da Igreja e sem motivo aparente.

Todos da família de Soninha acreditavam que ela e Joanildo eram perdidamente apaixonados. A virgem cheia de candura, inocente como um anjo, não imaginava a falsidade da “amiga”.

Soninha tinha o firme propósito de se conservar virgem, até a noite de núpcias. Essa lição de castidade temporária, havia recebido da avó paterna, Dona Luíza, que procurava lhe transmitir preceitos do “tempo do ronca.” Segundo ela, a virgindade, era um atributo moral que deveria ser levado até o leito conjugal. Soninha não admitia qualquer investida do noivo, antes do casamento.

À medida que a data do enlace de Joanildo e Soninha se aproximava, aumentava o envolvimento do noivo com Matilde. Ele entrou em “parafuso”. A paixão desenfreada e uma atração física, que nunca sentira por Soninha, deram-lhe coragem de tomar uma decisão brusca e inesperada. Os dois se sentiam como se fossem “a casa e o botão”. Não podiam mais recuar.

Na véspera do casamento com Soninha, Joanildo e Matilde fugiram. Foram viver seu grande amor bem longe de Natal.

Foi um escândalo.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 27 de outubro de 2017

O CARIDOSO

Dois mendigos pediram uma esmola a um empresário rico, que ia entrando na sua camionete “cabine dupla”.

O homem os surpreendeu, ao convidá-los para entrar no carro e ir com ele até sua casa. Lá, eles almoçariam e receberiam uma ajuda, inclusive com roupas usadas. Perguntou se os dois estavam com fome e eles responderam que, até aquela hora do dia, não tinha comido nada, por falta de dinheiro.

Um dos rapazes respondeu:

– Muito agradecido, senhor, mas não me sinto bem em ir me alimentar na sua casa, sabendo que minha esposa e nosso filho pequeno também estão com fome, naquela calçada, esperando por mim.

– O homem rico falou:

– Chame-os e eles irão também almoçar na minha casa.

Olhando para o outro rapaz, o empresário falou:

– Você também pode vir.

Encabulado, o rapaz se justificou:

– Senhor, eu também tenho esposa e dois filhos, com fome, esperando por mim!

O empresário respondeu:

– Pois podem vir todos. Vão ver o que é fartura e encher a barriga do bom e do melhor. Não irão se arrepender.

Os dois mendigos se emocionaram, com o gesto caridoso daquele homem, que, de repente, apareceu na vida deles para ajudá-los, sem qualquer interesse. Acharam que tinham recebido uma bênção do Céu!

Todos se acomodaram nas duas boleias da caminhonete, e um dos rapazes se acomodou na carroceria.

No caminho, o rapaz que ia ao lado do empresário falou, humildemente:

– Só Deus paga essa caridade que o senhor está fazendo com todos nós. Vai matar a nossa fome e isso é o que nós estamos precisando…

O homem rico respondeu:

“Não precisa me agradecer tanto. Estou fazendo isto de coração. Gosto muito de fazer caridade. Eu sou um homem muito bom… amo o meu próximo. Fico feliz, quando mato a fome de alguém necessitado. Minha casa é muito grande e tem um enorme quintal. Vocês vão gostar muito. “

Ao chegarem à mansão onde o empresário morava, os mendigos se assustaram, com as palavras austeras daquele homem rico:

– Depois que almoçarem, quero que vocês façam uma boa limpeza no quintal: Arranquem todo o mato, apanhem as folhas caídas das fruteiras, juntem tudo e toquem fogo. Tenho enxada, ciscador e pá.

Os dois rapazes passaram o resto do dia, limpando o mato do enorme quintal.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 20 de outubro de 2017

UM SANTO REMÉDIO

Rosilda, do lar, e Mário, funcionário público municipal, estavam vivendo a crise dos dez anos de casamento. Influenciada pelas novelas da televisão, a mulher se impressionou com a onda de adultério que reinava no mundo, e botou na cabeça que o marido lhe era infiel. Achava que os homens eram caçadores e viviam em busca de aventuras. Eram infiéis pela própria natureza.

Por isso, Rosilda tornou-se agressiva e desconfiada. Amanhecia o dia “dando coice no vento”, sentindo-se traída, sem razão aparente. Farejava chifres, não acreditava no que o marido dizia, e procurava motivos para demonstrar sua insatisfação na vida conjugal.

Na verdade, o maior defeito de Mário era, uma vez por outra, depois do trabalho, encontrar-se com alguns amigos e tomar uma cervejinha, no bar localizado nas imediações de sua casa. Esse papo ia somente, até se aproximar a hora do jantar.

Apesar de não ser santo, sua média, como chefe de família e pai, era dez. Entretanto, bastava entrar em casa, para que a esposa o “espinhasse” com mil perguntas maliciosas, à procura de indícios de sua infidelidade.

Rosilda, com sua voz gasguita e insinuações irritantes, foi tirando a paciência de Mário. Aos poucos, o inferno se instalou dentro de casa, sob o olhar aflito dos três filhos pequenos.

Católica por tradição, aos domingos à noite Rosilda ia à Missa com o marido e os filhos. Também mantinha o habito de comungar toda 1ª sexta-feira do mês.

Numa quinta-feira à tarde, Rosilda foi à Igreja se confessar e contou ao padre que estava prestes a se separar do marido. Disse-lhe que suspeitava de estar sendo traída; que o marido chegava tarde em casa e sempre com hálito de bebida; também não lhe dava mais o carinho e atenção dos primeiros meses de casamento. Falou das brigas constantes, provocadas por ela.

O padre lhe deu conselhos para que não agisse precipitadamente e pensasse na falta que o pai iria fazer aos filhos, se houvesse a separação.

Pensando em preservar a instituição da família, o vigário teve uma ideia “bem bolada”. Avisou, durante a Missa, que iria distribuir às mulheres com problemas conjugais, um remédio eficaz para a reconciliação. Na manhã seguinte, na Sacristia da Igreja, formou-se uma fila para a entrega do remédio. A primeira da fila era Rosilda.

O nome do “medicamento” era “Água Santa”, distribuído em garrafas de 500 ml, com rótulo.

Chegando em casa, Rosilda, sozinha no quarto, leu o prospecto, onde estava escrito: “Colocar na boca 5 colheres de “Água Santa” e se ajoelhar durante 30 minutos, de boca fechada, sem engolir. O procedimento deve ser feito à noite, na hora exata em que o marido entrar em casa. Com 15 dias de tratamento, o resultado será surpreendente. Caso seja necessário, o tratamento pode ser prorrogado, até que a paz volte a reinar, no ”lar, doce lar”.

E a água potável fez efeito…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 13 de outubro de 2017

A CACHAÇA

 

A cachaça, ou aguardente de cana de açúcar, está integrada à cultura brasileira, assim como o futebol, o samba, o café e o fumo.

Aparece em músicas, anedotas, textos literários e literatura de cordel.

No começo da colonização do Brasil, a partir de 1530, a produção açucareira apareceu como primeiro grande empreendimento de exploração. Afinal, os portugueses já dominavam o processo de plantio e processamento da cana de açúcar.

A cachaça originou-se da cultura do açúcar. Segundo alguns historiadores, os escravos, no Recôncavo baiano, aproveitavam as sobras da garapa da fabricação do açúcar, e guardavam em potes, até azedar. Era a bebida preferida deles.

O tráfico de escravos impôs a valorização do produto. A cachaça, ou aguardente da terra, era indispensável na compra do negro africano. Uma verdadeira moeda de circulação. Figurava como alimento complementar dos escravos, durante a travessia do Atlântico. Diariamente, eles eram forçados a ingerir doses de aguardente, para suportar a tristeza.

Devido à sua origem, a cachaça, durante anos, foi considerada bebida das camadas simples da sociedade. Não era servida em restaurantes ou bares requintados. Com o progresso tecnológico, surgiram cachaças finas e de alto custo, desaparecendo o tabu de que somente o pobre seria bebedor de cachaça.

A cachaça está para o Brasil, como o Rum está para Cuba.

Em 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardoso legitimou a cachaça como produto tipicamente brasileiro, estabelecendo critérios de fabricação e comercialização. Em 2012, uma lei transformou a cachaça em Patrimônio Histórico Cultural do estado do Rio de Janeiro.

Atualmente, essa bebida destilada é exportada para vários lugares do mundo.

A cachaça está presente em histórias e anedotas hilárias.

Antigamente, durante as serenatas ao luar, os seresteiros tomavam uma bebidinha. Um conhecido cantor, de uma cidade do interior, depois de interpretar músicas de Orlando Silva, acompanhado por um violão plangente, ingeriu muita cachaça e acabou adormecendo na calçada. Os amigos se sentaram ao seu lado, esperando que despertasse. Minutos depois, desorientado, o seresteiro chamou pelo pai:

– Pai, ô pai!!!

Um dos amigos perguntou:

– O que é, Adolfo?

E o cantor espondeu:

– A “bença” !!!

E os rapazes conseguiram acordá-lo, com a marchinha que diz: “Você pensa que cachaça é água…”


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 06 de outubro de 2017

A CAIXA D,ÁGUA

 

A CAIXA D´ÁGUA

Anos atrás, em Serrana, cidade do interior nordestino, o prefeito João Tanajura se celebrizou pelas gafes constantemente cometidas. O homem mal sabia ler e escrever. Os vereadores, conhecidos por apelidos como Zé do Toucinho, Antônio do Carvão, José da Telha e outros, não ficavam atrás. A situação era de fazer vergonha.

O prefeito, que era chamado de “Coronel”, costumava se reunir com o vice-prefeito, um pouco mais letrado, e assessores, para “redigir” mensagens, que seriam submetidas à apreciação da Câmara Municipal, tomando decisões políticas importantes. Quando algum companheiro duvidava do êxito das suas pretensões, ele insistia no seu ponto de vista e encerrava as reuniões assim:

– Vocês acham que não vai dar certo?

– Achamos, “Coronel”.

E ele respondia, em cima da bucha:

– Pois bem! Se não der certo, não tem “poblema”. Nós mesmo “faz”, nós mesmo “desmancha”.

Certa vez, chegou à Prefeitura, atendendo a um requerimento do Prefeito, uma comissão técnica especial, oriunda do órgão estadual competente, a fim de vistoriar a antiga caixa d’água, que armazenava água potável para abastecimento da população. Pessoas leigas haviam espalhado o boato de que a caixa d’água estava inclinando e iria desabar a qualquer momento. A população entrou em polvorosa.

Depois de rigorosa perícia técnica, o grupo se reuniu com o prefeito e assessores, apresentando um laudo e um relatório, onde estava registrada a total ausência de perigo de desabamento da referida caixa d’água. Segundo os peritos, a ligeira inclinação notada era efeito da clássica lei da gravidade ou gravitação universal, formulada pelo físico Isaac Newton, que diz:

“A força da gravidade é diretamente proporcional às massas dos corpos em interação e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles”.

Como é óbvio, o prefeito, que tinha pouco estudo, não entendeu patavina dessa explicação. Bastante irritado, levantou a voz e falou:

– Eu quero saber se essa lei é “federá”,”estaduá” ou “municipá”! Quero resolver isso logo!!!

Os engenheiros se controlaram para não sorrir. Tranquilizaram o “Coronel” de que o problema não tinha nada a ver com a legislação federal, estadual ou municipal. E O prefeito fez de conta que estava entendendo tudo.

Numa das visitas do Governador do Estado a essa mesma cidade, para inauguração de uma obra, houve um banquete em sua homenagem, no único clube social ali existente. Na hora do cafezinho, o prefeito pôs na sua xícara umas gotinhas de “Suíta”, o adoçante dietético da época. O Governador , sentado ao seu lado, delicadamente, perguntou:

– Prefeito, o senhor é diabético?

A resposta foi rápida:

– Não, Governador! Eu sou o Prefeito de Serrana!!!

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 29 de setembro de 2017

O CAIXA

Josildo era escriturário do Banco do Brasil, em Natal, e exercia a atividade de caixa executivo. Década de 60/70. Nesse tempo, ainda não havia caixa eletrônico. Os caixas eram sobrecarregados, e o trabalho requeria muita atenção.

Ali, na “boca do caixa”, concentravam-se os serviços bancários mais comuns. Informavam-se saldos e extratos, recebiam-se depósitos, e pagamentos, faziam-se transferências, entregavam-se talões de cheques etc.

No final do expediente, se houvesse diferença de valores, o caixa seria obrigado a repor.

Num dia de grande movimento, enquanto Josildo atendia a uma fila interminável de clientes, um senhor, aparentando um pouco mais de 50 anos e de aparência simples, aguardava sua vez. Ao ser atendido, disse que morava no interior e era dono de uma pequena propriedade rural. Pediu o saldo, o extrato e um talão de cheques.

De posse dos comprovantes solicitados, o cliente preencheu um cheque, no valor total do dinheiro que havia em sua conta corrente, até o último centavo. Fez o saque e se afastou um pouco. Ali mesmo, contou todas as cédulas e moedas recebidas. Em seguida, sem entrar na fila, pediu ao caixa para depositar novamente todo o dinheiro sacado. Admirado e curioso diante desse fato inusitado, Josildo recebeu o depósito, contou o dinheiro, mas não se conteve e falou:

-Amigo, não entendi o que aconteceu. O senhor sacou todo o seu dinheiro que estava depositado no Banco. Contou tudo, e agora está depositando novamente. O que foi que houve?

O homem respondeu:

– Eu queria somente conferir se o dinheiro estava certo. Contei tudo e vi que esse Banco é bom mesmo. O dinheiro está completo. Por isso, estou depositando aqui novamente.

Josildo prendeu o riso. Mas em casa, riu demais, comentando a ocorrência com a esposa. Era caixa do Banco do Brasil há 18 anos e nunca havia se deparado com um cliente tão desconfiado dos serviços bancários.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 22 de setembro de 2017

A BEBEDEIRA

Há boêmios que só tomam cerveja e teimam em dizer que “não bebem nada”. Justificam seu gosto acentuado pelo álcool, dizendo-se apenas “cervejeiros”.

A cerveja, uma das bebidas alcoólicas mais consumidas no mundo, sempre foi homenageada em músicas, como nos seguintes casos: “Barril de Chopp” (Altamiro Carrilho) “Louras Geladas” (RPM), “Chuva, Suor e Cerveja” (Caetano Veloso), “Um Chopp pra distrair (Paulo Diniz), “Feijoada Completa” (Chico Buarque de Holanda) e outras.

 

Pois bem. Toninho, um boêmio, poeta e seresteiro de Natal, era frequentador assíduo do Bar da Brisa, cujo proprietário era seu amigo de longas datas. Orgulhoso por ser cervejeiro, não se considerava alcoólatra. Mesmo assim, seria capaz de tomar, sozinho, uma grade de cerveja num dia. Andava sempre com o seu violão debaixo do braço. Muito conhecido na cidade, onde chegava, encontrava amigos e bons papos. Bom de copo, voz e violão, alegrava qualquer ambiente.

Ponto de encontro de boêmios e seresteiros, no Bar da Brisa, aos sábados, podiam-se ouvir músicas da melhor qualidade, interpretadas por cantores amadores. O repertório abrangia composições gravadas por Evaldo Gouveia, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra e outros, verdadeiras pérolas da MPB.

Num certo sábado, como sempre fazia, Toninho passou o dia de bar em bar. À tardinha, já melado, chegou ao Bar da Brisa. Continuou bebendo e participou da roda de seresta, soltando seu vozeirão e encantando a todos.

Cumprindo o horário de costume, à meia noite, o proprietário deu sinal de que o bar iria encerrar suas atividades e os fregueses foram saindo. O homem fechou o bar e foi para casa. Por volta das 4 horas da manhã, foi acordado pelo telefone, que chamava insistentemente. Era um vizinho do bar lhe avisando que alguma coisa estranha estava ali acontecendo. Dava para ouvir gritos e pedidos de socorro.

Acompanhado pela Polícia, o proprietário abriu o bar e tomou um susto. Toninho havia ficado ali trancado. Adormecera no banheiro, sem que ninguém percebesse. Quando despertou, o bar estava às escuras e fechado. Tomado pelo pânico, o boêmio deu um escândalo, gritando por socorro e quebrando o que encontrou pela frente. O estrago de garrafas e copos quebrados foi grande.

Ao ver o proprietário chegar, Toninho se insurgiu contra ele. Indignado, acusou-o de negligência, por tê-lo deixado ali trancado. Muito sentido, passou vários dias afastado do Bar da Brisa, revoltado com o que aconteceu. Não admitiu ter havido culpa concorrente.

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 15 de setembro de 2017

O RETORNO

Nailde era servidora pública de nível médio, em um órgão estadual. Já com mais de vinte anos de serviço, ganhava o suficiente para se sustentar. Era solteira e morava só. Muito organizada, não contraía dívidas e juntava sempre algum dinheiro num mealheiro. Depois, abriu uma caderneta de poupança e passou a economizar mais um pouco, sem mexer nos rendimentos. Anualmente, ia ao dentista e certa vez precisou fazer uma coroa, tendo optado por um dente de ouro. Isso, na época, estava na moda.

Dois meses depois, foi passar o domingo na casa de uma irmã e, após o almoço, sentiu falta do dente de ouro. Procurou por toda a casa e nada do dente aparecer. Muito triste, Nailde teve uma intuição: Só podia ter engolido o dente, que tinha lhe custado tão caro! Era fruto de suas economias!

Não pensou duas vezes. Fez um chá de maná com sena e tomou um purgante. Rezou o resto do dia, pedindo a Deus para que tivesse de volta o seu dente de ouro, são e salvo.

Nessas alturas, as sobrinhas de 7, 9 e 11 anos, já estavam estranhando o nervosismo da tia, que, sentada em uma cadeira, no quarto, mantinha a postos, ao seu lado, um penico. Sem largar o terço, Nailde aguardava o resultado do purgante e a volta triunfante do dente.

Ao primeiro sinal de uma cólica intestinal, a moça pediu aos anjos e arcanjos, que também a ajudassem a recuperar sua joia de ouro, 18 quilates. As crianças torciam na porta do quarto, acompanhando os acontecimentos. De vez em quando, perguntavam:

– O dente já saiu, tia Nailde?

E, com voz de choro, a tia respondia:

– Ainda não!

E a alegria foi grande, quando ouviram a tia gritar:

– Graças a Deus!!! Meu dente de ouro está aqui!!!

Sob os protestos da irmã, do cunhado e das sobrinhas, Nailde, com a mão enfiada em um saco plástico, tirou o dente de ouro do penico, lavou muito bem lavado, com água e sabão, e também com álcool.

Passados alguns dias, estava ela novamente sorrindo de felicidade e exibindo o dente de ouro, que o dentista havia reposto.

Nailde pagou todas as promessas, que havia feito para que o dente retornasse às suas mãos. Entretanto, nunca mais as crianças lhe deram sossego. Quando ela se aproximava para falar com as sobrinhas, todas se afastavam, dizendo em tom de brincadeira:

– Vá pra lá, tia! Sua boca está podre!!!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 08 de setembro de 2017

ESQUINA DOS AMIGOS

 

Venâncio e Zélia começaram a vida de casados em Natal, abrindo uma pequena cantina, na parte inferior do sobrado de esquina, onde passaram a residir. A rua era calma e o bairro, um dos melhores da cidade. O casal teve dois filhos.

Na cantina, eram vendidos produtos simples, como manteiga, óleo, biscoitos, chocolates, refrigerante e cerveja. Os fregueses bebiam em pé.

Após algum tempo, um amigo de Venâncio, que morava perto e frequentava a cantina diariamente, deu-lhe de presente duas mesinhas de quatro cadeiras. Uma delas o amigo mesmo ocupava, logo pela manhã. Ali sentado, lia os jornais do dia e iniciava o bate-papo. Venâncio gostou do presente e com o tempo, comprou mais duas mesinhas iguais. Foi um “chama”, e os cervejeiros se tornaram frequentadores habituais. Quase todos eram seus colegas de juventude. O movimento aumentava nos finais de semana.

Dois anos depois, Venâncio se viu dono de um misto de cantina e bar. Ali, diariamente, os amigos se reuniam para molhar a palavra e bater papo.

Ele mesmo servia às mesas e tomava conta do caixa. Entre um atendimento e outro, também tomava sua cervejinha.

Os tira-gostos eram preparados por uma ajudante, e se resumiam a queijo de coalho assado e caldo de feijão ou peixe.

Na cantina, Venâncio era adepto da lei do silêncio. Detestava som, por melhor que fosse. Gostava de conversar e ouvir boas conversas. Tinha cultura geral e estava sempre atualizado com os acontecimentos locais, como também do País e do mundo.
Para não atrapalhar as conversas, Venâncio colocou na parede um aviso “sui generis”:

‘É PROIBIDO SOM DE QUALQUER TIPO, INCLUSIVE DE CARRO.”

Outro aviso que havia na parede:

“NÃO ATENDEMOS A PESSOAS JÁ EMBRIAGADAS.”

Venâncio mantinha, dentro da gaveta do balcão, um “cartão vermelho”, para expulsar quem procurasse fazer confusão.

Como de grão em grão, a galinha enche o papo, às vezes, por volta das 20 horas, ele estava “triscado” e, sob protestos dos frequentadores, avisava que ia fechar a cantina. Assobiando, descia as portas de ferro, forçando a saída de todos. E se justificava:

– É ordem da “federal”…

A “federal” a que Venâncio se referia era a esposa, com a qual entrava em choque, quando se embriagava. Os clientes saiam contrariados, mas no dia seguinte, estavam todos lá novamente.

Fora a expectativa do inesperado “toque de recolher”, dado pela “federal”, o bar de Venâncio era um reduto de antigas amizades, fortalecidas através do tempo. Era um ponto de encontro de homens inteligentes e cultos, boêmios ou não, que iam ali para bater papo e colocar os assuntos em dia.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 01 de setembro de 2017

A ASSOMBRAÇÃO

Anos atrás, Mariana, uma moça que fazia serviços domésticos na casa de Dona Lia, em Nova-Cruz, era muito medrosa. Cheia de pantim, tinha medo do escuro e de almas penadas.

Nessa época, na cidade não havia luz elétrica. A casa era iluminada com candeeiros e lamparinas, a querosene. Ainda não havia fogão a gás, e a comida era feita em fogões a carvão ou à lenha. O carvão também era utilizado para o engomado das roupas, com os tradicionais ferros à brasa, das marcas “Estrela” ou “Itacolomy”. Para atiçar o fogo e esquentar o ferro, eram utilizados os antigos abanos de palha, feitos artesanalmente.

Como o consumo de carvão era grande, dona Lia comprava o produto em saca, que era guardada em um quartinho, construído para esse fim.

Certa noite, ao apanhar uma roupa estendida no quintal, Mariana deu um grito de pavor e teve uma crise histérica, dizendo que tinha visto uma assombração. Jurou de mãos postas que vira uma senhora gorda e com um grande totó na cabeça, ao passar pelo “quarto do carvão.” No seu delírio, identificou a alma como sendo a imagem fiel de uma senhora que morara na mesma rua, e que havia falecido há alguns dias. O escândalo foi grande. A patroa, que não acreditava em alma e dizia sempre que os mortos estavam dormindo, à espera da ressurreição, tentou conversar com a moça, mas foi em vão. Deu-lhe um copo com água e açúcar para beber e em seguida, mandou que ela rezasse o “Credo” e a “Salve Rainha” na intenção daquela alma penada, para que ela fosse para longe.

Depois que Mariana se acalmou, a patroa, segurando uma lamparina acesa, foi até o tal “quarto do carvão”, para ver se ainda encontrava ali a alma da mulher gorda, de totó na cabeça. A empregada, tremendo de medo, atendeu à ordem da patroa e a acompanhou. No quarto, havia uma enorme trouxa de roupa, pronta para ser levada para lavar no rio “Curimataú”. Em cima da trouxa, dormindo “em berço esplêndido”, estava uma enorme galinha, que tinha fugido do galinheiro e se refugiado no “quarto do carvão.” Na penumbra, a trouxa de roupa, com a galinha fujona dormindo em cima, parecia mesmo uma mulher gorda, de totó na cabeça.

Dona Lia deu ótimas risadas, e a empregada perdeu o medo de assombração.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 25 de agosto de 2017

O GÁS

Historicamente, o querosene foi o primeiro derivado do petróleo de valor comercial, que substituiu o azeite e o óleo de baleia na iluminação. Os usos mais comuns do querosene são para iluminação, solvente e como combustível para aviões.

No interior nordestino, o querosene também é chamado de gás.

O imortal compositor Luiz Gonzaga compôs um coco com o título “Derramaro o Gai” (gás):

 

 

 

A água mineral é proveniente de fontes naturais, como rios e riachos, conhecidos como poços artesianos, ou de fontes artificialmente captadas. Possui composição química, ou propriedades físicas ou físico-químicas, distintas das águas comuns, com características que lhe conferem uma ação medicamentosa (Decreto-Lei Nº 7.841, de 08/08/1945).

Algumas águas minerais são captadas, também, de locais que já apresentaram alguma atividade vulcânica.

Existem diversos tipos de água mineral, definidas de acordo com a fonte em que são captadas, sua origem, composição química, temperatura e outras substâncias presentes. Os tipos de água mais conhecidos são a água mineral sem gás, a água mineral com gás e as águas denominadas terapêuticas.

Há exames especiais, que tem o objetivo de identificar se a água é própria para consumo humano, se não está contaminada, e se pode ser utilizada para tomar banho.

A grande maioria das marcas que encontramos à venda é gaseificada artificialmente, em um processo industrial idêntico ao dos refrigerantes: retira-se o oxigênio presente no líquido e injeta-se, em seu lugar, gás carbônico.

Já o processo natural de formação de água carbogasosa ou carbonatada – como é chamada pelos cientistas – surge do aquecimento subterrâneo. As fontes estão situadas em regiões onde ocorreram vulcões ou onde a camada de magma está mais próxima da superfície. O magma é uma massa natural fluida, incandescente, composta por diversos minerais, que é encontrada no interior do planeta Terra, na região conhecida como manto.

Pois bem. Severino nasceu e se criou na zona rural de uma cidade do interior nordestino, onde a energia elétrica demorou muito a chegar. Acostumou-se aos lampiões de gás, lamparinas e candeeiros, diariamente abastecidos de querosene.

Fugindo da seca, resolveu se mudar para Natal, à procura de um emprego. Hospedou-se na casa de uma prima, que era amiga do dono de uma “Galeteria”. Até então, Severino só tinha trabalhado na lavoura, precisamente no roçado do seu pai. Mal sabia ler e escrever.
O dono da “Galeteria”, ao conhecer o rapaz, resolveu admiti-lo como garçom, em caráter de experiência. O movimento da casa, nos fins de semana, era impressionante. Com música ao vivo e comida gostosa, a frequência era enorme e selecionada. Severino, apesar de não estar acostumado com esse tipo de trabalho, gostou da ideia de ser garçom, e se propôs a seguir os ensinamentos do patrão. Passou dois dias observando os garçons antigos e auxiliando-os no trabalho. O proprietário conversou algumas horas com ele, dando-lhe noção de como atender bem aos clientes. O rapaz aprendeu tudo facilmente, inclusive a posição dos pratos, copos e talheres, e a maneira como deveria servir as bebidas. Familiarizou-se com o cardápio de refeições e tira-gostos, e também com o de bebidas.

Severino, certo de que tinha aprendido todos os ensinamentos do patrão, iniciou seu trabalho de garçom na noite de uma sexta-feira, de bastante movimento. Ao se ver obrigado a atender a uma mesa com seis pessoas, ficou nervoso, temendo se atrapalhar em alguma coisa. Mas, mesmo assim, deu as boas-vindas aos clientes, distribuiu os cardápios de refeições e bebidas, e ficou aguardando os pedidos. Nesse ínterim, uma das senhoras presentes pediu-lhe uma garrafa de água mineral. O garçom, muito cuidadoso, perguntou:

– A senhora vai querer a água mineral com querosene ou sem querosene?

O cliente que estava de paletó e gravata, e parecia liderar o grupo, visivelmente irritado e em voz alta, perguntou ao garçom:

– Quer fazer graça, rapaz? Água com querosene ou sem querosene?

O garçom, humildemente, respondeu:

– Doutor, lá no mato de onde eu vim, tanto faz querosene como gás.

A risadaria foi grande e Severino caiu na simpatia da clientela.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 18 de agosto de 2017

O SONHO

Em toda cidade do interior nordestino, sempre houve pessoas engraçadas ou esquisitas, que, com o tempo, passavam a fazer parte do folclore local. Eram bêbados de cana dormida, homens e mulheres viciados no jogo do bicho, cornos mansos e convencidos, para os quais as esposas eram umas santas, “mulheres da vida”, que não aguentavam um desaforo e abriam o verbo no meio da rua, brigando com rivais, mendigos bem humorados, que quando recebiam uma esmola diziam: ” Deus te livre da praga do mau vizinho”, e até algum idoso irritado e irreverente, que a toda hora dizia palavrão.

Antigamente, em algumas cidades do interior, onde não havia água nem energia elétrica, a notícia mais esperada do dia era o resultado do jogo do bicho. Havia sempre os felizardos, que ganhavam constantemente e outros desprotegidos da sorte, que sempre perdiam.

O jogo do bicho, mesmo tido como contravenção penal no Art. 58 da Lei das Contravenções Penais – Decreto Lei 3688/41, sempre foi uma prática comum, na capital e no interior.

 

 

Na época em que não existiam loterias legalizadas, como as atuais Loteria Federal, Loteria Esportiva, Mega-Sena, Quina-Loteria, Lotomania, Lotofácil e outros jogos do mesmo gênero, era o jogo do bicho que proporcionava prêmios e alegrias aos jogadores, como também prejuízos financeiros e morais.

Considerado jogo de azar, como as demais loterias, o prêmio do jogo do bicho depende, unicamente, da sorte e não da capacidade do jogador, como acontece em jogos de cartas. Nesses, a vitória depende da habilidade do jogador, apesar da sorte também influir.

A história do jogo do bicho teve origem no Rio de Janeiro, quando o barão João Batista Vianna Drummond o idealizou, em 1892, para entreter e conquistar mais visitantes para o zoológico – conhecido hoje como Jardim Zoológico do Rio de Janeiro -, do qual era proprietário, e que se encontrava à beira da falência.

Os ingressos eram associados a uma das 25 espécies de animais, de acordo com seus dois últimos números, dentro de 100 opções de dezenas. Com estes números era realizado um sorteio e o vencedor tinha direito a uma parte do valor dos ingressos vendidos.

Pois bem. Zé de Valda, 38 anos, um homem humilde, de uma cidade do interior nordestino, era viciado no jogo do bicho. Sobrevivia, junto com a esposa Valda e um filho pequeno, fazendo biscates. Cortava lenha, limpava quintal, descarregava caminhões e fazia quaisquer outros serviços pesados. Entretanto, não deixava de fazer uma “fezinha” no jogo do bicho, diariamente. Jogava pouco, mas não desistia. Amanhecia o dia à procura de palpites, querendo saber quem havia sonhado com alguma coisa significativa, pois ele saberia decifrar, para jogar no bicho. E às vezes, dava certo. Se alguém sonhava com coco, era “batata”! Ele decifrava na hora:

– Ora, coco partido vira quenga. Quenga é mulher ruim; mulher ruim é galinha e quem gosta de galinha é o galo!!! Jogava no galo e sempre acertava!

Quando ganhava no bicho, a primeira coisa que Zé de Valda fazia era comprar uma garrafa de cachaça, para comemorar com os amigos. No dia seguinte, jogava novamente e o bicho comia tudo. Perdia o restante do prêmio.

Uma vez, a sorte lhe sorriu com vontade e Zé de Valda ganhou no grupo, centena e milhar. Para ele, foi muito dinheiro. Eufórico, separou o dinheiro da cachaça, para festejar com os amigos, e escondeu o restante, para as necessidades da família.

Curiosos, os companheiros de copo quiseram saber que palpite danado de bom tinha sido esse, que fez com que ele se garantisse, e pudesse tirar o “pé da lama” durante alguns meses.

Zé de Valda, que havia jurado para si mesmo, não contar a ninguém o sonho que tivera, depois da terceira bicada não se controlou e fez a revelação:

– Passei a noite toda sonhando com um caminhão, carregado de pão. Era tanto pão, que dava pra matar a fome da pobreza da cidade. No sonho, eu não parava de comer pão. Quando acordei, senti o bucho inchado, como se estivesse empanzinado. Corri para o banheiro, e lá fiquei até melhorar. Depois, cuidei de tirar vantagem desse sonho, que foi mais um pesadelo. Botei a cachola pra pensar e matei a charada:

Com que é que se faz pão? Não é com farinha de “tigre” (trigo)?

E joguei todo o dinheiro que eu tinha no “Tigre”! E o bicho me ajudou!!!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 11 de agosto de 2017

A REDE

Dr. Calvino, um conceituado dentista de uma cidade do interior nordestino, resolveu se mudar para Natal, com esposa e filho. Queria que o menino estudasse no Colégio Salesiano.

Feita a mudança, a família foi morar em uma excelente casa, num bairro nobre de Natal.

Para trabalhar, o dentista alugou duas salas conjugadas, no primeiro andar de um prédio comercial, no bairro do Alecrim.

 

Na primeira sala, instalou seu consultório odontológico. Na segunda, mandou colocar armadores, onde mantinha sempre armada uma bonita rede, com o seu nome bordado na varanda. Como bom nordestino, gostava muito de rede e não desprezava a sesta depois do almoço.

Muito gordo e brincalhão, certa vez, Dr. Calvino recebeu em seu consultório, Dona Dalva, uma senhora de 65 anos, de quem era contraparente. Após um exame minucioso dos seus dentes, falou para a mulher que ela precisava extrair os cacos de dentes que ainda restavam e depois colocar uma prótese dentária móvel. Em suma, Dona Dalva precisava de dentadura postiça completa (superior e inferior). A mulher concordou e o tratamento foi iniciado.

Depois de extraídos os cacos que restavam dos dentes, e a gengiva da paciente já haver cicatrizado, foi tirado o molde e encaminhado ao protético. Chegou o dia da prova da dentadura superior. Dr. Calvino pôs a peça na boca de Dona Dalva, tentando encaixar, mas não houve jeito. Alguma coisa estava errada. Depois de outras tentativas, o dentista disparou num riso incontrolável e falou para a mulher:

– Dalvinha, pelo amor de Deus, me desculpe! Essa peça não é a sua. É a dentadura nova de Seu Antônio Santos. Ele este aqui hoje pela manhã para provar. Dona Dalva ensaiou uma crise de vômito.

Dias depois, as próteses dentárias de Dona Dalva ficaram prontas, e impecáveis.

Numa tarde de sexta-feira, por volta das 14 horas, Dr. Calvino atendeu um antigo paciente, para uma extração dentária. Aplicou o anestésico e recomendou que ele ficasse de boca aberta. Aguardando o efeito da anestesia, deitou-se na sua inseparável rede. Ainda com o estômago pesado do almoço, o dentista ia começando um cochilo, quando o senso de responsabilidade o chamou. Lembrou-se do paciente que o aguardava na cadeira, com o dente anestesiado e de boca aberta. Quis se levantar da rede, mas não pôde. Tentou diversas vezes, até que o armador se quebrou e a rede despencou no chão. A situação piorou ainda mais.

Dr. Calvino, sentindo dores horríveis na coluna e sem conseguir se levantar, pediu socorro ao paciente, que ainda o aguardava na cadeira, de boca aberta. Pediu-lhe que telefonasse para seu filho, para acudi-lo com urgência. Rapidamente, o rapaz chegou e providenciou uma ambulância para transportar o pai ao Pronto-Socorro. A queda da rede, por um triz não o deixou paraplégico. Dr. Calvino sofreu uma séria fratura da coluna vertebral e passou vários meses afastado da suas atividades profissionais.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 04 de agosto de 2017

CASTANHINHA

Anos atrás, numa cidade do interior nordestino, Margarida, empregada doméstica na casa de Dona Zélia, apareceu grávida. A patroa, solteirona juramentada e muito católica, ao ver a moça enjoada e com o ventre ligeiramente crescido, perguntou e obteve a confissão da gravidez. O autor da faceta era o namorado Josimar, conhecido por Castanhinha.

Dona Zélia se sentia responsável pela empregada, que tinha apenas 17 anos. Sempre que a moça dizia que ia passear com uma amiga, ela fazia a mesma recomendação:

– Cuidado com a vida e volte cedo.

A mulher tinha o hábito de dar conselhos às suas empregadas, principalmente quando eram menores de idade e, supostamente, virgens.

Surpresa com a gravidez da moça, a primeira providência de Dona Zélia foi pedir ao seu irmão Damião, dono da gráfica onde o conquistador trabalhava, que falasse com ele e o “intimasse” a se casar com Margarida. Seu Damião, muito espirituoso, respondeu:

– Eu não sou Delegado de Polícia, pra fazer essa intimação ao rapaz. Eu não vou me meter nessa história. Se a moça deixou o namorado fazer “feiura” com ela e ficou calada, é porque gostou. Agora que está gravida, foi que abriu o bico pra dedurar o rapaz. Como não existe nenhum inocente nesse caso, eles que se entendam. Eu prometo ser padrinho do menino ou menina, quando nascer.

Dona Zélia se voltou contra o irmão e o tachou de desalmado. Disse-lhe que a empregada era muito nova e não tinha sabido se defender. Além do mais, sempre se ouviu dizer que “a carne é fraca…”

Não adiantou. Seu Damião continuou dizendo que não iria se meter nessa história. E a confusão virou por cima dele.

Os pais de Margarida moravam na zona rural. Por coincidência, no dia seguinte a essa descoberta, o pai, Seu Pedro, que tinha o apelido de “Pisa na Fulô”, foi à cidade comprar novos instrumentos agrícolas, para usar no roçado. Antes, foi ver a filha Margarida, ignorando o que estava se passando com ela. É claro que a moça não teve coragem de dizer que o namorado a tinha seduzido e que estava grávida.

Depois de tomar o café da manhã com a filha, na casa de sua patroa, Pisa na Fulô a abençoou e se dirigiu à Rua Grande, para comprar uma foice e uma enxada no armazém de Seu João Bento. Antes de voltar para casa, resolveu ir cumprimentar Seu Damião, na gráfica, levando consigo esses instrumentos agrícolas, também considerados armas brancas. Como consta nos anais da história da criminologia brasileira, entre outros objetos de trabalho, esses dois já foram usados em muitos crimes de morte.

Seu Damião, quando viu o pai de Margarida chegar, “armado” de enxada e foice, resolveu fazer um susto a Castanhinha. Chamou o rapaz e lhe cochichou que Pisa na Fulô era o pai de Margarida e era muito violento. Estava ali para tomar satisfação, pois soubera que ele havia mexido com sua filha e ela estava grávida. Se ele não casasse logo com ela, podia se considerar um homem morto.

Castanhinha, pálido e tremendo dos pés à cabeça, apresentou-se diante de Pisa na Fulô e lhe pediu a mão de Margarida em casamento. O agricultor, inocente na história, vendo que o rapaz trabalhava com Seu Damião, concordou na hora. Só podia ser um rapaz direito…

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 28 de julho de 2017

O VIZINHO

Anos atrás, em Natal (RN), Marisé, uma dona de casa exemplar, logo que acordou, falou para Zildo, seu marido, que não havia carne para o almoço. Na véspera, ele esquecera de comprar. Depois do café da manhã, Zildo se dirigiu ao mercado, já arrumado para entrar no trabalho às 8 horas. Disse à esposa que iria rapidamente comprar a carne, e depois iria para a repartição. Funcionário público federal, Zildo cumpria horário de trabalho das 8h às 12h e das 14 às 18h.

Era ótimo filho e irmão, mas como marido e pai, deixava muito a desejar. Era ausente na educação dos filhos, deixando os deveres de casa e reuniões de pais e mestres a cargo da esposa, e tudo o mais que se relacionasse com as crianças. Só parava em casa para comer e dormir. Nos fins de semana, sempre tinha uma desculpa, para fazer hora para o almoço em mesa de bar. Na verdade, Zildo era um boêmio inveterado, e tratava a esposa como uma escrava. A sorte dela era ter ótimas irmãs, que lhe davam total assistência. Muito conservadora e religiosa, Marisé nunca pensou em se separar. Nessa época, as mulheres eram totalmente submissas aos maridos.

 

 

Pois bem. Zildo saiu a pé para o mercado, que ficava perto de sua casa, e no caminho ouviu alguém o chamar. Era Hélio, um conhecido deputado estadual, candidato à reeleição, seu vizinho, amigo e companheiro de farra. Em sua caminhonete, o homem o chamou para ir com ele resolver uma bronca, e que logo os dois estariam de volta. Sem saber dar um não a um amigo, principalmente em se tratando de Hélio, Zildo entrou na caminhonete.

O deputado, boêmio igual a Zildo, não iniciava suas atividades diárias sem tomar um gole de conhaque ou outra bebida alcoólica.

Zildo, irresponsável até a medula óssea, sob a influência do vizinho, esqueceu de que o mundo existia e de que em sua casa estava sua esposa, à espera da carne para o almoço.
Hélio tomou a estrada para Ceará-Mirim, e foram os dois para a fazenda de um conhecido político, seu correligionário. Era uma sexta-feira, e haveria uma grande festa nessa fazenda, em comemoração ao aniversário do fazendeiro. À noite, haveria um grandioso comício, onde Hélio também exercitaria seu dom da oratória.

Marisé cozinhou feijão, arroz e legumes, e nada de Zildo chegar com a carne. Mesmo sabendo que o marido não era flor que se cheirasse, a mulher ficou aflita. Como sempre acontecia, telefonou para a casa da sogra e perguntou à cunhada se ele tinha aparecido por lá naquela manhã. Como a resposta foi negativa, tratou de providenciar ovos fritos para completar o almoço dos três filhos, que teriam que ir à Escola. Passou o resto do dia preocupada, temendo algum acidente com Zildo. Afinal, ele era o pai de seus filhos.

Tensa durante todo o dia, Marisé viu anoitecer sem que o marido entrasse em casa. Voltou, então, a ligar para a casa da sogra para comentar o desaparecimento de Zildo e as duas cunhadas ficaram em polvorosa. A sogra, muito idosa, foi poupada de mais essa preocupação provocada pelo filho caçula.

Zildo só chegou em casa dois dias depois. Marisé ouviu quando a caminhonete do vizinho estacionou na frente da casa e dela saíram os dois amigos.

Com a cara mais cínica do mundo, Zildo disse que tinha ido com Hélio participar de comícios em Ceará-Mirim e outras pequenas cidades da redondeza. Nem sequer falou da carne que tinha saído para comprar.

Aos trancos e barrancos, o casamento de Marisé e Zildo durou, ou se arrastou, até que a morte os separasse.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 21 de julho de 2017

A DESAPARECIDA

Décadas atrás, numa quarta-feira, o casal Nelson e Marina, residente em Natal, passou um grande susto. Ao voltar do trabalho no final da tarde, a casa estava às escuras e sem nada preparado para o jantar.

Como de costume, Marina tinha deixado com a empregada Josefa o dinheiro do pão, e recomendado o que deveria ser feito.

Como o dinheiro não estava mais no local onde sempre era posto, o casal entendeu que a empregada tinha ido à padaria e ainda não havia voltado.

 

 

A serviçal, muito eficiente, estava nesse emprego há sete meses, e dormia na casa dos patrões. Tinha folga nos fins de semana e retornava na segunda-feira, de manhã cedo. Muito calada no que se referia à sua vida pessoal, Josefa havia dito aos patrões, apenas, que era de Goianinha (RN), solteira e tinha 32 anos. Suas folgas semanais, passava na casa de uma amiga, no bairro das Quintas.

Nelson e Marina aguardaram alguns minutos e, preocupados, saíram à procura de Josefa. Foram até à padaria, andaram pelas ruas mais próximas e perguntaram às empregadas da vizinhança se a tinham visto sair de casa. Ninguém dava notícia da moça.

Com a demora de Josefa, o casal entrou em pânico, temendo que tivesse ocorrido alguma coisa séria com ela. Pensaram em atropelamento, ou coisa pior.

Já tarde da noite, o dono da casa telefonou para o pronto-socorro, para saber se tinha dado entrada ali uma moça de nome Josefa Gonzaga da Silva, mas foi informado de que na lista dos pacientes atendidos naquela tarde, esse nome não constava. O casal passou a noite em claro, ouvindo os noticiários das melhores rádios de Natal, na expectativa de alguma notícia trágica envolvendo Josefa.

Ao amanhecer o dia, Nelson ligou para o Instituto de Medicina Legal, e respirou um pouco aliviado, ao ouvir a resposta de que o nome de Josefa Gonzaga da Silva não constava na lista de cadáveres que ali deram entrada na noite anterior.

No sábado, após o almoço, exatamente três dias após o desaparecimento da empregada, Marina ouviu alguém abrir o portão do quintal. Rapidamente, fechou a porta da cozinha e, pela fechadura, viu Josefa entrar e se dirigir ao seu quarto.

Marina tomou uma garapa (água com açúcar), para acalmar o seu “sistema nervoso”. Respirou fundo e foi saber da empregada o que havia acontecido com ela, para que abandonasse a casa daquela forma. A moça olhou para a patroa e, ensaiando um choro forçado, falou:

– Eu estava no hospital, com o meu pai. Ele veio do interior muito doente e foi operado.

Irritada, a dona da casa respondeu:

– Você devia nos ter avisado, ainda que ele tivesse morrido! Devia ter telefonado ou mandado um recado. Ficamos numa aflição horrível, imaginando que tivesse ocorrido uma tragédia com você. Já comunicamos o seu desaparecimento à Polícia, e seu retrato vai sair amanhã nos jornais, “Tribuna do Norte” e “O Poti”, como pessoa desaparecida.

Depois de perguntar à empregada o nome do seu pai, em qual hospital estava e de que havia sido operado, a patroa ouviu a resposta:

– Pai está no Hospital das Clínicas, na Enfermaria 12, leito 3, no segundo andar. O nome dele é Antônio Gonzaga da Silva. Ele se operou de “ovário”.

Admitindo que a empregada estivesse confundindo ovário com próstata, Marina anotou esses dados e, sem dizer nada, foi ao referido hospital, verificar a veracidade do caso.

Pediu informação no setor de internamento e ficou sabendo que naquele hospital não existia enfermaria no segundo andar, como também não constava o nome de Antônio Gonzaga da Silva na lista de pacientes internados. Soube também que os pacientes de enfermaria não tinham direito a acompanhante.

Marina voltou fumaçando de raiva e foi tomar satisfação com a empregada:

– Como é que você não tem vergonha de mentir tanto, Josefa?!!! Seu pai nunca esteve internado no Hospital das Clinicas! Estou vindo de lá agora! E você ainda levantou falso ao seu pai, dizendo que ele se operou de ovário!!! Quem tem ovário é mulher, Josefa!!!!

A empregada, soluçando, resolveu abrir o jogo:

– Eu tive vergonha de dizer a verdade… Fiquei grávida e tomei uma garrafada pra abortar. Tive uma hemorragia e me deu uma dor muito grande no “pé da barriga”. Com medo de morrer, fui pra Maternidade, procurar atendimento. O doutor fez uma curetagem em mim e eu fiquei internada numa enfermaria, até hoje pela manhã.

Marina não acreditou mais em nenhuma palavra de Josefa. Pegou o carro novamente, e, dessa vez, dirigiu-se à Maternidade Escola Januário Cicco. No setor de informações, ficou sabendo que, realmente, Josefa Gonzaga da Silva havia dado entrada ali, na última quarta-feira, à tarde. Fora submetida a uma curetagem de urgência, ficando internada, até aquele sábado pela manhã.

Penalizada com a realidade dos fatos, Marina perdoou a ignorância de Josefa.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 14 de julho de 2017

A DIRETORA

Esse caso aconteceu numa cidade do interior nordestino, há várias décadas.

Dona Malva, uma severa diretora de uma Escola particular, começou a ficar preocupada com a evasão de alunas adolescentes, durante o ano letivo. Quando a evasão atingiu o número de vinte alunas, a diretora enviou uma correspondência aos seus pais ou responsáveis, convidando-os para uma conversa. Queria se inteirar das razões que estavam levando as alunas a abandonarem a escola. Aos poucos, conseguiu conversar com todas as mães ou responsáveis. Para sua surpresa, tomou conhecimento de que aquelas alunas haviam sido “desonradas” e, entre elas, seis estavam grávidas. Os pais culpavam a Escola por não as ter vigiado, no retorno para casa. E por essa razão as proibiram de sair, até mesmo para irem à Escola.

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Segundo algumas mães, havia muito cabra safado “abicorando” a saída das alunas, para assediá-las e seduzi-las. Quando o sino tocava, avisando o término das aulas, um grupo de rapazes, “conquistadores baratos”, estava nos arredores da Escola, à espera de paqueras. Entretanto, queriam apenas se aproveitar das alunas adolescentes, cujos hormônios estavam na fase de efervescência.

Eram namoros passageiros e paixões violentas, que se esvaíam como fogo de palha.

E nessa pisada, a maioria das alunas não era mais “moça” , sem falar nas que estavam “de barriga”. A Diretora entrou em pânico.

A Escola ficava próxima a um Quartel militar, e a Diretora tomou conhecimento de que os “defloradores degenerados” eram recrutas daquela Corporação. Dona Malva, então, solicitou ao Comandante uma audiência, para tratar de um “assunto do interesse da Escola “Antônio Severo”, no que foi atendida. Chegando ao Quartel, acompanhada da Secretária da Escola, as duas foram levadas à sala do Comandante Villion. A Diretora, então, expôs os motivos da sua visita. Contou ao Comandante a sua aflição diante da “tara” dos recrutas que serviam àquele Quartel.

Falou sobre o problema das alunas, todas menores de idade, que por eles tinham sido defloradas, chegando algumas a engravidar. O problema era seríssimo e a evasão da Escola era grande. Disse ao Comandante que os recrutas, constantemente, aguardavam o término das aulas, para seduzir as “meninas”, provocando problemas familiares e atingindo o bom nome da sua Escola, antiga e respeitada. Queriam somente se aproveitar das “inocentes”. “Mexiam” com elas e caíam fora, sem arcar com as consequências.

A Diretora, então, implorou ao Comandante, que tomasse providências enérgicas contra os soldados. Segundo ela, as alunas da Escola continuavam sendo desrespeitadas e “desonradas” por eles, a cada dia. Esse fato, além de provocar a evasão escolar, estava denegrindo o nome da Escola. Com o prejuízo moral e financeiro, esse estabelecimento de ensino, brevemente, sucumbiria e encerraria suas atividades. Isso iria contribuir para o atraso educacional da cidade, já tão carente de assistência por parte do poder público..

O Comandante, que tinha fama de austero e prepotente, ouviu as queixas da Diretora da Escola, e, pensativo, procurou uma solução para o caso. De repente, num arroubo de brutalidade, respondeu irritado:

– Olha, minha senhora: Aqui só tem cabra macho! Todos os dias, depois das quatro horas da tarde, solto todos os meus cavalos. E eles saem loucos atrás das éguas. Eu não tenho obrigação de correr atrás de cavalo nem de zelar pela virgindade de moça nenhuma. Quem tiver suas éguas, que segure!

A diretora da Escola sentiu-se mal e saiu indignada, “pipocando de raiva” do Comandante.

Muito católica, entregou o caso a Deus!!!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 30 de junho de 2017

SAUDAÇÃO JUNINA

Seu Francisco, dono de uma sortida venda em Nova-Cruz, era muito sério e não gostava de piadas. Muito religioso, em casa não admitia que os cinco filhos falassem palavras chulas nem arengassem, principalmente nas horas de refeições. A bem da verdade, gostava que todos comessem em silêncio. Para ele, a hora da refeição era sagrada. Era o momento de se agradecer a Deus o alimento recebido.

Também não admitia que as filhas falassem em namoro. O filho mais velho, já casado, fumava, mas não na sua frente, ou da mãe, pois, décadas atrás, isso era considerado falta de respeito aos pais.

Na venda de Seu Francisco se comercializava uma grande variedade de produtos, incluindo cigarros “Astória”, “Gaivota” e “Continental”, e produtos alimentícios como chocolates “Refeição” e “Torrão”, Pirulitos “Kibom” e chicletes “Adams”, açúcar, arroz, araruta e café em grãos. E ainda: Enxada, foice, ciscador, ferro de engomar “Estrela” e “Itacolomy”, querosene “Jacaré”, Cimento “Zebu”, e o indispensável penico.

Para quem não conhece, o penico ou urinol é um recipiente branco, arredondado e de fundo chato, que antigamente era mantido no quarto, sob a cama. Era usado como vaso sanitário, principalmente para urinar. Os penicos mais comuns eram os de ágata e ainda podem ser encontrados em lojas antigas.

Nessa época, em Nova-Cruz, as “casinhas”, ou aparelhos sanitários, ficavam do lado de fora das casas. Por isso, o uso do penico era comum, para atender às eventuais necessidades fisiológicas durante a noite.

Era véspera de São João e, logo cedo, chegaram uns matutos na venda de Seu Francisco, para comprar penicos e também outras mercadorias. Eram todos conhecidos do comerciante e fregueses habituais. Muito sisudo, o comerciante vendeu, além de alguns penicos, outras mercadorias costumeiras, como sabão, açúcar, arroz, óleo, manteiga e papel higiênico. Seu Francisco ficou muito satisfeito com a grande saída das mercadorias, e se mostrou até brincalhão.

A feira de milho para o São João estava muito movimentada. Os matutos saíram da venda, dizendo a Seu Francisco que iriam comprar milho para que suas patroas providenciassem as iguarias típicas para a noite de São João. Despediram-se do comerciante e ouviram dele uma simpática saudação:

– Feliz São João! Comam muita canjica, muita pamonha, muito milho assado e cozido e soltem muitos traques! Boa sorte com os penicos!!!

Sem qualquer pretensão de fazer gracejo, Seu Francisco provocou gargalhadas em quem ouviu sua saudação junina.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 23 de junho de 2017

A DAMA

Há várias décadas, Marilu era dona de uma famosa casa “suspeita” em Natal. Apesar da discriminada profissão, era uma mulher de respeito, educada e discreta. Destacava-se pela beleza e fidalguia. Apresentava-se como empresária da noite. Mas, na realidade, era uma empresária do sexo.

Autodidata, Marilu gostava de ler e estava sempre atualizada com a situação política do País. Enquanto foi jovem, despertou grandes paixões nos senhores “respeitáveis” de Natal e de fazendeiros ricos do interior do Estado.

Não frequentava templos, mas no seu quarto mantinha sempre uma vela acesa, junto aos santos de sua devoção.

O seu estabelecimento comercial era frequentado, assiduamente, pelos homens mais ricos da cidade, incluindo conhecidos políticos, advogados, médicos etc.

Entre os principais frequentadores, estava o Sr. Vilton, um conhecido político de Natal. Apesar de ser “bem casado”, bom marido e excelente pai, esse homem era perdidamente apaixonado por Marilu.

Dona Conceição, sua esposa, de prendas domésticas, ia à missa constantemente, comungava e vivia longe da maldade do mundo. Não imaginava, nem de longe, que o marido frequentasse certos ambientes.

Entre os amores de Dona Conceição e das duas filhas ainda crianças, estava Popó, uma cadela da raça “Poodle”, que acabara de dar cria a quatro lindos filhotes.

O Sr. Vilton avisou à esposa que o filhote mais bonito seria dado de presente à Dona Marilu, uma empresária amiga sua, muito decente, que era louca por cachorros. Disse que essa amiga era uma grande dama e muito respeitada em Natal.

Passados alguns dias, Dona Conceição, arrumando o escritório do marido, encontrou um cartão de visitas de Marilu, a empresária, e anotou o telefone. Curiosa para conhecer essa amiga do marido, cantada por ele em verso e prosa, quis lhe fazer uma surpresa. Telefonou para a mulher, convidando-a para lanchar com ela em sua casa. Disse-lhe que queria ter o prazer de conhecer essa grande amiga do seu marido e também queria lhe entregar o cachorrinho que estava reservado para ela. Ficou combinado que, naquela tarde, à 17 horas, Marilu iria até a sua casa.

 

 

Na hora marcada, parou na casa do Sr. Vilton e Dona Conceição um luxuoso GALAXY azul, conduzido por um motorista fardado. Do carro desceu a empresária Marilu, muito bonita, impecavelmente vestida num “tailleur” bege, super discreto, usando sapatos pretos de salto alto e uma bolsa preta. A empresária trouxe para a dona da casa uma corbeille de rosas.

A mesa posta para o lanche tinha o requinte das pessoas nobres. Lá estavam deliciosas iguarias, incluindo bolos, biscoitos, queijos e doces, acompanhados de sucos, chá e café.

As duas damas se cumprimentaram, e Dona Conceição ficou admirada com a fineza, a beleza e a jovialidade da empresária. Certa de que seu marido ficaria muito feliz com aquela surpresa, Dona Conceição disse a Marilu que ele logo estaria em casa.

O Sr. Vilton quase teve um “passamento”, ou melhor, um infarto, ao encontrar estacionado na sua porta o conhecido Galaxy de Marilu, a famosa empresária do sexo, que todos os homens de Natal conheciam.

Ao ver a esposa em altos papos com a visitante, o homem empalideceu, ficou sem graça e quase perdeu a voz.

Considerava Dona Conceição uma santa e não admitia que ela fizesse amizade com uma profissional como Marilu.

Com esse susto, o Sr. Vilton se afastou completamente da “empresária do sexo”.

Dona Conceição nunca soube a verdade sobre aquela “dama”.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 16 de junho de 2017

LOURINHO

 

Padre Honório gostava muito de animais. Dizia sempre que eles, quando bem tratados, eram mais dóceis do que os humanos. Só atacavam para se defender. Para ele, era difícil aturar pessoas inconvenientes, ignorantes e tagarelas.

O sacristão da Igreja, da qual era o vigário, tinha sido dispensado por contrariar suas ordens, ter o raciocínio lento e ser desorganizado. O Padre estava cansado de gente burra.

De uns tempos para cá, muito ranzinza, levou a capricho e permaneceu sem sacristão. Preparava o altar, as galhetas com água e vinho para serem misturados e consagrados em Sangue de Cristo, organizava a Missa e selecionava hinos e orações. Vestia os paramentos sozinho e aguardava, no altar, a chegada dos fiéis.

Padre Honório morava com os pais e uma empregada doméstica, o que era comum em paróquias do interior nordestino. Sua residência ficava ao lado da Igreja, havendo entre elas uma porta de comunicação.

Há quinze anos, Dona Gabi, sua mãe, recebera de presente um papagaio, ainda empenando. Lourinho, era a alegria da casa. Interagia com o vigário, cantava os benditos que ouvia nas missas e nos terços de maio, e não deixava de atender quando alguém conhecido lhe pedia: “Dá cá o pé, meu louro.”

No mês de maio, depois do Terço noturno, o padre e os fiéis cantavam a belíssima Ladainha de Nossa Senhora, em Latim. Enquanto todos cantavam, o padre distinguia, um pouco distante, uma vozinha afinada e aguda, que acompanhava o coro: “O-O-RA PRO NOBIS!” Padre Honório descobriu que a voz tímida que ele ouvia era a de Lourinho.

Anos depois, o Padre Honório faleceu e, muito triste, na mesma semana Lourinho fugiu.

Passados cinco meses da morte do Padre Honório, um grupo de caçadores ouviu, dentro da mata, uma cantoria religiosa, que parecia vir de algum mosteiro. Os homens adentraram à mata, à procura do suposto mosteiro, mas nada encontraram. De repente, um bando de papagaios pousou numa grande árvore, diante dos caçadores. Todos entoavam, compassadamente, e com voz afinada, a Ladainha de Nossa Senhora:“Sancta Maria, oora pro noooobis/ Sancta Dei Genitrix/ oora pro noobis/ Sancta Virgo Virginum, oooraa pro noobis. Mater Christi, oora pro noooobis/ Mater divinae gratiae, oora pro noobis/ Mater purissima, oooraa pro noobis……………………………..”

Zé Bento, um dos caçadores que frequentava a Igreja e tinha amizade com o vigário, reconheceu Lourinho, puxando a cantoria, e se emocionou. Sabia do carinho que o finado Padre Honório tinha por ele.

Para tirar a dúvida, o caçador perguntou:

– Lourinho, cadê Padre Honório?

E Lourinho respondeu:

– “Padre Honório “tá” dormindo…….Padre Honório “tá” dormindo”…”

E os papagaios, cantando a Ladainha, voaram em bando e desapareceram dali.

Lourinho havia ensinado aos “companheiros” a cantar a Ladainha de Nossa Senhora.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 09 de junho de 2017

O FORRÓ

Na etimologia popular, a origem da palavra “forró” está associada à expressão da língua inglesa “for all” (para todos). Para essa versão, conta-se que no início do século XX, os engenheiros britânicos, instalados em Pernambuco, para construir a ferrovia Great Western, sempre promoviam bailes abertos ao público, ou seja “para todos”. O termo passou a ser pronunciado “forró” pelos nordestinos.

Outra versão da mesma história substitui os ingleses pelos americanos fixados em Natal, no período da Segunda Guerra Mundial, quando uma base militar foi instalada em Parnamirim (RN). As festas na base aérea eram constantes e os americanos disponibilizavam ônibus para levar as moças da sociedade natalense para os bailes que promoviam. Daí surgiram namoros e muitos casamentos de jovens potiguares com soldados americanos.

Atualmente, o forró é a dança mais popular do Nordeste brasileiro e a que provoca maior animação entre as pessoas jovens. As tradicionais festas juninas só são autênticas, quando abrilhantadas por conjunto de forró pé-de´serra, com sanfona, triângulo e zabumba.

Pois bem. Adelino era comerciante, casado com Adélia, e o casal tinha três filhos. Os dois se queriam muito e se tratavam carinhosamente por Fio e Fia. Estudo, tinham pouco, mas o comércio prosperava cada vez mais, e o “vil metal” dá brilho e estudo a quem não tem. Tinham uma loja de sapatos invejável, residência chique, automóvel do ano, conta bancária gorda e mesa farta. Os meninos estudavam em colégio particular e o casal dispunha de empregadas domésticas.

Adelino (Fio) e Adélia (Fia) gostavam muito de festas, religiosas ou profanas, e eram excelentes colaboradores das obras assistenciais. Frequentavam os bailes, realizadas no clube social da cidade e gostavam muito de dançar. O casal era o que se chamava, na época, “pé de valsa”.

Era o mês de junho, o mais festeiro do ano. O autêntico forró pé-de-serra dominava as festas, pois nessa época ainda não havia o desconcertante forró eletrizado. Na véspera de São João, o casal recebeu parentes em sua casa e a bebedeira rolou o dia todo. Na hora da festa propriamente dita, 21 horas, Adelino já estava triscado e puxando o fogo.

Foram todos ao Clube Comercial, para a festa de São João, onde o Conjunto “Peba na Pimenta”, estaria tocando o legítimo forró pé- de- serra, com um sanfoneiro que se dizia discípulo de Luiz Gonzaga. O som do forró contagiou os presentes e logo o salão ficou lotado.

Adelino (Fio) e Adélia (Fia) dançavam como duas carrapetas, rodando sem parar. Numa das rodadas, Fio se desequilibrou e caiu no meio do salão, arrastando a mulher.
Com o pé torcido, Fia, chorando, reclamava:

– Tá vendo Fio? Eu já disse que não gosto dessas “cuivas.”


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 02 de junho de 2017

BURRA COM QUATRO ERRES

O cuscuz de milho, iguaria que faz parte da mesa nordestina, inclusive, no café da manhã dos melhores hotéis, foi trazido para o Brasil, durante a colonização dos portugueses, no século XV.

Inicialmente, era uma comida destinada às famílias pobres e aos escravos.

A produção do fubá de milho, era feita de forma artesanal. Depois que o milho secava, era debulhado e triturado no pilão, ou passado em moinho.

Apesar de existir cuscuz de mandioca, de arroz ou de macaxeira, o verdadeiro cuscuz brasileiro é feito com milho seco, moído ou pilado.

A fase artesanal da preparação do milho, para cuscuz e outras iguarias, foi substituída pela industrialização do produto. Inúmeras fábricas passaram a oferecer ao consumidor o milho já pronto, para os diversos usos.

Há décadas, quando ainda não havia cuscuzeira em Nova-Cruz (RN), o cuscuz cozinhava na boca da chaleira (RN). A massa do cuscuz era preparada e posta em um pires, modelada e coberta com um pano fino, dando-se um nó por baixo. No lugar da tampa da chaleira, era posto esse pires, emborcado, com a massa do cuscuz, para cozinhar. Não tinha “errada”. A água fervia e em quinze minutos, o cuscuz estava cheirando. Era o tempo de cozimento. Em seguida, era posto em um prato, retirando-se o pano que o cobria. Imediatamente, era molhado com leite de coco natural. Estava pronto um cuscuz bonito e saboroso.

Certo dia, Dona Lia recebeu uma moça do sítio, chamada Carmita, para trabalhar em serviços domésticos. A primeira providência foi ensiná-la a fazer o cuscuz, para o café da manhã. A moça disse que já sabia e que estava entendendo tudo muito bem. Mas não entendeu nada! Colocou a massa do cuscuz diretamente dentro da chaleira, pondo tudo a perder! Foi uma decepção, e Dona Lia ficou muito contrariada.

Com o tempo, Carmita aprendeu a fazer cuscuz, com perfeição.

Dona Lia esforçava-se para alfabetizar as empregadas que vinham do sítio, para trabalhar em sua casa. Comprava-lhes a Carta de ABC, cartilha, caderno, lápis e borracha, e separava um horário, à tarde, para lhes dar aula. Raramente, conseguia o seu intento. Está provado que a subnutrição prejudica o raciocínio e a inteligência.

Uma certa tarde, Dona Lia, tomando a lição de Carmita, pela décima vez, desiludiu-se completamente, e lembrou-se da cena do cuscuz! Todo o seu empenho em ensinar a moça a ler fora perdido. A página aberta da Cartilha mostrava uma bola, um dado e uma borboleta. Abaixo de cada desenho, estavam as sílabas correspondentes ao respectivo nome. Dona Lia tomava a lição da aluna:

– Carmita, leia:

B-O-BO, L-A LA?

– Bola. – a moça respondeu.

Empolgada, Dona Lia prosseguiu:

– Carmita, leia: D-A DA, D-O DO?

E Carmita respondeu:

– BOZÓ!!!

– Dona Lia se irritou e mostrou que o que estava escrito era “DADO”, apesar de ser sinônimo de BOZÓ.

E continuou:

– Carmita, e agora?

– B-O-R BOR, B-O BO, L-E LE, T-A TA?

E a moça respondeu:

– BRABULETA!

Com relação a Carmita, Dona Lia desistiu. 

Desanimada, sem que a “aluna” ouvisse, resmungou:

– Essa moça é BURRA, COM QUATRO ERRES!!!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 26 de maio de 2017

A INTERNA

Dona Seráfica, antiga professora de Inglês de um Colégio de freiras, em uma cidade do interior nordestino, era muito querida pelas alunas, inclusive as internas. Nessa época, o internato era visto como uma espécie de castigo, a que os pais ricos submetiam as filhas insubordinadas. Geralmente, a história de cada aluna interna estava relacinada a um namoro precoce, ou uma paixão, que os pais queriam interromper a qualquer preço.

 

 

Dona Seráfica lecionou nesse Colégio nos idos de 56/70. Pelo seu modo maternal de tratar as alunas, era sempre procurada por elas, quando queriam conversar sobre algum problema pessoal. Isso acontecia durante o recreio e no intervalo das aulas. Com o tempo, a professora tornou-se uma espécie de confidente e orientadora das alunas, especialmente as internas.

Como mãe de cinco filhos, e de natureza boníssima, a professora sabia compreender a alma das alunas e tinha prazer em conversar com elas.

Por outro lado, as religiosas eram austeras e tratavam as alunas com muito rigor. Não havia entre elas conexão de amizade. Eram respeitadas e temidas por todas, em virtude dos castigos que costumavam aplicar.

Rosa, uma das filhas de Dona Seráfica, era colega de classe de Zuíla, a aluna interna, vinda da capital. Certa vez, ao terminar a aula, Rosa já se dirigia à saída do Colégio, quando, correndo, Zuíla a alcançou e pediu-lhe para entregar a Dona Seráfica uma carta, em um envelope fechado. Em seguida, a interna voltou ao interior do Colégio. Imediatamente, Irmã Florinda, uma religiosa alta e carrancuda, temida pelas alunas por seu modo grosseiro de tratá-las, gritou o nome de Rosa no portão do Colégio, ordenando que lhe devolvesse a carta de Zuíla:

– Devolva essa carta, Rosa! Você não vai levar carta de Zuíla pra ninguém! Você vai ser suspensa!!!

Ao ouvir a voz da detestável freira, Rosa, no vigor de seus 13 anos, de um fôlego só, desembestou em uma carreira, da porta do Colégio até a casa de sua mãe, a professora Dona Seráfica. Os gritos escandalosos da Irmã Florinda foram uma verdadeira convocação para que quase todas as freiras saíssem em disparada, correndo atrás de Rosa, para tomar-lhe a carta à força.

Dona Seráfica, que estava deitada e febril, assustou-se com a chegada brusca de Rosa, que lhe entregou a carta de Zuíla e lhe avisou que as freiras vinham correndo em seu encalço para tomá-la. Cinco minutos depois, a maratona das freiras esbarrou no portão, num verdadeiro escarcéu. Cada qual que gritasse mais alto, pedindo a carta de volta.

Quando Dona Seráfica ouviu o barulho, apareceu ao portão com a carta na mão, ao lado da filha Rosa e lançou o desafio:

– A carta da minha aluna está aqui, e eu quero ver qual de vocês terá o atrevimento de tomá-la da minha mão! Amanhã vou levar ao conhecimento da Madre Superiora esse ato ignóbil! Vocês não são dignas de vestir esse hábito de freira!

E as franciscanas, lideradas pela Irmã Florinda e completamente murchas, voltaram ao Colégio.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 19 de maio de 2017

A IDADE CAPRICHOSA

 

Nada mais chocante para uma mulher do que a realidade inexorável do tempo. É quando ela se olha no espelho e tem que aceitar que “já não tem 35 anos”. Não existe maior desilusão do que essa. Umas tentam “amarrar” a idade, querendo competir com as jovens, na maneira de se vestir. Outras travam uma luta permanente contra o envelhecimento, apelando para cirurgias plásticas. Mas não adianta tentar esconder o sol com a peneira.

 

 

Está provado que 90% do sexo feminino tem pavor à velhice. A autoestima tende a baixar e, às vezes, isso provoca até depressão. Mas cada idade tem sua beleza e seu charme. O importante é que mulheres e homens nunca renunciem aos seus sonhos, colocando o amor acima de tudo.

A reação contra o envelhecimento não é marca registrada das mulheres. Geralmente, os homens, também, tem pavor a essa realidade. Tem medo de perder a virilidade, um fato difícil de esconder. Alguns pintam os cabelos e o bigode, achando que ficarão mais jovens. Entretanto, com isso, às vezes se tornam menos bonitos, pois renunciam ao charme de um cabelo grisalho, o que somente neles fica bem.

Certos cuidados para com uma pessoa “madura”, apesar de lhe serem dispensados como cortesia, são recebidos, também, como uma forma de discriminação.

“Pois não, senhor!” “ Senhora, por favor, sente aqui nesta cadeira!” “O (a) senhor (a) é preferencial! “ “Qual é o segredo da senhora(o) estar tão jovem?” “Tomou o elixir da juventude?” “Quando é que se aposenta?”

Essas frases soam aos ouvidos das pessoas maduras, como um aviso reiterado de que o tempo áureo de suas vidas já passou.

Em Natal (RN), havia um senhor idoso, Seu Amadeus, que negava tanto a idade, que esquecia de que seus três filhos também estavam envelhecendo. Nenhum deles sabia, ao certo, a idade do pai.

Certa vez, em uma roda de amigos, no Bar do Caranguejo, um dos presentes perguntou a Seu Amadeus a sua idade. Em cima da bucha, ele respondeu:

– Tenho 65 anos… – na realidade, ele contava 78.

O filho de Seu Amadeus, que tinha tomado umas cervejas e estava “puxando fogo”, rindo muito, interferiu na resposta:

-Eita, pai! Estou quase pegando o senhor!!!

A gargalhada dos amigos de Seu Amadeus foi grande. Isso deixou o idoso irritado, o que fez com que se retirasse dali imediatamente.

Ficou “de mal” com o filho durante vários dias, e também se afastou do bar por algum tempo.

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 12 de maio de 2017

UM CONTO DE FADAS


Na década de 60, Ronaldo e Zélia se casaram, em Natal (RN), e seguiram de carro para Garanhuns PE), para passar a lua de mel. Estava na moda, para as pessoas endinheiradas, passar a noite de núpcias em um tradicional hotel “5 estrelas”, que havia naquela bonita cidade.

Ronaldo havia reservado a hospedagem pelo telefone, por sugestão de um casal amigo, que já conhecia o hotel, inclusive tendo passado lá, também, a noite de núpcias.

Em lá chegando, os recém-casados ficaram encantados com a beleza do hotel e o clima frio de Garanhuns. Estilo colonial, o hotel, além de bonito, era muito agradável.

Os quartos eram enormes e conjugados, porém isolados por uma pesada porta de madeira maciça, com trinco em estilo colonial. Esse tipo de quarto era ideal para a hospedagem de casais com filhos e babás.

 

Oos dois jovens, muito apaixonados, ocuparam o apartamento reservado e se surpreenderam com a sua belíssima e requintada decoração. A roupa de cama e banho, cheia de bicos e bordados, de tão bonita, lembrava um cenário de um conto de fadas. Sobre uma mesinha redonda, forrada com uma toalha de renda branca, havia um balde com champanhe no gelo, duas taças de cristal e um vaso com flores naturais. Havia também um cartão da direção do hotel, saudando os nubentes. Tudo preparado divinamente, o que tornava o ambiente ainda mais aconchegante para o casal.

Nessa época, a noite de núpcias era esperada com muita ansiedade, e a virgindade da mulher era sagrada. A lua-de-mel era a realização de um belo sonho. O sonho das “mil e uma noites”.

Os recém-casados, cansados da viagem, não saíram do quarto para nada. Tomaram banho e se jogaram nos braços um do outro, embalados pela magia da noite de núpcias. O casamento foi consumado em um clima de muito amor, até que os dois adormeceram.

Acordaram pela manhã, assustados com uma voz rouca dentro do apartamento. Era um homem idoso, de bigode farto e chapéu, que, indignado, falava alto perto da cama:

- Oxente!!! Que enxerimento é esse na minha cama??!!!

Ronaldo respondeu, gritando indignado:

- O senhor invadiu nosso quarto!!!

O casal se vestiu rapidamente e Ronaldo chamou a gerência, no que foi, prontamente, atendido. O gerente, então, constatou um descuido imperdoável da administração, em se tratando de um hotel daquele nível, conhecido nacionalmente. Simplesmente, a chave da porta, que interligava os dois apartamentos conjugados, não havia sido retirada da fechadura, antes da chegada dos hóspedes. Continuava no lado da porta, que dava para o apartamento vizinho ao dos noivos. Ali estava hospedado o “invasor”, na companhia da esposa e de uma filha.

Inadvertidamente, esse hóspede abrira a tal porta, pensando que era a saída. Queria tomar logo o café da manhã, enquanto as duas hóspedes ainda dormiam. Tratava-se de um fazendeiro muito decente, de Campina Grande (PB), que ficou muito contrariado com o ocorrido.

Segundo Ronaldo, o susto que ele e a esposa passaram foi tão forte, que prejudicou o clima da lua de mel. Somente após o retorno a Natal, o interesse sexual dos dois voltou ao normal.

O Hotel dispensou o pagamento da hospedagem e pediu mil desculpas ao casal.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 05 de maio de 2017

A COMPREENSÃO

 

 

Um antigo médico de Natal, certa noite, estava de plantão em um hospital público e, casualmente, passou pelo corredor. Deparou-se, então, com um paciente, que tinha saído da enfermaria e estava sentado em um batente, falando sozinho.

O simpático médico perguntou ao interno:

– Perdeu o sono, amigo? Por que não está em seu leito, dentro da enfermaria?

Ao ver o médico, o homem ficou encabulado e quis justificar o motivo da sua insônia:

-Boa noite, doutor! “Tou” aqui pensando na vida. Pra viver bem, todo homem tem que ter compreensão! É a coisa coisa mais importante desse mundo!.

O Médico, curioso, indagou:

– O que foi que houve, para o senhor estar pensando nisso agora?

O paciente respondeu::

– Escute minha história, doutor! No mês passado me dirigi à Rodoviária, à tarde. Ia viajar para Caruaru, onde compro mercadoria para revender. Houve um engarrafamento no trânsito e eu perdi o ônibus. A viagem ficou para o dia seguinte. Aproveitei para resolver umas coisas no Alecrim e só cheguei em casa à noite, sem minha mulher esperar. Abri a porta com a minha chave e ouvi conversa no nosso quarto. Entrei sem fazer zoada e quis fazer um susto a Zefinha. Mas quem teve o susto fui eu! Encontrei minha mulher abraçada e se beijando com uma lapa de moreno, até bonito. Gritei com muita raiva: 

– OXENTE! Que marmota é essa, Zefinha? Perdi o ônibus e quando chego em casa encontro você me chifrando desse jeito?!!!

Muito nervosa, minha mulher respondeu:

-“Ômi”, você não saiu dizendo que só voltava amanhã?!!!Mas não é nada disso que você está pensando!!!Deixa eu explicar, Manoel! Este rapaz é meu primo e chegou ontem do Rio de Janeiro, onde mora. Veio hoje aqui me visitar,.de surpresa. Pediu pra descansar um pouco e eu ofereci a nossa cama. A gente estava só conversando sobre problemas de família. Ele estava contando as novidades da família lá no Rio. Ele é muito delicado e sempre gostou muito de mim. Sou a prima preferida dele. Estava me abraçando e beijando com muito respeito!

E o paciente continuou sua história::

– Olhe, doutor: Sou um homem muito compreensivo e entendi logo aquilo que eu estava vendo na minha frente. Minha mulher e o primo dela estavam só conversando sobre assuntos de família! E em assuntos da família dela, eu não me meto. Então, eu disse pra ela:

– Minha filha, como se trata de problemas de família, eu vou ali na rua e vou deixar vocês à vontade. Mais tarde, eu volto. Fique aí conversando com seu primo e botando os assuntos de família em dia! Como é mesmo a graça dele?


– Carcará! – respondeu Zefinha.

– Só voltei de madrugada, doutor, e dormi no sofá. Minha cama continuava ocupada. O primo de Zefinha devia estar muito cansado, pra dormir daquele jeito!!! Eu vou lá me meter em assunto de família!!!

Por isso é que eu digo: Nessa vida, todo mundo tem que ter COMPREENSÃO!!!

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 21 de abril de 2017

COISAS DO DESTINO

Tiana sofreu muito com a morte repentina de Patrocínio, seu marido durante dez anos. Os dois já casaram maduros, ela com 42 anos e ele com quase 60. Ele era aposentado da Rede Ferroviária Federal e o casal morava em João Pessoa (Pb). Tiana tinha familiares em Nova-Cruz (RN) e, em datas festivas, ela e o marido estavam sempre lá. Viviam bem financeiramente e sempre em harmonia. Com a morte do marido, e sem filhos, Tiana ficou muito depressiva e sozinha. Era alta e bonitona, com tendência a ser gorda. Depois de viúva, começou a engordar mesmo e tornou-se obesa. Tinha 1.70 m, e passou a pesar quase 100 quilos. Tornou-se o que se diz no interior, “um mulherão”.

Um ano depois, Arlinda, sua melhor amiga, residente em João Pessoa (Pb) e casada com um funcionário público estadual da Paraíba, também enviuvou. Suas duas filhas já eram casadas, e ela também se viu mergulhada na mesma solidão de Tiana. As duas amigas, viúvas ainda “casáveis”, meses depois, começaram a sair juntas para a Igreja, depois para teatros, shoppings, restaurantes e cinemas. Logo resolveram fazer excursões ao Sul do Brasil. Gostaram tanto que se programaram para uma viagem ao exterior. Isso serviu para que as duas saíssem da rotina e se convencessem de que a vida continua. Ambas cumpriram suas respectivas missões de esposas dedicadas, e agora estavam prontas para usufruir a liberdade e a boa situação financeira de que dispunham. Aos poucos, foram recuperando a autoestima e tornaram-se vaidosas, na esperança de superar a fria solidão da viuvez. De repente, os olhos das duas voltaram a brilhar, apesar das boas lembranças e da saudade que sentiam dos falecidos maridos.

Arlinda era mais atirada, mais bonita e mais jovem do que Tiana. Por obra do destino, reencontrou um ex-namorado do seu tempo de juventude, agora divorciado, e os dois começaram a namorar.

Tiana era conservadora e se policiava muito. Jurava que jamais se casaria novamente. Apesar de muito simpática, não era atraente, e sua obesidade a prejudicava. Era ruim de dieta e por isso não conseguia perder peso.

Ao ver Arlinda se aprumar com um ex-namorado do tempo da sua juventude, Tiana sentiu inveja, apesar de não demonstrar. Compensava essa frustração, dizendo sempre que a coisa melhor do mundo era a liberdade. Nessas alturas, por brincadeira, dizia que se Patrocínio, seu falecido marido, quisesse voltar lá do Céu onde estava, ela seria a primeira a dizer:

-Homem, pela caridade, não invente de voltar não! Fique aí mesmo!!!

Sentindo-se em segundo plano, por ter praticamente perdido a companhia da amiga Arlinda, agora em um relacionamento sério, Tiana foi passar uns dias em Nova-Cruz. Quem sabe, se sua felicidade não estaria ali!!!

A ocupação de Tiana, em Nova-Cruz, era bater papo à tarde toda com duas ou três amigas, embaixo de um Ficus Benjamina, que há em frente à casa de sua irmã. O assunto era homem e tudo o que com ele se relacionasse. Ávida por arranjar um namorado com quem pudesse refazer sua vida conjugal, Tiana estava disposta a investir nessa ideia.

Pensando em solucionar sua carência afetiva, tinha na cabeça sua proposta amorosa já estabelecida e não escondia das amigas. Queria um homem até 60 anos, que soubesse ler e escrever, fosse sadio, com tudo funcionando nos conformes, para lhe fazer companhia e para ela amar e querer bem! Não fazia questão de dote. Não precisava trazer nem a mala. Podia vir somente com a roupa do corpo, que ela fazia questão de comprar tudo novo! Estava disposta a dar casa, carro, comida, plano de saúde e roupa lavada, e ainda uma boa mesada.

Foi nesse estado de ansiedade, que, em Nova-Cruz, Tiana foi apresentada a um viúvo de 68 anos, cuja mulher tinha morrido há poucos meses. As informações que lhe deram sobre ele foram as melhores possíveis. Aposentado do serviço público estadual, tinha duas filhas já casadas, que moravam na capital. Bebia “socialmente” e gostava “um pouquinho” de jogo de cartas. Tinha sido um bom marido.

O primeiro encontro de Tiana com Epaminondas foi uma decepção. Ele era baixinho, magrinho e usava óculos com lentes do tipo fundo de garrafa. O homem demonstrou ser galanteador e inconveniente, pois disse logo que tinha adorado o seu físico. Gostava de mulheres carnudas e corpulentas. As mulheres assim tinham mais personalidade e eram determinadas. Achava que mulher tinha que ter carne, pois quem gosta de osso é cachorro e arqueólogo.

Tiana ficou sem jeito e não gostou do modo debochado e grosseiro como o suposto futuro pretendente falou. Também não se sentiu, nem de longe, atraída por ele. Não houve entre os dois o brilho do olhar. Não simpatizou com o viúvo e preferiu descartá-lo.

Para completar, de outra fonte, havia chegado aos seus ouvidos a informação de que ele era um jogador contumaz e um alcoólatra inveterado. Dessa forma, Tiana escapou de fazer uma besteira. Por um triz, não caiu nas garras desse viciado em jogo e em bebida. Depois desse susto, pensou muito e decidiu encarar a solidão desoladora da viuvez, e não mais insistir em “procurar sarna para se coçar”. Lembrou-se das palavras bíblicas, que sua saudosa mãe gostava de repetir:

“Nem só de pão vive o homem.”


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 14 de abril de 2017

UMA EXCELENTE MEMÓRIA


Marleide, uma senhora cinquentona e muito gorda, esperava, fora do provador de uma das melhores lojas de Natal, que sua mãe se definisse sobre as peças do vestuário feminino que queria comprar. O período era de promoção e a loja estava lotada. A filha já estava impaciente com a indecisão da mãe, e resolveu deixá-la sozinha no provador, para fazer suas escolhas, sem sua interferência. Enquanto a aguardava, puxou conversa comigo, que também estava esperando que minha filha saísse de um dos provadores.

Muito conversadeira, a mulher me disse que sua mãe, com 87 anos, ainda era cheia de vida, muito vaidosa e saudável. Tinha uma saúde de ferro. Frequentava academia de hidroginástica, aula de dança de salão, e fazia parte do Clube da Terceira Idade. Não perdia uma excursão organizada por essa associação nem os bailes semanais, onde se destacava como “pé-de-valsa”. Além de tudo isso, ainda tinha uma excelente memória.

Fiquei até com inveja da disposição dessa idosa, cantada em verso e prosa por essa filha apaixonada. Confesso que, mesmo tendo idade para também ser sua filha, não aguento mais rojão e quando danço me canso rapidamente.

Depois de ficar sabendo de toda a performance da idosa, fui a ela apresentada pela filha, fora do provador da loja. Tomei um susto com o graveto que vi na minha frente. A senhora tinha traços de quem fora bonita, quando era jovem. Lembrei-me dos versos da poetisa Anna Lima, minha avó materna, ao responder um questionário que, antigamente, era usado entre amigas mocinhas. À pergunta “o que mais temes na vida ?”, ela respondeu: “A velhice caprichosa, que faz da moça bonita, uma megera maldita, uma carcaça horrorosa”.

Magrinha, trêmula, mas muito simpática e bem vestida, a senhora entregou as peças escolhidas à filha, para que as levasse ao caixa. Fiquei curiosa para saber o segredo daquela vitalidade propagada pela filha. E puxei conversa:

– Estou encantada em saber como a senhora é cheia de vida e gosta de se divertir! Sua filha lhe fez muitos elogios! Qual o segredo dessa eterna juventude?

A senhor idosa respondeu:

– Ah, minha filha, eu não entrego os pontos nunca! Adoro passear, dançar, viajar, e o melhor é que eu tenho um namorado, trinta anos mais novo do que eu! Todo dia eu me encontro com ele. Adoro beijar e ser beijada!

Com malícia, indaguei:

– E rola mais alguma coisa, além dos beijos?

A idosa deu uma gargalhada e disse:

– É claro, querida! Se não rolasse, não teria graça!

E ainda perguntei:

– Como é o nome do seu namorado?

A mulher ficou pensativa, procurando o nome do amado no teto e nada de encontrar.

Para “salvar a Pátria”, sua filha se aproximou com as compras já pagas, para chamá-la para ir embora.

Mostrando-se aflita, a senhora perguntou:

Ô, Marleide, como é mesmo o nome do meu namorado?!!!

 

 

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 07 de abril de 2017

PICANHA DO MAR

 

Evaristo era um fazendeiro rico do interior do Estado, conhecido pela avareza, com relação às pessoas pobres que lhe pediam ajuda. Além de “amarrado”, tratava mal aos empregados e a quem dele precisasse. Era incapaz de dar alguma recompensa a um portador que lhe levasse uma encomenda. Também, não gostava de presentear ninguém, usando como desculpa o esquecimento ou a falta de tempo. A esposa e as duas filhas sofriam com isso, e tomavam a frente, na compra de qualquer presente. Essa sua avareza fazia com que os subalternos o detestassem. Quando o viam, cortavam caminho, evitando prestar-lhe qualquer serviço.

Um certo dia, na Semana Santa, um deputado seu amigo, e que lhe devia favores em campanhas eleitorais, mandou-lhe de presente uma enorme Meca, peixe conhecido no Nordeste como “Picanha do Mar”, e muito usado para churrasco. É um dos pratos principais, encontrados no excelente “Restaurante Solimar”, localizado na Barra do Cunhaú (Canguretama - RN).

   

O portador do presente era um criado do político, que já tinha ido várias vezes à casa do fazendeiro, levando encomendas. Mas esse homem nunca lhe dera qualquer agrado.

O rapaz chegou de cara feia e mal olhou para o fazendeiro, destinatário da encomenda. Só Deus sabe a má vontade com que chegou ali, levando ao ombro o enorme peixe, devidamente embrulhado. Visivelmente irritado, e sem cumprimentar o austero fazendeiro, o portador colocou o peixe no chão do terraço, e se limitou a dizer:

– Meu patrão mandou entregar esta encomenda ao senhor!

Contrariado com a forma nada simpática, com que o portador a ele se dirigiu, o fazendeiro o repreendeu, dizendo:

– Rapaz, você precisa apreender que não é assim que se faz entrega de um presente desse! Venha cá! Vou ensinar a você como é que a gente faz! Vamos imaginar que o dono da casa é você e eu sou o empregado que trouxe a encomenda. Sente aqui nesta cadeira! Eu entro com o presente na mão e, com muita delicadeza, digo:

– Bom dia, Senhor! O meu patrão, Deputado Aparício, mandou lhe entregar este presente, acompanhado dos votos de uma Feliz Páscoa, para o senhor e sua família! Espera que o senhor goste e com isso ele ficará muito feliz.

O criado aproveitou o momento para provocar o fazendeiro, na esperança de receber algum trocado. Sorriu e respondeu:

– Muito bem…Transmita ao seu patrão os meus agradecimentos, e receba esta recompensa, pelo trabalho que teve, em trazer até aqui este peixe tão pesado!

E o rapaz meteu a mão no bolso, com o gesto de quem vai tirar dinheiro.

Seu Evaristo não gostou da resposta. Ficou vermelho e confuso. Lembrou-se de que nunca tinha dado uma gorjeta àquele rapaz, ou a qualquer outro portador que lhe trouxesse uma encomenda. Quis lhe dar uma lição de boas maneiras, mas terminou recebendo uma lição ainda maior, de uma pessoa tão simples.

E não teve outro jeito. O avarento tirou algumas moedas do bolso e deu ao esperto criado, agradecendo-lhe por ter trazido o presente. Em seguida se despediu dele com muita amabilidade.

A partir de então, passou a dar sempre um agrado, a quem lhe trouxesse uma encomenda.

 

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 31 de março de 2017

COMO VIVER COM UM IDIOTA
 

Lígia, professora do ensino médio estadual, enviuvou aos trinta anos, ficando com dois filhos pequenos, de cinco e sete anos, para criar. O marido, Auditor Fiscal dos Tributos Estaduais, morreu num acidente de carro, e ela demorou muito tempo para se conformar.

Muito bem casada, ao se ver sozinha com os filhos, Lígia jurou que jamais se casaria novamente. Vivia bem financeiramente, pois recebia os vencimentos de professora e a pensão por morte do marido. Tinha casa própria e um bom carro. Por isso, mesmo sendo ainda jovem, não fazia questão de se casar outra vez, passando a se dedicar, exclusivamente, aos filhos  e ao seu trabalho.

 

 

O tempo se encarregou de colocar tudo no seu devido lugar, e, quatro anos depois, Lígia conheceu Adalberto, o que resultou em um segundo casamento. Era um homem muito bonito, simples e educado, mas sem dinheiro e sem estudo. Trabalhava como corretor de Imóveis e por isso sua situação financeira variava muito, dependendo das raras comissões que recebia. A realidade é que a viúva se apaixonou por um homem bonito, mas “sem eira nem beira”. Mesmo assim, Lígia dizia que não precisava de “dote”, pois vivia muito bem financeiramente e desejava apenas ser feliz, como foi no seu primeiro casamento. Casaram-se somente no religioso, para que ela não perdesse a pensão por morte do primeiro marido.

Poucos meses depois do casamento, Lígia viu a besteira que havia feito em se casar novamente. Constatou que Adalberto não era o homem que parecia ser. De repente, ele passou a chegar embriagado, procurando motivos para reclamar dela e dos seus filhos. Ela passou a ser alvo de um ciúme doentio, acrescido de frases ferinas e indecentes. Dizia, sem que nem mais, que nenhuma mulher era confiável, principalmente as viúvas. Cortou todas as amizades de Lígia, incluindo os familiares.

Quando a mulher recebia uma visita, ele se dirigia ao quarto e não aparecia mais. Isso, repetidamente, até que todas as amigas de Lígia se afastaram. Ensaiou dar castigo aos enteados, mas Lígia não admitiu.

A decepção da mulher foi grande! O seu casamento se transformou num martírio. O segundo marido era um saco de recalques, extremamente ciumento e, ainda por cima, alcoólatra. Era revoltado porque não era formado. Na verdade, não conseguira concluir nem o Curso Ginasial. Simplesmente, não gostava de estudar.

Gostava de exibir Lígia, como se fosse um troféu. Afinal, casara com uma professora “formada” em Letras e pensionista de um Auditor Fiscal dos Tributos Estaduais. Além do mais, a mulher tinha casa própria e carro bom para ele dirigir. Lígia ainda era jovem e bonita, e ele achava que isso causava inveja aos seus companheiros de mesa de bar. Mas, o fato de Lígia ser viúva e ter dois filhos que precisavam muito da sua atenção era mais um motivo para que Adalberto tivesse do que reclamar. As discussões foram amiudando e se tornaram diárias. Adalberto não vinha mais almoçar em casa e só chegava à noitinha, embriagado e reclamando de tudo, até do café. Lígia não sabia como salvar seu casamento, e o sentimento que nutria por Adalberto foi ficando desgastado. Quando ele estava em casa, a toda hora ela e os filhos eram agredidos com insultos e reclamações desnecessárias. O ciúme doentio de Adalberto abrangia colegas de trabalho de Lígia e até os familiares. A presença de Adalberto em casa, bêbado e procurando brigas, tornou-se nefasta. Não respeitava dia nem hora para brigar.

Para sua felicidade e dos filhos, Lígia só via um caminho: A Separação.

Sentindo-se fracassada, decidiu que na mesma semana iria procurar um advogado para resolver esse problema.

Nesse ínterim, Ligia precisou ir a uma livraria e, casualmente, foi atraída pelo título de um livro ali exposto:

“COMO CONVIVER COM UM IDIOTA”.

O autor é John Hoover, psicólogo especializado em relações humanas.

Imediatamente, Lígia se identificou com o título, e o adquiriu, por mera curiosidade.

A obra mostra que em qualquer situação é fundamental tentarmos compreender o idiota em questão, encontrando dentro de nós as chaves para assumir uma atitude de empatia e tolerância com a pessoa difícil, com a qual temos de conviver. Recorrendo a exemplos de casos reais e sempre com humor devastador, Hoover dá conselhos e dicas preciosas, apresentando sua reveladora classificação dos vários tipos de idiota e ensinando como evitar e superar conflitos nos relacionamentos. Entretanto, embora a idiotice alheia pareça sempre evitável, ninguém consegue mudar o outro.

Chegando em casa e aproveitando a ausência do marido, Lígia leu algumas páginas do livro, e depois o escondeu em local que julgava, para ele, inacessível.

À noite, Adalberto chegou embriagado e com insultos na ponta da língua para agredir a mulher. Lígia manteve-se calada e deixou que ele brigasse sozinho. Mas não havia jeito dele se calar. Olhou para Lígia e provocou:

-O que foi? Está olhando pra minha cara, por que? Está com raiva porque cheguei a esta hora? Mulher não manda em mim!!! Você devia mandar muito no imbecil que morreu. Mas em mim, nunca!!!

Apavorada, Lígia só disse que não havia dito nada para que ele a tratasse assim. Mas ele respondeu que, só pela sua cara, sabia o que ela queria dizer. E empurrou cadeira no chão, deu murro na mesa, cuspiu o apartamento todo, e saiu fiscalizando tudo o que tinha dentro de casa.

Nessa noite, o universo conspirou contra Lígia. De tanto desarrumar o apartamento, procurando só Deus sabe o que, Adalberto deu de cara, por trás de todos os livros de uma estante, com o tal livro “COMO CONVIVER COM UM IDIOTA”.

A carapuça coube-lhe como uma luva, e o mundo desabou. Empurrou Lígia violentamente, que se desequilibrou e bateu com a cabeça na quina de uma prateleira. Ao ver o sangue da mulher, covardemente, trancou-se no quarto. Lígia, acompanhada pelos dois filhos, que, apavorados, choravam copiosamente, dirigiu-se ao Pronto-Socorro mais próximo, onde levou cinco pontos na cabeça. Daí, foram todos para a casa do seu irmão, que lhes deu abrigo. E tudo terminou aí…

Lígia se convenceu, uma vez por todas, de que é impossível alguém conviver com um idiota, perverso e complexado.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 24 de março de 2017

FRACO AQUI, SÓ EU


A cirurgia para retirada de varizes é realizada desde o início do século passado, e ao longo dos anos a técnica foi aprimorada. Atualmente, a cirurgia tradicional, chamada safenectomia, foi, praticamente, substituída por cirurgias mais simples, onde a Safena é preservada. As técnicas usadas também se modernizaram, com o aparecimento do laser e da radiofrequência.

Há várias décadas, Dona Lia, minha saudosa mãe, sofreu muito com problema de varizes, tendo surgido em sua perna esquerda uma úlcera varicosa, difícil de cicatrizar. Como em Nova-Cruz não havia angiologista, ela foi aconselhada a procurar tratamento de varizes em Natal. Orientada por Dr. Hellen Costa, seu cardiologista, tornou-se paciente do grande Angiologista e Cirurgião Vascular, Dr. Jamil Varela Cardoso.

Depois de vários exames, o médico lhe disse que o tratamento indicado para o seu caso seria uma cirurgia, para retirada da Safena. Como não havia outra opção, a paciente concordou e se preparou para o procedimento cirúrgico, que deveria ser realizado em caráter de urgência, em virtude da gravidade do problema.

Feito o pré-operatório, Dr. Jamil marcou a data da cirurgia, na Casa de Saúde São Lucas, numa terça-feira, às 14 horas.

Dona Lia, muito nervosa diante dessa expectativa, manifestou à sua irmã Carmen Pimentel, de quem era hóspede, o seu desejo de que o procedimento fosse assistido pelos médicos, Dr.Hellen Costa (cardiologista), Dr. José Tavares (cirurgião) e Dr. José Valério Cavalcanti (cirurgião).

A amizade desses médicos com a tia Carmen era grande, e facilmente eles concordaram em assistir a cirurgia de sua irmã, que seria realizada pelo famoso Angiologista e Cirurgião Vascular, Dr. Jamil, de indiscutível competência.

No dia e hora marcados, estavam todos na Casa de Saúde São Lucas. Depois dos preparativos de praxe, vimos nossa mãe ser levada na maca para o centro cirúrgico. Em seguida, passaram por nós, devidamente paramentados com suas batas e complementos, Dr. José Tavares, Dr. Hellen Costa, Dr. José Valério Cavalcanti e, por fim, o grande Cirurgião Vascular, Dr. Jamil, na realidade, o maior responsável pelo procedimento cirúrgico a ser realizado. O anestesista já se encontrava no centro cirúrgico.

Dr. Jamil cumprimentou a família de Dona Lia, balançou a cabeça e sorriu, dizendo:

– Fraco aqui, só eu…

Essa frase provocou riso em quem a ouviu, pois partira do mais importante membro da equipe médica, e de cuja competência dependeria o êxito do procedimento cirúrgico. Por outro lado, a humildade com que foi pronunciada demonstrou a grandeza de espírito desse médico extraordinário, que honra o Juramento de Hipócrates e humaniza a Medicina, salvando vidas, através de suas mãos abençoadas.

A cirurgia durou mais de três horas, e foi um sucesso!

O êxito do procedimento e a grande competência do nobre Cirurgião Vascular, Dr. Jamil Varela Cardoso, foram alvo de elogios, por parte do Dr. José Tavares, Dr. Hellen Costa e Dr. José Valério Cavalcanti, que às sextas-feiras à noite se reuniam, na residência da amiga Carmen Pimentel, para boas conversas, regadas a vinho.

O estimado Dr. Jamil continua atendendo na sua mesma clínica, em Natal, agora enriquecida pela presença de duas profissionais, da sua especialidade e do seu sangue, sua filha e sua neta! Além da Dra. Salete, sua esposa, bióloga, que sempre esteve ao seu lado.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 17 de março de 2017

A PIMENTA
 

Há décadas, o fogão de nossa casa, em Nova-Cruz, era “inglês” e à lenha. Fogão a gás era utopia. Dona Lia, minha saudosa mãe, comprava um caminhão de lenha seca, quando precisava, e aguardava que Mendonça, o lenhador, viesse cortá-la em pequenos toros. Era um dia inteiro de um trabalho braçal, muito árduo, com almoço e um pequeno intervalo.

Mendonça era um homem alto e corpulento. Uma vez por outra, ouvia-se um baque enorme, e íamos todos ver o que tinha acontecido. Encontrávamos Mendonça caído no quintal, perto da lenha, e se debatendo, com a boca espumando, num ataque de “epilepsia”. Era uma cena chocante. e minha mãe não permitia que ele continuasse o trabalho nesse dia. Às vezes, ele insistia, dizendo que estava bem, e depois de algumas horas, continuava o trabalho, sem qualquer complicação. Era um homem forte e tinha a força de um animal. Era calado e quando falava, demonstrava ser um homem que tinha muita fé em Deus.

Certo dia, Dona Lia pediu-lhe para substituir umas telhas quebradas, no telhado da nossa casa. Mendonça providenciou uma escada e foi fazer o serviço, levando as telhas novas. Depois de alguns minutos, desceu a escada, chamando alto pela patroa.

O homem tremia mais do que vara verde! Quase não podia falar, de tão nervoso. Dona Lia, que era muito destemida, perguntou:

– O que aconteceu, Mendonça? Porque você está tremendo deste jeito?

Gaguejando e muito trêmulo, Mendonça falou:

– Dona Lia, pela caridade!!! -Em cima da casa da senhora, tem um “CATIMBÓ”!!! Virgem Maria! Não gosto nem de falar nisso!!!

Minha mãe, que não acreditava em “CATIMBÓ” nem FEITIÇARIA, deu uma risada e procurou acalmar o lenhador:

– Mendonça, o poder de Deus é maior do que tudo isso! “CATIMBÓ” não existe! Quer saber de uma coisa? Vá buscar o “CATIMBÓ”, que eu quero ver!

O homem, desesperado, quase chorando, implorou a Dona Lia que não quisesse, nem ao menos, ver o “CATIMBÓ”. Mas ela insistiu e ele subiu a escada novamente, para pegar o “trabalho feito”, que estava em cima da casa.

A nossa expectativa foi grande, até que Mendonça desceu novamente a escada, trazendo o “CATIMBÓ”. Era uma pequena trouxa, amarrada com um terço velho.

Minha mãe ordenou que ele desmanchasse o nó e abrisse o “CATIMBÓ”. Trêmulo, o homem sentou-se num batente do quintal e obedeceu à patroa. Desamarrou a trouxinha, que continha areia, pimenta malagueta e três terços quebrados. Mendonça, quase sem poder falar, garantiu que aquela areia era do cemitério. Propôs a Dona Lia jogar querosene no “CATIMBÓ” e tocar fogo.

A patroa, que era muito corajosa e espirituosa, mandou que Mendonça retirasse de dentro da trouxinha as pimentas malaguetas e as lavasse muito bem lavadas, pois iria usá-las para fazer um molho. O resto da trouxinha, ele podia jogar no lixo.

Mendonça, contrariado, lavou as pimentas com água da cisterna e pôs em uma vasilha que lhe foi entregue por Dona Lia. Minha mãe tornou a lavá-las, agora com água e sabão. Depois de tudo, colocou as pimentas em um vidro, com vinagre e azeite de oliva.

Estava feito um molho, para quem tivesse coragem de usar…

Dona Lia detestava molho de pimenta…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 10 de março de 2017

PACIÊNCIA DE JÓ
 

Há vários anos, quando o melhor cardiologista de Natal, Dr. Hellen Costa, ainda clinicava, o seu consultório no Edifício 21 de Março, na Cidade Alta, era lotado. Eu sempre levava minha saudosa mãe a ele, para tratar do seu coração. As consultas eram muito demoradas, pois o Dr. Hellen se dava ao trabalho de fazer, ele mesmo, o eletrocardiograma do paciente, e de ouvir todas as queixas e problemas existenciais que lhe eram contados. Tive oportunidade de presenciar cenas hilárias de pacientes hipocondríacas, que tomavam o tempo todo do médico e quando já iam saindo do consultório, voltavam para tirar alguma dúvida.

Certa vez, uma senhora idosa, depois de uma hora de consulta, já na porta, perguntou ao Dr. Hellen, em voz estridente:

– Dr. “Reles”, eu posso tomar água de coco? Eu soube que está havendo uma epidemia de cólera aqui em Natal. `Será que água de coco provoca cólera?

Muito paciente, o médico respondeu:

– Dona Severa, se alguém tiver feito uso indevido do coco, antes do coco criar água, com certeza a senhora vai contrair cólera! Caso contrário, não tem perigo da senhora pegar essa doença!!! Mas para a senhora ficar mais tranquila, não beba água de coco!!!

A paciente saiu satisfeita e decidida a não tomar mais água de coco. Meia hora depois, voltou muito nervosa, insistindo com a atendente para falar novamente com Dr. Hellen, pois tinha esquecido de lhe fazer uma pergunta. A moça avisou ao médico, e ele mandou que dona Severa entrasse. A porta ficou aberta e as pessoas que esperavam sua vez ouviram a voz estridente da mulher:

– Dr. “Reles” (ela não acertava dizer o nome do médico), eu como muito tomate. Será que comendo muito tomate, eu vou ter cólera?!!!

E Dr. Hellen, com a paciência de Jó, perguntou:

– Dona Severa, a senhora gosta muito de tomate?

A mulher respondeu:

– Gosto demais, Dr. “Reles”!

E o cardiologista falou:

– Pois a senhora pode continuar comendo tomate, dona Severa! Tomate não provoca cólera!

A paciente saiu muito satisfeita.

Em outra ocasião, presenciei a chegada de outra paciente de Dr. Hellen Costa, com consulta marcada pela primeira vez, visivelmente nervosa. Depois de preencher sua ficha e dizer à atendente que seu nome era Zulmira da Silva, sentou-se para aguardar o atendimento. Imediatamente, puxou conversa comigo, e dentro de dez minutos me contou sua vida. Fiquei sabendo que ela tinha sido casada com um alto funcionário público estadual, mas, ainda jovem, tinha se apaixonado pelo Chefe da Banda de Música da Marinha, que também se apaixonou por ela. O marido descobriu e a abandonou, sem processo de desquite ou divórcio. O cornudo, com desgosto dos chifres que levou, enfiou a cara na cachaça e, dois anos depois, morreu de cirrose hepática. Depois de vários anos de vida em comum, o Chefe da Banda de Música arranjara, recentemente, uma namorada bem mais moça do que ela. Essa era a causa do seu nervosismo.

Chegou a vez de Dona Zulmira, e ela entrou na sala do grande cardiologista, para se consultar. Muito perturbada, abriu as torrentes da alma e lhe contou todos os conflitos existenciais por que estava passando. Repetiu para o médico a história que tinha me contado na sala de espera. Falou do seu casamento, da sua infidelidade, da sua paixão pelo Chefe da Banda de Música, e da morte do marido, de quem nunca havia se separado legalmente. Sua conversa com voz alterada pôde ser ouvida por todos os pacientes que aguardavam atendimento.

Disse que o cornudo morreu e ela ficou recebendo uma polpuda pensão. Mas agora estava sendo castigada, e pagando com juros e correção monetária o que fez com ele. Mesmo ela sendo cheia do dinheiro, o Chefe da Banda de Música da Marinha arranjara outra mulher, bonita e jovem. Sua vida, atualmente, estava um inferno. E haja depressão e pressão alta. Confessou ao médico que havia se arrependido do que fez, mas não podia mais dar jeito.

Como diz o ditado popular: “Agora é tarde; a Inês é morta!”

No consultório, contando sua história, a mulher falava tão alto, que da sala de espera se ouvia tudo. Essa consulta durou mais de uma hora. Dr. Hellen Costa prescreveu a medicação necessária e, finalmente, abriu a porta para que a paciente saísse. Exibindo o contra-cheque na mão, a mulher perguntou em voz alta:

– Diga, Dr. “Reles”, se eu, com um contra-cheque alto desse, mereço ser traída?!!!

Calmamente, Dr. Hellen respondeu:

– Claro que não, Dona Zulmira! Esse Chefe da Banda de Música é um salafrário! A senhora não merece ser traída!!! Vá com Deus e a Virgem Maria!!!

O querido Dr. Hellen Costa, atualmente com 90 anos, além de um grande cardiologista, é um ser humano maravilhoso, dono de um grande coração e de uma paciência de Jó.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 03 de março de 2017

ORANGO
 


Alice era empregada doméstica da casa do Sr. José Gadelha e esposa dona Lúcia. O casal nos vendeu a casa e logo nos mudamos para lá. Três dias depois, ouvi palmas no portão de manhã cedo, e dei de cara com uma moça se oferecendo para serviços domésticos. Ela se identificou, dizendo que, há um ano, era empregada do casal que nos vendeu a casa e que não estava gostando da nova morada. Queria voltar a trabalhar ali naquela casa, pois já estava acostumada com a localização. Coincidiu que eu estava precisando de alguém para trabalhar, e, por ter simpatizado com a moça, dei-lhe um crédito de confiança, admitindo-a sem qualquer informação. Décadas atrás, isso era normal. Ela demonstrou ser cozinheira de mão cheia e logo se adaptou à nossa rotina.

Nos primeiros dias, notei que era muito nervosa e gostava de falar sozinha, olhando para um pequeno retrato. Antes que eu perguntasse de quem era a foto, ela me contou que havia tido um filho, sem ser casada, e que para poder trabalhar, deixava a criança na casa de uma irmã, no Morro de Mãe Luíza. Um certo dia, ao voltar do trabalho, procurou o filho, já com nove meses, e a irmã respondeu que tinha dado a criança a um casal rico, ele, um “doutor engenheiro”, que tinha viajado para fora de Natal.

 


 

Antigamente, um caso desse ficava por isso mesmo, principalmente quando a vítima era pobre. Era o retrato da miséria humana. Desde esse dia, Alice passou a “sofrer dos nervos” e, sem saber o que fazer, teve que aceitar o ato criminoso da irmã, que deu o seu filho traiçoeiramente, coisa que ela, a mãe, jamais faria. No desespero de Alice, o único consolo que lhe restava era saber que seu filho iria ter conforto e estudo, o que jamais ela lhe poderia dar.

A tristeza que se apoderava dessa moça, de vez em quando, evoluiu para um quadro depressivo crônico. Tinha mania de doença. Ia ao INPS se consultar quase todos os dias. Uma hora, era uma dor no braço (bursite), outra hora na coluna; outra hora era gastrite, mas do que mais se queixava era de uma “agonia na cumeeira da cabeça”.

Entre os médicos com quem Alice se consultava, estava o Dr. Hélio Barbosa, que era Psiquiatra. Ele lhe receitava antidistônicos, para que essa “agonia na cumeeira da cabeça melhorasse”. Alice era totalmente hipocondríaca.

Pensando em dispor de mais tempo para suas idas ao INPS, passou a me pressionar, para que eu contratasse outra empregada para lhe ajudar. Depois de muita insistência, terminei admitindo uma colega sua. Só deu certo uma semana. Ela queria ser chamada de Dona Alice e que a moça a tratasse de “senhora”. As duas pegaram uma briga e se engalfinharam pelo chão, aos gritos, atraindo a atenção dos vizinhos. Quando cheguei do trabalho, a novata estava de malas prontas para ir embora. Achei ótimo, pois na nossa casa uma empregada era suficiente. Quinze dias depois, Alice me propôs novamente admitir outra empregada. Ameacei de despedi-la. Na mesma semana, por brincadeira, disse-lhe que tinha encomendado um orangotango adestrado, que fazia trabalhos domésticos, para lhe ajudar. Ela se entusiasmou e perguntou logo:

– Posso chamar esse macaco de Orango? Será que ele atende telefone? Só tomara que ele não seja arengueiro!!!

No dia seguinte, a rua toda ficou sabendo que iria chegar na nossa casa um orangotango para trabalhar com Alice. E os vizinhos me perguntaram se era verdade. A calçada se encheu de meninos da rua para perguntar quando o macaco iria chegar.

Eros, meu marido, brincando com Alice, disse-lhe que se preparasse para dar banho no orangotango uma vez por semana. Aí ela endoideceu!!! E assustada, disse:

– Seu Eros, macaco é um bicho enxerido! Meu irmão disse que um macaco do Amazonas “adeflorou” uma moça!!! Para dar banho nele, eu não tenho coragem!!!

Alice levou tão a sério a “compra” do orangotango, que eu fiquei assustada e resolvi dizer que tinha desistido do negócio. Ela já estava tão empolgada com a perspectiva de trabalhar com “Orango, que implorou para que eu o deixasse vir. Disse que não iria arengar com ele e já estava lhe querendo bem. E fez um último apelo:

– Dona Violante, pelo menos, vamos “expromentar”!!!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 24 de fevereiro de 2017

CARNAVAL DO "PEGA NA CHALEIRA"



“Iaiá me deixa subir esta ladeira…eu sou do bloco do pega na chaleira”…

Essa marchinha, do começo do século passado, ainda hoje faz sucesso e o tema é sempre atual. Os “chaleiras” ou “puxa-sacos” estão sempre presentes em todos os segmentos da sociedade, até mesmo nas Igrejas. No interior, antigamente, havia carolas que chaleiravam o Padre, tornando-se quase governantas da Casa Paroquial. Tomavam conta das batinas, calças, camisas e até das cuecas do vigário, além de manterem o controle de horários das missas e arrumação do Altar da celebração. Elas se apossavam da privacidade do Padre, e ficavam por dentro de todos os seus passos. Eram intoleráveis e dificultavam o seu entrosamento com o povo da cidade.

Em escolas e outras repartições públicas, a figura do (da) chaleira também sempre esteve presente. Dedurava os colegas, fazia fofocas e babava o chefe, querendo fazer dele um amigo íntimo. Mas a falsidade era logo percebida, quando chefe era uma pessoa decente.

 

 

O termo chaleirar tem sua história registrada no folclore político brasileiro.

Dizem os memorialistas literários que o termo surgiu motivado pelo chimarrão, tomado todas as tardes pelo ex-Senador gaúcho, José Gomes Pinheiro Machado, nascido em 1852 e assassinado no Rio de Janeiro em 1915.

Esse homem fora a grande força política brasileira, no começo do século passado. Morava na Ladeira da Graça, no Rio de Janeiro, de difícil acesso. Mesmo assim, isso não impedia que os políticos bajuladores fossem todas as tardes visitá-lo e lhe beijar a mão.

O ex-Senador sentava-se em volta de uma pequena fogueira, sobre a qual era posta uma belíssima chaleira de prata, onde a água para o chimarrão era mantida em ebulição. De cuia na mão e canudo no bico, o ex-Senador puxava o seu chimarrão, paparicado pelos bajuladores. Essa chaleira era disputada por eles, que queriam, todos ao mesmo tempo, servir o chimarrão ao “todo-poderoso”. Uma vez por outra, algum deles, na ânsia de pegar primeiro na alça da chaleira, pegava no bico, recebendo todo o bafo quente que dali saía. A história se espalhou e esses políticos bajuladores, que viviam com os dedos queimados, passaram a ser chamados de chaleiras. Esse vocábulo passou a ser sinônimo de puxa-saco e bajulador.

Daí, surgiu a marchinha de carnaval, Pega na Chaleira, de autor desconhecido, com arranjo do Maestro Costa Júnior, que se assinava “Juca Storoni”, sucesso no carnaval de 1909.

 

Depois, surgiu “Cordão de Puxa-Saco”, marchinha de Frazão e Roberto Martins, gravada pelos Anjos do Inferno. Essa marchinha foi grande sucesso no carnaval de 1946, ficando definitivamente conhecido o tema do chaleirismo ou puxa-saquismo.

 

Na época atual, os (as) chaleiras ainda continuam inspirando os compositores de plantão, que, como Juca Chaves, não perdem tempo em compor sátiras e paródias, ridicularizando esses políticos sem escrúpulos, que vivem chaleirando os poderosos, tentando conseguir vantagens e favores.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 17 de fevereiro de 2017

O ANJO

Décadas atrás, macho e “feme” era o nome dado a pessoas portadoras de distúrbios genéticos, que nasciam com forte tendência a ser do sexo oposto. Era assim que se chamava a pessoa afeminada (ou efeminada), na pequena cidade de Nova-Cruz (RN). Essa anomalia era vista como doença congênita e crônica, e por isso os seus portadores eram respeitados. Atingia mais crianças do sexo masculino.

Os pais percebiam o problema desde a 1ª infância do filho ou filha, e a repressão de nada adiantava.

Na cidade, eram pouquíssimos os casos conhecidos dessa “doença”.

Morava em Nova Cruz (RN) um rapaz de nome José Teixeira, filho de uma viúva, pertencente a uma ramificação de tradicional família daquela cidade.

 

 

Dizem que, desde criança, sempre demonstrou tendência feminina nos gestos, preferindo os brinquedos das irmãs e desprezando carrinhos e bolas que os pais lhe davam para brincar. Cresceu assim, querendo brincar com bonecas, usar laços de fitas na cabeça e até vestir roupas das irmãs, cheias de rendas e babados. A mãe sofria para convencê-lo de que aquilo que ele queria não era para menino.

Dessa forma, tornou-se rapaz, passando a se dedicar às prendas domésticas. Revelou-se um verdadeiro artista, aprendendo a bordar, pintar, confeccionar flores e chapéus femininos ornamentados.

Com o passar do tempo, José Teixeira dedicou-se completamente à decoração de ambientes e preparação de festas, difundindo cada vez mais suas habilidades artísticas. Com elas, passou a ganhar dinheiro, ajudando no sustento da mãe, viúva pobre, e suas duas irmãs.

Era religioso, educado, e sabia respeitar as pessoas, sendo por isso também respeitado. Nenhuma festa acontecia na cidade, sem que estivessem presentes a sua arte e o seu bom gosto. O preparo de altares na Matriz da Imaculada Conceição, Padroeira da cidade, os andores para as procissões, festas de casamento, aniversários, enfim, quaisquer acontecimentos festivos contavam com a sua indispensável participação.

Tornou-se o decorador oficial da cidade, nos eventos públicos ou privados, inclusive nas festas religiosas do final do ano, onde havia uma Quermesse para angariar fundos para a Igreja.

Eram frequentes os jantares, os saraus, os bailes, as procissões e novenas, como manifestações da realidade artística, religiosa e social da cidade. Em tudo, estava a presença marcante desse filho de Nova-Cruz.

Merece destaque o fato de José Teixeira nunca ter escondido sua tendência feminina, mantendo, entretanto, uma conduta discreta e digna. Vivia para o trabalho, e nunca se meteu em fofocas. Seu excelente círculo de amizade incluía moças, senhoras casadas, senhores e rapazes. Até o Padre da Paróquia de Nova-Cruz lhe fazia elogios publicamente, em agradecimento pelo seu trabalho de embelezador e colaborador das festas e procissões.

Nessa época remota, o distúrbio genético apresentado por José Teixeira era raro, e a cidade que o viu nascer o aceitava como era.

Sua presença tornou-se indispensável nas festas de aniversários, casamentos e bailes. Também ocupava lugar de honra na vida familiar da cidade, sendo sempre convidado para almoços e jantares, e ainda para padrinho de crianças. Tornou-se amigo e confidente de todos.

A cidade se desenvolveu e passou a ter mais festas, aumentando também o prestígio de José Teixeira. Era um verdadeiro “patrimônio” artístico de Nova-Cruz.

Surgiu o primeiro bloco de carnaval da cidade, tendo José Teixeira como organizador, decorador e figurinista. Esse bloco saía às ruas de Nova-Cruz no tríduo carnavalesco, “assaltando” as residências de pessoas da cidade, onde era recebido com bebidas e salgadinhos, à vontade.

As calçadas e ruas transformavam-se em salões de festa e a alegria era imensa.

O nosso Tio Paulo, uma figura inesquecível, era um dos maiores incentivadores do bloco, e o “assalto” à sua casa era indispensável! Irmão do nosso pai, Francisco, as casas eram vizinhas, e o “assalto” era aproveitado por nós, ainda crianças. Dançávamos no meio da rua, jogando confetes e serpentinas, presenteadas por ele, num clima de felicidade sem igual.

Tio Paulo distribuía lança-perfumes para os seus amigos, compradas em Natal, que eram usadas para perfumar o cangote das moças. E o cheiro se espalhava pelo ar. Não havia porre, loló nem brigas. O carnaval era só alegria e higiene mental.

O Rei Momo e a Rainha do Carnaval eram eleitos, uma semana antes, por uma comissão apontada por José Teixeira, da qual fazia parte.

José Teixeira confeccionava a alegoria, porta-estandartes e as fantasias para o carnaval.

Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Odaliscas (vem Odalisca do meu harém vem, vem vem… ) e Piratas eram as principais fantasias.

A tarde entrava pela noite, com trombones, tamborins e outros instrumentos, executando os mais belos e tradicionais frevos e marchinhas de carnaval. A cidade era calma e o povo todo era conhecido.

Não havia o carnaval sensual/sexual de hoje, e os seios e nádegas eram guardados com recato.

As marchinha e frevos não tinham maldade. Tinham beleza e poesia.

Podemos dizer que, em Nova-Cruz, foi José Teixeira quem inventou o carnaval, o bloco, a alegoria e o estandarte, quando a maldade não tinha nascido.

Assim era José Teixeira. Totalmente feminino, amado, respeitado, e aceito por todos, sem sofrer exclusão pelo seu modo involuntário de ser.

Para mim, ele era um Anjo. E Anjo não tem sexo…

Hoje, desapareceu a pureza. Os Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Odaliscas e Piratas se desnudaram. Restaram expostos, em abundância, seios, nádegas e tatuagens.

A modernidade nos deixou apenas o direito de nos fantasiarmos de PALHAÇOS!!!Palhaços das nossas ilusões!

Decepcionados, abafamos no peito a saudade dos velhos carnavais.

O cheiro de lança-perfumes sumiu! Roubaram as fantasias do nosso povo!

Roubaram o sorriso de felicidade, que existia nos rostos nos dias de carnaval.

Ó, abre alas, que eu quero passar!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 10 de fevereiro de 2017

LOUVADO SEJA

Há décadas, Louvado Seja era o apelido de um antigo pedinte de Nova- Cruz, portador de um distúrbio neurológico, que o impulsionava a andar correndo. Era como se alguém invisível o estivesse empurrando. Dava pequenas e constantes carreiras, em curtos intervalos. Não ficava parado um só instante, nas horas em que era visto a esmolar. Seu apelido foi motivado pela louvação que dizia a toda hora, inclusive antes de pedir uma esmola. Quando ele apontava no começo da nossa rua, Barão do Rio Branco, a meninada que brincava nas calçadas corria para casa, com medo. Esse pavor era provocado por comentários maldosos, espalhados pela cidade, de que Louvado Seja incorporava um espírito maligno, que o empurrava, para que corresse até sofrer uma queda fatal. Era como se alguém estivesse querendo, com ele, um acerto de contas. Diziam que eram coisas do demônio, e muita gente acreditava piamente nessa versão. Ao pedir uma esmola, a voz forte de Louvado Seja podia ser ouvida de longe:

“Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Uma esmola pelo amor de Deus”!

Recebia a esmola, repetia a louvação e era impulsionado a correr novamente. As crianças tinham pavor a ele, inclusive eu. Minha avó paterna, dona Júlia, nunca deixou de lhe dar uma esmola, nem tinha medo dele. Eu, que vivia muito com ela, em sua casa, vizinha à nossa, quando o avistava tremia de medo e entrava correndo. Arrodeava pelo quintal e ia à procura de minha mãe. Agarrava-me à sua saia, apavorada. Ela me abraçava e tentava me explicar que Louvado Seja não fazia mal a ninguém e que o problema dele era um doença.

 

 

Nova-Cruz, naquela época, era um atraso total. Morria-se à míngua, sem qualquer assistência médica.O deslocamento para Natal ou João Pessoa levava de cinco a seis horas. Isso, se o trem ou o ônibus não desse o “prego”. As estradas rodoviárias eram de barro e esburacadas, e no inverno, então, uma viagem dessa era um suplício. Uma verdadeira “odisseia”.

Nova-Cruz faz fronteira com a Paraíba. O progresso demorou muito a chegar até lá. A energia de Paulo Afonso só foi inaugurada em 1962, por esforço do então Governador Aluízio Alves. Água encanada, também demorou muito a chegar.

Minha saudosa mãe possuía um livro comprado em Natal, chamado “Medicina do Lar”, que, entre diversas doenças, fazia referência aos sintomas idênticos aos apresentados por Louvado Seja. Eram próprios da “doença de São Guido (ou Vito)”. Essa doença também é conhecida como Coreia de Huntington ou Mal de Huntington. É uma alteração hereditária do cérebro, que afeta pessoas de todas as populações em todo o mundo. O seu nome vem do médico George Huntington, que fez a primeira descrição do que ele chamou “Coreia Hereditária”. O termo “Coreia” tem origem na palavra latina choreus (que se refere a “dança”) devido aos movimentos involuntários, que são uns dos sintomas principais dessa doença rara.

Dona Lia se convenceu de que Louvado Seja era portador dessa enfermidade neurológica. Como não era médica, só comentava o assunto com o marido e familiares. O fato é que Louvado Seja padeceu desse mal a vida toda, sem nunca ter ido a um médico.

São Vito (?-303), também chamado por muitos de São Guido, foi um mártir italiano filho de pagãos, mas educado na fé cristã, por Santa Crescência e São Modesto.

As publicações católicas esclarecem que esse santo é considerado padroeiro dos epilépticos e foi um dos mais populares na Idade Média. Sua festa é comemorada no dia 15 de junho.

A associação existente entre São Guido ou Vito e a doença nervosa a que nos referimos, provavelmente, prende-se ao fato de que pessoas atacadas por esse mal começaram a procurar a sua Capela, erguida na Suábia, um antigo ducado alemão da Idade Média, para pedir sua proteção.

O nome “doença de São Guido (ou São Vito)” pegou, e, em algumas regiões, virou expressão popular, para denominar pessoas agitadas, com movimentos involuntários, provocados por contrações nervosas no rosto ou em outras partes do corpo. Estariam atacadas pela “doença de São Guido”.

Ainda hoje me lembro de Louvado Seja, e sinto medo. Suas carreiras curtas e constantes, seus tiques nervosos, além da voz grossa e assustadora, davam-lhe a aparência de um homem elétrico, um ser sobrenatural. Apesar das carreiras que dava, impulsionado pelos nervos doentes, Louvado Seja nunca fez mal a ninguém, durante os anos em que percorreu as ruas de Nova-Cruz, pedindo esmolas. Se algum espírito o empurrava, como muitas pessoas acreditavam, o poder de Deus sempre o protegeu e ele nunca caiu. Deixou de pedir esmolas de repente, e a notícia de sua morte se espalhou na cidade, provocando dó em todas as pessoas.

Ninguém sabia o seu verdadeiro nome, mas o seu apelido é impossível esquecer.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 03 de fevereiro de 2017

A VASSOURADA

Na campanha política para Presidente da República, em 1960, o então candidato Jânio da Silva Quadros tinha como símbolo da sua campanha uma vassoura. Nos comícios, subia ao palanque com uma vassoura na mão. Dizia que com a vassoura, seria varrida a bandalheira e a corrupção do País.

A vassoura, portanto, tornou-se a marca registrada da campanha de Jânio da Silva Quadro (UDN) contra o Marechal HenriqueLott (PSD).

No interior nordestino , os “janistas” tinham, cada qual a sua vassoura, usada nas passeatas e comícios, para insultar os adversários, partidários do Marechal Henrique Lott.

Em algumas cidades, durante a campanha a bagunça foi grande. Os eleitores que apenas assinavam o nome, não compreendiam o sentido da vassoura, nem os discursos de Jânio transmitidos pelo rádio. Então, começaram os insultos e, o que era pior, as vassouradas, durante as passeatas e comícios. A vassoura tornou-se uma arma perigosa nas mãos das pessoas ignorantes. Em Nova-Cruz (RN), o comércio de vassouras prosperou. A campanha tomou proporções alarmantes, e as vassouradas eram dadas indiscriminadamente, chegando a provocar ferimentos em algumas pessoas.

Lourdes, uma moradora da nossa rua, mulher ignorante e agressiva, resolveu ser “janista”, e passou a varrer a calçada de sua casa de manhã, de tarde e de noite, para insultar quem passava. Usando a vassoura como estandarte, agrediu o ex-marido com uma vassourada, e o acertou na fronte. Por um triz, o homem não morreu. Semianalfabeta, Lourdes não entendia de nada, principalmente de política. Mas tornou-se especialista em vassouradas. Não perdia passeatas e comícios, cantava todos os jingles e era uma entusiasta da campanha da vassoura.

Os carros de som, com seus incansáveis alto-falantes, invadiam as ruas das cidades com marchinhas (jingles), que o povão logo aprendeu a cantar.

Algumas delas:

“ Varre, varre, varre vassourinha, varre a corrupção”;

“Jânio vem aí / não demora não / ele vem aí / com uma vassoura na mão”;

“Varre, varre, varre, varre vassourinha / varre, varre a bandalheira / que o povo já tá cansado / de sofrer dessa maneira / Jânio Quadros é a esperança desse povo abandonado! .Jânio Quadros é a esperança de um Brasil moralizado/ Alerta meu irmão, vassoura, conterrâneo/ Vamos vencer com Jânio!”

 

 

Jânio Quadros chegou à presidência da República de forma muito veloz. Em São Paulo, havia exercido sucessivamente os cargos de vereador, deputado, prefeito da capital e governador do estado. Tinha um estilo político excêntrico e um vocabulário exótico, que chegava a ser hilário. Para parecer popular, enchia os bolsos de sanduíches para comer nos comícios.

Foi eleito Presidente da República em 3 de outubro de 1960, pela coligação PTN-PDC-UDN-PR-PL, para o mandato de 1961 a 1965, com 5,6 milhões de votos – a maior votação até então obtida no Brasil. Venceu o Marechal Henrique Lott de forma arrasadora, por mais de dois milhões de votos. Porém, não conseguiu eleger o candidato a vice-presidente de sua chapa, Milton Campos (naquela época votava-se separadamente para presidente e vice). Quem se elegeu para vice-presidente foi João Goulart, do partido da oposição.

Jânio Quadros assumiu a presidência em 31 de janeiro de 1961, em Brasília, que ,pela primeira vez, foi palco de uma posse presidencial.

O governo de Jânio Quadros perdeu sua base de apoio político e social, a partir do momento em que adotou uma política econômica austera. Adotou medidas drásticas, restringindo o crédito, congelando os salários e incentivando as exportações.

Mas foi na área da política externa que o presidente Jânio Quadros acirrou os ânimos da oposição ao seu governo. Jânio nomeou para o ministério das Relações Exteriores Afonso Arinos, que se encarregou de alterar os rumos da política externa brasileira. O Brasil começou a se aproximar dos países socialistas. O governo brasileiro restabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética (URSS).

Num gesto considerado tresloucado, Jânio condecorou, no dia 19 de agosto de 1961, com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, Ernesto Che Guevara, o guerrilheiro argentino que fora um dos líderes da revolução cubana, e era ministro daquele país. Entretanto, segundo conta a História, essa condecoração foi um agradecimento a Ernesto Che Guevara, por ter atendido a seu apelo e libertado mais de vinte sacerdotes presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Jânio fez esse pedido de clemência a Guevara por solicitação de Dom Armando Lombardi, Núncio Apostólico no Brasil, que o solicitou em nome do Vaticano.

A outorga da condecoração foi aprovada no Conselho da Ordem por unanimidade, inclusive pelos três ministros militares.
A repercussão desse gesto foi a pior possível, sendo, ainda segundo a História, a causa principal da perda de mandato de Jânio. Os problemas começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda. Amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países, e a revista. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrar.

Na imprensa e no Congresso, começaram a surgir violentos protestos contra a condecoração de Che Guevara. Alguns militares ameaçaram devolver suas condecorações em sinal de protesto. Em represália ao que foi descrito como um apoio de Jânio ao regime ditatorial de Fidel, nesse mesmo dia, Carlos Lacerda entregou a chave do Estado da Guanabara ao líder anticastrista Manuel Verona, diretor da Frente Revolucionária Democrática Cubana, que se encontrava viajando pelo Brasil em busca de apoio à sua causa.

No dia 21 de agosto de 1961, Jânio Quadros assinou uma resolução que anulava as autorizações ilegais outorgadas a favor da empresa Hanna e restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais à reserva nacional. Quatro dias depois, os ministros militares pressionaram Jânio Quadros a renunciar:
Diz o texto da renúncia:

“Forças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exercício da minha autoridade……………………………………”

Brasília, 25-8-61.

a) J. Quadros

E assim terminou o mandato de Jânio Quadros, que só durou sete meses. 56 anos se passaram, e o País encontra-se hoje mergulhado na maior crise política da História.

Não há vassourada que dê jeito…

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho terça, 31 de janeiro de 2017

O PEDIDO

 

Malvino era um fazendeiro rico e avarento, que só se preocupava em juntar dinheiro.

Para isso, usava um antigo cofre que tinha em casa, cujo segredo a esposa Damiana sabia, mas nunca teve coragem de mexer.

Não gostava de luxo nem de vaidade. Não admitia que se gastasse dinheiro com coisas supérfluas. A esposa e as duas filhas não pegavam em dinheiro para alimentar a vaidade feminina. Cabelos escovados e unhas feitas, o fazendeiro somente permitia nas festas de Natal e Ano Novo.  A casa, onde a família morava, não era forrada, e o piso era d elajota.

 

dinheiro

 

Aparentemente, Malvino trabalhou pesado a vida toda e não queria ver ninguém usufruir das suas conquistas, nem mesmo a esposa e filhas. Gostava de dizer que filho de pai rico, quando o pai morre, acaba com tudo; e que viúva rica só serve para atrair cabra safado e aproveitador. O plano dele era esse: levar tudo com ele no caixão.

Uma vez por outra, dizia para Damiana:

“Quando eu morrer, quero levar todo o meu dinheiro comigo no caixão. Quero ter toda a minha fortuna, após a morte”!

Claro que isso soava bastante rude e egoísta para toda a família, especialmente para a esposa.

Damiana chegou a conversar com o padre sobre o pedido do marido, e ele lhe disse que não levasse isso a sério.

Anos depois, Malvino adoeceu, passando a sofrer de hipertensão e diabetes. Depois, o quadro se agravou e ele foi a óbito.

A esposa, então, sentiu-se na obrigação de concretizar o seu desejo. Depois de pensar muito, encontrou uma forma genial de conciliar as coisas, sem se prejudicar.

Na hora em que o caixão seria fechado, gritou: “Esperem um minuto”!

Um dos familiares disse: “Espero que você não seja louca de colocar toda a fortuna no caixão”.

A mulher, chorando, respondeu:

“Eu prometi a ele. Sou cristã e irei cumprir o meu juramento”!

Os amigos e familiares ficaram indignados com a situação.

Damiana, então, tirou do sutiã um cheque e pôs sob a cabeça do defunto. E explicou, baixinho, aos familiares:

– Ele vai levando, no caixão, um cheque nominal, cruzado, assinado por mim, no valor de todo o dinheiro que ele deixou no cofre. Amanhã, irei depositar o dinheiro no banco.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 27 de janeiro de 2017

O CIMENTO

 

Marina, já cinquentona, donzela juramentada, aceitou a proposta de casamento de um viúvo “fresquinho”, intermediada por um casal de amigos seus.

Na realidade, o sonho de Marina era se casar. A vida toda organizou seu enxoval, com peças bordadas à mão, e de crochê, que ela, sua mãe e tias faziam com esmero.

O tempo passava e Marina sonhava com a chegada do seu príncipe encantado, montado num cavalo branco. Depois, tornou-se mais condescendente e já admitia que

o príncipe encantado viesse montado num jegue mesmo.

 

 

Ao entrar na casa dos “enta” (quarenta, cinquenta…), Marina já não pensava em príncipe. Queria mesmo era um homem para ser seu marido e companheiro. Um homem para chamar de seu. Vivia bem, financeiramente, e não pensava em acumular riqueza. Seria até capaz de dar casa, comida e roupa lavada, e ainda uma boa mesada, ao marido. Mas ele teria que ser amante e companheiro fiel, e o principal: Não podia ser cachaceiro!!!

Muito católica, a única bebida que Marina não censurava quando via era o Vinho do Padre, durante a Santa Missa.

Pois bem: Apareceu essa proposta de casamento para Marina e, por influência dos amigos, foi aceita, depois de muita insistência.

O pretendente tinha enviuvado recentemente, e os filhos já estavam casados. Funcionário público estadual, o homem ganhava bem, tinha uma excelente casa numa cidade do interior e as informações a seu respeito eram as melhores possíveis. Era o marido ideal para Marina. Logo houve a apresentação dos dois “pombinhos” pelo casal de amigos, e foi “amor à primeira vista”. A carência afetiva em que Marina vivia mergulhada somou-se à recente solidão apavorante do viúvo, que procurou se fazer amado pela celibatária. Surgiu, assim, um casal “apaixonado”, por pura conveniência.

O casamento de Marina e Solano ocorreu em cerimônia simples, na terra da noiva, Nova-Cruz (RN), com a presença de familiares e dos amigos que os aproximaram.

O viúvo fez questão de continuar na mesma cidade e na mesma casa, onde residiu com a falecida esposa e os filhos.

Marina tinha estampada no rosto a imagem da felicidade. O marido vivia bem financeiramente, era católico praticante, e fora casado durante trinta anos, tendo fama de excelente chefe de família.

Num dia de domingo, um mês depois de haver casado com Marina, Solano avisou que iria fiscalizar a feira municipal de um lugarejo vizinho, e passou o dia fora. Só chegou à meia-noite, completamente embriagado. Marina se descontrolou e deu um escândalo com ele, chamando a atenção dos vizinhos. Gritou para ele que aquela seria a primeira e a última vez que ele saía para beber. Disse que não sabia que ele tinha esse vício miserável, e que casou enganada. E que ele teve a sorte de se casar com uma moça virgem!

Solano adormeceu em berço esplêndido, e as palavras agressivas da mulher entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Esse domingo, portanto, foi perdido para Marina. E foi também a primeira das várias decepções que viriam pela frente.

No dia seguinte, pela manhã, Marina soube por um companheiro de farra de Solano, que os dois tinham ido a uma vaquejada, um dos divertimentos preferidos dos homens daquela região.

Essa história de “fiscalização da feira” era conversa “pra boi dormir”! Pura mentira!

Marina “enlouqueceu” de raiva, e entrou no quarto onde o marido ainda dormia, aos gritos:

– Seu safado, você me enganou! Disse que ia fiscalizar uma feira , e foi farrear numa vaquejada. Chegou à meia-noite, e completamente bêbado! Você está pensando que eu sou o que? Você casou comigo, e eu era uma moça! Eu era virgem! Eu vou embora desta casa!!!

Solano despertou, com cana dormida, e pegou brabo, dizendo impropérios com a mulher:

– Quer ir embora? Pode ir!!! Mas não é mais moça!!! Não tem problema não! Vou dar um jeito nisso!

E chamou a empregada, aos gritos:

– Maria, traz aí um pacote de cimento que está na despensa! Vou, agora mesmo, tampar essa mulher com cimento e devolver a virgindade dela!!!

Ouvindo isso, Marina saiu do quarto.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho quinta, 26 de janeiro de 2017

"DISQUE-AMIZADE"



Antes da era cibernética, a comunicação que servia de elo entre as pessoas distantes era a telefonia fixa.

A prestação do serviço telefônico, “145 – Disque-Amizade”, foi inaugurado em 1984.

Discávamos 145 e logo uma ou várias vozes atendiam ao telefone, estabelecendo-se uma conversa simpática, de pessoas geralmente solitárias, a fim de fazer amizades. Pela voz e pela qualidade da conversa, selecionávamos quem se mostrasse mais interessante, e os contatos eram constantes, com hora marcada para a conversa telefônica. Daí surgiam boas amizades, namoros e até casamentos. Havia também muita decepção, pois algumas pessoas trocavam os números dos seus telefones, e continuavam, na conversa reservada, mentindo da mesma forma.

telefone-verde-fixo

Na conversa coletiva, os participantes costumavam usar pseudônimos, pois ali, inicialmente, todos eram desconhecidos. A “brincadeira” era divertida, e servia de lenitivo às pessoas solitárias, desiludidas, e esperançosas de encontrar ou reencontrar um amor.

Muitas viúvas solitárias, mulheres divorciadas ou separadas, atravessando fases de depressão, ligavam o 145 e tinham a sorte de encontrar alguma pessoa boa para conversar. Dessas conversas, às vezes, surgiam amizades sinceras, que com o tempo se solidificavam.

Os homens, cuja natureza é de caçador, estavam sempre à procura de novas caças.

Emanuel, um rapaz de 28 anos, bonito, bem empregado e bem-nascido, através do “145” se apaixonou pela voz de Nina, uma jovem que dizia ter 23 anos, era muito rica, e cujo pai era um verdadeiro carrasco. Trocaram os números dos respectivos telefones e passaram a conversar diariamente. Com o tempo, os dois estavam apaixonados e Nina lhe sugeriu um encontro, para que se conhecessem pessoalmente. Combinou, então, para se encontrar com ele na Av. Hermes da Fonseca, perto do Quartel do Exército. No dia e horário marcados, o rapaz chegou ao local combinado, vestindo a roupa também combinada. Esperou das 15 às 18 horas pela moça, que não apareceu.

Emanuel voltou para casa decepcionado e jurou que nunca mais entraria no “disque-amizade”. No dia seguinte, logo cedo, Nina lhe telefonou se desculpando, e jogando a culpa no pai por ter faltado ao encontro. Para compensar, convidou o rapaz para um encontro em Olinda (PE) no fim de semana vindouro, pois lá ela contaria com a cumplicidade de uma tia. Viajariam separados, mas ficariam no mesmo hotel, cujo nome ela sugeriu. Muito apaixonado, e curioso para conhecer pessoalmente a musa que povoava os seus sonhos, Emanuel aceitou o pedido de desculpa e também o convite para que os dois fossem se encontrar em Olinda. Reservou o hotel e aguardou, com ansiedade, o fim de semana. Nessas alturas, suas duas irmãs já estavam sabendo que ele estava apaixonado, e torciam para que o encontro desse certo.

A sexta-feira chegou, e Emanuel viajou no seu Fusca para Olinda, ansioso pelo grande encontro. Não se cansava de imaginar como seria o rosto e o corpo de Nina. Apaixonadíssimo, apostava no destino, e tinha certeza de que estava indo ao encontro da “mulher da sua vida”.

Chegando ao Hotel Santo Amaro, onde fizera reserva para um casal, Emanuel instalou-se no apartamento. Tomou banho, vestiu uma roupa da melhor qualidade, e ficou aguardando Nina, que, pelo combinado, deveria ter chegado pela manhã à casa da tia.

Anoiteceu, chegou a madrugada, e raiou um novo dia. Nina não chegou nem mandou notícia. Terminou o fim de semana e no domingo à tarde, Emanuel retornou a Natal, arrasado. Adeus às ilusões. Outra decepção, que, dessa vez, pôs fim, definitivamente, ao seu sonho de amor. Nina não passava de uma tratante, e estava zombando dos seus sentimentos. Nunca mais entraria no “disque-amizade”, nem queria mais ouvir a voz de Nina.

Com a decepção estampada no rosto, Emanuel entrou em casa cabisbaixo, e contou às irmãs o “bolo” que, mais uma vez, havia levado de Nina. As duas moças ficaram revoltadas e decidiram descobrir quem seria essa tal moça.

Nessa época, os Catálogos Telefônicos anuais traziam o número do telefone, o nome e o endereço do usuário. Com a paciência de Jó, as duas moças, tendo em mãos o número do telefone da suposta Nina, conseguiram descobrir o nome e o endereço do dono do telefone. Uma delas discou o tal número, o dono atendeu e se identificou. Ela também se identificou e pediu para lhe falar pessoalmente sobre um assunto muito desagradável. Gentilmente, o homem a recebeu no seu local de trabalho, uma conhecida rádio de Natal. Tratava-se de um comentarista esportivo muito atuante nesta capital.

Mara contou-lhe, então, o envolvimento do seu irmão Emanuel com uma jovem chamada Nina, que usava o telefone dele. Disse que o irmão tinha sofrido uma grande decepção com a jovem, que, aliás, ele só conhecia pelo “disque-amizade”. Ela tinha combinado um encontro com ele em Olinda (PE) no último fim de semana, induzindo-o a fazer reserva em hotel, e lá não apareceu nem lhe deu satisfação. Falou também que, antes disso, a jovem havia pedido para se encontrar com seu irmão, nas imediações do Quartel do Exército, indicando o local certo onde ele deveria ficar. Depois de esperar três horas pela moça, o irmão teria retornado à sua casa, disposto a não querer mais conversa com ela. Entretanto, no dia seguinte, a jovem lhe ligou, pedindo desculpa e atribuindo a impossibilidade de ir ao encontro ao pai, que era um carrasco. Então, ela sugeriu a ideia dos dois irem se encontrar em Olinda.

Para surpresa da irmã de Emanuel, o homem falou que morava com a mãe, dona Matilde, uma senhora de oitenta e seis anos, que sofria de obesidade mórbida, e passava o dia todo em casa, somente com uma empregada doméstica. Disse também que Dona Matilde era viciada no “disque-amizade”, coisa que ele não podia proibir, pois era o seu maior divertimento.

Pois bem: A jovem Nina, de voz bonita e sensual, por quem Emanuel se apaixonou perdidamente, na realidade, era Dona Matilde, de oitenta e seis anos, e que sofria de obesidade mórbida. A mulher entrava diariamente no “disque-amizade”, e usava a cada dia um pseudônimo diferente. Fazia uma voz estudada, e facilmente se fazia passar por uma mocinha. Nessa brincadeira, arranjava “namorados”, que sempre se apaixonavam pela sua voz.

Convém salientar que, no dia combinado para o primeiro encontro, da janela do seu apartamento, Dona Matilde reconheceu Emanuel e deu ótimas gargalhadas, ao vê-lo olhar constantemente para o relógio. As características que o rapaz lhe havia dado do seu tipo físico, e a cor da roupa com a qual disse que iria vestido, não davam margem a equívoco. Emanuel foi mais um dos apaixonados por Nina, Tereza, Fátima, Sílvia, ou outros pseudônimos usados por Dona Matilde.

Com o advento da internet, o “disque-amizade” caiu no desuso, perdendo a utilidade. Continua, apenas, na nossa memória, como uma lembrança boa, de um tempo em que ainda não existia a violência exacerbada de hoje. É coisa do passado.

Os homens, cuja natureza é de caçador, estavam sempre à procura de uma nova caça. As mulheres, de um modo geral, alimentavam a esperança de que naquela linha telefônica estaria traçado o seu destino. Acreditavam que a felicidade estava a caminho, e elas iriam encontrar um amor, ou um novo amor, para substituir o que haviam perdido.

Atualmente, o 145 perdeu a utilidade; e hoje o “Disk Amizade” é só uma lembrança em algum blog, na seção de antiguidades.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho quarta, 25 de janeiro de 2017

O MILHAR

 


Zequinha era um sapateiro “lambe-sola”, bom no ofício, mas dominado pela bebida. O que ganhava gastava com cachaça. Bebia diariamente, e dizia que não parava de beber, com medo de ter ressaca e não poder mais trabalhar. Tinha certeza de que ficaria acamado, se deixasse a bebida. Todos os dias, tinha que tomar algumas chamadas de cana. Era um homem inofensivo, humilde e simpático.

Conformado com a sua vida solitária, Zequinha havia desistido de casar, pois nenhuma mulher quis se sujeitar à sua bebedeira e à sua vida desregrada.

Também era viciado em jogo de bicho, e diariamente fazia uma fezinha. Quando ganhava, era pouco dinheiro, no grupo.

Um certo dia, Zequinha jogou no bicho e, dessa vez, acertou no milhar. Ganhou um bom dinheiro, que lhe garantiria a sobrevivência por algum tempo, se não torrasse todo em cana. Foi logo receber o prêmio e guardou no bolso, com todo o cuidado.

Muito feliz com o dinheiro ganho no jogo do bicho, dirigiu-se logo à Loja “Guararapes”, e comprou uma muda completa de roupa. Noutra loja, comprou um par de sapato “Conga”. Dirigiu-se ao barraco precário onde morava e tomou um banho de cuia, para trocar os trapos com que andava vestido.

Depois que se aprontou, pôs de molho num tanque com água e sabão a roupa velha que usava, e que daria de esmola. Saiu, então, todo faceiro, para festejar sua sorte num bar de gente rica, que nunca pôde frequentar. Nesse bar, às vezes, ele ficava somente pitigorando os petiscos e bebidas caras que os ricos consumiam.

A notícia do prêmio de Zequinha, entretanto, já havia se espalhado. Entrou no Bar da Jia, de cabeça erguida, pediu logo whisky e uma refeição para matar a fome. Logo se embriagou, fez discurso, disse que agora estava rico, e que, . finalmente, a sorte tinha olhado para ele.

Já tarde da noite, pôs a mão no bolso para pagar a conta, coisa que nunca tinha podido fazer na vida, e o bolso estava vazio. Pensou logo que havia sido roubado. A confusão foi grande. Depois, adormeceu na mesa do bar e só acordou pela manhã. Veio-lhe, então, à memória, as roupas velhas que tinha posto de molho em água e sabão. Empalideceu e correu para casa. A sua decepção foi grande. O dinheiro que ganhara no milhar e que guardara no bolso da calça velha, estava de molho junto com toda a roupa. Todas as notas haviam perdido a cor e não houve jeito de recuperar.

Dizem que o “bicho” dá e o bicho “come”. Mas, nesse caso, quem comeu mesmo foi água e sabão.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 20 de janeiro de 2017

O SÓSIA

Clodomiro, funcionário público federal, nível médio, era lotado na Junta de Recursos da Previdência Social/RN. Viúvo, vivia para os filhos, e durante muitos anos fez as vezes de pai e mãe. Não teve coragem de casar novamente, pois os filhos pré-adolescentes jamais aceitariam alguém no lugar da venerada mãe. Mas a viuvez e a grande responsabilidade que lhe pesavam aos ombros mexeram muito com o seu lado emocional e Clodomiro tornou-se alcoólatra.

 

 

Gostava muito de olhar pelo retrovisor do tempo e relembrar seus momentos de glória, durante a juventude. Trazia sempre consigo uma pequena pasta, contendo fotografias suas, de perfil ou de frente, em tamanho postal, e sempre fazendo pose de galã. Em algumas fotos, aparecia com um cigarro nos lábios ou na mão. Seu maior orgulho era dizer que quando era jovem, na época da Segunda Guerra Mundial, as mulheres o confundiam com o ator americano Clark Gable, “artista” principal, do inesquecível filme “E o Vento Levou.” Era convencido de que tinha sido um rapaz belíssimo e ainda fazia pose quando andava, colocando sempre as mãos nos bolsos, e andando compassadamente.

Mesmo beirando os sessenta anos, ainda se considerava bonito, e seu porte físico o ajudava a manter a postura de um homem bem mais jovem. Ainda caprichava na cabeleira. Andava com um pente “flamengo” no bolso, e um pequeno espelho redondo. Uma vez por outra, era flagrado se penteando e se olhando no espelho. Lógico que estava se achando bonito. Isso era alvo de brincadeira dos colegas, no ambiente de trabalho.

As namoradas que Clodomiro arranjou depois de viúvo, enquanto era mais moço, foram “amores passageiros” e “paixões sem amanhã”.

Com a ajuda de amigos e a sua força de vontade, frequentou a comunidade dos Alcoólicos Anônimos e conseguiu se curar da terrível doença do alcoolismo.

Gostava de contar que, no auge da sua beleza e das conquistas amorosas, mandara confeccionar uns cartões de apresentação, onde, no lugar do seu nome verdadeiro, constava apenas ” Seu C – Agente Americano”. Esse pseudônimo era uma homenagem ao seu ídolo e “sósia” Clark Gable. Ele botou na cabeça que era o próprio galã. Nessa época, frequentava a vida boêmia da cidade, e uma vez por outra se metia em confusões. Era nessas horas que ele puxava o cartão de apresentação e dizia com voz altiva:

– Vocês sabem com quem estão falando?

– Estão falando com Seu “C”, Agente Americano!

Era água na fervura. Os forasteiros logo se afastavam, temendo o tal “Agente”.

Na Repartição, Clodomiro não podia ver ninguém dar uma pausa no serviço, nem mesmo para tomar um café, que, imediatamente, abria sua inseparável pasta e tirava uma fotografia sua e outra de Clark Gable, para que os colegas vissem que ele não vivia mentindo e que realmente os dois eram muito parecidos. Gostava de dizer que, se fossem irmãos, talvez não se parecessem tanto. Para lhe agradar, todos os colegas, e até o Chefe, concordavam com ele. Afinal, não custava nada alimentar a vaidade de um homem tão sofrido, que parara no tempo para se dedicar aos filhos, e, com força de vontade, conseguira se curar da terrível doença do Alcoolismo.

Clodomiro, dentro da sua humildade, era um homem educado e atencioso, o que o tornava muito querido pelos colegas de trabalho. Adorava relembrar seu sucesso com as mulheres, no tempo da Segunda Guerra. Contava que, por causa do seu porte de galã e seus belos olhos verdes, era confundido com os soldados americanos, e que a Guerra, para ele, havia sido “formidável”. Natal concentrava um grande número de soldados americanos e ele tirava proveito disso. Conseguia frequentar os bailes dos americanos, e dançava Foxtrote melhor do que eles. Dançava com as moças mais bonitas, escolhidas a dedo. Contava que nunca havia levado um fora, e que falava com a língua enrolada, num “inglês sem mestre”, para impressionar. Essa foi a fase áurea da vida de Clodomiro.

E o Chefe da Repartição, de tanto ouvir Clodomiro contar suas estripulias no tempo da guerra, por brincadeira, uma vez por outra o chamava de “Seu C”. E ele ficava feliz da vida.

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho terça, 17 de janeiro de 2017

A CAMINHONETE

 

Adamastor era um engraxate, que, na década de 60, atendia aos fregueses na Praça Padre João Maria, bairro da Cidade Alta, em Natal (RN). No final da tarde, guardava seus apetrechos no estabelecimento de um sapateiro “lambe-sola” (consertador de calçados), seu amigo Osvaldo, um homem fanático por Aluízio Alves, na época, governador do Estado. Convém salientar que Seu Osvaldo só usava camisa verde, símbolo do partido político do seu ídolo, e as paredes do seu minúsculo ponto comercial eram totalmente decoradas com fotos desse homem, que exerceu grande liderança política no Estado, durante muitos anos. Além disso, o sapateiro também mantinha na parede externa do seu estabelecimento de trabalho, onde também morava, uma grande bandeira verde. Era uma figura folclórica.

Adamastor, à noite, ganhava dinheiro pastorando carro. Sua freguesia era constituída de frequentadores do Cine Nordeste, localizado na Rua João Pessoa, por sinal, bem perto da Praça Padre João Maria.

 

caminhonete

 

Antes disso, jantava um cachorro-quente “Sebosão”, enorme, que tinha tudo o que o diabo gosta: carne moída gordurosa, salsichão da pior qualidade, frango com muita graxa, vinagrete, e uma cobertura generosa de “ketchup” e maionese. Dentro de uma mochila, trazia sempre uma garrafa de pinga e um copo. Trazia também um depósito com água.

À noite, depois que se transformava em pastorador de carro, Adamastor aproveitava para tomar suas chamadas de cana, quando não havia ninguém olhando. Bebia moderadamente e nunca foi visto embriagado.

Adamastor já era uma figura conhecida na redondeza, e de muita confiança. Tinha seus fregueses cinéfilos, que deixavam seus carros estacionados perto do cinema, aos seus cuidados, e lhe pagavam bem. E ai dos malandros que se aproximassem dos carros que pastorava. Ele gritava, mandando-os “desarredar” imediatamente. Para demonstrar zelo, mantinha sempre nas mãos uma flanela molhada, com a qual tirava a poeira dos carros.

Certa noite, Dr. Mesquita, um advogado muito conhecido na cidade, confiou-lhe sua luxuosa e recém adquirida caminhonete, enquanto iria com a esposa ao “Cinema de Arte”, sessão das 21 horas, no Cine Nordeste.

Como o filme era de longa-metragem e só terminava à meia noite, Dr. Mesquita pediu ao pastorador que redobrasse o cuidado.

Nessa noite, Adamastor se excedeu na cachaça, e ficou ainda mais cuidadoso, principalmente com a caminhonete “zerinho” do doutor. Para se sentir mais seguro, resolveu providenciar um “cacete”, para usar contra qualquer malandro que tentasse bulir nos carros. Nesse tempo, ainda não havia assalto nem roubo de carro em Natal.

Depois que a sessão de cinema terminou, o advogado foi pegar seu veículo e notou que Adamastor estava muito nervoso, pois, quando o avistou, foi logo dizendo em voz alta:

– Graças a Deus, doutor, o senhor chegou!

E Dr. Mesquita perguntou:

– Está tudo bem, Adamastor? Aconteceu alguma coisa?

Então, o pastorador respondeu:

– Agora tá tudo bem, doutor. Mas passei um susto danado! Tava tudo calmo e de uma hora pra outra apareceu um moleque taludo, querendo mexer no trinco da caminhonete do senhor. Parece até que eu tava adivinhando, pois já tava com a arma na mão. Dei uma grande surra de cacete no safado, mas ele conseguiu fugir correndo. Fiquei o resto do tempo “cubando” se ele voltava, mas o ladrão desapareceu de vez.

O “cacete” a que Adamastor se referiu foi, nada mais, nada menos, do que a antena da caminhonete de luxo, novíssima, do advogado, que ele continuava segurando.

Como a causa foi justa, Dr. Mesquita guardou a antena, agradeceu e deu uma nota graúda ao pastorador.

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho sábado, 14 de janeiro de 2017

TUPI (CRÔNICA DA MADRE SUPERIORA VIOLANTE PIMENTEL, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

Tupi era o mais inteligente e o mais dócil dos cães. Brincava com as crianças da rua e disputava com elas todos os brinquedos. Era um companheiro incansável. Dava gosto vê-lo atirar-se à piscina e agarrar os brinquedos que os filhos do seu dono lhe atiravam, o mais longe que podiam. Repetia essa tarefa até que os meninos se cansassem. Segurava os brinquedos com a boca, e os trazia como se fossem troféus. As crianças vibravam, com a rapidez com que o cão resgatava os brinquedos atirados à água.

Essa brincadeira recomeçava vinte vezes, sem cansar nunca a paciência de Tupi. Depois, vinham as corridas, lanches, gargalhadas, saltos, até que o assobio de um empregado da fazenda chamava o fiel animal às suas obrigações. Corria, então, como um raio, para escoltar as vacas que eram levadas aos pastos, e impedi-las de entrar nas terras do vizinho.

 

Triste de quem ousasse saltar o muro da fazenda para roubar. Uma vez, o cão deu prova de extraordinária sagacidade. Um desocupado pulou o muro, à noite, e tentou furtar uma saca de batatas. Tupi, como um exímio vigilante, esperou que ele procurasse o caminho da saída, levando a saca na cabeça, e o agarrou pela camisa, sem o largar.

Era como se dissesse: “Onde você pensa que vai, levando as batatas do meu dono?”

O homem quis pôr o saco no local de onde o tinha tirado, mas o cachorro não deixou, mantendo-o seguro pela camisa até de manhã, sem o ferir ou morder. O dono da fazenda, logo cedo, levantou-se e encontrou Tupi nessa difícil posição. Repreendeu o malfeitor, que tremia de medo, e ameaçou de mandar prendê-lo, em caso de reincidência.

O ladrão, porém, ficou com ódio do cão, e, alguns dias depois, voltou a pular o muro da fazenda. Aproveitando a ausência do fazendeiro e dos filhos, chamou Tupi, que correu para ele sem desconfiança. Sem que o caseiro visse, atou uma corda ao pescoço do cachorro e o arrastou até à margem do rio, num local sinalizado como perigoso. Atou à outra ponta da corda uma grande pedra, e, levantando o animal, jogou-o à água. Com o esforço e com o peso do cachorro, o homem se desequilibrou e também caiu no rio, no mesmo local onde acabara de jogá-lo. Como diz o ditado popular, o feitiço virou por cima do feiticeiro.

Como não sabia nadar, o covarde, apavorado, viu-se perdido. E teria morrido afogado, se não fosse o corajoso Tupi. Obedecendo ao seu instinto de salvador, e desembaraçando-se da pedra mal atada, o fiel cão de guarda mergulhou duas vezes, trazendo para terra o seu perigoso inimigo.

Esse ladrão, que já estava quase desmaiado, compreendeu, quando voltou a si, que o cão, que ele tinha querido afogar, salvara-lhe a vida.

Envergonhou-se do ato miserável que praticara e, desde esse dia, deixou de praticar ações violentas.

O exemplo do cão corrigiu o homem.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 13 de janeiro de 2017

O ANTIDISTÔNICO

Perpétua, 50 anos, era servidora pública federal, de nível médio. Tornou-se solteirona juramentada, não por vontade própria, mas porque não encontrava mais nenhum homem para namorar. Sofria muito com isso, pois era quente, e foi acostumada a estar sempre em ação, não passando sem namorado. Vivendo sempre o presente e sem se apegar a ninguém, agora cinquentona passou a sentir solidão. A idade foi deixando Perpétua deprimida. Ultimamente, tinha a sensação de haver passado repelente no corpo, pois não atraía mais nenhum homem. Convenceu-se de que, com a idade que estava, não poderia mais concorrer com as garotas de “carne dura”, tudo no lugar, e com os hormônios fervendo. Tornou-se uma mulher amarga e desiludida, sem esperança de encontrar um companheiro. Das três irmãs, foi a única a ficar "pra titia".

 

 

O peso dos anos tornou a moça depressiva. O mau-humor passou a ser sua característica, a ponto de afastar os amigos e colegas de trabalho. Passou a não suportar brincadeiras, mostrando-se sempre irritada. Em suma, tornou-se uma pessoa extremamente chata e de difícil convivência.

Quando chegava à repartição, dava um “bom dia” de cabeça baixa. Se já estava no birô e chegava alguém, respondia ao cumprimento resmungando. Se fosse o Chefe que chegasse, respondia ao cumprimento, e nas suas costas lhe estirava o clássico dedo médio. Os colegas ficavam com vontade de rir e ao mesmo tempo revoltados, pois o Chefe era uma excelente pessoa e não merecia esse desrespeito. Perpétua tornou-se uma pessoa intratável.

Dr. Pedro Corsino, um dos melhores Psiquiatras de Natal, era amigo de infância de Perpétua e por ela sentia grande apreço. Os dois mantinham uma amizade fraterna. Ao tomar conhecimento do estado depressivo da amiga, Dr. Pedro telefonou-lhe, pedindo que fosse ao seu consultório, para colocarem os assuntos em dia. Uma forma inteligente de forçar a amiga a lhe fazer uma consulta. No dia e hora marcados, Perpétua avisou na repartição que iria ao médico.

Vestiu-se com uma saia preta cobrindo os joelhos, uma blusa de cor sóbria, de mangas compridas e decote alto. Não usou qualquer adereço nem pintura, nem se preocupou em arrumar o cabelo. Perpétua foi muito bem recebida pelo amigo, que logo percebeu o estado depressivo em que se encontrava. Conversaram muito, relembrando pessoas e fatos da infância e da juventude dos dois. Num dado momento, a moça disparou num choro compulsivo, abrindo as torrentes de sua alma e extravasando suas angústias e o medo da velhice, que estava se aproximando.

Dr. Pedro deixou que a amiga chorasse até cansar. Deu-lhe um copo de água com açúcar, e lhe pediu para que retornasse ao seu consultório no dia seguinte, àquela mesma hora. Mas lhe fez as seguintes recomendações:

– Perpétua, quero que você venha aqui amanhã, a essa mesma hora, mas preste atenção:

– Quero ver você com um vestido bonito e decotado, esses peitos quase de fora, brinco e colar, batom vermelho e cabelo arrumado! Você é muito bonita, mulher! Reaja a essa tristeza! Você dá de dez a zero em certas mocinhas que só tem minhoca na cabeça! Você tem tudo para ser uma mulher feliz! Nem só de pão vive o homem! Há muitos casamentos que não dão certo! Olhe-se no espelho, e veja que você ainda está em forma, e “dá vários ponches”!!! Procure suas amigas e volte a frequentar a noite e a se divertir, viajar, enfim, viver!

Perpétua voltou no dia seguinte ao consultório, bonita como antes, e produzida conforme as recomendações do amigo psiquiatra.

A transformação de Perpétua na repartição logo foi percebida.

Esse foi o melhor antidistônico que lhe foi receitado…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho segunda, 09 de janeiro de 2017

A DESPEDIDA

Há várias décadas, em uma conhecida capital nordestina, morreu um advogado criminalista, de renome, Dr. José Paz. O fato comoveu a cidade, por se tratar de uma pessoa muito querida, grande orador, e cuja atuação no tribunal do Júri tinha um público cativo. O velório ocorreu na sua própria residência, como era costume da época. Prolongou-se por toda a noite, tendo sido marcado o sepultamento para 16 horas. Após a cerimônia de encomendação do corpo, feita pelo Bispo da Diocese, veio o momento de maior emoção, quando começaram as despedidas da viúva e das três filhas, que, inconsoláveis, não paravam de beijar o morto.

O sepultamento ocorreu no principal Cemitério da cidade, com homenagens de vários oradores, amigos e colegas de profissão do falecido.

O advogado tinha um motorista de toda confiança, Gonçalo, há mais de dez anos, que era uma espécie de “faz-t

udo”. Além de dirigir, fazia seus pagamentos, e era também seu “segurança”. Cria da casa e filho de uma antiga empregada da família, Gonçalo, quando estava de folga, gostava de tomar umas biritas. A morte repentina do patrão mexeu com os seus sentimentos e fez com que passasse o dia enchendo a cara. Sentia-se desolado, e não sabia como seria sua vida a partir daquele triste dia. E tomou um porre homérico.

Quase na hora marcada para a saída do enterro, entre os soluços da esposa e filhas do advogado, ouviu-se um choro alto, de alguém que se aproximava do caixão. Era o motorista, completamente embriagado, que queria se despedir do seu patrão, protetor e quase pai. O “pau d’água” beijou as mãos entrelaçadas do pranteado advogado, e, com voz pastosa, proferiu frases de gratidão e saudade. Não contendo a emoção, desabou num choro compulsivo e engasgou-se com saliva. Começou a tossir quase cuspindo no defunto, e terminou passando um vexame: Sua dentadura superior caiu entre as folhas e flores do caixão, e quanto mais ele tentava pegar, mais ela escorregava, até sumir completamente. Desesperado e de boca murcha, Gonçalo pedia ao patrão que o ajudasse, chamando a atenção das pessoas ali presentes.

Nesse ínterim, chegou o momento de ser fechado o caixão, para que fosse iniciado o cortejo fúnebre. Como o motorista não aceitava se afastar, foi retirado quase à força, sob protestos veementes. Ao se afastar do caixão, sem recuperar a dentadura, Gonçalo fez o último apelo ao patrão:

– Vá com Deus, patrão! Mas antes disso, devolva minha “chapa”, com o meu lindo sorriso!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 06 de janeiro de 2017

A FORMATURA



Arnaldo, quarenta e cinco anos, funcionário público federal, era um homem muito estressado. Na repartição onde trabalhava, eram comuns suas respostas grosseiras aos subalternos e até aos seus colegas de cargo. Por diversas vezes, foi visto enraivecido, rebolando no chão pilhas de processos, numa demonstração de desprezo pelo serviço que fazia.

Os processos que recebia e nos quais tinha que colocar despachos de encaminhamento à chefia, viraram uma rotina que mexia com seus nervos. 

 

 

Ele e a esposa Célia sempre foram funcionários públicos federais, mas em repartições diferentes. Os dois filhos do casal estavam com dez e doze anos. Não tinham empregada doméstica, e comiam de marmita, há vários anos. Levavam uma vida metódica e pacata. Ele controlava as despesas da casa e organizava tudo na ponta do lápis. Não faziam gastos supérfluos. A esposa, para galgar um cargo melhor dentro do serviço público, resolveu fazer o curso de Direito. Em casa, Arnaldo era sobrecarregado de afazeres domésticos e assistência aos filhos.

Chegou o grande dia da formatura de Célia. Foram quatro anos de luta, sono atrasado, trabalhos em grupo e pouca assistência aos filhos. A formatura foi esperada com ansiedade por Célia, Arnaldo, filhos e familiares dos dois lados do casal. Arnaldo, eufórico, não cabia em si de contentamento, em ver “sua” Célia bacharela em Direito. Novos horizontes se abriam para o casal. Com certeza, Célia logo faria um concurso público para um cargo de nível superior, e sua aprovação seria certa, pois vivia para o trabalho, filhos, marido e para os estudos. Arnaldo sentia-se realizado. Dois filhos já crescidos, estudiosos e sadios, a esposa formada em Direito, e ele, funcionário do INPS. Formado em Ciências Contábeis, aguardava a ascensão funcional, que na época existia, para mudar do cargo de Agente Administrativo para Auditor Fiscal. E agora a perspectiva da “sua” Célia subir muito na vida. Cheio de vaidade, não se cansava de comentar com as pessoas amigas:

“A minha Célia vai ser uma grande Procuradora, Promotora ou Juíza”!

Dois meses depois da formatura de Célia, Arnaldo chegou à repartição visivelmente contrariado, vermelho de raiva. Mal cumprimentou os colegas, e sentou-se ao birô, resmungando impropérios. Os colegas notaram logo que ele havia voltado àqueles dias de antigamente, em que pegava no arranco, de cinco em cinco minutos. Todos os colegas perceberam que alguma coisa muito séria estava acontecendo com ele. Afinal, a recente formatura da esposa tinha dado outro ânimo à sua vida, e ele passara a ser sempre bem-humorado. Queriam ajudar, conversar com ele, mas não havia chance. Silêncio total na sala. Como se estivesse fechado em um casulo, Arnaldo se limitou a carimbar os processos de cabeça baixa, recusando até o cafezinho, que era o seu fraco.

Algumas horas depois, o chefe chegou, cumprimentou todos os funcionários e se dirigiu ao seu gabinete. Arnaldo não respondeu nem levantou a vista. Simplesmente, ignorou a entrada do Dr. Eduardo, um homem extremamente educado.

O Presidente do Órgão notou o comportamento estranho de Arnaldo, e pediu à Secretária que o chamasse até o Gabinete.

Imediatamente, Arnaldo se viu diante do chefe, que lhe perguntou se estava passando por algum problema.

A resposta veio rápida:

– Estou sim, Dr. Eduardo! Estou desesperado! Quando eu pensava que agora as coisas iriam melhorar, a mulher formada em Direito e os meninos já com 10 e 12 anos, recebi uma notícia que me tirou de tempo! Minha Célia me comunicou que está grávida! O caçula já com 10 anos!!! Não posso suportar uma irresponsabilidade dessa! Estou até sem falar com ela, de tanta indignação!

Ironicamente e com o bom humor que lhe era peculiar, o chefe perguntou:

– A doutora Célia disse quem é o pai?

Arnaldo gaguejou, e viu o papel ridículo que estava fazendo…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho domingo, 01 de janeiro de 2017

O ORADOR



Eurico não era advogado, mas tinha mania de fazer discurso. Protético, residia em Natal e gostava muito de aparecer. Estava sempre procurando, no Dicionário da Língua Portuguesa, palavras difíceis, para encaixá-las nos discursos que escrevia. Como todo orador que se preza, trazia discursos gravados na memória, prontos para diversas situações.

 

 

A cidade estava consternada com a morte de Dona Berenice, 85 anos, verdadeiro patrimônio moral da família Salvino. Solteirona juramentada, piedosa e pura, a respeitável mulher passou pela vida incólume às delícias do amor. Deixava o seu exemplo de mulher decente, íntegra e despojada de vaidade, como modelo para as futuras gerações da sua família. Todos choravam, copiosamente, a sua partida. Os sobrinhos a tinham como uma segunda mãe e se sentiam órfãos. Já estavam acostumados à sua doce presença em todas as festas que faziam.

Apesar de não haver se casado e constituído família, a pranteada era mais mãe e avó dos sobrinhos, do que suas três irmãs casadas. Servia até de babá aos menores, quando as irmãs necessitavam de uma “mãozinha”.

Eurico organizava numa pasta os discursos que iria fazer, em cada velório a que comparecesse no ano que se iniciava. Fazia também uma lista com os nomes das pessoas idosas, que possivelmente iriam bater as botas a cada novo ano, de acordo com o seu pressentimento. E no bar que frequentava, eram feitas apostas em cima desses nomes, com prêmios em cervejas para quem acertasse.

Ao velório de Dona Berenice, chegou embriagado, levado por um companheiro de copo. Não estava muito a par da vida da santa mulher, mas já sabia as frases de efeito que diria.

Após a celebração da Missa de corpo presente, o homem se aproximou e proferiu seu discurso:

– Estamos diante de uma esposa extremada e uma grande mãe de família, que teve uma vida dedicada aos seus!!! Dona Berenice já está no Céu! Foi levada pelos Anjos, deixando aqui na terra o seu amantíssimo esposo e os seus filhos e netos, todos inconsoláveis, e aqui presentes! A Natureza chora! Mas o Céu se ilumina, e os espíritos de luz se regozijam com a sua chegada à Morada Celestial! Vá com Deus, Dona Berenice!

O homem inconsolável a que se referiu o orador, era Josias, irmão da falecida. Os jovens a quem apontou como seus filhos e netos, eram, na verdade, filhos e netos de suas irmãs casadas.

A família ficou indignada com o discurso e o orador ouviu poucas e boas.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 30 de dezembro de 2016

O CHOFER

O CHOFER

Violante Pimentel

 

 

Antigamente, não se falava em “motorista de táxi”. O que havia era “chofer de praça”. E na praça, concentravam-se os carros de aluguel.

O táxi, propriamente dito, apareceu historicamente quando foram aplicadas taxas à sua utilização, através do taxímetro, aparelho mecânico ou eletrônico, que mede o valor cobrado pelo serviço, com base em uma combinação entre a distância percorrida e a tarifa inicial. Foi inventado no século XIX, pelo alemão Wilhelm Bruhn.

Em Natal, o chofer de praça trajava sempre terno cáqui, camisa branca, gravata preta e sapatos pretos.

Seu Josias era um conhecido chofer de praça de Natal, educado, conversador e simpático, beirando os 60 anos. Era um contador de histórias. Muito supersticioso, não trabalhava no dia em que tinha um sonho mau. Se sonhasse com gato preto, urubu, sapato ou arrancando dente, sabia que, naquele dia, nada para ele ia dar certo, e preferia ficar em casa. Gostava muito de relembrar episódios de sua vida.

 

 

Contava que, antes de ser chofer de praça, tinha sido chofer de um caminhão misto e havia feito muitas viagens pelo sertão nordestino, transportando passageiros. Gostava muito da profissão, até que, num certo dia, em plena viagem, um dos passageiros do misto foi acometido de uma tremenda dor-de-barriga e ele viu-se obrigado a parar o carro na estrada, diversas vezes. O passageiro entrava correndo de mato a dentro, para satisfazer suas necessidades e voltava pálido e envergonhado. A viagem, nesse dia, sofrera um atraso enorme, o que o deixou bastante contrariado. Numa das paradas solicitadas pelo passageiro, para ir ao mato, disse seu Josias que também desceu e se dirigiu a uma casinha que avistou ao longe, em busca de alguma “meizinha” que curasse essa infeliz dor-de-barriga. Foi recebido por uma velhinha, que lhe perguntou:

– O senhor já experimentou dar o olho da goiaba a ele (o chá)?

Disse seu Josias que não gostou da pergunta e respondeu grosseiramente:

– Se depender disso, esse passageiro pode se acabar pelo fundo, feito balaio!

– A senhora é doida, dona? Vôtes!

E o chofer contou que voltou muito contrariado, e meteu o pé no acelerador, enquanto, nessas alturas, a catinga do passageiro empestava a boleia do misto. Ao chegar a Natal, deixou o passageiro no pronto-socorro e foi direto tratar de mandar lavar o carro.

Foi a última vez que dirigiu o misto. Ficou traumatizado com o ocorrido. Afinal, teve de parar o carro umas dez vezes, para que o passageiro corresse para o mato. A partir de então, abominou a profissão de chofer de misto

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N. E. - Violante Pimentel é escritora potiguar. Colunista do Jornal da Besta Fubana, vem agora enriquecer as páginas deste Almanaque, com seu texto inteligente, seguro e criativo, o que será grande aquisição cultural para todos nós.

 

Que Deus a guarde!


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