Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 26 de julho de 2019

RAPIDÍSSIMAS - 26.07.19

 

 

RAPIDÍSSIMAS

LAVOURA ARCAICA

A idiotia (individual ou coletiva) não é obra do acaso. Não mesmo. Ela é longa e sistematicamente cultivada.

MALDITA FELICIDADE

Ignorante todo mundo é. Mas só os ignorantes absolutos são absolutamente felizes. Pobres diabos. Donos de certezas inabaláveis, eles ignoram o tamanho da própria ignorância.

CAIU A FICHA

É tudo tão ligeiro, passageiro que só. Esquentar tanto, meu Deus, para quê?

QUEM ME DERA

Ser criativo, imaginoso. Mas criativa e imaginosa é a realidade.

CÁ ENTRE NÓS

Jovem pesaroso é um porre. Jovem pesaroso metido a poeta, um pé no saco. Pior que isso só velho que se julga adolescente.

QUEM DIRIA?

O apressado, depois de tanto apanhar, perdeu a pressa.

É SIMPLES

Se ninguém acredita mais na palavra empenhada, falar pra quê?

QUATRO DÉCADAS

Quando tudo parecia perdido, eles deram a volta por cima: voltaram a ser o que sempre foram: amigos, cúmplices para sempre.

RECOMEÇAR

Nunca é tarde pra partir.

POR AQUI, POR ALI?

Ora, se a gente tivesse certeza sobre o melhor caminho, a gente o percorria.

TEM JEITO NÃO

Envelhecer é acumular perdas. Mas, quem se dispõe a ir antes da hora?

ESTÁ ESCRITO

Homem que perde o trabalho, não importa sua história, com o passar do tempo vira estorvo. Para os outros e para si mesmo.

ESFORÇO EM VÃO

Trocou os aplausos fugazes pelo silêncio reconfortante. E continuou infeliz.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 19 de julho de 2019

QUASE HISTÓRIAS - O JIPE DO TIO

 

 

QUASE HISTÓRIAS: O JIPE DO TIO

– Oi. Tudo bem por aí, pai?

– Tudo, filho. E com vocês?

– Tudo em paz. Dudu está lindo.

– Daqui de cima, eu o vejo todos os dias. Está lindo mesmo. Como você conseguiu ligar?

– Não importa. A gente sempre dá um jeito.

– Não me faça passar vergonha. O céu é lugar recatado.

– OK. Estou com saudade. Tem lido?

– Muito. Quer dizer: quando tua mãe me deixa ler… Como fala, a tua mãe! Havia me esquecido desse detalhe.

– Ela está aí?

– Agora, não. Ela foi com Laura e Valésia, suas tias, fazer pudim para Pedro, o santo.

– Como assim?

– É aniversário dele. Vamos fazer uma festinha surpresa.

– Não sabia que santo faz aniversário.

– Faz. Por que não faria? O que mais, filho?

– Está com pressa?

– Estou. A vida é curta, preciso ler, aprender. Mas pode falar.

– Por aí a vida não é eterna?

– Depois te explico.

– Soube que tio Iraci está por aí.

– Está. Duro é encontrá-lo. Continua o mesmo. Bate pernas o dia todo. Só aparece para fazer as refeições. Vai ao purgatório, vai ao inferno. Não esquenta cadeira. Uma hora ainda se perde. Não volta para o céu.

– E tio Antônio?

– Também está por aqui. Ele sempre lhe manda beijo. Gosta de você. Continua o mesmo. Continua chamando Laura de “pamonha”. Com razão. Agora cismou, esse Antônio! Quer fazer piquenique. Mas quem há de trazer o velho jipe para o céu? Quem? Sem jipe não há piquenique…

– É.

– Amanhã, a gente se fala. Pedro está chegando, com cara de poucos amigos. Acho que o pudim desandou. Também pudera. Sua mãe e tias não param de falar.

– Sua benção, pai.

– Deus te abençoe. Não beba muito, largue o cigarro. Beijo.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 12 de julho de 2019

COISAS DE NONAS

 

 

COISAS DE “NONAS”

O neto ligou para a avó, a quem não via há mais de dois anos.

– Nona: tudo bem? É Pierino, seu neto.

– Eu sei. Pensei que não tivesse mais neto… Se eu morro, você fica sabendo pelo anúncio no jornal.

– A vida está corrida. Mas estou indo aí, para visitá-la. Vou levar a Jussara para a senhora conhecer.

– Quem é essa?

– Minha nova mulher.

– Coitada. Mais uma vítima. Mas venham.

– Daqui a meia hora estaremos na sua casa.

– No prédio, as coisas mudaram um pouco. Quando você chegar, aperta com o cotovelo o botão do porteiro eletrônico. Abro a porta aqui de cima. Depois, no elevador, aperta com o cotovelo o 3. Moro no 32. Quando chegar, toca com o cotovelo a campainha. Entendeu?

– Entendi, entendi, Nona. Só não entendi por que tenho que apertar todos os botões com o cotovelo.

– Puta que o pariu. Você fica sem aparecer mais de dois anos e me vem com as mãos abanando?

* * *

E POR FALAR EM NONA…

O Nono estava no bico do corvo. O médico chamou a família:

– O quadro do Nono é gravíssimo, irreversível. Não temos mais nada a fazer por ele. Melhor levá-lo para casa, para que ele possa ficar perto dos filhos, netos, bisnetos… Segundo me disse, gostaria de morrer em casa.

E assim foi feito.

A casa do Nono parecia um Corinthians X Palmeiras, em final de campeonato, de tão lotada.

Embora moribundo, o Nono mantinha faro apurado. Chamou um dos bisnetos e lhe disse:

– Vá até a cozinha e peça dois pastéis pra Nona: um de carne e um de queijo. Adoro pastéis.

O pirralho foi e voltou de mãos abanando.

– Cadê os pastéis? – quis saber o Nono, impaciente, lutando contra o tempo.

O bisneto foi direto ao ponto:

– A Nona me disse que os pastéis são para o seu velório.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 05 de julho de 2019

RAPIDÍSSIMAS - 05.07.19

 

 

RAPIDÍSSIMAS

ASAS À IMAGINAÇÃO

Os solitários não precisam ser necessariamente infelizes. Afinal, eles podem reinventar o mundo.

Todo santo dia.

BOTEM REPARO

Quem é sempre do contra nunca é a favor de nada. Ou seja: não tem serventia alguma.

BOTEM REPARO II

Quem assobia não come.

BOTEM REPARO III

Nem todo tatuado, evidentemente, é bandido. Mas todo bandido é tatuado.

CONTRA A CORRENTE

Ruim com ele… Melhor sem ele.

ACASO

Quando um não quer, dois não ficam. A não ser que apareça, de onde menos se espera, um personagem como J. Pinto Fernandes, de Carlos Drummond de Andrade (QUADRILHA).

ESFORÇO EM VÃO

Trocou os aplausos fugazes pelo silêncio reconfortante. E continuou infeliz.

TOLICES

Nem todo dito popular é despropositado. Querem ver? “A pressa é inimiga da perfeição”. Ora, quem padece de ejaculação precoce sabe disso.

DE HOMEM PARA HOMEM

Com um frio danado desses, só há uma forma de amor possível – a platônica.

OS MELHORES AMIGOS

São os de quem gosto. São muitos? São poucos? São velhos? São novos? São reais? São virtuais? Não sei. Mas que importa? São os de quem gosto muito.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 28 de junho de 2019

CADA UM COME O SEU

 

CADA UM COME O SEU…

 

O caipira tinha dinheiro de sobra, gostava de ostentar seus carrões, roupas de grife e correntes de ouro, não abria mão de frequentar restaurantes caros. Mas não gostava de passar por jeca – sejamos francos: ninguém gosta de passar por jeca, ainda mais se for jeca.

Certa feita, nosso matuto veio para a capital a negócios. Resolveu jantar num restaurante chique. A desgraça é que ele não tinha a menor ideia do que pedir para comer e beber. Não entendia o que estava escrito, em francês, no cardápio. Escolheu sua mesa a dedo. Ao lado da mesa de um grã-fino.

– Garçom, me traga o prato de sempre – pediu o bacana, frequentador assíduo da casa.

O caipira não deixou por menos:

– Dois.

O bacana pediu ao garçom “o vinho de sempre”.

E o caipira:

– Dois.

Nosso jeca foi nessa batida até a hora da sobremesa. O bacana estava a ponto de estourar. E estourou:

– Garçom, isso aqui está insuportável. Quero o manobrista.

– Dois, pediu o caipira.

– Escuta aqui, cidadão: um manobrista dá para os dois.

O caipira retrucou:

– Nada disso! Cada um come o seu.

– Garçom, isso aqui está insuportável. Quero o manobrista.

– Dois, pediu o caipira.

– Escuta aqui, cidadão: um manobrista dá para os dois.

O caipira retrucou:

– Nada disso! Cada um come o seu.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 14 de junho de 2019

APONTAMENTOS

 

 

APONTAMENTOS

 

Sou romântico inveterado. Sou Roberto Carlos sem voz.

Adoro mulher de quarenta. E gorducha também.

Desconfio da masculinidade de homens que não aceitam estrias e celulite.

São incapazes de dar o devido valor a um par de peitos levemente caídos.

São tolos. Desprezam a vivência.

Não se olham no espelho.

Paciência.

Antes de bater as botas, faço um apelo às mulheres, em especial às gorduchas:

– Não usem calcinhas seis números abaixo do que suas nádegas exigem! Não vejam erotismo onde a vulgaridade impera. E disparem um pontapé no traseiro de homens cheios de frescuras.

* * *

E ela bateu pesado, como toda mãe bate em marido inconveniente

– Sai daqui, animal: quer tomar o leite do menino?

Não queria roubar leite, muito menos leite do filho. Imagine… Nem de leite gostava, queria um prazer efêmero, coisa ligeira, de quem tem que trabalhar amanhã: um beijinho, uma mamadinha nos seios da amada de sempre.

Ela negou. Vítor cresceu. O amor se foi. E ele morreu. Por falta de cálcio. E de peitos.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 07 de junho de 2019

QUEM TEM JUÍZO...

 

 

QUEM TEM JUÍZO…

 

A madame arrogante ficou transtornada, puta da vida, com a empregada com três meses de casa:

– Escuta aqui: você mal chegou e quer aumento de 20%?

– É que lavo a roupa melhor que a senhora?

– Quem lhe disse isso?

– Meu patrão. Tem mais: ele também me disse que cozinho melhor que a senhora.

– O que mais, abusada?

– Sei que na cama sou melhor que a senhora…

– Aquele vagabundo do seu patrão lhe disse isso?

– Não. Foi o motorista.

A patroa achou 20% pouco. Deu à mensalista 50% de aumento.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 31 de maio de 2019

RAPIDÍSSIMAS - 31.05.19

 

 

RAPIDÍSSIMAS

 

QUATRO DÉCADAS

Quando tudo parecia perdido, eles deram a volta por cima: voltaram a ser o que sempre foram: amigos, cúmplices para sempre.

RECOMEÇAR

Nunca é tarde pra partir.

POR AQUI, POR ALI?

Ora, se a gente tivesse certeza sobre o melhor caminho, a gente o percorria.

TEM JEITO NÃO

Envelhecer é acumular perdas. Mas, quem se dispõe a ir antes da hora?

CONFORTO

Quem diria? Três casas nos separam. A gente voltou a namorar. Namorar é bom. Namorem.

ESFORÇO EM VÃO

Trocou os aplausos fugazes pelo silêncio reconfortante. E continuou infeliz.

NA PIOR IDADE

Aqueles gemidos lancinantes não são de prazer. São de dores, muitas dores. Nas costas, nos rins, nos braços e pernas.

ESTÁ ESCRITO

Homem que perde o trabalho, não importa sua história, com o passar do tempo vira estorvo Para si mesmo.

CELA 45

Muito pior que as grades é a convivência forçada.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 17 de maio de 2019

O AZARADO

 

 

O AZARADO

 

Achou estranho o convite para a entrevista, mais ainda cargo e salário em perspectiva. Mas não estava em condições de recusar desafios. Se mais não fosse, já passara da hora de alguém reconhecer aquele talento adormecido.

Fez a barba, tomou um banho bem tomado, espanou o paletó puído, calçou o par de sapatos das grandes e raríssimas ocasiões, tomou um trago e se foi – rumo ao sucesso improvável. E com aquele ar “altivo” dos previamente derrotados.

– Você sabe por que está aqui, não sabe?

– Claro que sei, respondeu. De peito estufado, coração na mão.

– Indicação dele.

– Do chefe, eu sei.

– O que sabe fazer?

– Tudo o que for preciso.

– Está dispensado.

– Mas, e o chefe?

– Ele não apita mais nada. Foi demitido ontem. Já foi tarde. E aqui a coisa só funciona na base do “quem indica”. Trate de arrumar outro padrinho.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 10 de maio de 2019

POLÍTICA E POLÍTICOS: SANTA INGENUIDADE

 

 

SANTA INGENUIDADE

 

Não sei como andam, hoje, as práticas na Câmara Municipal de São Paulo. Devem te piorado. Sempre pioram. Há anos, eu não acompanho de perto – como repórter ou assessor de imprensa – o dia-a-dia daquela casa legislativa. O que sei é o que os jornais publicam. Nada mais.

Mas houve um tempo em que eu, jovem repórter, me preocupei seriamente com a saúde de nossos representantes. Minha apreensão foi às alturas em junho/julho de 1986, quando um bando (perdão, grupo) deles foi ao México assistir aos jogos da Copa do Mundo, com atestado médico fajuto nas mãos e salários depositados nas respectivas contas bancárias.

Não imaginava que sol escaldante, comida apimentada e as emoções que os jogos disputados provocam pudessem fazer bem à saúde de cidadãos tão debilitados pelo excesso de trabalho e pela “dedicação total a você”.

Uma trabalhosa pesquisa no Diário Oficial e meia dúzia de entrevistas com o compromisso de manter em sigilo os nomes das fontes sossegaram minha alma sobressaltada.

Pedir licença por motivo de saúde era prática recorrente na casa, fruto de um “acordo político” – a expressão presta-se, até hoje, a toda sorte de lambanças – entre as bancadas. Os eleitos pediam licença por motivo de saúde, os suplentes assumiam (chance de ouro para apresentar projetinho de lei, fazer discurso, aparecer para os eleitores), e ambos ganhavam os salários normalmente.

Nunca consegui provar que alguns suplentes, por gratidão, devolviam parte da grana para os titulares das vagas. A máxima de São Francisco norteava as negociações. E os contribuintes que arcassem com as despesas extras. Não me lembro do motivo de não termos feito matéria sobre quem eram os médicos que assinavam os atestados fajutos em série. Foi uma falha.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 03 de maio de 2019

PROTESTADOR: EM LIQUIDAÇÃO

 

 

EM LIQUIDAÇÃO

 

Levei anos, décadas, mas descobri minha vocação: quero ser protestante. Que pastores não se animem. Sou meio desgarrado de igrejas, em especial das estridentes. Nunca fui chegado a ser membro de rebanho. Erro com minhas próprias pernas. Não me queixo das “graças” que obtive, muito embora não esteja convencido de meus parcos merecimentos. Além do mais, a situação econômica não me permite pagar por “milagres” de procedência e efeitos duvidosos. Quero ganhar a vida protestando  – de forma lucrativa. Afinal, como dizem por aí, o mar não está para peixe. Tempo bicudo, o nosso.

O ramo de protestos se profissionalizou muito nos últimos tempos. Diria mesmo que, nesse quesito, superamos Estados Unidos e Europa. De uns tempos para cá, temos até protestos a favor do governo. Segundo dizem, estes são os de melhor remuneração.

Claro que há sempre o risco de o profissional do protesto tomar umas cacetadas dos policiais. Mas jamais tive a pretensão de ocupar a linha de frente, ter a cara estampada nos jornais e na televisão. Não sou candidato a nada. Quero fazer parte da turma do fundão. A paga é menor, sei, mas não preciso apanhar para sobreviver. Melhor dizendo: do ponto de vista financeiro, tenho apanhado além do razoável.

A lista de vantagens de ser protestante profissional é grande, compensa os esqueletos do ofício. Com roupa, pouco se gasta. Até porque não pega bem ir aprumado num protesto. Tem mais: a onda agora é ir pelado. Lanche e transporte estão garantidos. Também é muito bom ser livre, deixar de ser escravo das crenças. Que beleza poder ser a favor e contra isso ou aquilo na mesma semana.

Pagou, levou meu protesto. Cobro barato.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 26 de abril de 2019

RAPIDÍSSIMAS - 26.04.19

 

 

RAPIDÍSSIMAS

 

É COM ESTE QUE VOU

– Para onde vai este trem?

– Acho que para lugar nenhum.

– Pois é deste trem que preciso.

CARA & COROA

Como é difícil ter amigos de fato. Como é difícil ser amigo de fato.

SÃO LONGUINHO

Em qual gaveta deixei meu rumo?

CUIDADO, TOTÓ

O cão continua sendo o melhor amigo do homem. A recíproca, apesar da onda atual, nem sempre é verdadeira.

NÃO, NÃO

A culpa não é de ninguém, não. Cada um de nós é responsável pelos seus erros e acertos. Pela sua irrelevância.

PESOS & MEDIDAS

Minhas opiniões valem pouco. Mas não abro mão de tê-las.

CONVIVÊNCIAS

A pior de todas é a involuntária.

SINA

Todo fanático é um idiota. Logo, incurável.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 19 de abril de 2019

PROTESTO: EM LIQUIDAÇÃO

 

 

EM LIQUIDAÇÃO

 

Levei anos, décadas, mas descobri minha vocação: quero ser protestante. Que pastores não se animem. Sou meio desgarrado de igrejas, em especial das estridentes. Nunca fui chegado a ser membro de rebanho. Erro com minhas próprias pernas. Não me queixo das “graças” que obtive, muito embora não esteja convencido de meus parcos merecimentos. Além do mais, a situação econômica não me permite pagar por “milagres” de procedência e efeitos duvidosos. Quero ganhar a vida protestando – de forma lucrativa. Afinal, como dizem por aí, o mar não está para peixe. Tempo bicudo, o nosso.< /span>

O ramo de protestos se profissionalizou muito nos últimos tempos. Diria mesmo que, nesse quesito, superamos Estados Unidos e Europa. De uns tempos para cá, temos até protestos a favor do governo. Segundo dizem, estes são os de melhor remuneração.

Claro que há sempre o risco de o profissional do protesto tomar umas cacetadas dos policiais. Mas jamais tive a pretensão de ocupar a linha de frente, ter a cara estampada nos jornais e na televisão. Não sou candidato a nada. Quero fazer parte da turma do fundão. A paga é menor, sei, mas não preciso apanhar para sobreviver. Melhor dizendo: do ponto de vista financeiro, tenho apanhado além do razoável.

A lista de vantagens de ser protestante profissional é grande, compensa os esqueletos do ofício. Com roupa, pouco se gasta. Até porque não pega bem ir aprumado num protesto. Tem mais: a onda agora é ir pelado. Lanche e transporte estão garantidos. Também é muito bom ser livre, deixar de ser escravo das crenças. Que beleza poder ser a favor e contra isso ou aquilo na mesma semana.

Pagou, levou meu protesto. Cobro barato.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 12 de abril de 2019

O LADO BOM DA DIETA

 

 

O LADO BOM DA DIETA

 

Sempre tive os nervos arruinados. Mas – é inegável –, eles pioraram muito nos últimos dias. A causa principal de minha ruína nervosa não são os parcos recursos que pingam sem nenhuma responsabilidade fiscal em minha conta corrente. Já me acostumei com isso, sou um estoico. O que me aflige é saber que pratos de repolho me esperam no almoço, no jantar, nos dias úteis, nos sábados, domingos e feriados.

Há 35 dias, o repolho refogado tem sido, por assim dizer, o alicerce de minha dieta. A única vantagem é que, sabedores do cardápio que tenho seguido à risca, parentes e vizinhos inoportunos já não me importunam mais. Como se percebe, tudo – até a maldita dieta – tem seu lado positivo.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 05 de abril de 2019

SEU PEPINO JÁ CRESCEU?

 

SEU PEPINO JÁ CRESCEU?

 

Dizem que o inferno está cheio de boas intenções. Se isso é verdade, eu não sei. Nunca estive lá nem pretendo estar. Prefiro climas mais amenos. Mas, no chamado Planeta Azul, também não falta gente bem intencionada, disposta a salvar o mundo. O que me leva a crer no seguinte: aqui, se não é a matriz do reino do cão abestalhado, é uma de suas filiais. Com certeza.

Sempre fico muito sensibilizado quando ouço pessoas pregando teses politicamente corretas. Minha vontade é pisar com o calcanhar em seu dedo mindinho. Agora mesmo, ouvi no rádio uma moça tecendo loas às hortas comunitárias – uma tendência mundial que, segundo ela, já chegou a São Paulo. A moda é tão boa que a “especialista” em salsinha e seus amigos tomateiros pedirão ao prefeito de São Paulo que a incorpore em seu plano de metas. Não precisam nem pedir. Prefeitos, em geral, gostam de ficar bem com os politicamente corretos. Gentalha.

Em sua entrevista, a especialista em salsinhas observou que há muita gente plantando até nas sacadas de seus apartamentos. Receio que os pobres estarão fora dessa. A maioria deles tem o péssimo hábito de morar em cortiços, favelas ou em apartamentos sem terraço gourmet, em locais minúsculos. Eis aí uma boa ideia para as futuras casas populares feitas pelo Estado. Os imóveis de amanhã terão que ter espaços para hortas e churrasqueira. Não faz sentido exigir que os pobres andem com vasos de alface na cabeça dentro de casa.

Ainda segundo a nossa especialista em salsinhas, as hortas comunitárias já fazem sucesso na Vila Madalena, Avenida Paulista e Pompéia, bairros chiques de São Paulo. Não se tem notícia de que a moda tenha chegado à Cidade Tiradentes, que fica logo depois do fim do mundo. Pobres são lerdos, demoram a aderir ao que há de mais moderno. Eles – vejam que barbaridade! – catam restos de feira, mas não fazem sua própria horta. São uns coitados.

Não pude ouvir a entrevista até o final. Sofro dos nervos. Não sei se nossa especialista chegou a criticar o agronegócio. Penso que sim. Uma pessoa como ela jamais desperdiçaria uma oportunidade dessas.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 29 de março de 2019

ATÁ QUE A MORTE NOS SEPARE

 

 

ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE

 

Dizem os tratadores de almas e mentes que, para viver em paz consigo mesmo, o sujeito tem que se aceitar como ele é. Viver em paz é uma coisa. Ser feliz é outra – coisa que só a turma da Xuxa, salvo engano, consegue ser. Aceitar-se exige paciência e dinheiro. Passar metade da vida estirado no divã a confessar o inconfessável é empreitada para valentes. Não precisei dos préstimos de analistas. Passei a me aceitar melhor por absoluta falta de opção. Aos poucos, por desastrado completo, fui sendo impedido de fazer tarefas para as quais jamais tive aptidão e saco. O problema é que, no início, me sentia humilhado. Afinal, era o homem da casa – e, como se sabe, homem da casa não escolhe nem recusa tarefa.

Sempre tive grandes dificuldades para, por exemplo, trocar aquela pecinha de torneira – cujo nome agora me escapa. A falta de coordenação motora, que muitos atribuem ao fato de não ter cursado o jardim da infância e o pré, me atrapalhou um bocado, a ponto de me impedir de unir as pontas de dois fios e passar a fita isolante na maldita emenda. Trocar lâmpada nunca foi problema. O problema continua sendo subir os degraus. Tenho problema com altura. Escalo um degrau, dois degraus e, no terceiro, já fico mais tonto que o habitual. Nunca me recusei a trocar pneu de carro. Desde que tenha alguém para me colocar os parafusos nas porcas, que insistem em brincar comigo de esconde-esconde.

A lista de minhas impossibilidades é vasta.

No começo, me sentia inferior a outros homens do lar. Ficava amuado quando me comparava aos que consertam fechaduras, põem óleo nas janelas engripadas, trocam o botijão de gás, aparam grama, pintam o portão da garagem etc. Nunca soube fazer nada disso. Mas hoje vejo que minhas inutilidades não são de todo inúteis. Dou de ombros às gozações, e me estiro no sofá. Já não quero saber para o que sirvo. Essa preocupação passou a ser de minha mulher:

– Não te largo, sem descobrir sua utilidade, diz.

Nosso casamento vai longe. Se nem eu sei minha utilidade…


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 22 de março de 2019

FUTEBOL VAGABUNDO

 

 

FUTEBOL VAGABUNDO

 

Dirigentes esportivos – os de futebol muito à frente – valem tanto quanto à maioria dos nossos políticos: nada. É uma vergonha. Qualquer jogador, por mais perneta e burro que seja, sabe que, se tirar a camisa para comemorar o gol de canela, vai receber cartão amarelo. Ou seja: está prejudicando seu time, de propósito. Qual é a punição que os marginais recebem? Nenhuma.

***

No país da caixinha, jogador de futebol se acha no direito de receber “bicho” quando seu time ganha, por mais ordinário que seja o adversário. Caracas! Jogar bem é sua obrigação; lutar para vencer, idem. Ora, então não seria justo descontar o “bicho” do salário da moçada quando o time perde?

***

Os dirigentes de meu time sempre inovam, embora não sejam piores que os de outras agremiações. Contratam ou renovam contratos de jogadores a salário de ouro, o “liga” não joga nada, resolvem emprestá-lo e se dispõem a pagar metade do salário. E acham que fizeram bom negócio.

***

Vamos criar vergonha na cara: não vamos mais aos estádios.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 15 de março de 2019

AGONIADA, NEM PENSAR!

 

 

AGONIADA? NEM PENSAR!

 

 

Passei anos – tenho certeza de que você também – ouvindo de meus pais: “A saúde em primeiro lugar”. E sempre dei de ombros ao conselho que me davam. Mas, o tempo passa, o tempo voa… Ora, se nem o Bamerindus continua numa boa – ao contrário, quebrou –, quem sou eu para desafiar a “lei da idade”? Resolvi me tratar por conta e risco próprios. Médicos são incapazes de fechar qualquer diagnóstico sem pedir o tal de exame de sangue. Agulhas não se dão bem comigo, se me entendem. Elas entram num braço, eu quedo sobre o outro: desmaio.

Optei pelos fitoterápicos. Peguei uma relação de ervas, analisei a utilidade de cada uma delas e escalei meu “time”: Carqueja (gol); Salsaparrilha, Artemísia, Assa Peixe e Avenca (zaga); Barbatimão (em homenagem ao glorioso Corinthians, campeão dos campeões, eternamente etc.), Boldo do Chile e Cabreúva (meio-campo); Hortelã, Porangaba e Cactus (ataque). Na reserva, mantenho uma erva para cada titular. Tomo em média três copos de 250 ml por dia – de cada erva do time principal. Ou seja: mijo muito, quase sem parar. Trato simultaneamente de vários problemas, ok? Excluí do elenco duas plantas: Urtiga e Agoniada. Segundo a vasta literatura fitoterápica, a primeira dá jeito na menstruação i rregular e a segunda acaba com a inflamação uterina. Concluí que elas não me seriam úteis.

Como todo tratamento, o que adotei também apresenta efeitos colaterais. Tenho produzido pouco e dormido menos ainda. Quando não estou tomando chá, estou eliminando chá. Por falar nisso, tenho que encerrar a conversa. Hora de passar o pano no chão e trocar de bermuda. Até. Em breve, lhes darei notícias sobre o andar do tratamento.

Vai uma urtiga, aí?


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 01 de fevereiro de 2019

E O AMOR SAIU PELA JANELA - 01.02.119

 

E O AMOR SAIU PELA JANELA

Orlando Silveira

CENA I

– Sonhei que estava fazendo amor com você…
– Jura? E aí?
– Acordei suada, amedrontada. Um horror.

CENA II

– Seu ronco é insuportável.
– Eu sei. Em compensação, só solto “pum” no banheiro.

CENA III

– Se eu soubesse que você ficaria desse tamanho, juro, teria dito “não” ao padre.

CENA IV

– Como estou?
– Parecendo árvore de Natal.

CENA V

– Querido: se é verdade que você só me trai em pensamentos, me faça um favor: reze em casa. Vamos economizar muito dinheiro (da gasolina, do estacionamento, do pastor). Se agir assim, terá desde já meu profundo perdão.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 04 de janeiro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: PÉ NO SACO

 

QUASE HISTÓRIAS: PÉ NO SACO

 

O fato de ser boa praça não impede ninguém de ser um chato de galocha – para usar uma expressão moderna, do tempo em que moças de família não “ficavam” (pelo menos era o que diziam para os pais). Quando muito, tiravam linha.

Ele se encaixava perfeitamente naquele perfil: boa praça, chato de galocha. Era amigo do pai, que o trouxe para trabalhar no escritório, onde eu também marcava ponto, com má vontade evidente. Odiava números. Até hoje odeio, minhas contas raramente fecham. Com o apoio do pai – apoio entusiasmado, diga-se –, ele insistia para que eu enfileirasse aquela montanha de números, de forma que não restassem dúvidas sobre quais eram os centavos, as centenas, os milhares e os milhões. Uma tortura. Queria ser diretor de teatro. Dei em nada.

Quase todos os dias, almoçávamos juntos, numa pensão em frente ao Shopping Iguatemi. Antes de sair, cumpria um de seus rituais prediletos: pegava a flanela e tirava o pó inexistente dos sapatos. No “restaurante”, havia duas mesas com seis cadeiras cada uma, se não me falha a memória. Era necessário esperar um pouco. Às vezes, muito. Enquanto isso, nós e os outros assistíamos ao noticiário esportivo.

Hora do rango. Arroz, feijão, salada e um bife para cada comensal. Ele era o mais franzino de todos. Mas era sempre o primeiro a se servir. E escolhia sempre, também, o bife maior, o que me matava de vergonha. Meu constrangimento era evidente. Até que um dia ele me explicou sua lógica:

– Ora, todo mundo, por educação, tende a não pegar o bife maior. Já resolvo a parada logo de saída. Se ninguém vai pegar, pego eu. Ganhamos tempo.

Terminado o almoço, lá íamos nós dois de volta para o escritório. E ele passava de novo a flanela nos sapatos e me aporrinhava para que enfileirasse os números de maneira que ninguém tivesse dúvidas sobre quais eram os centavos, as centenas, os milhares e os milhões.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 28 de dezembro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 28.12.18

 

 
RAPIDÍSSIMAS

ESCONDERIJO

Curto minha toca. Mas, há momentos em que é preciso circular. Nem que seja em volta da toca.

LISO. OU LESO?

Gosto muito do que faço. Pena que, ultimamente, essa porcaria renda tão pouco.

DIVERGÊNCIAS

Não ligo, nunca liguei, para dinheiro. Preciso de pouco. Pena que os credores não pensem o mesmo.

MENOS

Não carece buscar sentido no que escrevo ou falo. Perda de tempo. Roubada. Às vezes, muitas vezes, nem sei por que disse ou escrevi isso ou aquilo.

VIVO INFORMA

Prazer tem preço. E, em geral, custa caro.

VIZINHA

Ousadia tem limite, cautela não faz mal a ninguém. A mocinha do apartamento 32 é bonitinha. Mas, o marido tem pavio curto..

CAYMMI

O mestre baiano está certo. O mar é lindo. Mas só para quem o espia. Ou dele volta.

JAMELÃO

Sei que falam de mim. Ó, Deus, como ando feliz! Tudo. Menos o anonimato.

QUERIDA

A lucidez é uma ilusão. Iluda-se.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 21 de dezembro de 2018

E O AMOR SAIU PELA JANELA - CENA VII

 

 
E O AMOR SAIU PELA JANELA: CENA VII

– Terça-feira está chegando, Marli.

– E daí, João?

– A data não lhe diz nada, querida?

– Xi. Vem, não. Quando você fica derretido feito margarina na frigideira, está pensando em aprontar uma das suas.

– Mas essa terça é uma data especial, Marli.

 

– Sei. Terça é dia de limpar a casa, fazer almoço e jantar, lavar e passar roupa, o de sempre. Ah, é dia de feira também. Tem mais essa.

– Marli, faremos 40 anos de casados. Uma vida…

– Uma vida besta. Nos cinco primeiros anos, até que foi bom. Depois só eu sei. Não fossem os filhos…

– O que você faria?

– Ou picava a mula ou pulava de cabeça numa piscina sem água.

– Que horror, Marli.

– Não se faça de esquecido, João. Não é possível que você não se lembre de metade do que aprontou.

– Por que metade?

– Porque boa parte do tempo você viveu tocado.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 14 de dezembro de 2018

A LISTA DE VALDOMIRO

 

A LISTA DE VALDOMIRO

Valdomiro era uma espécie de carpideira às avessas. Fazia o que fazia, sem remuneração, porque se achava engraçado, engraçado demais – uma fantasia alimentada pelos familiares e conhecidos, a maioria de humor abaixo de qualquer suspeita. É provável que muitos rissem de suas besteiras na esperança vã de serem poupados.

Valdomiro adorava velórios. Era dos primeiros a chegar, e dos últimos a sair. Gostava de contar piadas. Mas seu esporte predileto mesmo era ir de roda em roda mostrando uma lista que trazia de casa, com os nomes dos futuros defuntos da família.

Nunca entendi como alguém, em sã consciência, podia achar graça daquilo.

Valdomiro, no entanto, não marcou presença no velório de um parente muito próximo. O que deu margem a especulações várias, inclusive sobre sua eventual morte. Os que defendiam tal possibilidade, em especial os que frequentavam a lista de Valdomiro, no íntimo, torciam para estarem certos.

Minutos antes do sepultamento, chegaram sua filha e genro. E nada do Valdomiro.

Sua filha foi logo avisando:

– Não se preocupem, está tudo bem. Papai foi ao Nordeste, a passeio. Lamentou muito não poder vir ao velório. Não havia passagens de avião. Mas pediu que lhes avisasse que estará presente na missa de Sétimo Dia. Com a lista atualizada.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 07 de dezembro de 2018

SÓ DUAS GOTINHAS, DOUTOR

 

SÓ DUAS GOTINHAS, DOUTOR

Diz a música que perdão foi feito pra gente pedir. Todo mundo também sabe que é mais bonito pedir que roubar, muito embora esta pareça ser uma prática mais lucrativa que aquela. Ao menos entre nós. Mas o exagero, sempre ele, e a falta de critérios, sempre ela, costumam por tudo a perder. Como levar a sério um cidadão que vive pedindo desculpas pelos mesmos erros de sempre? Das duas, uma: ou o tipo é leso, ou é despudorado.

Tenho pra mim que quem muito pede nada leva, além de torrar a paciência alheia. Ou seja: chora muito, mama pouco. Conheci um sujeito assim, radialista. Não sei se está vivo ainda. Era um pidão profissional. De nada adiantava alguém lhe dizer:

– Infelizmente, não tenho como ajudá-lo.

A resposta vinha rápida, feito flecha, junto com a lista de pedidos:

– Você é que pensa. Sempre é possível ajudar um amigo.

Era invencível. Certa feita – eu não presenciei a cena, mas não tenho razões para duvidar de que não tenha ocorrido –, ele abordou o secretário de Estado que acabara de dar uma entrevista à rádio em que trabalhava. Pediu de tudo ao homem – emprego para a filha, casa popular para a ex-mulher, bolsa de estudos para o filho do meio… Ante as sucessivas negativas do secretário, partiu para o penúltimo ataque:

– Tudo bem, doutor. Então, me arrume um cigarro.

– Eu não fumo, respondeu sua Excelência.

– E o que o senhor tem no bolso da camisa?

– Colírio.

– Preciso de duas gotas, só duas. Pode ser?


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 30 de novembro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 30.11.18

 

RAPIDÍSSIMAS

CUMPLICIDADE

– Afinal, o que vocês são: namorados, noivos, amigos ou casados?

– Somos cúmplices.

BOM DIA

Coisa boa. Acordar sem pressa.

QUIMERA

Quem diria? Aquele amor deu em nada.

O TEMPO

Quanto mais eu o tenho, menos produzo. Tudo fica para amanhã, naturalmente.

QUER PAZ?

Procure o anonimato absoluto. Poucos suportam o sucesso alheio.

PERDÃO, QUERIDA

O amor, como tudo que importa, é efêmero.

 

 

 

MÃO DUPLA

Diz ele: “Quem casa quer casa.” “Quem descasa também”, emenda ela.

PACIÊNCIA

Hoje acordei sem pressa. Coisa rara. Coração sossegado, até pensei que não fosse o meu. Mas bateu meio dia. Respirei fundo. A inquietude voltou.

DEUS É GENEROSO

Pega no colo até quem não sabe rezar.

CUMPLICIDADE

– Afinal, o que vocês são: namorados, noivos, amigos ou casados?

– Somos cúmplices.

RASTROS

Como todo amor que chega ao fim, aquele também deixou dor.

DIA DE FESTA

E ela não deixou por menos: apareceu na sala mais empetecada que boneca de pano. E ainda queria aplausos.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 23 de novembro de 2018

QUASE HISTÓRIAS - 23.11.18

 

QUASE HISTÓRIAS

APARÊNCIAS

– Você já está bêbado. E ainda não são dez horas da manhã, francamente.

– Como você percebeu?

– Ora, quem não o conhece que lhe compre. É sempre o mesmo filme: começa com suas gracinhas, descamba para impropérios. Afinal, o que você bebeu?

– Cerveja.

– E o que mais? Não minta.

– Cachaça. Cinco cachaças.

– Pelo amor de Deus. Que vergonha. Se ainda bebesse uísque…

– Qual a diferença?

– Ora, quem bebe cachaça é cachaceiro, pinguço, borracho.

– E quem toma uísque?

– Adicto. É mais chique, entende?

* * *

TRISTE SINA

É quase sempre assim (ou quase sempre assim): uns e outros me perguntam coisas que não sei responder. Em especial nos botecos de bairro, nas conversas de balcão de padaria. Famosos centros de cultura, como se sabe.

Não é de hoje que me perguntam coisas que ignoro; não é de hoje que não tenho respostas, também.

Houve um tempo em que tentava justificar minha ignorância.

Bobagem. Hoje, dou de ombros. O melhor é fazer cara de paisagem, cara de conteúdo.

Em sendo ela, a ignorância, o único bem fartamente distribuído (que atire pedras o ignorante atrevido!), a tendência é que os outros considerem sua ignorância superior.

O único risco é que o tomem por gênio.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 16 de novembro de 2018

E O AMOR SAIU PELA JANELA - 16.11.18

 

 
E O AMOR SAIU PELA JANELA

– Pare com isso, Otávio. Você enlouqueceu?

– Acho que sim. O que não me impede de constatar o óbvio.

– Qual é o óbvio?

– Que eu sou um fracasso ambulante. Fracassei como marido, pai, filho, irmão. Fracassei profissionalmente, meu amigo. Quer mais?

– Quem lhe disse isso?

– Ninguém precisa verbalizar. Certas coisas são tão evidentes…

– Otávio: essa melancolia vai acabar com você. Você precisa de tratamento. Depressão é coisa séria. Também acho que você anda bebendo demais. Isso atrapalha um bocado.

– Minha mulher não fala outra coisa. Não há um mísero dia em que a gente não discuta. É um inferno. Ela me aporrinha por conta dos tragos que dou. Acabo perdendo a paciência, fico agressivo, falo besteiras bebo ainda mais. Depois, me arrependo. Mas aí é tarde. As duas filhas estão sempre do lado dela. Dizem que não sabem como a mãe me suporta. Tem mais.

– Tem mais o quê?

– Minha mulher quer o divórcio. Diz que não suporta mais viver comigo.

– E você acha que ela está errada, Otávio?

– Depois de tudo que passei nos últimos tempos… Doenças na família, perda de clientes… Só tomando umas.

– Se cachaça resolvesse…


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 08 de novembro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 08.11.18

 

 
RAPIDÍSSIMAS

POLÍTICA

É algo mais ou menos assim: a vida como ela “não” deveria ser.

CRISE

A coisa anda tão feia que os bêbados já não jogam mais pinga para os santos.

POST-MORTEM

O velório é triste; alguns inventários, cruéis.

TRISTEZA SEM-FIM

E o velho galo, antes de ir para a panela, desabafou: “Gerei inúmeros pintos. Mas comi poucas galinhas”.

FIDELIDADE

Verdade seja dita: a insônia jamais o abandonou.

MAIS DO MESMO

– Adelino, por que você conta sempre a mesma história?

– Porque só tenho esta, Adelaide.

TEMPO LIVRE

– Para quê? Nunca soube o que fazer com ele.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 01 de novembro de 2018

PACIÊNCIA DE VÓ

 

 
PACIÊNCIA DE VÓ

CENA 1

– Vovó, o que os homens fazem na academia de ginástica? Eles jogam futebol?

– Não, querido. Alguns passam horas se olhando no espelho.

CENA 2

– Vovó, vovó, o que faz um justiceiro?

– Injustiça com as próprias mãos.

CENA 3

– Vovó, um homem chamou o outro de ladrão. E o outro falou que o ladrão era ele.

– Onde você viu isso?

– Na tevê da Câmara. Quem tem razão, vovó?

– Os dois.

CENA 4

– O homem está falando e ninguém presta atenção, vovó. Olha lá. Que lugar é esse?

– O Congresso Nacional.

– Os outros estão rindo dele?

– Não, meu querido. Estão rindo de nós.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 26 de outubro de 2018

NO DIVÃ DO PACOVÁ

 

 
NO DIVÃ DO PACOVÁ

– É insuportável estar certo, sempre certo, doutor. Até porque certo de tudo ninguém está.

– Lamento lhe dizer isso, Almerindo: vamos ter que continuar com as sessões.

***

– Almerindo, Almerindo: posso, se tanto, dar um jeito nessa sua cabeça arruinada. Nada mais que isso, meu caro. Agora, quando, na sua idade, a mulher (de anos) quer discutir a relação… Melhor procurar um especialista em impotência. Viagra talvez resolva. Não sei.

***
– Almerindo, você confunde muito as coisas. Não sou eu a pessoa mais indicada pra lhe dizer de qual cor você deve pintar esses cabelos ralos e bigode démodé. Francamente. Acaju ou preto da cor da asa da graúna? Pergunte a seus colegas de Parlamento, à sua amante, sei lá!

– Sua amante, não! Ele é homem de respeito. E viril. PM da Rota.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 18 de outubro de 2018

QUASE HISTÓRIAS - 18.10.18

 

 
QUASE HISTÓRIAS

NOITES DE INVERNO

Nas noites frias, antes de dormir, o pai entrava em nosso quarto, para se certificar de que nós – minha irmã e eu – estávamos protegidos. Levantava nossos pés e colocava as cobertas por baixo, nos beijava e dizia “durmam com Deus”. Então, a gente dormia gostoso, sem frio, sem medo. Acho que a gente dormia com Deus.

MENARCA

– Padre: sei que peco, mas não é porque queira pecar. A carne é fraca, se o senhor me entende. Minha fé é miúda. Rezo todos os dias para que o Senhor me
perdoe e triplique a devoção que Lhe tenho.

– Está no caminho certo, filho. Reze, reze. Ainda que não saiba a razão de tantas preces. Mal não lhe fará. Tenho certeza disso.

– Sou muito grato ao Senhor, padre, por ter nascido homem. Jamais seria uma mulher.

– Como assim? Somos todos, homens e mulheres, filhos de Deus. Todos iguais.

– Sei disso. Não tenho medo de quase nada, nunca tive receio de lutar, trabalhar feito mouro pra enfrentar as despesas. Não tenho preconceitos. Mas não posso ver sangue, uma gota sequer. Quedo feio, feito folha seca. Não resistiria à menarca.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 11 de outubro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 11.10.18

 

 
 
RAPIDÍSSIMAS

POLITICAMENTE CORRETO

– Em Pedro não voto, odeio Paulo, não posso ouvir a voz de Maria…

– Vai votar em branco?

– Enlouqueceu? Só me faltava essa: ser chamado de racista.

PÉ NA TÁBUA

– Está certo, Juvenal. É preciso seguir em frente, mas é bom saber primeiro se a gente está no caminho certo.

O MELHOR VENDEDOR

É o que não torra o saco de freguês. Coisa rara.

OTIMISTA

Se for demais, é tolo incurável.

EXPLICAÇÕES

Justificativas não alteram rotas.

CUCO

– Meu caro: Há algo de errado com você. A vida voa, mas as horas não passam.

LEIS

Ninguém precisa delas para ser decente.

VIGARISTA

– Minhas senhoras, meus senhores: vou sair como entrei: de cabeça erguida e pela porta dos fundos.

SE É PARA PECAR…

Que seja por atos. Por palavras e pensamentos não tem muita graça.

TRAGÉDIA

De fardo em fardo, a vida virou um fado.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 05 de outubro de 2018

A SENHORA DO JUVENAL

 

 
A SENHORA DO JUVENAL

Sempre impliquei com essa coisa de dizer ao amigo “me recomende à sua senhora”. Ora, respeito é bom. Que insinuação vagabunda é essa? Que bandalheira é essa? Há de ser muito safado para falar barbaridade dessas a um amigo.

Em bom Português: quem fala uma coisa dessas – “me recomente à sua senhora” – chama o amigo de corno. De corno manso!

Mas o tempo passa. E a gente aprende alguma coisinha e outra, percebe que expressões populares nem sempre são inservíveis.

Hoje, mais velho, sou adepto da expressão. Mas sempre faço a ressalva:

– Quando lhe peço para me recomendar à sua senhora, quero seu bem. Se ela topar a recomendação – o que é improvável – terá grande decepção. E vai querer você de volta. Captou a mensagem, Juvenal? Sou seu amigo. Logo, me recomende à sua senhora.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 27 de setembro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 27.09.18

 

 
RAPIDÍSSIMAS

ROTINA

Pior que voltar para casa é não ter para onde ir.

DOIS PESOS

O brasileiro não suporta uma “boquinha”. Para os outros.

CAUTELA

Nem amor de sogra é tão falso como certos currículos.

EM BAIXA

Aquela cabeça cheia de planos e ideias é apenas uma usina de inutilidades.

COMPARSAS

A política vai mal das pernas porque, entre outras coisas, os políticos trocaram o fair play pela conivência.

CAMINHOS

Todos nos levam a Roma. Desde que tenhamos dinheiro para as passagens.

 

 

PET SHOP

É óbvio que os poodles são mais sensatos que a maioria dos donos.

POLIGLOTAS

Há gente que se gaba de ser analfabeto em vários idiomas.

OURO DE TOLO

Aquele balançar de ancas prometia muito, entregava nada.

NADA DE CHORO

Todos os bebês são adoráveis. Na barriga da mãe.

ZÉ PANCADA

A cada semana, ele adquire novas manias. Sem abrir mão das antigas.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 20 de setembro de 2018

E O AMOR SAIU PELA JANELA (11): ADERBAL, QUEM LHE MANDOU?

 

 
E O AMOR SAIU PELA JANELA (11): ADERBAL, QUEM LHE MANDOU?

Dito e Dita num ponto sempre concordaram. Aqui se faz. E aqui se paga. Caro.

Aderbal pagou.

 

 

 

Não por falta de aviso, porque Benedita, a Dita, filha do velho Dito, nunca foi mulher de mandar recados. Nem de ameaçar. Censurava Aderbal com o olhar certeiro, certo? Quem tivesse tino que entendesse. Do contrário, amargaria a solidão.

Aderbal não entendeu picas. Morreu só.

Pobre Aderbal.

Aderbal não acreditou nos avisos que não vieram por escrito. Só por olhares.

Aderbal, homem antigo, só acreditava no que estava escrito. Prova disso é que jogava no bicho.

Aderbal se embriagou, achou que o fígado e a paciência de Dita seriam para sempre.

Aderbal – um homem de tino miúdo. Não mau, necessariamente. Criou filhos. Deu-lhes o conforto possível. Trabalhou pra cacete. Aderbal, tolo.

Depois que tomou o pé na bunda, Aderbal percebeu que não eram para sempre a paciência de Dita e o fígado. A solidão é fogo bravo. Aderbal foi ao limite. Que graça viver, se o amor acabou?

Aderbal morreu atropelado. De tanto beber.

Dita encomendou uma missa pela paz que Aderbal nunca teve em vida.

Deus é pai, Aderbal.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 14 de setembro de 2018

O CEGUETA DO BAIRRO

 

 
O CEGUETA DO BAIRRO


 

Míope que só, Fernandinho devia ter nascido com óculos. Mas, até o momento de se apresentar ao Exército para o alistamento obrigatório, ele não tinha noção do quanto enxergava mal. Até então, para Fernandinho, as coisas da vida e as pessoas eram assim: todas nebulosas, meio embaçadas, quase sem graça.

O caldo entornou de vez, quando teve que fazer exame para obter a carteira de habilitação – sonho de consumo da moçada da época, passaporte (quase) obrigatório para conquistar uma namorada bacaninha. Naquela época, as meninas mais interesseiras – e interessantes – eram chamadas de “gasolina”. Só saiam com quem tinha ao menos um carrinho. No dia do exame de vista, Fernandinho não conseguiu avistar a placa com as letras; as letras, então, nem pensar. Tomou um baita esporro do oculista, como se fosse o culpado por sua deficiência visual.

Fernandinho topava tudo para ganhar o direito de dirigir o Fusca que a avó paterna lhe dera – menos uma coisa: usar óculos com lentes de fundo de garrafa, como os que mãe e pai usavam. Temia ser chamado de cegueta. Que diabos! Tinha feito regime, adquirira cintura de toureiro espanhol; seus cabelos eram lisos, longos e sedosos. Não era lindo, mas também não assustava ninguém. Óculos com lentes grossas e esverdeadas? Não, não e não. Nem pensar.

Não se tem notícia de que alguém tenha sofrido tanto para se adaptar às lentes de contato como ele. Vivia com os olhos vermelhos e lacrimosos. Não foram poucos os que o tomaram por maconheiro. Paciência. Depois de alguns anos, ele se adaptou às malditas lentes. Décadas depois, porém uma grave doença ocular lhe roubou o sonho – e lhe presenteou com os malditos óculos.

A miopia, como se sabe, deixa sequelas, afeta a personalidade das pessoas. Nosso herói não passou incólume pelo infortúnio de enxergar mal.

Há dois tipos básicos de míopes. Uns são sorumbáticos, andam sempre de cabeça baixa, falam pouco e num tom inaudível, não cumprimentam ninguém. Alguns os tomam por intelectuais e/ou arrogantes.

Outros míopes são o exato oposto. Expansivos, na dúvida, eles cumprimentam com entusiasmo tudo e todos que atravessam seu caminho nebuloso – de desconhecidos a postes, passando, claro, por manequins de lojas. Como abanam as mãos, os danados.

Fernandinho engrossou o time dos alargados. Hoje, já homem velho, ainda convive com os fantasmas das lentes de fundo de garrafa. Não há quem não o conheça no bairro onde nasceu, criou-se e, salvo engano, vai dormir de sapatos. Basta sair às ruas, para que todos comentem: “Lá vem o velho cegueta e idiota, o que abana para todo mundo”. Fernandinho morde-se por dentro. Mas fazer o quê?


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 07 de setembro de 2018

PEDIU, LEVOU

 

 
 
PEDIU, LEVOU

Naquele final de tarde de segunda-feira, o Bar do Carneiro estava literalmente às moscas – aliás, como sempre acontece nas ocasiões em que a data de pagamento coincide com o início do “feriadão”. Em vez de quitar o que deve, a turma se manda para a Praia Grande, litoral Sul de São Paulo. Ainda mais se a meteorologia garante que os quatro dias pela frente serão de calor e sol, sem risco de chuvas. E o pobre do Carneiro que se dane com os fiados.

 

 

 

 

O raciocínio dominante entre os muitos devedores – se é que se pode chamar de raciocínio o que é mera lambança – parece ser o seguinte: “Ele é comerciante, empresário, pode esperar. E a gente também tem o direito de se divertir com a família, ou não?”. Carneiro já se acostumou com isso. Seus fornecedores, infelizmente, não. Querem o seu. Carneiro que se vire. E ele, coitado, se vira. Tudo o que não pode é perder o crédito na praça.

Na mesma mesa de sempre, o Velho Marinheiro e Ananias. No balcão, a prosear com o proprietário da espelunca, um desconhecido por todos. O sujeito, provavelmente, estava de passagem. Ou acabara de se mudar para uma das ruas estreitas e íngremes da Vila Invernada. Ninguém o conhecia. A paz de cemitério foi interrompida com a chegada de Edivaldo Serrote – um dos pidões mais manjados da redondeza, mestre na arte de aporrinhar os outros, insistente que é.

Serrote pediu a Carneiro uma lata de cerveja, uma cachaça e um cigarro solto made in Paraguai. Queria – para não variar, claro – pendurar a conta, àquela altura já salgada. De pronto, o dono do estabelecimento, movido por uma coragem por todos desconhecida, descartou a ideia: “Não vendo mais cigarro fiado nem que seja um só e por apenas um dia. Favor não insistir”. Preservou o mata-rato, mas não impediu que a conta do cara-de-pau aumentasse, por conta da cachaça e da cerveja concedidas. Ou seja: o “não” de Carneiro nada mais que um “não” pela metade.

Serrote, então, dirigiu-se ao ilustre desconhecido. Seu pedido deu em nada. O homem demarcou o terreno. Antitabagista radical, disse que jamais pusera uma “porcaria dessas na boca”. E ainda desandou a falar: “Sabe qual é a melhor definição de cigarro?” Ante o silêncio dos poucos presentes, deu ele mesmo a resposta: “Cigarro é um pequeno cilindro com uma brasa numa ponta e um idiota na outra”.

O pidão profissional olhou para a única mesa ocupada, sabia que suas chances de sucesso eram mínimas, para não dizer nulas. Mesmo assim, resolveu arriscar:

– Velho Marinheiro, mestre dos mares, o senhor tem um cigarrinho para me arrumar? Só por hoje. Os meus acabaram de acabar.

– Tenho, Serrote, mas não vou lhe arrumar coisa nenhuma. E sabe por quê?

– Não.

– Porque você não se emenda. Crie vergonha na cara, vagabundo. Pare de fumar. Se não for pela saúde que a cachaça já lhe roubou, que seja para não encher mais o saco dos outros. Com licença. Vá vender seu cinismo em outra freguesia. Antes disso, acenda o maldito cigarro que está atrás de sua orelha direita. Ou então saque um do maço que você carrega no bolso esquerdo da calça. E, agora, nos dê licença.

Edivaldo Serrote foi serrar em outras freguesias.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 30 de agosto de 2018

QUASE HISTÓRIAS - 30.08.18

 

 
 
QUASE HISTÓRIAS

PAGUE, LEVANTE E ANDE!

– Não quero menosprezar seu trabalho, pastor. Longe de mim uma barbaridade dessas. Mas, se eu tivesse todo esse dinheiro que o senhor me pede para que Jesus me cure, tinha ido ao médico. Quero minhas muletas de volta.

***

IDADE DE CRISTO

Meus olhos marejam por qualquer coisa. Sinto saudades de uns e outros, de todos. Acabo de me lembrar de tio Antônio, das festas em sua casa, festas de final de ano. Menino, eu comia até passar mal. Fartura: frutas, doces, coisas que nem sempre a gente tinha em casa, apesar do esforço do pai e da mãe. No dia 1º de janeiro, depois da comilança, tinha jogo de tômbola. 22 = dois patinhos na lagoa; 33 = idade de Cristo. E por aí íamos, felizes. Sinto saudades do jipe, quase pau de arara: levava oito: tio Antônio ao volante, pai, mãe, minha irmã, tia Laura, meus primos, todos de carona. Coisa boa ir ao piquenique de jipe.

***

TPM

As mulheres poderiam ser perfeitas. O que as “apequena” é a dita cuja. Sempre mais fortes que os homens, se livram do “problema” em poucos dias. E nós carregamos o trauma daqueles poucos dias para o resto da vida. Sabe o que é uma existência constatando o óbvio: mês que vem tem de novo. Passou da hora de nós criarmos uma ONG em prol das vítimas dos nervos arruinados: nós, os homens.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 23 de agosto de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 23.08.18

 

 
 
RAPIDÍSSIMAS

CAFÉ NO BULE

Bem quentinho é como lampião de gás. Quantas lembranças ele nos traz.

PAI E MÃE

Eles sempre deixam saudade medonha. Um dia chega a hora de partir. E eles partem. Sem nos deixar endereço ou telefone. Não há tempo nem idade que aplaquem a dor no peito – dor que vai e volta, feito ioiô de porre.

NA DÚVIDA

Fique calado, esboce um sorriso enigmático, faça cara de conteúdo. O único risco é que o tomem por gênio.

INADIMPLÊNCIA

Aqui se faz. Aqui se paga. Quando sobra dinheiro para pagar, claro.

APARÊNCIAS

Não bastava ser honesta. A mulher de César tinha que parecer honesta. Por aqui, infelizmente, a maioria dos nossos “representantes” não parece honesta. Nem é.

SÁBIOS

Defuntos dispensam choros, velas, flores e caixão de qualidade superior. Não estão nem aí com essas coisas mundanas.

SE FOR VERDADE

Tudo bem, tudo bem. Só os incautos levam a sério falação de político. De qualquer forma, nunca é demais lembrar que muitos deles batem no peito e dizem em alto e bom som: “O Congresso é a cara do povo”. Se isso for verdade, a conclusão é inescapável: Somos uma m…

PRÉ-CONDIÇÕES

Para viver no Brasil, não basta ter nervos de aço e paciência de Jó. É preciso ter um saco imenso.

NUVENS

Minha fé é miúda. Já lhes disse isso. Não me orgulho disso. Mas hoje estou meio feliz. Só meio. Logo cedo, as nuvens desenharam um coração. Acreditei. Precisava acreditar.

LETALIDADE

Ora, dificuldades não matam ninguém. Mas a falta de perspectiva é cicuta na veia.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 16 de agosto de 2018

A ÉTICA DO CRUZ-CREDO: O VENDEDOR DE ATESTADOS

 

 

A ÉTICA DO CRUZ-CREDO: O VENDEDOR DE ATESTADOS

 

Em pouco tempo, Paulinho, perdão, doutor Paulo Gonzalez, enricou. Aprovado num concurso público promovido pela Prefeitura, ele se mudou para uma cidade de porte médio. Meses depois, montou o próprio consultório. Logo em seguida, também passou num concurso público do governo do Estado, para trabalhar no mesmo município. Só os profissionais que atuam na área da Saúde e Educação, como se sabe, podem ter simultaneamente dois empregos públicos. No começo, Paulinho, como o chamam familiares e amigos de adolescência, ralou uma barbaridade. Não tinha tempo para nada. Sua vida era só trabalhar, trabalhar, trabalhar.

Com o passar dos meses, Paulinho resolveu dar ouvidos aos colegas mais experientes. Cansado de dar murros em ponta de faca, passou a marcar o ponto de entrada e o de saída nos dois empregos públicos. Nesse meio tempo, ia cuidar da vida. Pedia às secretárias para que concentrassem as consultas em um ou dois dias da semana, no máximo. Passava boa parte do tempo em seu consultório particular. Em caso de emergência, lhe avisavam pelo WhatsApp – e ele ia de moto, zunindo, para seu posto de trabalho. Que o paciente esperasse um pouco. Ora, ninguém morre de véspera.

Mas o consultório, por mais que Paulinho ali permanecesse, por mais que distribuísse cartões e fizesse propaganda nos jornais locais, cambaleava. Clientela miúda. As consultas, raras, mal davam para pagar as despesas. Novamente, o doutor deu ouvidos aos colegas mais experientes. Deixou de lado a veleidade de ser um grande médico, sonho da família e dele próprio, e passou a vender atestados. Hoje, dá gosto de ver aquela movimentação. Um entra e sai de gente que não cessa, de segunda a sexta. A demanda é tanta que Paulinho resolveu dar um passo além. Deixa uma série de atestados já carimbados e assinados. Um funcionário de sua confiança, vestido de branco, encarrega-se de receber o dinheiro em troca do papelucho carimbado e assinado por Paulinho, perdão, por doutor Paulo Gonzalez.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 10 de agosto de 2018

QUASE HISTÓRIAS: O DAN ERA MENINO

 

QUASE HISTÓRIAS

O DAN ERA MENINO

E o velho sábio descascava laranjas sem quebrar a casca. Contava histórias, tirava a pele sem ferir o gomo, retirava as sementes, aguçava o apetite. Fazia aquilo por puro prazer. Com a calma de monge. O pequeno Dan se deliciava. E nós também. Aquilo tinha gosto de pomar.

***

DIÁLOGOS PERTINENTES

– Você sabe por que não temos manteiga nem margarina no pão? Você sabe por que não nos servem frutas nem sobremesas? Por que em vez de café tomamos chá?

– Não, não sei.

– Devia saber. Você é metido a sabichão.

– Ora, não seja besta. A clínica não nos serve nada disso para economizar. É evidente.

– Engano seu. Não é nada disso.

– Então, o que é?

– Aqui, eles seguem uma pedagogia da hora. É para que a gente valorize o que tinha em casa e não dava bola. Entendeu?

– Claro que sim. Vai ver que é por isso que ainda não tenho – depois de vinte dias de internação – travesseiro, fronha e coberta. Vai ver que é por isso que a comida que nos servem tem um jeitão de lavagem.

***

OS MELHORES AMIGOS

São os de quem gosto, apesar de seus defeitos e vícios. São muitos? São poucos? São velhos? São novos? São reais? São virtuais? Que importa? São os de quem gosto, apesar de seus vícios e defeitos. A maior parte deles só existe na minha imaginação. E isso já me basta.

 

 

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 19 de julho de 2018

O FÍGADO É PÉSSIMO CONSELHEIRO

 

O FÍGADO É PÉSSIMO CONSELHEIRO

Foi uma bonita história de amor. Claro, houve momentos ruins – momentos de tensão, tédio, agressões verbais e de tudo mais que, cedo ou tarde, passam a fazer parte de qualquer relacionamento longevo. Lua de mel não dura para sempre. Quem diz o contrário mente. Ou nunca conviveu com um (a) companheiro (a) por muito tempo. O desgaste é inevitável.

 

 

Após duas décadas de relacionamento, Joana estava para lá de farta dos defeitos e vícios de Alceu, que, a bem da verdade, não eram poucos. Alceu, por sua vez, já não tolerava mais as manias de Joana (vícios ela nunca teve) nem aquela sua presunção de estar sempre com razão, independentemente do tema em discussão. As rusgas viraram bola de neve. Tudo era motivo para alterações.

Um dia, após meia dúzia de discussões pesadas, Joana recolheu suas coisas, fez as malas e se mandou para a casa de um dos filhos. Deixou Alceu a ver restos de navios – navios que ela queimara para não cair na tentação de voltar atrás. Sim, porque antes de picar a mula, movida sabe-se lá por quais sentimentos, Joana fez questão de espalhar para a família, amigos e vizinhos os vícios e defeitos de Alceu. Ora, quem conta um conto sabe-se… Os vícios e defeitos de Alceu, que já não eram parcos, tornaram-se enormes.

Alceu não deixou por menos. Queimou todas as pontes que estavam ao seu alcance. Falou mal de Joana para fulano, beltrano, sicrano e para todos os que se dispusessem a ouvi-lo. Segundo ele, era a única forma de se defender das calúnias, difamações e da ira da ex-mulher.

Ambos, no fundo, sabiam que haviam exagerado nas críticas, que tinham raciocinado com o fígado. Afinal, se os dois fossem tão ruins assim, o casamento não teria durado tanto. Lesos eles não eram. Como negar que, ao longo do tempo, desfrutaram de muitos e bons momentos? Familiares, amigos e vizinhos poderiam atestar isso –, muito embora os vizinhos, amigos e familiares prefiram, ainda que inconscientemente, reter na memória e na língua os piores momentos da vida alheia.

Com o passar do tempo, Joana e Alceu, cada qual no seu canto, passaram a se corresponder diariamente, via WhatsApp. Falavam de amenidades, dos filhos, dos netos, do cachorrinho traquinas que uma das noras tratava como se fosse criança de colo. Às vezes, Joana e Alceu ensaiavam falar do que, de fato, importava. Não iam além de insinuações. O fato é que Joana ainda gosta de Alceu. A recíproca é verdadeira. Mas como voltar, se cada um a seu modo – ela queimando navios, ele destruindo pontes – fez estrago medonho na imagem do outro? O que dirão os familiares, amigos e vizinhos? No mínimo, que os dois não têm vergonha na cara. Joana e Alceu seguem infelizes. Cada qual no seu quadrado. Mas com vergonha na cara.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 29 de junho de 2018

QUASE HISTÓRIAS: O NÁUFRAGO

 

Uma ilhota cercada de idiotas e prepotentes por todos os lados. Era assim que se sentia. O que mais desejava era sair dali, rapidinho, feito pé de vento.

Mas, como? Não dispunha de papel, caneta e garrafas para lançar mensagens ao mar. Ainda que tivesse garrafas, caneta e papel, não daria certo. Como lançar às ondas, do alto de penhasco, seus rabiscos, se não podia ir até o penhasco, proibido que estava de sair da cela, exceto para tomar banho de sol três vezes por semana? Pedir ajuda a quem?

Nesses anos de reclusão, não conseguiu identificar pessoa em que pudesse confiar a guarda e o destino das garrafas que não tinha. Só lhe restava rezar por um milagre com a fé miúda de sempre. Era o que tinha.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 21 de junho de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 21.06.18

 

GALO

Seu canto é certo. Já não se pode dizer o mesmo dia que se avizinha.

A VIAGEM

Embora inesquecível, precisa ser esquecida. Para sempre.

SEM RETORNO

Reatar como, se você queimou todos os navios?

O BEM-AMADO

Muitos choraram copiosamente no dia em que ele partiu. Quando ele voltou, derramaram lágrimas. As primeiras foram de alegria; as últimas, de raiva.

CULTOS

Menos circo, mais espiritualidade.

PEQUENOS PODERES

A maioria dos homens jamais terá noção do quanto é ridícula.

CELA 45

Pior que as grades é a convivência forçada.

PIOR DOS MUNDOS

Duro mesmo é se dar conta de que seu destino depende da boa vontade de seu algoz.

TAL E QUAL

Deus e os números têm algo em comum: não mentem jamais. Infelizmente, não se pode dizer o mesmo de quem os interpreta.

PARTILHA

Ora, como bem disse Paulo, o santo, nem tudo o que posso me convém. Por analogia, nem tudo o que me falam tem serventia.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 14 de junho de 2018

QUASE HISTÓRIAS: A BIQUEIRA

 

Os vizinhos de longa data estavam inconformados. Vladimir, filho de dona Maria e de seu João, rapaz criado no bairro, voltara a ser internado na véspera, menos de dois meses após ter saído da clínica de tratamento para alcoólatras e dependentes químicos. Com 25 anos de idade, Vladimir tem um caminhão de internações (seis, com a atual) nas costas. Seu currículo não lhe serve para nada, mas sua folha corrida lhe fecha todas as portas.

Desde cedo, o filho de dona Maria e de seu João consome em doses industriais cachaça ordinária, crack, cocaína e tudo mais que lhe aparecer à frente. Para tanto, não mede esforços: furta, rouba, trafica, falsifica cheques etc. Vendeu diversos objetos dos pais, passou nos cobres a motocicleta do irmão caçula, dublê de entregador de pizza e office boy. Afinal, o vício em primeiro lugar. Ainda não caiu nas garras da Justiça, mas está jurado de morte por mais de um traficante.

A vida de Vladimir fora das clínicas tem rota conhecida: casa – bar – biqueira; biqueira – bar – casa. Frequentemente, some por duas, três semanas. Faz da cracolândia seu amargo lar. Dona Maria e seu João nunca sabem se ele está vivo ou morto. Os velhos já não acreditam em recuperação. A razão que os leva a internar o filho de novo é evitar que ele morra de overdose, de bala de bandido ou de tiro de polícia.

As recaídas de Vladimir são cada vez mais intensas. Quando sente o peso da barra, ele pisa no acelerador: bebe, cheira e fuma sem descontinuar. Não há quantidade que satisfaça sua fissura. Então, ele furta, rouba e trafica no mesmo ritmo alucinante. Inconscientemente, ele força a barra para ser internado. Nas clínicas, em pouco tempo, passa a comer feito leão (a falta de drogas precisa ser compensada de alguma maneira), ganha peso, exibe seus conhecimentos sobre os doze passos e as reuniões dos Narcóticos Anônimos. Vive a repetir, em alto e bom som, orações e expressões como “Glória a Deus” e “Aleluia”.

Brincalhão, não reclama de nada, faz da clausura involuntária um spa para gente de posses poucas, como ele e família. Nos cultos evangélicos, canta, toca violão, lê a Bíblia, simula entrar em transe ante “a palavra do Senhor”. Participa ativamente dos shows da fé. Nos momentos de orações, que precedem as cinco refeições diárias, agradece a Deus por ter lhe enviado a uma “casa como esta”. Amém.

Não há dia em que o filho de dona Maria e seu João não repita “n” vezes que está recuperado – muito embora não se esqueça da cachaça, da cocaína, do crack e da maconha. Adora funk e tatuagem. Diz para quem se dispõe a ouvi-lo que não sossegará enquanto não cobrir todo corpo com imagens de muitas cores e formatos.

Terminada a internação, Vladimir volta para casa com muitos quilos a mais. Por economia e estratégia de marketing, as clínicas de recuperação – que na verdade recuperam poucos (segundo a Organização Mundial da Saúde, só 3%, em média, não voltam a reincidir) – abusam dos carboidratos. Quem era pele, osso e pó vira gorducho. Ainda que não queira. Muitos ainda acreditam que bochechas vermelhas e quilos a mais são sinônimos de saúde.

Vladimir não foge à regra. Diz que a atual será sua última internação, que não volta mais para um lugar daqueles, que já planejou uma nova vida, que nunca mais decepcionará mãe e pai, que quer cuidar do filho pequeno etc. Mas, antes de colocar em prática seus muitos planos, vai dar um instante no bar e uma passadinha na biqueira. Para dar adeus à velha vida.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 07 de junho de 2018

QUASE HISTÓRIAS: EREÇÕES

 

Ananias estava a mil por hora, agitadíssimo, quase irreconhecível, tímido que sempre foi. Nunca falara tanto e sobre tantas coisas como naquela tarde fria de outono.

– Velho Marinheiro: tenho que lhe dizer algo. Não sei se viverei tanto tempo como o senhor…

– Nem queira.

– Mas, se viver, com certeza, eu não terei sua saúde, seu vigor, sua sabedoria e experiência.

– Meu caro, tenho mais dores do que você imagina. Meu vigor, perto do que tive no passado, é pinto. Quanto à minha experiência e sabedoria, palavras suas, quero lhe dizer uma coisa: trocaria ambas, sem pestanejar, pelas ereções que tinha aos trinta anos


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 01 de junho de 2018

QUASE HISTÓRIAS: HORAS MORTAS

 

 

Há quem as amaldiçoe. Eu não. Para mim, cuja opinião pouco ou nada vale, elas são as melhores horas. O telefone não toca, o WhatsApp cochila, a campainha não dá sinal de vida, as vozes da casa dormem o sono possível. Até o galo, sempre atento e arisco, finge-se de morto. As ruas sem gente me dão uma sensação rara e indescritível de liberdade. Claro está que liberdade plena não há. Mas nada é perfeito. Ainda bem. Que graça teriam nossas raras virtudes, sem nossos inúmeros defeitos? Vida insossa, penso eu, a dos candidatos a santo.

Como companhia, nas melhores horas, eu tenho apenas os velhos fantasmas de sempre. Deve ser assim com todo mundo. Ou, ao menos, com quem se dispõe a curtir as horas mortas. No passado, os fantasmas me assombravam. O tempo – sempre ele -, no entanto, mudou minha percepção. Hoje, somos quase íntimos, quase amigos – cúmplices com certeza. Às vezes, eles debocham de minhas poucas ideias. Sabem que, logo, logo, eu as abandonarei no meio do caminho para que ressurjam amanhã como se fossem novidades.

Do futuro espero pouco – o que também não me chateia. Planos são para os jovens, para quem ainda tem uma longa estrada pela frente. Ou, então, para os que fazem de conta que a tem. Iludir-se é uma maneira de sobreviver, uma forma de tocar o barco sem remar. Não os recrimino. Cada um que faça da vida o que bem quer.

Já remoí muito o passado. Hoje, não. O bandido mais machuca que ensina. Procuro me concentrar nas boas lembranças, nem sempre consigo. Mas, em geral, aproveito as horas mortas para sorrir ou chorar. Raramente gargalho. Rabisco palavras e setas. Com as últimas, hábito antigo, eu talvez busque uma saída improvável, embora não saiba para quê nem por quê. Com as primeiras, escrevo besteirinhas que, cedo ou tarde, pouca gente lerá. E ainda dizem que a maior parte dos homens não tem bom senso.

 

 

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 25 de maio de 2018

QUASE HISTÓRIAS: O RESGATE QUE NÃO HOUVE

Vem, não vem? Não vem. Vem, sim.

A dúvida lhe martelou os miolos por muito tempo, sobretudo nos primeiros dias – tempo de profunda angústia, ansiedade, medo. Tempo de nenhuma certeza. Não conseguia vislumbrar nada além de pontos e mais pontos de interrogação.

Claro que ela vem buscá-lo. Afinal, foram décadas de relacionamento, ora paradisíaco, ora conflituoso. Uma história tão longa, cheia de boas (e más) recordações, não se joga no lixo como se fosse uma bola de papel.

Mas, e se as brigas verbais e violentas dos últimos anos falassem mais alto – uma possibilidade nada desprezível? O fígado, como sabemos, é péssimo conselheiro. A família – filhos à frente – buzinava sem cessar na cabeça dela, sempre aberta ao rancor e blindada contra qualquer possibilidade de lembrança dos bons momentos. Além do que, não é nada desprezível o fato de desfrutar do conforto de ter marido vivo, confinado involuntariamente – e por tempo indeterminado – numa clínica de recuperação. Sai mais barato bancar o pagamento da clínica que custear os vícios das ruas. A pressão dos diretores da instituição, todos mais preocupados com os ganhos econômicos que empenhados no bem-estar dos clientes, não deve nunca ser desconsiderada.

Ela não veio resgatá-lo. Depender da boa vontade alheia, sobretudo de quem não prima por escrúpulos, equivale a entregar o destino nas mãos de seus algozes.

 

 

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 17 de maio de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 17.05.18

 

De chavão em chavão, o orador enche o saco.

ORGANIZAÇÃO TABAJARA

Ali, uns ascendem, outros decaem. E a incompetência coletiva continua a mesma.

BOM CONSELHO

Ouço com a máxima atenção tudo o que você me diz. E faço contrário. Tem dado certo.

CARA DE CONTEÚDO

Por trás daquela fachada circunspecta jazia um imbecil juramentado.

IDIOTIA

O Ministério da Saúde adverte: essa praga é incurável e altamente contagiosa.

QUER SABER?

Sua opinião, felizmente, já não me importa mais. Há tempos.

RESILIÊNCIA

– Querida: você me roubou a liberdade. Mas não pode me impedir de tentar reconquistá-la.

NÃO SE FIE

Poucos suportam ouvir verdades. Por isso, cedo ou tarde, lhe darão o troco. Covardemente.

PERDAS

De todas elas, a de que mais me ressinto é a falta de privacidade.

ELE
A quem só fala em Deus falta tempo para colocar em prática seus ensinamentos.

 

 

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 10 de maio de 2018

QUASE HISTÓRIAS: O TOMADOR DE DINHEIRO

 

 
 

 

 

Sempre foi um sujeito da pior espécie. Fazia jus à fama que, desde sempre, sua categoria profissional desfruta. Advogado medíocre, foi vereador e mais tarde conselheiro do Tribunal de Contas de uma grande capita brasileira. Um larápio bem-sucedido.

Certa feita, apresentou projeto de lei que obrigava os supermercados de médio e grande portes a dispor de um determinado número de vagas para automóveis e a contratar seguro para cobrir eventuais danos causados aos veículos da clientela. A iniciativa lhe rendeu espaços generosos em jornais, rádios e sites informativos. Colheu muitos elogios aqui e acolá.

O projeto passou por todas as comissões temáticas da Câmara. Quando estava pronto para ser votado em plenário, o autor tomou a decisão de pedir seu arquivamento. Ninguém entendeu nada.

Um funcionário do parlamentar – dublê de assessor de imprensa e bobo da corte –, no entanto, tinha uma justificativa para tal recuo na ponta de língua:

– Meu vereador é muito esperto. Ele apresentou o projeto a pedido das empresas de seguro. Depois, pediu seu arquivamento por pressão dos donos de supermercados. Levou dinheiro dos dois lados. Hehehe. O cara é fera.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 03 de maio de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 03.05.18

VELHOS FANTASMAS

Às vezes, eles simulam um cochilo, mas, na verdade, estão sempre alertas.

MODISMO

Eis a consagração da burrice.

ORAÇÕES

Nada mais besta que rezar coletiva e mecanicamente.

EXEGETAS

Não sabem o significado das palavras que leem, mas se metem a interpretá-las.

ABSTINÊNCIA

Ela não melhora o caráter de ninguém. Mas evita uma série de transtornos. O que não é pouco.

COMIDA (1)

Do mineirinho esperto: “O come quieto almoça e janta”.

COMIDA (2)

Do Velho Marinheiro: “Quem assobia não come”.

SOLIDÃO

A mais doída é a que acomete quem vive em bando.

CHATOS

Há de todos os tipos e para todos os desgostos. Mas, cá entre nós, os “chapados de Bíblia” são invencíveis.

TUDO PASSA

Mas precisava demorar tanto?

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos domingo, 01 de abril de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 01.04.18



ULA!

Levem tudo. Menos meu direito de sentir saudade.

PISCA-PISCA

Liga? Desliga? Desliga. Ninguém liga.

NA AVENIDA

Uma das vantagens de ser feio é não ter de usar máscara no Carnaval.

SENSÍVEIS

Quem não presta se ofende por qualquer coisa.

OPÇÃO

Prefiro os justos aos bons. Em geral, são mais úteis.

E O SONO?

Xiiiii. O vento levou.

PÉS NO CHÃO

A insônia, crônica, lhe roubou o pouco que lhe restava: os sonhos comezinhos.

RUIM COM ELE…

Melhor sem ele.

PSIU

A esta altura, qualquer palavra pode ser a gota da água.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 23 de março de 2018

E O POVO NÃO QUIS SABER DAS BANANAS RECHEADAS

Naquela época, não havia Código de Defesa do Consumidor. Se houvesse, o pai, com certeza, teria problemas. Justo ele, tão correto, desde sempre pregador do bem. O pai jamais pensou em prejudicar quem quer que seja. Enganar o próximo? Nem pensar. Chegava a ser radical. Quando garoto, ele me dizia: “Não faça ‘mal’ a nenhuma moça”. E eu torcendo para que uma e outra, para que todas as moças, enfim, me fizessem o “mal” necessário. Escapei da virgindade. Certos conselhos não podem – nem devem – ser seguidos.

Perdão. A ideia era falar de negócios e de propaganda enganosa que, a bem da verdade, não era exatamente propaganda enganosa. Era um equívoco semântico. Enveredei num papo de drive-in, que era para onde íamos, os apaixonados, naqueles tempos de fusca. Claro, me refiro aos prontos, como eu. Motel era coisa para gente bem de vida.

Voltemos ao que importa. O pai nasceu em Florianópolis, Santa Catarina. Filho único, ele chegou por aqui, em São Paulo, há muitas décadas, com a mãe (viúva), duas maletas, uns trocados no bolso, uma máquina de costura de mão e todos os sonhos do mundo. Estudou, trabalhou, deu aulas particulares. Um mouro, o pai. Casou-se. Menos de um ano depois, eu dei o ar da graça.

Por mais que o pai trabalhasse, não tinha jeito: o dinheiro do mês mal dava para a quinzena. Ele matutou, matutou, resolveu empreender. Precisava, dramaticamente, dar vida melhor para a mãe, assegurar o futuro dos filhos. Certo dia, ante a penúria que toda geladeira vazia denuncia, resolveu abrir o próprio negócio: comprou um triciclo daqueles para a entrega de pães, contratou um conhecido desocupado, traçou um plano de vendas e sonhou alto: o cara sou eu, deve ter imaginado. Então, anunciou em alto e bom som, cheio de confiança: vamos fazer “bananas recheadas”. Fez mais: delegou às mães – à dele e à minha – a tarefa de fazer as tais das “bananas recheadas”, que nada mais eram que pastéis de bananas, salpicados de açúcar e canela. Deliciosos. Até hoje sinto o cheiro deles (ou delas?). E babo. Cachos de bananas verdes foram dependurados por toda a casa, à espera do ponto certo. Pequeninho, eu me lambuzava com as bananas e com a farinha que caia dos sacos igualmente espalhados pelos cantos.

Como o dinheiro era curto, o negócio, infelizmente, naufragou em menos de uma semana. Não havia capital de giro. No primeiro dia, após horas de rua, o conhecido desocupado, recém-alçado à condição de vendedor, retornou à sede da empresa: vendera apenas uma das quase duzentas “bananas recheadas” com as quais fora para as portas de fábrica na hora do almoço. Segundo mãe e avó, comemos “bananas recheadas” até passar mal. Sem se alterar, o pai quis saber do funcionário o que justificaria tal insucesso (o pai jamais usaria o termo fracasso) de vendas do primeiro dia. Varou a madrugada refazendo a estratégia. No dia seguinte, pediu às mães que repetissem a produção da véspera. Dizem que não foi fácil fazê-lo aceitar a ideia de que cem bananas estavam de bom tamanho. E olhe lá! Pela mãe – a minha –, o “empreendimento” teria morrido ali mesmo, evitando, assim, trabalho inútil e novos prejuízos.

O pai sempre pensou grande. Mais: nunca desistiu facilmente de alguma ideia. De tempos em tempos – e durante anos –, voltava ao assunto, ameaçava retomar a iniciativa, para a apreensão de todos nós. Não se conformava com o fato de as “bananas recheadas” não terem encantado a freguesia. “Se fosse hoje, com a internet e tudo mais…” Eu desconversava sinceramente, ele também desconversava, mas só aparentemente. A ideia de retomar a aventura lhe formigava os miolos. O fato é que ele jamais conseguiu me explicar por que um simples, embora delicioso, pastel de banana era chamado de “banana recheada”. A banana não levava recheio algum, ela era o recheio. Que diabos! “Questões culturais, tradição de minha terra”, limitava-se a dizer, sem convencer ninguém. Vai ver que foi por isso que o negócio não deu certo. Sei não. Como, porém, explicar o fracasso da granja do quintal de casa?


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sábado, 17 de março de 2018

O MAR ENSINA

– Ananias, eu sei que no bar do Carneiro, mas não só aqui, muita gente me toma por arrogante. O que fazer? Nada. Ora, cada um pense o que quiser. Não ligo. Mas posso lhe garantir que não sou arrogante. Tenho apenas paciência zero com a maioria das pessoas. Acho quase impossível manter conversa com elas por mais de vinte minutos, se tanto. O que as pessoas, em geral, têm a me dizer não me interessa. A recíproca é verdadeira. Para que manter a farsa? Que fique cada um no seu quadrado. Melhor assim. Ninguém é obrigado a ouvir minhas falações, mas eu também não sou obrigado a ouvir as falações alheias. Compreende?

– Perfeitamente. Sou obrigado a deduzir que tenho sorte: comigo – não sei o motivo – o senhor tem paciência de Jó. Há dias em que ficamos sentados à mesma mesa por duas, três horas…

– Sabe por quê?

– Não, Velho Marinheiro. Nem imagino.

– Porque nós, Ananias, permanecemos a maior parte do tempo em silêncio. Boas amizades são urdidas na quietude. Ser amigo não é bisbilhotar a vida do outro, querer que o outro lhe conte o que ele não quer contar. Há tempo para tudo: para discutir coisas sérias, para contar piadas, para assuntar besteiras, para, eventualmente, desabafar. Mas, para que seja, de fato, bem aproveitado, o tempo não abre mão de uma dose generosa de silêncio. Aprendi isso com o mar.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 02 de março de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 02.03.18

 

RAPIDÍSSIMAS

UNS E OUTROS

O mal-educado é apenas um idiota. O politicamente correto, um idiota autoritário.

UMAS E OUTRAS

Convicção nada tem a ver com grosseria.

QUERÊNCIAS

Deus é Pai. Cada vez mais preciso de menos.

MICARETA

Eu ando, ela anda. Juntos, desandávamos. Bons tempos, aqueles.

ESPELHO MEU

Quem só se compara consigo mesmo nunca sabe se andou pra frente ou pra trás.

FUTEBOL

Sabe o que diferencia uma torcida organizada da outra? Nada. A boçalidade é a mesma.

FUTEBOL II

Quer conhecer um homem? Arrume um bando para ele.

DE BARRIGA CHEIA

Nós, os mais velhos, podemos reclamar de tudo, exceto da rotina. Toda manhã, acordamos com uma nova dorzinha.

RESSACA

Há dias em que a gente acorda assim: meio vagabundo, passarinho sem ninho.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 22 de fevereiro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 22.02.18

 

AUTOESTIMA

Se de mim falam o diabo – e falam mesmo -, é porque o diabo é bom.

VOLÚVEL

É o que sou: eu me apaixono fácil, fácil, pela mesma mulher. Há cem anos.

NA PIOR IDADE

Quando dá para fazer, orgia vira papai & mamãe.

KIBOM

Era ela. Era eu. Éramos sós, éramos poucos, viramos tantos.

DE CORA PARA ADOLFO

– Você passou a vida inteira me comendo com os olhos. Só com os olhos. Que pena. Que lástima, Adolfo.

PARABÉNS A VOCÊ

A única vantagem de fazer aniversário é se livrar do inferno astral.

ROTINA

Pior que voltar é não ter para onde ir.

BODAS

– Querida: a essa altura, até seu fingimento na cama é válido.

MAMONAS ASSASSINAS

Hoje, estou como eles. Já me passaram a mão na bunda. E eu não comi ninguém.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 16 de fevereiro de 2018

A ORELHA DO OSÓRIO

 

Coisa daquela, ali, no bar do Carneiro, ninguém jamais vira. Aliás, ninguém jamais vira coisa daquela ali nem em lugar algum.

A mulher estacionou o carro, atravessou a rua pisando firme, entrou no bar, não disse bom-dia a seu ninguém, caminhou na direção de Osório, pegou o marido pela orelha direita e esbravejou: “Bebendo de novo, vagabundo! Em casa, a gente conversa melhor! Você vai ver o que é bom pra tosse! Vamos embora, agora!” E pela orelha o levou até o carro.

Osório não esboçou reação.

Quem diria? Osório – que se mudara recentemente para o único prédio da rua -, sempre metido a besta, sempre a contar vantagens, sendo castigado em público feito menino travesso. E pela mulher, na frente de todos.

– O pior é que ele não me pagou nem a despesa – choramingou Carneiro, já contabilizando mentalmente o prejuízo certo, sua sina.

O espanto maior, porém, viria no dia seguinte, quando Osório, sem qualquer constrangimento, entrou no bar, pediu “uma” e perguntou ao Carneiro se lhe devia alguma coisa. Claro que devia. Osório sacou um bolo de dinheiro do bolso, acertou as contas e pagou mais três.

– Hoje, estou sossegado. Minha mulher foi fazer exames médicos na cidade. Vai demorar. Osório entornou as três já pagas, pediu mais duas e se foi. Trôpego.

Quando Ananias lhe contou a história, o Velho Marinheiro se limitou a dizer:

– Um tipo assim merece mais que puxão de orelha. Da próxima vez, espero que a mulher lhe abaixe as calças e lhe sapeque a bunda sem piedade. É um desavergonhado, Ananias. Um desavergonhado. O sujeito apanha da mulher em público e ainda volta ao local do “crime”. Pode?


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 09 de fevereiro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 09.02.18

 

ARROZ COM FEIJÃO

Há fases, meu caro, em que o melhor é fugir das novidades.

POIS É

No fundo, a gente acaba sendo o que deu para ser. O resto é invencionice.

GENEROSIDADE

Há mulheres que fingem, por uma vida inteira, ter o orgasmo que jamais tiveram. São as mais generosas: elas nos dão a ilusão de dever cumprido.

FANTASIAS

Se ficar triste não lhe dá camisa, bote a roupa de contente.

PREGUIÇA

Medo? Medo nada! Só falta disposição para pegar a estrada.

TEMPOS DIFÍCEIS

Até o cachorrinho anda meio ressabiado.

FIM DE SEMANA

Segundo Nélson Rodrigues, “o sábado é uma ilusão”. De onde se conclui que o domingo à tarde é a pá de cal nas ilusões.

CONSELHEIROS

Botem reparo: os idiotas estão sempre disponíveis para ensinar o que não sabem.

MORTOS-VIVOS

Todos os dias nasce um balaio de gente que já nasce morta.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 02 de fevereiro de 2018

QUASE HISTÓRIAS: BOM CONSELHO

 

BOM CONSELHO

Está velho, esquecido? Calma: nem tudo é demência. Nem tudo é aquela maldita doença do alemão. Compre uma agenda pra marcar os compromissos. Mas não se fie na memória: não se esqueça de contratar uma secretária para abri-la todos os dias. E lembrá-lo do que você tem a fazer.

DE ILUSÃO…

– Sabe, Argemiro, eu tenho me sentido muito melhor. As dores nas costas diminuíram muito. Faço massagem duas vezes por semana. Saio de lá outro homem, revigorado, leve feito pluma. A massagista – moça bonita – é querida demais, atenciosa, amor de pessoa. Tem mais: é barateira. Por que você não tenta?

– Pra mim, coisa dessa não dá certo.

– Por quê?

– Se a massagista chegar perto de mim, ainda mais se for assim – moça bonita, querida demais, atenciosa, amor de pessoa –, como você me disse, o “circo” arma. Saio mais tenso que entrei.

– Sou obrigado a reconhecer, Argemiro: você sempre foi coerente, mentiroso profissional. Na nossa idade, nem a vontade de urinar provoca ereção.

TODA ATENÇÃO É POUCA

Leve a velhinha pra tomar sol. Todos os dias. Leve o velhinho pra tomar sol. Todos os dias.

Mais que um gesto humanitário, tal prática faz bem à saúde. À saúde deles e à sua.

Só não se esqueça de tirá-los do sol.

O Ministério da Saúde adverte: “Se for levar o velho para tomar sol, não beba.”


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 25 de janeiro de 2018

QUASE HISTÓRIAS: FARPAS

 

CENA 1

A conversa tomou rumo constrangedor, para dizer o mínimo.

Do nada, Darci começou a palpitar sobre assuntos que não eram de sua conta e sobre os quais não fora convidado a emitir opinião:

– João: não me leve a mal, mas acho que você anda acomodado. Olha o seu celular. É do tempo de Noé, o patriarca. Ninguém mais usa uma porcaria dessas, pega até mal sair com um treco desses por aí. Troco o meu duas vezes por ano. Passou da hora de você comprar uma coisinha melhor. Mais: o seu apartamento não é ruim, é até bonzinho, mas a localização é péssima. Para completar, você só frequenta espeluncas como essa em que estamos. Como é que você vai-se relacionar com pessoas de nível melhor?

– Darci: quem lhe disse que eu preciso de celular top de linha, de carro novo? Quem lhe contou que eu desgosto do bairro em que moro desde que nasci e do boteco em que tomo minha cerveja nos finais de tarde? Quem lhe disse que tenho interesse em me relacionar, para usar expressão sua, “com pessoas de nível melhor”? Estou preocupado em fazer bem o meu trabalho…

– É por isso que você não vai pra frente… Pensa pequeno.

– Darci: quem lhe disse que tenho interesse em levar a vida que você leva, em pagar o preço que você sempre pagou – e paga – só para impressionar os outros? Gosto da vida que levo, do trabalho que faço (não trabalho pouco, ao contrário), gosto da liberdade de que desfruto… Cada um é de um jeito, meu caro. Além do mais, estou velho para mudar e não tenho vontade nem necessidade de mudar. Perdão pela franqueza: foi um desprazer revê-lo após tantos anos. Boa sorte. A despesa fica por minha conta. Tchau.

 

 

CENA 2

Aurora estava impossível. Não se cansava de falar sobre as operações plásticas nos seios, nádegas e cara, nem de enaltecer a cor obtida com o bronzeamento artificial. Mas queria também ser reconhecida intelectualmente. Fazia questão de frisar que lia meio livro por ano, há anos!

Janete não deixou por menos:

– Presto muita atenção, Aurora, no que você diz. Você sempre me ensina muita coisa.

– Querida: obrigado. Deixando a modéstia de lado, já imaginava.

– Sempre faço o contrário do que você prega. Tem dado certo.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 19 de janeiro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 19.01.18

 

MENOS

Ninguém é absolutamente sincero. Eu não sou. Às vezes, digo até logo, mas o verdadeiro desejo é dizer adeus.

CESTA BÁSICA

Há dias em que eu quero muito. Há dias em que o pouco me basta. Na média, uns selinhos já estão de bom tamanho.

ESPELHO MEU

Já não sou mais o mesmo. Pensando bem, nunca fui o mesmo.

ESPELHO MEU (II)

Não me tomem por um triste inveterado. Sou apenas um amuado passageiro.

Não me orgulho de minha fé miúda. Mas, toda vez que ouço/vejo certas pessoas, me benzo. E engato um Pai Nosso.

BRASIL

Ame-o e deixe-o.

RIO DE JANEIRO

Ele continua lindo. Se não fossem os ladrões do morro e do asfalto…

PLATEIA

Por trás de um ditador, há sempre uma legião de imbecis a idolatrá-lo.

CARAS-DE-PAU

Desplante não carece de adubo, alimenta-se de si próprio.

MEIA SOLA

Não basta dormir na cadeia. Tem que devolver parte (tudo é impossível) do dinheiro roubado.

BOLA CANTADA

Sina? Não. Falta de caráter. Surpresa? Nenhuma.

DE CARTOLA PARA A TURMA DA MALA

– Chega de clamares inocência.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 11 de janeiro de 2018

RAPIDÍSSIMAS - 11.01.18

 

FERIADO

Quando cai na quarta, é pênalti. A semana passa a ter duas segundas – a segunda propriamente dita e a quinta, segunda meia sola.

* * *

XÔ, TRISTEZA

Você é a pior das amantes.

*  * *

# EU PRESTO

Perdão, pela imodéstia. Amo vocês.

* * *

VELHO PASSARINHO

Com vontade de voar.

* * *

LUA DE MEL

Não havia hora marcada. Era assim: um beijo, uma explosão. Filhos e filhos. As contas cada vez mais salgadas trataram de arrefecer o tesão.

* * *

UMA DOSE, GARÇOM

Amor é feito uísque: se é dos bons, envelhece com dignidade.

* * *

CUIDADO, IRMÃO

Às vezes, o noticiário não esclarece: emburrece.

* * *

GENTE DO CÉU

Quem não gosta de beijo bom sujeito não é.

* * *

SINAL DOS TEMPOS

Pelo andar da carruagem, em breve, ninguém mais perguntará ao parlamentar a que partido ele pertence, mas, sim, de qual quadrilha ele faz parte.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 04 de janeiro de 2018

DE PEÃO A MARAJÁ

 

A euforia de Antoninho Lisboa saltava aos olhos de todos. Cumprimentava quem cruzasse seu caminho, fosse amigo ou não, fosse conhecido ou não. Mandava beijos para crianças, fazia mesuras para as senhoras de meia idade para cima. Parecia candidato em ampanha. Mas, Lisboa, como todos o chamavam, não era candidato a nada, exceto a viver a vida. Na véspera, saíra sua aposentadoria. E que aposentadoria! Vencimento integral, equivalente ao que recebia na ativa, coisa de cinco vezes o teto de INSS. Ainda era novo, saúde em perfeitas condições. O que mais alguém pode querer? Ia pelas ruas cantarolando aquela música de antigas festas de fim de ano, embora estivéssemos na Quaresma: “Adeus, vida velha; feliz, vida nova. Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”.

Lembrou-se de comprar algum presente e fazer visita para doutor Quirino. Precisava agradecê-lo. E muito. Ninguém fez por ele o que o-ex-diretor-geral da Câmara Municipal lhe fez. Ninguém. Nem o próprio pai. Primeiro deu um jeito para que ele passasse no concurso para ajudante geral. O salário não era nem uma maravilha, mas também não era de se jogar fora. Em seguida, o tutor o chamou para uma conversa reservada. Até hoje, Toninho português lembra-se com exatidão daquelas sábias palavras:

– Meu querido Lisboa, eu vou lhe pedir duas coisas: (1ª) que você acredite em mim e (2ª) que você se deixe levar pela engrenagem da Câmara. Enquanto eu estiver no comando, o teu céu será de brigadeiro. Mas é fundamental que tenhas paciência.

Três meses depois, doutor Quirino o chamou para uma segunda conversa:

– Meu amigo, a partir da próxima semana, você irá trabalhar para o vereador Vadão. Ele vai lhe dar um cargo comissionado. Só que você terá que lhe devolver a diferença.

– Que vantagem eu levo, doutor Quirino? Perdão, eu não entendi.

– Várias. Você não precisará vir à Câmara às segundas e sextas. Com sua habilidade, não terá dificuldades para arrumar uns bicos, a fim de reforçar o orçamento. O mais importante, porém, é que, de tempos em tempos, parte do seu salário de assessor será incorporada ao seu salário de origem. E isso ninguém mais lhe tira. Quando você se aposentar, terá uma baita aposentadoria. E tem mais: vou pedir ao vereador Vadão que lhe dê R$ 500 por mês. Ou seja: você começa como peão e termina como marajá. Entendeu?

– Entendi. Como posso lhe agradecer?

– Não se preocupe com isso, querido. Apareça em meu apartamento aos sábados. Tenho andado muito só, carente mesmo. E não se esqueça: deixe-se levar pela engrenagem.

E assim foi feito.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 29 de dezembro de 2017

AS VIAGENS DE ZÉ LINS

 

Zé Lins esperou, pacientemente, que todos convidados fossem embora e que mulher e filha – a única dos rebentos que ainda morava com eles, embora já beirasse os trinta anos – destilassem os inevitáveis comentários pós-festa e se recolhessem. Demorou, mas sua hora chegara. Serviu-se de uma dose generosa de uísque. Apanhou cigarros e cinzeiro. Certificou-se de que não lhe faltariam os fósforos. Dirigiu-se à varanda, puxou a espreguiçadeira. Hora de manter as pernas estendidas. Malditas varizes.

Zé Lins, então, puxou prosa com Guilhermino, desde sempre seu melhor amigo. Mais que irmão, um confidente. A única pessoa com a qual se abria inteiramente. Entre eles, não havia segredos. Falavam sobre tudo, não havia assunto proibido. Guilhermino ainda tinha uma vantagem em relação a todas demais pessoas que Zé Lins conhecia: Guilhermino não dizia sim, não dizia não. Guilhermino nada falava, só ouvia.

O anfitrião dava de ombros, achava ótimo. A cumplicidade entre eles era tanta que Zé Lins adivinhava o que o amigo queria lhe perguntar, sabia quando ele estava de acordo, quando tinha alguma objeção a fazer. Então, deitava falação, caprichava nos argumentos, detalhava seus planos, buscava as minúcias do passado. Como a conversa iria longe, Zé Lins achou por bem deixar o litro de uísque por perto. E assim foi feito. Coisa chata interromper, de tempos em tempos, bate-papo tão gostoso. Corre-se sempre o risco de perder o fio da meada.

Foram horas de confabulação. Zé Lins e Guilhermino falaram sobre tudo: de amores perdidos, de conquistas e fracassos profissionais e, claro, da paixão pelo time alvinegro. Zé Lins apagou. Não viu Guilhermino ir embora. Nem ouviu o galo cantar. Foi despertado pela mulher, quando o sol já lhe corava as bochechas:

– Vai dormir na cama, homem. Está todo torto. As varizes já lhe arruinaram as pernas. Agora, quer escangalhar a coluna?

– E o Guilhermino, onde ele está?

– Que Guilhermino o quê! Francamente. Você passou a noite falando sozinho. Depois desandou a cantar “Antonico”. Zé Lins, você precisa se tratar. Vai por mim. É só ficar sem ninguém por perto para chamar os fantasmas.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 21 de dezembro de 2017

UM CONSOLO AOS FOFOS E FOFAS, MEUS COLEGAS DE PESO E DE CRUZ

 

Sei que é triste namorar uma roupa por semanas, sonhar com ela acordado e, na hora H, não encontrar seu número. Há muitas peças disponíveis, claro, mas nelas você só entraria nem se lhe cortassem ao meio. Algo que nem rei Salomão pensaria em fazer, sábio que era. Bate, então, aquela revolta medonha. A vontade é torrar o dinheiro da roupa nova que você não terá em chope, sanduíche, chocolate, sorvete, enfim, em tudo aquilo que não é imoral nem ilegal, mas que engorda uma barbaridade. “Se tenho que ir à festa com a roupa velha, eu vou. Mas vou de barriga cheia”, diz você para você mesmo, antes de lambuzar a primeira batata frita de maionese, mostarde e molhos diversos.

 

 

Calma. Pense positivamente. Ora, se você nunca encontra seu número, é porque muita gente está tão gorda quanto você. A diferença é que alguns gordos dão sorte ou são mais espertos. Compram o tamanho SUPER GGGG antes que outros gordos cheguem à loja. Sei que tal raciocínio não resolve seu problema. Mas serve de consolo. Afinal, ninguém gosta de se ferrar sozinho. E de ilusão também se vive, dizem.

* * *

Quer acabar com o efeito sanfona? É fácil: não emagreça.

* * *

A MELHOR DIETA…

… é a que não precisa ser feita.

* * *

SEU ROSTO, QUERIDA, JÁ AFINOU

Você, então, resolve fazer uma dieta, perder uns muitos quilos, para poder vestir uma roupa que não a deixe com a aparência de um colchonete amarrado. Vai à luta, mais uma vez. Empanzina-se de mato e frango na chapa, jura por Deus que gelatina light é uma delícia, muito mais saborosa que quindim. Depois de semanas de sacrifício, encontra a “amiga” que paga para não encontrar. E ela não lhe poupa “elogios”:

– Nossa! Você está bem! Seu rosto já afinou…

Não reaja, conte até mil, seja sertaneja, seja forte. A mãe de sua amiga é o que dela se diz: uma p… Mas, lembre-se, querida: xingamentos não diminuem seu manequim.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 15 de dezembro de 2017

QUEM AVISA, AMIGO É

 

– Não lhe falei? Quem mandou você fazer compras na José Paulino? Ali, não é lugar para você. Não adianta insistir. Nada do que está à venda lhe serve. Depois, fica assim: deprimida.

– Cretino. Está me chamando de gorda?

– Não, querida. É que coreanas, você sabe, não têm bunda. Por isso, fazem roupas minúsculas. Já você, com a graça de Deus, tem um pandeiro de encher os olho


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 07 de dezembro de 2017

É SIMPLES ASSIM

 

– Ananias, duas coisinhas, apenas para colocar os pingos em seus devidos lugares: (1) não tenho a presunção de estar sempre certo. Ter razão não me interessa mais, há tempos; (2) não estendo prosa com a maioria das pessoas não porque me sinta superior a elas, nada a ver. É uma questão de afinidade. Compreende?

– Sei disso, Velho Marinheiro, sei disso. Não precisa se explicar.

– Não estou me explicando. Estamos conversando.

– É que algumas pessoas acham que o senhor…

– Que pensem o que quiserem. Não lhes dou a mínima. Por isso, jamais tome minhas dores. Sei me defender, mas nem perco tempo com isso.

– Está certo.

– Mudo de opinião quantas vezes forem necessárias, desde que me convençam com argumentos lógicos, não com burrices generalizadas. Nessa espelunca do Carneiro, que só frequento por falta de opções, o melhor informado não foi além do “Caminho Suave”. Mesmo assim, não conseguiu absorver todos os ensinamentos.

– Verdade. Deixa pra lá. Não quero chatear o senhor.

– Ananias, você não me chateia. A não ser quando se comporta feito guri precisando de afago. Só para concluir: não dou muita conversa para essa turma por uma simples e definitiva razão: o que eles têm a me dizer não me interessa, e o que tenho a lhes contar não interessa a eles. É simples assim. Então, cada um no seu cercado. Agora, prove um bolinho de arroz. Está bom. É uma das poucas coisas que presta nesse boteco


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 30 de novembro de 2017

RAPIDÍSSIMAS - 30.11.17

 

CARCARÁ?

Que nada. Sou bom velhinho: não pego, não mato, não como.

* * *

VADE RETRO

Dos convertidos quero distância. São muito chatos.

* * *

TRUNFO

– Por que você não se trata?

– Enlouqueceu? Quer que eu perca meus álibis?

* * *

GERÚNDIO

Essa coisa é como bebida: só para profissionais.

* * *

ATREVIDA

A burrice não pede licença. Nem perdão.

* * *

JUSTIÇA

Quando ela não tarda nem falha, faz vistas grossas.

* * *

QUEM SEMEIA VENTO…

Os políticos aprontam tanto e há tanto tempo que nos botecos a sentença está dada: não basta cassá-los, é preciso caçá-los.

* * *

REFORMA POLÍTICA

Não há uma que dê jeito na falta de caráter.

* * *

NÃO

Dizê-lo não é fácil. Às vezes, ele nos custa os olhos da cara. Mas, afinal, quem precisa de olhos?

* * *

PAPAGAIOS

Sejamos francos: para além da consciência, a pior inimiga é aquela conta que vence amanhã. E que não encontra respaldo em seu saldo bancário.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 24 de novembro de 2017

A FARRA DOS SINOS

O sino da igreja faz sua algazarra diária. São dezoito horas em ponto. Ele convoca os fiéis para a missa das seis com o entusiasmo típico dos pentecostais, embora esteja dependurado na torre de uma igreja católica. Deve ser da corrente carismática, o sino. Salvo engano, entusiasmo maior que o badalar das dezoito horas só aos domingos de manhã. Missa das dez. A alameda que leva à igreja ganha, então, um contingente considerável de transeuntes – homens e mulheres de fé variada, mas todos arrumadinhos. Nesse dia, Juvenal, por exemplo, toma banho, troca a roupa que usara ao longo da semana e passa fixador nos poucos fios de cabelo que ainda lhe  restam. Uca só depois da cerimônia. Está certo, o Juvenal. Não tem cabimento entrar tocado na igreja. É questão de respeito, ora.

.

Sempre que o sino soa chamando os fiéis uma dúvida passageira me acomete. Vou, não vou? Vou, não vou?

Claro que eu não vou, nunca fui de missa. Participei de algumas, evidentemente, quase sempre meio contrariado: batizado e crisma (dos filhos e dos filhos dos amigos), casamento de colegas de repartição, missa de sétimo dia de gente que fora próxima. Eventos assim. Nem por isso desgosto de igrejas. Ao contrário. Mas só as visito fora dos horários de culto, quando estão vazias. Não consigo rezar com gente ao meu redor. Nem com cantoria. Meu pai sempre me dizia que Deus se manifesta no silêncio. Penso que ele estava certo. Nessas horas, à minha maneira, converso com Ele, arrisco um Pai Nosso entre dois sinais da cruz. Sei lá. Acho que Deus me entende. Até aonde me recordo, nunca me faltou. Doenças, mortes e perda de emprego fazem parte da vida, são inevitáveis. Pode ser excesso de otimismo de minha parte – vai saber -, mas penso que Ele releva essa minha falta de jeit


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 16 de novembro de 2017

QUASE HISTÓRIAS: E O AMOR SAIU PELA JANELA (9)

 

– Inês, eu sou obrigado a admitir: você ganhou a batalha da comunicação. Tanto fez, tanto faz que os filhos – todos eles, sem exceção – não estão nem aí comigo. .

– Pelo amor de Deus, Jorginho, vai começar? É segunda, a casa está de pernas para o ar. Em vez de ficar reclamando, inventando coisas, você devia é me-ajudar. Ontem, não foi tudo bem? O que mais você quer? Todo mundo comeu, bebeu, conversou, deu risada, não teve sequer uma discussão. Até você se comportou:-bebeu, mas não encheu a cara nem o saco de ninguém. Coisa rara, convenhamos.

A guimba ainda fumegava no cinzeiro, mas Jorginho tratou de acender outro cigarro. Sinal de que não havia dado os trâmites por findos. Retomou a velha cantilena:

– Não acredito que você não perceba. Tento puxar conversa, mas é impossível. As respostas são todas monossilábicas. Agem como se eles estivessem me fazendo um favor. E o que é pior: as duas noras e os dois genros seguem a mesma trilha. Verdadeiro complô. Daqui a pouco, serão os netinhos. Fico sabendo por terceiros que o Júnior trocou de carro, que a Maria foi promovida no serviço, que Isaura conseguiu o título de doutora… Mandam as fotos das crianças só para você.

– Jorginho, o que você quer que eu faça? Fale com eles?

– Nem pensar. Nem pensar.

– Por que não?

– Inês, eu não sou homem de passar recibo.

– É verdade. Orgulhoso, você nunca passou recibo. Em compensação, deixou rastros por toda parte. Ora, eles não gostam que você beba e faça piadas tolas na frente de todos. Eles não esquecem o caso que você teve com aquela mulher. Por eles, eu não vivia com você há muito tempo.

– Aquilo é coisa do passado. Faz tanto tempo, francamente. E, de lá para cá, nunca mais aprontei, Inês. Você sabe disso.

– Quem apanha não esquece. Eles eram pequenos. Sofremos um bocado.

– Por que você está comigo, se por eles… Você ainda me ama, Inês?

– Jorginho, vai tomar seu aperitivo, vai. Não vou fazer almoço. Sobrou muita coisa de ontem.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 09 de novembro de 2017

RAPIDÍSSIMAS - 09.11.17

DIFERENÇAS

Crianças passam pela fase do “por quê?” Uma chatice. Velhos enveredam pelo beco do “para quê?” Uma lástima.

* * *

RECEITINHA

Na dúvida, mostre-se pessimista. Muitos vão tomá-lo por “cabeça”.

* * *

E OS AMORES SE FORAM

Não lamento. Fui junto.

* * *

GLÓRIAS

Vivo das que jamais tive.

* * *

LIBERDADE, LIBERDADE

Não tenho mais opinião definitiva sobre nada.

* * *

TAREFA IMPOSSÍVEL

Perdão, senhor, jamais me recolherei à minha insignificância. Dela nunca saí.

* * *

BAIXA TEMPORADA

– Pois é, minha velha, está difícil inventar.

* * *

DE CARA LIMPA

É difícil sustentar, com a maioria das pessoas, um papinho de meia hora.

* * *

LAGOSTA

– Querida: você tem muitos sabores. Meu predileto é o de frutos do mar.

* * *

TPM

– Isaura, o que acaba com você não é a feiura: é o gênio.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 02 de novembro de 2017

QUASE HISTÓRIAS: SANTA CUMPLICIDADE

 

CENA 1

– Você está ficando velho, meu velho. Não se preocupe, não. Ninguém lhe dá a idade que, de fato, você tem. Parece ter quinze anos a menos. Continua bonito, 
conservado. Mas – como eu – envelheceu.

– Por que diz isso?

– Seus olhos marejam por qualquer coisa. Os meus também marejam à toa. Que importa? Estamos juntos.

* * *

CENA 2

Argemiro (8.6, hipertenso, cardíaco) e Esmeralda (8.7, obesa, diabética) eram casados há sessenta anos. A cada dia, a cumplicidade entre eles aumentava ainda 
mais:

– Tudo bem, Argemiro, não vou dizer aos meninos que hoje você tomou hoje uma cachaça escondida e duas latas de cerveja também.

– Você jura por Deus, Esmeralda, que não vai contar aos meninos que bebi? Eles estão loucos pra nos internar…

– Juro. Mas só se você jurar também que não vai contar pra eles que eu bati uma lata de leite condensado.

– Claro que não vou contar nada pra ninguém. Só não podemos exagerar.

– Quer uma balinha de coco?

– Não, obrigado. Vou tomar mais um gole.

* * *

CENA 3

Impossível não ouvir, que bom ouvir! Quase duas horas de viagem. Eles não paravam de conversar conversa deliciosa – os dois sentados nos bancos atrás do meu.

Comentavam a paisagem, as notícias do dia, falavam – lúcidos, serenos, apaixonados – sobre tudo. Tinham, salvo engano desse contador de boteco, 190 anos de 
amor.

Melhor tirar os óculos para leitura, fechar o livro e ouvir com atenção.

Hora de aprender.

Lá pelas tantas, ele disse a ela:

– Acordei duas e meia, estava meio ansioso, pensei em lhe chamar… Resolvi não incomodá-la.

E ela, feliz da silva, lhe devolveu:

– Bobagem. Você nunca me incomodou. E continua não me incomodando. Não me incomodará nunca.

* * *

CENA 4

– Cadê meu chinelinho de quarto, meu velho?

– Não sei, não, querida. Vou procurá-lo.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 26 de outubro de 2017

RAPIDÍSSIMAS - 26.10.17

 TRIBO

Minha taba é minha oca.

* * *

TRIBO (2)

Ante a dificuldade de encontrar amigos, a maioria opta por ingressar em tribos.

* * *

DEIXA PRA LÁ

Mágoa mata. Perdoar é para poucos. Às vezes, se possível, melhor não lembrar.

* * *

TIMING

Após décadas de escravidão, a liberdade tardia pode virar estorvo.

* * *

HOMEM DE FÉ

Sempre achou que dava para fazer de cada tombo uma limonada.

* * *

PROGRESSÃO GEOMÉTRICA

De mentirinha em mentirinha, transformou-se num mitômano.

* * *

BONS SONHOS

O galo cantou, o dia amanheceu: hora de nanar.

* * *

PACIÊNCIA

Pernas, braços e membros já não dão conta dos melhores pensamentos.

* * *

PELAS COSTAS

Quando o olho cresce, prepare-se: a facada é certa.

* * *

CONDIÇÃO

Falar sozinho é muito bom, desde que não se elimine o contraditório.

* * *

AI, AI, AI

Esse coração insensato já não suporta mais sua coerência.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 19 de outubro de 2017

RAPIDÍSSIMAS

ÉTICA NA POLÍTICA

Assim vamos: o roto fala do rasgado, o rasgado desanca o maltrapilho. E todos afanam.

* * *

RITA LEE

Na pior idade, a forma mais comum de fazer amor é por telepatia.

* * *

QUEM DIRIA?

Tudo aquilo não passava de um faz-de-conta.

* * *

COMPADRE:

A ida é certa, mas não digo o mesmo da volta.

* * *

TODO MUNDO FICA VELHO

O problema é continuar burro.

* * *

ABUSADA

Onde você arrumou essa intimidade que nunca lhe dei?

* * *

TIM-TIM

Um beijo pra ti, outro pra mim.

* * *

ESTÁ DIFÍCIL

Hoje, pelo visto, só pego no tranco.

* * *

PILOTO AUTOMÁTICO

Quando ele assume o comando, o T já era.

* * *

SANTA CHATICE

Todo pai é chato. Se ele não for chato, não é pai.

* * *

HISTÓRIAS

Já me contaram tantas. Quase todas eram falsas.

* * *

SANTOS COPOS

Um cantinho, um violão… E o coração voa. Enternecido.

"


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 12 de outubro de 2017

QUASE HISTÓRIAS: QUEM É O CHEFE?
 

 

 

O candidato fez o que pode para quebrar as resistências dos ouvintes. Para tanto, valeu-se de sua larga experiência de ilusionista. Afinal, aquela não era sua primeira incursão na árdua tarefa de pedir votos – para ele próprio e para outrem. Distribuiu sorrisos largos e tapinhas nas costas, não deixou de perguntar como andava mãe e pai de uns e outros, financiou cachaça e cerveja para todos aqueles que estavam dispostos a quebrar o gelo. Enquanto a carne de segunda queimava na churrasqueira, fez seu discurso, entremeado de piadinhas sem graça e promessas vãs. Foi breve. Era do ramo. Estava na estrada há quase vinte anos.

 

Terminada a falação, o candidato abriu a palavra a quem quisesse se manifestar. Romualdo Bastos – o grande cruzadista de Vila Invernada, talvez o único -, pediu pela ordem e engatou uma sugestão:

– O que o senhor acha de incluir no currículo da rede estadual uma nova disciplina? Precisamos despertar em nossos jovens o interesse pelo saber. Fazer palavras cruzadas é a porta de entrada desse mundo maravilhoso do conhecimento.

Com ar solene, o candidato dirigiu-se a seu factótum:

– Anote aí, Gustavo, essa será uma de minhas prioridades. Vou trabalhar por sua aprovação, desde o primeiro dia de meu próximo mandato.

De jogo de camisas para o time do bairro à reforma do campo de malha, os pedidos se sucediam. Gustavo registrava com esmero as novas prioridades de Sua Excelência, um homem em prol de todas as causas que lhe pudessem render uns votos.

O Velho Marinheiro resolveu, então, entrar na conversa:

– Doutor, o senhor disse que já fez isso e aquilo, que fará muito mais no próximo mandato, que seu partido é formado por gente séria, por pessoas que não roubam nem deixam roubar etc. Só não nos disse o essencial.

O candidato mordeu a isca, não tinha como escapar:

– Perdão, mas o que seria o essencial para o caro amigo?

– Ora, o senhor tem uma dezena de processos por furto aos cofres públicos. Jornais dizem que, não satisfeito com o próprio rendimento e com as negociatas, Vossa Excelência toma parte dos salários de seus funcionários de gabinete…

– Tudo mentira da imprensa golpista.

– Ninguém faz sozinho tanta lambança. A qual quadrilha o senhor pertence? Quem é o chefe de seu bando? Precisamos conhecer seu grau de periculosidade.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 05 de outubro de 2017

O SENHOR TEM CERTEZA DE QUE NÃO É CORNO?

 

Num passado não muito distante, aos secretários de redação dos jornais não bastava dominar os fundamentos da profissão. Era preciso ter vocação para carrasco. É lícito imaginar que, se eles pudessem, obrigariam repórteres e redatores novatos a colocar os joelhos sobre grãos de milho, por horas. Ou fariam, com satisfação, uso da palmatória. Eram (quase) todos eles adeptos da “pedagogia da porrada”. Ante a impossibilidade do castigo físico, partiam para a humilhação pública e verbal. Mandavam repórteres e redatores reescrever textos que rasgavam sem ao menos ter lido as primeiras linhas. E a justificativa era sempre a mesma: “Está um lixo”.

Nos anos 60, Ricardo Noblat era um jornalista em início de carreira. Época em que conviveu com o secretário de redação do Jornal do Commercio, no Recife. Segundo ele, Eugênio Coimbra Júnior “era um homem mau, muito mau”. Toda vez que ele convocava algum repórter ou redator à sua mesa de trabalho, a redação tremia. Humilhação à vista, grosseria na certa. Ninguém ria da desgraça alheia. Até porque muitos já haviam experimentado daquele fel. A historinha que segue foi extraída do livro “A Arte de Fazer um Jornal Diário”, de Noblat, editora Contexto.

Certo dia, Coimbra Júnior convocou um repórter:

– O senhor é casado? – quis saber o secretário de redação.

– Sou – respondeu o repórter, fazendo esforço medonho para se equilibrar sobre as pernas.

– O senhor tem certeza de que sua mulher o ama?

– Claro. Certeza absoluta. Nós nos damos muito bem.

– Tem certeza de que não é corno? – insistiu Coimbra Júnior, com a voz nas alturas, para que todos pudessem ouvi-lo.

– Minha mulher é honesta. Por que isso?

– É que o senhor começou o texto assim: “Pelo simples fato de ter encontrado sua mulher nos braços do amante, o comerciário a matou com três tiros…” Só um corno escreve uma coisa dessas. Pegar a mulher nos braços de outro lhe parece coisa pouca?

O pobre repórter tentou engatar uma justificativa:

– É que eu achei…

– O senhor não está aqui para achar nada, mas para narrar os fatos. Quando quiser sua opinião, eu lhe peço.

Coimbra Júnior, à sua maneira, passou a lição: não se mistura fato com opinião.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 28 de setembro de 2017

RAPIDÍSSIMAS

Bacanal, de Pablo Picasso

 

BACANAL

O “pai dos burros” nos ensina: suruba é um encontro de gente como Lula, Dilma, Temer, Sarney, Renan, Jucá e desqualificados afins.

* * *

MULHER DE CÉSAR

A ela, não basta ser honesta: tem de parecer honesta. A maioria dos nossos representantes não parece honesta. Nem é.

* * *

TOMA LÁ, DÁ CÁ?

Qual o quê! A maioria, infelizmente, só conhece o toma lá.

* * *

MENTIRA

Não é verdade que os políticos são iguais. A maioria é muito pior que a minoria. Aqui fora, entre nós, simples mortais, a situação não é muito diferente.

* * *

CONCLUSÃO INESCAPÁVEL

Se o Parlamento é a cara da sociedade, como afirmam os políticos, é forçoso admitir: somos uma merda.

* * *

NA REPÚBLICA DO RABO PRESO…

É impossível saber o prazo de validade de um ministro.

* * *

A QUESTÃO É OUTRA

Em breve, ninguém mais perguntará ao parlamentar a que partido ele pertence, mas, sim, de qual quadrilha ele faz parte?

* * *

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

Para viver no Brasil, não basta ter nervos de aço. É preciso ter um saco imenso.

* * *

TIRO AO ALVO

Temer virou especialista: não erra um tiro no próprio pé.

* * *

DELAÇÃO PREMIADA

Cuidado, dona Marisa. Se Dom “Menas”, para salvar a própria pele, der com a língua nos dentes, o inferno lhe espera.

* * *

CHIQUEIRO

Elles não se emendam nunca: nascem porcos, vivem e morrem como porcos.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 21 de setembro de 2017

GRACILIANO RAMOS X OTTO MARIA CARPEAUX: A QUEM? A QUEM?



Graciliano Ramos, por Hugo Braz

Graciliano Ramos, o “velho” e eterno Graça, dispensa apresentação. Um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, autor de livros inesquecíveis, era de um rigor absoluto consigo mesmo, tanto na vida pessoal como na política e no trabalho literário: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

Austríaco naturalizado brasileiro, Otto Maria Carpeaux foi ensaísta, crítico de literatura e jornalista. Chegou ao Brasil em 1939, com sua mulher. Judeus, fugiam da escalada de terror promovida pelos nazistas.

Afinidades intelectuais – mas não só elas – fizeram Graciliano e Otto grandes amigos. Ambos eram pessimistas incorrigíveis. Conta-se que, numa das inúmeras conversas que tinham nos cafés e livrarias do Rio de Janeiro, ocorreu a que segue:

– A coisa está feia, vai de mal a pior. Amanhã, estaremos pedindo esmolas – teria dito um deles.

– A quem? A quem? – teria questionado o outro, ainda mais desolado.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 14 de setembro de 2017

CADA UM COME O SEU

 

 

O caipira tinha dinheiro de sobra, gostava de ostentar seus carrões, roupas de grife e correntes de ouro, não abria mão de frequentar restaurantes caros. Mas não gostava de passar por jeca – sejamos francos: ninguém gosta de passar por jeca, ainda mais se for jeca.

Certa feita, nosso matuto veio para a capital a negócios. Resolveu jantar num restaurante chique. A desgraça é que ele não tinha a menor ideia do que pedir para comer e beber. Não entendia o que estava escrito, em francês, no cardápio. Escolheu sua mesa a dedo. Ao lado da mesa de um grã-fino.

– Garçom, me traga o prato de sempre – pediu o bacana, frequentador assíduo da casa.

O caipira não deixou por menos:

– Dois.

O bacana pediu ao garçom “o vinho de sempre”.

E o caipira:

– Dois.

Nosso jeca foi nessa batida até a hora da sobremesa. O bacana estava a ponto de estourar. E estourou:

– Garçom, isso aqui está insuportável. Quero o manobrista.

– Dois, pediu o caipira.

– Escuta aqui, cidadão: um manobrista dá para os dois.

O caipira retrucou:

– Nada disso! Cada um come o seu.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 07 de setembro de 2017

OS GEMIDOS DE NÉLSON RODRIGUES

 

O criador do moderno teatro brasileiro, o polêmico e genial Nélson Rodrigues, foi ele próprio um grande personagem. Sua vida pessoal foi marcada por inúmeros percalços: teve o irmão, também jornalista, assassinado; o pai, por conta da morte do irmão, logo se foi; a tuberculose o mandou diversas vezes para sanatórios; a úlcera não lhe deu tréguas… Mesmo assim, Nélson Rodrigues trabalhou feito mouro, escreveu inúmeras peças de teatro, crônicas e tudo o mais que fosse preciso escrever para garantir a subsistência da família.

Sua trajetória, em detalhes, está descrita em “O Anjo Pornográfico”, de Ruy Castro. Um livro que deve – mais que lido – ser degustado, pela riqueza de informações e pela qualidade do texto. É dele que retiro a historinha que segue.

Durante três meses, Nélson ficou “internado” na sala de sua casa, já que se recusava a voltar para o hospital, onde fora operado da vesícula e para o qual fora levado outra vez por conta de complicações no pós-operatório. Vivia cercado de gente: familiares, vizinhos e parentes. “Durante o dia, o ‘quarto’ de Nélson tinha uma plateia de FLA-FLU”, escreve Castro.

Nas raras vezes em que ele ficava só (tinha medo de morrer sozinho), Nélson apelava em tom dramático para a sogra:

– Dona Concetta, fique comigo. Venha me ouvir gemer.

* * *

Nélson adorava sanduíche de mortadela. Mas a úlcera, sempre ela, lhe castigava. O mestre, então, chamava o contínuo – que à época, ao contrário de hoje, não era guri – e lhe propunha um bom negócio. Que o homem fosse buscar o sanduba. Ele pagava com gosto. Mas tinha um preço: o sortudo tinha que comê-lo na frente de Nélson. Que babava de satisfação.

 

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Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 31 de agosto de 2017

NAQUELA NOITE, OTTO LARA VIROU APARECIDO



 

O mineiro Otto Lara Resende (1922-1992) viveu mais tempo no Rio de Janeiro que em seu estado natal. Se nunca abandonou a “mineirice” trazida de São João Del Rei, incorporou, definitivamente, o senso de humor dos cariocas. Advogado, jornalista, escritor e frasista de primeira, Otto formou com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, seus amigos de juventude, todos igualmente mineiros e talentosos, o que eles próprios definiram como os quatro “Cavaleiros do Apocalipse”. Ou: “adolescentes definitivos”.

Antes de tudo, Otto foi um exímio contador de casos. Há quem o considere o “ultimo causeur”. Ficcionista, ele próprio transformou-se num personagem. Diz-se que certa noite, em plena ditadura militar, ele entornou uns uísques a mais no famoso Antonio’s, reduto da boemia intelectual do Leblon. Lá pelas tantas, subiu numa cadeira e fez um duro discurso contra o regime vigente. Mais um gole, Otto voltou ao palanque improvisado, agora para comunicar à assistência, em alto e bom som, quem era: “Anotem o meu nome: José Aparecido de Oliveira”.

Em tempo: José Aparecido de Oliveira, ex-secretário do ex-presidente Jânio Quadros, mineiro como ele, era amigo de Otto desde os tempos de juventude, nas Gerais. Se a história é verdadeira ou falsa, ninguém sabe. Nem o jornalista Benício Medeiros, autor de um excelente perfil sobre o “mais carioca dos mineiros”.

 

Da esquerda para a direita: Paulinho, Sabino, Otto e Hélio (agachado)

Nos tempos de juventude, numa brincadeira, Fernando Sabino fez a seguinte quadrinha, para adornar a lápide de Otto:

“Aqui jaz Otto Lara Resende
mineiro ilustre, mancebo guapo.
Deixou saudades, isso se entende:
Passou cem anos batendo papo.”


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 24 de agosto de 2017

RAPIDÍSSIMAS

 

PERDOAR? PERDOEI

Mas não me peça para ser hipócrita. Toda vez que relembro (ainda que não queira) dói uma enormidade.

* * *

INADIMPLÊNCIA

Aqui se faz. Aqui se deve. Nem sempre se consegue pagar. Paciência. Chame o síndico: Tim Maia, o único cara que bancava a festa, mas não ia ao próprio aniversário.

* * *

MELHOR DOS MUNDOS

Não tenho opinião definitiva sobre nada.

* * *

TAREFA IMPOSSÍVEL

Perdão, senhor, jamais me recolherei à minha insignificância. Dela nunca saí.

* * *

E OS AMORES SE FORAM

Não lamento. Fui junto.

* * *

SEM ELA, NÃO DÁ

– O melhor do amor é a cumplicidade.

* * *

HISTÓRIAS

Já me contaram tantas. Quase todas falsas.

* * *

BESTEIRINHA

E eu que, hoje, precisava tanto de um colo ganhei torcicolo.

* * *

QUANDO A SAUDADE BATER…Serei para você vaga lembrança.

* * *

LUAS

Há dias em que tenho orgulho de mim. Há dias em que não me olho no espelho. Coisa de maluco involuntário.

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Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 17 de agosto de 2017

MEMÓRIAS DO PARKINSON

 

 

Ninguém conseguia entender aquele desassossego diuturno do pai. Justo ele, sempre sereno, quase monge. Não tinha boca para reclamar de nada. Qualquer comidinha por mais trivial que fosse – ovo frito, picadinho etc. -, encarava com satisfação sincera. Aposentado, passava horas e horas lendo seus muitos livros, uns cinco mil, algo em torno disso. Quem se irritava era a mãe, que gostava mesmo de conversar, ela dizia que não tinha companhia, que aquilo não era vida, coisas do tipo.

O pai, para surpresa de todos, foi-se transformando num homem irritadiço. Passou a reclamar de tudo: do sofá da sala, do colchão, das cadeiras da cozinha. No apartamento da praia, era a mesma coisa. Queria trocar todos os móveis, algo descabido. Tudo (e creio que todos) lhe aborrecia. Já não tinha a mesma paciência para com os livros.

O médico da família não dera conta do recado. Gastou-se uma fortuna com um geriatra tão famoso quanto picareta. E nada. O terceiro doutor também não resolveu, mas pelo menos teve uma serventia: pediu ao pai que fizesse hidroginástica. Uma fisioterapeuta da clínica foi direto ao ponto: era bom levá-lo a um neurologista. Àquela altura, após vários tratamentos, o pai só fazia piorar. Cada vez mais impaciente e trêmulo, relutou em seguir a sugestão, não acreditava mais nos médicos. Mas foi. A pulso.

A neurologista lhe pediu uma série de exames, para medir o tamanho do estrago já feito pela doença: Parkinson. Receitou alguns medicamentos. Visivelmente aborrecido com o diagnóstico, o pai não queria parar na drogaria. Voto vencido.

Quando o filho chegou em casa, duas horas depois, foi avisado de que o pai ligara, queria falar com ele:

– Filho, já tomei os dois remédios da noite. Eu me sinto tranquilo e desembaraçado. Milagre.

Naquela noite, pai, mãe, filho, filha e nora choraram de alegria. Mesmo sabendo que não haveria cura.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 10 de agosto de 2017

BODAS DE NADA



– Terça-feira está chegando, Marli.

– E daí, Osvaldo?

– A data não lhe diz nada, querida?

– Xiii. Vem, não. Quando você fica derretido feito margarina na frigideira, está pensando em aprontar uma das suas.

– Mas essa terça é uma data especial, Marli.

– Sei. Terça é dia de limpar a casa, fazer almoço e janta, lavar e passar roupa, o de sempre. Ah, é dia de feira também. Tem mais essa.

– Marli, faremos 40 anos de casados. Uma vida…

– Uma vida besta. Nos cinco primeiros anos, até que foi bom. Depois só eu sei. Não fossem os filhos…

– O que você faria?

– Ou picava a mula ou pulava de cabeça numa piscina sem água.

– Que horror, Marli.

– Não se faça de esquecido, Osvaldo. Não é possível que você não se lembre de metade do que aprontou.

– Por que metade?

– Porque boa parte do tempo você viveu tocado.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 03 de agosto de 2017

RAPIDÍSSIMAS

 

FIDELIDADE

Verdade seja dita: Isaura sempre traiu Osório. Mas só em pensamentos.

* * *

SEJA FELIZ

Dispense o reconhecimento alheio.

* * *

CONSOLO

Que, cedo ou tarde, o mundo vai acabar é uma hipótese plausível. Mas não estarei por aqui para assistir ao espetáculo.

* * *

DIVÓRCIO

Ela nunca deu motivos para ele ir embora. Precavida, foi antes.

* * *

DESCULPA

– Querida, vou dar um instantinho no bar para regar meus planos.

* * *

GOSTOS

As mulheres, em geral, vão às compras; os homens, aos copos.

* * *

CULTURA DE SOVACO

Passou a vida carregando livros sob os braços.

* * *

PREÇO

Solidão não mata, mas não prescinde de fantasias.

* * *

NA LATA

– Meu caro, é sempre desprazer reencontrá-lo.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 27 de julho de 2017

A JINA DE JAÚ É COM JOTA. E NÃO SE FALA MAIS NISSO. CERTO?

Cadê a Jina?

Meu sogro, verdade seja dita, foi homem de muitas qualidades. Tinha memória de elefante, era inventivo e, acima de tudo, inabalável. Jamais, em momento algum, se deixava apanhar em calças de guri. Nesses três quesitos, só havia uma pessoa capaz de enfrentá-lo: dona Tereza, sua mãe. Aliás, puxar pela memória e desafiá-la no limite, salvo engano, era o esporte que mais os encantava, para desespero da assistência.

Nas tardes de domingo, mãe e filho travavam duelos memoráveis sobre qualquer assunto, muito embora houvesse um tema que lhes proporcionasse prazer imenso: dizer, por ordem de arrebentação, os dezoito nomes (todos iniciados com J) dos filhos de um casal que haviam conhecido em Jaú, terra de meu amigo José Cássio, jornalista dos bons.

Antes de prosseguir, convém ressaltar que dezoito foi resultado de um armistício entre as partes, após anos de guerra (quase) sangrenta. A mãe de meu sogro jurava que o casal de Jaú tivera dezenove filhos. Meu sogro não arredava os pés dos dezessete. Chegaram aos dezoito por exaustão e medo de que o debate não seria encerrado, por falta de plateia. De qualquer forma, das três uma: ou rasgaram a certidão de nascimento de um dos rebentos, ou deram vida a quem nunca a teve, ou – o que é mais provável – a capacidade do casal fazer filhos foi superdimensionada.

Soado o gongo, a mãe do filho dava a largada:

– Jean, José, Josefa, Jina…

– Pera aí, vó: Gina é com G, não com J, protestava uma das netas.

– Aquela Gina era com J, retrucava a avó, à beira de um ataque de nervos, pela insolência da guria.

Este era um dos raros momentos em que os contendores se uniam.

– Aquela Gina era com J, sim. Eu também vi o papelucho, afirmava categoricamente o filho em defesa da mãe.

Frequentemente, a contagem não batia. Ou passavam dos vinte nomes, ou ficavam aquém dos quinze. Mas ninguém percebia, porque ninguém prestava mais atenção na contenda. E não seria eu, um estranho no ninho, que iria me meter a besta.

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Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 20 de julho de 2017

RAPIDÍSSIMAS

 

NÃO SE ILUDA

Há jaulas e jaulas. Mas todas são jaulas.

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NÃO SE ILUDA (2)

Numa jaula, você estará sempre protegido. E fodido.

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ALTO LÁ

Favor não confundir sinceridade com falta de educação.

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CURTAM, CURTAM

Amanhã, ela estará seca; ele subirá com dificuldade.

* * *

GARFIELD

Viajou pouco. Por preguiça de fazer e desfazer as malas.

* * *

PERDÃO, QUERIDA

Há tempos não ando, só desando.

* * *

TRISTEZA

A passarinha posou no muro, me olhou, olhou e foi embora. Sem me dar um mísero pio.

* * *

ENGOV

Essa euforia, amanhã, com certeza, lhe apresentará a conta.

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Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 06 de julho de 2017

RAPIDÍSSIMAS

 

REDUÇÃO DE DANOS

Melhor não fazer nada que fazer nada que não preste.

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JÁ ERA

Justificativas não mudam a história.

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FINAL INFELIZ

O vício (quase) sempre vence. Que lástima.

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POP STAR

Muitos fazem, poucos levam a fama.

* * *

ELA JÁ SABE, BOBO

– Perdão, Rosinha. Broxei.

* * *

NÃO RECLAME

Poderia ser pior, sempre pode. Já imaginou hemorroidas a esta altura do campeonato?

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SÁBIAS PALAVRAS

E o setentão falou: Quem me dera poder optar. Trocaria a experiência inútil pela ereção dos trinta.

* * *

DUDU

Um neto sempre lhe dá a boa ilusão de que é possível (ainda) fazer grandes coisas.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 29 de junho de 2017

AS PAPINHAS DO PIERINO

 

– Nossa Senhora! Hoje o senhor está com uma cara…

– Cara de que, Ananias?

– De poucos amigos.

– Nunca tive muitos amigos, dois ou três, no máximo. Já é muito.

Ananias enfiou a viola no saco, emudeceu.

O Velho Marinheiro, após longos minutos de silêncio, pediu uma nova rodada para o Carneiro, acendeu o cigarro e desandou a falar:

– Não é nada contra você, Ananias. Mafalda é que me tira do sério. Já cansei de lhe falar: “Mulher, não gosto de me intrometer na vida dos outros. Agora, não me calo ante coisas que acho erradas e afetam pessoas indefesas ou das quais eu gosto. Então, se é para me contar lambanças alheias e esperar que eu fique calado, pegou o bonde errado”. Adianta falar? Mafalda me conta as coisas e depois reclama de minhas reações. Vai entender.
Ananias estava mudo, mudou permaneceu, receoso de irritar ainda mais seu amigo, já a ponto de explodir.

– Você não está interessado na conversa?

– Sou todo ouvidos, Velho Marinheiro. O que aconteceu?

– Meu neto e a mulher dele – peru e perua, dois basbaques deslumbrados – levaram meu bisneto ao médico. Diagnóstico: a criança está desnutrida, gorda e desnutrida. Que vergonha! Se ainda fossem miseráveis, vá lá, daria para entender. Mas dinheiro não lhes falta, ao contrário. A criança anda mais enfeitada que poodle de pet shop, tem toda sorte de brinquedos e roupas de grife. A mãe, porém, nunca fez uma sopa para o menino. Diz que não tem tempo, vida agitada, trabalho, cursos, festas e viagens. O pai compra potes e mais potes de “papinha” pronta e tudo o que é tranqueira industrializada. E se gaba: “É da melhor qualidade, custa caro!” Pode? É essa a alimentação básica do menino: papinha industrializada. Você precisa ver a conversa dos dois sobre criação de filhos. É como se dizia: “quem vê cara não vê coração”. Posam de pais ultramodernos, discutem métodos educativos e sei lá mais o quê. Falam de viagens futuras pelo mundo. Mas são incapazes de fazer um caldo para Pierino, de dar uma fruta na boca de Pierino! Deixam tudo para a tal da babá.

– Perdão, Velho Marinheiro. Quem é Pierino?

– A puta que o pariu, Ananias.

– Como?

– Meu bisnetinho. Perdão. Ora, quem mais seria Pierino, Ananias? Tenha paciência.

– Claro, claro.

– Mas lhes falei um bocado.

Por via das dúvidas, Ananias pediu mais uma rodada completa para Carneiro, antes de perguntar ao Velho Marinheiro:

– E o que o senhor lhes disse?

– Olha aqui, vagabunda e vagabundo, quem tem preguiça de fazer comida para o próprio bebê não serve para nada. O que lhes falta é vergonha na cara. Vão-se catar. Se quiserem, Mafalda e eu criamos Pierino. Mais um não vai nos aleijar.

– E eles?

– Desligaram o telefone na minha cara. Juraram que nunca mais pisam em minha casa. Danem-se, me fariam um favor.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 22 de junho de 2017

RAPIDÍSSIMAS

 

 

PÉ NA ESTRADA

Naquele dia, sem mais nem por que, talvez por puro cansaço, ele retomou o rumo inesperado: desistiu de desistir.

* * *

AUTOENGANO

A gente (quase) sempre sabe, mas finge que não. Depois reclama do preço.

* * *

TRISTE FIGURA

Tantas ele fez, que o velho personagem se mandou. Restou a lamentação.

* * *

FEITO BANDIDO

A polícia não pede licença para disparar bala perdida.

* * *

SEM PLANO B

A partida nem sempre é a melhor saída. Mas, às vezes, é a única.

* * *

NET WORK

Não tinha tempo para mesuras. Salamaleques? Nem pensar. Um burro. Hoje, paga o preço. Trabalhar muito, ainda que bem, vale pouco.

* * *

SINA

Caminhou, tropeçou, bebeu demais, trançou as pernas, mas nunca deixou de trabalhar. Chegou à Pasárgada. Mas o rei, seu amigo imaginário, fora deposto. Paciência. Hora de ir para Maracangalha. Amália, cansada dos descaminhos dele, não foi junto, não.

* * *

HUMANOS

Não somos ruins. Somos medíocres, predadores. Será sina? Não sei. Arte é que não é.

* * *

NO MUNDO DA LUA

Não foi, olhou e não viu, não sofreu. Nunca soube o que perdeu.

* * *

PLEASE

Se a felicidade não existe – e ela não existe mesmo –, me deixem gozar sem culpa.

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CERTEZAS

Em geral, estão mais para ignorância e preconceito que para sabedoria.

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Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 15 de junho de 2017

PAPINHOS COM DUDU: MULHERES MADURAS

 

– Vovô, vovô.

– Fala, Dudu.

– Acho que estou apaixonado.

– O que é isso, menino? Você faz um mês amanhã! Francamente. Nem de casa sai.

– E daí? O amor acontece.

– Meu Deus! Apaixonado por quem?

– Pela Nathalia?

– Nathalia?

– É, vovô. A netinha da tia Eva e do tio Quincas.

– Mas você nunca a viu?

– Vi, sim.

– Quando?

– Ontem.

– Ontem?

– Foi. Você mostrou a gatinha para a vovó no facebook e falou que era muito querida. Espichei os olhos. Concordo com você, vovô: ela é bem lindinha.

– Mas ela já é quase uma jovem senhora perto de você, pirralho.

– E daí? Quem sai aos seus não degenera.

– É verdade. Mas aonde você quer chegar?

– Sou como você: gosto de mulheres maduras.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 08 de junho de 2017

RAPIDÍSSIMAS

O MORIBUNDO MORREU…

Antes do tempo. Por excesso de visitas.

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JUSTIÇA

Não se deve condenar toda a espécie pela ignorância da maioria.

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CANDIDATO?

Só ao esquecimento.

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EVOLUÇÃO

É quando você se dá conta de sua irrelevância. E não liga.

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MALDADE

Ela se foi e deixou no varal as duas calcinhas de que mais gosto.

 

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PAZ NO CAMPO

Os cães, ladram, ladram. Mas não tem jeito. A caravana não passa.

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PSORÍASE

Pobre Gustavo. Virou pó em vida.

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GERAÇÃO SAÚDE

Adoro andar. De carro.

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MENOS, MENOS

Piados só de passarinho.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 01 de junho de 2017

O MAESTRO INCONFORMADO

– Marcelo, eu juro por Deus: nos conhecemos há décadas, mas cada vez menos consigo entendê-lo. Não compreendo o que o leva a tomar certas atitudes. Além de beber, você anda cheirando. Só pode ser isso. Ou, então, enlouqueceu de vez. Vai Saber.

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– Paulinho, eu já sei aonde você quer chegar. Está todo melindrado porque demiti o diretor de arte. Sou sócio majoritário, tenho 75% de participação na empresa. Eu decido. Quem criou a agência? Fui eu. Quem colocou essa porcaria de pé? Fui eu. Quem conseguiu os melhores clientes? Fui eu. Quem desenvolveu as melhores campanhas? Fui eu. Porra! Quer mais? Vamos lá. Quem nos tempos de bonança fez os investimentos em aplicações financeiras e imóveis, na cidade, na praia e no campo? Fui eu, meu caro. Se eu não tivesse aberto as portas para você, o que seria de sua família hoje? Seus filhos, sua mulher e você estariam na mesma pindaíba em que se criaram. Ou não? Fala a verdade.

– Impossível falar com você. Impossível argumentar com quem se julga Deus.

– Olha aqui: não cheguei a ser Deus, mas cheguei bem perto. Na nossa área, não tinha para ninguém, não. Tinha?

O silêncio pesado e arrastado se impôs. Tempo suficiente para que os dois consumissem, sem palavras ou resmungos, doses generosas de uísque e abarrotassem os cinzeiros.

Paulinho resolveu retomar o diálogo improvável:

– Marcelo, eu não quero discutir, mas preciso entender o motivo que o levou a demitir o Caio. O cara é ótimo, baita profissional, trabalhador, criativo. Além de tudo, é boa gente. Quem saiu perdendo foi nossa empresa, meu caro. Ele arruma emprego a qualquer momento, independentemente do tamanho da crise econômica. Ainda é capaz de levar para o novo emprego alguns de nossos clientes, se ele não montar a própria agência.

– Sorte dele.

Novo silêncio, nova rodada de uísque (agora, sem gelo) e cigarros. Dessa vez, foi Marcelo, o sócio majoritário, quem retomou a falação:

– Paulinho, você quer mesmo saber por que demiti o Caio?

– É evidente que sim.

– Ele é tudo de bom, como você falou agorinha. O problema dele é a vaidade. Andava dizendo para todo mundo e para amigos nossos que, sem ele, nós já tínhamos quebrado. Que era o cérebro da agência.

– Mas, ainda que ele tenha feito isso – o que duvido –, qual o problema, Marcelo? Você já foi o grande “músico”, o criador, hoje é o maestro da companhia. Não lhe basta?

– Aqui, jamais alguém brilhará mais que eu. Agora chega, é tarde. Tenho compromisso com Dora. Você tem até segunda para me dizer quanto quer pelos seus 25%. Compro sua parte, toco a empresa do meu jeito.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 25 de maio de 2017

RAPIDÍSSIMAS

FORASTEIRO

Serei sempre, porque sempre fui assim, um índio sem tribo. Se eu me orgulho disso? Não. Mas também não lamento.

 

 

* * *

AS BOAS HISTÓRIAS…

Não prescindem dos deslizes.

* * *

LÁGRIMAS

Se um dia eu perder a coragem de me emocionar, só me restará pisar nas próprias bolas.

* * *

ESCOLHAS

Quase sempre burrice não é sina: é opção.

* * *

O PREÇO

Quem ama faz de tudo para não torrar a paciência do outro.

* * *

SOLIDÃO

Nem ligo para isso. Desde que Sabiá esteja por perto.

* * *

MAKTUB

De um em um, um dia iremos todos.

* * *

ÚLTIMO DESEJO

– Querida, antes de meu suspiro final, me traga uma saideira.

* * *

LIBERDADE

Ser honesto nem sempre dá grana. Mas, como é bom não precisar comer na mão de canalhas.

* * *

PÊNALTI

Visitar quem quer que seja num final de domingo sem avisar.

* * *

SURREALISMO

Era capaz de varar noites contando causos nos quais ninguém acredita – às vezes, nem ele. Mas era tudo verdade. Que lástima.

* * *

MORAL DA HISTÓRIA?

Vá se catar.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 18 de maio de 2017

RAPIDÍSSIMAS
 


CONFISSÃO

Ontem, perdi umas duas horas assuntando comigo mesmo. Querem saber?

Não cheguei à conclusão alguma.

* * *

TUM-TUM-TUM

Se não for bobo, coração não é.

* * *

NÃO MINTO

Às vezes, me engano feio.

* * *

AUTOESTIMA

– Fala, Totó.

– Raça indefinida é a puta que o pariu. Sou vira.

* * *

RISCOS

Só brocha quem tenta.

* * *

TÉDIO

Quando a turma do politicamente correto põe o bloco na rua, tomo um trago e me escondo. Ninguém merece.

* * *

TÉDIO (II)

Para lhe respeitar, não preciso ser igual a você.

* * *

TÉDIO (III)

Não sei quem me aborrece mais: os novos ricos ou os velhos pobres.

* * *

TRISTEZA?

Xô, danada. Vou dançar um baile com Sabiá.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 11 de maio de 2017

E O AMOR ASIU PELA JANELA
 


– Chega de mentiras, Alceu. Basta! Entendeu? Não suporto mais essa vida que levamos. Afinal, por que você se casou comigo?

– Por interesse, Matilde, é que não foi. Muito pelo contrário.

– Como assim? Não estou entendendo.

– Quer saber?

– Quero.

– Melhor deixar pra lá, Matilde.

– Não vou deixar pra lá coisa nenhuma. Quero saber, diga de uma vez.

– Matilde: você sempre foi a mais feia das meninas, a mais pobre, a mais obtusa…

Matilde esboçou um sorriso de satisfação e apostou todas suas fichas num palpite furado:

– Então, você se casou comigo por amor, não foi?

Alceu respirou fundo, resolveu mentir (amara Matilde, sim) e colocar um ponto final na história arrastada, pois de uns tempos pra cá só tinha cabeça, coração e membro para Verinha, a cunhada mais nova, dona de bunda e peitos fartos:

– Não, Matilde. Casei por pena, pena de você.

– Cretino. Só agora, depois de vinte anos e três filhos, você me diz barbaridade dessas?

– Você nunca me perguntou antes, Matilde. Não tenho culpa.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos sexta, 28 de abril de 2017

PAPO FURADO DO CRUZADISTA E O LIVRO DO VELHO MARINHEIRO

Romualdo Bastos – o incansável fazedor de palavras cruzadas – estava impossível naquele começo de tarde. O bar do Carneiro, apinhado de gente, garantia audiência para sua falação. Não porque sua prosa interessasse aos presentes, mas porque aos presentes interessava tomar umas e outras, além de beliscar nacos de mortadela, de graça. Gente muito simples, sempre pronta, a clientela do Carneiro. Nessas ocasiões, o “intelectual” de Vila Invernada, como gosta de ser chamado, prefere não correr riscos. Abre a carteira, paga aos ouvintes umas rodadas disso e daquilo, garante alguns aplausos e, depois, sai para os abraços.

Pela enésima vez, Romualdo Bastos descreveu em detalhes seu método de trabalho. Com ar sempre grave, enfatizava:

– A curiosidade é a mola propulsora do saber. Um simples livrinho de palavras cruzadas é capaz de transformar a vida de uma pessoa. Desde, é claro, que ela se disponha a pesquisar, tenha disciplina e método.

Mas o pior estava por vir. Romualdo Bastos não poupou saliva para explicar à plateia, já meio tocada pela uca, o que, a seu ver, é a “função social” do escritor:

– Não basta escrever bem. É preciso enfeitar o texto com citações, muitas citações. Mais que isso: é necessário transmitir mensagens edificantes. O bom autor não abdica do seu dever maior: orientar a sociedade. Escritores devem iluminar os caminhos do povo. Uma boa história não pode terminar sem a célebre “moral da história”. Nunca.

Aplausos etílicos.

O Velho Marinheiro nem olhava para o orador. De costas estava para o falante, de costas permaneceu. De vez em quando, no entanto, anotava alguma coisa nas beiradas das páginas do jornal. O que aguçou a curiosidade de Ananias e do próprio Romualdo Bastos.

Findo o expediente, o tribuno de boteco acertou as contas com o dono do bar, abraçou os que ainda conseguiam ficar de pé e se foi, com o ego inflado.

Ananias quis saber do Velho Marinheiro o motivo de tantas anotações.

– Vou escrever um livro. Já tem até título provisório: “As Besteiras de Romualdo Bastos”. Iluminar os caminhos do povo, moral da história. Nunca ouvi tanto desconchavo em tão pouco tempo. Francamente, Ananias. Esse Romualdo é uma anta.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 20 de abril de 2017

NA PRÓXIMA SEGUNDA, OK?

 

Mais do mesmo – de novo, como sempre. Otávio percorrera a pé o quarteirão, fazendo as paradas obrigatórias: bar do Pedro, bar do Zé, bar do Paulo etc. Mas naquela segunda, mais que nas outras, não quis prosa alguma. Não estava disposto a ouvir. Falar? Nem pensar. Cogitou comprar algo para comer. Contentou-se com três maços  de cigarros e dois litro de aguardente. Mestre da gororoba, ele faria um bem bolado com as sobras do domingo.

 

 

Pensou em Inês, a velha mulata de pernas ainda bem torneadas. Assanhada, ela sempre lhe dizia:

– Seu Otávio: o senhor precisa se cuidar: fazer a barba, cortar os cabelos. Que desleixo é esse? O senhor, aprumadinho, não é homem de se jogar fora.

Em casa, Otávio resolveu fazer o que há muito não fazia: olhar-se no espelho. Quase enfartou. Era uma réplica piorada do capeta. Um caco ensebado. Tinha que pôr um fim naquilo. Lembrou-se de seu Humberto, velho conhecido, dono de bar e de alguma sabedoria:

– Parei de beber, Otávio, porque percebi que estava deixando tudo para depois. E o depois nunca chegava.

Um sábio, esse seu Humberto. Otávio se prometeu mudar de vida. A partir de próxima segunda, claro.

 


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 13 de abril de 2017

O PAI FOI O PAI



Homem incapaz de degenerar, o pai. Cagava uma regra ou outra, mas sempre em busca da alegria alheia. O pai foi exuberante na simplicidade. Santo, segundo minha avó, mãe dele. Nada disso, segundo o próprio. Grande sujeito, o pai. Queria comprar livros. E mais livros. Para ler, distribuir, orientar. Mãe contrariada, claro. Embirrações. Salário pequeno, gastança besta. O pai os comprou – os livros –, os recomendou e os emprestou a quem lhe parecia deles necessitado. Poucos – quase ninguém – lhe devolveram os livros. Quem toma livro alheio se mete à besta e não devolve o que não lhe pertence. Nem lê o adjutório. O pai sabia disso. O pai dava de ombros, o pai não ligava, o pai dizia não assim, quase assim: “Se leu o título ao menos, valeu: está menos burro”. Não sei se o pai salvou alma, mas tentou bom bocado.


Orlando Silveira - Só Nós Três É Que Sabemos quinta, 06 de abril de 2017

E TALAGADA SE FOI



A conversa corria animada na mesa 5 do bar do Carneiro. Entre goles de cerveja e uca, três fregueses contumazes, dos que marcam o ponto todos os dias, várias vezes ao dia, faziam considerações sobre o abuso do álcool, motivados pelo assunto da semana: a morte anunciada e mais que esperada de Talagada, um dos maiores beberrões de Vila Invernada e região. Percebendo que a conversa iria longe, Carneiro ofereceu aos três, gratuitamente, rodelas de tomate como tira-gosto. Caprichou  no sal, na esperança de reforçar o consumo de cerveja. Não se decepcionou.

 

 

Não houve, apesar do alto consumo de bebidas, alterações, pela simples razão de que todos concordavam com todos. De fato, quem não sabe beber não deve beber, que dúvida? É preciso saber parar. Ali, por exemplo, nenhum dos três já fora visto cambaleando pelas ruas do bairro. Isso era coisa para Talagada, que vivia tocado. Agora, uma vez ou outra, pode acontecer de o sujeito bambear, ossos do ofício, acidente de percurso. Quem não sabe beber coloca à saúde em risco, cria problemas com a família (que mulher gosta de ver o marido mamado?), prejudica a carreira profissional, compromete os negócios etc. Isso sem contar os gastos, claro. Os três eram, como se vê, adeptos dos alertas estampados nas peças publicitárias: “Beba com moderação” e “Se beber, não dirija”. Mas também nesse ponto os amigos de copo e de cruz concordavam: “moderação” é conceito vago e não são umas canas a mais que vão derrubar ases do volante, como eles, três cobras criadas.

E os colegas, depois de algumas penúltimas rodadas, se foram, convencidos de que jamais terminariam como Talagada. Um deles tropeçou. Culpa da mulher do Carneiro. Maldita mania de encerar o piso.

 

 

 


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