Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

José Domingos Brito - Memorial quarta, 09 de março de 2022

AS BRASILEIRAS: LEOLINDA DALTRO

AS BRASILEIRAS: Leolinda Daltro  

José Domingos Brito

 

   

 

Leolinda Figueiredo Daltro nasceu em Salvador, BA, em 14/7/1859. Professora, escritora, política, indigenista, pioneira na luta pela emancipação das mulheres com direito ao voto e pioneira no reconhecimento do indígena como elemento constituinte da nação e sua integração na sociedade. Atuou na fundação do PRF-Partido Republicano Feminista e batalhou por um sistema de alfabetização laica dirigido aos índios. Era uma “antropóloga amadora”.

 

Casou-se ainda jovem, teve 2 filhos, mas logo separou-se do marido e pasou a estudar a fim se tornar professora. Aos 24 anos, casou-se de novo, teve mais 3 filhos e mudou-se para o Rio de Janeiro. Pouco depois separou-se de novo ou ficou viúva, não se sabe ao certo. Porém, sabe-se que criou os filhos sozinha na condição de professora. No Rio, tornou-se próxima de Quintino Bocaiúva e amiga pessoal de Orsina da Fonseca, esposa do presidente Hermes da Fonseca.

 

Como professora, passou a se interessar pelos índios e defendia sua incorporação à sociedade através da alfabetização laica. Em 1896 iniciou um ambicioso projeto de percorrer o País levando suas ideias. Deixou os filhos com parentes e partiu em direção à São Paulo, onde encontrou, inclusive apoio financeiro, da elite paulista: a família Prado. Prosseguiu viagem até o Triângulo Mineiro e seguiu para os sertões de Goiás, chegando até o Maranhão e Pará. Em 1902, procurou o Instituto Histórico Brasileiro, de Goiás, para propor a criação de uma associação civil de amparo aos indígenas, mas foi impedida de participar da reunião sob a alegação de que era mulher.

 

De volta ao Rio de Janeiro, fundou o Grêmio Patriótico Leolinda Daltro, para defender a catequisação dos índios sem a interferência da Igreja. Com esta “bandeira”, passou a participar cde movimentos cívicos, ganhou notoriedade na imprensa e o tema dividia a opinião pública. Nessa época foi muito criticada e rdicularizada com suas ideias referentes à educação indígena. De qualquer modo, o Governo criou o Serviço de Proteção ao Índio-SPI, em 1910, mas ela não foi convidada para a cerimônia de fundação. Mesmo assim, ela comemorou esta pequena vitória no cuidado com os índios.

 

A partir daí passou a lutar pela conquista do direito ao voto da mulher e requereu seu alistamento eleitoral. Coma a recusa do pedido, fundou em 1910 o Partido Republicano Feminino para integrar as mulheres no movimento sufragista. Para isso contou com a participação da poeta Gilka Machado e colaboração de sua amiga, a primeira dama Orsina da Fonseca. Lembremos que o movimento sufragista das mulheres só tomou corpo 12 anos depois com Bertha Lutz e a criação da FBPF-Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, e que o direito ao voto das mulheres (alfabetizadas e assalariadas) deu-se apenas em 1932, com o governo Vargas, e que o direito ao voto de todas as pessoas alfabetizadas e maiores de 18 anos, deu-se apenas em 1946.

 

Com sua experiência de professora, assumiu a direção da “Escola de Ciências, Artes e Profissões Orsina da Fonseca” e passou a atuar junto com as amigas Gilka e Orsina em defesa da igualdade entre os sexos, contando com apoio de alguns intelectuais, entre estes o famoso jornalista Carlos de Laet. Em 1919, lançou-se candidata à Intendência Municipal (atual prefeito) numa campanha simbólica argumentando: “Como mulher que sou, com um sentido superior de altruísmo, tenho me preocupado com a necessidade de minorar o sofrimento humano e de se atingir uma melhor distribuição da Justiça.” No ano seguinte registrou suas andanças pelos sertões e experiências com os índios e publicou o livro Da catequese dos índios do Brasil (notícias e documentos para a história) 1896-1911 pela tipografia da Escola Orsina da Fonseca. Em 1911, João do Rio publicou uma crônica citando sua coragem: “O Brazil é dos índios. E tanto o Brazil é dos índios, que, ao pensar em symbolizar o Brazil, logo os desenhistas pintam um jovem índio de casaca, claque alto e tanga emplumada... Como nunca tive a coragem civilisadora da professora Daltro, só consigo aproximar-me dos authenticos proprietários deste paiz quando por cá aparece alguma caravana de sujeitos de nariz esborrachado, a pedir ao Papae Grande instrumentos agrários. Essas caravanas são conduzidas por jesuítas dedicados”.    

 

Mais tarde ela declarou que estava feliz e que podia morrer vitoriosa na luta pela emancipação política da mulher pelo fato de alcançarem o direito ao voto em 1932. Com mais de 70 anos, ainda participou da luta feminista na década de 1930, integrando a “Aliança Nacional de Mulheres” e veio a falecer num acidente de automóvel em 4/5/1935. A revista “Mulher”, da FBPF noticiou que “teve ela que lutar contra a pior das armas de que se serviam os adversários da mulher: o ridículo. Talvez isto a houvesse magoado profundamente tanto que se afastou das lides feministas. Mas a sua obra patriótica não parou aí: dedicou-se à obra da alfabetização no meio desses milhões de analfabetos, nela consumindo a sua velhice”.

 

Em junho de 1935, a revista “Ilustração Brasileira” também publicou seu necrológio. A lembrança de seu legado e a merecida honra que lhe foi atribuída muito mais tarde, em 2003, quando a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou a Resolução nº 233, instituindo o “Diploma Mulher Cidadã Leolinda de Figueiredo Daltro”, outorgado todo ano a 10 mulheres por seu destaque na vida pública e na defesa dos direitos femininos. Procurei alguma biografia sua na Internet e não encontrei. Achei apenas alguns estudos acadêmicos, dissertações e teses sobre sua vida e legado e outros verbetes que me ajudaram a compor esta síntese biográfica. Infelizmente ainda não despertou o interesse das feministas ou historiadores numa biografia mais completa.

 

Leolinda Daltro, a brasileira que era chamada de “mulher do diabo", por querer justiça.

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 02 de março de 2022

OS BRASILEIROS: OSWALD DE ANDRADE

OS BRASILEIROS: Oswald de Andrade

José Domingos Brito

 


 

José Oswald de Sousa de Andrade nasceu em São Paulo, SP, em 11/1/1890. Poeta, escritor, advogado, jornalista e dramaturgo. Destacado integrante do modernismo literário brasileiro, é considerado -junto com Mário de Andrade- um dos “dínamos” da Semana de Arte Moderna de 1922. Era conhecido pelo estilo e temperamento irreverente, combativo e inovador. Suas ideias vieram a influenciar o Movimento Tropicalista em meados da década de 1970.  

 

Filho de Inês Henriqueta Inglês de Souza de Andrade (irmã do escritor Inglês de Souza) e José Oswald Nogueira de Andrade, tradicional família paulista. Teve os primeiros estudos no Ginásio Caetano de Campos e iniciou no jornalismo em 1909, como colunista da seção “Teatros e Salões”, do Diário Popular. No mesmo ano ingressou na Faculdade de Direito, interropendo o curso diversas vezes. Em seguida, foi conhecer o Rio de Janeiro, onde ficou hospedado na casa do famoso tio escritor. Em 1911, com ajuda financeira da mãe, fundou o irreverente semanário O Pirralho, contando com a colaboração de  Amadeu Amaral, Cornélio Pires e Alexandre Marcondes entre outros. Mais tarde, Di Cavalcanti veio a ilustrar as capas e conteúdo da revista.

 

Passou uma temporada de 7 meses na Europa em contato com artistas e escritores envoltos no “Movimento Modernista”, em 1912. A morte de sua mãe, apressou a volta, trazendo a tiracolo a estudante francesa Kamiá (Henriette Denise Boufflers), com a qual tem seu primeiro filho (Nonê), e reassume seu posto na redação d’O Pirralho. No ano seguinte, passa a frequentar reuniões de artistas e intelectuais na Vila Kirial e conhece o artista plástico Lasar Segall. Seu primeiro trabalho publicado se dá em 1913 com a peça A recusa, um drama em três atos. Em 1914 ingressa na Faculdade de Filosofia de São Bento e no ano seguinte torna-se membro da Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, fundada em São Paulo por Olavo Bilac. Em 1917 namorou a jornalista Maria de Lourdes Olzani, e através dela conheceu Mário de Andrade. Conheceu também a pintora Anita Malfatti e, junto com Mário, defende a pintora das críticas acirradas feitas por Monteiro Lobato. Por esta época começa a se esboçar o grupo que viria a realizar a Semana de Arte Moderna. Em 1920 edita a revista Papel e Tinta e passa a colaborar no jornal Correio Paulistano.  

 

Publicou o romance Os condenados em 1922 e inicia namoro com a pintora Tarsila do Amaral, seu relacionamento mais prolongado, que durou até 1929. Em novas viagens pela Europa, amplia o percurso pelo Oriente Médio e África. Em Paris participa de encontros com a intelectualidade francesa; dá palestra na Sorbonne e mantém amizade com o poeta Blaise Cendrars. De volta ao Brasil, publicou no Correio da Manhã o "Manifesto da Poesia Pau Brasil", em 18/03/1924, no mesmo ano em que foi divulgado o “Manifesto Surrealista” de André Breton. Como se vê, o Brasil seguia os passos do movimento artístico das vanguardas mundiais. Neste ano integrou a "Caravana Modernista", com Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Olívia Penteado, Blaise Cendrars, Goffredo Telles e René Thiollier,  ao carnaval do Rio emendando até Belo Horizonte. Aí foram recebidos por Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado e Pedro Nava e excursionam pelas cidades históricas. Em 1925 publicou Memórias sentimentais de João Miramar, viaja de novo pela Europa com Tarsila, monta apartamento em Paris, passa a frequentar a casa de campo de Blaise Cendrars e publica na França o livro de poemas Pau Brasil.  

 

Em 1928 divulgou o “Manifesto Antropófago” na Revista de Antropofagia, criada junto com os amigos Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado. A ideia do Movimento Antropofágico era assimilar, deglutir outras culturas, mas não copiar. Na crise econômica mundial de 1929, deu-se uma crise também no seu casamento e no relacionamento com o amigo Mário de Andrade. Seu novo amor agora é uma jovem de 20 anos: Pagu, com quem se casou em 1930. O “casamento” se deu no Cemitério da Consolação, causando certo alvoroço na imprensa. No mês seguinte, a união foi oficializada na igreja e no cartório, com Pagu já grávida do filho, que foi batizado com o nome Rudá Poronominare Galvão de Andrade. O primeiro nome significa o deus do amor e o segundo o nome indígena para um ser malicioso. Com Pagu, uma moça politizada e ligada ao teatro, ele aproxima-se da política, torna-se militante do Partido Comunista e fundam o jornal O Homem do Povo, que durou até 1945.

 

Em 1933 publicou o romance Serafim Ponte Grande e patrocinou a publicação do livro Parque industrial, romance de Pagu. No ano seguinte, deixa Pagu e une-se à pianista Pilar Ferrer. Publica A Escada Vermelha, terceiro romance d'A trilogia do exílio, e O homem e o cavalo. Quando Lévi-Strauss esteve em São Paulo, em 1935, foi seu cicerone e acompanhou-o numa excursão até Foz do Iguaçu. Passa a escrever sátira política para a revista A Platéia; integra o movimento artístico cultural “Quarteirão” e a tocar sua vida boêmia. Em dezembro de 1936, aos 46 anos é hora de casar-se mais uma vez, agora com a escritora Julieta Bárbara Guerrini, tendo como padrinhos o jornalista Casper Líbero e o pintor Portinari. Seu estilo de vida boêmia era conhecido de todos, tanto como casamenteiro em grande estilo.   

 

Passa a residir no Rio de Janeiro e em São Paulo simultaneamente. Sua atuação política se dá com artigos publicados na revista Problemas. Na área da dramaturgia, sua peça mais conhecida é O rei da vela, publicada em 1937 e representada apenas em 1967 pelo Grupo Oficina, com direção de José Celso Martinez Corrêa. Em 1943 começou a publicar a coluna "Feira das Sextas" no Diário de São Paulo e casa-se com Maria Antonieta d'Alkmin. No ano seguinte reúne no volume Ponta de Lança artigos esparsos publicados na imprensa. Pouco depois ciceroneou Pablo Neruda em visita ao Brasil e iniciou a organização da Ala Progressista Brasileira, reunindo alguns políticos num programa de conciliação nacional. Em seguida lançou um “Manifesto ao Povo de São Paulo” e rompeu com o Partido Comunista em 1945. No final da década publicou na revista Anhembi o ensaio   O modernismo e manteve contato com um outro modernista. Recepcionou o escritor Albert Camus e realizaram uma excursão à Iguape, em 1949, para assistir às tradicionais festas do Divino. Como bom anfitrião, foi encarregado de receber o escritor francês de passagem por São Paulo para fazer conferências.

 

Em fins da década de 1940 e início de 1950, dedicou-se mais ao jornalismo e manteve a coluna “3 linhas e 4 verdades” na Folha de São Paulo e a série “A Marcha das Utopias” n’O Estado de São Paulo. Em 1954, a saúde sofre uns abalos e passa a escrever o primeiro volume de sua autobiografia: Memórias: Um homem sem profissão, publicado pela José Olympio Editora. Por esta época o escritor Marcos Rey foi encontrá-lo para tratar da edição de um livro de depoimentos e entrevista, que não chegou a ser concluído. Via-se que não ia bem de saúde e veio a falecer pouco depois, em 22/10/1954. Veja sua última entrevista no link Oswald de Andrade (tirodeletra.com.br). Sua trajetória ficou registrada no trabalho de Maria Augusta Fonseca -Oswald de Andrade–Biografia-, publicado em 1985. Um trabalho que segundo ela: "o resgate da vida do artista não leva apenas às suas agruras pessoais, mas recobre uma parte substantiva da tumultuada história do país, que vai de fins do século XIX à primeira metade do século XX".

 

BIOGRAFIAS - Oswald de Andrade - YouTube

 

 


José Domingos Brito - Memorial quinta, 17 de fevereiro de 2022

OS BRASILEIROS: DI CAVALCANTI

OS BRASILEIROS: Di Cavalcanti

José Domingos Brito

 

 

 

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo nasceu em 6/9/1897, no Rio de Janeiro. Pintor, ilustrador, desenhista, cenógrafo, jornalista, muralista, caricaturista e um dos expoentes da pintura brasileira. Participou da Semana de Arte Moderna, em 1922, e imprimiu um caráter nacional em suas obras ao abordar temas típicos da cultura brasileira, como carnaval, mulatas e figuras populares em cores exuberantes e formas sinuosas.   

 

Filho de Frederico Augusto Cavalcanti de Albuquerque, membro de uma tradicional família pernambucana, e Rosalia de Sena. Pelo lado materno, era sobrinho da esposa de José do Patrocínio, abolicionista do século XIX. Iniciou a carreira como caricaturista, na revista Fon-Fon, em 1914, e mudou-se para São Paulo em 1917, onde ingressou na Faculdade de Direito. Na ocasião, trabalhou como ilustrador de conteúdo e capas para a revista O Pirralho, fez a ilustração do livro Carnaval (1919), de Manuel Bandeira e se entrosou com os artistas e escritores paulistas. A exposição da pintora Anita Malfatti, em 1917, e os contatos com Rubens Borba de Moraes e Sergio Milliet, apresentando-lhe as pinturas de Pablo Picasso, deram-lhe ânimo para retomar o estudo de pintura com o professor alemão Georg Elpons, no Rio de Janeiro. Pouco depois a capital paulista entra num período de efervescência cultural capitaneado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Sergio Milliet etc. dos quais se tornou amigo.

 

Para ajudá-lo financeiramente, os amigos planejaram uma exposição de suas caricaturas, mas ele sugeriu que no lugar de uma “exposiçãozinha” poderiam fazer um evento maior incluindo outras artes, como música e literatura. Assim, deu-se início a organização da Semana de Arte Moderna, para a qual criou o catálogo e cartaz e expôs algumas de suas obras. No ano seguinte, quando Milliet voltou para a Europa, ele foi junto e arrumou emprego na revista Monde, em Paris. Aí permaneceu até 1925 e frequentou a Académie Ranson. Na condição de jornalista, “sem contar a ninguém que era pintor, entrei em contato com Picasso, Braque, Matisse, Fernand Léger, Jean Cocteau e toda a vanguarda francesa, sempre levado pela mão de Sergio Milliet”. Destes artistas recebeu influências que foram trabalhadas ao seu modo, numa linguagem pessoal.

 

Tais influências marcam um redirecionamento em sua obra. Passa a adotar uma temática nacionalista ligada a questão social. A tela Samba (1925), considerada sua obra-prima reflete esta tendência. Representa a figura da mulher negra seminua e o samba, ícones da cultura popular brasileira. A influência de Picasso fica evidente no porte volumoso e tratamento dado às mãos e aos pés das figuras. Segundo o crítico Jones Bergamin, este quadro tem um reconhecimento similar ao de Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral e constitui-se numa “das bandeiras da arte brasileira”. Quando retornou ao Brasil, filiou-se ao Partido Comunista em 1928. Retoma com mais afinco sua obra e aprimora seu estilo, influenciado agora pelo expressionismo alemão, com formas simplificadas e curvilíneas em cores quentes, em especial vários tons de vermelho.    

Em 1932 fundou em São Paulo, junto com os pintores Flavio de Carvalho e Antonio Gomide, o CAM-Clube dos Artistas Modernos. No mesmo ano foi preso durante a Revolução Constitucionalista e no ano seguinte publicou o álbum A Realidade Brasileira, uma série de 12 desenhos satirizando os militares. Em seguida casou-se com a pintora Noêmia Mourão. Na década de 1940 atinge a maturidade artística e o reconhecimento público no cenário nacional. Adepto da arte figurativa, deu uma conferência no MAM-Museu de Arte Moderna , em 1948, publicada na revista Fundamentos, sob o título Realismo e abstracionismo, defendendo uma arte brasileira e contra o abstracionismo. Por esta época incursiona na arte muralista, sob a influência do mexicano Diego Rivera e produz alguns murais em edifícios de São Paulo. Em 1960 realizou o painel “Candango” na Câmara dos Deputados, em Brasília.  

Ao mesmo tempo em que mantinha a carreira artística, participava dos movimentos político-sociais. Foi preso, de novo, em 1936 e libertado por amigos, mudou-se para Paris, onde permaneceu até 1940. Lá recebeu medalha de ouro com a decoração do Pavilhão da Companhia Franco-Brasileira, na Exposição de Arte Técnica. Pouco antes da II Guerra Mundial, retornou ao Brasil, fixando-se em São Paulo. Em seguida passou a expor em Lisboa, México, Buenos Aires e Montevideo e obteve reconhecimento internacional. Participou da I Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1951 e recebeu a láurea de melhor pintor na II Bienal, prêmio dividido com Alfredo Volpi. Por essa época fez uma generosa doação de mais de 500 desenhos ao MASP-Museu de Arte de São Paulo.

Em 1954, o MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro fez uma retrospectiva de suas obras e 2 anos depois participou da Bienal de Veneza. No mesmo ano recebeu o I Prêmio da Mostra Internacional de Arte Sacra de Trieste. Em 1960 criou imagens para a tapeçaria do Palácio da Alvorada e pintou as estações da via sacra, na Catedral de Brasília. No México, ganhou uma sala especial na Bienal Interamericana e foi contemplado com a Medalha de Ouro. Teve sala especial, também, na VII Bienal de São Paulo em 1962. Foi indicado pelo presidente João Goulart para ser adido cultural na França, embarcou para Paris, mas não pode assumir o cargo devido ao Golpe Militar de 1964. Passou a viver em Paris com Ivete Bahia Rocha e lançou uma espécie de autobiografia: Reminiscências líricas de um perfeito carioca.

A década de 1970 foi marcada com diversas exposições retrospectivas, premiações e comendas: Prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Arte; título de doutor honoris causa, da UFBA e teve sua obra Cinco moças de Guaratinguetá, reproduzida em selo postal. Em 1975 recebeu a comenda da Ordem do Infante Dom Henrique de Portugal. Faleceu em 26/10/1976 e seu funeral foi filmado por Glauber Rocha, constituindo-se no documentário Di-Glauber (1977) em homenagem ao pintor. Principais obras: Pierrete e Pierrot (1924) Samba (1925), Mangue (1929), 5 moças de Guaratinguetá (1930), Músicos (1963) etc.

 

Em seu centenário, em 1997 foram realizadas exposições comemorativas e retrospectivas: As mulheres de Di, pelo Centro Cultural do Banco do Brasil; Di, meu Brasil brasileiro, pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Di Cavalcanti, 100 anos, pelo Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado. Três livros, entre tantos outros, dão conta de sua vida, legado e sua contribuição à pintura brasileira:  Contando a arte de Di Cavalcanti, de Angela Braga-Torres (Global Editora, 2021); Di Cavalcanti: conquistador de lirismos, de Denise Mattar e Elisabeth Di Cavalcanti (Ed. Capivara, 2016) e A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari: 1922-1945, de Carlos Zilio (Ed. Relume Dumará, 1997).

 

Di Cavalcanti (1897 - 1976) - YouTube


José Domingos Brito - Memorial quarta, 02 de fevereiro de 2022

CENTENÁRIO DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922

CENTENÁRIO DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922

José Domingos Brito

 

Tenho comigo uma raridade, que quero compartilhar com os leitores: uma longa entrevista com seu principal organizador, Rubens Borba de Moraes.

Rubens foi um colega bibliotecário que eu conheci em 1984 pouco antes de ele falecer.

Foi também o pioneiro da Biblioteconomia no País e um dos grandes bibliófilos do mundo.

Estou preparando sua biografia concisa para publicarmos no próximo domingo na minha coluna.

Assim, envio anexo uma nota sobre o evento e o link da entrevista, que peço-lhe publicar.

Grato e Abraços

* * *

Entrevista com o organizador da Semana de Arte Moderna

Rubens Borba de Moraes é o primeiro sentado à esquerda

É um dos principais organizadores da Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, em São Paulo. É o nosso entrevistado na comemoração do centenário do evento que marcou uma época na História do Brasil.

Na longa entrevista Rubens detalha porque, como se deu e quem foram os protagonistas do movimento modernista. Qual a repercussão, o que representou e quais os desdobramentos em nossa cultura? O centenário da Semana é um momento propício para conhecimento e reflexão sobre uma importante etapa do desenvolvimento do País.

Clique aqui e leia a entrevista completa com Rubens Borba de Moraes  no blog Tiro de Letra.

No próximo domingo, a coluna Memorial publicará a biografia concisa de Rubens Borba de Moraes.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 26 de janeiro de 2022

AS BRASILEIRAS: ARACY DE CARVALHO

AS BRASILEIRAS: Aracy de Carvalho

José Domingos Brito

 


 

Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa nasceu em Rio Negro, PR, em 5/12/1908. Funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, Alemanha, prestou ajuda a muitos judeus - perseguidos pelos nazistas - entrarem ilegalmente no Brasil. É conhecida como o “Anjo de Hamburgo’ e recebeu o título de “Justa entre as Nações” pelo governo de Israel, tendo seu nome inscrito no Jardim dos Justos entre as Nações do Yad Vashem (Museu do Holocausto) e também no Museu do Holocausto de Washington.

 

Filha da alemã Sidonie Moebius de Carvalho e do português Amadeu Anselmo de Carvalho, passou a infância em Guarujá, SP,  onde o pai era dono do Grande Hotel. Em 1930 casou-se com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess com quem teve um filho. Separou-se 5 anos depois e, para fugir do preconceito contra as mulheres divorciadas, foi morar na Alemanha com sua tia Lucy Luttmer. Dominando 4 idiomas (português, alemão, inglês e francês), conseguiu - através do chanceler Macedo Soares - emprego no Consulado brasileiro em Hamburgo, onde passou a chefiar a Seção de Passaportes.

 

Pouco antes de eclodir a II Guerra Mundial, entrou em vigor no Brasil uma restrição secreta impedindo a entrada de judeus no País, fugitivos da Alemanha nazista. Aracy ignorou a restrição e continuou preparando vistos para judeus, permitindo sua entrada no Brasil. Para obter a assinatura do cônsul geral aprovando os vistos, ela deixava de colocar no passaporte a letra “J”, identificando os judeus. Além dessa ajuda, ela forjava atestados de residência falsos, para poder atender judeus de outras cidades e chegou a transportar na mala do carro um judeu até a fronteira da Dinamarca; visitava judeus para levar mantimentos; dava orientações sobre como repatriar bens para fora do país e guardava valores de judeus até o embarque para evitar que fossem roubados por nazistas.

  

Em 1938 conheceu o cônsul adjunto João Guimarães Rosa, casou-se e permaneceram na Alemanha até 1942, quando o Brasil teve as relações diplomáticas rompidas com este país e passou a apoiar os países aliados. Devido ao conflito, o casal ficou 4 meses detido pelo governo alemão até serem trocados por diplomatas alemães. Devido ao fato de não haver divórcio no Brasil, o casamento foi oficializado apenas em 1947, na embaixada do México, no Rio de Janeiro. Sua história só ficou conhecida em princípios da década de 1980, quando uma judia alemã que fugiu para o Brasil decidiu divulgar os feitos da brasileira na Alemanha, durante a II Guerra Mundial. A história foi reconhecida pelo governo de Israel em 1982, quando recebeu as devidas homenagens.

 

Tal história foi contada em detalhes a partir da pesquisa realizada pela historiadora brasileira Mônica Schpun, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. A pesquisa resultou na publicação do livro Justa – Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus trocando a Alemanha nazista pelo Brasil, publicado em 2011 pela Editora Record. Um dado relevante nesta biografia é a revelação da importância que Aracy teve na formação do escritor, não só auxiliando-o na revisão do livro Sagarana, mas também fornecendo-lhe conhecimentos sobre a cultura alemã. Em cartas dirigidas à ela, Rosa costumava chamar “o nosso Sagarana”, referindo-se ao livro. Seus biógrafos dizem que “De um só golpe, Rosa absorveu o lado “bom” dos alemães, sua cultura, e o lado “perverso” dessa mesma civilização, encontrando para esse dilema soluções que serão a chave de sua nova literatura. Nada disso, porém, seria possível sem a presença de Aracy ao seu lado naquele momento fundamental”.

 

Sua disposição de ajudar pessoas perseguidas por motivos políticos prossegue até quando passou a viver no Brasil. Consta em sua biografia o apoio e alojamento a compositores e intelectuais perseguidos durante o regime militar implantado no Brasil em 1964, entre eles Geraldo Vandré, de cuja tia Aracy era amiga.  Em 1967, com o falecimento de Guimarães Rosa, passou a anonimamente até 1982, quando recebeu as devidas homenagens do governo de Israel e passou a ser conhecida do público. Mais tarde foi diagnosticada com o Mal de Alzheimer e faleceu em  28/2/2011, aos 102 anos. Foi sepultada no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras, ao lado de seu marido, no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro.

 

A história de Aracy foi retratada, também, no documentário “Esse viver ninguém me tira”, de Caco Ciocler, produzido em 2014, à disposição no Youtube. O governo brasileiro entrou no rol das homenagens, em 2019, quando os Correios colocaram em circulação 54 mil selos especiais com sua imagem estampada. Atualmente a TV Globo vem exibindo a série Passaporte para a liberdade, livremente baseada no livro de Mônica Schpun, produzida em parceria com a Sony Pictures Television. O seriado, em 8 capítulos, foi filmado em língua inglesa e deverá rodar o mundo após sua apresentação no Brasil.

 

Uma justa homenagem a uma justa entre as nações - YouTube


José Domingos Brito - Memorial domingo, 23 de janeiro de 2022

OS BRASILEIROS: PADRE ROMA
 

OS BRASILEIROS: Padre Roma

José Domingos Brito

 

 

José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, mais conhecido como Padre Roma, nasceu no Recife, PE, em 1768. Advogado, religioso e um dos líderes da Revolução Pernambucana de 1817. Demonstrou vocação religiosa aos 16 anos e entrou para o Convento do Carmo, em Goiana. Em seguida foi para Portugal e fez o curso de Teologia na Universidade de Coimbra. Depois partiu para Roma, onde concluiu os estudos religiosos e ordenou-se padre. Mais tarde a vocação religiosa foi colocada em dúvida; pediu dispensa da Ordem Carmelita, em 1807. No Recife; casou-se; abriu uma banca de advocacia e passou a conspirar contra o domínio português e lutar pela independência do Brasil.

Era um homem culto com conhecimentos de grego e latim e por ter vivido em Roma recebeu este apelido. Possuía o dom da oratória e era dotado de sólidos conhecimentos jurídicos. Assim, ficou famoso no Recife, particularmente por defender causas populares e adesão às ideias liberais em voga na época. Com a vinda de Dom João VI, em 1808, foram criados muitos impostos para manter a família imperial, e o Brasil passou por profundas mudanças com uma opressiva administração da colônia. Ao mesmo tempo, ideais nativistas e anticolonialistas eram defendidos pela maçonaria e propagados em centros como o Areópago de Itambé e o Seminário de Olinda. Dessa forma, os interesses de alguns militares, dos padres e maçons uniram-se num mesmo ideal de emancipação política do Brasil.

Estes grupos passaram a conspirar abertamente contra o poder imperial e as ordens vindas do Rio de Janeiro. Os padres tinham um papel relevante na conspiração, incitando os fiéis à causa libertária do jugo português. Os preparativos para a revolta popular foram se acumulando até 6/3/1817, quando o governador da província – Caetano Pinto de Miranda Montenegro – mandou prender os revoltosos implicados na conspiração. O primeiro a receber ordem de prisão foi o capitão José de Barros Lima, apelidado de “Leão Coroado”, que atravessou com uma espada o oficial português encarregado de prendê-lo. A revolta alastrou-se rapidamente e tomou as ruas do Recife. Em seguida os revoltosos elegeram o Governo Provisório, composto por 5 membros representantes do exército, clero, comércio, agricultura e magistratura.

A revolta logo teve a adesão do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Padre Roma, devido a sua eloquência e poder de convencimento, foi designado para ir clandestinamente até a Bahia para obter adesão ao movimento. Levou mais de 50 correspondências endereçadas a membros da maçonaria baiana e outros simpatizantes. Depois de velejar numa jangada pela costa de Alagoas até a praia de Itapuã, em Salvador, avistou as tropas portuguesas que o aguardava. Jogou todos os papéis no mar, para não incriminar os aliados baianos, e foi preso. Junto com ele, vinha seu filho mais novo, Luís Ignácio. O mais velho, com o mesmo nome do pai e futuro General Abreu e Lima, já estava preso em Salvador.

Foi preso em 26/6/1817 e nos três dias em que foi torturado não entregou os companheiros que contataria em Salvador. A tortura incluía a visita ao cárcere do filho mais jovem nu e estendido sobre a lama, mais parecendo um espectro do que ser vivente. O filho mais velho – Abreu e Lima – que já estava preso há mais tempo, manifestou o desejo de ver o pai antes do fuzilamento. Seus algozes portugueses atenderam o pedido. Foi obrigado a assistir o fuzilamento do pai, por ordem do Conde dos Arcos, em 29/6/1817. Ele já foi incluído neste Memorial e pode ser visto clicando aqui.

Segundo o historiador Pereira da Costa, autor do Dicionário Biográfico de Pernambucanos Célebres, a morte do Padre Roma foi assim descrita pelo filho Abreu e Lima, presente na execução: “O seu porte em presença do conselho, no oratório e durante o trajeto para o lugar do suplício, foi sempre o de um filósofo cristão, corajoso, senhor de si, mas tranquilo e designado. Suas faces não se desbotaram senão quando o sangue que as tingia correu de suas feridas, regando o solo onde, cinco anos depois, se firmou para sempre a independência de sua pátria”. Conta ainda a história que em seus últimos instantes, ele dispensou a venda nos olhos, encarou o pelotão de fuzilamento, pôs a mão sobre o coração e gritou: “Camaradas eu vos perdôo a minha morte. Lembrai-vos que aqui é a fonte da vida!”.

Procurei na Internet alguma biografia do Padre Roma e não encontrei. Achei apenas alguns curtos verbetes, mas ele é um nome conhecido em muitas cidades do País com seu nome dado a diversos logradouros. Aqui mesmo, em São Paulo, no bairro da Lapa temos uma importante rua chamada Padre Roma. Porém, acho que muitas pessoas não sabem a quem se refere aquele nome. Já perguntei a alguns moradores e tive mais de uma resposta dizendo a mesma coisa: “Não sei, mas deve ser ao Papa, né? O padre de Roma.”

Clique aqui e assisto ao vídeo Lula, padre Roma e a luta pela liberdade e a soberania


José Domingos Brito - Memorial quarta, 12 de janeiro de 2022

AS BRASILEIRAS : ADMA E VIOLETA JAFET

 

AS BRASILEIRAS: Adma e Violeta Jafet

José Domingo Brito

 


 

 

Adma Jafet nasceu em 1886, no Líbano; Violeta Jafet, sua filha, nasceu em 1908, em São Paulo, SP. São duas representantes de uma família de empreendedores libaneses que veio para o Brasil em fins do século XIX. Tornou-se um dos maiores grupos empresariais familiares do País, atuando nos ramos têxtil, mineração, finanças e navegação. Hoje não se pode falar em filantropia em São Paulo, sem citar a Família Jafet.  

 

Tudo começou em 1921, quando Adma, junto com colegas da comunidade árabe, fundou a Sociedade Beneficente de Senhoras do Hospital Sírio-Libanês. Violeta, com 13 anos, estava presente na reunião, ao lado de outras 27 mulheres. O sonho delas era criar um hospital à altura de São Paulo, como forma de retribuir o acolhimento propiciado pela colônia na cidade. Com ajuda financeira de um grupo de doadores, teve início as obras do hospital numa colina do bairro Bela Vista, em 1931. “Foi em boa hora que tomamos a nosso cargo erguer este edifício sob o céu límpido do Brasil. Deus nos ajude a realizar as nossas aspirações, a servir à nação, a fazer uma obra útil à humanidade”, discursou dona Adma no lançamento da pedra fundamental do hospital.

 

Em 1937, chegaram os primeiros equipamentos e no ano seguinte foi realizada a primeira reunião dentro do edifício. Em 1941, já se marcava a data da inauguração, quando o governo paulista requisitou o prédio para instalar uma escola de cadetes. Estávamos em plena II Guerra Mundial e, por meio de um decreto, o local foi transformado num centro militar por mais de 20 anos. Dona Adma faleceu em 1956 e não pode ver a instituição pronta. A tarefa ficou com a filha, que batalhou pela reconquista do prédio. Junto com o genro Lourenço Chohfi, percorreu quarteis e gabinetes de políticos com poucos resultados. Até que em meados da década de 1960 se utilizou da influência de Ricardo Jafet, seu ??????????? na época presidente do Banco do Brasil, e conseguiram com o governador Jânio Quadros resgatar o prédio em 1959.

 

Em 1960 assumiu a presidência da Sociedade, chamou as amigas de sua mãe, congregou novos aliados e convocou empresários e médicos para ajudá-la na empreitada. O Dr. Daher Elias Cutait ficou encarregado da direção clínica e em 15/8/1965 foi inaugurado oficialmente o Hospital Sírio-Libanês coexistindo com a Sociedade Beneficente. Segundo dona Violeta, “a ideia era formar um hospital que tivesse pobres e ricos, gratuitos e pagantes, para que os pagantes pudessem também pagar as despesas dos menos favorecidos”. Como resultado temos um hospital que foi o primeiro do País a implantar uma UTI-Unidade de Terapia Intensiva, em 1971, e o primeiro do hemisfério sul a realizar uma cirurgia remota por microcâmera, com o paciente em São Paulo e o cirurgião em Baltimore (EUA).

 

Dona Violeta costumava dizer que o hospital não é nem sírio nem libanês: é “universal” e procurou ampliar sua atuação dedicando-se à educação e investigação científica. Desde 2005 mantém o Instituto de Ensino e Pesquisas e recebeu aprovação do Ministério da Educação para ministrar cursos de pós-graduação lato sensu stricto sensu. Hoje o hospital conta com 3 unidades em São Paulo e 5 em Brasília, incluindo os centros de oncologia e diagnósticos. É uma referência mundial na área médica e serviços hospitalares. O compromisso assumido há 100 anos por suas fundadoras está fundado em 4 pilares: integração com a comunidade, ambulatórios de filantropia, Instituto Sírio-Libanês de Responsabilidade Social e projetos de apoio ao SUS-Sistema Único de Saúde.

 

O hospital é mantido com a receita oriunda dos convênios médicos (70%) e dos pacientes particulares (30%). As doações espontâneas são esporádicas e do que se arrecada, a maior parte é reinvestida no hospital, tendo uma parcela destinada a projetos filantrópicos nas redondezas. Em 2006, aos 98 anos, Dona Violeta se afastou da presidência executiva da Sociedade. A gestão foi profissionalizada, mas ela continuou a par de tudo e marcando presença nas reuniões até 26/12/2016, quando veio a falecer aos 108 anos. Pouco depois a administração do hospital instituiu o “Prêmio Violeta Jafet” de excelência no cuidado com os pacientes e dirigido aos funcionários do hospital. Uma comenda que bem poderia se entender à todos os cuidadores da saúde.   

 

Em 2017, na celebração dos 130 anos da imigração no Brasil, a família Jafet promoveu uma festa no Clube Atlético Monte Líbano, com a presença de mais de 500 de seus descendentes. O objetivo não era apenas festejar a data, mas também demonstrar o legado deixado para as gerações seguintes. A comissão organizadora do evento -integrada por primos descendentes dos seis irmãos que chegaram ao Brasil a partir de 1887: Benjamin, Basílio, Nami, João, Miguel e Hala- ofereceu um coquetel de boas-vindas e exibiu a árvore genealógica atualizada: 1.265 descendentes, sendo que 873 estão vivos, permitindo que os presentes marcassem todos os familiares do mesmo ramo genealógico. O evento culminou com uma série de atividades voltadas às crianças, um “pocket show” apresentado por cinco descendentes cantores e uma homenagem aos nove descendentes vivos, com idades acima de 90 anos.

 

Na comemoração do centenário do Hospital, em 2021, todas as diretorias da Sociedade Beneficente se manifestaram no sentido de manter e alargar as conquistas da entidade como forma de retribuição ao acolhimento da cidade de São Paulo e o Brasil propiciado aos imigrantes.

 

Família Jafet veio do Líbano há 125 anos - YouTube

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 29 de dezembro de 2021

OS BRASILEIROS: CASTRO ALVES

OS BRASILEIROS: Castro Alves

José Domingos Brito

 

 

 

Antônio Frederico de Castro Alves nasceu em 14/3/1847, na Freguesia de Curralinho, atual Castro Alves, BA. Poeta, dramaturgo e expoente da 3ª fase do Romantismo, conhecido como “Poeta dos Escravos”, entre outros epítetos: “Poeta Republicano” (Machado de Assis); “Poeta nacional, social, humano e humanitário” (Joaquim Nabuco); “Maior poeta brasileiro, lírico e épico” (Afrânio Peixoto) e “Apóstolo andante do condoreirismo” (José M. da Cruz).

 

Iniciou os primeiros estudos na cidade de Cachoeira e logo a família mudou-se para Salvador, onde estudou no Colégio Sebrão até 1857. Ano seguinte ingressou no Ginásio Baiano, do célebre educador Dr. Abílio César Borges, futuro Barão de Macaúbas. Nesta escola, onde também estudava Rui Barbosa, foi seduzido pelos frequentes saraus e declamações de poesia e discursos. Alí foi revelado o poeta, com os primeiros poemas aos 13 / 14 anos. Na época, a mãe -Clélia Brasília- faleceu; o pai casou-se de novo e ele, junto com o irmão mais velho, mudaram-se para o Recife, em 1862, a fim de ingressarem na Faculdade de Direito.

 

Reprovado no “vestibular” da época, mergulhou na vida cultural da cidade e passou a frequentar a “Escola do Recife”, um núcleo de intelectuais dentro da Faculdade de Direito. Aos 16 anos, publicou o poema A Canção do Africano no jornal “Primavera”, em maio de 1863, quando ainda não se ouvia falar de “Abolição da escravatura”. Poesia era um dos talentos do rapaz; o outro era desenho, vindo a tornar-se bom desenhista e até pintor. Nesse período conheceu a atriz portuguesa Eugênia Câmara, com quem se enamorou, e pouco depois consegue matricular-se na Faculdade. No ano seguinte sentiu um abalo com o suicídio do irmão, ampliado com a notícia do diagnóstico de tuberculose, e retorna à Salvador.

 

Em março de 1865, volta ao Recife em companhia do poeta Fagundes Varela. No ano seguinte, reencontra Rui Barbosa e fundam uma sociedade abolicionista. Em seguida passou a viver com Eugênia Câmara e tem início grande produção poética junto com declamações públicas. Seu contemporâneo Vicente de Azevedo disse que “ele sabia preparar a cena, como emérito que era. Para essas ocasiões, punha pó de arroz no rosto, a fim de acentuar mais a palidez; um pouco de carmim nos lábios e muito óleo nos cabelos que ele arremessa da formosa cabeça". Além da abolição da escravatura, passou também a lutar pela causa republicana, quando finaliza o drama Gonzaga, ou a Revolução de Minas, representada no Teatro São João, em Salvador.

 

Nessa estadia no Recife ocorreu uma acirrada disputa com Tobias Barreto, 10 anos mais velho e protagonista da “Escola do Recife”. Conta-se que o filósofo tinha temperamento nervoso, às vezes insociável, uma antítese do poeta baiano, de índole meiga e atraente. A disputa se deu quando Tobias se enamorou da atriz Adelaide Amaral, da mesma companhia de Eugênia, e passa a defendê-la em detrimento da outra. A partir daí surgem dois núcleos na cidade em que cada grupo defendia suas musas. Após uma noite em que Tobias e seus aliados vaiam Eugênia, Castro Alves improvisa de forma avassaladora na réplica e, dias depois, em novo confronto, nova vitória sobre o rival com versos que ficaram memoráveis, levando a disputa às páginas da imprensa e a uma derrota fragorosa de Tobias Barreto.  

 

Em 1868, partiu junto com Eugênia para o Rio de Janeiro, onde manteve contato com o romancista José de Alencar, que publicou o artigo Um Poeta no Correio Mercantil. Além do artigo, Alencar apresentou-o a Machado de Assis junto com um bilhete pedindo: “Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos ínvios caminhos por onde se vai à decepção, à indiferença e finalmente à glória, que são os três círculos máximos da divina comédia do talento”. Foi curta a permanência no Rio de Janeiro; em seguida, mudou-se para São Paulo e ingressa no 3º ano da Faculdade de Direito, onde retoma a vida acadêmica e cultural iniciada no Recife. Logo dá-se a primeira apresentação pública de Tragédia no Mar, que pouco depois teve o título mudado para Navio Negreiro. Ingressou na Loja América, da Maçonaria, onde reencontra o amigo Rui Barbosa, que baixou um decreto obrigando os afiliados a adotarem a imediata libertação de seus escravos. Pouco depois já estava participando da comissão de literatura do “Ateneu”, o jornal dos estudantes e da “Bucha”, sociedade secreta criada a fim de ajudar os estudantes em situação precária, mas que transcendeu o ambiente acadêmico e teve projeção política.

 

Não chegou a concluir o curso; dedicou-se mais aos poemas, alcançando êxito no meio cultural da cidade. Diz-se que o sucesso lhe subiu a cabeça, fazendo-o descuidar-se da amada Eugênia, resultando em traições, brigas e separações até o dia em que ela efetivou o desenlace. Segundo Afrânio Peixoto, ele passou por uns perrengues: "não lia, não escrevia; passeava, fumava, saía à caça, sem disparar sequer um tiro". Numa dessas caçadas, ao transpor a vala num pulo, a espingarda disparou acertando-lhe o pé esquerdo. O tratamento prestado não surtiu efeito e os antigos padecimentos com o pulmão reapareceram mais agravados. Em 19/3/1869 embarcou para o Rio de Janeiro, onde havia mais recursos médicos. A solução consistiu numa amputação sem anestesia, pois a situação pulmonar não permitia o uso de clorofórmio, o anestésico da época.

 

Pouco depois, retorna à Salvador; visita Curralinho; reencontra Leonídia Fraga, sua prometida desde menino; compõe versos melancólicos; vagueia de um lado pra outro e prepara os manuscritos para a edição do livro Os Escravos. Em outubro de 1870, já combalido pela tuberculose, pediu ao amigo José Joaquim de Palma que lhe emprestasse a voz para declamar alguns poemas, o que é feito no Teatro São João e foi ovacionado. No mês seguinte, dá-se o lançamento de Espumas Flutuantes, seu único livro publicado em vida. Na ocasião, Adelaide apresenta-o à cantora lírica Agnese Trinci Murri, por quem fica encantado, escreve-lhe cartas de amor e tenta roubar-lhe um beijo, mas foi rejeitado. São os últimos lampejos do poeta romântico.

 

Em 21/3/1871 participou de um sarau e faz declaração pública de seu amor por Agnesi, que é correspondido apenas na forma de um amor platônico. Em fins de junho, já “acamado” e pressentindo o ato final, pediu que sua cama fosse colocada na sala. Segundo Adelaide, “queria morrer olhando para o infinito azul, esse infinito que irá em breve recolher suas últimas aspirações”. Seguem-se os dias de agonia até 6/7/1871 pela manhã, quando Adelaide lhe passa o lenço pela fronte úmida. Lúcido e com um fiapo de voz, fixa o olhar na irmã e murmura: “Guarda este lenço… com ele enxugaste o suor de minha agonia…”. Aos poucos o olhar foi-se esmaecendo até às 15:30, quando deu-se a partida.

 

No dia seguinte foi sepultado no Cemitério do Campo Santo e teve sua memória mantida e divulgada pela irmã Adelaide, falecida em 1940. Segundo Afrânio Peixoto, a ela o poeta deve muito de sua fama. Em 6/7/1881, no 10º ano de sua morte, o “Largo do Teatro”, em Salvador, foi renomeado para “Praça Castro Alves”, ao lado do Elevador Lacerda e principal ponto turístico da cidade. Lá foi erguido um monumento, em 1923, com sua estátua esculpida em bronze pelo italiano Pasquale De Chirico, de 2,9 metros, num pedestal com 11 metros de altura. No centenário da morte, em 6/7/1971, na gestão do prefeito Antônio Carlos Magalhães, foi realizado o translado de seus restos mortais para o monumento. Em 1977, Caetano Veloso parafraseou o poeta –A praça é do povo, como o céu é do condor- e cantou no Frevo novo: “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”.

 

Em 1997, a Biblioteca Nacional e o Departamento Nacional do Livro realizaram ampla comemoração dos 150 anos de nascimento do poeta, com a exposição “Castro Alves: o olhar do outro” e diversas homenagens. É o poeta mais conhecido dos brasileiros, através do cinema, teatro, TV e inúmeras biografias. Desde a 1ª, em 1896 com Múcio Teixeira: Vida e obras de Castro Alves, até 1942 com Afrânio Peixoto e seu Castro Alves: o poeta e o poema, da coleção Brasiliana e Jorge Amado com seu ABC de Castro Alves entre outros. Em 1960, outro conterrâneo entusiasmado -Norlandio Meirelles de Almeida- realizou um trabalho de fôlego e publicou Cronologia de Castro Alves, relatando ano-a-ano a vida do poeta, incluindo fotos e trechos dos poemas pertinentes a cada fase de sua curta vida. Não por acaso, o dia de seu nascimento é celebrado como o “Dia da Poesia”

 

Documentário com Ancelmo Goes

 

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 21 de dezembro de 2021

AS BRASILEIRAS: ENEIDA DE MORAES

AS BRASILEIRAS: Eneida de Moraes

José Domingos Brito

 

 

 

 

Eneida de Villas Boas Costa de Moraes nasceu em Belém, PA, em 23/10/1904. Escritora, poeta, jornalista, tradutora, pesquisadora, política e carnavalesca. Autora do primeiro livro sobre o carnaval: História do carnaval carioca (1958), que definiu os conceitos de cordão, corso, ranchos, entrudo etc., além de participar diretamente nas lutas contra a ditadura de Vargas no período do "Estado Novo”. Brincou com os brasileiros e lutou pelo Brasil numa combinação bem-sucedida.     

 

Filha de um comandante de navios, tinha grande afeição pelos rios e pela Amazônia. O gosto pela literatura surgiu cedo. Aos 7 anos se inscreveu num concurso de conto infantil na revista “Tico-Tico”, sem que a família soubesse. Mandou um conto sobre o caboclo amazônida e ganhou o 1º lugar, além de 20 mil réis. Aos 10 anos foi estudar em Petrópolis (RJ) no famoso Colégio Sion, onde teve sólida formação escolar. Nas décadas de 1920 e 1930, colaborou em jornais como o “Estado do Pará” e revistas: “Para Todos”, “Guajarina”, “A Semana’ e “Belém Nova’. Em 1930 recebeu o “Prêmio Muiraquitan”, de um grupo de intelectuais amazonenses, por sua participação no movimento literário de seu Estado. No mesmo ano mudou-se para o Rio de Janeiro e filiou-se ao PCB-Partido Comunista Brasileiro. Na época liderou greves e manifestações políticas.  

 

Envolveu-se diretamente nas revoluções de 1932 e 1935, resultando em 11 prisões durante o Estado Novo, além de sofrer torturas e viver na clandestinidade ou exílio. Na prisão, conhece Graciliano Ramos, que a imortalizou em seu livro Memórias do Cárcere. Na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, verificou que uma “vigorosa conversa política ali se desenvolvia […] dominada por um vozeirão de instrutor. Quem seria aquela mulher de fala dura e enérgica? […] Despedi-me de Nise e desci, uma pergunta a verrumar-me, insistente, os miolos: quem seria a criatura feminina de pulmões tão rijos e garganta macha? […] Foi Valdemar Bessa quem me satisfez a curiosidade: a mulher de voz forte era Eneida. E apertava-se uma dúzia delas na sala 4. Olga Prestes, Elisa Berger, Carmen Ghioldi, Maria Werneck, Rosa Meireles […]”

 

Atuou como jornalista profissional em periódicos partidários e da grande imprensa, nas funções de repórter e de cronista, entremeando tais atividades com a publicação de 11 livros e várias traduções. Mas não abriu mão do carnaval, que tanto gostava, e fez uma grande pesquisa, tornando-se a primeira estudiosa na área. Animou o carnaval com a criação do “Baile do Pierrot” no Rio de Janeiro e em Belém. Publicou alguns livros de poesia e de longas crônicas: Promessa em azul e branco (1957), Paris e outros sonhos (1951), Caminhos da terra (1959), Cão da madrugada (1954), Aruanda (1957), Copacabana: história dos subúrbios (1959), Boa noite, professor (1965) e a antologia de poemas Terra verde (1929). São livros esgotados, existentes apenas nos sebos, mas alguns deles foram reeditados pela Secretaria de Cultura do Pará.

 

Foi homenageada por mais de uma Escola de Samba. Em 1973, a Salgueiro desfilou com o tema “Eneida, amor e fantasia”; a Império do Samba (de Belém) no mesmo ano, saiu com “Eneida sempre amor” e em 2010 a Paraíso do Tuiuti saiu com “Eneida, o Pierrot está de volta”. Foi a primeira madrinha da “Banda de Ipanema”, criada em 1965. Para o poeta João de Jesus Loureiro, foi “uma mulher de sentimento livre, de uma grande inteligência, com uma utopia política de um Brasil justo com forte expressão literária, sendo que tanto no romance, quanto nas crônicas sempre estava presente a memória do Pará, mas sobretudo a expressão de uma mulher escritora que ultrapassou as limitações do seu tempo, sendo pioneira na afirmação da mulher como intelectual independente e com a sua maneira de viver livre e precursora da mentalidade feminina atual”.

 

O professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade da Amazônia (Unama), José Guilherme Castro, afirma que a escritora sempre rompeu todas as barreiras desde criança. “Eneida é uma mulher de vanguarda que abriu a porta para outras mulheres não só na literatura como na história social”. Ele teve como tema de seu curso de mestrado, as crônicas de Eneida. As obras dela continuam importantes e atuais para entender o mundo. “Quem lê a obra da Eneida está praticamente vendo a atualidade”, destaca. “Ela abre caminho para outras mulheres escreverem na literatura brasileira.

 

Hoje a Faculdade de Ciências Sociais da UFPA-Universidade Federal do Pará mantém o “Grupo de Estudos Eneida de Moraes” com um considerável acervo de publicações. Em 2004 a professora Eunice Ferreira dos Santos concluiu uma pesquisa, que resultou na tese “Eneida de Moraes: militância e política”, defendida na Faculdade de Letras da UFMG-Universidade Federal de Minas Gerais, enfatizando o lado político, além de trazer uma biografia completa da escritora e jornalista paraense. No largo elenco de atividades culturais e políticas, consta também sua participação na criação da Associação Brasileira de Escritores, em meados da década de 1940 e, pouco antes de falecer -ainda jovem aos 67 anos, em 27/4/1971- na fundação do Museu Paraense da Imagem e do Som.

 

Eneida de Moraes na palavra de Eunice Ferreira, Funtelpa ...

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 15 de dezembro de 2021

OS BRASILEIROS: GLAUBER ROCHA

 

OS BRASILEIROS: Glauber Rocha

José Domingos Brito

 

 

Glauber Pedro de Andrade Rocha nasceu em 14/3/1939, em Vitória da Conquista, BA. Jornalista, escritor e essencialmente cineasta. Foi precoce na vida e na morte. Aos 10 anos escreveu uma peça de teatro: O fio de ouro, com ele no papel principal. Fio de ouro não deixa de ser um prenúncio da sua inserção na cinematografia internacional com o “cinema novo”, tendo “Deus e o diabo na terra do sol”, sob sua direção, que se tornou referência obrigatória na história do cinema brasileiro.   

  

Filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha, teve os primeiros estudos em casa, com sua mãe e ingressou numa escola católica. Em 1947 a família mudou-se para Salvador e passou a estudar no Colégio 2 de Julho, instituição presbiteriana, onde participou de um grupo de teatro, escrevendo e atuando. Aos 13 anos participou de um programa de rádio, como crítico de cinema. Até 1956 integrou alguns grupos e teatro e entrou na Cooperativa Cinematográfica Iemanjá. Aos 18 anos passou a escrever regularmente para algumas revistas culturais de caráter politico: “O Momento“, “Sete Dias”, “Mapa” e “Ângulos”. No ano seguinte, já consagrado como jornalista, assume a direção do suplemento literário do “Jornal da Bahia” e passa a escrever também para o “Diário de Notícias de Salvador” e suplemento dominical do “Jornal do Brasil”. 

 

Em 1959, foi cursar Direito na UFBA, mas largou 2 anos depois para se dedicar ao jornalismo e cinema. Por essa época casou-se com sua colega Helena Ignez. Seu primeiro filme foi um curta-metragem O pátio (1959), seguido de Cruz na praça (1960). O primeiro longa-metragem se deu em 1961, com Barravento, premiado na Tchecoslováquia. A partir daí o movimento “cinema novo” irrompe pregando um cinema nacional autêntico, com uma temática social e uma nova linguagem cinematográfica explorando cenas externas, próximas do filme documentário. Glauber liderou o movimento, tendo Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade encabeçando o movimento no Rio de Janeiro e Roberto Santos, em São Paulo. Além destes, outros destacados cineastas integraram o movimento: Cacá Diegues, Zelito Viana, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, Leon Hirzman, Helena Solberg entre outros.

 

A fim de consolidar o movimento, lançou em 1963 o livro Revisão crítica do cinema brasileiro, apresentando as linhas mestras de uma nova cinematografia nacional. No ano seguinte tais linhas mestras foram para a tela com o filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), premiado no Festival de Cinema Livre, Itália; indicado para receber a Palma Ouro, no Festival de Cannes e representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1965. Assim, ficou conhecido no plano internacional. Em seguida produziu e dirigiu outros filmes de grande repercussão aqui e no exterior: Terra em transe (1967), que lhe deu o Prêmio Luis Buñuel, no Festival de Cannes e indicado para receber a Palma de Ouro e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), que lhe garantiu o Prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes. Com a radicalização do regime ditatorial no País em princípios da década de 1970, foi considerado um dos expoentes da esquerda brasileira e procurou um autoexílio em Portugal, em 1971.

 

Por esta época realizou mais alguns filmes, predominando a temática poíitica, com pouca repercussão no público, devido a precária distribuição e também a complexidade dos temas, atraindo um público mais seletivo: O leão de 7 cabeças (1970), Cabeças cortadas (1970) O rei do milagre (1971) e As armas e o povo (1974), um documentário gravado nas ruas de Lisboa durante a “Revolução dos Cravos”, que derrubou o regime ditatorial do governo Salazar. Em 1977 sofreu um abalo com a morte da irmã, a atriz Anecy Rocha, que caiu num fosso de elevador. No ano seguinte declarou: “Eu pretendo, lenta e gradualmente, passar a ser mais romancista e menos cineasta. Não quero mais filmar tanto, porque acho que meus livros acabarão sendo filmados por mim ou por outra pessoa” e lançou o romance Riverão sussuarana”.  

 

Em meados de 1979, a situação política no País estava conturbada diante da polarização ideológica e da luta pela anistia que foi decretada naquele ano. Neste cenário Glauber fez um comentário que abalou a esquerda brasileira. Declarou que Golbery (Chefe da Casa Civil) era o gênio da raça. Logo passou a ser chamado de louco pela esquerda. Mais tarde Darcy Ribeiro explicou que ele estava fazendo uma referência ao regime militar nacionalista no Peru, onde o governo Alvarado promovia reformas estruturais para debelar a pobreza. Não houve entendimento entre Glauber e muitos intelectuais de esquerda e ele passou a ser combatido, isolado ou até mesmo sofrer a acusação de ter sido cooptado pelos militares. Alguns diziam que aquela declaração seria o atestado de que ele realmente estava ficando louco. Pouco depois passou a comandar um programa aos domingos à noite na TV Tupi, intitulado Abertura, um programa de variedades culturais e política sobre a situação brasileira, onde pode exercer a contento sua veia jornalística.

                                                                                                                                              Em outubro de 1979, fez sua última apresentação do programa e concluiu com uma despedida e espécie de manifesto: “Dediquei 20 anos de minha vida ao cinema brasileiro. Sou um dos seus principais artífices. Realizei alguns filmes de repercussão internacional e me encontro marginalizado em meu país. Sou famosíssimo e paupérrimo. Isso é o Brasil. E o cinema é a superestrutura de um regime econômico. A mais importante de todas as artes. Boa noite Brasil! Aqui é o desmascaramento histórico (coloca e tira máscaras no rosto em close). Nós mulatos, sertanejos, brasileiros, perguntamos: o Brasil precisa ou não de reformas estruturais? Porque todo mundo fala, fala, fala um papo furado, um papo jurídico, fala em Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, aquele negócio decadente, bem brasileiro e não fala no básico, que são as reformas estruturais que prejudicariam uma parte dos patrícios. Mas será que essa parte não poderia ceder em função de uma nova utopia? Por que a burguesia tem que ser cruel? Matéria para reflexão. Boa noite, saravá! Não vai aqui nenhum sentido de provocação. Assim é a democracia. Todos nós temos um ego semelhante. Nada de guardar rancores, loucuras escondidas. Voltemos para dentro do Brasil, de nossos rios, de nossas florestas, onde vive povo pobre, liquidado, doente, que precisa realmente de ser resgatado. Vamos deixar de lado a revolução francesa e a soviética para descobrir a feijoada, o carnaval, o frevo. Nossa cultura é a macumba, não é a ópera. Vamos descobrir o Brasil. Ninguém fala do Piauí, de Sergipe, da Paraíba, terra de mulher macho sim sinhô. Queria ver o Doca Street na Paraíba! Tô de saco cheio de teorias, tô querendo soluções! Alô, alô Antônio Carlos Jobim. Pau no Sinatra! Estou entrando de férias para terminar a montagem do meu filme A idade da terra, tem os livros que estou terminando e tenho de ir para a Europa para cuidar da saúde”.

                                                                                                                                                                   

Foi sua última aparição na TV brasileira. Partiu para Portugal, onde passou a viver, filmar e viajar pelo mundo.  Em meados agosto de 1981, a saúde apresentou problemas pulmonares, foi internado em Lisboa e pouco depois entrou em estado de coma. Os amigos providenciaram sua transferência para um hospital no Rio de Janeiro e veio a falecer em 22/8/1981. Costumava dizer que era uma reencarnação de Castro Alves e que iria morrer aos 42 anos.  Em seu enterro, Darcy Ribeiro fez um comovente discurso ressaltando sua indignação política. Seu último filme foi A idade da terra (1980), que concorreu ao Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza. Foi seu 5º filme na lista dos “100 Melhores Filmes Brasileiros de Todos os Tempos”. Entre os dias 14 e 24 de março de 2019, ao completar 80 anos se estivesse vivo, a Prefeitura de Vitória da Conquista realizou ampla programação com o evento “Glauber Rocha ressuscita o povo brasileiro“,  com mostra de filmes, debates, exposição etc.

 

O cineasta deixou um enorme acervo de filmes, textos inéditos, fotos, desenhos e documentos em geral, organizados por Dona Lúcia e Paloma Rocha, mãe e filha respectivamente, colocados à disposição do público no “Tempo Glauber”, um espaço cultural no Rio de Janeiro, de 1983 a 2017, quando foi transferido para a Cinemateca Brasileira. Pouco depois do falecimento, uma frase-síntese de sua vida passou a circular no meio intelectual: “Foi um cineasta controvertido e incompreendido, patrulhado pela esquerda e pela direita”. Para muitos era considerado gênio do cinema; para outros era um “profeta” dado o acerto de algumas de suas afirmações.   

 

Após sua morte, surgiram alguns livros na tentativa de compreender o homem e/ou sua obra: Glauber Rocha, de Sylvie Pierre (Papirus, 1997); Sertão Mar: Glauber e a estética da fome, de Ismail Xavier (Cosac & Naify, 2007); Glauber Rocha: cinema, estética e revolução, de Humberto Pereira de Souza (Paco Editorial, 2016); A primavera do dragão, de Nelson Motta (Objetiva, 2019), além de uma de uma densa biografia publicada por seu amigo João Carlos Teixeira: Glauber Rocha, esse vulcão, lançada em 1997 pela editora Nova Fronteira. Um livro interessante e revelador de sua personalidade foi publicado em 1997 (Cia. das Letras), organizado por Ivana Bentes. Trata-se de Cartas ao mundo, reunindo 270 cartas escritas por ele, entre 14 e 42 anos, e dirigidas aos parentes e amigos (Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, João Ubaldo Ribeiro, José Guilherme Merquior, Caetano Veloso... Vistas no conjunto, as cartas apresentam um retrato íntimo de uma das personalidades mais fascinantes do século passado.

 

Funerais de Glauber Rocha

 

 

Darcy Ribeiro: Exéquias de Glauber Rocha

 

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 07 de dezembro de 2021

AS BRASILEIRAS: OLÍVIA PENTEADO

 

AS BRASILEIRAS: Olívia Penteado

José Domingoa Brito

 


 

 

Olívia Guedes Penteado nasceu em Campinas, SP, em 12/3/1872. Escritora e mecenas dos artistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Integrante da aristocracia paulista, foi apelidada de “Nossa Senhora do Brasil”, pelos modernistas. Batalhou pelo voto feminino, promoveu a eleição da 1ª mulher deputada federal (Carlota Pereira de Queiroz) e participou ativamente da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo.

 

Filha de José Guedes de Souza e  Carolina Álvares Guedes, casou-se com seu primo Ignácio Penteado, irmão do conde Álvares Penteado, em 1888, e foi viver em Paris, onde fez de sua casa um importante ponto de encontro cultural e conheceu aluguns dos protagonistas do movimento modernista brasileiro, que por lá “flanavam”. Antes de conhecer os modernistas costumava receber os poetas parnasianos, tais como Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. Em 1923, ao ficar viúva, voltou a viver em São Paulo e reuniu a nata da intelectualidade paulista em sua casa. Em seguida, criou o “Salão de Arte Moderna”, instituindo o “Modernismo” na cultura brasileira. Na condição de colaboradora da revista “Contemporânea”, veículo lisboeta de divulgação dos modernistas portugueses, tornou-se correspondente da revista no Brasil.   

 

Em São Paulo sua mansão -ocupando a esquina das ruas Duque de Caxias e Conselheiro Nébias (onde hoje fica o Hotel Comodoro)-  foi projetada por Ramos de Azevedo e foi reformada incluindo um pavilhão para abrigar as obras de arte. A pintura do teto foi refeita por Lasar Segal, tendo em vista uma melhor adequação com as “artes modernas”. Contava com uma bela coleção de obras de arte, incluindo o fantástico Le Polichinelle lisant “Le Populaire”, de Picasso; a escultura “Négresse Blonde”, de Brancusi e obras de Delanay, Foujita, Cézanne, Degas, Marie Laurencin, Brecheret, Portinari, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral entre outras

 

As reuniões semanais reunia uma plêiade de artistas e escritores daqui e de fora. Em 18/2/1924 o “Correio Paulistano” noticiou: "A sociedade paulista, que tem em D. Olívia Guedes Penteado uma das figuras de mais fino relevo e mais aristocrática tradição, festejou anteontem o notável escritor francês Blaise Cendrars, que teve na fidalga residência da Rua Conselheiro Nébias um acolhimento de excepcional elegância e de inexcedível fidalguia e intelectualidade". Tais encontros e reuniões incluía também o chá das terças-feiras e os grandes jantares nos salões de décor clássico frequentados pela elite paulistana, incluindo, é claro, os protagonistas da Semana de Arte Moderna.

 

Blaise Cendrars ficou amigo dos modernistas e veio outras vezes à São Paulo. Numa dessas viagens juntou-se a um grupo de paulistas para visitar as cidades históricas de Minas Gerais. Participaram da excursão: ela, Mário e Oswald de Andrade e seu filho Noné, René Thiollier e Tarsila do Amaral. O poeta francês ficou encantado com as obras de Aleijadinho e Dona Olívia ficou indignada com o estado de abandono das igrejas. De volta à São Paulo, ela decidiu criar a “Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil”, cujos estatutos foram redigidos pelo poeta em um “chá das cinco” e logo foram inscritos não apenas os que viajaram à Minas, bem como Carlos de Campos, recém-empossado presidente do Estado e outras personalidades presentes na solenidade do chá.

 

Esse turismo cultural, promovido por ela, denominado por Mario de Andrade “viagens de descobrimento do Brasil”, alcançou o carnaval do Rio de Janeiro e chegou até à Amazônia, em 1927, numa viagem de navio subindo o rio Solimões até Iquitos, no Peru. Estas excursões ficaram registradas nas poesias de Oswald de Andrade (Pau Brasil), Mário de Andrade (Noturno de Belo Horizonte) e em pinturas de Tarsila do Amaral. Mas nem só de arte vivia a aristocracia paulista. Na Revolta Paulista de 1924, ou segunda revolta tenentista, São Paulo foi tomada por canhões e o poeta Cendrars, que participara da I Guerra Mundial, onde perdeu um braço, deu-lhe orientações como proteger a casa e sua coleção.   

 

Em 1932 passou a integrar o Instituto Geográfico e Histórico de São Paulo e no mesmo ano participou da Revolução Constitucionalista de 1932, ajudando os feridos e as famílias dos combatentes na condição de Diretora do Departamento de Assistência Civil. Prestou substancial ajuda ao movimento doando valiosas joias à “Campanha de Ouro para o Brasil”, necessária à manutenção das frentes de combate. Por essa época estimulou e patrocinou a candidatura de Carlota Pereira de Queiroz, a primeira mulher a se eleger deputada no Brasil. Foi uma mulher à frente de seu tempo e transitou bem entre dois séculos e duas estéticas. Faleceu em 9/6/1934 de apendicite. Foi sepultada no Cemitério da Consolação e seu túmulo conta com uma escultura -O Sepultamento- feita por Victor Brecheret. O filho de seu genro, Goffredo da Silva Telles Jr., lembra que ao levar o caixão embandeirado ao carro dos bombeiros “sentimos um movimento do povo, uma aproximação compacta de gente, em torno de nós (...) E então vimos o total inesperado. O povo silenciosamente se assenhorou do esquife embandeirado. Homens desconhecidos, segurando as alças do féretro, puseram se a caminho. E o levaram, na força de seus braços, pelas ruas de São Paulo”.

 

Foi descrita com uma mulher sensível, bela, boa e de uma elegância soberana. Seu retrato (106 x 135 cm.) foi pintado, em 1911, por Henri Gervex e encontra-se exposto na Pinacoteca do Estado. Em 2002 o Museu de Arte Brasileira, da FAAP-Fundação Armando Alvares Penteado, realizou a exposição “No tempo dos modernistas: Dona Olívia Penteado, Senhora das Artes” e lançou o livro homônimo, organizado por Denise Mattar e Aracy A. Amaral. Um belo relato de sua trajetória e época, que pode ser visto no link Sesc São Paulo - Olívia Guedes Penteado - Revistas - Online (sescsp.org.br)


José Domingos Brito - Memorial terça, 30 de novembro de 2021

OS BRASILEIROS: PLÁCIDO DE CASTRO

 

OS BRASILEIROS: Plácido de Castro

José Domingos Brito

 


 

José Plácido de Castro nasceu em 12/12/1873, em São Gabriel, RS. Militar do Exército Brasileiro, no posto de Major, combateu na Revolução Federalista (1893-1895) ao lado dos “Maragatos” contra os “Chimangos” do Partido Republicano comandando por Júlio de Castilhos. Recusou a anistia oferecida aos envolvidos na revolta, abandonou a carreira militar e foi para o Acre, onde liderou a guerra contra a Bolívia para anexar aquela região ao território brasileiro.

 

Filho, neto e bisneto de militares, trabalhou em diversas atividades desde os 9 anos e ficou órfão de pai aos 11. Continuou trabalhando até os 16 anos, quando entrou no 1º Regimento de Artilharia de Campanha como 2º cadete. Pouco depois matriculou-se na Escola Tática do Rio Pardo, obtendo máximo aproveitamento e voltou ao Regimento, onde serviu como 2º sargento. Ao se dar a “Revolução Federalista, em 1893, era aluno da Escola Militar de Porto Alegre. A renúncia de Deodoro da Fonseca e a posse do vice Floriano Peixoto, desagradou parte do Exército, que queria novas eleições diretas. Os dois grupos: Federalistas (Maragatos) e Republicanos (Chimangos) entraram em conflito e Plácido aderiu aos Federalistas, que foram derrotados no conflito que durou por 2 anos.

 

A causa da Revolução Federalista consistiu no fato de os Maragatos quererem um governo mais descentralizado, uma federação de estados e os Chimangos pleiteavam um governo mais centralizado, uma república. Ao fim da revolta, com a vitória dos Chimangos, todos os envolvidos no conflito foram anistiados, mas ele recusou a anistia, abandonou a carreira militar e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde tornou-se agrimensor. Inquieto e aventureiro, mudou-se para o Acre, em 1899, uma região em conflito na demarcação de fronteiras com a Bolívia. Aos 26 anos viu ali uma oportunidade para tentar a sorte, tendo em vista as ofertas oferecidas ao trabalho de agrimensor na demarcação de terras.  

 

Em princípios do século XX, já instalado na região, tomou parte nos conflitos entre o Brasil e a Bolívia pelo domínio da região. Sua participação na “Revolução Acreana” se deu em 1902, quando a Bolívia arrendou o território a um sindicato estrangeiro (Bolivian Syndicate), constituído por capitais ingleses e norte-americanos. Tratava-se de uma guerra pela conquista do mercado da borracha em alta no mercado internacional. Com recursos financeiros e militares fornecidos pelo Sindicato, os bolivianos travaram algumas batalhas com os brasileiros, em grande parte seringueiros habitantes da região. Numa das batalhas, com apenas 60 seringueiros sob seu comando, enfrentou um contingente de 400 bolivianos. Na batalha final seu “exército”, contando com 30 mil homens, venceu as tropas bolivianas contando com 100 mil soldados

 

Assim, foi proclamado o “Estado Independente do Acre’, tendo Plácido de Castro como protagonista do evento. Poucos meses depois batalha final, ele esteve em Riberalta, cidade boliviana, para tratar da legalização das terras em sua posse e ficou surpreendido pela acolhida dos habitantes numa recepção promovida por Don Nicolas Suarez, o maior proprietário de terras daquela região, para lhe agradecer em nome de seu país, a fidalguia com que Plácido tratara seus compatriotas bolivianos prisioneiros de guerra.

 

Em 1903, com o “Tratado de Petrópolis”, o Acre foi anexado ao Brasil e o “Estado Independente” foi dissolvido, mas ele continuou por lá exercendo poder e influência até que em 1906 foi nomeado governador do “Território do Acre”.  Pouco depois viajou para o Rio de Janeiro, em visita à família, e lhe foi oferecido o posto de coronel da Guarda Nacional, que foi prontamente recusado. Quando voltou à região, foi nomeado prefeito da Região do Alto Acre. Sua atuação e conquistas nos confins do Brasil causaram ciúmes em alguns líderes políticos, particularmente no subdelegado das tropas acreanas -coronel Alexandrino José da Silva-, que insatisfeito com sua posição no poder do Acre, bem menor que o de Plácido, dizem que armou uma emboscada composta por mais de 10 jagunços e mataram-no em 11/8/1908.

 

Antes de falecer, pediu ao irmão Genesco de Castro: "Logo que puderes, retira daqui os meus ossos. Direi como aquele general africano: 'Esta terra que tão mal pagou a liberdade que lhe dei, é indigna de possuí-los.'”. O crime nunca foi devidamente investigado e ficou para sempre impune. Seus ossos foram sepultados no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre. A família fez questão de deixar gravado no pedestal do túmulo os nomes e sobrenomes dos seus 14 carrascos. Passado um longo tempo, passou a receber diversas homenagens no Acre, no Rio Grande do Sul e reconhecido em âmbito nacional.

 

Em 1973, no centenário de nascimento, foi inaugurado um busto em sua homenagem na Praça Nações Unidas, em Porto Alegre. Seu nome é reverenciado na região norte como o “Libertador do Acre” e em 1976 seu nome foi dado ao novo município criado a 100 km. da capital Rio Branco. É também o patrono do 4º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército Brasileiro, o “Batalhão Plácido de Castro”. Em 2004 foi entronizado no “Panteão da Pátria e da Liberdade”, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Sua vida e legado foram documentados no livro Plácido de Castro: um caudilho contra o imperialismo, uma narrativa histórico-biográfica, escrita por Cláudio Araújo Lima, na década de 1950.  Um livro bem recebido pelo público, que se encontra na 6ª edição, publicado pela Editora Valer.

 

Plácido de Castro - Construtores do Brasil - YouTube


José Domingos Brito - Memorial quarta, 17 de novembro de 2021

AS BRASILEIRAS: GILKA MACHADO

AS BRASILEIRAS: Gilka Machado

José Domingoa Brito 

 

 

 

Gilka da Costa de Melo Machado nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12/3/1893. Poeta e uma das primeiras mulheres a fazer poesia erótica no Brasil. Sua obra causou certo escândalo no meio social e críticas num restrito circuito literário da época. Porém foi elogiada por autores, como Lima Barreto, Olavo Bilac, Drummond e Jorge Amado. Foi também precursora na luta pela participação da mulher na Política, com a criação do PRF-Partido Republicano Feminino, em 1910.

 

Filha e neta de poetas e artistas: a mãe -Thereza Cristina Moniz da Costa- era atriz; o pai -Hortêncio da Gama Souza Melo- era poeta; o avô -Francisco Moniz Barreto- era poeta repentista, conhecido como “Bocage brasileiro”, é patrono na Academia de Letras da Bahia. Aos 14 anos venceu concurso de poesia no jornal “A imprensa”, ocupando os 3 primeiros lugares com seu nome e pseudônimos. O crítico Afrânio Peixoto, ao ver os poemas, disse que aqueles versos só poderiam ter sido escritos por uma “matrona imoral”, sem conhecer a autora. 

 

Casou-se em 1910 com o poeta e jornalista Rodolfo Machado e teve 2 filhos: Hélios e Heros, que veio a se tonar a conhecida bailarina e atriz Eros Volúsia. No mesmo ano fundou o PRF, assumindo o cargo de secretária e tesoureira. Seu primeiro livro de poemas -Cristais partidos- saiu em 1915 e foi festejado por alguns críticos. Conta-se que ela teria recusado o prefácio de Olavo Bilac, pois queria “aparecer sem defesa nenhuma, sem escudo... com um prefácio seu, todo mundo já está me achando ótima”, teria explicado ao poeta. Nos anos seguintes, vieram outros: A revelação dos perfumes (1916), Estado de alma (1917), Poesias, 1915/1917 (1918) e Mulher nua (1922). Ao ficar viúva, aos 30 anos, passou por uns perrengues financeiros, abriu uma pensão frequentada por intelectuais e artistas e continuou escrevendo.  Em 1933 venceu, com grande margem de votos, o concurso promovido pela revista “Malho”, e recebeu o título de “Maior Poeta do século XX”. Para dar uma ideia do tamanho da vitória, ela teve 100 pontos e Pagu (Patrícia Galvão) teve 7; Cecilia Meireles teve 6; Henriqueta Lisboa teve 3.

 

Numa época em que as mulheres eram confinadas numa vida doméstica e recatada, o que a análise deduz é que ela rompeu as barreiras do decoro público e chocou a sociedade com suas poesias exaltando paixões e desejos proibidos à mulher. Segundo Drummond, sua obra não era apenas poesia erótica. Ela mesclava “elementos simbolistas e em sua formação, tinha também algo de misticismo, às vezes contendo preocupações de ordem social, chegando a uma espécie de anarquismo romântico”. E disse mais em sua coluna no Jornal do Brasil, em 18/12/1980: “Gilka foi a primeira mulher nua da poesia brasileira”.

 

Já o crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos, achava que "ela foi a maior figura feminina de nosso Simbolismo, em cuja ortodoxia se encaixa com seus dois livros capitais, Cristais Partidos (1915) e Estados de Alma" (1917). Mas havia muita gente que não apreciava sua poesia. Rui Barbosa se perguntava: “como seria possível conciliar o espírito das senhoras de boa sociedade com o espírito de uma poetisa que tem o mau gosto de escrever essas coisas plebeias”. Para achincalhar sua pessoa, um jornal do Rio publicou caricatura onde ela pousa com uma saia esvoaçante com a legenda: “Eu sinto que nasci para o pecado”, retirado do soneto “Reflexões” de sua autoria. O achincalhe, como notícia de jornal, rendeu-lhe enorme visibilidade social e cultural.     

 

Em 1952, aos 59 anos, retirou-se da vida pública: “Eu tomei enjoo – da poesia não, mas do ambiente”, revelou numa entrevista a Nádia Batella Gotlib, em 1979. A entrevistadora relata a dificuldade dos críticos em elogiar suas poesias. Para fazê-lo, alguns tiveram que dividi-la em duas. Humberto de Campos, por exemplo, “ressalta suas qualidades de poeta, mas faz questão de afirmar que, por outro lado, ela era ‘a mais virtuosa das mulheres e a mais abnegada das mães’”. Em 1977 Rachel de Queiroz e Jorge Amado estimularam sua candidatura. Não pleiteou a vaga, mas a ABL reconheceu seus méritos literários com a concessão do “Prêmio Machado de Assis”, em 1979, pelo conjunto da obra. No ano seguinte veio a falecer em 11/12/1980.

 

Pouco antes havia declarado: “Sonhei ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor”. Um de seus poemas mais conhecidos, extraído do livro Cristais partidos (1915) -Ser mulher- retrata a difícil condição da mulher, conforme se vê no trecho:

 

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada

para poder, com ela, o infinito transpor;

sentir a vida triste, insipida, isolada,

buscar um companheiro e encontrar um senhor...

 

Em 2017 foi relançada, pela editora Demônio Negro, sua Obra completa, organizada por Jamyle Rkain, num trabalho de resgate alertando que “precisamos olhar para as mulheres que sofreram a mesma invisibilidade que Gilka sofreu. Precisamos olhar para o passado – não só na literatura, mas na História em geral – sem os preconceitos que eram mais arraigados para tirarmos essas mulheres dos porões e mostrarmos suas contribuições para o mundo. Existem muitas.” Aqui mesmo, no JBF,  o colega Pedro Malta tem publicado alguns de seus poemas.



GILKA MACHADO | #MulherDeFibra - YouTube

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 10 de novembro de 2021

OS BRASILEIROS: FLORESTAN FERNANDES

 

OS BRASILEIROS: Florestan Fernandes

José Domingos Brito

 


 

Florestan Fernandes nasceu em São Paulo, SP, em 22/7/1920. Sociólogo, professor, escritor, político e “Patrono da Sociologia Brasileira”. Estabeleceu novas metodologias de investigação sociológica com rigor analítico e novos padrões de atuação do intelectual no quadro político do País. É considerado o “protótipo do intelectual público”, dado seu rigor acadêmico com o compromisso pela liberdade e igualdade no trato da coisa pública. 

 

Filho de Maria Fernandes, portuguesa e empregada doméstica na casa de Hermínia Bresser de Lima, tradicional família paulistana, de quem tornou-se “afilhado”. Aí viveu até os 3 anos e voltou a morar na casa da “madrinha” aos 6 anos. “Aquilo que poucos da plebe conseguiam ter, a ideia do que era a outra vida, a vida dos ricos, dos poderosos – eu era capaz de perceber através de experiências concretas”. Na época estudou numa escola particular do Brás e tinha plena consciência de sua condição social. Nesta casa viveu até o dia em que a “madrinha” pediu à sua mãe que lhe desse o filho. A resposta foi “só cachorro é que se dá” e foi morar em cortiços. Estudou até o 3º ano do curso primário, mas deixou o curso aos 9 anos para trabalhar e ajudar a mãe. Começou como auxiliar numa barbearia, engraxate, auxiliar de marcenaria, açougue, alfaiataria...

 

Aos 17 anos trabalhou como garçom no Bar Bidu, na Rua Líbero Badaró, ao lado do Ginásio Riachuelo. “Os professores iam ao bar tomar seu lanche, depois das aulas. Eu sempre ficava atento aos fregueses com os quais podia aprender alguma coisa”. Nesse convívio foi estimulado pelos clientes a retomar os estudos num “curso de madureza” (supletivo) do ginásio ao lado, obtendo certo aproveitamento. Após o serviço militar, conseguiu emprego no Laboratório Novoterápica e passou a ganhar salário suficiente para custear os estudos e ajudar a mãe. Neste emprego teve os primeiros contatos com a política através dos colegas, filhos de italianos, que traziam notícias sobre o movimento socialista europeu. Como leitor de jornais, passou a frequentar as redações d’ O Estado de São Paulo e Folha da Manhã, onde conheceu Hermínio Saccheta, líder do movimento trotskista, e tornou-se militante do Partido Socialista Revolucionário. “Passei, então, de pato a ganso. As minhas leituras desordenadas adquiriram outra direção e, pela primeira vez, passei a ler os clássicos com afinco e me concentrar sobre a literatura, especialmente a brasileira”. Ao concluir o Curso de Madureza, prestou o exame vestibular e entrou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP, em 1941. “Sentia-me à vontade com os colegas e era um estudante promissor para alguns professores”.

 

Formado em Ciências Sociais, em 1943, iniciou a carreira docente no ano seguinte como assistente do prof. Fernando de Azevedo. Tal conquista deveu-se a indicação de outro assistente, seu colega Antônio Cândido. A partir daí inicia a carreira acadêmica, fazendo o curso de mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política, com a dissertação “A organização social dos Tupinambá”. Em seguida retornou à USP para o curso de doutorado. Aprofundou os estudos sobre o povo Tupinambá e, em 1951, defendeu a tese “A função social da guerra na sociedade Tupinambá”, Dissertação e tese resultaram em dois livros lançados em 1949 e 1951, sendo o último consagrado como clássico da etnologia brasileira. Com o estudo crítico de diversas fontes e, sobretudo, de relatos de viagens, conseguiu imprimir nas ciências sociais um caráter científico com métodos e critérios rigorosos de avaliação. Tal caráter ficou mais claro no livro Fundamentos empíricos da explicação sociológica, publicado em 1959. É o início da chamada “Escola Paulista de Sociologia”, integrada por Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Cohn e Maria Sylvia de Carvalho Franco, entre outros. Junto com Roger Bastide, passou a estudar as relações entre negros e brancos em São Paulo, a convite da UNESCO.

 

A partir de um grupo de estudos e participação da comunidade negra da cidade, começam a desmontar a ideia da tal “democracia racial’, defendida pela sociologia de Gilberto Freyre. Junto com os alunos foram feitas pesquisas na periferia, baseadas numa metodologia aplicada. No período 1954-1964, assumiu a cátedra de livre docente em sociologia, substituindo o prof. Roger Bastide, com a tese “A integração do negro na sociedade de classes”, resultado da pesquisa solicitada pela UNESCO. A conclusão do estudo é que as mudanças ocorridas com o fim da escravidão “não foram suficientemente profundas para desorganizar o sistema de relações sociais, que se elabora como conexão da escravidão e da dominação senhorial”. Neste ponto dá-se o início de sua carreira como “intelectual público”, consolidada no final da década de 1950, ao sair do confinamento acadêmico para defender a escola pública. Passa, então, a integrar a luta pela aprovação da “Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, ao lado de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.

 

Com o Golpe Militar de 1964 foi submetido a um IPM-Inquérito Policial Militar, junto com outros professores da USP. Seu envolvimento na resistência política vai se ampliando até 1968, quando dá entrevista ao “Correio da Manhã”, e afirma que é preciso “lutar contra o comportamento fascista do setor militar que empolgou o Governo”. Com o AI-5 e o recrudescimento da ditadura, entrou na lista dos cassados e foi aposentado compulsoriamente. A saída foi aceitar o convite para lecionar numa universidade do Canadá. Outra saída foi aprofundar o estudo sobre a situação política do Brasil, que resultou na publicação de A revolução burguesa no Brasil (1973) e Circuito fechado (1976). De volta do Canadá, em 1972, enfrentou uma série de perrengues: foi contaminado com o vírus da hepatite B numa cirurgia (1975); uma separação temporária da esposa e um ataque cardíaco (1981). Retomou as aulas como professor de pós-graduação na PUC-Pontifícia Universidade Católica e ampliou seu envolvimento político, que resultou na filiação ao recém-criado PT-Partido dos Trabalhadores. A filiação não foi imediata e não integrou o grupo de fundadores. Passou a escrever artigos no jornal Folha de São Paulo, em 1983 e seus textos produziram uma aproximação com o PT, vindo a assinar a ficha de filiação em 1986 e disputar  vaga de deputado constituinte.

 

Uma vez eleito, teve atuação destacada no congresso constituinte e participação pública através de sua coluna semanal no jornal Folha de São Paulo, a partir de 1989. No ano seguinte, foi reeleito deputado federal e retomou sua luta pela educação pública e gratuita. Em 1994 a saúde deu sinais de alerta, mas continuou bastante ativo com artigos na imprensa. Nas eleições presidenciais de 1994 (FHC x Lula), não apoiou seu aluno predileto e grande amigo Fernando Henrique Cardoso, mas absteve-se de criticá-lo. No entanto fez duras críticas ao PSDB em suas alianças com o PFL e lamentava a cisão entre o PT e PSDB. Em agosto de 1995, ao passar por um transplante de fígado malsucedido, veio a falecer. No ano seguinte foi agraciado postumamente com uma almejada comenda: “Prêmio Anísio Teixeira”, que homenageia os brasileiros que mais se dedicaram à educação pública.

 

Deixou um legado com mais de 50 livros publicados e um aporte considerável ao estudo da sociologia. Existem algumas biografias registrando sua trajetória de vida e legado: Florestan (1998), de José de Souza Martins.  Florestan Fernandes (2001), de Antônio Candido; Florestan Fernandes: vida e obra (2004), de Laurez Cerqueira; Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante (2005), de Octavio Ianni. Temos inclusive uma que aborda exclusivamente sua formação diante da vida precária que teve na infância e adolescência. Sylvia G. Garcia realizou belo trabalho, combinando biografia e análise histórica; sobre as circunstâncias em que viveu o sociólogo; os problemas enfrentados; os resultados de tal vivência e deu um título síntese de seu estudo: Destino ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes (2002).

 

Florestan Fernandes sobre posicionamento das elites nos Brasil

 


José Domingos Brito - Memorial quinta, 28 de outubro de 2021

OS BRASILEIROS: CASIMIRO MONTENEGRO

OS BRASILEIROS: Casimiro Montenegro

José Domingos Brito

 

 

Casimiro Montenegro Filho nasceu em Fortaleza, CE, em 29/10/1904. Militar da Aeronáutica, Marechal-do-Ar, pioneiro do CAN-Correio Aéreo Nacional, criador do ITA-Instituto Tecnológico de Aeronáutica, patrono da Área de Engenharia da FAB-Força Aérea Brasileira e da Academia Nacional de Engenharia e um dos patronos do INCAER-Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica.

 

Concluiu os primeiros estudos em Fortaleza e mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1923, a fim de tornar-se piloto do Exército. Ingressou na Escola Militar do Realengo e tornou-se Aspirante-a-Oficial do Exército em 1928, integrando a primeira turma da Arma de Aviação Militar da Escola de Aviação Militar, que iniciava no Campo dos Afonsos. Teve destacada atuação na “Revolução de 1930” junto com o brigadeiro Eduardo Gomes, Juarez Távora e Siqueira Campos. Ao atingir o posto de tenente, fez o voo inaugural entre Rio-São Paulo, que resultou na criação do CAN-Correio Aéreo Nacional, em 1931. Em seguida cruzou o País de norte a sul em voos expostos às mais diversas e inseguras condições, aterrissando em campos improvisados e pilotando sem instrumentação de voo.

 

Em 1938 concluiu o curso de Engenheiro Militar na Escola Técnica do Exército, atual IME-Instituto Militar de Engenharia. Em seguida deu-se a unificação dos serviços de voos da Exército e da Marinha, dando origem ao Ministério da Aeronáutica, em 1941. No novo Ministério, assumiu a Subdiretoria Técnica da Aeronáutica. Tinha em mente uma ideia, aparentemente, óbvia e costumava dizer que “somente seria possível desenvolver uma indústria aeronáutica no Brasil se o país dispusesse de uma escola que proporcionasse formação técnica de alto nível”. Assim, em 1943, viajou para os EUA afim de adquirir um lote de aviões e, com sua ideia de formar engenheiros aeronáuticos, visitou o MIT-Massachusetts Institut of Technology e ficou encantado com sua estrutura educacional. Retornou ao Brasil disposto a criar algo semelhante num país sem condições de fabricar até bicicletas.

 

Claro que a ideia de projetar e fabricar aviões pareceram excêntricas demais aos olhos dos colegas. Mal sabiam que ele contava com a ajuda de um contato feito nos EUA: o prof. Richard Herbert Smith, chefe do Departamento de Engenharia do MIT. Em 1945 reuniu um grupo de oficiais da Aeronáutica no local, que viria a ser um campus universitário, e apresentou seu projeto: “Aqui construiremos o túnel aerodinâmico, mais à direita o laboratório de motores, ali a área residencial: casas e apartamentos para os professores, oficiais e pessoal da administração e alojamento para os alunos. Ali à esquerda, os edifícios escolares e laboratórios. Aqui será o futuro aeroporto. Esta área está reservada para a indústria aeronáutica. Tudo isto constituirá o Centro Técnico da Aeronáutica.” Ao concluir a apresentação, verificou que a plateia havia sumido. Um dos oficiais que permaneceu no local, despediu-se gracejando da megalomania do projetista: “Até a vista, Júlio Verne!”.

 

Na década seguinte o sonho do piloto visionário começou a se concretizar e pouco depois estava criado o ITA-Instituto Tecnológico de Aeronáutica, em 1950. Com instalações adequadas, bons professores inicialmente trazidos do exterior e residindo no próprio campus junto aos alunos, criou-se uma escola de engenharia de alto nível no País. Sua função não era apenas ensinar bem, mas também educar, o que não era assumido pelos cursos universitários brasileiros. Alguns itens constantes do ensino “Iteano”: cumprimento rigoroso do calendário de ensino, as aulas não dadas têm que ser repostas; diversificação dos professores não apenas na formação profissional, mas também na nacionalidade com muitos professores estrangeiros; currículo composto de matérias não técnicas (humanidades); professor e aluno morando próximos, possibilitando encontros fora das salas de aula.

 

Porém o atributo educacional que mais diferencia o ITA de outras universidades é a chamada “disciplina consciente”, que implica na realização honesta de todos os trabalhos escolares. A “cola” comprovada é punida com severidade, a expulsão do aluno. Em 1950, o Reitor Joseph Morgan Stokes delegou esta função aos alunos através do Centro Acadêmico, que para isso criou o Departamento de Ordem e Orientação. Ou seja, os vigilantes desse processo eram os próprios alunos, que identificavam o transgressor, julgavam e propunham a penalidade. Ao reitor cabia apenas a execução. Outra inovação relevante se deu com a pós-graduação, em 1961. Através de convênio mantido com a Universidade de Michigan, foi adotado o modelo de pós-graduação vigente nos EUA, com poucas alterações, que teve grande repercussão Brasil. No ano seguinte, a COOPE-Coordenadoria de Pós-Graduação em Engenharia, da UFRJ, seguiu o ITA e ambas influenciaram o Conselho Nacional de Educação, com sua resolução de 1965, que alterou toda a pós-graduação brasileira.

 

Na sequência, outro visionário, o engº Ozires Silva, entra em cena e cria o primeiro avião usado nas linhas regionais, denominado “Bandeirante” (1968). No ano seguinte foi criada a EMBRAER-Empresa Brasileira de Aeronáutica, tornando-se a 3ª maior fabricante de aviões do mundo. Junto com Santos Dumont e Ozires Silva, Casimiro integra o que vem sendo chamado de “Santíssima Trindade da Aviação Brasileira” e já foi homenageado em diversas ocasiões, contando com sua estátua no Campus do ITA, que lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa. Em 1975 recebeu o mesmo título da Unicamp-Universidade Estadual de Campinas e em 1981 foi agraciado com o “Prêmio Anísio Teixeira”, a mais prestigiada comenda dirigida aos grandes educadores brasileiros. Faleceu 26/2/2000, aos 95 anos, e foi sepultado na Cripta dos Aviadores do Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Pouco depois foi aclamado “Patrono da Engenharia da Aeronáutica”, por Decreto Presidencial, de 28/6/2000.  

 

Duas biografias dão conta de sua trajetória, além de alguns textos na Internet: Montenegro: as aventuras do Marechal que fez uma revolução nos céus do Brasil, de Fernando de Morais, publicada em 2006 e Marechal Montenegro, criador do ITA e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), de seus amigos Ozires Silva e Decio Josué Antonio Fischetti, publicada em 2006. Há um consenso em se afirmar que “se a indústria aeronáutica é o que é, hoje, em termos mundiais, isso começou com o ITA e com o antigo CTA, com a criação do Bandeirante”, aproveitando o nome que os paulistas deram aos desbravadores do interior do Brasil.  Em 2020, o ITA fez 70 anos e realizou uma exposição virtual – “Asas para que te quero”, mostrando as diversas áreas da instituição e relato de sua história. Vale a pena dar uma olhada: Mostra #VicentinaNaSuaCasa on Behance    

 

Vídeo de Apresentação do projeto ITA 70 ANOS - 2020 - YouTube

 

 

  


José Domingos Brito - Memorial quarta, 20 de outubro de 2021

AS BRASILEIRAS : DORINA NOWILL

AS BRASILEIRAS: Dorina Nowill

José Domingos Brito

 

 

 

Dorina de Gouvêa Nowill nasceu em 28/5/1919, em São Paulo, SP. Professora, administradora, filantropa e pioneira da educação e inclusão social das pessoas com deficiência visual. Criou a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, em 1946, com a implantação da imprensa Braille, constituindo-se numa das maiores gráficas no gênero do mundo.  

 

Ficou cega aos 17 anos; foi a primeira aluna a frequentar um curso regular e conseguiu a matrícula de outra colega cega na Escola Normal Caetano de Campos, onde se formou professora em 1945. Na ocasião, junto com outras colegas, desenvolveu um projeto dirigido a formação de crianças cegas. Visando aprimorar o projeto, realizou curso de especialização em educação de cegos no Teacher’s College, da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Lá conheceu Edward Huber Alexander, com quem se casou em 1950. De volta ao Brasil, fundou a FLCB-Fundação para o Livro do Cego no Brasil.

 

Nos EUA, manteve reunião com as diretorias da Kellog’s Foundation e American Foundation for Overseas Blind. Expôs o problema da falta de livros em Braille para cegos e a necessidade de se conseguir uma imprensa para a Fundação recém-criada no Brasil. Em 1948, a Fundação recebeu uma imprensa Braille completa. 43 anos depois, a FLCB passou a se chamar Fundação Dorina Nowill. Dizem que hoje não há uma só pessoa cega alfabetizada no Brasil que não tenha tido em mãos pelo menos um livro em Braille produzido pela Fundação.  Trata-se de uma das maiores imprensa Braille do mundo em capacidade produtiva, com produção em larga escala. A Fundação distribui gratuitamente livros em Braille para mais de 2500 escolas e organizações que atendem ao público com deficiência visual. Além da imprensa Braille, mantém livros em áudio e em formato digital. 

 

Em 1954, ela conseguiu que o Conselho Mundial para o Bem-Estar do Cego se reunisse no Brasil, em conjunto com o Conselho Brasileiro de Oftalmologia e a Associação Panamericana de Saúde. Tais reuniões serviram de plataforma para lançamento de um movimento junto aos órgãos públicos visando a inclusão escolar das crianças cegas. O passo seguinte foi a elaboração da lei de integração escolar, regulamentada em 1956. Em seguida, dirigiu a “Campanha Nacional de Educação de Cegos” do MEC-Ministério da Educação e Cultura, no período 1961-1973. Em sua gestão foram criados serviços de educação de cegos em todos os estados do Brasil.

 

Em 1979 foi eleita presidente do Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos e sua luta pela inclusão da pessoa cega não se deu apenas na educação. Lutou também pela abertura e encaminhamento destas pessoas no mercado de trabalho. Em 1982, na Conferência da OIT-Organização Internacional do Trabalho, conseguiu que a “Recomendação 99”, que trata sobre a reabilitação profissional, fosse rediscutida. No ano seguinte, a Conferência com o apoio dos representantes do governo brasileiro, dos empresários e dos trabalhadores, votou a favor da proposta do Conselho Mundial para o Bem-Estar do Cego, pela aprovação da “Convenção 159” e da “Recomendação 168”, da OIT, convocando os Estados membros a cumprirem o acordo, oferecendo programas de reabilitação, treinamento e emprego para as pessoas com deficiência.

 

Na década de 1990 foi reconhecida como pioneira na luta pela inclusão da pessoa cega e a FLCB passa a se chamar “Fundação Dorina Nowill”, em 1991.  Publicou sua autobiografia –“... E eu venci assim mesmo”, em 1996, traduzida para o espanhol e distribuída em toda a Europa e América Latina. A partir daí foi homenageada em diversas ocasiões, incluindo seu nome dado por Mauricio de Souza à personagem com deficiência visual –“Dorinha”- da Turma da Mônica, em 2004, uma homenagem que deixou-a sensibilizada. Em 2009, ano do centenário de Louis Braille, inventor do sistema Braille, realizou palestras em diversas instituições e foi incluída entre “Os 100 brasileiros mais influentes de 2009”, numa enquete realizada pela revista “Época”. Foi a última homenagem que recebeu em vida. Faleceu em 29/8/2010.

 

As homenagens prosseguem em 2011, quando o jornalista Luiz Roberto de Souza Queiroz tratou de documentar sua trajetória e lançou o livro Dorina Nowill: um relato da luta pela inclusão social dos cegos. Continua em 2013, com o Senado Federal homenageando-a com a criação da Comenda “Dorina Nowill”, entregue anualmente a personalidades destacadas na defesa das pessoas com deficiência no Brasil. Atualmente, é mantida na Internet a “Dorinateca”, uma biblioteca digital online, da Fundação Dorina Nowill, disponível no site www.dorinateca.org.br.

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 13 de outubro de 2021

OS BRASILEIROS: VICTOR BRECHERET

 

OS BRASILEIROS: Victor Brecheret

José Domingos Brito

 


 

Vittorio Brecheret nasceu em Farnese, Itália, em 15/12/1894. Escultor expoente do Modernismo no Brasil, tem diversas obras instaladas em logradouros de São Paulo, dentre as quais o “Monumento às Bandeiras”, no Ibirapuera. Considerado um dos principais artistas de vanguarda, nunca abandonou a formação clássica, ligada à arte greco-romana e renascentista e fez uso de diferentes técnicas de escultura, do mármore à terracota.

 

Ao perder a mãe aos 6 anos, foi criado pelo tio materno Enrico Nanni, cuja família emigrou para o Brasil quando o garoto tinha 9 anos. Só aos 30 e poucos anos é que recorreu à Justiça para inscrever seu registro de nascimento. Assim, consolidou sua nacionalidade brasileira. Quando criança, trabalhava e estudava, mas não se interessava pelos estudos. Era tímido, retraído e passava horas brincando com barro modelando figuras. Vendo seu interesse na modelação com barro, a Tia estimulou-o a se matricular no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, em 1912. Observando seu talento, os professores do Liceu incentivam-no e estudar em Roma, polo da escultura europeia.

 

Em 1914, através da Maçonaria, tornou-se auxiliar do escultor Arturo Dazzi, prestigiado artista que trabalhava para o rei Vittorio Emanuelle III. Ali aprendeu técnicas da tradição mesclando o clássico (Michelangelo) e o naturalismo com Auguste Rodin. Também conheceu o escultor Ivan Mestrovic, de quem sofreu influência com sua linguagem dramática e heroica. Em Roma participou de algumas mostras coletivas e foi elogiado pela crítica. Junto ao mestre Dazzi, não gostou das lições de anatomia com a dissecação de humanos e animais e abriu seu próprio ateliê, aos 22 anos, e passou a viver dizendo-se sul-americano para não ser convocado para a I Guerra Mundial. De volta ao Brasil, em 1919, reencontrou os amigos no Liceu e o novo diretor Ramos de Azevedo, que conseguiu-lhe um ateliê no Palácio das Indústrias.

 

Após um ano de enorme produção, foi descoberto pelos críticos e artistas modernistas, que viram em sua obra algo de novo, totalmente diferente do que existia na cena paulista. Aos poucos e em contatos com Di Cavalcanti, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, foi se integrando ao métier artístico até tornar-se o mestre da escultura do movimento modernista brasileiro, em 1922. Antes disso e já conceituado como escultor, recebeu a incumbência de realizar a maquete para o Monumento às Bandeira, evocando a saga dos bandeirantes, sua maior obra. Por motivos politicos, a obra só foi inaugurada 33 anos depois, na comemoração do IV Centenário da Cidade, em 1954, um ano antes de seu falecimento em 17/12/1955.

 

Em 1921 ganhou uma bolsa do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo e viaja para Paris, onde viveu por 5 anos. Mesmo ausente da Semana de Arte Moderna, participou do evento com 12 esculturas, dentre as quais a famosa “Cabeça de Cristo”, mais conhecida como “Cristo de trancinhas”, que foi adquirida por Mario de Andrade. Em Paris aprofundou sua arte ao fundir 3 fontes: ênfase no volume geométrico, tratamento sintético da forma, dado pelo escultor Constantin Brancusi e estilização elegante do “art-déco”. A partir daí passou a se utilizar de formas lineares e simplificadas de cunho ornamental evocando um clima de grande serenidade. Sua vivência em Paris, foi ntensificada a partir de 1923, com chegada de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfati, que introduziu-o no circuito das artes, conhecendo Blaise Cendrars e os cubistas André Lhote e Léger. A partir dessa época manteve a carreira vivendo entre Paris e São Paulo, em diversas exposições.

 

Após 15 anos em Paris, se estabeleceu em São Paulo, realizando encomendas de esculturas públicas e trabalhos religiosos. Em 1932 fundou, junto com outros artistas, a SPAM-Sociedade Pró-Arte Moderna e passa a cultivar temas ligados à cultura indigena em esculturas de bronze ou terracota. Na ocasião, retoma sua maior obra, o Monumento às Bandeiras. Pouco depois, retornou à Paris para destativar seu ateliê e se despedir de sua namorada, que foi contra o retorno ao Brasil, pois já era famoso por lá. Em 1938 casou-se com Jurandy Helena, retratada em diversas esculturas, e teve 3 filhos. Em 1941 deu-se o concurso internacional de maquetes para homenagear Duque de Caxias. Ele venceu o concurso, entre 30 concorrentes, e a estátua de 48 metros de altura –o duque em bronze montado num cavalo sob um um pedestal de granito- foi instalada na praça Princesa Isabel, centro da cidade. Dizem que é o maior  monumento equestre do mundo. Ou seja, suas duas maiores obras estão expostas em São Paulo.

 

Além destas grandes obras, existem outras de tamanho médio expostas noutros logradouros da cidade: Carregadora de perfumes, no Parque da Luz; Musa Impassível, na Pinacoteca do Estado; Fauno, no Parque Trianon; Graças, na Galeria Prestes Maia; Eva, no Centro Cultural São Paulo; Depois do banho, no Largo do Arouche, entre outras. Em sua fase final ampliou o interesse em representar temas indígenas na busca de uma identidade nacional. A obra O Índio e a Suaçuapara recebeu o primeiro Prêmio de Escultura Nacionnal da I Bienal de São Paulo, em 1951. Outra vertente enfocada nesta fase foi a escultura de santos, particularmente São Francisco (São Francisco e as Pombas, São Francisco com Boizinho, São Francisco com Jumento), incluindo a Cabeça de São Francisco, sua última obra.

 

Boa parte destas obras encontram-se hoje em coleções particulares e algumas em túmulos de cemitérios e igrejas centrais de São Paulo. Assim, tornou-se também mestre na “arte funerária”. Em 2007 foi realizada uma grande exposição de suas obras no Centro Cultural da Caixa Econõmica, em São Paulo. Uma visão completa de seu legado e obras podem ser vistas na Fundação Victor Brecheret, criado por sua filha Sandra Brecheret, através do site www.victor.brecheret.nom.br, onde consta uma entrevista com o escultor, realizada em 1953.

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 06 de outubro de 2021

AS BRASILEIRAS: RITA LOBATO

 

AS BRASILEIRAS: Rita Lobato

José Domingos Brito

 


 

Rita Lobato Velho Lopes nasceu em Rio Grande, RS, em 9/6/1866. Médica, política e uma das prioneiras do movimento feminista  brasileiro. Considerada a primeira mulher médica formada no Brasil e a segunda a obter êxito acadêmico na América do Sul. Aos 17 anos, vendo a morte da mãe no parto do 14º filho, firmou a promessa de se tornar médica obstetra, enfrentando os obstáculos da época em tal empreitada.

 

Filha de Rita Carolina Velho Lopes e Francisco Lobato Lopes, rico  estancieiro e comerciante de charque gaúcho, viveu e teve os primeiros estudos em diversas estâncias perto de Pelotas. Perseguindo o sonho de se tornar médica, a familia mudou-se para o Rio de Janeiro em 1884, onde ela e o irmão entraram na Faculdade de Medicina. No 1º ano do curso, seu irmão teve problemas com a Reitoria, devido a discordâncias sobre a Reforma Felipe Franco de Sá, que alterava o regulamento da escola e outras medidas que alguns alunos julgaram prejudiciais. Afim de evitar retaliações contra os filhos, a família mudou-se para Salvador, onde ela e o irmão ingressaram no 2º ano do curso de medicina, em 1885.

 

O entrosamento com os professores e seu empenho nos estudos possibilitou que requeresse adiantamento dos exames e fosse  aprovada, conforme a norma da faculdade. Estudando incessantemente, conseguiu maticula no 3º ano do curso em março de 1886. Um novo pedido de adiantamento, permitiu-lhe ingressar no 4º ano do curso, em julho do mesmo ano. Em outubro a aluna prodígio fez mais um pedido de adiantamento e realizou as provas que a levaram ao 5º ano. Fez uma pausa, passou 5 meses viajando pelo interior da Bahia e retornou ao curso, que foi concluído em menos de 3 meses, em outrubro de 1887, aos 21 anos. Um fenômeno em termos de capacidade realçado pelo fato de ser mulher. O curso de medicina, com duração de 6 anos foi realizado em 3 anos.

 

Com boas notas em todas as disciplinas, apresentou o trabalho de conclusão do curso, num auditório lotado, e foi aprovada em novembro de 1987 com a tese “Paralelo entre os métodos preconizados na operação cesariana”. No mês seguinte, na ccerimônia de formatura, conquistou o título de 1ª mulher médica do Brasil. Na época subverteu o sistema dominante onde o pudor imperava em detrimento da saúde e quando começou a atender, muitas mulheres que se recusavam a ser examinadas por médicos passaram a frequentar seu consultório instalado em Porto Alegre. Em 1889 casou-se com Antonio Maria Amaro de Freitas, um namorado da adolescência, que ficou esperando a conclusão do curso. A partir daí passou a atender a clientela em sua própria casa. 

 

Com o nascimento da primeira e única filha, o casal pssou a viver na Estância de Capivari e no ano seguinte realizaram uma viagem pela Europa. Tempos depois, em 191 e com a família consolidada, passou 5 meses fazendo cursos em Buenos Aires, atualizando-se sobre as novas descobertas na área médica e fazendo estágios em hospitais. De volta ao Brasil, passou a atender a clientela na região de Capivari, Rio Pardo e arredores. Em 1925, logo após o casamento da filha, decidiu encerrar a carreira e se aposentou aos 59 anos. No ano seguinte, dá-se o falecimento de marido e, vivendo sozinha abraçou a causa da descriminação da mulher e passou a defender seu direito  ao voto, uma luta que vinha sendo travada pela bióloga Bertha Lutz.

 

Nesta nova fase, participou do incipiente movimento fminista e testemunhou algumas vitórias, como a conquista do “Código Eleitoral de 1932” e a eleição da médica Carlota Pereira de Queiroz como Deputada Federal. Como militante da causa feminista, filiou-se ao Partido Libertador e foi eleita vereadora de Rio Pardo em 1934. Assim, a 1ª médica formada no Brasil tornou-se também a 1ª vereadora gaúcha. Com o golpe getulista de 1937 e a ascensão do Estado Novo, seu mandato foi interrmpido. Porém, não deixou de participar da politica, mesmo após o acidente vascular cerebral, que sofreu aos 73 anos, em 1940.

 

Em seus últimos anos de vida, perdeu parcialmente a visão e audição, mas manteve-se lúcida e altiva até 6/1/1954, quando veio a falecer. Além de alguns logradouros de Porto Alegre, que receberam seu nome, foi homenageada em com um selo postal pelos Correios, emitido em 9/6/1967, numa referência ao dia de seu nascimento. Não temos ainda uma biografia mais detalhada de sua trajetória profissional ou pessoal. Constam apenas alguns verbetes na Wikipedia, os quais serviram para a elaboração desta biografia concisa.

 

Rita Lobato: primeira mulher a formar-se em Medicina no Brasil:


 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 29 de setembro de 2021

OS BRASILEIROS: ANTÔNIO CANDIDO

OS BRASILEIROS: Antônio Candido

José Domingos Brito

 


 

Antônio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro, em 24/7/1918. Sociólogo,  professor, escritor, político, crítico literário e estudioso da literatura brasileira, é uma das principais referências do País na área da cultura e um dos pensadores sobre a formação do Brasil ao lado de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes chamados de “intérpretes do Brasil”.

Filho do médico Aristides Candido de Mello e Souza, seus primeiros estudos se deram em casa, com a mãe, Clarisse Tolentino de Mello e Souza. Concluiu o ensino secundário em 1935, no Ginásio Estadual de São João da Boa Vista, SP. Iniciou a formação acadêmica na Faculdade de Direito e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP, em 1939. A primeira foi abandonada no 5º ano e formou-se em Ciências Sociais em 1942. A carreira de crítico literário teve início na revista “Clima”, em princípios da década de 1940, junto com um grupo de destacados amigos: Paulo Emilio Salles Gomes, Alfredo Mesquita, Décio de Almeida Prado, Gilda Rocha de Mello e Souza, com quem veio a se casar, dentre outros.

Iniciou a carreira de professor em 1942, na USP, como assistente do prof. Fernando de Azevedo, de quem era também assistente Florestan Fernandes. No ano seguinte, passou a colaborar com o jornal Folha da Manhã, com artigos sobre escritores que despontavam, tais como João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Em 1945, obteve o título de livre-docente com a tese “Introdução ao método crítico de Silvio Romero”. O título de doutor em Ciências Sociais veio em 1954 com a tese “Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida”, um de seus destacados livros, publicado em 1964. Trata-se de uma obra considerada até hoje como um marco nos estudos brasileiros sobre sociedades tradicionais.

As carreiras de crítico e professor foram intercaladas com a militância política, iniciando com o Grupo Radical de Ação Popular, em princípios da década de 1940. Por essa época, participou da criação do jornal clandestino “Resistência”, para combater a ditadura de Getúlio Vargas. Em seguida, o grupo cria a União Democrática Socialista (UDS), que pouco depois adere à esquerda democrática, para formar o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1947. Aí permaneceu até 1954 e foi dirigente da seção paulista. Consolidando a carreira de crítico, criou o Suplemento Literário, encartado aos domingos no jornal O Estado de São Paulo, junto com os amigos Paulo Emilio Salles Gomes e Wilson Martins. Durante muitos anos, o suplemento dominical foi visto como o principal veículo do pensamento crítico brasileiro.

Sua obra-prima, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, lançada em 1959, consiste num apurado estudo da produção literária nacional. Para isso, utiliza-se de um método amplamente empregado mais tarde: a dialética, que envolve uma visão inter e transdisciplinar, que entende a literatura como uma das expressões da nossa cultura e objeto de estudos das Ciências Sociais. Segundo o autor, “o livro constitui uma história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. Pode-se dizer, também, que é uma história de brasileiras e brasileiros em “seu desejo de ter uma nação”. Vem daí a sua inclusão entre os autores “intérpretes do Brasil”.

No período de 1964-1966, quando o Brasil ficou inabitável para qualquer intelectual avesso ao Golpe Militar de 1964, foi dar aulas de literatura brasileira na Universidade de Paris. Em 1968, no auge da ditadura, lecionou literatura comparada na Universidade de Yale, nos EUA. De volta ao Brasil, retoma sua cadeira na USP e, a partir de 1974, torna-se professor-titular de Teoria Literária e introduz o estudo da Literatura Comparada na grade curricular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. No cargo, foi responsável pela formação de destacados nomes: Antônio L. de Almeida Prado, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci Jr., Walnice Nogueira Galvão, João Luiz Lafetá, Antônio Arnoni Prado e Antônio Cagnin entre outros. 

 

Aposentou-se em 1978, mas permaneceu ligado à pós-graduação, orientando trabalhos acadêmicos até 1992, quando orientou a última tese, a do crítico mexicano Jorge Ruedas de la Serna. Permaneceu como crítico atuante na área literária e na política. Em 1980, ao lado de outros intelectuais, como Sergio Buarque de Holanda, participou da criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Para ele, no sistema capitalista “não havia face humana nenhuma” e a redução da desigualdade social é fruto das lutas do socialismo, a exemplo de direitos trabalhistas, como as férias e a jornada de 8 horas de trabalho. Em sua opinião, o socialismo seria a possibilidade de almejar a equidade. Explicava: “Por exemplo, sou um professor aposentado da USP e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode”.

Foi agraciado com grandes premiações literárias, como o Prêmio Camões, em 1998, e o Prêmio Internacional Alfonso Reyes, no México, em 2005. Foi contemplado também com o Prêmio Jabuti em 4 ocasiões: 1960, 1965, 1966 e 1993; Prêmio Juca Pato (2007); e Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (1993). Em 2005, sofreu um abalo com a morte de sua esposa, Gilda de Mello e Souza, também professora da USP, e passou a viver mais recluso, distante da vida social e acadêmica, porém sempre procurado por alunos e instituições. Faleceu em 12/5/2017.

Antônio Candido deixa um considerável acervo de obras essenciais, com destaque, além das citadas, para: Tese e antítese: ensaios (1964); Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária (1965); Na sala de aula: caderno de análise literária (1985); O estudo analítico do poema (1987); O discurso e a cidade (1993); Iniciação à literatura brasileira - Resumo para principiantes (1997); O Romantismo no Brasil (2002) e outros livros em parceria. Em termos biográficos, expondo seu legado, temos: Antônio Candido: pensamento e militância (1999), de Flavio Aguiar; Antônio Candido y los estúdios latinoamericanos (2002), de Raúl Antelo; História e literatura: homenagem a Antônio Candido (1999), de Jorge Ruedas de la Serna; A formação de Antonio Candido: uma biografia ilustrada (2020), de sua filha Ana Luiza Escorel. Uma síntese biográfica pode ser vista na homenagem que lhe foi prestada pelo Jornal da USP, em 2017, no link:https://jornal.usp.br/cultura/a-vida-a-obra-e-o-legado-de-antonio-candido/

 

CONVERSA COM ANTÔNIO CÂNDIDO

O DIREITO À LITERATURA

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 22 de setembro de 2021

AS BRASILEIRAS: PÉROLA BYINGTON

AS BRASILEIRAS: Pérola Byington

José Domingos Brito

 

Pérola Ellis Byington nasceu em 3/12/1879, em Santa Bárbara do Oeste, SP. Professora, ativista social e filantropa. Integrante da Cruz Vermelha, nos EUA, e pioneira em sua instalação no Brasil, com a fundação da Cruzada Pró-Infância na década de 1930, transformada em hospital em 1959. Pouco depois o hospital recebeu o nome “Pérola Byington”, centro de referência da saúde da mulher, na capital de São Paulo.

 

Filha de imigrantes norte-americanos, casou-se em 1901 com Alberto Jackson Byington, precursor da indústria no Brasil. Durante a 1ª Guerra Mundial estava nos EUA e foi responsável por uma seção da Cruz Vermelha. De volta ao Brasil liderou, junto com Maria Antonieta de Castro, uma campanha de combate à mortalidade infantil. É importante ressaltar que as duas rezavam em catecismos diferentes e que naquela época protestantes (Pérola) e católicos (Maria) não se bicavam bem. No entanto, deixaram as divergências religiosas de lado para trabalhar em conjunto, guiadas por seus princípios sociais.

 

Pérola, morando num casarão da Av. Paulista, perguntava-se: “O que esperar de um país onde as crianças morrem ao nascer?”. Este foi o mote de seu trabalho iniciado em sua casa, em bases sólidas e que resultou na fundação de uma das maiores instituições de assistência social, que recebeu o nome de “cruzada’, dada as dificuldades e empenho na sua realização. Pouco depois conseguiu instalar um hospital dedicado às mulheres e crianças: O Hospital da Cruzada Pró-Infância, em 1959.

 

Em 1932, na Revolução Constitucionalista, a Cruzada teve relevante participação com a confecção de ataduras, roupas para os soldados e assistência às suas famílias. Seu trabalho não se restringia ao aspecto caritativo. Batalhou pela igualdade de direitos iguais entre homens e mulheres; lutou pelo direito do voto feminino; foi a primeira pessoa a apresentar projeto sobre a necessidade da educação sexual nas escolas e foi responsável pela institucionalização do “Dia da Criança” não como uma data criada para a venda de brinquedos, mas como um dia para celebrar o direito das crianças no Brasil. No período 1930-1960 ficou conhecida como uma das mulheres mais importantes em São Paulo e, talvez, no Brasil.  

 

Em 1963 reuniu amigos e colaboradores para anunciar uma viagem aos EUA para conhecer os bisnetos e rever os netos, filhos de Elizabeth Byington, sua filha que lá vivia. Brincando com os netos, sofreu uma queda e veio a falecer em 6/11/1963. No mesmo ano foi homenageada com seu nome dado ao Hospital da Cruzada Pró-Infância. A partir daí as homenagens foram se multiplicado. Em sua cidade natal uma das avenidas recebeu seu nome e em 2016, a Câmara Municipal criou o “Diploma Pérola Byington”, concedido anualmente às pessoas que exercem o serviço voluntário, pelo menos, por 2 anos em Santa Bárbara do Oeste.

 

No Paraná, um distrito do município de Xambrê foi elevado a categoria de cidade e recebeu o nome Pérola, onde localizava-se a Companhia Byington de Colonização Ltda. Em Campinas, nomeou o 64º Grupo de Escoteiros do Brasil. Para familiarizar os leitores com seus descendentes, dona Pérola é bisavó da atriz Bianca Byington e da cantora Olivia Byington, mãe do ator e escritor Gregório Duvivier. Sua neta Maria Elisa Botelho Byington declarou aos 88 anos: “O discurso que Pérola tinha é totalmente atual. Fico pensando como ele seria encarado hoje pois sinto que estamos regredindo 100 anos ao questionar a educação sexual nas escolas. Ela defendia que prevenção era a palavra que deveria ser guia de qualquer área do governo. Estamos esquecendo a nossa história”.

 

Maria Elisa ficava inconformada pelo fato de sua vó ser conhecida em São Paulo apenas pelo nome de um grande hospital e da praça onde está localizado. Para que seu nome e legado não caíssem no esquecimento, juntou-se às historiadoras Maria Lucia Mott e Olga Sofia Fabergé Alves e publicaram o livro O Gesto que Salva - Pérola Byington e Cruzada Pró-Infância”, lançado em 2005. Conforme o título indica, não se trata apenas de uma biografia e sim um relato dos sucessos e dificuldades de uma das maiores instituições de assistência social do País. Maria Elisa é filha de Alberto Byigton Jr., um dos dois filhos de Pérola, empresário e pioneiro da indústria cinematográfica no Brasil. Como se vê a família Byington tem história para contar sobre o Brasil.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 15 de setembro de 2021

OS BRASILEIROS - MARIO DE ANDRADE

 

OS BRASILEIROS: Mário de Andrade

José Domingos Brito

 

 

Mário Raul de Morais Andrade nasceu em 9/10/1893, em São Paulo, SP. Escritor, poeta, administrador, cronista, musicólogo, fotógrafo, crítico de literatura e de arte, pesquisador do folclore, agitador cultural... Eu sou 300, sou 350”, disse no poema Remate dos males. Foi protagonista do “Movimento Modernista” (1922), pioneiro no estudo da “etnomusicologia” e na preservação da memória nacional com a criação do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937.

 

Nascido numa aristocrática família paulistana, teve os primeiros estudos em casa e foi considerado um pianista pródigo na infância, quando lia em francês e estudava história da arte como autodidata. A educação formal veio apenas aos 18 anos, quando ingressou no Conservatório Dramático de Musical de São Paulo. Em 1913, seu irmão mais novo faleceu, causando-lhe um profundo choque. Retirou-se, para tratamento, numa fazenda da família em Araraquara e teve que deixar o piano devido a um tremor das mãos. Passou a estudar canto e teoria musical com a intenção de se tornar professor de música, ao mesmo tempo em que se interessou, também, pela literatura.

 

Ao se formar, em 1917, publicou seu primeiro livro de poemas -Há uma gota de sangue em cada poema-, com o pseudônimo Mário Sobral, considerado hoje raríssimo e disputado entre os bibliófilos. Em seguida, passou a viajar pelo interior do Brasil realizando meticuloso trabalho de documentação da música e folclore local ao mesmo tempo em que publicava ensaios na imprensa paulista. Duas destas viagens (1919 e 1924) foram nas cidades históricas de Minas Gerais, e viu “que Aleijadinho não copiou, mas inventou, fundiu o barroco com o rococó e criou uma identidade na sua obra”, conforme Ângelo Oswaldo. Em 1928 publicou o ensaio O Aleijadinho no livro Aspectos das artes Plásticas no Brasil, imprimindo nova visão sobre a obra do escultor e redimensionando sua importância em âmbito internacional. Pode-se dizer que é a partir daí que Aleijadinho adquire o prestígio que veio a ter na arte brasileira.

 

Escrevendo e lecionando piano no Conservatório, angariou grande número de amigos, jovens artistas e escritores antenados como a cultura europeia. Em 1920, comprou uma escultura -Busto de Cristo- de seu amigo Victor Brecheret, um Cristo brasileiro de cabelos trançados, que deixou a família chocada. Aborrecido, retirou-se para o quarto, e da varanda pôs-se a observar a praça “sem realmente vê-la. Ruídos, luzes, as brincadeiras ingênuas dos taxistas: todos flutuaram até mim. Eu estava aparentemente calmo e não pensando em nada em particular. Não sei o que de repente aconteceu comigo. Fui até minha mesa, abri um caderno e anotei um título que nunca havia passado pela minha cabeça: Pauliceia Desvairada!”.

 

O título inesperado deu origem ao segundo livro, anunciando a “Semana de Arte Moderna”, com verso livre, transgressões sintáticas, valorização da fala brasileira e ausência da solenidade poética, entre outras inovações que marcaram a ruptura com o “parnasianismo”. Enquanto trabalhava na edição do livro, preparava junto ao “Grupo dos Cinco” (Ele, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Tarsila do Amaral) a “Semana de Arte Moderna”. No evento leu o “Prefácio extremamente interessante”  do livro como o clímax da “Semana”. Em seguida as viagens pelo interior do País foram intensificadas, ampliando o estudo a cultura e o folclore, bem como as dimensões sociais da música. Tais viagens renderam um diário, que resultou numa coluna no jornal “O Diário Nacional”, seguido do livro O turista aprendiz, em 1927, um documentário (com fotos) do Brasil. No mesmo ano lançou o romance Amar, verbo intransitivo, a história de uma alemã, cuja profissão era iniciar sexualmente os jovens. Ou seja, mais uma transgressão literária.

 

No ano seguinte veio a grande obra -Macunaíma-, consagrando o romancista e seu envolvimento com a cidade. Tal envolvimento resultou na organização do Departamento de Cultura, em 1935, com o empenho do prefeito Paulo Duarte, cuja função era resgatar e divulgar a cultura brasileira e não apenas paulista. Um dos principais legados do Departamento foi a criação da biblioteca municipal, que em 1960 recebeu seu nome e tornou-se a segunda maior do País,  além do sistema de bibliotecas públicas, contando hoje com 51 bibliotecas em quase todos os bairros da cidade. Criou também parques públicos e fundou a Discoteca Municipal, um dos maiores e melhores acervos organizado sobre música do hemisfério. Nessa época e na condição de diretor do Departamento pôde ajudar Claude Lévy-Straus em suas pesquisas para o livro Tristes trópicos, que viria publicar em 1955.  

 

Em 1937 elaborou a lei de criação do SPHAN-Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e passa a ter problemas políticos com a volta do Governo Vargas. No ano seguinte criou, junto com o antropólogo Lévi-Strauss, a Sociedade de Etnografia e Folclore. Por essa época, perdeu o cargo na Prefeitura de São Paulo. O prefeito Prestes Maia estava mais interessado em abrir grandes avenidas na cidade e não via tanto interesse no Departamento de Cultura, que acabou em terceiro plano. Segundo seu amigo Rubens Borba de Moraes, Mário passou por uns perrengues, ficou desanimado e em 1938 foi incentivado pelos amigos Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco e o ministro Gustavo Capanema a viver no Rio de Janeiro, onde ocupou o cargo de diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal. Na ocasião, dirigiu o Congresso da Língua Nacional Cantada, importante conferência de folclore e música folclórica.

 

No Rio sua vida sofreu grande transformação. Não obstante continuar escrevendo e participando da vida cultural da cidade e fazer projetos para o ministro Capanema, passou a sentir certo vazio, “não se ambientava, não conseguia fazer sua vida, trabalhar direito. Tudo lhe parecia tão inútil e fútil. Não conseguia equilibrar-se de novo”. No encontro que teve com o amigo Rubens Borba de Moraes, revelou: “Sabe, dei para beber. Tomo bebedeiras! Caí na farra...” O fato é que no Rio caiu numa roda de jovens literatos e boêmios e fez o que não fizera quando moço. Em 1942, retornou à São Paulo, mas não era o mesmo. Mais tarde, Rubens encontrou-o num bar da Rua Líbero Badaró. “Estava magro, esverdeado, acabado e queixando-se da saúde. Suas moléstias indefinidas eram psicossomáticas: resultado dessa vontade de viver. Não tinha ânimo para reagir, deixou-se morrer”. (Moraes, Rubens Borba de. Testemunha ocular - recordações). Brasília, Briquet de Lemos Livros, 2011).  Foi vitimado por um ataque cardíaco em 25/2/1945.

 

10 anos após foram publicados seus Poemas completos (1955), marcando o início de sua “canonização” na cultura brasileira. Deixou um considerável legado, tanto na produção literária, com 58 livros, como na institucionalização e no cuidado com a memória, criando o SPHAN, e com a cultura, criando o Departamento de Cultura (SP).  Atualmente, depois de Machado de Assis, é o autor mais estudado da literatura brasileira. Foi o autor que mais praticou a “literatura epistolar“ no Brasil. Manteve correspondência com centenas de cartas à quase todos os escritores e artistas conhecidos. Muitos dos quais deixaram livros publicados sobre essa troca de correspondência. Sua vida e legado foi registrado em diversos ensaios, artigos e biografias. As duas últimas publicadas: Eu sou trezentos: Mário de Andrade – Vida e obra, (2018), de Eduardo Jardim e Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade (2019), de Jason Tércio, apresentam amplo e documentado panorama de sua trajetória.

 

BIOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE


José Domingos Brito - Memorial quarta, 01 de setembro de 2021

OS BRASILEIROS: NOEL ROSA

 

OS BRASILEIROS:  Noel Rosa

José Domingos Brito

 

 

Noel de Medeiros Rosa nasceu em 11/12/1910, no Rio de Janeiro, RJ. Compositor, cantor, violonista e um dos nomes mais destacados não apenas no samba, mas na história da música popular brasileira. Sua contribuição foi fundamental na legitimação do samba como ritmo genuinamente brasileiro. Em seu curto período de vida deixou mais de 250 músicas, muitas delas clássicas do cancioneiro popular.   

 

Nascido de um parto complicado, que incluiu o uso de fórceps para salvar a vida da mãe e da criança. Além disso, tinha uma hipoplasia, com uma diminuição da mandíbula, que marcou sua feição dotando-o de uma fisionomia particular. Cresceu no bairro carioca de Vila Isabel, reduto de boêmios e sambistas tradicionais do Rio de Janeiro, oriundo de uma família de classe média. Estudou no tradicional Colégio de São Bento e dizem que, não obstante a inteligência, não era um aluno aplicado nos estudos.

 

Aprendeu a tocar bandolim de ouvido ainda adolescente e gostou da atenção que despertou nos ouvintes. Pouco depois passou ao violão e logo fazia parta das rodas de samba. Aos 21 anos entrou na Faculdade de Medicina, mas cedo se deu conta da inviabilidade do projeto de ser médico diante da vida de artista que se apresentava entre as noitadas regadas a cerveja. Aos 19 anos já era integrante do “Bando dos Tangarás”, ao lado de Braguinha, Almirante e Henrique Brito. Em 1929 compôs Minha viola e Festa no céu e no ano seguinte, aos 20 anos, surge o primeiro grande sucesso Com que roupa?, uma de suas clássicas composições,

 

No folclore musical surgiu uma história em que ele, em certa noite,  queria sair com os amigos, mas sua mãe não deixou, escondendo suas roupas. Foi aí que perguntou: “Com que roupa eu vou?” Mas esta história foi desmentida por Almirante, seu parceiro e primeiro biógrafo. Ele atesta que os primeiros acordes da música eram muito parecidos aos do Hino Nacional. O problema foi detectado pelo maestro Homero Dornelas e Noel prontamente fez a modificação. O fato é que ele era um grande cronista e suas músicas eram um retrato da vida simples e cotidiana, que primam pelo humor e pela veia crítica. Orestes Barbosa chamava-o de “o Rei das letras”.

 

O cotidiano e o humor sempre estiveram nas letras de suas músicas, incluindo as “brigas”. Numa polêmica com seu rival Wilson Batista, os dois pelejaram em sambas. Os dois andaram enamorados de uma morena do “Dancing Apollo. Noel compôs o samba Rapaz folgado, detonando a empáfia de Lenço no pescoço, de Wilson. Este, quando ouviu o samba, deu o troco com Mocinho da Vila, aconselhando Noel a cuidar de seu microfone e deixar quem era malandro em paz e ao final orgulhava-se “modéstia à parte, eu sou rapaz (folgado?)”. Noel continuou a polêmica com Feitiço da Vila: “modéstia à parte, eu sou da Vila (Isabel)”. Em seguida, Wilson compõe Conversa fiada, questionando a superioridade do bairro. Noel retruca com o samba Palpite infeliz. Ao final da “briga”, os dois tornaram-se parceiros e amigos.

 

A vida boêmia nos bares da lapa era intensa e parece que começava cedo no café da manhã: Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada / Um pão bem quente com manteiga à beça... Essa Conversa de botequim é um dos seus maiores sucessos. Até agora já foi executada mais de 546 mil vezes na Spotfy e 1.3 milhão de vezes no Youtube. Ao longo da breve vida teve muitas namoradas e foi amante de outras já casadas. Aos 24 anos  casou-se com Lindaura Martins, por quem tinha certo afeto, mas era apaixonado mesmo por Ceci, prostituta de um cabaré na Lapa. Essa paixão resultou no samba Dama do Cabaré, outro sucesso. Ele quis tirá-la da “vida fácil”, dar-lhe uma casa e uma vida tranquila como amante. Mas ela recusou a oferta; não queria ser uma “manteúda”; queria alguém que assumisse o casamento. Era uma mulher bonita, elegante e educada. Mas ele não pode encarar o escândalo social e na família, que não aceitaria o casamento com uma meretriz.  

 

A vida boêmia segue o curso, às vezes interrompida com tratamentos contra a tuberculose que o consumia. Viajou diversas vezes para cidades montanhosas em função do clima e passou uma temporada em Belo Horizonte. De lá, escreveu ao seu médico, Dr. Graça Melo: “Já apresento melhoras/Pois levanto muito cedo/E deitar às nove horas/Para mim é um brinquedo/A injeção me tortura/E muito medo me mete/Mas minha temperatura/Não passa de trinta e sete/Creio que fiz muito mal/Em desprezar o cigarro/Pois não há material/Para o exame de escarro".

 

De volta ao Rio, sentiu alguma melhora  e parou com as medicações. Achou que estava curado, mas pouco depois adoeceu fortemente, não conseguindo mais se alimentar e nem levantar da cama. Faleceu repentinamente em 4/5/1937 aos 26 anos. Sua vida foi filmada e biografada diversas vezes. São filmes de curta, média e longa duração, com destaque para “Noel – Poeta da Vila” (2007), baseado na essencial biografia Noel Rosa: uma biografia (1990), de João Máximo e Carlos Didier. No teatro também foi retratado na peça O poeta da Vila e seus amores (1977), de Plínio Marcos e cenário de Flávio Império, inaugurando o Teatro do SESI, em São Paulo. Em 2010, centenário de seu nascimento, a Escola de Samba Unidos da Vila Isabel desfilou em sua homenagem com o samba Noel: a presença do “Poeta  da Vila”, de Martinho da Vila. Em 2016 foi agraciado in memoriam com a “Ordem do Mérito Cultural do Brasil”, na classe de grão-mestre.

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 25 de agosto de 2021

OS BRASILEIROS JOSÉ LUTZENBERGER

 

OS BRASILEIROS: José Lutzenberger

José Domingos Brito

 

 

 

José Antonio Lutzenberger nasceu em 17/12/1926, em Porto Alegre, RS. Engenheiro agrônomo, cientista, escritor, filósofo, ambientalista e pioneiro na luta em defesa do meio ambiente. Trocou uma próspera carreira, como técnico e executivo de empresas multinacionais, pela organização do movimento ecológico na década de 1970, com a publicação do “Manifesto Ecológico Brasileiro”.

 

Filho do artista plástico Joseph Franz Seraph Lutzenberger e Emma Kroeff, imigrantes alemães, desde criança mantinha contato e encanto pela natureza. Estudou no Colégio Farroupilha e do Rosário, com interesse em química e física. Após o serviço militar, entrou na  Faculdade de Agronomia, da UFRGS e demonstrava temperamento combativo. Era visto como excêntrico pelos colegas. Diplomado em 1950, passou 2 anos nos EUA fazendo pós-graduação na Universidade de Louisiana em agroquímica.  De volta à Porto Alegre, empregou-se na Companhia Riograndense de Adubos, onde trabalhou por 4 anos e transferiu-se para a Sulpampa Agropastoril, no cargo de intérprete de línguas do diretor da Basf, empresa associada. Em 1957 foi convidado para trabalhar na Ciba-Geigy, na Alemanha, na área de agrotóxicos. Em seguida mudou-se para a Venezuela, atuando como técnico e executivo na área de adubos da Basf. Pouco depois, já casado e com 2 filhas, foi transferido para o Marrocos, em 1966. Na condição de executivo bem sucedido, conheceu diversos países.    

 

Na Venezuela esteve em contato com o cientista Leon Croizat, aprofundando os estudos em biogeografia. O interesse nos problemas causados pelo agrotóxico foi despertado com a leitura do livro Silent Spring (1962), de Rachel Carson, com quem manteve contato. Discordava dos ataques que a cientista sofria dos  empresários da indústria química e passou a se interessar pela ecologia. A “crise existencial” ou profissional  iniciou quando a Basf passou a produzir agrotóxicos. O dilema foi resolvido com o pedido de demissão, em 1970. Ano seguinte fundou a AGAPAN-Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a primeira “Ong” ecológica do País. Logo tornou-se líder do movimento com o lançamento do “Manifesto Ecológico Brasileiro: o fim de futuro?”, numa tiragem de 46 mil exemplares. Em seguida foi  impresso em papel jornal e formato “pasquim” de 22 páginas e foi vendido em bancas de jornal. Assim o movimento ecológico tomou as ruas. Com o manifesto, tornou-se importante líder no movimento ambientalista internacional, recebendo cumprimentos do cientista Konrad Lorenz, Prêmio Nobel de Medicina.

 

Antes do “manifesto” já havia publicado muitos artigos denunciando o desastre ecológico e viajou pelo mundo dando palestras e conquistando adeptos. Se em alguns setores da sociedade era tratado como gênio e pioneiro, noutros era tido como louco e fanático. Denunciava a poluição do lago Guaíba, a perseguição aos morcegos de Porto Alegre, o desmatamento e a redução das áreas verdes urbanas, o uso de agrotóxicos e da energia nuclear etc. Com o empenho e as lutas da AGAPAN, obteve conquistas como a criação do Parque Delta do Jacuí, do Parque Estadual de Itapuã e da Reserva Biológica do Lami. Mas a luta mais notória que enfrentou foi contra a produtora de celulose “Borregaard”, que poluía o ar e as águas do rio Guaíba. Para muitos foi “uma das mais importantes lutas ecológicas da história”, inaugurando um inédito processo de revisão de métodos produtivos. Em fins de 1973, a fábrica foi interditada.  

 

O movimento ecológico torna-se mais expressivo em termos políticos com a criação dos “partidos verdes” em todo o mundo. A entrada de novos atores na AGAPAN, afastou-o da entidade em 1987. "Aconteceu que surgiu um grupo de guris que não sabia nada de nada e que transformou a Agapan em política partidária. E aí eles perderam, inclusive, a penetração nos meios de comunicação. Eles não tinham nada a dizer". Ao deixar a AGAPAN, criou a Fundação Gaia, dedicada a promoção de um modelo de vida sustentável. A fundação atua na área de educação ambiental e na promoção de tecnologias socialmente compatíveis, tais como a agricultura regenerativa, o manejo sustentável dos recursos naturais, a medicina natural, a produção descentralizada de energia e o saneamento alternativo. Presta, também, consultoria ambiental para auxiliar municípios e estados a implantar o desenvolvimento sustentável. Seu envolvimento com a questão ambiental rendeu-lhe o prestigioso “The Right Livelihood Award 1988”, conhecido como o Prêmio Nobel Alternativo na área de ecologia, em Estocolmo. 

 

Além de manter a Fundação, conduzia uma empresa de reciclarem de resíduos industriais. Em 1990, o presidente Fernando Collor, interessado em melhorar a imagem do Brasil no exterior e  tendo em vista a realização da CNUMAD-Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento ou “Rio-92”,  convidou-o para assumir a pasta do Meio Ambiente e comandar os preparativos para a grande conferência. Sua ideia era que o Brasil deveria encaminhar uma proposta em que os países possuidores de florestas de grande porte fossem recompensados, através de um fundo internacional, pelo prejuízo de não explorá-las. Defendia ainda que a diplomacia brasileira deveria adotar uma legislação internacional sobre florestas e no estabelecimento de metas precisas para evitar o desmatamento. Em termos políticos p.p. dito, dizia: “Li Marx de ponta a ponta no original, em alemão. Ele é tão tecnocrata quanto os capitalistas; Hitler e Mussolini também diziam ser socialistas, como Fidel. Essa palavra e ser de esquerda não significam mais nada”.

 

Sua permanência no governo durou mais que o previsto (março/1990-março/1992), tendo em vista o temperamento direto e pouco dado às conveniências políticas. Foi demitido antes mesmo da Rio-92, logo após denunciar a corrupção no IBAMA, que ele acusava de ser uma “sucursal de madeireiros”. Nos 2 anos como ministro realizou algumas conquistas, como a demarcação de terras indígenas, em especial a dos Ianomâmis, em Roraima; a definição do conceito de Área de Proteção Ambiental na nova legislação; a decisão do Brasil de abandonar o projeto da bomba atômica e a assinatura do Tratado da Antártida e da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Já fora do governo, fez um importante pronunciamento na Rio-92, quando foi homenageado e recebeu convite de Dalai Lama para uma conversa privada. No mesmo ano participou do “Simpósio Internacional sobre questão da Ética na Política”, organizado pelo Instituto Goethe.

 

Seu último trabalho no governo foi de consultor ambiental no estado do Amazonas, em 1997. Faleceu em 14/5/2002 e foi sepultado no bosque da Fundação Gaia do modo como pediu: nu envolto num lençol  e sem caixão para não deixar marcas. Suas ideias e legado ficaram registrados em centenas de artigos e livros, dos quais vale destacar: Pesadelo atômico (1980), Ecologia: do jardim ao poder (1985) e Gaia, o planeta vivo (1989). Em termos biográficos, temos Sinfonia inacabada: a vida de José Lutzenberger (2005), de Lilian Dreyer e Lutz – a história da vida de José Lutzenberger, o grande ambientalista do Brasil (2019), de Amauri Antonio Confortin e outros autores. Recebeu títulos de “Doutor honoris causa” de diversas universidades no Brasil e no exterior e foi agraciado com uns 80 prêmios, homenagens e condecorações.

 

UMA HOMENAGEM A JOSÉ LUTZENBERGER

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 18 de agosto de 2021

AS BRASILEIRAS: BIDU SAYÃO

 

AS BRASILEIRAS: Bidu Sayão

José Domingos Brito

 

 

Balduína de Oliveira Sayão nasceu em Itaguaí, RJ, em 11/5/1902. Cantora lírica, reconhecida como uma das grandes estrelas de ópera do mundo e uma das maiores intérpretes do Brasil. Foi aluna de Arturo Toscanini, que a chamava de “la piccola brasiliana” e projetou-a na Europa. Ao se apresentar na Casa Branca, recebeu convite do presidente Roosevelt, para se tornar cidadã estadunidense, mas declinou: “No Brasil eu nasci e no Brasil morrerei”.

 

Aos 11 anos, o tio pianista, sugeriu que ela se tornasse cantora. Mas que ela queria atriz de cinema, profissão pouco recomendável, na época, para “moças de família”. Foi sugerido, então, que estudasse música, mais especificamente canto. Cantou algumas músicas do tio

e uma amiga avisou-a que a soprano romena Elena Theodorini estava no Rio dando aulas de música. A professora ficou empolgada com a menina, que veio a tonar-se sua melhor aluna. 4 anos depois, a mestre voltou à Europa e sugeriu à família que ela fosse estudar no  exterior. Assim, foram para a Romênia, onde prosseguiu nos estudos. Em seguida passou a viver em Nice, França, onde recebeu aulas do tenor polonês Jean de Reszke, um dos tenores mais famosos do  mundo, e consolidou sua técnica vocal.

 

Aos 20 anos, após 4 de estudos rigorosos, estava pronta para encenar o papel principal na ópera Romeo e Julieta no teatro Ópera de Paris. A plateia ficou encantada e recebeu elogios efusivos da crítica. Em seguida partiu para Roma e procurou o Teatro Constanzi, o maior da cidade, onde se apresentou com a ópera O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, em 1926, Nesta apresentação foi consagrada como uma das grandes soprano do mundo. Em 1928, já casada com o empresário Walter Mocchi apresentou-se no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa.  A plateia lisboeta ficou encantada e orgulhosa de ver uma brasileira, uma quase patrícia, no placo.

 

De volta à Itália, fez uma apresentação especial para recepcionar o príncipe Alberto e a princesa Maria José, da Bélgica. Mussolini, seu fã ardoroso, exigiu que lhe dessem o papel principal na ópera Don Pasquale. Mas, ponderaram que só artistas italianos poderiam participar da ópera. Mas, como contrariar o “Duce”?. Mais uma vez  brilhou no papel de “Norina”.  Na década seguinte se apresentou no Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, na ópera Manon, de Massenet. A apresentação lhe proporcionou um contrato para integrar o elenco do Metropolitan durante muitos anos. A baixa estatura e o timbre da voz propiciaram uma adequação para papéis femininos mais delicados. Nos anos seguintes apresentou-se no Teatro Colón, em Buenos Aires, Rio de Janeiro, ao lado de Guiomar Novaes e no Recife, junto com o barítono Giuseppe Danise, com quem viria se casar anos depois.

 

Conta a história que numa apresentação, em 1937, no Teatro Municipal do Rio, quando ela já era famosa na Europa, foi vaiada ao cantar Pelléas et Mélisande.  Conta-se, também, que vaia teria sido organizada pela claque da meia-soprano Gabriella Besanzoni, que não estava disposta a vê-la em desvantagem diante do sucesso de Bidu Sayão. O fato causou-lhe tristeza e mágoa justamente por ocorrer em sua terra natal. Logo depois foi confortada pelos aplausos que obteve no mesmo ano, na apresentação que fez no Metropolitan Opera House, interpretando Manon, de Jules Massenet. Só retornou ao seu País, para novas apresentações, 11 anos depois, nas montagens de Romeu e Julieta e Pelléas et Mélissande, em 15 e 17 de agosto de 1946, as  últimas em solo brasileiro, e retornou aos EUA, onde vivia.

 

A apresentação no Metropolitan Opera House e posterior contratação foi possível a partir da indicação feita pelo maestro Arturo Toscanini, de quem foi amiga e, dizem as “más línguas’, amante. A dupla realizou memoráveis apresentações, como a ópera La Damoiselle Elue, de Debussy, no Carnegie Hall, em Nova Iorque. O crítico Olin Downes escreveu: “A srta. Sayão triunfou da forma como uma Manon deveria triunfar, com educação, jovialidade e charme, e também pela maneira como fez de sua voz um veículo de expressão dramática”. Pouco depois, aos 34 anos, foi recebida, na Casa Branca, pelo casal Roosevelt. Um crítico do O “New York Times” disse que “Ela não demorou a mostrar os méritos de sua arte. Sua voz possui doçura, delicadeza e suavidades pronunciadas. Sua escala é excepcionalmente uniforme durante todo o compasso e alcança o Mi bemol mais agudo... Além da suavidade, a técnica vocal... tem absoluto comando do legato delicado e muito acima da média da flexibilidade e agilidade”. Permaneceu 15 anos como a principal soprano lírica do Metropolitan, que mantém um quadro a óleo na galeria dos grandes nomes da ópera. Em alguns momentos, sua voz elevava-se a alturas quase inacreditáveis e ali permanecia -pendurada, como uma cotovia- desabafando seu coração para o céu”, escreveu um crítico do “Winnipeg Tribune”.

 

Em 1940 esteve no Brasil junto com o tenor Tito Schipa, dirigidos por Toscanini. Em pleno “Estado Novo”, sob o comando de nacionalistas exacerbados, tal como ocorreu com Carmen Miranda, foi criticada devido ao sucesso alcançado nos EUA. Em meados de 1950, conheceu Villa-Lobos e dizem que “a química entre eles foi imediata’. Segundo o biógrafo Dennis Daniel  “o relacionamento amoroso foi evidente”. O fato é que os dois se adoravam, e não apenas em termos artísticos. O compositor se referia a ela como “meu violino humano”. Estava falando do corpo da cantora? A versão do biógrafo: “A referência ao instrumento se prende à capacidade que Bidú possuía de cantar uma parte específica das ‘Bachianas Brasileiras nº 5’ sem a letra, apenas com a boca fechada, sua voz soprano ressonando dentro da cavidade bucal como se saísse pela nariz, uma técnica conhecida como ‘bocca chiusa’”. A cantora acabou agradando o exigente compositor. Fato é que o disco das ‘Bachianas Brasileiras nº 5’ conseguiu ser o mais vendido nos EUA por 2 anos consecutivos.

Não obstante ser apaixonada pelo Brasil –“nada magoava mais Bidú do que ser chamada de antipatriota”, suas relações com a terra natal foram tumultuadas desde 1937, com a vaia que levou no Teatro Municipal do Rio. Mas melhoraram bastante com o convite que recebeu em 1995 para desfilar no carro alegórico da Escola de Samba Beija-Flor, quando sua vida e carreira foram tema do enredo no carnaval. Porém, com tantos anos vivido e a carreira feita nos EUA, naturalizou-se americana em 1960, aos 59 anos, mas não perdeu a cidadania brasileira. Vivia em Lincolnville, Maine, onde faleceu em 12/3/1999, aos 97 anos, sem realizar um de seus desejos: rever a Baía da Guanabara.  Havia uma viagem agendada para este propósito no ano de seu centenário, mas não houve tempo.

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Seu biógrafo -Denis Allan Daniel-, que tem nome americano mas é brasileiro, lançou em 2019 Bidú: paixão e determinação” uma alentada biografia, lamenta: “É triste ter de aceitar que não há uma só lápide em algum cemitério, ou um monumento no Brasil, para honrar a memória de Bidú Sayão. Encontrei na Internet outro livro, que parece ser uma biografia: Bidú Sayão: o rouxinol brasileiro, lançada por  Fernando de Bortoli, em 1992, publicada pela Editora do Autor. Será porque não encontrou editora? E assim lamentamos todos o cuidado que temos com nossos grandes talentos brasileiros. Uma nesga de lembrança da grande soprano restou em Belo Horizonte, com a criação do “Concurso Internacional de Canto Bidú Sayão”, em 1999.

 

BIDU SAYÃO - A BRASILEIRA QUE CONQUISTOU O MUNDO!


José Domingos Brito - Memorial quarta, 11 de agosto de 2021

OS BRASILEIROS: GUERREIRO RAMOS

 

 

OS BRASILEIROS: Guerreiro Ramos

José Domingos Brito

 

 

Alberto Guerreiro Ramos nasceu em 13/9/1915, em Santo Amaro da Purificação, BA. Sociólogo, professor, advogado, jornalista e político. Destacado estudioso da questão social e racial, é segundo o fundador do Departamento de Sociologia da Universidade de Harvard, Pitirim Sorokin, um dos autores que mais contribuíram para o progresso da sociologia no mundo. 

 

Após os primeiros estudos, no Ginásio do Estado, em Salvador,  ganhou uma bolsa de estudos do governo para estudar na Universidade do Brasil (RJ), onde diplomou-se em ciências sociais em 1942 e em Direito no ano seguinte. Foi influenciado pelos intelectuais católicos franceses, sobretudo Jacques Maritain, com que teve ligações pessoais, e Emmanuel Mounier. A partir de 1944, passou a ser influenciado por Max Weber e se interessar pela teoria das organizações. Na área cultural, foi ligado ao Teatro Experimental do Negro-TEN, comandado por seu amigo Abdias do Nascimento, que lhe entregou a coordenação do departamento de estudos e pesquisas, denominado Instituto Nacional do Negro. Uma de suas atividades se deu com o “Seminário de Grupoterapia”, com base no psicodrama como um “espaço que possibilita catarse e reflexão das sequelas trazidas de um passado escravo, de uma vivência de ausência de um lugar, de uma identidade fragmentada”.

 

Assessorou o presidente Getúlio Vargas em seu 2º governo e pouco depois foi designado diretor do Departamento de Sociologia do ISEB-Instituto Superior de Estudos Brasileiros. O ISEB, com autonomia administrativa e plena liberdade de pesquisa e opinião, constituía-se num importante núcleo de formação da ideologia “nacional-desenvolvimentista”, que impregnou todo o sistema político no período 1954-1964. Ele foi um dos formuladores desta ideologia, junto com Hélio Jaguaribe, Candido Mendes de Almeida, Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré etc. No ISEB, apoiou as propostas da CEPAL-Comissão Econômica para a América Latina, da ONU, e  publicou 2 livros que se tornaram clássicos: Introdução crítica à sociologia brasileira (1957) e A redução sociológica (1958).

 

Em 1960 entrou na política partidária, participando do diretório nacional do PTB-Partido Trabalhista Brasileiro. Em 1961 foi Delegado do Brasil na XVI Assembleia Geral da ONU, na Comissão de Assuntos Econômicos. No ano seguinte  candidatou-se a deputado federal na “Aliança Socialista Trabalhista”, formada pelo PTB e o PSB-Partido Socialista Brasileiro, quando obteve a 2ª suplência. Em seguida publicou o texto “Mito e verdade da revolução brasileira”, junto com seu manifesto ao PTB sugerindo que o partido renunciasse a “ideologia marxista-leninista”. Como jornalista, colaborou nos jornais “O Imparcial” (MG), “Última Hora”, “O Jornal” e “Diário de Notícias” (RJ). Seus artigos, analisando o marxismo, renderam-lhe viagens à URSS e China e diversas conferências internacionais.

 

De volta ao Brasil, escreveu uma série de artigos criticando o Partido Comunista, quando foi acusado de traidor e oportunista pelos colegas. Foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a criticar Stalin. Desde meados da década de 1950 já era um pensador respeitável com livros publicados em espanhol. Foi professor da EBAP-Escola Brasileira de Administração Pública, da FGV, e ministrou cursos no DASP-Departamento de Administração do Serviço Público. Em 1955 deu aulas como professor-visitante da Universidade de Paris. Neste ano, foi publicado no México seu livro Sociologia de la mortalidade infantil, que impressionou o grande sociólogo russo Pitirim Sorokin.

 

No período de agosto de 1963 a abril de 1964, foi deputado federal e  teve os direitos políticos cassados pelo golpe militar de 1964. Na ocasião foi acolhido por Luis Simões Lopes, presidente da FGV, como professor. Em 1966 recebeu um convite da USC-University of Southern California, onde passou a lecionar e só voltou ao Brasil algumas vezes como visitante. Em princípios da década de 1970 foi “visit-fellow” da Yale University e professor-visitante da Wesleyan University. Faleceu em Los angeles, em 7/4/1982, e deixou publicado alguns livros essenciais ao conhecimento de seu País: Sociologia industrial (1951), Cartilha brasileira do aprendiz de sociologia (1955), Introdução crítica à sociologia brasileira (1957), Condições sociais do poder nacional (1957), O problema nacional do Brasil (1960), A crise do poder no Brasil (1961), A redução sociológica (1964). Seu último livro -A nova ciência das organizações: uma reconceitualização da riqueza das nações (1981)- foi publicado pela Universidade de Toronto e só depois teve sua tradução publicada no Brasil.

 

Outro livro -Mito e realidade da revolução brasileira (1963)- ficou conhecido como “o livro proibido de Guerreiro Ramos”. Publicado no ano anterior ao golpe militar, foi incluído no “index” dos livros proibidos pela ditadura e só foi republicado em 2016 pela Editora Insular. Trata-se da exposição de sua tese sobre a necessidade de um caminho brasileiro para o socialismo, contrapondo-se à importação de modelos de revolução. Desse modo, foi um livro que desagradou tantos os militares golpistas como os políticos e intelectuais de esquerda, que ainda seguiam a cartilha dos comunistas soviéticos, através do Partido Comunista. Certamente, esta foi uma das razões para que o livro caísse no limbo da história.    

 

Foi um sociólogo diferenciado, que não se via entre os intelectuais em discursões acadêmicas. Via-se como “um sociólogo em mangas de camisa”, como costumava dizer. Sua área de trabalho era a organização e administração pública, como indica sua vinculação a Fundação Getúlio Vargas. Em 2010, o Conselho Federal de Administração instituiu o “Prêmio Guerreiro Ramos de Gestão Pública”, concedido aos destacados gestores do ano. Em 2014 foi publicado, pela FGV numa edição bilingue, uma série de entrevistas de importantes professores e pesquisadores brasileiros (7) e norte-americanos (9) com depoimentos sobre a pessoa e seu legado: Guerreiro Ramos: coletânea de depoimentos, organizada por Bianor Cavalcanti, Yann Duzert e Eduardo Marques. 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 04 de agosto de 2021

AS BRASILEIRAS : LYGIA CLARK

 

AS BRASILEIRAS: LYGIA CLARK

José Cominbos Brito

 

 

 

Lygia Pimentel Lins nasceu em 23/10/1920, em Belo Horizonte, MG. Pintora e escultora reconhecida como uma das mais destacadas artistas brasileiras do século 20, Foi uma das fundadoras do Movimento Neoconcretista, em 1959, e gostava de autointitular-se uma “não artista”, ou melhor ainda, uma “propositora”. Tinha como proposta a “desmistificação da arte e do artista e a desalienação do espectador”, cuja apreciação consistia num compartilhamento na criação da obra de arte.

 

Filha de uma família de juristas, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1947 e iniciou estudos na área artística sob a supervisão de Burle Marx. Em seguida mudou-se para Paris, onde viveu por 3 anos  (1950-1952) e teve cursos mantidos por importantes artistas: Fernand Léger, Arpad Szènes e Isaac Dobrinsky. Trabalhou com desenhos e teve suas primeiras pinturas a óleo. Realizou sua primeira exposição individual no Institut Endoplastique em 1952. No mesmo ano retornou ao Rio e expôs suas obras no MEC-Ministério da Educação e Cultura. Logo, passou a integrar o “Grupo Frente”, composto por Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Abraham Palatik, Lygia Pape e Hélio Oiticica. Reuniam-se no MAM e na casa do crítico Mario Pedrosa, constituindo-se no marco histórico do movimento construtivo no Brasil.

 

Em 1954 participou da Bienal de Veneza, com a série “Composições”, onde incorporou a moldura como elemento plástico em suas obras. A partir daí passou a trabalhar com instalações e “boy art”, uma manifestação da artes plásticas, onde o corpo do próprio artista pode ser utilizado como suporte ou meio de expressão. Em 1959, participou da I Exposição de Arte Neoconcreta, integrada por Ferreira Gullar, Amílcar de CastroFranz WeissmannLygia PapeReynaldo Jardim e Theon Spanudis. Sua proposta era que a pintura não se sustentava mais em seu suporte tradicional. Nas “Unidades, 1959”, moldura e “espaço pictórico” se confundem, um invadindo o outro quando pinta a moldura da cor da tela. É o que ela chama de “linha orgânica”.

 

Em 1960 lecionou artes plásticas no Instituto Nacional dos Surdos (RJ) e criou a série “Bichos”, construções metálicas geométricas que se articulam por meio de dobradiças e requerem a coparticipação do espectador. “Caminhando” (1964) é a obra que marca essa transição, onde o próprio participante realiza a obra de arte. Tal participação passa a ser constante em suas obras, levando-a a dedicar-se à exploração sensorial e a participar do Simpósio de Arte Sensorial, em Los Angeles em 1969. No ano anterior foi convidada pela Bienal Veneza a expor, em sala especial, toda a sua trajetória artística até aquele momento. Em seguida, decidiu mudar-se para Paris, onde viveu de 1970 a 1976. A partir daí sua arte tomou novo rumo, concentrando-se no desenvolvimento de experiências sensórias e seu uso terapêutico. Acreditava que arte e terapia andavam juntas. Assim, “com base em objetos manuseáveis que criava ou recolhia da natureza, como balões de ar, sacos de terra e água e até pedras, pensava ter o dom de curar os males da alma”.

 

Enquanto viveu em Paris, teve sessões de análise com o conhecido psicanalista Pierre Fédida e lecionou na Faculté d’Arts Plastiques St. Charles, na Sorbonne, de 1970 a 1975. Voltou ao Rio de Janeiro, em 1976 e intensificou o estudo das possibilidades terapêuticas da arte sensorial, trabalhando com objetos relacionais. Assumiu de vez este enfoque em suas obras e pouco depois estava proferindo palestra –“O método terapêutico de Lygia Clark”- no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1982). Dessa época em diante passou a diminuir o ritmo de suas atividades e publicou os livros Rio meu doce rio e Livro-obra (1983), uma obra aberta contendo estruturas manipuláveis, contando a trajetória de sua obra desde as primeiras criações até o final de sua fase neoconcreta.

 

A partir da década 1980 sua obra ganha reconhecimento internacional com retrospectivas em várias capitais internacionais e em mostras antológicas. Uma grande retrospectiva, com sala especial dedicada a ela e Hélio Oiticica, foi realizada em 1986, por ocasião do IX Salão de Artes Plásticas, no Paço Imperial do Rio de Janeiro. Esta foi sua última exposição em vida. Foi vitimada por um ataque cardíaco em 25/4/1988. Sua obra foi umas das mais valorizadas no mundo das artes. Em maio de 2013, a obra “Contra Relevo” foi arrematada num leilão em Nova Iorque por US$ 2,2 milhões, tornando-se a obra mais valiosa de um artista brasileiro. Em agosto do mesmo ano, a obra “Superfície Modulante” alcançou a cifra de R$ 5,3 milhões, num leilão promovido pela Bolsa de Arte de São Paulo.

Em 2014, o MoMA-Museum of Modern Art, de Nova Iorque, apresentou uma grande retrospectiva com 300 obras reunidas a partir de coleções públicas e privadas, englobando 4 décadas de sua carreira artística. Hoje ela conta com obras expostas em 18 museus do mundo. Ao longo da carreira realizou 136 exposições coletivas e 20 individuais no Brasil e no exterior. Seu legado artístico ficou registrado no livro  Lygia Clark: obra-trajeto, de Maria Alice Milliet, publicado pela Edusp, em 1992. Outros livros explorando sua arte: O espaço de Lygia Clark (1994), de Ricardo Nascimento Fabbrini; Relâmpagos com furor: Lygia Clark e Hélio Oiticia, vida como arte (2004) de Beatriz Scigliano Carneiro e Lygia Clark: linhas vivas (2013), de Renata Sant’Anna e Valquíria Prates e Lygia Clark: the abandonment of art, 1948-1988, numa bela edição ilustrada contendo toda sua obra.

 

LYGIA CLARK, ARTISTA E TERAPEUTA - VIDA E OBRA

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 28 de julho de 2021

OS BRASILEIROS: JOÃO CÂNDIDO

 

OS BRASILEIROS: João Cândido

José Domingos Brito

 

 

 

João Cândido Felisberto nasceu em Encruzilhada do Sul, RS, em 24/6/1880. Militar da Marinha e líder da “Revolta da Chibata”, em 1910, ficou conhecido como “Almirante Negro”. Filho de ex-escravos, entrou na Escola de Aprendizes Marinheiros de Porto Alegre, em 1895. Ao contrário da maioria dos marinheiros, que eram recrutados à força pela polícia, alistou-se como grumete em 10/12/1895, aos 14 anos, no Rio de Janeiro.   

 

Viajou bastante pelo Brasil e vários países do mundo nos 15 anos que esteve na ativa da Marinha. Boa parte das viagens eram de instrução em navios de guerra. A partir de 1908, alguns marinheiros foram enviados à Inglaterra para acompanhar o final da construção de navios encomendados pelo governo. Lá ficou sabendo do motim feito pelos marinheiros russos, em 1905, numa luta por melhores   condições de trabalho. Trata-se da revolta do Encouraçado Potemkin, que virou filme do diretor Sergei Einsenstein em 1925. Era um marinheiro competente, admirado pelos colegas e elogiado pelo comandante, devido ao bom comportamento e por ser um bom timoneiro. Era a pessoa talhada para liderar a “Revolta da Chibata”. O uso da chibata na Marinha foi abolido, por lei, em 1889. Porém o castigo continuou a ser aplicado, a critério dos oficiais, no contingente de 90% de marujos negros e mulatos. O clima de revolta contra esse abuso crescia na tripulação. 

 

Num clima de revolta, os marinheiros, liderados por João Cândido, tiveram audiência com o Governo na presença do Ministro da Marinha, Alexandrino de Alencar, reivindicando o fim dos castigos físicos. Mas nada foi providenciado e os marinheiros decidiram fazer uma sublevação pelo fim do uso da chibata em 25/11/1910. Antes porém, ocorre um fato que precipitou a revolta. 3 dias antes, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas, que não foram interrompidas mesmo após desmaiado, diante de toda a tripulação do navio Minas Gerais. A punição se devia ao fato de o marinheiro ter sido flagrado com uma garrafa de cachaça a bordo. 

 

Á noite do dia 22/11/1910, sabendo que o comandante, João Batista das Neves, dormiria fora do navio, os marinheiros planejaram a tomada de posse das armas, domínio dos oficiais em seus camarotes e o controle do navio, bem como dos demais ancorados na baia da Guanabara. No entanto, o comandante voltou mais cedo do que previsto e surpreendeu os marinheiros no início da revolta. Os ânimos acirrados de ambas as partes resultou no ferimento de um dos marinheiros pelo comandante. Um deles mais exaltado retrucou o ferimento com um tiro na cabeça do comandante e dá-se o combate nos navios Minas Gerais, Bahia e São Paulo com mais 2 oficiais e 3 marinheiros mortos.

 

João Cândido foi indicado pelos demais líderes como o comandante-em-chefe de toda a esquadra em revolta, composta por 6 navios. Acalmados os ânimos, o “Almirante Negro”, assim chamado pela imprensa, declarou ao Correio da Manhã: "As carnes de um servidor da pátria só serão cortadas pelas armas dos inimigos, mas nunca pela chibata de seus irmãos. A chibata avilta". Por 4 dias os navios de guerra Minas GeraisSão Paulo, Bahia e Deodoro apontaram seus canhões para a Capital Federal e mandaram um recado: "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira". A rebelião, envolvendo 2379 homens, terminou com o compromisso do governo em acabar com o uso da chibata e conceder anistia aos revoltosos. A anistia foi aprovada no dia 25 e publicada no Diário Oficial, mas não foi cumprida pelo governo. No dia 28 foi publicado um decreto permitindo a expulsão de marinheiros que representassem algum risco para a Marinha.

 

Pouco depois correu o boato que o Exército iria se vingar da humilhação sofrida pelos marinheiros e deu-se a eclosão de um novo motim entre os fuzileiros navais, na Ilha das Cobras, em 9/12/1910. Não tinha ligação com a Revolta da Chibata, mas lá se encontravam presos muitos marinheiros participantes da revolta. O novo motim foi reprimido com um bombardeio sobre pouco mais de 200 amotinados e serviu de justificativa para o governo implantar a lei marcial. João Cândido chegou a ordenar tiro de canhão sobre os marinheiros-fuzileiros amotinados para provar sua lealdade ao governo. Mas, não adiantou. Com a lei marcial, centenas de marinheiros foram dados como mortos ou desaparecidos e 2000 marinheiros foram expulsos da Marinha. Onze foram fuzilados a bordo do Navio Satélite, que levava 105 marinheiros rebeldes para serem jogados nos seringais do Acre.

 

Apesar de não ter participado deste 2º levante (se é que houve),  João Cândido foi expulso da Marinha e preso em 13/12/1910. Foi encarcerado num cubículo, onde 16 dos 17 companheiros de cela morreram asfixiados. No mês seguinte foi transferido para o Hospital dos Alienados, como louco, mas logo retornou à prisão. Foi solto em 1912, contando com a defesa do rábula Evaristo de Moraes, que atuou

de graça. A partir daí passou a viver precariamente, trabalhando como estivador na Praça XV. Em 1930, em meio a efervescência política com o “Estado Novo”, foi preso acusado de subversão, mas logo foi solto. Em 1959 voltou à sua cidade natal para ser homenageado, mas a interferência da Marinha proibiu a cerimônia. No mesmo ano sua memória foi resgatada pelo jornalista Edmar Morel, no livro A Revolta da Chibata. O livro teve 5 edições e praticamente ressuscitou o líder da Revolta que voltou a ser notícia meio século após o acontecimento.  Em seguida o velho marinheiro recolheu-se em São João de Meriti, onde levou uma vida pacata, adoeceu e morreu de câncer em 6/12/1969, aos 89 anos. Na década seguinte, os compositores Aldir Blanc e João Bosco prestaram-lhe homenagem com a música “O mestre-sala dos mares”, mas a censura não gostou e seu apelido “Almirante Negro” teve que ser mudado para “Navegante Negro”. Em 1982, o historiador Marcos Antônio da Silva publicou o livro Contra a chibata: marinheiros brasileiros em 1910, lançado pela editora Braziliense. Por esta época, a “Revolta da Chibata” ainda era tema de interessa geral, fazendo com que o livro de Edmar Morel fosse reeditado pela quarta vez, em 1986.

 

Tantas lembranças da Revolta e o heroísmo de seu líder, levaram o historiador e almirante Helio Leoncio Martins a publicar o livro A revolta dos marinheiros 1910, em 1988, que se constituiu na versão oficial da Marinha. O livro foi incluído na “Coleção Brasiliana”, vol. 384, e destaca os problemas gerais de interpretação histórica. Seu relato pretende adotar uma posição neutra quanto ao movimento e refuta o reconhecimento de João Cândido como seu líder maior e como herói. Em 2005, seu nome foi apresentado como projeto de lei nº 5874/05, inscrevendo-o no “Livro dos Heróis da Pátria”. Porém, foi arquivado porque tal homenagem só poderia se dar após 50 anos da morte da pessoa. Este requisito foi adquirido em 2019, mas até agora nenhum projeto de lei foi reapresentado.

 

Em novembro de 2007, o “Almirante Negro” foi homenageado com uma estátua nos jardins do Museu da República (antigo Palacio do Catete). Na ocasião foi exibido o filme “Memórias da Chibata”, de Marcos Manhães Marins e uma exposição fotográfica. No ano seguinte, na comemoração da “Abolição da Escravatura”, foi publicada a Lei nº 11.756, concedendo anistia “post mortem” ao líder da Revolta e seus companheiros. No entanto, a Lei foi vetada pelo governo na parte em que determinava a reintegração de João Cândido à Marinha. Tal ato imporia à União concessão de aposentadoria e pensão aos seus dependentes, bem como uma possível corrida de outras famílias em busca de reparação financeira. A Lei foi vetada por não apresentar a necessária fonte de custeio. Na realidade, apenas 2 famílias se apresentaram como descendentes destes marinheiros. 

 

Em novembro de 2008, a estátua do “Almirante” foi transferida para a Praça XV de Novembro, no centro do Rio, num evento contando com a presença do presidente Lula, familiares do marinheiro etc. A Marinha não compareceu alegando não poder comemorar, pois prezava a disciplina e a hierarquia. Em 2010 foi dado o nome “João Cândido” ao navio petroleiro da Transpetro, a pedido do presidente da República. A última homenagem que se tem notícia ocorreu em 2018 com a peça Turmalina 18-50: os últimos dias do Almirante Negro em terra, do dramaturgo Vinicius Baião.

 

A REVOLTA DA CHIBATA - EDUARDO BUENO

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 21 de julho de 2021

AS BRASILEIRAS : JOHANNA DÖBEREINER

 

 

AS BRASILEIRAS:  Johanna Döbereiner

José Rodrigues Brito

 

 

Johanna Liesbeth Kubelka Döbereiner nasceu em 28/11/1924, em Aussig, República Checa. Engenheira agrônoma, pioneira na área de biologia do solo. Trabalhou no Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas, o precursor da Embrapa Agrobiologia. Sua atuação possibilitou o avanço do programa Pró-Álcool, além de colocar o Brasil como o 2º maior produtor de soja do mundo. Seus  estudos e pesquisas foram decisivas na produção de alimentos mais baratos e saudáveis, garantindo-lhe a indicação ao Prêmio Nobel de Quimica,  em 1997.

 

Filha do cientista Paul Kubelka, professor de Química da Universidade de Praga e fabricante de produtos químicos de uso na agricultura. O pai foi preso por ajudar judeus na persguição nazista e a mãeParte superior do formulárioParte inferior do formulário -Margarete Kubelka-, morreu num campo de concentração. Após um periodo de perseguições, a familia se instalou na região de Munique, onde ela ingressou na Universidade de Munique, em 1947, no curso de agronomia. Lá conheceu o estudante de medicina veterinária Jürgen Döbereiner, com quem se casou em 1950. Em seguida o casal veio para o Brasil e ela foi trabalhar com o Dr. Álvaro Barcellos Fagundes no atual Centro Nacional de Pesquisa em Agrobiologia da Embrapa, em Seropédica (RJ), onde vivia.  

 

Em sua primeira publicação tratou da relação entre bactérias fixadoras do nitrogênio e plantas superiores e causou estranheza entre os colegas por não haver na literatura qualquer relação entre estes elementos. Naturalizou-se brasileira em 1956 e pouco depois foi fazer pós-graduação nos EUA, onde concluiu o mestrado em 1963, na Universidade de Universidade de Wisconsin-Madison. Em seguida foi à Paris fazer um curso de bacteriologia, no Instituto Pasteur. De volta ao Brasil, montou uma equipe e deu inicio as pesquisas sobre a fixação de nitrogênio atmosférico em gramíneas (milho, sorgo e cana-de-açucar. Ela e seus colegas descreveram mais de nove  espécies de bactérias diazotróficas, fato inédito para o Brasil na área agrícola

 

Sua contribuição científica consistiu em aproveitar as associações entre plantas e bactérias fixadoras de nitrogênio (FBN), contrária ao uso da adubação nitrogenada obrigratória e desenvolvendo uma tecnologia capaz de diminuir e até eliminar nossa dependência desse modo de cultivo. Ou seja, a FBN possibilita a substituição de adubos químicos nitrogenados oferecendo, assim, vantagens econômicas, sociais e ambientais. Isto fez com que o Brasil tivesse o menor custo de produção de soja do mundo. Em 1974 foi a primeira cientista a descrever a ocorrência de uma associação ente bactérias fixadoras de nitrogênio do gênero Azospirillum e a gramínea Paspalum notatum, em seguida tais bactérias foram descritas para o milho e plantas forrageiras. Em 1988 estas associações foram extendidas para a cana-de-açucar. Pode-se dizer que suas descobertas causarm uma revolução na agricultura brasileira e propiciaram uma poupança de 1 a 2 bilhões de dólares por ano.

 

Foi uma das cientistas estrangeiras que mais se apegou ao Brasil. Na década de 1980, um centro de pesquisas canadense convidou-a para trabalhar ganhando 5 vezes mais seu salário na Embrapa. “Sou extremamente grata ao País que me acolheu quando eu precisei. Por amor ao Brasil, continuo na Embrapa”. Certa vez uma repórter disse-lhe “Mas a senhora não é brasileira!”. A resposta veio rápida: “Minha filha, talvez, mais do que você. Porque sou brasileira por opção, e não porque nasci aqui”.

 

Em pesquisa realizada pela Folha de São Paulo, em 1995, foi  considerada a mulher brasileira mais citada pela comunidade científica mundial, e a 7ª considerando-se todos os cientistas do país. Ocupou a vice-presidência daa Academia Brasileira de Ciências, membro da Academia de Ciências do Vaticano e da Academia de Ciências do Terceiro Mundo. Foi agraciada com diversas premiações: prêmio Frederico Menezes Veiga (Embrapa, 1976), prêmio Bernardo Houssay da OEA  (1979); Prêmio de Ciências da UNESCO (1989), Ordem de Mérito de Primeira Classe da República Federal da Alemanha (1990); Prêmio México de Ciência e Tecnologia  (1992) e Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito (1994). Recebeu o título de doutora honoris causa da Universidade da Flórida (EUA) e da UFRJ.

 

Deixou mais de 500 artigos publicados nas principais revistas do mundo e teve participação destacada em mais de 60 seminários científicos internacionais. Exerceu a profissão até mesmo depois de ter sido diagnosticada com problemas neurológicos e veio a falecer em 5/10/2000. Seu colega e amigo, o geneticista Clodowaldo Pavan disse que “a contribuição de Johanna Döbereiner para a Ciência e o Brasil foi de um nível invulgar e por isso teve amplo reconhecimento internacional”. Disse bem: “amplo reconhecimento internacional”. Falta-lhe apenas o reconhecimento nacional, pois entre nós é uma ilustre desconhecida. Em reconhecimento ao seu trabalho, a Embrapa publicou o livro, uma fotobiogragia, Hanne - Johanna Döbereiner, uma vida dedicada à ciência, em 2018, produzida pela jornalista Kristina Michaelles, com ajuda do marido Jürgen Döbereiner.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 14 de julho de 2021

OS BRASILEIROS - MILTON SANTOS

 

MILTON SANTOS

José Domingos Brito

 

 

                                                                                                                                                                                                                      Milton Almeida dos Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, BA,  em 3/5/1926. Escritor, professor, jornalista, advogado, cientista e um dos maiores geógrafos do mundo. Considerado um dos mais destacados intelectual brasileiro, lutou contra o modelo de globalização vigente, que chamava de "globalitarismo", e propunha a construção de outra realidade possível, considerada mais justa e mais humana. 

 

Filho e neto de professores primários, apendeu álgebra e francês em casa. Aos 10 anos foi aluno interno do Instituto Baiano de Ensino, onde tomou gosto pela geografia com o prof. Oswaldo Imbassay. Aos 13 anos lecionava matemática e aos 15 geografia. Aos 22 formou-se em Direito pela UFBA, mas nunca advogou. Foi dar aulas de geografia no Colégio Municipal de Ilhéus. Por essa época tomou gosto pela política e entrou no jornalismo como correspondente do jornal “A Tarde” e depois editor sem abandonar a geografia. Seu 3º livro -Zona do cacau; introdução ao estudo geográfico- tornou-se um clássico como volume 296, da Coleção Brasiliana, em 1957.

 

Influenciado pela escola francesa do pós-guerra, seu interesse era centrado na geomorfologia e climatologia. Aos poucos foi se interessando pela demografia e por um entendimento global do meio físico-natural, incluindo a dimensão econômica nas relações cidade-campo, apartir da influência recebida do geógrafo Pierre George. Pouco depois do casamento com Jandira Rocha, mudou-se para Salvador tornando-se professor na Universidade Católica de Salvador, em 1956. No mesmo ano participou do Congresso Internacional de Geografia, no Rio de Janeiro, e travou contato com grandes geógrafos que já conhecia por suas obras. Na ocasião foi convencido por Jean Tricart a fazer um curso de doutorado no Instituto de Geografia da Universidade de Strasbourg, um dos mais renomados da Europa. Concluiu o curso em 1958, com a tese  O centro da cidade de Salvador, e retorna ao Brasil.  

 

De volta a Salvador, criou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da UFBA, sempre em contatos com os mestres franceses. Pouco depois tornou-se Livre Docente em Geografia Humana pela UFBA, participando ativamente da vida acadêmica, jornalística e política. Em 1961 o presidente Jânio Quadros convidou-a a participar da comitiva numa visita à Cuba e foi nomeado subchefe da Casa Civil na Bahia no curto mandato presidencial. Em 1963 foi eleito presidente da AGB-Associação dos Geógrafos Brasileiros e no mesmo ano o governador Lomanto Júnior convidou-o para  presidir a CPE-Comissão de Planejamento Econômico da Bahia. Enquanto isso, prestou concurso para lecionar na UFBA, mas teve os planos interrompidos pelo golpe militar, em abril de 1964.    

 

Foi preso pelo Exército, por 90 dias, e sofreu um AVC-Acidente Vascular Cerebral em meados de junho. Recuperou a saúde e foi solto após a intervenção do cônsul da França, em Salvador, Raymond Van der Haegen, junto aos militares. Havia recebido vários convites de universidades francesas e após 6 meses de prisão domicilar, partiu para a França já separado do primeiro casamento. Lecionou geografia na Universidade de Toulouse, achando que poderia voltar em breve com o fim da ditadura. Viveu 3 anos em Toulouse e mudou-se para Bordeaux, onde conheceu sua segunda esposa, Marie Hélene Tiercelin, entre suas alunas. Em maio de 1968, em plena efervescência politica, lecionava na Universidade Sorbonne e trabalhava como diretor de pesquisa em planejamento urbano no IEDES-Institut d’Étude du Développement Économique et Social. 

 

Em 1971 foi convidado para lecionar na Universidade de Toronto, no Canadá. Em seguida foi pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, onde trabalhou com Noam Chomsky. Foi aí que iniciou sua grande obra -O espaço dividido-, publicada em 1979. Em seguida fez um périplo por alguns paises latino-americanos, universidades europeias e africanas.  Na veneuela, foi diretor de pesquisas sobre planejamento urbano num projeto da ONU e manteve contatos com técnicos da OEA-Organização dos Estados Americanos. Tais contatos lhe proporcionou um convite para lecionar na Faculdade de Engenharia de Lima, Peru, ao mesmo tempo em que foi contratado pela OIT-Organização Internacional do Trabalho para elaborar um estudo sobre a pobreza urbana na América Latina.

 

Por esta época foram intensificados os estudos sobre os processos de urbanização das cidades do “terceiro mundo”, que renderam novas viagens: volta à Venezuela para lecionar na Faculdade de Economia da Universidade Central; organizou o curso de pós-graduação em geografia na Universidade de Dar es Salaam, na Tanzânia, onde viveu por 2 anos, e recebeu convite para retornar ao Brasil, para lecionar na Universidade de Campinas. Mas as condições políticas do Brasil na época não lhe eram favoráveis. A Columbia University, em Nova Iorque soube aproveitar melhor seu talento. Em fins de 1976 houve novos contatos para trabalhar no Brasil. Tentou a UFBA, mas ocorreram novos impedimentos. Recebeu convite para lecionar na Nigéria, mas a vontade de retornar ao Brasil era maior. Algumas colegas geógrafas brasileiras se empenharam em trazê-lo e conseguiram um posto como consultor de planejamento urbano na EMPLASA-Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano.              

 

Com seu retorno deu-se uma grande mudança estrutural no ensino e na pesquisa em Geografia no Brasil. Em 1977 passou a lecionar na UFRJ e no ano seguinte foi contratado como professor titular do Departamento de Geografia da USP, onde permaneceu até sua aposentadoria, em 1997, e continuou como professor convidado. Seu livro Por uma nova geografia, publicado em 1978, abriu caminhos para o entendimento de novas configurações urbanas e causou impacto na área. Suas atividades no ensino e execução de projetos lhe garantiu a conquista do Prêmio  Internacional de Geografia Vautrin Lud, em 1994, uma espécie de Nobel da Geografia. Foi o único latino-americano a receber a comenda.

 

Em meados de 1990, soube que portava um câncer de próstata, mas continuou na USP até 2000 e lançou mais 2 livros. No ano seguinte, a doença agravou-se e veio a falecer em 24/6/2001. Uma de suas expressivas contibuições ao estudo da geografia urbana foi derrubar as velhas noções de centro e periferia. Antes mesmo que o conceito de “Globalização” se generalizasse, ele já advertia para “a possibilidade do fim da cultura como produção orginal do conhecimento”. Não se trata de ser contra a globalização e sim contra o modelo vigente no mundo, que ele chamava de “globalitarismo”. Tais ideias foram apresentadas em seu último livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (2000). No penúltimo livro A natureza do espaço (1996) pretendeu estabelecer “uma teoria geral do espaço humano, uma contribuição da geografia e reconstrução da teoria social”.    

 

Além das diversas homenagens e premiações, recebeu títulos de Doutor Honoris Causa de 14 universidades no Brasil e exterior e deixou mais de 40 livros publicados, muitos deles em diversas edições. Devido a sua contribuição no ensino superior e afim de reverenciar sua memória, a ABMES-Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior instituiu, em 2004, o Prêmio Milton Santos de Educação Superior, outorgado a cada dois anos aos nomes indicados pelas instituições associadas. Uma biografia homenageando-o  foi publicada na revista eletrônica “Scripta Nova”, da Universidade de Barcelona, em 2002 e pode ser consultada no link El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos (ub.edu)

 

ENCONTRO COM MITON SANTOS

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 06 de julho de 2021

AS BRASILEIRAS : MARIA DO CARMO TAVARES DE MIRANDA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

 AS BRASILEIRAS: MARIA DO CARMO TAVARES DE MIRANDA

José Domingos Brito

 

 

Maria do Carmo Tavares de Miranda nasceu em Vitória de Santo Antão, PE, em 6/8/1926. Filósofa, pedagoga, teóloga e tradutora em 8 idiomas, incluindo o grego, latim, aramaico e hebraico. Era chamada por Gilberto Freyre, de quem foi assistente, de “filósofa de Paris”. Ocupou o cargo de professora livre docente em filosofia da educação da UFPE-Universidade Federal de Pernambuco por mais de 20 anos.

 

Teve sólida formação escolar na condição de filha do professor André Tavares de Miranda, que mantinha um educandário na cidade. Era irmã do conhecido colunista social Tavares de Miranda, da Academia Paulista de Letras. A formação acadêmica se deu com duas graduações (Letras Clássicas e Filosofia) na UFPE e dois títulos de doutora em Filosofia pela Universidade de Sorbonne, em Paris (1956), e pela Universidade de Friburgo, na Alemanha. Em 1966, junto com Gilberto Freyre, teve atuação destacada no Seminário de Tropicologia, mantido pela Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e assumiu sua direção com o falecimento do sociólogo, em 1987. Neste cargo coordenou a publicação dos Anais do Seminário e organizou o curso Fundamentos da Tropicologia, em 1988.

 

Tropicologia, em resumo, vem a ser uma nova área de estudo englobando a sociologia, antropologia e ecologia surgida em princípios do século XX para combater a ideia de que o trópico é inabitável pela raça caucasiana. A crença era que as mais brilhantes civilizações floresciam principalmente nas zonas temperadas. A faixa intertropical, seguindo este raciocínio, era vista como o habitat de negros e bugres incultos. Tanto o trópico seco se mostrava hostil à civilização, como o trópico húmido se constituía num pesadelo com suas endemias. Nestes ambientes imperava a pobreza devido indolência inerente às raças inferiores, as únicas que conseguiam sobreviver em tais condições. Tratam-se de conceitos, ou melhor, de preconceitos enraizados na sociedade elitista.  No Brasil, Gilberto Freyre foi um dos mais destacados estudiosos da Tropicologia.   

 

Enquanto coordenadora do mestrado em Filosofia da UFPE, no período 1979-1982, implantou a Biblioteca do Curso e o Seminário de Pesquisa Filosófica. Recebeu forte influência do filósofo alemão Martin Heidegger, de quem foi aluna, assistente e tradutora de sua obra Da experiência do pensar. Em 1977, publicou o livro Sobre o caminho do campo de Martin Heidegger, onde homenageia o mestre além de fazer uma apurada análise de sua obra. Em 1983 entrou para Academia Pernambucana de Letras e 3 anos depois aposentou-se como professora da UFPE, ocasião em que recebeu o título de professora emérita daquela universidade. A partir daí passou atuar como professora visitante e conferencista em universidades brasileiras e no exterior. 

 

Atuou como membro titular de diversas instituições: Sociedade Interamericana de Filosofia, Associação Latino-Americana de Filósofos Católicos, Instituto Brasileiro de Filosofia, Sociedade Helênica de Estudos Filosóficos, Associação Goerres Gesellschaft para o Desenvolvimento Científico, Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, Instituto de Conhecimento Hebraico, Academia Brasileira de Filosofia e Academia Internacional de Filosofia da Arte, em Atenas. Tais participações não a afastaram de sua cidade natal, no interior de Pernambuco. Era membro do Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão e deixou todos seus bens móveis (incluindo a biblioteca) e imóveis doados em testamento ao Instituto após seu falecimento em 20/12/2012.

 

Colaborou com diversas revistas nacionais e estrangeiras, com artigos sobre filosofia, educação e religião. Dentre os livros publicados, destacam-se: Educação no Brasil: esboço de estudo histórico (1960–2.ed. 1975-3.ed. 1978),      Fé hoje? (1966), Os franciscanos e a formação do Brasil (1969-2.ed. 1976),           O ser da matéria (1976), Conjugando memórias (1987), Caminhos do filosofar (1991), L’art, la science et la méthaphysique (1993), Aventura humana (1996), Papas: trajetória e testemunhos (2008).

 

 

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 30 de junho de 2021

OS BRASILEIROS - JOSÉ MINDLIN

 

OS BRASILEIROS: JOSÉ MINDLIN

José Domingos Brito

 

 

 

José Ephim Mindlin nasceu em São Paulo, SP, em 8/9/1914. Jornalista, advogado, editor, empresário, escritor e um dos maiores bibliófilos do mundo. Sua biblioteca com 40 mil livros raros foi doada, ainda em vida, à Universidade de São Paulo, constituindo-se na “Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin“, o maior acervo de livros sobre o Brasil.  

                                                                                                                     

Aos 15 anos trabalhou como repórter no jornal O Estado de São Paulo e em seguida entrou na Faculdade de Direito da USP-Universidade de São Paulo. Formado em 1936, viajou para Nova Iorque, onde realizou cursos de extensão universitária. De volta ao Brasil, trabalhou como advogado até 1949. Por esta época foi vice-presidente da Congregação Israelita de São Paulo e auxiliou muitos judeus perseguidos pelo nazismo. Dotado de espírito empreendedor, juntou-se a um grupo de amigos e fundou a Metal Leve S/A, fabricante de peças automotivas, em 1951. Foi uma empresa pioneira em pesquisa e desenvolvimento tecnológico e a primeira multinacional brasileira, com 7 mil funcionários e 2 fábricas nos EUA.

 

Em 1996, a Metal Leve foi vendida à multinacional alemã “Mahle” e Mindlin passou a se dedicar ao que mais gostava de fazer: colecionar livros raros e organizar sua biblioteca, com  ajuda de sua esposa Guita Mindlin, bibliotecária especializada em restauração de livros. Seu apego aos livros raros iniciou cedo. Aos 13 anos adquiriu o Discours sur l’histoire universelle, de 1740, de Jacques-Benigne-Bossuet e não parou mais. Perambulava pelos sebos de São Paulo e verificou que os livreiros não se comunicavam entre si. Um livro era vendido num sebo por um preço e noutro era vendido por 10 vezes mais. Ele passou a comprar barato num e vender caro noutro. Mas não queria dinheiro; trocava o seu com uma porção de livros, que foram acumulando em sua biblioteca. Quando os livreiros se deram conta de sua artimanha, passaram a uniformizar os preços e acabaram com seu lucrativo negócio. Mas, até aí ele já havia adquirido uma boa porção de livros mais ou menos raros.

 

Tempos depois resolveu abrir uma livraria (sebo chic), deu o nome “Parthenon” e passou a vender e comprar livros. Os bons livros vendidos tinham o nome e endereço do comprador registrado. Mais tarde, tais livros eram readquiridos por um preço bem mais caro. Está visto que seu negócio como livreiro não podia prosperar. Assim, logo fechou a livraria e prosseguiu no ramo da bibliofilia. Na década de 1970, Rubens Borba de Moraes, seu amigo e um dos maiores bibliófilos do mundo, resolveu vender 1/3 de sua biblioteca para uma universidade norte-americana. Na época Mindlin era Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia. Quando soube que a venda estava sendo articulada, procurou Rubens e disse-lhe que não permitiria  sua realização. A biblioteca teria que ser vendida para ele. Rubens contra-argumentou  que não poderia interromper a negociação, mas que ele, na condição de secretário de estado, poderia. Assim, Mindlin enviou ofício à universidade esclarecendo que aqueles livros eram parte do patrimônio histórico nacional e que não poderiam sair do País.

 

Pagou o preço já combinado com a universidade e assim sua biblioteca foi ampliada significativamente não apenas em termos de quantidade. A partir daí os dois grandes bibliófilos brasileiros passaram a trocar ideias sobre o destino de suas bibliotecas quando não estiverem mais por aqui. Concluíram  que a reunião daquele riquíssimo acervo deveria ficar em poder do Estado, aberto à consulta do público. Dito e feito, quando Rubens faleceu, em 1986, sua biblioteca foi incorporada a de Mindlin, que passou a negociar com a USP os termos da doação.

A doação foi concretizada em 2006, ano em que entrou para a Academia Brasileira de Letras. Na ocasião, declarou: “Nunca me considerei o dono desta biblioteca. Eu e Guita éramos os guardiães destes livros que são um bem público”. Em alguns livros colocou o “ex-libris” elaborado por sua filha: “Le ne fan riem sam”. Não faço nada sem alegria, era seu lema de vida.  

 

Em seguida teve início a construção do prédio da “Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin” no campus da USP, abrigando também o Instituto de Estudos Brasileiros. A biblioteca foi inaugurada em 25/3/2013 e entre as preciosidades do acervo, encontram-se a primeira edição de Os Lusíadas, de Luiz de Camões (1572) e os Triunfos, de Petrarca (1488), o livro mais antigo. Conta também com alguns originais e manuscritos de Graciliano Ramos (Vidas secas), Guimarães Rosa (Grande sertão veredas) e Rachel de Queiroz (O Quinze) e primeiras edições de Marília de Dirceu (1810), de Thomaz Antônio Gonzaga; A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo e O Guarani (1857), de José de Alencar.

 

Nunca teve atuação direta na política, mas participou como dirigente e conselheiro de diversos órgãos culturais e da administração pública: Conselho Superior da FAPESP-Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Conselho de Tecnologia da FIESP-Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Conselho do CNPq-Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, IPT-Instituto de Pesquisa Tecnológica, Comissão Nacional de Tecnologia da Presidência da República, entre outros. Colaborou também como membro de diversas instituições culturais: Academia Brasileira de Ciências, Museu da Arte Moderna do Rio de Janeiro e Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu Lasar Segal, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Sociedade de Cultura Artística de São Paulo etc. Como bibliófilo foi membro emérito da Diretoria da John Carter Library, dos EUA, uma das principais bibliotecas do mundo de livros raros e da Associação Internacional de Bibliófilos, em Paris.   

 

Apesar de não participar diretamente na política, mantinha firme oposição contra a ditadura e foi um dos poucos industriais paulistas que se recusou a colaborar com a OBAN-Operação Bandeirantes na repressão política logo após o AI-5 em 1968. Em meados da década de 1970, na condição de Secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, indicou o jornalista Vladimir Herzog para chefiar o Departamento de Jornalismo da TV Cultura. Em 1975, quando o jornalista foi assassinado nos porões da OBAN, ele pediu demissão do cargo e nunca mais teve atuação em cargos públicos.

 

Faleceu em 28/2/2010, aos 95 anos por falência múltipla de órgãos e no mês seguinte foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Ipiranga pelo Governo de São Paulo. Durante sua longa vida, colecionou inúmeras homenagens e títulos: doutor honoris causa da Brown University (EUA), Universidade de Brasília, FGV-EAESP, USP, UFBA, prêmio Juca Pato, da UBE-União Brasileira de Escritores, Prêmio Unesco, categoria cultura e Medalha do Conhecimento concedida pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Deixou uma biografia publicada em 1997, pela Cia. das Letras, numa bela edição com fotos de sua biblioteca, explicitando no título sua convivência com os livros: Uma vida entre livros: reencontros com o tempo e memórias esparsas de uma biblioteca.

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 23 de junho de 2021

AS BRASILEIRAS : ELIZABETH TEIXEIRA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

ELIZABETH TEIXEIRA

José Domingos Brito

Elizabeth Teixeira

 

 

 

 

Elizabeth Altino Teixeira nasceu em 13/2/1925, em Sapé, PB. Camponesa e ativista política como líder do movimento das “Ligas Camponesas”, em princípios da década de 1960. Viveu 17 anos na clandestinidade após o Golpe Militar de 1964 e foi “ressuscitada” pelo cineasta Eduardo Coutinho em 1984, com o filme “Cabra marcado para morrer”. Ficou conhecida como símbolo da resistência da mulher na luta pela reforma agrária e liberdade política.

 

O filme é um semidocumentário sobre a vida de seu marido, João Pedro Teixeira, líder das “Ligas Camponesas”, assassinado em 1962, cujas filmagens foram interrompidas em 1964 com o golpe militar. O filme foi retomado em 1981 com depoimentos dos camponeses que participaram da primeira filmagem e da viúva de João Pedro –Elizabeth Teixeira-, que assumiu a liderança do movimento até 1964, quando passou a viver escondida até 1981 e foi encontrada pelo cineasta. Assim, ela pode reencontrar alguns de seus 11 filhos dispersos desde 1964. Premiado no Festival de Berlim e no Festival Cine Realidade, de Paris em 1985, o filme recebeu outras premiações nacionais e internacionais, incluindo o prêmio Hours Concours do Festival de Gramado naquele ano. Foi considerado pela ABRACCINE-Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

 

Passou a infância numa família modesta, mas remediada com pai comerciante e estudou até o curso primário. Parou os estudos para ajudar a família trabalhando na mercearia do pai. Aí encontrou seu namorado João Pedro, que não foi aceito pela família pelo fato de ser negro e pobre. Aos 16 anos fugiu de casa para viver com ele no Recife. Envolvido no movimento sindical, ele participou da criação do Sindicato dos Trabalhadores da Construção e devido a isto teve dificuldades para encontrar emprego no Recife. A família teve que voltar a viver em Sapé, trabalhando na agricultura. Na década de 1960 participou do movimento “Ligas Camponesas”, institucionalizado em 1955 pelo advogado Francisco Julião, deputado estadual e defensor dos camponeses.

 

Em 1962, com o acirramento da luta sindical no campo, João Pedro foi assassinado numa emboscada de pistoleiros. Ela reuniu o pessoal das Ligas numa assembleia de mais de 2 mil camponeses e assumiu a liderança do movimento. Sofreu alguns atentados e algumas prisões afim de intimidá-la porém sem sucesso. Numa dessas voltas da cadeia para casa, encontrou a filha mais velha morta. Cometeu suicídio achando que a mãe havia sofrido o mesmo destino do pai. Após o golpe de 1964, tentaram incendia sua casa, mas não a encontraram. Ao saber do ocorrido fugiu pelo mato e conseguiu chegar ao Recife. Depois foi para João Pessoa procurar os filhos e foi presa por 4 meses.

 

Uma vez solta,  passou a viver na clandestinidade adotou outro nome e foi viver em São Rafael (RN) com um dos filhos. Os outros foram viver com os parentes. Para sobreviver passou a dar aulas às crianças pobres em troca de alimentação. Saiu da clandestinidade em 1981, quando Eduardo Coutinho encontrou-a com a ajuda de um dos filhos mais velho, jornalista vivendo em Patos (PB). Assim, o filme foi retomado e ela foi incorporada nas filmagens, assumindo o papel de protagonista no lugar do falecido marido. Auxiliada pelo cineasta, ela conseguiu reencontrar os filhos dispersos pelo Rio de Janeiro, Recife São Paulo e Cuba e foi beneficiada pela Lei da Anistia, em 1979.  

 

A partir daí pode-se dizer que nasceu de novo, agora no papel de uma senhora de fibra e convicta de sua atuação no movimento dos trabalhadores agrícolas 20 anos antes, uma sobrevivente do golpe de 1964. Devido a esta participação no filme o cineasta deu-lhe uma casa em João Pessoa (PB), onde passou a residir. Em seguida, com o sucesso do filme, passou a receber homenagens e convites para palestras em diversas instituições. Em 2006 foi agraciada com o “Diploma Bertha Lutz”, concedido pelo Senado Federal. No mesmo ano recebeu a “Medalha Epitácio Pessoa”, a maior comenda da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Em 2011, a casa em que viveu com João Pedro foi tombada e destinada a sediar o Memorial das Ligas Camponesas criado em 2008.           

 

Em 2012, a EDEPB-Editora da Universidade Estadual da Paraíba publicou uma bela e completa biografia –Eu marcharei na tua luta!: a vida de Elizabeth Teixeira, obra organizada pelas pesquisadoras Lourdes Maria Bandeira, Neide Miele  e Rosa Maria Godoi Silveira. Em 2017, ao completar 92 anos, o Memorial das Ligas Camponesas junto com o Centro de Comunicação , Turismo e Artes da UFPb e a Secretaria de Cultura do Estado promoveram a “Semana Elizabeth Teixeira” nos dias 13-18 de fevereiro, no Campus da UFPb, na Usina Cultural Energisa e na Escola de Formação João Pedro e Elizabeth Teixeira/MST em Lagoa Secas com uma extensa programação de homenagens, filmes, debates e palestras sobre seu legado e luta em defesa da reforma agrária. Dona Elizabeth Teixeira ficou conhecida como uma “Mulher marcada para viver”. 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 16 de junho de 2021

OS BRASILEIROS: ALEIJADINHO

 

 

OS BRASILEIROS: Aleijadinho

José Domingos Brito

 

 

Antônio Francisco Lisboa nasceu em Ouro Preto, MG, em 1738. Carpinteiro, arquiteto, entalhador e o mais destacado escultor do período colonial. Suas obras e esculturas em pedra-sabão, entalhes em madeira, altares, retábulos, igrejas e peças de arte sacra encontram-se em diversas cidades históricas de Minas Gerais. Filho da escrava Isabel e do português e mestre de carpintaria Manuel Francisco Lisboa. Com o pai e o pintor João Gomes Batista aprendeu as noções básicas de arquitetura, desenho e escultura.

 

Seus primeiros estudos, além de latim, religião e música, se deram com os padres de Vila Rica. Em meados do séc. XVIII, graças ao garimpo de ouro, a cidade foi palco de um movimento artístico, onde ele pode desenvolver as atividades de arquiteto e escultor. Porém, na condição de mestiço, seu talento não era reconhecido, nem seus trabalhos recebiam sua assinatura. Só mais tarde, quando a fama chegou a outras cidades e sua obra se encontrava em pleno esplendor, é que seu nome foi reconhecido não só como artista, mas também como animado festeiro e dançarino. Seu primeiro trabalho se deu em 1752 com um chafariz no Palácio dos Governadores de Ouro Preto. Em 1756 viajou para o Rio de Janeiro, onde conheceu grandes obras arquitetônicas, que vieram a influenciar suas obras. 2 anos após, esculpiu mais um chafariz no Hospício da Terra Santa, considerada a primeira obra no estilo “barroco tardio”.

 

Em seguida fez diversos trabalhos em igrejas, tais como a matriz de São João Batista (hoje, Barão de Cocais) e a fachada da Igreja do Carmo, em Ouro Preto. Sua primeira obra de vulto se deu em 1766 com a ornamentação da igreja da Ordem Terceira de São  Francisco, em Ouro Preto. Em princípios de 1770 organizou sua oficina, que foi regulada e reconhecida pela Câmara de Ouro Preto em 1772, e passou a comandar uma equipe de artesãos e dar pareceres sobre obras arquitetônicas de igrejas. Em 1977 foi diagnosticado com a doença hanseníase, deformando seus pés e mãos. No entanto, não deixou de trabalhar. A partir daí as peças foram talhadas com a ajuda dos auxiliares e quando seu talento era exigido, amarrou correias de couro nas mãos para segurar o cinzel, o martelo e a régua. O apelido “Aleijadinho” passou a vigorar a partir de 1790. Uma de suas obras mais expressivas -66 esculturas de madeira encenando a “Via sacra” em Congonhas do Campo- foi concluída em 1799. No ano seguinte e no mesmo local iniciou as esculturas dos “Doze Profetas” em pedra-sabão no adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, cuja planta imita o santuário de Bom Jesus de Braga, em Portugal.    

 

Em Ouro Preto a Igreja de São Francisco de Assis, considerada uma obra prima do barroco brasileiro, foi iniciada em 1776 e concluída em 1794. Além da planta da igreja, elaborou a talha; a escultura do frontispício; dois púlpitos com figuras de santos; pia batismal; altar principal com as imagens da Santíssima Trindade e dois anjos. A fachada conta um vistoso medalhão com a imagem do santo. Seu estilo é marcado pela presença do dourado e repleto de detalhes, como arabescos e “rocalhas” imitando rochedos, grutas e produtos brutos da natureza, construídas com pedras, conchas etc. Os anjos e querubins têm formas arredondadas; as torres apresentam um recuo em relação à fachada das igrejas, constituindo-se num ícone do barroco brasileiro.   

 

Sua vida é cercada de lendas e controvérsias, pois todos os dados disponíveis foram extraídos de uma biografia escrita em 1858 por Rodrigo José Ferreira Bretas, 44 anos após sua morte 18/11/1814. Os críticos tendem a considerá-la um pouco fantasiosa; acham que sua personalidade e obra foi manipulada e romantizada com o intuito de elevá-lo à condição de ícone da brasilidade. No entanto, é o único registro existente, sobre o qual foram feitas as biografias posteriores. Após sua morte, passou por um período de relativo obscurecimento, não obstante ter sido comentado por alguns viajantes e eruditos na primeira metade do séc. XIX, como Auguste de Saint-Hilaire e Richard Burton. A fama do artista voltou com força em princípios do séc. XX através das pesquisas de Affonso Celso e Mário de Andrade.

 

Os modernistas, engajados num processo de criação de um novo conceito de brasilidade, encararam-no como um paradigma nacional: um mulato, símbolo do sincretismo cultural e étnico brasileiro. Mário de Andrade, no texto Aleijadinho (1928), entusiasmado com sua história e obra, chegou a criticar os europeus que comentavam suas obras sem considerá-lo um gênio. A partir dessa época muita bibliografia foi produzida nesse sentido, criando uma aura assumida pelas instâncias oficiais da cultura nacional. Tais estudos foram ampliados posteriormente por pesquisadores, como Roger Bastide, Gilberto Freyre, Rodrigo Melo Franco de Andrade entre outros. O artista na opinião de alguns críticos: German Bazin louvou-o como o “Michelangelo brasileiro”; Lezama Lima acha que ele é “a culminação do Barroco americano”; Carlos Fuentes considera-o o “maior ‘poeta’ da América colonial”; Regis St. Louis destaca-o na história da arte internacional; John Crow coloca-o ao lado dos criadores mais dotados deste hemisfério em todos os tempos.   

 

A quantidade de obras que lhe foram atribuídas tem variado ao longo do tempo, devido mesmo ao valor que adquiriram no mercado. Um catálogo geral publicado por Marcio Jardim em 2006, conta com 425 peças. Um nº muito superior as 163 obras contadas em 1951 numa primeira catalogação. Um estudo realizado por Myriam de Oliveira, Antonio Batista dos Santos e Olinto Rodrigues e publicado pelo IPHAN-Instituto do Patrimônio Artístico Nacional, em 2003, contestou centenas dessas atribuições. Guiomar de Grammont não acredita nestes números e alegou ter “razão para desconfiar que existe um conluio entre colecionadores e críticos para valorizar obras anônimas". Independente dessa controvérsia, seu prestígio junto à crítica especializada acompanha seu prestigio entre os leigos. Em 2007 o Centro Cultural Banco do Brasil realizou a exposição “Aleijadinho e seu tempo: fé engenho e arte”, atraindo um público recorde de 968.577 visitantes.

 

Sua história já foi retratada no cinema e na TV. Em 1915 Guelfo Andaló dirigiu a primeira cinebiografia; em 1968 foi interpretado por Geraldo Del Rey no filme Cristo de Lama; por Maurício Gonçalves no filme Aleijadinho:  paixão, glória e suplício (2003) e Stênio Garcia num Caso Especial da TV Globo. Em 1978 foi tema de um documentário -O Aleijadinho- dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e narrado por Ferreira Gullar. Em 1968 foi inaugurado o “Museu Aleijadinho”, em Ouro Preto, onde é realizada regularmente a “Semana do Aleijadinho”, evento reunindo artistas e historiadores com palestras e exposições. Dentre suas várias biografias, destacam-se: O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil (Record, 1963), de Germain Bazin; Vida e obra de Antônio Francisco Lisboa: o Aleijadinho (Cia. Ed. Nacional, 1979), de Sylvio Vasconcellos; O Aleijadinho: sua vida, sua obra, seu gênio (Difel, 1984), de Fernando Jorge; Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói (Civilização Brasileira, 2008), de Guiomar de Grammont.

 

Documentário – O Aleijadinho

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 09 de junho de 2021

AS BRASILEIRAS: MARIA DA CRUZ

 

AS BRASILEIRAS: Maria da Cruz

 

 

 

 

Maria da Cruz Porto Carreiro nasceu em Penedo, comarca de Alagoas, na época pertencente ao bispado de Pernambuco, em princípios do século 18. Sabe-se que era filha do capitão-mor de Sergipe del Rei, Pedro Gomes de Abreu, e ficou viúva do paulista Salvador Cardoso de Oliveira, em 1734, quando passou a administrar a grande propriedade da família no sertão de Minas Gerais, local hoje uma cidade que leva seu nome: Pedras de Maria da Cruz. Foi uma mulher que não consta na lista das heroínas brasileiras, mas liderou uma revolta -“Sedição de 1736”-, conhecida na historiografia como “Motins do Sertão” contra os impostos de Portugal, que durou 5 meses e abalou o sertão daquelas plagas.

 

Sua história confunde-se com o mito criado em seu entorno, tornando-a uma figura emblemática na História do Brasil. Porém conta com dados obtidos em registros cartoriais e arquivos históricos que asseguram certa veracidade. Foi citada por Guimarães Rosa, numa passagem do romance Grande Sertão: veredas:  “Mas, dali por diante, eu queria encostar direto com as ordens de Titão Passos -Ele é meu amigo... Diadorim no meu ouvido falou- Ele é bisneto de Pedro Cardoso, transneto de Maria da Cruz”. Os primeiros dados biográficos encontram-se no livro História média de Minas Gerais, escrito em 1918 por Diogo de Vasconcelos e publicado pela Imprensa Oficial, apresentando-a como uma mulher independente, culta, corajosa e benemérita junto aos seus criados.

 

Tais dados são confrontados com outras histórias apresentando-a como “Maria da Cruz da Perversidade”, dado o rigor no trato com seus empregados e escravos. Estes dois retratos receberam um tratamento histórico mais apurado com a pesquisa realizada pelas historiadoras Angela Vianna Botelho e Carla Anastasia, que resultou no livro D. Maria da Cruz e a sedição de 1736, publicado em 2012 pela Editora Autêntica. Assim, é possível traçar um esboço biográfico mais condizente com a realidade. Na época Portugal intensificou os impostos cobrados dos garimpeiros nas “minas gerais”. Já havia imposto o “quinto dos infernos”, 20% da riqueza obtida na região e que resultou na “Revolta de Vila Rica”, comandada por Felipe dos Santos, em 1720.

 

Tal imposto não se aplicava ao sertão, que cobrava apenas 10% da produção local. Em 1735, a coroa portuguesa decidiu amentar os impostos no sertão, mas encontrou resistência na disposição de Maria da Cruz, que não admitiu a cobrança e liderou a “Sedição de 1736”.  O primeiro motim eclodiu em março no Arraial de Capela das Almas. O segundo se deu em maio no sítio de Montes Claros. Em agosto deu-se a batalha final com 900 homens, a pé e a cavalo, e 500 índios cativos armados com arco e flecha, que entraram no Arraial de São Romão, onde se deu o embate. Após 4 meses de lutas e muitas mortes, foi presa junto com o filho Pedro Cardoso, um dos líderes da revolta. Foram levados para Vila Rica e pouco depois para uma fortaleza no Rio de Janeiro, devido a importância dos presos e da revolta causada.

 

Aí ficaram presos mais de um ano e foram transferidos para uma fortaleza mais segura em Salvador, em 1738. Mãe e filho foram julgados pelo Tribunal da Relação da Bahia. Todos os bens da família foram confiscados e a penalidade do filho foi o degredo para a África, em Moçambique, onde reconstruiu a vida como rico minerador e tornou-se capitão-mor do Zimbábue. A mãe foi condenada a pagar uma multa de 100 mil réis e 6 anos de desterro na África. No entanto, pelo fato de ser mulher, viúva e já ter sofrido a perda dos bens, além das prisões em Vila Rica, Rio de Janeiro e Salvador, foi realizado um movimento em sua defesa com uma carta de clemência enviada ao Rei Dom João V. A pena foi comutada e  ela pode retornar ao povoado em 1739.

 

Mas o perdão real não impediu que seus bens permanecessem confiscados. No entanto, devido talvez à sua origem nobre e a intercessão de amigos e parentes distantes, a carta de perdão citava a possibilidade de reaver suas posses, assinalando que na "restituição às suas fazendas, use dos meios ordinários". Assim, anos depois, foi contemplada com uma “carta de sesmaria”, em 1745, medindo “três léguas e meia em quadra”. Ou seja, se uma légua equivale a 6 km., sua propriedade passou a conter “apenas”  21 km². Naquela época ainda era um sítio de bom tamanho e aí passou a viver com os 6 filhos restantes: 4 homens e duas mulheres, até 23/6/1760, quando veio a falecer.   

 

No livro de Diogo de Vasconcelos, ela é descrita como uma mulher bonita, alta e corajosa.  Em sua descrição, o autor caprichou na letra e criou uma obra literária cativante: “O tranquilo esquecimento apagou seu nome conservado apenas no velho e obscuro arraial, à beira do grande rio”. Ao descrever a pessoa, também não deixou por menos: “têmpera varonil não lhe tirava a natural doçura, e as maneiras de seu trato, realçadas pela posição, atraíam-lhe o afeto dos parentes e o respeito de todos”. Ao descrever o ato da prisão, produziu um texto comovente. Saiu de casa ao som do "alarido e pranto das mulheres, e da consternação de todos, imperturbável, com passo firme, contendo a dor que a enlouquecia, dirigiu-se ao porto pela mão do filho e saltou a barca... jamais traiu a própria dignidade, recolheu-se, porém, ao baldaquim, cerrou as cortinas e só aí se desfez em pranto".

 

Está visto que o autor, entre fatos colhidos e o mito criado, fez um retrato literário de dona Maria da Cruz, em 1918. Já o citado livro publicado em 2012, restabeleceu alguns pontos nebulosos da história clareando os fatos. Certamente este livro teve como fonte relevante a dissertação de mestrado, realizada por Alexandre Rodrigues de Souza, em 2011: “A dona do sertão: mulher, rebelião e discurso político em Minas Gerais no século XVIII”, apresentada na UFF-Universidade Federal Fluminense. A dissertação foi transformada em artigo - A rebelde do sertão. Maria da Cruz e o motim de 1736-, publicado na revista “Varia História”, vol. 29, nº 50, de agosto de 2013, e pode ser consultado no link https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752013000200005


José Domingos Brito - Memorial domingo, 06 de junho de 2021

OS BRASILEIROS: FERNANDO DE AZEVEDO

 

 

OS BRASILEIROS: Fernando de Azevedo

Seus pais –Francisco Eugênio de Azevedo e Sara Lemos de Almeida- propiciaram-lhe ro

busta formação escolar. Estudou no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, RJ, e recebeu aulas nas áreas de letras clássicas, língua e literatura grega e latina, além de poética e retórica. Em seguida mudou-se para São Paulo e ingressou na Faculdade de Direito. Nunca exerceu a advocacia e dedicou-se, desde os 22 anos, integralmente à educação como professor de latim e psicologia no Ginásio do Estado, em Belo Horizonte; de latim e literatura na Escola Normal de São Paulo; de sociologia educacional no Instituto de Educação da USP; de sociologia e antropologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e professor emérito desta faculdade.

Paralelo ao exercício do magistério, atuou na direção de diversos órgãos e serviços educacionais: Diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1926-30) e do Estado de São Paulo (1933), Presidente da Associação Brasileira de Educação (1938), Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo (1941-42), Secretário de Educação e Saúde do Estado de São Paulo (1947), Diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais (1956-61) Secretário Municipal de Educação e Cultura de São Paulo (1961) e fundou e dirigiu a Sociedade Brasileira de Sociologia (1935-60). Uma pessoa pode ter ocupado tantos cargos na vida pública cumprindo apenas uma função burocrática. Não é o seu caso, uma vez que projetou alguns destes órgãos na administração pública e na estrutura social.

Em 1931 fundou e dirigiu, por uns 15 anos, na Companhia Editora Nacional a “Biblioteca Pedagógica Brasileira”, incluindo a série “Iniciação Científica” e a “Coleção Brasiliana”, que deu novo impulso à Editora. Acredita-se que seu crescimento se deu em paralelo ao desenvolvimento do ensino secundário a partir da década de 1940 com a ampliação da rede de ginásios e intensificado na década de 1950 com a criação novas escolas. Não por acaso, a Editora foi adquirida pelo IBEP-Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas, em 1980, constituindo-se num dos maiores grupos editoriais do País. Como jornalista atuou no “O Estado de São Paulo” com artigos abordando a educação pública e temas fundamentais do ensino em todos os níveis, iniciando uma campanha por uma nova política de educação e criação de universidades no Brasil. Em 1933, enquanto Diretor Geral da Instrução Pública em São Paulo, promoveu reformas fundamentais, consubstanciadas no Código de Educação.

Junto com Anísio Teixeira, defendia com fervor que a formação do professor escolar tinha que ser feita em nível universitário. Quando a USP foi criada, em 1934, ele incluiu o Instituto de Educação, que ficava na Praça da República, como uma das unidades daquela universidade. Acreditava que só assim podia-se falar numa ciência pedagógica adaptada ao Brasil. Foi pioneiro ao disseminar o dito “Educação é um direito do povo e um dever do Estado”. Em 1970, aos 76 anos fez a doação de sua biblioteca e arquivo ao IEB-Instituto de Estudos Brasileiros, localizado na USP, com mais de 16 mil itens entre livros, fotos, correspondência, recortes e documentos em geral. Em junho de 2019, foi realizado o evento “Educação no IEB: Interfaces possíveis com o acervo Fernando de Azevedo”, reunindo especialistas de diversas universidades do País. Além desse encontro, foi realizada a exposição “Em Defesa da Educação Pública: Fernando de Azevedo no IEB (1927-1968)”, que permaneceu aberta ao público por 4 meses.

Publicou 26 livros, com destaque para: Páginas latinas (1927), A reconstrução educacional do Brasil (1932), Novos caminhos e novos fins (1934), A cultura brasileira, (em 3 volumes 1943), A educação e seus problemas (1952), Sociologia educacional (1959), Figuras do meu convívio (1961) e A cidade e o campo na civilização industrial e outros ensaios (1962). Tais obras lhe garantiram uma cadeira na ABL-Academia Brasileira de Letras, em 1967. Seu legado garantiu também algumas homenagens e condecorações: Prêmio Machado de Assis, da ABL (1943), Cruz de Oficial da Legião de Honra, da França (1947), Prêmio Visconde de Porto Seguro (1964) e Prêmio Moinho Santista em Ciências Sociais (1971).

Em 2010 teve seu nome incluído na “Coleção Educadores”, do MEC-Ministério da Educação e Cultura, numa obra publicada por Maria Luiza Penna, regatando sua trajetória e relevantes aspectos de seu trabalho. Em termos biográficos mais precisos, ressalta-se o artigo – Fernando de Azevedo: o sociólogo -, publicado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, na Revista do IEB-Instituto de Estudos Brasileiros, nº 37, de 1994. Os interessados em conhecê-lo através dele mesmo, podem recorrer às suas memórias: História da minha vida, publicada em 1971, três anos antes de seu falecimento em 18/9/1974.

 

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Clique na imagem abaixo para assistir ao vídeo “A importancia da Fernando de Azevedo para a educação, por Antônio Cândido”

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 15 de março de 2021

OS BRASILEIROS: MADAME SATÂ (JOSÉ DOMINGOS BRITO É COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Madame Satã

João Francisco dos Santos nasceu em 25/2/1900, em Gloria do Goitá, PE. Cozinheiro, segurança, artista transformista e personagem da vida noturna e marginal da Lapa carioca em meados do século passado. Foi considerado o “homossexual mais macho” do Brasil, casado com mulher e pai de 6 filhos adotivos, que brigava com a polícia e defendia os mais fracos e prostitutas na rua. O apelido “Satã” surgiu no carnaval de 1938 e foi premiado num concurso de fantasia, promovido pelo bloco “Caçadoresde Veado”, no Teatro República.

Criado numa família humilde de 18 filhos, perdeu o pai aos 7 anos, deixando a mãe numa situação precária. Para ajudar na manutenção da família, o garoto foi trocado por uma égua com um criador de cavalos, que lhe prometeu casa e estudo. Não cumpriu o prometido e empregou o garoto em sua fazenda. No ano seguinte, numa viagem até Itabaiana, PB, o garoto conheceu Dona Felicidade, que incentivou-o a fugir da fazenda e ir morar com ela no Rio de Janeiro, onde montou a pensão “Hotel Itabaiano”. Ai passou a trabalhar na condição de semiescravidão. Insatisfeito com essa vida, fugiu de novo em 1913 e passou a viver na Lapa. Vivendo na rua, pensões, bares etc., conseguiu emprego de vendedor ambulante de pratos e panelas, bem como serviços de cozinha, Foi também segurança, garçom, cozinheiro e capoeirista.

Nesse ambiente fez amizade com “Sete Coroas”, o maior malandro e “cafetão” da época. Em 1922 decidiu ser artista, influenciado pela companhia francesa “Ba-ta-clan”, que passou pelo Rio apresentando seu teatro de revista. Em 1923, com falecimento do malandro, Satã assumiu seu “posto” na Lapa e deu início a prodigiosa carreira de malandro e uma incipiente carreira de artista transformista nas boates e bares do bairro. Por esta época foi cozinheiro na “Pensão do Catete”, onde conheceu a atriz Sara Nobre, que o apresentou ao mundo do teatro. Trabalhou por algum tempo no espetáculo “Loucos em Copacabana”, interpretando a “Mulata do Balacochê”. Sua primeira briga deu-se com um vigilante chamando-o de “veado”, em 1928. O vigilante morreu ao cair e bater a cabeça no meio-fio da rua. Foi preso e passou mais de 2 anos na Ilha Grande. Absolvido, alegando legítima defesa, pretendeu mudar de vida e casou com Maria Faissal, em 1934, com quem teve 6 filhos adotados.

Mais tarde, um policial irmão do vigilante morto na briga, impediu-o de entrar na boate Pigalle, que resultou numa briga. O policial levou uma surra e Satã foi preso em flagrante, amargando mais 2 anos de prisão. Pouco depois de sair da prisão, foi tomar um aperitivo no Bar Canaã e encontrou um sargento do Exército, que forçou uma troca de copos: cada um deveria tomar a bebida do outro. Como Satã não gostava de militar, recusou a troca e o sargento não suportou a desfeita. Entraram em luta e o sargento disparou-lhe 6 tiros. Nenhum acertou-o e o sargento fugiu. Satã perseguiu-o e cortou-lhe a bunda com uma navalha. Por esta agressão pegou mais 4 anos de prisão. Ao ser libertado decidiu montar família; adotou uma filha e abriu uma lavanderia. Na ocasião um homossexual foi morto nas redondezas e ele foi preso como suspeito. Foi torturado por 3 dias para confessar um crime que não praticou e ficou 2 dias preso. Fechou a lavanderia e abriu uma pensão, onde abrigava prostitutas e foi se firmando no negócio. Logo, chamou a atenção da polícia alegando que ele estava praticando lenocínio.

Chamado a depor na Delegacia, foi interrogado e levou um tapa do delegado. Satã revidou; levou uma grande surra dos policiais presentes e ficou preso por um ano e meio. Em seguida houve mais uma briga com a polícia. Conta-se que o delegado Frota Aguiar o perseguia constantemente. Satã ligou para ele negando as acusações que lhe eram imputadas. O delegado reagiu dizendo que ia dar-lhe uma surra e prendê-lo. Enfurecido, Satã disse-lhe: “Tá bem, eu vou aí. Mas saiba que eu vou quebrar-lhe a cara”. Cumpriu a ameaça; quase morreu de tanto apanhar dos policias e foi preso de novo. Virou freguês da prisão em Ilha Grande e mantinha bom relacionamento com outros presos e a administração do presídio. Aí trabalhava na cozinha desde sua primeira passagem. Em 1943 resolveu fugir, atirando-se no mar e nadando até a praia do Leblon. Exausto, acabou sendo preso e voltou ao presídio, de onde saiu em 1946. No mesmo ano teve que enfrentar 12 soldados da Aeronáutica, a pedido de sua amiga Nilsa. Os soldados não queriam pagar pelo “serviço”. A briga se prolongou até a Taberna da Glória com golpes de capoeira e a navalha atemorizou os soldados. Na delegacia, o inspetor foi rude no inquérito e acabou levando uns socos, resultando em mais uma prisão de 19 meses.

Em princípios dos anos 50 passou a viver numa rotina mais tranquila e voltou a trabalhar em shows imitando Carmen Miranda. Mas em seguida foi acusado de receptação e pegou mais 4 anos de cadeia. Esta prisão foi emendada com outras acusações e falhas no sistema carcerário, prolongando a prisão. Em 1955 deu-se a famosa briga com o sambista Geraldo Pereira. Conta Satã que foi ofendido e chamado para a briga. Com apenas um soco e uma queda o sambista veio a falecer. Laudos médicos inocentaram Satã da morte do sambista, alegando que a causa foi um derrame cerebral. Mas a lenda –que ele havia matado um cara com apenas um soco- se espalhou rápido e ampliou ainda mais sua fama de valente. Esta foi, talvez, sua última prisão, que durou até 1965, quando decidiu largar de vez a “vida bandida”, abandonar a Lapa e passou a viver com a família num lugar conhecido: a Ilha Grande, na Vila do Abraão. Ao longo da vida Satã passou quase 28 anos (intercalados) na prisão. Passou por 29 processos e foram lhe atribuídos cerca de 100 assassinatos e mais de 3 mil brigas.

Já envelhecido, voltou a fazer o que sabia: cozinhar para fora a pedido dos clientes, fazer faxina na casa de ex-policiais e funcionários do presídio etc. Tempos depois, em 5/5/1971, foi entrevistado em sua casa pela turma do “Pasquim”: Millôr Fernandes, Paulo Francis, Sergio Cabral, Jaguar, Fortuna, Chico Júnior e Paulo Garcez. Os interessados na entrevista podem acessá-la clicando aqui. A longa entrevista “ressuscitou” sua fama e recolocou-o no “palco”, vindo a fazer parte de algumas peças de teatro e shows. Na esteira da entrevista, foi lançado em 1972 o livro Memórias de Madame Satã, escrito por Sylvan Paezzo e, em 1974, o filme “Rainha Diaba”, dirigido por Antonio Carlos Fontoura, com Milton Gonçalves no papel-título. Outro filme, -“Madame Satã”-, abordando sua vida antes de receber o famoso apelido, foi lançado em 2002 dirigido por Karin Aïnouz, com Lázaro Ramos no papel-título. Em 2015 este filme entrou na lista, da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, dos 100 melhores filmes brasileiros.

O epílogo de sua vida se deu princípios de 1976, quando foi encontrado num hospital de Angra dos Reis, internado como indigente. Ao saber do fato, Jaguar resgatou-o e levou para um hospital em Ipanema, mas veio a falecer em 12/4/1976, devido a um câncer pulmonar. Porém, Jaguar disse em entrevista que ao encontrá-lo “ele estava com 47 quilos, metade de seu peso normal. Naquele tempo, em 76, não se falava ainda disso, mas tenho certeza de que ele morreu foi de Aids”. Em 1985 foi lançada sua biografia Madame Satã: com o diabo no corpo, escrita por Rogério Durst. O autor conta que este livro caiu nas mãos de Chico Buarque, que anos depois lançou sua “Opera do Malandro”. Em 1990, a Escola de Samba Lins Imperial desfilou com samba-enredo “Madame Satã”.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 08 de março de 2021

AS BRASILEIRAS: DONA BEJA (JOSÉ DOMINGOS BRITO É COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

AS BRASILEIRAS: Dona Beja

Ana Jacinta de São José nasceu em 2/1/1800, em Formiga, MG. Personalidade histórica criada em Araxá e famosa pela beleza, conquistas e fortuna amealhada em sua vivência com homens da Corte Imperial. Era uma “cortesã”, como se dizia de modo educado e antigo. Recebeu o apelido “Beja” de seu avô, comparando-a com a doçura e beleza da flor “beijo”. Filha de Maria Bernarda dos Santos e pai ignorado, chegou na cidade de Araxá em 1805 em companhia da mãe e avô, onde passou a viver, encantar os homens e causar ciúmes e inveja nas mulheres.

Ainda jovem, apaixonou-se pelo fazendeiro Manoel Fernando Sampaio, que deu em noivado, mas não chegou ao casamento. Em 1815 foi raptada pelo ouvidor do rei, Joaquim Inácio Silveira da Motta, com quem passou a viver como amante por 2 anos em Paracatu. Ao tentar evitar o rapto, seu avô foi morto no embate. Viveu com o ouvidor até 1817, quando D. João VI solicitou seu retorno ao Rio de Janeiro. De volta à Araxá, não foi tratada como vítima e sim como sedutora de comportamento duvidoso. Com alguma riqueza amealhada neste período, passou a exercer fascínio entre os homens e tornar-se conhecida personalidade na região, porém indesejada e marginalizada pela sociedade.

Construiu 2 casas: uma na cidade, que não atendia clientes em busca de sexo e outra nos arredores da cidade, um luxuoso bordel, que ficou conhecido como a “Chácara do Jatobá”. O local passou a atrair homens de outras regiões, que lhe cobriam de dinheiro, joias e pedras preciosas. Sua fama chegou ao ponto em que ela podia escolher seus parceiros. Porém, caso não pudesse evitar a recusa, criou um artificio junto com seu amigo Fortunato, o boticário local, chamado “remédio do sim e do não”. Quando não queria transar com um homem, mas não podia recusar devido a sua riqueza, colocava em sua bebida a poção do “não”. Isto fazia com que o homem brochasse, o ocorrido ficava apenas entre o casal e ela recebia o pagamento como se o fato tivesse sido consumado. No caso do uso da poção do “sim”, dava-se o oposto.

Conta a lenda que ela tomava banho diariamente na “Fonte da Jumenta”, com uma água milagrosa que proporcionava saúde e beleza, além de estar associada às virtudes afrodisíacas. Independente da lenda, o fato é que Araxá ressurgiu no século XX como cidade associada às águas locais, atraindo turistas à região. Conta-se, também, que certa vez seu antigo noivo Manoel apareceu na Chácara e tiveram um breve namoro. Engravidou e deu à luz uma menina, mas ela não aceitou viver com o antigo noivo e por isso sofreu uma emboscada de dois negros. Levou uma surra e ficou bastante machucada. Ao saber que a emboscada foi contratada pelo pai de sua filha, ordenou que o matassem.

O crime levou-a à prisão, mas logo foi libertada com a ajuda de amigos e importantes clientes. O episódio trouxe-lhe algum desconforto na cidade levando-a a pensar em mudar do local. Enquanto isso surge uma segunda filha, impulsionando o desejo de mudar de vida. Aos 53 anos, providenciou uma mudança de vida e local para morar. Montou um cortejo formado por carroças cheias de móveis, louças, tralhas etc. e partiu junto com as filhas para um vilarejo chamado Bagagem, onde se dava uma corrida pelos diamantes. O vilarejo hoje é cidade de Estrela do Sul, nome dado em homenagem ao diamante “estrela do sul”, que era farto na região.

Lá montou um grande casarão com senzala nos fundos e passou a levar uma vida pacata, dedicada à religião e à caridade. Tornou-se uma pessoa destacada no local; bem recebida no vilarejo; mandou construir uma ponte, que leva seu nome, e financiou a virada do rio Bagagem afim de colher o cascalho de diamante. Ficou mais rica ainda no ramo do garimpo e veio a falecer em 20/12/1873, devido a uma nefrite. Sua vida inspirou vários romances: Dona Beja, a feiticeira de Araxá (1957), de Thomas Leonardos; Vida em Flor de Dona Beja (1957), de Agripa Vasconcelos; O Solar de Dona Beja, de Maria Santos Teixeira (1965), Dona Beja, a flor do pecado, de Ângelo D’Ávila (1992)

Os dois primeiros romances citados serviram de roteiro para a produção da famosa telenovela Dona Beja, em 1986, exibida pela Rede Manchete de Televisão, tendo Maitê Proença como protagonista. Inspirou também uma biografia, destinada a esmiuçar sua vida e contextualizar sua trajetória no quadro da história. A pesquisa resultou no livro escrito por Rosa Maria Spinoso Montandon – Dona Beja: desvendando o mito -, publicado pela Edufu-Editora da Universidade Federal de Urbelândia, em 2004.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 01 de março de 2021

OS BRASILEIROS: VILANOVA ARTIGAS (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Vilanova Artigas

João Batista Vilanova Artigas nasceu 23/6/1915, em Curitiba, PR. Engenheiro, Arquiteto, urbanista, professor e líder da “Escola Paulista”, de importância fundamental na formação de uma geração de arquitetos brasileiros. Foi um dos fundadores da FAU-Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autor do projeto de reforma curricular, na década de 1960, dando novos rumos à profissão, com a inclusão do desenho industrial e programação visual no exercício da arquitetura.

Ainda estudante universitário, frequentou o curso de desenho artístico da Escola de Belas-Artes, travando contato com artistas do “Grupo Santa Helena”, como Alfredo Volpi, Francisco Rebolo e Aldo Bonadei. Tal convivência influenciou seu trabalho como arquiteto. Formou-se engenheiro-arquiteto pela Escola Politécnica da USP em 1937, onde o ensino da arquitetura se dá a partir da engenharia e não das belas artes, como ocorreu no Rio de Janeiro. Foi estagiário na Construtora Bratke e Botti e pouco depois, junto com Duilio Marrone, abriu sua empresa de projeto e construção, a “Artigas & Marone Engenheiros”. Em 1944 montou seu próprio escritório de arquitetura, tendo como parceiro o calculista Carlos Cascaldi. Enquanto desenvolve os projetos, tornou-se professor da Escola Politécnica e engajou-se no processo de regulamentação da profissão de arquiteto.

Junto com outros colegas, criou em 1943 a representação do IAB-Instituto dos Arquitetos do Brasil, em São Paulo. A partir daí dá-se o envolvimento com a política e no ano seguinte filiou-se ao PCB-Partido Comunista Brasileiro. Em 1946 ganhou bolsa de estudos da Fundação Guggenheim e passa 13 meses estudando e viajando pelos EUA. De volta ao Brasil, em 1948, liderou um grupo de arquitetos na criação da FAU/USP, onde passou a lecionar. Entenda-se “criação” no sentido literal, pois é de sua autoria o projeto da nova sede da FAU, que hoje leva seu nome. No pós-guerra e na medida em que a Guerra Fria avança, seu discurso ideológico vai se acentuando nos textos que escreve para a revista “Fundamentos”, ligada ao PCB: “Le Corbusier e o imperialismo” (1951), e “Os caminhos da arquitetura moderna” (1952).

Pouco depois, foi conhecer a União Soviética e ficou desencantado com a arte e arquitetura do “Realismo Socialista”. Passou por uma crise profissional que durou até 1950, e inicia projetos residênciais, tais como as casas de Olga Baeta, Rubem de Mendonça e Taques Bittencourt. Em seguida realiza projetos escolares para o governo de São Paulo, na administração Carvalho Pinto, dando início às relações entre arquitetura moderna e o poder público, pouco comum na época. Nos anos 1950-1952 realizou os projetos da Rodoviária de Londrina (atual Museu de Arte) e do Estádio do Morumbi, do São Paulo Futebol Clube, na época o maior estádio do mundo. Em 1961 realizou alguns projetos, que vieram definir as linhas mestras da chamada “Escola Paulista”: Anhembi Tênis Clube, Garagem de Barcos do Iate Clube Santa Paula e prédio da FAU/USP, sua obra mais acabada e definidora de uma nova arquitetura. No ano seguinte passou a se dedicar ao ensino da arquitetura e propõe inovações marcantes na reforma do currículo, que foram adotadas noutras escolas de arquitetura.

Com o golpe militar de 1964, foi preso por alguns dias e ficou exilado por um ano no Uruguai. Na volta ao Brasil passou a viver na clandestinidade até 1967. Voltou a trabalhar no ano seguinte em projetos públicos, junto com Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado, na construção do Parque Cecap, em Guarulhos, um enorme conjunto habitacional. Em 1968, com o Ato Institucional nº 5, foi afastado mais um vez da FAU e ficou impedido de atuar plenamente por 10 anos. Nesta etapa difícil da vida profissional foi consolado pela UIA-Union International des Architects com o Prêmio Jean Tschumi, em 1972, por sua contribuição ao ensino da arquitetura. Em 1979, quando se dá a anistia, voltou a lecionar na FAU na condição de professor-assistente.

Por uma ironia do destino ou “advertência”, neste período foi professor de “Estudos de Problemas Brasileiros”, uma disciplina imposta pela ditadura às faculdades como instrumento de incentivo ao nacionalismo. Ele aproveitou a “advertência” e levou à FAU, para dar palestras, alguns intelectuais de esquerda, como o ator Juca de Oliveira, o pintor Aldemir Martins e o cardeal-arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns. Em 1984 retomou o que lhe era de direto: o posto de professor-titular. No concurso, na forma de arguição, para ocupar o cargo, definiu a essência de sua arquitetura: “Quanto a mim, confesso-lhes que procuro o valor da força da gravidade, não pelos processos de fazer coisas fininhas, uma atrás das outras, de modo que o leve seja leve por ser leve. O que me encanta é usar formas pesadas e chegar perto da terra e, dialeticamente, negá-las.”

Seu retorno às aulas de arquitetura na FAU foi festejado pelos alunos e comunidade acadêmica, mas infelizmente não durou muito, faleceu no ano seguinte, em 12/1/1985. O Brasil perdeu um dos maiores incentivadores do ensino na arquitetura e um dos seus melhores arquitetos. Em quase 50 anos de profissão, deixou cerca de 700 projetos de obras públicas e residências. No mesmo ano a UIA-Union Internationale des Architects, concedeu-lhe mais uma homenagem: o Prêmio Auguste Perret 1985, pelo conjunto da obra. Expressiva parte dessa obra ficou registrada no seu livro Caminhos da arquitetura, publicado numa bela edição da editora Cosac Naify, em 2004, e na sua “Casa Vilanova Artigas”, em Curitiba, aberta ao público.

Informa a crítica que sua arquitetura é derivada da engenharia e não das belas-artes, sintetizada em sua frase “Arquitetura é construção e arte”. Melhor dito, está “expressa na criação de grandes vãos e no amplo emprego do concreto armado e aparente, ressaltando o perfil das estruturas e os esforços a que está submetida”. Revela-se aqui certa influência do arquiteto Oscar Niemayer, que utilizando-se também do concreto armado, enfatizava mais o lado artístico, a beleza plástica em suas obras. Em 2015, ano do centenário de seu nascimento, diversas atividades foram realizadas em sua memória: filme Documentário Vilanova Artigas: o arquiteto e a luz, dirigido por Laura Artigas e Pedro Gorski; lançamento do livro Vilanova Artigas, de Rosa e Marco Artigas e uma exposição –Ocupação Vilanova Artigas – no Itaú Cultural.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 22 de fevereiro de 2021

AS BRASILEIRAS: NIÉDE GUIDON (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Niéde Guidon

Niéde Guidon nasceu em Jaú, SP, em 12/3/1933. Arqueóloga criadora do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, em 1979 e transformado em Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Neste Parque criou também o “Museu do Homem Americano” e o “Museu da Natureza”, em 2018, abertos a visitação pública. Mas seus feitos maiores não foram apenas estes. Sua maior façanha foi ter alargado em mais de 40 mil anos a história da humanidade em solo americano, no Brasil. Trata-se de uma descoberta científica que alguns arqueólogos americanos e europeus vêm relutando aceitar, mas que encontra cientistas dispostos a aceitar suas teses arqueológicas.

Seus primeiros estudos se deram na cidade natal e em Pirajuí, para onde se mudou quando perdeu a mãe aos 6 anos, e em Campinas, onde concluiu o curso colegial. Em 1954 entrou na USP-Universidade de São Paulo e concluiu o curso de História Natural. Foi trabalhar no Museu Paulista, dirigido por Herbert Baldus, que a colocou no Departamento de Arqueologia. Querendo se aprofundar na área e não havendo curso de arqueologia por aqui, foi estudar em Paris. Retornou ao Brasil em 1963 e continuou a trabalhar no Museu Paulista e na USP. No mesmo ano organizou uma exposição de pinturas rupestres e recebeu a visita de um senhor que lhe disse: “Na minha terra tem muitas ‘pinturas de índio’ parecidas com estas”. Ela ficou curiosa e anotou o nome do lugar, São Raimundo Nonato, um lugarejo perdido no sertão do Piauí. Junto com umas amigas foi até lá numa longa viagem de fusca, mas não conseguiram chegar devido a queda de uma ponte.

Em 1964, com o Golpe Militar, perdeu o emprego sem nunca ter se metido em política. Alguém de olho no seu cargo dedurou-a como sendo do Partido Comunista. Voltou à Paris, passou a trabalhar como pesquisadora, fez curso de pós-graduação na Sorbonne; foi professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales e desenvolveu uma importante carreira acadêmica em arqueologia. Obteve os maiores títulos da universidade francesa, mas não esqueceu a história dos “desenhos de índios” do Piauí. Em 1973 pode visitar o local junto com seus alunos franceses e ficou deslumbrada com a descoberta da maior concentração de sítios arqueológicos com pinturas rupestres do mundo. Constatou que as pinturas eram mais narrativas, com uma grande quantidade de figuras humanas representadas de modo e gestos diferentes e animais também diferenciados. Segundo ela, “parecia uma história em quadrinhos”.

De volta à Paris entrou em contato com o CNRS-Centre National de la Recherche Scientifique, mostrou fotos do local e ressaltou que era uma região sem nenhuma pesquisa. Assim, conseguiu verba dos franceses para mais uma viagem. Arregimentou colegas da USP para ajudar na empreitada e criou a missão franco-brasileira, dando inicio a exploração cientifica do local. A partir de recursos obtidos junto ao BID-Banco Interamericano de Desenvolvimento, o trabalho resultou na criação do Parque Nacional Serra da Capivara (decreto nº 83.548, de 5/6/1979), com a finalidade de proteger o mais importante patrimônio pré-histórico do País. Mais tarde o Parque foi ampliado (decreto nº 99.143, de 12/3/1990) com a criação de áreas de preservação permanentes de 35 mil hectares. Desde a época em que trabalhou na USP já era amiga do casal Ruth e Fernando Henrique Cardoso, que mais tarde foram grandes apoiadores de benfeitorias no Parque.

Toda essa estrutura tem um sentido maior e deve-se aos estudos arqueológicos iniciados por Niéde, que pretende reescrever a história da povoação das Américas. A teoria mais aceita reza que o homem chegou ao continente pelo estreito de Bering, vindo da Ásia, há 15 mil anos. No entanto, ela achou vestígios no local que datam de mais de 50 mil anos. Os papas da Arqueologia não estão ainda inteiramente convencidos, mas o acúmulo de evidências arqueológicas fortalece cada vez mais suas hipóteses. Pesquisas desenvolvidas no Chile, México e EUA corroboram sua tese. Em 2006 foram divulgadas as pesquisas de Eric Boeda, da Université de Paris, e Emílio Fogaça, da Universidade Católica de Goiás, afirmando que os artefatos encontrados no Parque foram realmente feitos por seres humanos, e possuem idade entre 33 mil e 58 mil anos, contrariando os adversários de sua teoria. Ela acredita que o Homo Sapiens chegou na América, vindo da África atravessando o Atlântico. Conforme explicou: “o mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América era muito menor e havia muito mais ilhas”.

O Parque conta com 1.354 sítios arqueológicos cadastrados, dos quais 204 estão abertos à visitação pública. Tais evidências justificaram a criação da FUMDHAM-Fundação Museu do Homem Americano, em 1986, cujo objetivo é buscar a “compreensão do bioma da região, a reconstituição do passado humano e sua adaptação ao meio, nas diferentes realidades ambientais pelas quais passou a região, desde a primeira ocupação.” Desde 1991, o parque integra a lista de patrimônios culturais mundiais da Unesco e em 2003 foi considerado pela ONU como Unidade de Conservação com melhor infraestrutura da América Latina. O Museu do Homem Americano vem acumulando uma quantidade razoável de peças desde meados de 1970, e durante esse tempo tem recolhido também muitos objetos, fósseis e peças referentes a natureza. São animais pré-históricos, como a preguiça e o tatu gigantes, que necessitavam de um ambiente exclusivo. Assim, em 2002 foi projetado o Museu da Natureza, localizado a 30 km. da sede da FUMDHAM.

Trata-se de um moderno museu instalado no sertão. Na inauguração, em 18/12/2018, a revista “Veja” dedicou-lhe extensa reportagem com o título: “O óvni no meio da caatinga”, dado sua aparência arquitetônica, uma estrutura de aço e vidro de quatro mil metros quadrados em forma de mandala high-tech. O que se pretende é que o museu seja autossustentável, e para isso é preciso que os governos estimulem o turismo na região. Na opinião de sua criadora, a preservação de todo o Parque só será possível com a exploração turística do local. No momento faltam condições de acesso e infraestrutura adequadas.

Desde 1992 vive em São Raimundo Nonato cuidando do Parque e aos 88 anos, com dificuldades de locomoção, tem anunciado que vai se aposentar. Com quase 60 anos de dedicação exclusiva ao Parque Nacional, museus arqueológicos e expressiva contribuição científica, foi homenageada em diversas ocasiões, não obstante continuar sendo uma ilustre desconhecida pela maior parte do povo de seu País: “Mulher do Ano 1997”, pela revista Claudia, da Editora Abril; “Prêmio Faz Diferença” (2005) pelo jornal O Globo; “Prêmio Tejucopapo”, pela revista Nordeste 21; “Medalha Comemorativa dos 60 anos da Unesco”, (2010); “Medalha de Ouro” na premiação para a cultura ‘Herity Italia” (2010); “Prêmio da Fundação Conrado Wessel” (2013); “Prêmio Itaú Cultural 30 Anos” (2017). De todos estes prêmios, o que ela gostaria mais é ver o Parque sendo visitado pelos turistas de todo o mundo. Ela tem convicção e conhecimento de causa e efeito para achar que a “melhor forma de preservar é trazer turistas e desenvolver a região”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 15 de fevereiro de 2021

OS BRASILEIROS: GARRINCHA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Garrincha

Manoel Francisco dos Santos nasceu em Magé, RJ, em 28/10/1933. Futebolista, conhecido como o melhor driblador da história do futebol. Se a graça do futebol está no drible, Garrincha é o maior jogador. Mesmo na Seleção Brasileira, voltava a driblar o jogador no mesmo lance só pela brincadeira em si. Ficou famoso por seu notável controle de bola, imaginação, habilidade de drible e “finta”. No drible, o jogador realiza um movimento no qual ele passa com a bola e consegue fazer o passe. Na “finta” é quando o jogador realiza um movimento indicando uma ação e atua noutra. Geralmente o adversário fica desestabilizado e pode até cair.

Deste caráter “brincalhão” foi extraída uma pérola do escritor Eduardo Galeano: “Em toda a história do futebol, ninguém deixou mais pessoas felizes. Quando ele estava lá, o campo era um picadeiro de circo; a bola, um bicho amestrado; a partida, um convite à festa. Garrincha não deixava que lhe tomassem a bola, menino defendendo sua mascote – a bola – e ela e ele faziam diabruras que matavam as pessoas de riso: ele saltava sobre ela, ela pulava sobre ele, ela se escondia, ele escapava, ela o expulsava, ela o perseguia. No caminho, os adversários trombavam entre si, enredavam nas próprias pernas, mareavam, caíam sentados”. Com sua literatura, Galeano fez um documentário sobre Garrincha. Não por acaso, foi ele o criador do “olé” no futebol. João Saldanha conta que em 1957, no México, num amistoso contra o River Plate, ele fez “gato e sapato” do jogador Vairo: “toda vez que Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible (a “finta”) e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas exclamavam ‘Ôôô-lé!’ Foi ali naquele dia que surgiu a gíria do ‘olé’. As agências telegráficas enviaram longas mensagens sobre o acontecimento e deram grande destaque ao ‘olé’”.

Era o 16º filho de uma família humilde e o apelido –nome de um passarinho- foi dado pela irmã. Uma poliomielite na infância deixou-lhe com as pernas tortas e parecia incapacitado para o futebol, mas aos 14 anos começou a jogar como amador no Esporte Clube Pau Grande. Sem chance de continuar no time, entrou para o Serrano Football Club da cidade vizinha. Vendo-o jogar, um “olheiro” ex-jogador do Botafogo levou-o para um teste. Após uns dribles em Nilton Santos, o craque da época, foi contratado em 1953 e permaneceu até 1965. Na estreia contra o Bonsucesso, no Campeonato Carioca, o Botafogo venceu por 6×3, quando ele fez 3 gols. O Botafogo foi campeão em 1957, sendo que em 26 jogos, ele marcou 20 gols. Era criticado por driblar demais; porém sua atuação no clássico contra o Fluminense em fins de 1957 deixou claro que ele não poderia ficar fora da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, em 1958.

Sua vida pessoal sempre foi atabalhoada. Separou-se da mulher em 1963, com quem teve 7 filhos, e assumiu o namoro com a cantora Elza Soares, com que se casou em 1966. O tumultuado casamento durou até 1982, quando deu-se a separação devido a ciúmes, traição e brigas decorrentes do alcoolismo crônico que o perturbava. Teve mais um filho com Elza; outro com uma namorada e mais um na Suécia: Ulf Lindberg, numa transa extraconjugal com uma jovem na cidade de Umea durante uma excursão do Botafogo em 1959. Ao todo, calcula-se que teve uns 14 filhos.

Na Copa de 1958 foi um dos principais jogadores, mas só foi escolhido na 3ª partida do torneio. Pouco antes do inicio da Copa havia marcado um de seus gols mais famosos, contra a Fiorentina na Itália. Driblou quatro defensores e o goleiro, antes de parar na linha de gol. Mesmo com o gol aberto, em vez de chutar para o gol, ele ainda driblou o zagueiro Enzo Robotti antes de marcar o gol. A comissão técnica da Seleção ficou aborrecida com a jogada irresponsável e isso provavelmente levou-o a não ser escolhido nas duas primeiras partidas. Logo no inicio da 3ª partida foi decidido um ataque direto do pontapé inicial. Ele recebeu a bola, driblou 3 jogadores e chutou na trave. Em menos de um minuto de jogo, pegou de novo a bola e criou uma chance para Pelé, que também chutou na trave. O jogo foi tão impressionante que ficou marcado na imprensa internacional como “os três minutos mais incríveis do futebol de todos os tempos”. Este foi o cartão de visitas de Garrincha à Copa do Mundo de 1958. O Brasil venceu a partida por 2×0.

Na Copa Mundial de 1962, ao substituir Pelé, tornou-se ídolo nacional. Dos 14 gols do Brasil, 6 passaram pelos seus pés: marcou 4 e encaminhou 2. Na Copa ganhou a “Bola de Ouro” (melhor jogador do torneio), a “Chuteira de Ouro” (artilheiro) e o troféu da Copa do Mundo. Por isto, a Copa de 1962 ficou conhecida aqui, como a “Copa do Garrincha”. O jornalista Sandro Moreyra descreveu seu desempenho: “De repente parou de brincar, virou sério, compenetrado de que a conquista da Copa dependia dele. Quase sozinho, ganhou a Copa. Fez o que nunca tinha feito. Gols de cabeça, pé esquerdo, folha-seca. E driblou como um endiabrado, endoidando os adversários”. No jogo contra a Inglaterra ele roubou a bola de Didi, fez uma pausa, e, de fora da área, acertou um chute folha-seca no ângulo, fazendo o 3º gol. A imprensa britânica disse que “Garrincha era Stanley Matthews, Tom Finney e um encantador de serpentes, todos juntos”. Na semi-final, contra o Chile, foi decisivo, marcando dois dos 4 gols da vitória por 4×2. Seu primeiro gol foi um chutaço de fora da área com o pé esquerdo; o segundo, de cabeça. Uma manchete do jornal “El Mercurio” perguntava: “De que planeta veio Garrincha?”.

A Copa do Mundo de 1966 mostrou Garrincha visivelmente abatido e fora de forma. Uma lesão no joelho atrapalhava seus movimentos. Além disso, os europeus estavam dispostos a não deixar o Brasil vencer a Copa pela 3ª vez consecutiva e usaram a tática de parar o jogo sempre que possível na porrada. Mesmo assim, ele fez um gol na 1ª partida, conta a Bulgária, e Pelé fez o segundo, vencendo por 2×0. No jogo seguinte, o Brasil perdeu por 3×1 para a Hungria. Foi seu último jogo internacional e única vez em perdeu uma partida com a seleção brasileira. Contam-se histórias engraçadas a seu respeito: no jogo contra Rússia, em 1958, os jornalistas souberam que ele era desprovido de educação formal e um deles quis testar seus conhecimentos. Perguntou-lhe se ele sabia o que significava a sigla CCCP na camisa soviética. A resposta foi imediata: “Cuidado com o crioulo Pelé!”. Noutra ocasião, na Alemanha, ele gostou de um rádio de pilha e quis comprá-lo. Mas foi advertido por um colega gozador: “Mas você entende a língua alemã? Esse rádio não vai transmitir em português no Brasil!”.

O fim da carreira começou em 1963 com o agravamento dos problemas contínuos da osteoartrite, causando inflamação cartilagem e inchaço do joelho. A cirurgia, diversas vezes recomendada, finalmente foi realizada em 27/9/1964. Mas via-se que já não era o mesmo jogador. Em 1966 ainda passou alguns meses jogando no Corinthians; outros no Flamengo e no Olaria enquanto vai decaindo como jogador e o álcool vai lhe derrubando como pessoa. Em São Paulo, o Jornal da Tarde de 26/10/1966 deu a manchete: “Mané veio para ser a alegria do Corinthians, não foi. É um homem triste que só vê a bola em treino no Parque São Jorge”. Seu último gol se deu no jogo do Olaria com o Comercial em Ribeirão Preto, em 23/3/1972, encerrando a carreira profissional. A partir daí realizou alguns jogos de exibição até 1982 e faleceu em 20/1/1983, aos 49 anos, vitimado por uma cirrose hepática.

Milhares de pessoas foram às ruas seguir a procissão fúnebre, em uma linha desde o Maracanã até o cemitério. No seu epitáfio lê-se: “Aqui descansa em paz aquele que era a alegria do povo”. No dia seguinte o poeta Carlos Drummond de Andrade deixou registrado sua façanha na crônica publicada no Jornal do Brasil: “Se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo irônico, farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos nos estádios. Mas, como é também um Deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo que nos alimente o sonho”.

Considerado um dos maiores jogadores de todos os tempos, foi votado na Seleção de Futebol do Século XX por 250 dos escritores e jornalistas de futebol mais respeitados do mundo e incluído na Seleção do Todos os Tempos, da FIFA, em 1998. Foi homenageado com seu nome no Museu do Estádio do Maracanã e no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Em 2010, torcedores do Botafogo custearam uma estátua de 4 metros e meio, esculpida pelo artista plástico Edgar Duvivier, localizada frente ao Estádio Olímpico Nilton Santos, no Rio de Janeiro. Conta ainda com uma filmografia: Garrinha, alegria do povo (1962), documentário de Joaquim Pedro de Andrade; Mané Garrincha (1978), documentário de Fábio Barreto; Pelé e Garrincha: Deuses do Brasil (2002), documentário da BBC; Garrincha: estrela solitária (2005), filme baseado na biografia escrita por Ruy Castro, em 1995, uma biografia de fôlego considerada a mais completa até o momento, baseada em muita documentação e 500 entrevistas. Em 2016 foi apresentado o espetáculo musical “Garrincha: uma ópera das ruas”, dirigido por Bob Wilson, reapresentado pela TV Sesc, em dezembro de 2020.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 08 de fevereiro de 2021

AS BRASILEIRAS : YVONNE PEREIRA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGO BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Yvonne Pereira

Yvonne do Amaral Pereira nasceu em Rio das Flores, RJ, em 24/12/1900. Costureira e uma das mais respeitadas médiuns brasileiras, autora de livros psicografados e atuante no mundo espiritual até o presente com um magnífico trabalho glorificando a vida e dirigido aos necessitados de alento e disposição. Na reencarnação anterior veio ao mundo como Leila Vilares Montalban Guzman, uma espanhola que suicidou-se aos 20 e poucos anos, atirando-se no Rio Tejo.

Certamente Yvonne Pereira reencarnou com este propósito: alertar, jogar luz neste desatino humano: suicídio. Não se pode interromper o curso da vida, incluindo a sua própria. Muita gente acha que morrendo todos os problemas se acabam. Sua obra prima Memórias de um suicida (1955) mostra o que sucede após o desesperado gesto. O livro teve uma segunda edição em 1957 e até o momento já teve mais de 30 edições. Trata-se de uma obra cultuada no meio espírita e respeitada na área da saúde mental, conforme relatado no artigo Suicídio na literatura religiosa: o kardecismo como fonte bibliográfica privilegiada, publicado na revista RECIIS: Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v.4, n.3, set. 2010.

Nascida numa família espírita humilde, com apenas 29 dias foi sufocada por um acesso de tosse e ficou em estado de catalepsia por 6 horas. O médico atestou o óbito e o corpo foi preparado para o velório. Pouco depois, após a despedida dos pais, o bebê acordou chorando. Não obstante os poucos recursos, sua família tinha o hábito de abrigar pessoas carentes em casa, que segundo Yvonne, ficou marcado em sua vida. Ainda criança, aos 4 anos, passou a ver e ouvir “espíritos”, que ela considerava pessoas normais. Entre as aparições, ela distinguia pessoas que seriam seus parentes numa encarnação anterior. Tais visões vinham junto com uma grande saudade desta vivência na Espanha em meados do séc. XIX

Assim, estranhava o pai e irmãos, bem como a casa e cidade onde vivia. Às vezes, após o banho, exigia o vestido bonito e reclamava pela carruagem que deveria levá-la a passeio. Tais fatos geraram conflitos e ela teve que passar boa parte do tempo na casa da avó paterna até os 10 anos. Um novo ataque de catalepsia ocorreu aos 8 anos. Enquanto dormia, seu espírito foi levado até uma imagem do “Senhor dos Passos”, na igreja que frequentava. Sofria muito e pedia socorro. A imagem dirigiu-lhe a palavra: “Vem comigo, minha filha, será o único recurso que terás para suportar os sofrimentos que te esperam”. Aceitou a mão estendida, subiu os degraus e a partir daí não se lembra de mais nada. Esta visão ficou-lhe marcada por toda a vida. Aos 12 anos ganhou de seu pai 2 livros: O Evangelho segundo o Espiritismo e Livro dos Espíritos e no ano seguinte passou a frequentar um centro espírita, vindo a compreender melhor a Doutrina. Em termos de estudo formal, concluiu apenas o antigo curso primário, devido a dificuldades financeiras.

No entanto já escrevia fluentemente sobre literatura, e de forma tão rápida que, mais tarde, veio a identificar como fenômenos de psicografia. Por essa época auxiliava no sustento da família com trabalhos de costura, bordado, artesanato de flores etc. Uma vez aprimorada nestes trabalhos, passou a dar aulas de costura e bordados às moças da favela próxima de sua casa. Aos 16 anos era uma leitora assídua de José de Alencar, Bernardo Guimarães, Alexandre Herculano, Arthur Conan Doyle entre outros. Em seguida passou a se interessar pela linguagem Esperanto e manteve correspondência com outros esperantistas espíritas no Brasil e no exterior. A mediunidade tornou-se um fenômeno comum e ela passou a receber informes, crônicas e contos de espíritos enquanto dormia.

Sua faculdade era diversificada, tendo se dedicado à psicografia, ao receituário homeopático, à psicofonia e, ocasionalmente, aos efeitos físicos de materialização. Com frequência dedicava-se a prática de desobsessão. Tinha uma afeição especial pelos suicidas. Procurava nos jornais e anotava num livro de preces os nomes das pessoas que se mataram e, sabedora dos males que lhe afligiam, orava por eles. Fazia isto como forma de reparação ao seu suicídio na encarnação anterior. Depois de algum tempo, alguns deles vinham agradecer-lhe as preces com abraços e passeios pelo casarão onde morava.

Assim, foi contemplada com amizades no mundo espiritual, incluindo o escritor português Camilo Castelo Branco, que lhe franqueou a psicografia de suas “Memórias de um suicida”. Começou a psicografar desde 1926, mas decidiu publicar somente em meados da década de 1950, segundo ela “após muita insistência dos mentores espirituais”. Deixou mais de 20 obras publicadas e 10 livros infanto-juvenis ainda não publicados. Numa entrevista, em 1972, disse “A formação do meu caráter foi feita pelo Dr. Bezerra de Menezes. Segui sempre os conselhos dele. Mas, houve outros espíritos que me guiaram, como Bittencourt Sampaio e Eurípedes Barsanulpho, com quem trabalhei muito, principalmente em curas de paralíticos”. Pouco depois sofreu um acidente vascular cerebral; ficou impossibilitada de trabalhar e veio a falecer em 9/3/1984, vitimada por uma trombose.

Atualmente é considerada uma das maiores médiuns sob todos os aspectos, dotada de valiosas faculdades sempre postas a serviço dos necessitados. Era uma pessoa exigente e desconfiada quando o fato se relacionava com o mundo espiritual, nunca aceitando nada à primeira vista, sem um exame dentro dos preceitos recomendados pela Doutrina Espirita. Sua vida e legado podem ser melhor conhecidos nas biografias: Yvonne Pereira: uma heroína silenciosa (2003), de Pedro Camilo e Yvonne, a médium iluminada (2007), de Gerson Setini.

Clique aqui e assista a um vídeo com uma entrevista histórica de Yvonne Pereira.


José Domingos Brito - Memorial segunda, 01 de fevereiro de 2021

OS BRASILEIROS: MARCOLINO GOMES CANDAU (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Marcolino Gomes Candau

Marcolino Gomes Candau nasceu em Niterói, RJ, em 30/5/1911. Médico, administrador, meio diplomata e um dos pioneiros da saúde pública no Brasil e no Mundo como diretor-geral da OMS-Organização Mundial da Saúde em seus primórdios (1953 a 1973). Nesse interim foi Ministro da Saúde do Brasil, no Governo João Goulart por 68 dias em 1962.

Diplomado pela Faculdade Fluminense de Medicina, em 1933, e hábil administrador, exerceu cargos de chefia em serviços de saúde em algumas cidades do interior. Em 1938 já ocupava um alto cargo na Secretaria de Saúde, ao mesmo tempo em que ministrava aulas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Na ocasião pediu ao seu amigo Fred Soper, diretor da Fundação Rockfeller no Brasil, que lhe arrumasse uma bolsa de estudos na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, mantida pela Fundação. Foi atendido e partiu junto com a esposa, em 1940, para fazer mestrado na área de saúde pública. Pouco depois os EUA entram na II Guerra Mundial e ele retorna ao Brasil para trabalhar no Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores, na Amazônia, cuidando dos “soldados da borracha”.

Sua competência no serviço levou-o à Superintendência do recém criado SESP-Serviço Especial de Saúde Pública, em 1947, uma agência bilateral (Brasil e EUA), para promover o saneamento da Amazônia e do Vale do Rio Doce, que produziam borracha, minério de ferro e mica, necessários à indústria bélica. Por essa época, a revista “Time” publicou uma reportagem onde aparece seu nome e elogios ao seu trabalho no SESP. Pouco antes, em 1945, ocorreu a Conferência de São Francisco, na Califórnia, que deu origem a criação da ONU-Organização das Nações Unidas. O Brasil e a China foram os únicos países a enviarem médicos para a Conferência, e o fato veio a causar uma mudança radical na saúde do Mundo. Numa conversa informal os médicos Geraldo de Paula Souza e Szeming Sze articularam a criação de uma organização mundial para cuidar da saúde, subordinada a ONU. A proposta foi submetida ao plenário e 3 anos depois estava criada a OMS-Organização Mundial da Saúde. Por essa época, Fred Soper deixa a representação da Fundação Rockfeller, no Rio de Janeiro, para dirigir a OPAS-Organização Pan-Americana da Saúde, em 1947, e mais tarde volta a se encontrar com Candau em Washington para lhe proporcionar novo salto em sua carreira profissional.

Enquanto comandava o SESP, presidiu o Congresso Brasileiro de Higiene; criou a Escola de Enfermagem de Manaus e passou a lecionar no Instituto Oswaldo Cruz, que foi integrado à Fundação Oswaldo Cruz. Em 1950 ingressou na OMS, por indicação de Geraldo de Paula Souza, onde veio assumir a diretoria da Divisão de Organização dos Serviços de Saúde. Após dois anos foi trabalhar com seu amigo Soper na OPAS, em Washington. Com sua habitual diplomacia, ficou encarregado de aprimorar as relações entre a OMS e OPAS. O objetivo era que a OPAS se tornasse uma representação da OMS nas Américas, sem perder sua autonomia.

Ficou 14 meses costurando esta aliança e, em março de 1953, voltou para Genebra para ocupar a diretoria-geral da OMS, numa eleição que contou o apoio de seu antecessor, o psiquiatra canadense Brock Crisholm. Na cerimônia de posse homenageou Geraldo de Paula Souza e contou com a presença do recém-eleito secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarksjöld, de quem se tornou amigo. Os dois estiveram juntos na África, em 1960, na reestruturação do Congo, que se tornou independente da Bélgica. A OMS ainda engatinhava como organismo da ONU com a finalidade de promover a saúde nos países em desenvolvimento. Contava com um Comitê Executivo composto por 18 países, onde os EUA eram representados por Fred Soper, velho amigo de Candau.

Seus primeiros desafios foram enormes: combater a varíola, a malária e o uso do agrotóxico DDT na agricultura. Para combater a varíola, convidou Donald Henderson, do CDC-Centro de Controle e Prevenção de Doenças, dos EUA, para chefiar o programa, que foi um sucesso. Enquanto esteve à frente da OMS, ampliou de 81 países-membros, 1.500 funcionários e um orçamento de U$ 9 milhões para 138 países-membros, 4 mil funcionários e um orçamento de U$ 106 milhões. Hoje a OMS conta com mais de 7 mil funcionários atuando em 150 países. Candau conseguiu, também, que as diretorias regionais fossem designadas pelos países da região e não mais pela diretoria-geral. Outras conquistas foram alcançadas: definição de protocolos globais de tratamento e vacinação; controle de qualidade de medicamentos, planejamento familiar, cuidados com o uso da energia atômica etc., além da inauguração da nova sede em 1966.

Por um breve período, foi Ministro da Saúde a convite do governo João Goulart, em 1962. Permaneceu no cargo apenas 68 dias, até a queda do regime parlamentarista e retornou á diretoria-geral da OMS. Deixou o cargo em 1973 e alguns países queriam-no para um 5º mandato, mas ele recusou. “Estou velho e preciso dar lugar a uma outra geração”. No mesmo ano a 26ª Assembleia Mundial da Saúde prestou-lhe homenagem reconhecendo-o formalmente Diretor-Geral Emérito da OMS. Em seguida casou-se com Sita Reelfs, uma suíça-holandesa funcionária da OMS, com quem viveu mais 10 anos entre Genebra e Rio de Janeiro até 24/1/1983, quando veio a falecer vitimado por um câncer no pulmão. Como é o costume no Brasil relegar a memória de sua gente a um segundo plano, parece que Candau ficou num plano ainda mais distante, não obstante sua projeção internacional e sua contribuição à saúde no Mundo. Mesmo na Wikipedia consta apenas breve verbete traduzido do inglês.

Sua memória foi salva recentemente com um belo perfil biográfico, escrito por Paulo Lyra e publicado na revista Piauí, nº 171, de dezembro de 2020, de onde foram extraídas parte das informações para esta biografia concisa. O autor conclui o perfil escrevendo: “Em contraste com a sua projeção internacional, a informação sobre Candau no Brasil é quase inacessível”. Tal afirmação estaria mais correta se afirmasse que “é quase inexistente”. Um verbete mais completo sobre legado, em inglês, encontra-se no site do Royal College of Phisicians, que inicia dizendo tratar-se de uma das grandes figuras na medicina no século 20. Clique aqui para ler.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 25 de janeiro de 2021

OS BRASILEIROS: PAULA SOUZA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

MEMORIAL DOS BRASILEIROS: Paula Souza

Geraldo Horácio de Paula Souza nasceu 5/7/1889, em Itu, SP. Médico sanitarista, professor e pioneiro da saúde pública no Brasil e um dos fundadores da OMS-Organização Mundial da Saúde. Criado numa das mais tradicionais famílias paulistas, os “Paula Souza” se destacam na história desde o séc. XIX com políticos, engenheiros e médicos renomados. Seu pai – Antônio Francisco de Paula Souza – foi um dos fundadores e diretor da Escola Politécnica de São Paulo.

 

Ainda adolescente ingressou no curso universitário e graduou-se aos 19 anos pela Escola de Farmácia de São Paulo. Em seguida foi estudar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e tomou gosto pela saúde publica. Enquanto aluno, aproveitou as férias e viajou pela Europa, onde realizou estágios em laboratórios de química e institutos médicos de Berlim, Zurique, Genebra e Paris. Após formado médico, em 1915, trabalhou no Laboratório de Química da Santa Casa, em São Paulo. Em 1918 foi indicado como professor-assistente de higiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, dado o interesse na área de higiene e saúde pública.

Visando aprofundar os estudos, foi indicado pelo diretor da Faculdade de Medicina, Arnaldo Vieira de Carvalho, para receber uma bolsa para estudar nos EUA, na Escola de Higiene da Johns Hopkins University, onde foi diplomado doutor na área. Trabalhou no Nutrition Laboratory, em Boston e visitou instituições ligadas a área sanitária, solidificando os conhecimentos que seriam aplicados no Brasil. De volta ao Brasil, em 1914, tornou-se professor-assistente de química médica e, em 1922, tornou-se professor catedrático da Faculdade de Medicina de São Paulo e instalou o Serviço Sanitário de São Paulo. Em 1927 este serviço foi transformado no Instituto de Higiene, com atribuições mais amplas. Organizou serviços especializados de alimentação, de fiscalização do exercício da medicina e da inspetoria da lepra.

Assim, pode-se dizer que foi pioneiro, também, na criação do CFM-Conselho Federal de Medicina e dos conselhos regionais, em 1945. Seu trabalho junto a direção do Instituto de Higiene, após 20 anos de intensa atividade, chegou onde queria: a criação da Faculdade de Saúde Pública, em 1945. Em se tratando de pioneirismo, vale lembrar que esta Faculdade foi pioneira em diversas áreas: Entomologia Médica, Demografia Sanitária, Saúde do Trabalhador entre outras, além de fornecer pessoal especializado para as reformas sanitárias de São Paulo e do Brasil. Um de seus primeiros trabalhos no Instituto foi a criação de um Centro de Saúde Modelo, Dizia que o “centro de saúde” era preciso para acompanhar e prever as doenças na comunidade e não apenas um local que se procura quando já se está com algum sintoma. O “Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza” segue funcionando há quase 100 anos. Inovou em diversas atividades sanitárias, como adicionar cloro na água de abastecimento pela primeira vez no Brasil. Tal procedimento resultou numa notável redução de doenças infecciosas, como a febre tifoide, em São Paulo.

Atuou com afinco na educação sanitária nas escolas, promovendo técnicas básicas de higiene, como lavagem das mãos e a importância do banho. Sua crença era que as crianças levariam tais informações para suas famílias. Em 1925, elaborou a reforma do Código Sanitário criando a “Inspetoria de Educação Sanitária” e “Centros de Saúde”, que foi copiado em outros estados. Teve destacada atuação, também, fora da área acadêmica. Participou da criação da SOBRAHSP – Sociedade Brasileira de Higiene e Saúde Publica, fundada em 1923, tornando-se seu presidente no período 1947-1951. Em meados da década de 1940, através das conexões políticas de sua família, tornou-se representante diplomático do Brasil em questões relacionadas à saúde e, assim, viajou pelo mundo. Foi um dos primeiros brasileiro a escrever artigos sobre a medicina do Japão e da China, que permanecem importantes até hoje.

Tinha grande interesse pelos hábitos alimentares dos lugares que visitava e guardou uma coleção de menus de restaurantes de todo o mundo. Seu fascínio pela comida levou-o apoiar e ajudar a fundar o curso de nutrição na Faculdade de Saúde Pública, um dos mais importantes do País. Foi representante do Brasil na Liga das Nações, futura ONU-Organização das Nações Unidas. Numa das reuniões diplomáticas, em 1945, em conversa com o diplomata chinês Szeming Sze, propôs a ideia de criar uma agência voltada à saúde internacional. No ano seguinte, participou da reunião que esboçou a entidade, fundada em 1948, OMS-Organização Mundial da Saúde. Foi um de seus membros, mas não houve tempo para ver o progresso de sua inciativa. Faleceu de infarto fulminante em 2/5/1951, quando a OMS dava seus passos iniciais.

Atualmente pouco se fala de sua pessoa ou de seus feitos, mas existe a convicção no meio médico que ele representa para o Instituto de Higiene de São Paulo o que Arnaldo Vieira de Carvalho foi para a Faculdade de Medicina de São Paulo e Oswaldo Cruz para o “Instituto de Manguinhos”, a Fundação Oswaldo Cruz. O artigo A casa de Geraldo de Paula Souza: texto e imagem sobre um sanitarista paulista, de Lina Faria, publicado na revista “História, Ciência, Saúde – Manguinhos”, v. 12, nº 3, de dez. 2005, resgata sua história e preenche uma lacuna na história da ciência brasileira. Publicou um grande número de trabalhos sobre saúde pública e de temas correlatos, como a profilaxia das doenças endêmicas; os serviços de saneamento ambiental; os centros de saúde; a formação de pessoal especializado; políticas públicas sobre saúde, muitos deles também apresentados em congressos.

Tais publicações foram essenciais para a institucionalização da saúde pública no País. O artigo acima citado conta com informações sobre o legado de Paula Souza, mas não deixa de ser intrigante o fato de não haver uma biografia especifica dedicada ao reconhecimento de seu trabalho. É o patrono das cadeiras nº 101 da Academia Paulista de Medicina e nº 30 da Academia Paulista de Psicologia. Em São Paulo temos a Rua Paula Souza e o “Centro Paula Souza”, que administra as escolas técnicas, mas homenageiam o pai de Geraldo. O que temos sobre ele são artigos publicados em revistas científicas sobre sua vida e legado, como o escrito por N.M.F. Candeias – Memória histórica da Faculdade de Saúde Pública da USP: 1918-1945 -, publicado em nº especial da “Revista de Saúde Pública”, nº 18, 1984, ou o texto de Cristina Campos – Geraldo Horácio de Paula Souza: atuação de um higienista na cidade de São Paulo: 1925-1945, publicado na revista “História & Ensino, v.6, de out. 2000.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 18 de janeiro de 2021

OS BRASILEIROS: MANOEL DE ABREU (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Manoel de Abreu

Manoel Dias de Abreu nasceu em São Paulo, SP, em 4/1/1891. Médico, cientista, poeta e inventor da “abreugrafia”, pequenas radiografias que permitem o diagnóstico precoce da tuberculose pulmonar. Em outros países o exame recebeu nomes como: “schermografia” (Itália), fotofluorografia (França), roentgenfotografia (Alemanha) e microrradiografia (Portugal). No período 1951-1953 recebeu 6 indicações para o Prêmio Nobel de Medicina.

 

Formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1914, com a apresentação do trabalho “Natureza pobre”, referente à influência do clima tropical sobre a civilização. No mesmo ano, junto com a família, viajou para Lisboa e tem inicio a I Guerra Mundial. Não podendo voltar ao Brasil, mudou-se para Paris, onde passa a morar por 8 anos. Lá manteve contatos com escritores e cientistas, como Baudelaire, Antero de Quental, Nietzche e Darwin, quando decide aprofundar os estudos na medicina. O primeiro emprego se deu no Nouvel Hôpital de la Pitiê, encarregado de fotografar peças cirúrgicas. Dedicado e engenhoso, descobriu um dispositivo especial para obter fotografias da mucosa gástrica. Em 1916 foi trabalhar no Hôtel-Dieu, a Santa Casa francesa, e foi despertado para o estudo da recente especialidade criada pelo físico Wilhelm Conrad Roentgen, em 1895, a Radiologia.

No exame de um caso de tuberculose, realizado junto com seu chefe, Dr. Gilbert, nada foi encontrado de anormal, nenhuma afecção pulmonar ou pleural, conforme as normas de propedêutica clínica, através da percussão e da auscultação. O chefe pediu-lhe para levar o paciente ao laboratório de Radiologia para um exame do tórax, cuja chapa confirmaria o exame clínico. Feita a chapa, o médico ficou surpreso ao constatar uma tuberculose avançada. Conforme Dr. Adauto Barbosa Lima, ex-diretor da Faculdade de Medicina da USP, “aquela contradição entre o achado clínico e o achado radiológico era resultante dos experimentos e conhecimentos médicos na ocasião… A radiologia ensaiava seus primeiros passos”. Em seguida, o Dr. Gilbert confiou-lhe a chefia do Laboratório Central de Radiologia do Hôtel-Dieu, dando inicio a próspera carreira do cientista brasileiro.

Em 1918 foi trabalhar no Hospital Laennec, como assistente do prof. Maingot. Aí aperfeiçoou-se na radiologia pulmonar e desenvolveu a “densimetria”, mensuração de diferentes densidades. Visualizou na fotografia do “écran” fluorescente um meio de fazer o exame do tórax – em massa e a baixo custo – a fim de detectar a tuberculose pulmonar precoce. Tais conhecimentos levaram-no a publicar o livro Radiodiagnostic dans la tuberculose pleuro-pulmonaire, (Editora Masson, Paris), em 1921, obra pioneira sobre a interpretação radiológica das lesões pulmonares. No ano seguinte, retornou ao Brasil e passou a chefiar o Departamento de Raios X da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose, no Rio de Janeiro. Encontrou a cidade assolada por uma epidemia de tuberculose e ficou impressionado: “Havia óbitos, não havia doentes, os quais ocultavam seu diagnóstico na espessa massa da população; os poucos doentes que havia, procuravam o dispensário na fase final da doença, quando o tratamento, o isolamento e as várias medidas profiláticas já eram inúteis”.

Por esta época, intensificou as pesquisas de radiografias do tórax, mas os resultados são pífios. Apenas em 1935, com o aprimoramento dos aparelhos radiográficos, retomou as experiências no antigo Hospital Alemão do Rio de Janeiro. Nesse período concebeu um método rápido e barato de tomar pequenas chapas radiográficas dos pulmões para maior facilidade de diagnóstico, tratamento e profilaxia da tuberculose e do câncer de pulmão. Deu-se a invenção da “abreugrafia”, nome dado em sua homenagem e reconhecido em 1936 pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, seguido de sua adoção em nível mundial.

No mesmo ano foi convidado pelo prefeito do Rio, o médico Pedro Ernesto, a assumir a chefia do Serviço de Radiologia do Hospital Jesus. Logo depois, foram instalados 3 serviços de recenseamento torácico em São Paulo, noutras cidades do Brasil, Am. do Sul, EUA e Europa. Em 1939 o termo “abreugrafia” foi referendado no I Congresso Nacional de Tuberculose, seguido da aprovação pela União Internacional contra a Tuberculose. Em 1958, o prefeito de São Paulo, Ademar de Barros, determinou que as repartições públicas deveriam adotar o nome e instituiu o dia 4 de janeiro, dia do nascimento do cientista, como o “Dia da Abreugrafia”. Estava apenas imitando o gesto do presidente Juscelino Kubitschek em âmbito nacional.

Em 1957 foi criada a Sociedade Brasileira de Abreugrafia, seguida pela publicação da Revista Brasileira d Abreugrafia. Tal método de diagnóstico de massas de baixo custo e fácil execução popularizou-se rapidamente. Foram criados equipamentos móveis, percorrendo fábricas, escolas e locais mais inacessíveis, fazendo exames e produzindo diagnósticos precoces. Com a diminuição dos casos e custos com outros equipamentos, a abreugrafia foi abandonada. O que não podemos é abandonar a memória de seu inventor, atualmente no limbo da história. Hoje, quando o diagnóstico médico por imagem está no centro das atenções, precisamos lembrar que o Brasil já deu significativa contribuição nesta área.

Manoel de Abreu foi um humanista que abriu mão da patente que lhe renderia bons lucros. Seu desejo era que o aparelho estivesse disponível à todos: “Eu vejo no horizonte a única porta aberta para o futuro, a da ciência (…) A ciência é de algum modo a única forma de ternura (…) As grandes descobertas da medicina foram realizadas por seres sonhadores, sublimes, inspirados pelo amor”.

A importância de seu invento rendeu-lhe algumas homenagens, além das indicações para o Prêmio Nobel: Cavaleiro da Legião de Honra da França; Medalha de Ouro e Médico do Ano em 1950, do Colégio Americano de Médicos do Tórax, entre outras. Sua contribuição à medicina conta com relevantes obras publicadas: Idéias gerais sobre o radiodiagnóstico na tuberculose; Estudos sobre o pulmão e o mediastino; Nova radiologia vascular e Radiologia do coração. Foi também poeta e publicou os livros Substâncias, ilustrado por Di Cavalcanti; Meditações, ilustrado por Portinari e Poemas sem realidade, que ele mesmo ilustrou. Faleceu em 30/1/1962, por ironia do destino, de câncer no pulmão, talvez causado pelo cigarro, hábito mantido desde longa data. Seu legado ficou registrado na biografia escrita por Itazil Benicio dos Santos: Vida e obra de Manoel de Abreu, o criador da abreugrafia, publicada por Irmãos Pongetti Editores, em 1963. Em 2012, no cinquentenário de sua morte, foi lançada, pela SPR-Sociedade Paulista de Radiologia, nova biografia: O Mestre das Sombras – Um Raio X Histórico de Manoel de Abreu, do jornalista e historiador Oldair de Oliveira.

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 11 de janeiro de 2021

AS BRASILEIRAS : EDWIGES DE SÁ RODRIGUES (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

AS BRASILEIRAS: Edwiges de Sá Pereira

Edwiges de Sá Pereira nasceu em 25/10/1884, em Barreiros, PE. Poeta, jornalista, professora e precursora do movimento feminista no Brasil. Filha do advogado José Bonifácio de Sá Pereira e Maria Amélia Gonçalves da Rocha de Sá Pereira, tradicional família pernambucana. Irmã do renomado jurista Virgílio de Sá Pereira e do conhecido médico Cosme de Sá Pereira, que distribuía remédios em sua residência, dando o nome à avenida “Estrada dos Remédios”, no Recife.

 

Foi a primeira mulher a entrar para uma Academia de Letras no mundo. Foi também uma das primeiras jornalistas do Brasil e ativista social na luta pelos direitos humanos. Estudou no Colégio Eucarístico e foi professora de Educação Fundamental de História e Português, além de superintendente de ensino em várias escolas do Recife, até o cargo de professora catedrática da Escola Normal. Aos poucos foi estendendo sua atuação para a conquista da emancipação feminina e participou do I Congresso Internacional Feminista, em 1922 e colaborou na fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

No II Congresso Internacional Feminista, realizado em 1931 no Rio de Janeiro, proferiu discurso “Pela mulher, para a mulher”, onde classifica a condição da mulher brasileira em 3 categorias: 1) a que não precisa trabalhar; 2) a que precisa e sabe trabalhar e 3) a que precisa e não sabe trabalhar. Evidentemente estava se referindo ao trabalho externo, fora do lar. Sua atuação dirigia-se a mudar a situação destas últimas. Em 1920 ingressou na Academia Pernambucana de Letras, tornando-se a primeira mulher brasileira a participar de uma agremiação acadêmica, onde chegou a ocupar o cargo de vice-presidente. Pouco depois ingressou na Associação de Imprensa de Pernambuco, repetindo seu pioneirismo como mulher participante de uma entidade jornalística.

Publicou diversas obras nas áreas de poesia, ficção e jornalísticas: Campesinas, Horas inúteis, Joia turca, Um passado que não morre, Eva Militante e A influência da mulher na educação pacifista do após-guerra. Como jornalista, atuou em diversos órgãos da imprensa pernambucana e de outros estados: “Jornal Pequeno”, “A Província”, “Jornal do Commercio”, “O Lyrio” e “Escrínio”, no Rio Grande do Sul. E também revistas como “Vida Feminina”, “Revista do Instituto da Sociedade de Letras de Pernambuco” e “A Nota”.

Sua atuação, tanto nas instituições como na imprensa, ficou marcada pela luta em defesa da cidadania e dos direitos humanos; pela conquista da emancipação feminina e conquista do voto da mulher, participando de campanhas sufragistas. Um direito que foi ratificado na Revolução de 1930. Com a conquista do direito de votar e ser votada, candidatou-se a Deputada da Assembleia Nacional Constituinte, em 1934. Foi também precursora pelo direito ao divórcio e propagava nos jornais que “nenhuma mulher era obrigada a viver ao lado de um homem com que não se entendesse muito bem”.

Como professora, sua atuação na imprensa insistia na necessidade da educação da mulher como único caminho para a libertação. Faleceu em 14/8/1958 e seu acervo documental encontra-se à disposição para consultas no Centro de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 04 de janeiro de 2021

OS BRASILEIROS: CÂMARA CASCUDO (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Câmara Cascudo

Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal, RN, em 30/12/1898. Historiador, antropólogo, advogado, tradutor, jornalista, folclorista e um dos mais destacados pesquisadores das raízes étnicas do Brasil. Seus primeiros estudos se deram no Atheneu Norte Rio-Grandense, onde se tornou professor de história e diretor. Cursou medicina até o 4º ano, mas sem vocação para isso e interessado em folclore, formou-se em Etnografia, na Faculdade de Filosofia do Rio Grande do Norte e em Direito, na Faculdade do Recife, em 1928.

 

No ano seguinte, casou-se com Dhália Freire, com quem teve dois filhos. Começou como jornalista e teve seu primeiro trabalho publicado, em 1918, no jornal “A Imprensa”, de seu pai, o coronel Francisco Cascudo: uma crônica intitulada “O tempo e eu”. Colaborou com diversos jornais de Natal e manteve seções diárias nos jornais “República” e “Diário de Natal”, numa coluna chamada “Bric-a-Brac” (bagunça, geringonça, desmantelo) até 1960. Aos 23 anos teve seu primeiro livro – Alma patrícia – publicado, um estudo crítico e biobibliográfico de 18 escritores. Teve alguma participação na Semana de Arte Moderna de 1922 e foi amigo de Mário e Oswald de Andrade, a quem chamava de “doido-mor”.

Foi professor de Direito Internacional Público, na Faculdade de Direito do Recife e de Etnografia Geral, na Faculdade de Filosofia, em Natal. Mas na época o folclore não era prestigiado como estudo acadêmico e ele quase foi demitido do cargo por estudar figuras como o lobisomem. Na política, foi monarquista no inicio e combateu a crescente influência marxista no Brasil, quando Natal foi palco da Intentona Comunista de 1935. Aderiu ao integralismo e foi chefe regional do movimento da “Ação Integralista Brasileira”, movimento nacionalista liderado por Plínio Salgado. Pouco depois, desencantou-se com essa doutrina política e já durante a II Guerra Mundial ficou com os “Aliados”, demonstrando sua repulsa aos fascistas italianos e nazistas alemães. Manteve-se, porém, aliado ao anticomunismo e não se opôs ao Golpe Militar de 1964. No entanto, ajudou diversos conterrâneos perseguidos pelos militares.

Em 1941 fundou a Sociedade Brasileira de Folclore e 2 anos depois foi convidado por Augusto Meyer, diretor do INL-Instituto Nacional do Livro, para redigir o Dicionário do Folclore Brasileiro, lançado em 1954. Em viagens pela África, em 1963, coletou diversas informações, com as quais publicou duas obras básicas sobre as origens da alimentação no Brasil: A cozinha africana no Brasil (1967) e História da alimentação no Brasil (1968). Para ele “nenhuma ciência possui maior espaço de pesquisa e de aproximação humana que o folclore”. Seu interesse pelo folclore deveu-se ao fato de “querer saber a história de todas as coisas do campo e da cidade. Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço.”

Sua produção bibliográfica é extensa, com cerca 170 livros e opúsculos, muitos dos quais reeditados até hoje, incluindo obras básicas, como Antologia do folclore brasileiro (1943) Geografia dos mitos brasileiros (1947), Ensaios de etnografia brasileira (1971), e livros clássicos, como Rede de dormir (1959), Vaqueiros e cantadores (1959), Preludio da cachaça (1967) entre outros. Num de seus últimos livros –Tradição, ciência do povo (1971) -, explora conceitos-chave de seu ofício e método de trabalho. Considera que são 3 as fases do trabalho folclórico e etnográfico: “colheita, confronto e pesquisa de origem”, ou seja, a escuta atenta dos informantes, o registro rigoroso das diferentes versões e a busca das origens entendidas. A Editora Global mantém em seu catálogo 45 títulos de sua autoria.

Passou toda a vida em Natal, onde é mantido o “Ludovicus: Instituto Câmara Cascudo”, na casa onde viveu, na avenida que leva seu nome e faleceu em 30/7/1986. Ludovicus é Luis em latim, idioma que ele dominava com perfeição. Não é o local da brincadeira, como pode parecer, mas não deixa de ser apropriado devido ao caráter de suas pesquisas. Foi agraciado com dezenas de prêmios e horarias, tendo seu nome em diversos logradouros de todo o País. Em 1991, a Casa da Moeda emitiu a cédula de 50 mil cruzeiros com sua efígie, que ficou em circulação por três anos. Sua vida foi esmiuçada em algumas biografias, com destaque para Viagem ao universo de Câmara Cascudo (1969), de Américo de Oliveira Costa e Luis da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, (1970) de Zila Mamede. Faleceu em 30/7/1986

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 28 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: BEZERRA DE MENEZES (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Bezerra de Menezes

Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti nasceu em Riacho do Sangue, atual Solonópole, CE, em 29/8/1831. Médico, escritor, jornalista, militar, político, filantropo e expoente da Doutrina Espírita, conhecido como “o médico dos pobres” e “Kardec brasileiro”. Divide com Chico Xavier a condição de espírita mais conhecido e venerado do Brasil.

Descendente de uma antiga família cigana, posteriormente ligada à politica e ao exército, filho do tenente-coronel da Guarda Nacional Antônio Bezerra de Menezes e Fabiana de Jesus Maria Bezerra. Concluiu a educação elementar em 10 meses; aos 11 anos aprendeu latim; aos 13 substituía o professor no ensino dessa língua; aos 15 mudou-se para Fortaleza e concluiu o curso secundário no Liceu do Ceará. Aos 20 anos, com o falecimento do pai, mudou-se para o Rio de Janeiro e ingressou na Faculdade de Medicina. Para prover os estudos dava aulas particulares de filosofia e matemática. Aos 25 graduou-se médico com a tese “Diagnóstico do Cancro” e foi trabalhar como assistente de seu professor no Corpo de Saúde do Exército Brasileiro.

Aos 26 anos ingressou na Academia Imperial de Medicina e logo candidatou-se ao cargo de professor-assistente de cirurgia na Faculdade de Medicina. No mesmo ano foi empossado como Cirurgião-Tenente do Corpo de Saúde do Exército. Aos 27 anos, bem estabelecido, casou-se com Maria Cândida de Lacerda e tiveram 2 filhos. Aos 32 deu-se uma tragédia: sua esposa veio a falecer de mal súbito, deixando-lhe um filho de 3 anos e outro de 1. Por essa época exercia, além da medicina, o cargo de redator dos “Anais Brasilienses de Medicina” da Academia Imperial de Medicina. A irmã –Cândida Augusta de Lacerda- de sua falecida esposa ajudou a criar os filhos. Esta convivência resultou em casamento com a cunhada em 1865, com quem teve mais 7 filhos. No exercício profissional era um médico caridoso atendendo necessitados que não podiam pagar. Assim, passou a ficar conhecido como o “medico dos pobres”. Chegou a dar seu anel de formatura à uma pobre mulher para que comprasse remédios para o filho.

Com este perfil voltado às pessoas carentes adquiriu popularidade e foi indicado por amigos à Câmara Municipal. Com alguma insistência aceitou a indicação e foi eleito em 1861. Tem início a carreira politica, que se estende até 1885 acumulando mandatos de vereador e deputado provincial, exercendo a presidência da Câmara em algumas ocasiões. Como político teve iniciativas pioneiras, como regulamentação do trabalho doméstico, denuncia dos perigos da poluição e propostas de combate, um problema que já naquela época afetava a população do Rio. Batalhou pela extinção dos artigos nºs 157 e 158 do Código Pena de 1890, que proibiam “praticar o Espiritismo” e promover curas de moléstias curáveis ou incuráveis, que afetavam diretamente as atividades dos centros espíritas.

Um aspecto pouco conhecido é sua vida como empresário. Foi sócio fundador da Companhia Estrada de Ferro Macaé-Campos (1870) e empenhou-se na construção da Estrada de Ferro Santo Antonio de Pádua (1872). Foi um dos diretores da Companhia Arquitetônica de Vila Isabel (1873) e presidente da Companhia Ferro-Carril de São Cristovão (1875), levando os trilhos até os bairros do Caju e da Tijuca. Vale destacar, também, sua atividade política, sem mandato, como intelectual. Participou da campanha abolicionista com a publicação do livreto A escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar para extingui-la sem dano para a Nação (1869), distribuído gratuitamente à população. Dizia-se um “liberal” e propunha imitar os ingleses com a abolição da escravidão. Na grande seca do Nordeste em 1877, publicou o ensaio Breves considerações sobre as secas do Norte. Como médico, lançou novo enfoque sobre as doenças mentais com o ensaio A loucura sob novo prisma: estudo psíquico-fisiológico. Como jornalista, foi redator dos jornais “A Reforma” e “Sentinela da Liberdade”. Como romancista publicou alguns livros de caráter espírita e traduziu as Obras Póstumas de Allan Kardec, em 1892.

Seu primeiro contato com o Espiritismo se deu por acaso. Em 1875 ganhou de presente um exemplar d’O Livro dos Espíritos de seu tradutor e amigo Dr. Joaquim Carlos Travassos. Na volta para casa na Tijuca, distante uma hora de viagem de bonde, foi se entretendo na leitura e deu-se conta que “já tinha lido ou ouvido tudo o que se achava n’O Livro dos Espíritos. Preocupei-me seriamente com este fato maravilhoso e a mim mesmo dizia: parece que eu era espírita inconsciente, ou, mesmo como se diz vulgarmente, de nascença”. A partir daí seu envolvimento com a doutrina foi crescendo. Teve contato as “curas” espirituais pelo médium João Gonçalves do Nascimento, em 1882; passou a contribuir com artigos na revista “O Reformador”, em 1883 e pouco depois decidiu se “converter”, em grande estilo. Aos 55 anos, em 16/8/1886, deu uma palestra no salão da “Guarda Velha”, explicitando sua adesão ao Espiritismo para mais de mil pessoas.

No ano seguinte, a pedido do Centro da União Espírita do Brasil, iniciou a publicação de artigos na seção “Spiritismo – Estudos Philosóficos”, publicados aos domingos, em “O Paiz”, assinados sob o pseudônimo Max, no período 1887-1893. Por essa época, os adeptos da Doutrina Espirita estavam divididos entre os filósofos/cientistas e religiosos. Bezerra de Menezes encontrava-se entre estes últimos, mas transitava bem entre as duas correntes. Assim, foi convocado para superar a divisão e promover a união através da FEB-Federação Espírita Brasileira, em 1889. Iniciou o estudo sistemático de O Livro dos Espíritos em reuniões públicas semanais; passou a redigir o “Reformador”; doutrinar espíritos obsessores; realizou o Congresso Espírita Nacional, reunindo 34 delegações e assumiu a presidência do Centro da União Espírita do Brasil, em 1890. Nos anos seguintes, atuou como vice-presidente da FEB e enfrentou algumas divergências internas e ataques externos ao movimento. Tais divergências fizeram-no afastar-se da diretoria, por um período, sem deixar de frequentar as reuniões e sua coluna no jornal “O Paiz”.

As divergências no movimento espírita chegaram até a direção da FEB, em 1895, e ele foi convidado a reassumir a presidência para apaziguar os ânimos. Iniciou o estudo semanal d’O Evangelho segundo o Espiritismo em reuniões públicas semanais; criou a primeira livraria espírita no País e o departamento de “Assistência aos Necessitados”. Empenhou-se na institucionalização da FEB até 11/4/1900, quando sofreu um acidente vascular cerebral e veio a falecer. A primeira página do jornal “O Paíz”, dirigido por Quintino Bocaiuva, dedicou um longo necrológio ao “eminente brasileiro”. No plano espiritual continua trabalhando em obras e mensagens psicografadas através de diversos médiuns: Chico Xavier, Divaldo Franco. Francisco Assis Perioto, Yvone Pereira, Waldo Viera entre outros, contabilizando mais de 20 livros. É considerado o patrono de centenas de centros espíritas em todo o mundo.

São muitas as biografias retratando sua vida: Legado de Bezerra de Menezes (2008), de Aziz Cury; Bezerra de Menezes: o médico dos pobres (3a. ed. 1979) e o estudo realizado por Canuto Abreu, publicado pela FEESP-Federação Espírita de São Paulo: Bezerra de Menezes: subsídios para a História do Espiritismo no Brasil até o ano de 1895. Tais biografias foram úteis na transposição de sua vida para o cinema, no filme “Bezerra de Menezes: o diário de um espírito”, em 2008, dirigido por Glauber Santos Paiva Filho com Carlos Vereza no papel.

Mensagem de Bezerra de Menezes em 23/5/2020:

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 21 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: CARLOS GOMES (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Carlos Gomes

Antônio Carlos Gomes nasceu em Campinas, SP, em 11/7/1836. Músico, maestro, compositor de ópera e o primeiro brasileiro reconhecido internacionalmente nesta área. De origem humilde, filho de Manuel José Gomes (conhecido como “Maneco músico) e Fabiana Jaguari Gomes. O pai com dificuldades em manter 26 filhos, formou uma banda musical. O irmão ajudou na formação do garoto, que naturalmente revelava uma atração pela música. É considerado o maior compositor lírico das américas.

Em 1854, aos 18 anos, fez a apresentação de sua primeira “missa”, com emoção e voz embargada, comovendo a plateia. 5 anos depois já era um concertista e professor de piano e canto, com predileção pelas óperas de Verdi. Em 1859, foi convidado pelos acadêmicos da Faculdade de Direito para fazer um concerto em São Paulo, e recebeu efusivos estímulos para que fosse se aperfeiçoar na Côrte. Era um sonho alimentado pelo rapaz, mas sem condições de realizar, devido a falta de recursos. Alojado numa “república” de estudantes, compôs o “Hino Acadêmico”, com letra de Bittencourt Rodrigues, que logo se tornou a “Marselhesa da Mocidade” substituindo antigos cantos dos estudantes. O hino foi o pontapé inicial em sua prodigiosa carreira artística e, certamente, a insistencia dos estudantes para que fosse ao Rio pesou decisivamente na viagem que realizou nas condições precárias em que foi realizada. No mesmo ano falou com o pai que voltaria à São Paulo para novos concertos, o que não era verdade. Mas confessou ao irmão, José Pedro, que planejava uma fuga. Viajaria de burro até Santos e de lá embarcaria de qualquer modo para o Rio de Janeiro. O irmão não acreditou e disse-lhe que voltaria de Santos mesmo; não teria coragem para tal aventura. O decidido rapaz retrucou: “Só voltarei coroado de glórias ou só voltarão meus ossos”.

Partiu de Santos no navio Piratininga, em 1859, sob aclamação dos estudantes e amigos rumo à Côrte. Levava consigo uma carta de recomendações a D. Pedro II e pedido de alojamento junto a familia de um amigo estudante em São Paulo. Logo que chegou escreveu ao pai, pedindo-lhe perdão pela fuga e revelando seus planos. O pai não só o pedoou como garantiu-lhe uma mesada mensal. Foi apresentado ao Imperador pela Condessa Barral e encaminhado a Francisco Manuel da Silva, diretor do Conservatório de Música e teve como primeiro mestre o famoso músico italiano Joaquim Giannini. Em 1860, na festa de encerramento do curso, foi programada sua apresentação. Não pode comparecer devido a um ataque de febre amarela. Pouco antes do maestro dar inicio à “cantata”, ele surge com a febre estampada no rosto e pede a batuta para dirigir sua peça. O resultado foi uma apoteose, toda a plateia em pé apludindo efusivamente. Ele não resistiu e caiu desmaiado. Ao saber do ocorrido, D.Pedro II condecorou-o com uma medalha de ouro.

Em 4/9/1861 foi executada sua primeira ópera – Noite no Castelo – no Teatro da Ópera Nacional. Dá-se nova apoteose e o Imperador, de novo, condecorou-o com a comenda “Imperial Ordem das Rosas”. Dois anos depois surge outro sucesso com a segunda ópera: Joana de Flandres, encenada em 1863. Em seguida foi agraciado com uma viagem à Europa, concedida pela Empresa de Ópera Lírica e o Governo Imperial. O Imperador queria que ele fosse para a Alemanha para estar com o grande Wagner, mas a Imperatriz D. Teresa Cristina, sugeriu-lhe a Itália. Embarcou em 8/11/1863, levando uma recomendação de D. Pedro II para o rei Fernando, de Portugal, que o apresentasse ao diretor do Conservatório de Milão, Lauro Rossi.

Encantado com o talento do rapaz, Rossi tornou-se seu tutor e passa a recomendá-lo no métier musical da cidade. Em 1866 recebeu o diploma de mestre e compositor. Passou a compor óperas: “Se sa minga”, em dialeto milanês, estreada no Teatro Forssetti e “Nella luna”, no Teatro Carcano, ambas com livreto de Antonio Scalvini, prolongando sua permanência em Milão, onde casou-se com Adelina Péri. O sucesso foi se consolidando e no ano seguinte, flanando pela Praça del Duomo, encontrou um garoto vendendo um folheto e apregoando: “Il Guarani! Il Guarani! Storia interessante dei selvaggi del Brasile!”. Era uma tradução do romance de José de Alencar, que serviu de base para compor a famosa ópera “O Guarani”.

Procurou Scalvini, que ficou fascinado pela história, e pouco depois concluíram a obra. Segundo os críticos não é sua maior ou melhor obra, mas foi a que o tornou conhecido em todo o mundo. A estreia se deu em 19/3/1870, seguida de apresentações na Europa e EUA. Consta que na noite da apresentação, Giuseppe Verdi estava presente e comentou: “Este jovem começa de onde eu termino!”. Em 2/12/1870, aniversário de D. Pedro II, a ópera estreou no Rio de Janeiro. Outras apresentações ocorreram nos dias seguintes, quando conheceu André Rebouças. Tornam-se amigos e viajam para a Europa no ano seguinte. Neste período viveu alguns anos na Itália, quando a saúde começou a dar sinais de alerta. Sofria de um câncer na boca. O desejo de retornar ao seu país ficou mais acentuado e esteve por aqui em algumas ocasiões.

Seu desejo era ser nomeado para o cargo de diretor do Conservatório de Música. Na época foi proclamada a República, em 1889, e seu amigo e protetor D. Pedro II foi exilado, causando-lhe grande mágoa. Nesta época compôs o poema sinfônico Colombo, incompreendido pelo grande público. Após tantos perrengues, foi aliviado com um convite de Lauro Sodré, governador do Pará, para organizar e dirigir o conservatório do Estado. Antes, porém, voltou à Itália para mais uma temporada e despedida dos filhos. Retornou ao Brasil, passando por Lisboa e teve sua primeira intervenção cirúrgica na língua, em abril de 1895, sem resultados animadores. Em maio foi recebido pelo povo paraense em festa, mas com a saúde agravada. Sua condição econômica também sofreu um abalo e o governo de São Paulo providenciou uma pensão mensal de 2 contos de réis (2 mil cruzeiros), que garantiu a manutenção do tratamento até 16/9/1896, quando veio a falecer.

No ano anterior foi criado o Conservatório Carlos Gomes, posteriormente denominado Instituto Estadual Carlos Gomes, mantido pelo Governo Paraense. Em 1986 o Instituto passou a ser mantido pela Fundação Carlos Gomes, cuja missão é difundir a educação musical como instrumento de socialização e inclusão social e promover o estudo da música no Estado do Pará. Logo após o falecimento e exéquias, durante 3 dias, O governo paulista solicitou ao governo paraense o translado de seu corpo, que foi sepultado no monumento-túmulo, na Praça Antônio Pompeu, em Campinas. Em 1936, O centenário de seu nascimento, foi comemorado em grandes solenidades em todo o País e 20 anos depois foi criado o Museu Carlos Gomes, em Campinas, reunindo documentos e seus pertences, afim de manter a memória do grande compositor e maestro. Em 2017 seu nome foi inscrito no “Livros dos Heróis e Heroínas da Pátria”.

Dentre as diversas biografias do músico, consta o romance biográfico, publicado por Rubem Fonseca em 1994, O selvagem da ópera, que veio a se tornar novela dirigida por Maria Adelaide Amaral e produzida pela Rede Globo.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 14 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: José Vicente de Azevedo

José Vicente de Azevedo nasceu em Lorena, SP, em 7/7/1859. Advogado, professor, político, conde romano e um dos grandes filantropos paulista. Tem o mesmo nome do avô comendador (1798-1864) e do pai coronel (1834-1869), prósperos cafeicultores do Vale do Paraíba, ambos assassinados por motivos políticos. Deu continuidade a saga familiar, porém de modo diferenciado: doou a fazenda da família à Igreja para a fundação de uma escola agrícola para órfãos e menores filhos de ex-escravos como forma de “reparação” pela exploração do trabalho escravo.

Em 1868, aos 9 anos, ficou órfão de pai e 10 anos depois mudou-se para São Paulo para estudar na Faculdade de Direito, formando-se em 1882. Casou-se no ano seguinte com Candida Bueno Lopes de Oliveira e, tal como o avô e pai, segue carreira política e foi eleito Deputado Provincial, em 1884, onde se manteve até 1889. Com a proclamação da República, manteve-se afastado da política, retornou em 1898 e foi eleito 6 vezes para a Câmara do Congresso Legislativo do Estado de São Paulo até 1918. Foi também senador estadual no período 1925-1927. Como deputado obteve aprovação dos projetos autorizando as construções do Viaduto do Chá e da nova Sé, a Catedral de São Paulo.

Católico atuante, compôs o famoso “Hino à Gloriosa Padroeira do Brasil”, que ficou conhecido como o “Viva a Mãe de Deus e nossa”, oficializado em 11/5/1951, pelo Cardeal Motta, arcebispo de São Paulo. Mas não foi aí que sua atuação ficou marcada na Igreja. Em 1889 foi eleito Provedor da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Catedral de São Paulo e adquiriu extenso lote de terras devolutas, chácaras e lotes particulares na região do Ipiranga. Tinha a intenção de transformar o local numa “cidade do Vaticano”, que seria uma “colina de caridade cristã”. No ano seguinte doou um terreno para a construção do Liceu São José, transformado depois no Orfanato masculino Cristovão Colombo.

Junto a carreira de político, foi professor de Geografia no Ginásio do Estado durante toda a vida, sem abdicar de sua atuação caritativa na Igreja. Em 1903 empreendeu a vinda da Irmã Paulina (canonizada em 2002) e outras irmãs para integrarem o Asilo Sagrada Família. Conforme relatado por sua filha, ele tinha em mente ajudar as crianças negras, exploradas depois da Lei do Ventre Livre (1871) e os velhos, inválidos para o trabalho, descartados pela Lei dos Sexagenários (1885). Segundo Darcy Ribeiro, estas duas leis foram promulgadas para dispensar os donos de escravos de manter as crianças a partir daquela data, bem como os velhos inválidos para o trabalho.

Além da fazenda doada para a construção da escola agrícola, fez outra obra para os negros, em Lorena: doou terreno e tijolos para a construção do Asilo e Casa dos Pobres de São José, conhecido hoje como Lar São José.

Em São Paulo, particularmente no bairro do Ipiranga, consta as seguintes doações: terreno e edifício para a instalação do “Instituto de Cegos Padre Chico” (1928); terrenos para a construção do “Colégio Católico Japonês São Francisco Xavier” (1929); “Seminário Central do Ipiranga” (1934); Hospital Dom Antônio de Alvarenga, a Clínica Infantil do Ipiranga (1938), hoje Associação Beneficente Nossa Senhora de Nazaré-ABENSENA e doação de bens para a constituição da atual Fundação Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga-FUNSAI

Seu empenho na realização de obras e instituições de caridade era tamanho que causou ciúmes no clero. Em 1911, o bispo Dom Duarte determinou que a Irmandade do Santíssimo Sacramento, da qual era provedor desde 1890, se limitasse a cuidar das cerimonias do culto. Obviamente, a medida retirava da irmandade a administração e uso de recursos das obras do Ipiranga e de outras iniciativas suas. A cúpula da Igreja percebeu que seu trabalho se afastava da igreja católica romanizada (trabalho com as elites, pela organização clerical de pequeno envolvimento com camponeses e operários) e ia de encontro às necessidades dos ex-escravos e seus descendentes. Mesmo assim, ele foi condecorado pelo Papa Pio XI com o título de Conde Romano, em 1935.

Tinha uma clara visão empresarial e viu na rápida urbanização do bairro Ipiranga boas oportunidades de lucro imobiliário. Assim, ganhou dinheiro com a venda de uma parte dos lotes, enquanto outra parte era doada para a criação de instituições de caridade. Com seus próprios recursos comprou 2 locomotivas, em 1890, e instalou-as numa linha de bondes de 14 km. ligando o bairro ao Parque Dom Pedro II, no centro da cidade. Sua família é ciente de sua importância na história da cidade de São Paulo e nos primórdios do bairro do Ipiranga. A filha Maria Angelina V.A. Franceschini escreveu sua biografia – Conde José Vicente de Azevedo: sua vida e sua obra -, publicada em 1996. Seu legado pode, também, ser visto na página Museu Vicente de Azevedo, aberto ao público e instalado num belo casarão do século XIX, projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo, no bairro do Ipiranga.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 07 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: HENRIQUE DIAS (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Henrique Dias

Henrique Dias nasceu no Recife, PE, em princípios do século XVII. Negro liberto, mestre-de-campo, revolucionário, cavaleiro da Ordem de Cristo e um dos fundadores do Exército Brasileiro. Há pouca documentação sobre sua origem e as informações confiáveis aparecem somente em 1633, quando se apresentou ao general Matias de Albuquerque, como voluntário, para combater a “invasão holandesa” no Recife. Assim, tornou-se o capitão de uma tropa e recebeu a patente de governador dos negros e mulatos do Brasil.

 

 

Também não há retrato seu autêntico, conhecido. Os que aparecem nos compêndios de história e livros eruditos são pura fantasia. Segundo Osvaldo de Camargo, em seu livro O Negro Escrito (1987), é o primeiro negro que escreveu um texto no Brasil e, por conseguinte, “o primeiro afro-brasileiro letrado”. Combateu os holandeses em Pernambuco, Bahia, Alagoas e Rio Grande do Norte, não perdendo sequer uma batalha. Tomou parte, entre outras, nas batalhas das Tabocas, de Casa Forte, de Cunhaú e dos Guararapes. Sua primeira ação militar foi a defesa do Engenho São Sebastião, quando contou com a ajuda de vinte negros e de outros capitães, onde recebeu o primeiro dos seus 8 ferimentos lutando contra os holandeses. Num desses ferimentos perdeu a mão esquerda na batalha e continuou lutando com a direita.

Estabeleceu-se num local do Recife (atual bairro de Santo Antônio) próximo dos inimigos. Ficava tão perto dos holandeses que, às vezes, o duelo não era na bala e sim com palavras de desafio e injúria. De seu local realizou várias investidas importantes contra os batavos. Em 1635, quando os holandeses tomaram o Forte Bom Jesus, ele foi visto como escravo e não ficou entre os prisioneiros mais bem guardados. Fugiu e se reuniu às tropas pernambucanas que recuavam para o sul. Atuou na Bahia como capitão-do-mato e combateu quilombos. Passou a comandar um regimento de 500 negros; recebeu o título de fidalgo e o hábito da Ordem Militar de Cristo e recebia um soldo compatível com o posto de comandante. Enquanto isso, Maurício de Nassau consolidava a vitória em Pernambuco e governou por oito anos o “Brasil Holandês”.

Seu retorno à Holanda em 1644, precipitou a insurreição pernambucana. Os portugueses enviaram as tropas acantonadas na Bahia, incluindo a comandada por Henrique Dias. Seu batalhão, conhecido como “Terço da Gente Preta”, era composto de 500 negros escravos de origem africana e permaneceu em atividade como parte das tropas regulares de Pernambuco até meados do século XVIII. Em fevereiro de 1649, o coronel Van Den Brinck e seus 3500 homens receberam uma artilharia e a ordem para desalojar os pernambucanos dos montes Guararapes. Dias demonstrou excepcional bravura e o batalhão negro perseguiu os holandeses até os portões da cidade. O comandante português, Menezes, mal pode acreditar na vitória. Em dado momento da trégua de Portugal com a Holanda, D. João IV determinou que os insurreitos pernambucanos se encaminhassem à Bahia.

Antes que os holandeses comemorassem a retirada, receberam de Henrique Dias uma carta dizendo o seguinte: “Meus senhores holandeses, saibam Vossas Mercês que Pernambuco é minha Pátria, e que já não podemos sofrer tanta ausência dela. Aqui haveremos de perder as vidas, ou havemos de deitar a Vossas Mercês fora dela. E ainda que o Governador e Sua Majestade nos mandem retirar para a Bahia, primeiro que o façamos havemos de responder-lhes, e dar-lhes as razões que temos para não desistir desta guerra”. Com a expulsão dos holandeses, em 1654, Henrique Dias, ao contrário de outros militares combatentes, não recebeu as recompensas que lhe eram devidas, tendo que viajar a Portugal para requerer a remuneração atrasada dos seus serviços e foi recebido pelo rei Dom João IV. Na ocasião, pediu que seu regimento de negros fosse perpetuado. O rei concordou e mandou construir a cidade de Estância, perto de Recife, para os soldados.

Recebeu o título de governador dos crioulos, pretos e mulatos do Brasil, além da comenda dos Moinhos de Soure, da Ordem de Cristo. Passou seus últimos anos em Pernambuco em extrema pobreza e morreu em 8/6/1662, no Recife. Sua memória ficou registrada com o nome adotado pelos batalhões de Pretos que surgiram em várias capitanias após sua morte. Um século depois ainda estavam ativos dois corpos militares de homens de cor em Pernambuco. O de Pardos possuía 31 companhias e contava com 1.401 pessoas e o de Henrique Dias, exclusivamente formado por Pretos, que contava com 17 companhias formadas por 1.549 homens. Pela sua bravura, dedicação e liderança, foi escolhido, em 1992, patrono do então 28º Batalhão de Infantaria Blindada (28º BIB), atualmente, 28º Batalhão de Infantaria Leve (28º BIL) localizado em Campinas, São Paulo.

A Lei nº 12.701, de 6/8/2012, incluiu seu nome no Livro de Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria, em Brasília. Não obstante o esquecimento a que foi relegado, mesmo no “movimento negro”, seu nome ainda denomina uma porção de logradouros e instituições no Brasil e, particularmente, em Pernambuco, como o “Grupo Escolar Henrique Dias”, em Garanhuns, onde conclui o curso primário.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 30 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: GREGÓRIO BEZERRA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Gregório Bezerra

Gregório Lourenço Bezerra nasceu em Panelas, PE, em 13/03/1900. Político e revolucionário. Trabalhou na agricultura ainda criança e ficou órfão do pai aos 7 anos, e da mãe aos 9. Foi morar no Recife junto a família dos fazendeiros que empregavam seus pais, mas não ficou muito tempo. A promessa de estudar não progrediu e permaneceu analfabeto até os 25 anos. Passou boa parte da adolescência dormindo na rua e entre as catacumbas do cemitério de Santo Amaro. Nessa época trabalhou como carregador de malas na estação ferroviária, ajudante de pedreiro, jornaleiro etc.

Como vendedor ambulante de jornas, começou a se interessar pela política, através da leitura que os colegas faziam para ele. Em 1917 foi preso pela primeira vez, quando participava de uma passeata no Recife, reivindicando direitos trabalhistas e em apoio à Revolução Bolchevique, na Rússia. Passou 5 anos preso na Casa de Detenção do Recife, atual Casa de Cultura, onde conheceu o cangaceiro Antônio Silvino, do quem se tornou amigo. Ao sair da prisão, em 1922, e com dificuldades de arrumar emprego, alistou-se no Exército. Aí certificou-se da necessidade de alguma disciplina para aprender a ler e escrever e dedicou-se, como autodidata, à sua própria alfabetização.

Animou-se com a carreira militar e entrou na Escola de Sargentos de Infantaria, no Rio de Janeiro, em 1924, permaneceu por 2 anos e logo foi promovido a instrutor da Companhia de Metralhadoras Pesadas, devido a sua disciplina e determinação. Em 1929, foi transferido para Recife já como sargento. Motivado pelos amigos e diante da enorme desigualdade social, filiou-se ao PCB-Partido Comunista Brasileiro sem se desligar do Exército. No mesmo ano transferiu-se para o Rio de Janeiro, por ter conseguido matricula na Escola de Educação Física do Exército. Disciplinado, logo foi designado instrutor de educação física do Colégio Militar de Fortaleza, em 1932. Por sua própria conta, criou uma célula do PCB em Fortaleza, contrariando a orientação do partido.

Em 1935 participou da “Intentona Comunista”, movimento político promovido pela ALN–Aliança Libertadora Nacional, na condição de líder dos militares. Na tentativa de conseguir armamentos do CPOR, foi preso acusado pela morte de um tenente e ferimento de outro. Foi submetido a severas torturas e recebeu uma condenação de 28 anos, primeiro em Fernando de Noronha, seguida por outra temporada no Rio de Janeiro, no Presídio Frei Caneca. Nesta ocasião, dividiu a cela com o secretário-geral do PCB, Luís Carlos Prestes. Foi aí que aprimorou seus conhecimentos sobre as condições econômicas e políticas do Brasil, bem como sobre o movimento comunista internacional.

Com o fim do Estado Novo e a legalização do PCB em 1945, foi anistiado e designado como o principal candidato do partido à Assembleia Nacional Constituinte. Elegeu-se deputado federal por Pernambuco, em dezembro de 1947, com a maior votação do estado. Em janeiro de 1948 foi cassado junto com todos os parlamentares comunistas e passou a viver na clandestinidade por 9 anos. Neste período viajou para Goiás e Paraná, organizando núcleos sindicais. A terceira prisão veio em 1964, com o Golpe Militar. Foi preso enquanto organizava a resistência armada dos camponeses ao golpe em apoio ao governo de João Goulart (federal) e Miguel Arraes (estadual). Levado para o Recife, sofreu as mais terríveis torturas e humilhações públicas. Teve os pés imersos em ácido de bateria e foi obrigado a andar sobre britas. Em seguida foi amarrado em um jipe e arrastado pelas ruas de Casa Forte, enquanto o tenente-coronel Darcy Viana Vilock incitava a população a linchá-lo. O povo, consternado pela cena, não atendeu a incitação do coronel. Estas cenas foram transmitidas ao vivo pela televisão.

Em 1967 foi condenado a 19 anos de prisão, e foi libertado em 1969 junto com outros 14 presos políticos, em troca da libertação do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, sequestrado pelos guerrilheiros. Passou a viver na Rússia, México e Cuba, só retornando ao Brasil em 1979, com a promulgação da anistia. Em seguida começou a divergir do PCB e desligou-se de seus quadros. No mesmo ano publicou sua autobiografia “Memórias”, relançada em 2011 pela Boitempo Editorial. Pouco depois, filou-se ao PMDB, partido de oposição ao Governo, e candidatou-se a Deputado Federal, em 1982, aos 82 anos. Perdeu a eleição, mas ganhou a suplência. No ano seguinte, com a saúde abalada, declarou: “Gostaria de ser lembrado como o homem que foi amigo das crianças, dos pobres e excluídos; amado e respeitado pelo povo, pelas massas exploradas e sofridas; odiado e temido pelos capitalistas, sendo considerado o inimigo número um das ditaduras fascistas”. Faleceu em 21/10/1983. Em sua homenagem, o poeta Ferreira Gullar compôs o poema-cordel intitulado “História de um valente”.

Valentes, conheci muitos,
e valentões, muito mais.
Uns só valente no nome
uns outros só de cartaz,
uns valentes pela fome,
outros por comer demais,
sem falar dos que são homem
só com capangas atrás.
Mas existe nessa terra
muito homem de valor
que é bravo sem matar gente
mas não teme matador,
que gosta da sua gente
e que luta a seu favor,
como Gregório Bezerra,
feito de ferro e de flor.

Em 2004 foi realizado o documentário “Gregório Bezerra, feito de ferro e de flor”, dirigido por Anna Paula Novaes, Raquel Barros e Rosevanya Albuquerque. O filme ganhou os prêmios de Destaque e Menção Honrosa no Festival Brasileiro de Cinema Universitário.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 23 de novembro de 2020

AS BRASILEIRAS: DELFINA BENIGNA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

AS BRASILEIRAS: Delfina Benigna

Delfina Benigna da Cunha nasceu em 17/6/1791, em São José do Norte, RS, na Estância do Pontal. Poeta destacada como uma das fundadoras da literatura gaúcha. Filha do capitão-mor Joaquim Fernandes da Cunha, responsável pela guarda do Litoral, e Maria Francisca de Paula e Cunha. Sua poesia é fundada unicamente na inspiração e espontaneidade, sem artifícios nem preocupação alguma com os processos estéticos.

 

Devido a uma epidemia de varíola, ficou completamente cega aos 20 meses de vida. Recebeu da família uma sólida formação cultural e aos 12 anos já ditava seus poemas para os irmãos escreverem. Em 1834 publicou o livro “Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses”, impresso na Typographia de Fonseca & Cia., de Porto Alegre. Foi uma das primeiras obras impressas no Rio Grande do Sul.

Seu pai faleceu em 1825 e ela passou por alguns perrengues com dificuldades econômicas em se manter. Escreveu um soneto-apelo dirigido ao Imperador Dom Pedro I pedindo auxílio e foi contemplada com uma pensão vitalícia, em reconhecimento aos serviços prestados pelo pai como capitão-mor. O fato reforçou sua adesão à Monarquia. Conforme registra o Dicionário de Mulheres, de Hilda Hubner Flores, ela odiava os liberais “Farroupilhas”, e escrevia versos ferinos contra o líder Bento Gonçalves. Como decorrência dessa intriga política, ela teve que exilar-se no Rio de Janeiro, em 1838, onde seu livro foi reeditado pela Livraria Garnier.

Não chegou a se casar, mas dizem que mantinha uma paixão secreta pelo Major Manuel Marques de Souza, o futuro Conde de Porto Alegre, que retomou a capital gaúcha das mãos dos Farroupilhas, em 15/6/1836. Há quem diga que seu amor sublimado tenha sido o motivo do desencanto gravado em seus versos. Há também quem diga que isso é bobagem e que a cegueira já seria suficiente para provocar um desencanto e melancolia com a vida, conforme se vê no soneto:

Em versos não cadentes, oh! leitores,
Vereis os males meus, vereis meus danos:
Da Primavera a gala e os verdores
Nem foram para os meus primeiros anos.

Mesmo na infância experimentei rigores
De meus fados cruéis sempre inumanos,
Que só me destinaram dissabores
Mil males revolvendo em seus Arcanos.

Sem auxílio da luz, que Apolo envia,
Versos dignos de vos tecer não posso;]
Desculpai minha ousada fantasia.

Com estes cantos meus, mortais, adoço
A mágoa que meu estro só resfria:
Se mérito lhe dais, é todo vosso.

Faleceu em 13/4/1857 e sua última obra – Coleção de várias Poesias dedicadas à Imperatriz Viúva – foi lançada em 1846 pela Tipografia Laemmert. O primeiro registro de seu nome na bibliografia brasileira se encontra no livro Mulheres Ilustres do Brasil (1899), de Ignez Sabino, onde são enaltecidos os sentimentos e a qualidade de sua poesia. Consta também um verbete incluído no livro Vozes Femininas da Poesia Brasileira, publicado pelo Conselho Estaudal de Cultura de São Paulo, em 1959, ressaltando seu pionierismo na Literatura. Foi homenageada como patrona da cadeira nº 1 da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, e tem seu nome estampado numa rua do bairro Camaquã, em Porto Alegre.

Na falta de uma biografia exclusiva, temos o romance histórico O romanceiro de Delfina, de Stella Leonardo, publicado, em 1994, pelo Instituto Estadual do Livro (RS), contando a saga da poeta. Em 2011, Suzete Maria Santin apresentou na Faculdade de Letras da UFRGS, a tese de doutorado “Delfina Benigna da Cunha: recuperação crítica, obra poétca e fixação do texto”, esmiuçando a obra da poeta e apresentando vasta documentação da época. A tese em 2 volumes se propõe a fazer uma reletura da obra da poeta, “visando a uma abordagem com base na concepção de poesia lírica de Georg Wilhem Friedrich Hegel e de estilo, de Michael Riffaterre”. Recurpera a fortuna crítica sobre a obra e tem sua análise centrada no “amor em uma combinação tensa com a poesia da existência”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 16 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: PONTES DE MIRANDA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Pontes de Miranda

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda nasceu em 23/4/1892, em Maceió, AL Jurista, filósofo, sociólogo e diplomata, distinguido na área do Direito. Criança precoce, aos 7 anos lia em francês e português. Aos 16 anos ganhou do pai uma passagem para estudar matemática e física na Universidade de Oxford, mas preferiu seguir o conselho da tia: estudar na Faculdade de Direito do Recife. A escolha não o impediu de destacar a importância da matemática em suas obras.

No 2º ano da faculdade publicou seu primeiro livro – À Margem do Direito -, elogiado por Ruy Barbosa. Diplomado em 1911, publicou o Ensaio de Psicologia Jurídica, novamente elogiado pelo jurista baiano. Começou a escrever o Tratado de Direito Privado em 1914, buscando livros da Rússia, Índia e de outros países, consultando mais de 3 mil monografias, tratados de direito civil, direito criminal e direito antigo. Lançou o 1º volume somente em 1954. Uma obra monumental em 60 volumes, que foi concluída em 1970. Numa entrevista de 13/3/1978, disse que apesar de considerarem esta a sua melhor obra, preferia seu Tratado das Ações, em 10 volumes.

Foi um escritor prolífico não apenas no número de volumes. De sua lavra saíram 88 títulos de livros dedicados ao Direito e outras áreas. Seus primeiros textos foram elogiados por juristas literatos, como Clóvis Beviláqua e Ruy Barbosa, e pelo crítico José Veríssimo. O livro A sabedoria dos instintos, recebeu, em 1921, o prêmio da Academia Brasileira de Letras-ABL. Em 1925 a ABL voltou a premiá-lo pelo livro Introdução à sociologia geral. Sua predileção pela Matemática, herdada do avô, levou-o mais tarde a lançar mão de célebres equações – desde então identificadas como “equações pontianas” – para expressar seu pensamento.

Na área da Física, fez algumas restrições à teoria de Einstein sobre sua afirmação do encurvamento do espaço. Entrou em contato com o ilustre físico, do qual recebeu a sugestão que ele escrevesse uma tese sobre a representação do espaço e a enviasse para o Congresso Internacional de Filosofia, que se reuniria em Viena, em 1924. Não acatou o conselho de Einstein, pois esta não era sua praia. Sua curiosidade científica não chegou a tanto. A ciência levou-o naturalmente ao agnosticismo, mas isso não impediu de ser amigo do Papa João XXIII. Antes de encontrá-lo, mandou dizer-lhe que não era católico, mas o Papa respondeu que existem muitos católicos no inferno e que o considerava um verdadeiro franciscano. Mais tarde, em 1975, converteu-se ao catolicismo.

Escritor compulsivo e influenciado pela filosofia alemã, através dos colegas da “Escola do Recife”, introduziu novos métodos e concepções em diversas áreas do Direito brasileiro. Ingressou na magistratura em 1924, como juiz de órfãos e em seguida como desembargador do antigo Tribunal de Apelação do Distrito Federal (RJ). Na mesma época, representou o Brasil em duas conferências internacionais: Santiago do Chile e Haia, que levaram-no para a carreira diplomática em 1939, quando foi embaixador na Colômbia. No entanto, convidado para ser embaixador da Alemanha, declinou do cargo, por ser contra governos ditatoriais.

Permaneceu representando o País em conferências internacionais até 1943, quando passou a se dedicar às atividades de parecerista e escritor. É considerado o parecerista mais citado na jurisprudência brasileira. Não obstante ser mais conhecido na área do Direito, foi um pensador, poeta e romancista. A produção bibliográfica na área literária levou-o à Academia Brasileira de Letras em 1979, onde foi recebido por Miguel Reale. Por ironia do destino, veio a falecer em 22/11/1979, no ano em que foi “imortalizado” na ABL. Pouco depois, foi agraciado a título póstumo com a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública de Portugal, em 10/2/1981. São muitos os títulos e homenagens que lhe foram prestadas em vida e pós-morte. Foi professor honoris causa de 6 universidades brasileiras.

Em 1994 foi criado o “Memorial Pontes de Miranda” da Justiça do Trabalho em Alagoas, instituído pelo Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região, com o objetivo de preservar e divulgar sua obra, bem como a história da Justiça do Trabalho em Alagoas. O museu ocupa o 3º andar do edifício do Tribunal Regional do Trabalho, conserva um conjunto de objetos pessoais, incluindo sua máscara mortuária, documentos, fotografias, insígnias, móveis e outros itens. Em 1999, foi eleito “Jurista do Século”, através de uma enquete em âmbito nacional, realizada pela revista “Istoé”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 09 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: O PEDRO ERNESTO (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Pedro Ernesto

Pedro Ernesto do Rego Baptista nasceu no Recife, PE, em 25/9/1884. Médico, político, prefeito do Rio de Janeiro em 2 mandatos na década de 1930. Foi um dos primeiros políticos brasileiro na implementação de uma legislação trabalhista e o primeiro a destacar a educação e apoiar financeiramente o carnaval, prestigiando as escolas de samba. Sua meta era transformar o Rio de Janeiro numa potência turística. Se não conseguiu, ajudou bastante.

Filho de Maria Adelina Siqueira e Modesto do Rego Batista, pequeno comerciante e líder maçônico, que exerceu forte influência em sua formação. Após concluir os primeiros estudos no Recife, mudou-se para Salvador, onde iniciou o curso de medicina e conclui-o no Rio de Janeiro, em 1908. Casou-se com Maria Evangelina Duarte Batista; montou sua clínica (Policlínica de Botafogo) e alcançou grande reputação como cirurgião. Era membro da Academia Nacional de Medicina, do Colégio Americano dos Cirurgiões e da Academia Francesa de Medicina. Na década de 1920 mantinha uma das melhores casas de saúde da cidade, com salas de cirurgia, serviço de raio-x, radioterapia etc. Embora civil, foi membro atuante do “Movimento Tenentista”, de oposição ao governo federal. Não participou diretamente do levante do Forte de Copacabana, em 1922, mas atuou nos bastidores e colocou à disposição sua casa de saúde como refúgio e ponto de encontro dos rebelados. Era conhecido como a “mãe dos tenentes.

O movimento constituiu-se numa das forças que ajudaram Getúlio Vargas na Revolução de 1930, com a deposição de Washington Luís. Na ocasião, tornou-se médico da família Vargas; desfrutava de prestígio junto ao novo governo; participava com frequência das reuniões no Palácio do Catete e foi nomeado diretor do Departamento Nacional de Assistência Hospitalar. Em 1931 fundou o “Clube 3 de Outubro”, afim de dar maior coesão à atuação dos revolucionários históricos. Seus integrantes defendiam que o prolongamento do Governo Provisório deveria durar somente até a eleição de uma assembleia constituinte, que substituiria a Constituição de 1891. Seu prestígio era tamanho que levou o presidente Vargas a nomeá-lo como interventor na prefeitura do Rio de Janeiro, em 1931.

Nesta condição, presidiu o I Congresso Revolucionário reunindo os adeptos e organizações alinhadas com a Revolução de 1930, onde foi deliberado a criação do PSB-Partido Socialista Brasileiro, que nunca se consolidou de modo efetivo. Dois anos após, participou da fundação do Partido Autonomista do Distrito Federal, cujo objetivo era lutar pela autonomia política da cidade do Rio de Janeiro. Sob sua liderança, o partido foi eleito para a Assembleia Nacional Constituinte e suas teses foram aprovadas. No ano seguinte, o partido obteria também uma ampla vitória nas eleições para a Câmara Municipal, elegendo a maior bancada. Assim, tornou-se o primeiro governante eleito da história da cidade, ainda que de forma indireta.

Tanto como interventor como prefeito, seu governo deu especial atenção aos trabalhadores com diversas leis e prioridade nas áreas da saúde pública e educação. Na saúde criou 8 grandes hospitais em regiões mais carentes, e na educação contava com Anísio Teixeira como secretário durante 3 anos. Neste período foram construídas 28 escolas e contratados 800 professores. Pela primeira vez foi criada uma escola pública numa favela – Morro da Mangueira -, em 1935. Vale destacar que até 1930 cerca de 80% das escolas funcionavam em prédios alugados, muitos dos quais com fornecimento precário de água e luz. Outro destaque é que até a década de 1920, os prefeitos cariocas concentravam os investimentos apenas no Centro e na Zona Sul. Sua administração procurou integrar a Zona Oeste, além de ampliar a oferta de serviços públicos na Zona Norte, onde viviam os trabalhadores assalariados.

Com tal programa político, incluindo a ajuda financeira e promoção das escolas de samba, conquistou enorme popularidade, chegando a ser cotado para a Presidência da República. Sua popularidade assustou os grupos de direita e de esquerda, especialmente o presidente Vargas, que viu ali um forte concorrente à causar-lhe problemas em seus planos de governo. Em 1935 aproximou-se da ANL-Aliança Libertadora Nacional, que reunia comunistas, socialistas e tenentes de esquerda. Em julho denunciou a articulação de um golpe dos conservadores e protestou contra o fechamento da ANL pelo governo. Em novembro foi acusado de participar da “Intentona Comunista”, com levantes armados, promovidos pelo PCB-Partido Comunista Brasileiro, em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Realmente, ele foi convidado por Luís Carlos Prestes para o levante, mas sua participação não foi comprovada.

Em abril de 1936 foi preso e ficou encarcerado mais de um ano. Ao sair da prisão em setembro de 1937, foi aclamado em manifestações populares; fez discursos contra Vargas e apoiou a candidatura do governador paulista Armando Sales de Oliveira à presidência da República, marcadas para janeiro de 1938. Mas o golpe de estado decretando o Estado Novo, em novembro de 1937, enterrou sua carreira política. Foi novamente preso e libertado 3 meses depois. Nos anos seguintes, marcados por uma grande desarticulação política da oposição, ele ficou alijado das atividades políticas. Em 1941 viajou aos EUA para uma intervenção cirúrgica e ao voltar, em fevereiro de 1942, divulgou um manifesto de apoio ao governo por romper relações diplomáticas com o Eixo. Passou a defender a união nacional, a pacificação politica e a anistia geral. Retomou as atividades em sua casa de saúde e veio a falecer em 10/8/1942.

Hoje quase não se fala no prefeito carnavalesco, saído do frevo do Recife para levantar o carnaval do Rio. Porém, seu nome foi dado ao prédio da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ao Hospital Universitário, uma escola na Lagoa e uma rua no bairro da Gamboa. Em 2009, foi lembrado no samba-enredo da Escola de Samba Unidos de Cosmos. Consta também um relato de sua vida política, escrito por Thiago Cavaliere – O trabalhismo de Pedro Ernesto: limites e possibilidades no Rio de Janeiro dos anos 1930, publicado pela Editora Juruá, em 2010. Seu arquivo pessoal encontra-se à disposição para consulta no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getúlio Vargas.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 02 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: DARCY RIBEIRO - II (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Darcy Ribeiro II

Foi autorizado pelo Governo a entrar no Brasil para extrair um pulmão, não para morar. Assim, foi recebido pelas autoridades no aeroporto; foi escoltado até a residência onde ficou e passou a ser vigiado pelo DOPS o tempo todo, onde quer que fosse. Pouco depois da cirurgia, o escritor João Antônio, na condição de repórter, foi entrevistá-lo e quase acabou sendo entrevistado. A matéria, publicada no jornal “Ex”, (nº 15, de out./1975), mostrou Darcy recuperado, exultante e perambulando pelo Rio sempre vigiado de perto por dois policiais à paisana. Passou 6 meses nessa rotina já acostumado com os vigias, mas sofrendo pressões políticas. O Governo Militar deixou que fosse operado aqui, achando que ele ia morrer. Como ficou mais vivo ainda, as pressões aumentaram e ele teve que voltar ao Peru para completar seu 3º exílio.

 

 

Ao chegar em Lima, em 1975, encontrou o presidente Alvarado enfermo, vitimado por um aneurisma e sem poder governar. Todo seu trabalho estava sendo desmontado e todos seus amigos e equipe de auxiliares haviam sido trocados. Passou uns meses vendo o que fazer, desmontou o Centro de Estudos da Participação Popular e retornou ao Brasil no ano seguinte. Mas, permaneceu pouco por aqui, ficou viajando pelo mundo “consertando” ou planejando universidades: México, Argélia, Costa Rica etc. e tornou-se romancista com o lançamento de Maíra (1976), seu primeiro romance, traduzido em diversos idiomas. Em 1977 participou da 29ª Reunião da SBPC, em São Paulo, e proferiu uma de suas melhores palestras: “Sobre o óbvio”, tratando do ensino público e que abre seu livro Ensaios insólitos, publicado em 1979. Entre as viagens realizadas, foi ao México, em 1978, a convite da UNAM-Universidad Autónoma de México, para gravar um disco “Voz Viva de América Latina”, Trata-se de um projeto de memória e fixação da voz de grandes personalidades da região. O disco nunca foi divulgado no Brasil, mas o Parlamento Latino-Americano conseguiu uma transcrição do depoimento, traduziu e publicou no livreto “Darcy Ribeiro: América Latina Nação”, em 1998. Na época eu trabalhava lá e tive o prazer coordenar a edição do livreto.

Decretada a Anistia, em 1979, foi reintegrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e participou do “Tribunal Bertrand Russel”, em 1980 na Holanda, sobre crimes cometidos contra os índios na América Latina. Passando por Paris, recebeu o título de “doutor honoris causa” da Universidade de Sorbonne. Em seguida, uniu-se a Brizola na organização do PDT-Partido Democrático Trabalhista (PDT) e foi eleito vice-governador do Rio de Janeiro, em 1982. Acumulou o cargo com o de secretário de Ciência e Cultura e ficou encarregado de coordenar o Programa Especial de Educação, cujo objetivo era implantar 500 Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), uma escola em período integral para crianças e adolescentes e foi copiado em outros estados. Para isso, criou uma “Fábrica de Escolas” pré-montadas e ao final de 4 anos conseguiu implantar “apenas” 127 CIEPs. Em sua gestão foram criadas a Biblioteca Pública Estadual, Casa de Cultura Laura Alvim, Centro Infantil de Cultura de Ipanema. e o “Sambódromo”, a passarela das escolas de samba, que hoje leva seu nome, e abriga escolas de 1º e 2º grau.

Nas eleições de 1986 foi candidato à sucessão de Brizola no governo do Rio. Mas foi vencido por Moreira Franco numa ampla coligação partidária. Na ocasião o PDT foi acusado de ser conivente com o “jogo do bicho” e, por tabela com o crime organizado. A polarização esquerda x direita foi acirrada, culminando com sua derrota. Em seguida (maio de 1987) foi convidado pelo governador de Minas Gerais, Newton Cardoso (PMDB), para assumir a Secretaria de Desenvolvimento Social, com a promessa de criar mil CIEPs em todo o Estado. Porém, abandonou o cargo em setembro quando viu que o governador não levava a sério seu projeto. No ano seguinte retomou um sonho antigo: criar em Brasília o Memorial dos Povos Indígenas. Seu amigo Oscar Niemeyer projetou o edifício e o museu-centro cultural e de pesquisa da cultura indígena foi inaugurado no eixo monumental. Com se vê, Darcy foi também um grande museólogo em suas “horas vagas”. Ainda em 1987 foi convidado pelo governador de São Paulo, Orestes Quércia (PMDB), para ajudar Oscar Niemeyer na parte cultural do Memorial da América Latina, inaugurado em 1989. Mais um museu foi criado: O “Pavilhão da Criatividade” lá instalado leva seu nome.

Na primeira eleição presidencial por via direta, em 1989, após o Golpe de 1964, Brizola foi candidato e Darcy percorreu o Pais organizando grupos de intelectuais, sindicalistas e professores para elaborar o programa de governo. Novamente deu-se uma acirrada polarização ideológica entre Lula (PT) e Collor (PRN) e Brizola apoiou o PT no 2º turno das eleições. O bom senso eleitoral não prevaleceu e Collor foi eleito presidente. Nas eleições de 1990 Brizola foi reconduzido ao governo do Rio e Darcy ao senado federal, seu primeiro e único mandato legislativo. No senado priorizou a educação e conseguiu aprovar a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, lei 9394/96). A nova concede autonomia escolar em todos os níveis e diploma universitário para todos os professores, incluindo os do curso primário. Entre seus tantos projetos de lei, consta uma que se fosse aprovada, estaria resolvido o problema da falta de órgãos para transplantes nos hospitais. A Lei tornava possível usar os órgãos dos mortos para salvar os vivos. A pessoa que não quisesse doar seus órgãos deveria deixar esse desejo manifesto por escrito. Outra proposta defendia uma lei de trânsito mais favorável aos pedestres contra a selvageria dos motoristas. Preocupado com o ambiente e a memória, conseguiu o tombamento de 98 km. de belas praias e encostas, além de mais de mil casas e sobrados do Rio antigo.

Em setembro de 1991 licenciou-se do mandato para assumir a Secretaria Extraordinária de Programas Especiais do Rio de Janeiro, com a finalidade de retomar a implantação dos CIEPS e coordenar a criação da UENF-Universidade Estadual do Norte Fluminense, em Campos, concebida como um centro gerador de tecnologia avançada. Retornou ao Senado em 1992 e no ano seguinte foi conduzido à Academia Brasileira de Letras. Vaidoso assumido, discursou: “Estou certo de que alguém, neste resto de século, falará de mim, lendo uma página, página e meia. Os seguintes menos e menos. Só espero que nenhum falte ao sacro dever de enunciar meu nome. Nisto consistirá minha imortalidade”. Nas eleições presidenciais de 1994, o PDT lançou novamente a candidatura de Brizola, tendo Darcy como vice. Foi combinado entre os dois, caso vencessem as eleições, que Darcy assumiria o Ministério da Educação para implantar os CIEPs em todo o País. A disputa presidencial se deu entre Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula (PT), onde o primeiro venceu já no 1º turno. Em dezembro do mesmo ano, foi surpreendido com outro câncer na próstata e ficou internado por um mês no Hospital Samaritano, no Rio. Novos e mais graves perrengues lhe atormentam e planeja uma fuga do hospital com ajuda de um amigo. Foi para sua casa em Maricá e justificou a fuga pela necessidade de concluir seu livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), encerrando a série “Estudos de Antropologia da Civilização”. Trata-se de seu livro mais conhecido e visto como sua obra prima.

Em 1995, ao fazer 73 anos, foi surpreendido com uma grande festa num casarão do Jardim Botânico, promovida por 60 mulheres “ex-esposas, ex-namoradas, ex-amantes e amigas”. O aniversariante ficou à vontade: “Foi a festa mais bonita da minha vida. Foi uma beijação só!”. As ex-esposas Berta Ribeiro e Claudia Zarvos ficaram mais próximas. “As outras todas ficaram ao redor, mas sem ciúme. Foi uma coisa linda!”. Depois foi agraciado com uma desejada comenda: o “Prêmio Anísio Teixeira”, concedida pela Presidência da República à pessoas destacadas na área educacional. Premiações e homenagens foram constantes nessa época. No mesmo ano recebeu o “Prêmio Interamericano de Educação Andrés Bello, concedido pela OEA-Organização dos Estados Americanos. Em seguida recebeu da Biblioteca Nacional o “Prêmio Sergio Buarque de Holanda” pela publicação do livro Diários índios (1996). Em janeiro de 1997 recebeu a comenda “Homem de Ideias”, concedida pelo Jornal do Brasil. Esta foi sua última homenagem em vida, cujo título define o agraciado: um homem de ideias e ideais, falecido no mês seguinte, em 17/2/1997. Conforme seu pedido, o corpo foi encomendado pelo teólogo Leonardo Boff, padre proscrito pelo Vaticano, devido a ligações com a “Teologia da Libertação”, e seu amigo pessoal.

Darcy conviveu quase 30 anos com a morte iminente. Conforme atestam os amigos, passou desde então a viver intensamente e com urgência todos seus trabalhos, além de uma pulsão autobiográfica expressa nos livros Migo (1988), Testemunho (1990) e Confissões (1997), que escreveu “com medo-pânico de morrer antes de dizer a que vim”, confessou no prólogo e não chegou a vê-lo publicado. Esta pulsão levou-o a criar a FUNDAR-Fundação Darcy Ribeiro. “Tanta gente por aí com fundação, eu também quero uma”. Com recursos próprios, biblioteca e arquivos dele e Berta Ribeiro, foi criada no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em 1996. Em seguida foi concebido o Memorial Darcy Ribeiro em parceria com o Ministério da Cultura e a UnB, abrigando a biblioteca (30 mil livros) e arquivos do casal. Trata-se de uma bela edificação, “mistura de oca e disco voador”, aterrissando na praça maior da UnB, inaugurada em 2010. Como foi o criador do “sambódromo”, deu o nome de “beijódromo” ao local, para espairecer a rapaziada. Trata-se de uma “fábrica-escola” com auditório, salas de aula, gabinetes de pesquisa, galeria para exposição, cineclube, centro de documentação, café e livraria e uma representação da FUNDAR.

Darcy vem sendo lembrado em todo o País, com seu nome estampado em logradouros públicos e instituições. Em 1998, a Câmara dos Deputados instituiu o “Prêmio Darcy Ribeiro”, uma comenda anual com diploma e medalha concedida a 3 personalidades destacadas na defesa e promoção da educação brasileira. No Carnaval de 2020, foi tema-enredo da Escola de Samba Império da Uva: “Darcy Ribeiro – O Homem muito além do seu tempo!”. Biografias e ensaios biográficos transbordam na Internet, além de suas autobiografias. Mas, como vaidoso assumido, é suspeito para falar de si mesmo. Os interessados em conhecê-lo melhor podem recorrer à outras fontes, como a biografia realizada por Helena Bomeny – Darcy Ribeiro: um sociólogo indisciplinado – publicada em 2001 pela Editora da UFMG, em 2001, ou a de Toninho Vaz – Darcy Ribeiro: nomes que honram o Senado – publicada em 2005 pela Editora do Senado. Foi um dos brasileiros que mais contribuíram na busca de uma identidade nacional e latino-americana do Brasil.

Leia a primeira parte clicando aqui


José Domingos Brito - Memorial segunda, 26 de outubro de 2020

OS BRASILEIROS: DARCY RIBEIRO - I

 

OS BRASILEIROS: Darcy Ribeiro I

Darcy Ribeiro da Silveira nasceu em Montes Claros, MG, em 26/10/1922. Antropólogo, sociólogo, museólogo, educador. administrador, político e escritor. Foi um dos mais brilhantes pensadores (e fazedores) brasileiros destacado em diversas áreas. Passou a vida repensando o Brasil e suas mazelas; sua riqueza natural e cultural a partir da miscigenação entre brancos, negros e índios. Sua trajetória de vida daria belo documentário da história do Brasil durante a segunda metade do século XX.

 

Filho de “Dona Fininha” (Josefina Augusta da Silveira), professora que nomeia uma avenida da cidade, e Reginaldo Ribeiro dos Santos, falecido quando ele tinha 3 anos. Sem pai, virou moleque traquino e curioso. Na farmácia do tio, ouviu falar que a quantidade de “azul de metileno” que lá havia daria para pintar o oceano Atlântico. Ficou intrigado com a informação e despejou um pacote na caixa d’água da cidade. A água azul saiu em todas as torneiras, causando pânico na cidade. Aos 17 aos foi estudar medicina em Belo Horizonte, mas sem vocação para isso largou o curso no 4º ano. Em contato com o sociólogo Donald Pierson, diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ganhou uma bolsa de estudos e aí foi estudar, em 1944, graduando-se em antropologia, em 1946. No ano seguinte foi trabalhar no SPI-Serviço de Proteção ao Índio e conheceu Rondon e os irmãos Villas-Boas. A partir daí passou a viver 10 anos, alternadamente, entre os índios e no Rio de Janeiro. Seu primeiro livro –Religião da mitologia Kaiwéu – foi publicado em 1950, e lhe valeu o Prêmio Fábio Prado. Em 1953 criou o Museu do Índio. Mas, logo os irmãos Villas-Boas viram que, além do museu, os índios precisavam de um local para viver seguramente e idealizaram o Parque Indígena do Xingu, cujo projeto foi realizado por Darcy e inaugurado em 1961. Por essa época era um antropólogo completo: organizou o 1º curso de pós-graduação em antropologia (1955) e presidiu a Associação Brasileira de Antropologia (1959)

O Parque é a maior reserva indígena do mundo, onde vivem hoje cerca de 5.500 índios de 14 etnias. Afirma-se que sua criação evitou um grande genocídio no Brasil. Sua dedicação à estes povos, levou-o a elaborar para a Unesco um estudo sobre o impacto da civilização sobre os índios e, em 1954, trabalhou na OIT-Organização Internacional do Trabalho na edição de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. No ano seguinte, com a eleição de Juscelino Kubitschek, foi convidado a participar da elaboração do plano educacional do novo governo, junto com Anísio Teixeira, seu chefe e “guru”. Anísio, vendo que o rapaz prometia, entregou-lhe a Divisão de Estudos Sociais do CBPE-Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. O “cabra” tornou-se um educador obstinado e produtivo. Em seguida, JK pede à Darcy e Anísio para planejarem a Universidade de Brasília-UnB, em 1959. Reuniram um seleto grupo de professores nacionais e alguns estrangeiros e a UnB foi inaugurada em 1962, com Darcy na Reitoria, tendo Anísio como vice. Pouco depois foi conduzido ao MEC-Ministério da Educação e deixou a reitoria com Anísio. O País passa por transformações profundas na Política com o governo de João Goulart e seu envolvimento vai se alargando. Em 1963 convidado pelo presidente para exercer a “eminência parda” do governo e assume a chefia da Casa Civil. Neste cargo, passou a coordenar as reformas estruturais à serem implantadas no Pais.

Com o Golpe Militar de 1964, articulou uma resistência armada, mas não encontrou apoio suficiente e foi obrigado a fugir em direção ao exilio no Uruguai. Em 4 de abril o deputado Rubens Paiva conseguiu um pequeno avião Cessna e um acordo com o pessoal da torre de controle do aeroporto de Brasília. Levou Darcy e Waldir Pires até a cabeceira da pista e ficaram agachados num capinzal aguardando a chegada do avião. O piloto não sabia quem eram e foi orientado apenas a recolher os dois passageiros e levantar voo. Alguém na torre percebeu o rápido embarque e passou uma ordem pelo radio para retornar. O piloto quis obedecer, mas uma contra ordem incisiva de Darcy fez com que o voo prosseguisse até uma fazenda de Mato Grosso, e daí noutro voo até Montevideo.

No Uruguai foi bem recebido e logo foi nomeado professor de antropologia da Universidad de la Republica. Ficou, também, encarregado de presidir um seminário de reformas na universidade, com base no trabalho feito na UnB. Aí tem inicio sua função de “sapateiro remendão” de universidades na Am. Latina, como ele mesmo definia. Com passaporte uruguaio pode viajar pela Europa, Rússia e Cuba, onde manteve encontros com Fidel Casto e Che Guevara em longas conversas. “Sempre me lembrarei dessa conversa com Che. Ele suave e duro como ninguém. Eu me desmanchando, palavroso, em argumentações”, disse mais tarde em suas Confissões (1997). Por essa época começou a escrever seus “Estudos de antropologia da civilização em 5 volumes: O processo civilizatório (1968), As américas e a civilização (1970), O dilema da América Latina (1978), Os brasileiros (1972), Os índios e a civilização (1970). Publicou também A universidade necessária (1970), sintetizando sua experiência em reformas universitárias e, para “espairecer”, fez o primeiro esboço do romance Maíra (1976), com o qual se fez romancista.

Em Montevideo participou da vida cultural junto com Angel Rama e Eduardo Galeano entre outros; escreveu artigos para a revista “Marcha” e participou da edição da Enciclopedia de la Cultura Uruguaia, vendida em capítulos em bancas de jornal. Em meados de 1968, os processos que lhe eram movidos foram anulados pelo STF-Supremo Tribunal Federal. Após 4 anos de exílio e sabendo da “Marcha dos Cem Mil” (26/6/1968) no Rio de Janeiro, se animou a voltar achando que a anulação dos processos lhe favorecia. Mesmo advertido por Jango e Brizola, pediu ao seu advogado Wilson Mirza que avisasse o governo brasileiro que estaria voltando em tal avião, dia tal, no aeroporto do Galeão. Ao chegar foi avisado, ainda no aeroporto, que deveria se apresentar no DOPS-Departamento da Ordem Política e Social. Lá respondeu um longo questionário e foi liberado. Como era o primeiro cassado e exilado que voltava, a imprensa não deu sossego. Passou 3 meses se esbaldando em jantares com os amigos e falando, “pelos cotovelos”, bem do governo deposto e mal da ditadura em diversas entrevistas. Foi advertido pelos amigos: “Isso não se faz na ditadura, Darcy. Ninguém fez isso aqui”. Não demorou para que a polícia batesse na sua porta; mas não o levaram com a promessa de se apresentar ao Superior Tribunal Militar. A ordem era para prender, mas seu advogado apelou para o STF e continuou livre, porém vigiado de perto pelos agentes do DOPS. Até que em 13/12/1968 veio o AI-5 e foi aconselhado a fugir. Mas não admitiu “voltar com minhas próprias pernas para o exílio”. Foi preso no dia seguinte e levado para o batalhão blindado do Rio, numa cadeia que logo ficou lotada de “subversivos”. A prisão durou 9 meses.

Ali passou 3 dias e foi levado para o clube dos cabos. A acomodação melhorou bastante, tanto que deu para fazer a 2ª versão de Maíra. Depois levaram-no para a Fortaleza de Santa Cruz, onde havia muitos estudantes presos e podia conversar com eles no “banho de sol”. Mas isso durou pouco, um oficial do dia proibiu a conversa. Às vezes a proibição não era cumprida e foi advertido: “Se o senhor continuar a falar com os presos, eu tiro o banho de sol deles”. Em seguida foi transferido para a Ilha das Cobras, sob os cuidados da Marinha. Ao chegar foi avisado que devido ao fato de ter sido agraciado com a ordem do mérito naval em grau de grã-cavalheiro, teria direito a prisão de almirante. Aí ficou alguns meses bem melhor instalado. Na Marinha, o pessoal era mais educado e com o tempo passaram a respeitá-lo pelo fato de ter convivido com os índios e ser discípulo de Rondon, herói das forças armadas. Assim, passou a receber visitas semanais de sua esposa Berta e de alguns amigos. Foi convencido pela esposa e amigos a escrever uma carta ao presidente Costa e Silva, pedindo-lhe um passaporte para deixar o País, quando saísse da cadeia, pois havia um convite da Universidade de Columbia, para dar aulas como professor visitante. Concluiu a carta com “Saudações republicanas” e recebeu o passaporte.

Em 1969 foi julgado por um tribunal de oficiais da Marinha e foi absolvido. Em liberdade, ficou alojado na casa de seu advogado e no outro dia, soube que o Exército, em desacordo com a sentença da Marinha, ordenara sua volta à prisão. Desesperado, correu para a Embaixada Americana para conseguir um visto de entrada nos EUA. Teve uma conversa ríspida com o Cônsul, que relutava em lhe dar o visto. “Não estou convencido. Não o vejo como mero professor visitante”. Vendo que não conseguiria o visto, retrucou: “Claro. Sou um eminente antropólogo. Fui honrado com um convite para lecionar na Columbia, coisa que nunca sucederia ao senhor”. A troca de farpas se prolongou com o cônsul dizendo que ele estivera em Cuba em conversas com Fidel e Che. “Tenho aqui uma foto sua em viagem para lá. Aliás, seu arquivo é um dos maiores que temos”. Darcy encerrou a a conversa: “Cuide bem dele. Vai ser útil para meus biógrafos”. Na ocasião, seu amigo José Augustin Michelena, sociólogo venezuelano de passagem pelo Rio, foi acionado para lhe conseguir um visto consular para entrar em Caracas. Junto com Berta, foram para o Aeroporto e deixaram um amigo na fila de embarque, enquanto ficaram dispersos entre as pessoas até a chamada do voo.

Em Caracas foi contratado pela UCV-Universidad Central de Venezuela como professor de antropologia, orientador de teses e a direção de um seminário de renovação da UCV. Posteriormente deu aulas também na Universidade de Mérida. Durante um ano conviveu com a intelectualidade local e viajou pelo Caribe. Se deu bem em Caracas, inclusive com uma namorada de 22 anos, filha de um ricaço. O único problema que teve foi com um adido militar do Brasil, que, na condição de amigo do Ministro da Justiça, impedia que lhe dessem o visto permanente. Foi obrigado a obter visto de turista em Curaçao. Na terceira vez que foi renovar o visto, se aborreceu e reclamou numa entrevista de programa de TV. A apresentadora passou a reclamar que o presidente Caldera estava expulsando da Venezuela um dos maiores intelectuais da Am. Latina, professor contratado pela UCV, devido à pressões da ditadura brasileira. A bronca deu certo e o visto permanente saiu no dia seguinte. Tudo ia muito bem, até a vitória de Allende no Chile, em 1970, seu amigo quando vivia em Montevideo.

Em contatos com o Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, mudou-se para Santiago, em 1971, procurou Allende e se colocou à seu serviço. Na condição de assessor especial redigia os discursos do presidente. Foram 2 anos de trabalho em conduzir o país pela via do socialismo em liberdade, com democracia e desenvolvimento da economia nacional. O único país aliado era Cuba, cuja longa presença de Fidel no país acirrava a esquerda radical, desagradava a elite e alimentava o complô que se armava nos EUA. A situação chegou num ponto em que a esquerda declarou: “A economia deu tudo o que podia dar. Cabe agora à ação política abrir caminhos”. O MIR-Movimiento de Izquerda Revolucionária ganhou força e passou a conspirar querendo dar o golpe para “cubanizar” o processo chileno. A elite passou a conspirar; a classe média perdia o emprego; o povo passou a sofrer com filas até para comprar pão. Faltava alimentos em todos os mercados e alguns itens de consumo diário passaram a ser controlados. O caos se instalou a partir de 1973. Nesta ocasião, Luis Echeverria, presidente do México, achando que Darcy corria risco de vida naquela situação diante de um golpe, designou o escritor Juan Rulfo para ir até Santiago, procurá-lo, levá-lo até a Embaixada e trazê-lo para o México. Rulfo passou alguns dias procurando-o e não encontrou. Outro presidente –Velasco Alvarado, do Peru- havia se antecipado, enviando à Santiago Carlos Delgado com um convite à Darcy para “ajudar a pensar revolução peruana”. Diante da situação chilena, o convite foi aceito de imediato.

No Peru trabalhou junto ao gabinete da Presidência na construção do Centro de Estudos da Participação Popular, com ajuda de Oscar Varsavsky, matemático argentino, inventor da simulação computacional. O Centro resultava de uma parceria com o PNUD-Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e contava com ajuda da OIT-Organização Internacional do Trabalho. A partir de uma grande base de dados projetou-se um sistema de informações para implementar políticas sociais, que Darcy chamou de “socialismo cibernético”, pois “não se fundava em nenhuma ideologia, mas num jogo de números dentro do computador”. Suas ideias combinavam a implantação de uma modernidade tecnológica com o renascimento da cultura incaica. Porém encontrou resistências entre a intelectualidade peruana, que relutava em admitir um estrangeiro na formulação do novo Peru. Percebeu também que não havia interesse da área acadêmica em estudar o quéchua como uma língua nacional, uma de suas propostas. Mesmo assim, conseguiu a edição de um dicionário geral da língua nativa.

Neste ambiente apreensivo, aproveitou para tirar férias e viajou para Portugal. Lá manteve encontros com amigos lusitanos e o ex-deputado Marcio Moreira Alves, proferindo palestras em Coimbra e Porto. Certa noite acordou mal com muita tosse e expelindo sangue. Ficou assustado; procurou o médico; fizeram exames e pela cara do médico viu que era câncer, mas o médico negou. Encaminhou-o à um oncologista, que também negou: “trata-se de uma tuberculose antiga que voltou”. Darcy não acreditou e Marcio levou-o à Paris para fazer exames no “Cretuil”, o melhor hospital de câncer da Europa. Era um câncer pulmonar. “O senhor tem uma bomba no peito, pode explodir a qualquer momento”, disse-lhe o médico. A cirurgia tinha que ser marcada para os próximos dias. Foi um abalo e tanto; passou por uns perrengues revisando a vida passada e refletindo sobre o que fazer diante do pouco tempo de vida que restava. “Envelheci mais nesses últimos dois meses do que nas últimas duas décadas”, confessou. Recebeu uma oferta para fazer a cirurgia nos EUA e recusou. Para espanto dos médicos franceses, recusou também fazê-la em Paris, dizendo que ia fazê-la no Rio de Janeiro. Fez do câncer seu “cavalo de Tróia” para poder voltar ao Brasil em dezembro de 1974. (Continua)

* * *

No próximo domingo concluiremos a biografia concisa de Darcy Ribeiro com sua volta ao Brasil; seu retorno à política como vice-governador do Rio de Janeiro; como senador; sua luta contra o câncer e seu papel na configuração de uma identidade nacional e latino-americana do Brasil.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 19 de outubro de 2020

OS BRASILEIROS: ANÍSIO TEIXEIRA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Anísio Teixeira

Anísio Spínola Teixeira nasceu em Caetité, Bahia, em 12/7/1900. Advogado, escritor e essencialmente educador, foi pioneiro na implantação da escola pública no Brasil. Filho do médico Deocleciano Pires Teixeira, líder político de Caetité. Os primeiros estudos se deram em colégios jesuítas. Cogitou entrar para essa Ordem Religiosa, mas foi dissuadido pelo pai, que já havia projetado uma carreira política para o garoto. Dotado de inteligência excepcional, aos 17 anos foi convidado por Teodoro Sampaio à proferir palestra no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia.

Em 1918 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso de Direito e retornou à Salvador. Foi convidado pelo governador Góes Calmon a assumir o cargo de Inspetor Geral do Ensino, em 1924, e enfrentou com determinação o problema da educação. No ano seguinte partiu para a Europa com a finalidade de conhecer o sistema educacional de alguns países e na volta implementou várias reformas no ensino. Assim, deu início a uma profícua carreira de pedagogo e administrador público. Em 1927 foi conhecer o ensino público nos EUA e tomou contato com as ideias do filósofo e pedagogo John Dewey. De volta à Salvador quis fazer algumas mudanças no sistema de ensino, mas foi impedido pelo novo governador. Pediu demissão do cargo e viajou de novo para os EUA, onde fez curso de pós-graduação, na Universidade de Columbia, com John Dewey, em 1928, que exerceu uma influência decisiva em sua carreira de educador. Sua ideia fundamental era ampliar o sistema educacional, privilegiando a formação do professor.

Tornou-se discípulo do filósofo americano e traduziu para o português dois dos seus livros. Publicou seu primeiro livro, “Aspectos americanos de educação”, em 1928. Três anos depois mudou-se para o Rio de Janeiro e ocupou o cargo de diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, com a missão de reorganizar o ensino público. Neste cargo instituiu a integração da “Rede Municipal de Educação”, abrangendo desde o ensino fundamental até a universidade. No mesmo ano acumulou o cargo de presidente da ABE-Associação Brasileira de Ensino e junto com Fernando de Azevedo, Lourenço Filho entre outros, elaborou o “Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova”, em 1932, um documento propondo uma escola gratuita, laica e obrigatória, e que sofreu forte oposição da Igreja Católica. Os pressupostos da “Escola Nova” tinham como princípio a ênfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade de julgamento no lugar da memorização. Em seguida assumiu a Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. Na condição de amigo íntimo do prefeito Pedro Ernesto Batista, foi apoiado na criação de novos estabelecimentos de ensino e criou a UDF-Universidade do Distrito Federal, em 1935.

Em termos políticos não aderiu formalmente a ALN-Aliança Libertadora Nacional, uma frente que reunia diversos setores de esquerda. Porém, publicava artigos polêmicos no jornal “A Manhã”, órgão oficioso da ALN. Devido a este envolvimento foi demitido da Prefeitura em novembro de 1935, sob acusação de participar da “Intentona Comunista”. Durante o “Estado Novo”, foi perseguido pelo governo de Getúlio Vargas e voltou a residir em Salvador. Passou a lidar com a mineração, atividade de alguns parentes e a curtir mais os amigos, como Monteiro Lobato, com quem publicou mais um livro: “Educação para a democracia” e fazer traduções. Depois, foi morar em Paris por um breve período e foi nomeado conselheiro da Unesco, em 1946. No ano seguinte, de volta ao Brasil, foi convidado pelo governador Otávio Mangabeira para assumir a Secretaria de Educação e Saúde da Bahia. Dentre outras realizações, construiu na Liberdade, o mais populoso e pobre bairro de Salvador, o “Centro Educacional Carneiro Ribeiro”, mais conhecido por “Escola Parque”, pioneiro ao implantar a educação em tempo integral, e que serviu de modelo para os futuros CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), criados por Darcy Ribeiro no Rio Janeiro .

Em 1951 criou e dirigiu a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (atual CAPES, que deixou de ser uma campanha para virar uma coordenação), com a finalidade de “assegurar pessoal especializado em quantidade e qualidade para atender às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do país”. No ano seguinte, dirigiu o INEP-Instituto de Estudos Pedagógico e criou o CBPE-Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Em meados da década de 1950 tornou-se uma personalidade conhecida em âmbito nacional com seu livro “A educação e a crise brasileira”, publicado em 1956. Foi presidente da SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência em duas gestões: 1955-57 e 1958-59. No final da década, participou ativamente dos debates para a implantação da Lei Nacional de Diretrizes e Bases, promulgada em 1961. Logo que Juscelino Kubitschek assumiu o compromisso de fundar Brasília, convidou-o para organizar o plano educacional da nova capital, enquanto Darcy Ribeiro, Ministro da Educação e Cultura, foi designado para criar a UnB-Universidade de Brasília. O jovem Darcy logo tornou-se seu discípulo e deixou-o como reitor da UnB quando assumiu a chefia da Casa Civil, em junho de 1963. Em abril de 1964, com o Golpe Militar, foi obrigado a deixar o País e foi morar nos EUA.

No inicio foi contratado como professor visitante da Universidade de Columbia, em 1964. No ano seguinte passou a lecionar na Universidade de Nova Iorque e depois na Universidade da Califórnia. De volta ao Brasil, em 1966, trabalhou na Fundação Getúlio Vargas, colaborando na criação do Instituto de Estudos Avançados em Educação, centrado na formação de pessoal em nível de pós-graduação. Era um visionário apaixonado pela educação, que planejava a longo prazo. Em princípios da década de 1970, foi incentivado por amigos a entrar para a Academia Brasileira de Letras e passou a visitar alguns amigos acadêmicos na busca de votos. Após a visita ao amigo Aurélio Buarque de Holanda, Anísio desapareceu. A família passou a procurá-lo e foi informada pelos militares que ele se encontrava detido. Na ditadura do governo Médici era comum o desaparecimento de desafetos políticos e o discurso de Anísio era um incômodo: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”

Após longa busca pelos quartéis, seu corpo foi encontrado no fosso de elevador do prédio onde residia Aurélio Buarque de Holanda. Não havia sinas de queda, nem hematomas. A versão oficial foi de que sofreu um acidente em 11/3/1971. Apesar do laudo de morte acidental, há suspeitas de que tenha sido vítima das forças de repressão do governo Médici. 41 anos depois, o professor João Augusto de Lima, numa palestra na UnB, declarou: “Em dezembro de 1988, Luiz Viana Filho me confessou que Anísio Teixeira foi preso no dia que desapareceu e levado para o quartel da Aeronáutica, numa operação que teve como mentor o brigadeiro João Paulo Burnier, figura conhecida do regime militar e que tinha o plano de matar todos os intelectuais mais importantes do Brasil na época”. Dois meses antes, o deputado Rubens Paiva também havia “desaparecido” e sua morte pelas forças da repressão só foi confirmada mais de 40 anos depois. A “Comissão Nacional da Verdade” criou em 2012 a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade e investigou o caso até 2015. Até agora não se chegou a confirmação de assassinato.

Desde o fim da ditadura militar, sua memória e legado vêm sendo resgatados. Começou em grande estilo com sua estampa impressa na cédula de mil Cruzeiros Reais, em 1/10/1993. Em 1998 foi criada, em Caetité, a Fundação Anísio Teixeira, na casa onde nasceu, cujo objetivo, é preservar e divulgar seu pensamento e obra, além de promover o desenvolvimento regional do ponto de vista da educação e da cultura. A entidade abriga Centro de Memória, Biblioteca Pública, Cine-Teatro, Oficina de Arte-Educação, Sala de Cultura Digital e um pátio externo para eventos culturais e educativos. A fundação é presidida por sua filha Anna Cristina Teixeira Monteiro de Barros e o dia de seu nascimento, 12 de julho, é feriado municipal. A CAPES concede anualmente o “Prêmio Anísio Teixeira” à quem contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa e formação de recursos humanos no Brasil e é considerado uma das mais importantes condecorações na área de educação.

Em termos bibliográficos, deixou um legado precioso, que até hoje vem sendo consultado: Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola (1968); Educação no Brasil (1969), Educação e o mundo (1977), publicados pela Cia. Editora Nacional; Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969 (1989), publicado pela Editora da FGV e Educação não é privilégio. 5ª ed. (1994), Educação para a democracia: introdução à administração educacional. 2ª ed. (1997), Educação é um direito. 2ª ed. (1996) e Educação e universidade (1998), publicados pela Editora da UFRJ. A Universidade Federal da Bahia mantém a Biblioteca Virtual Anísio Teixeira à disposição do publico na Internet. Clique aqui para acessar.

Atualmente seu nome denomina duas instituições dedicadas à educação e à formação de professores: INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Brasília) e IAT-Instituto Anísio Teixeira (Salvador).

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 12 de outubro de 2020

OS BRASILEIROS: PADRE ANCHIETA

 

OS BRASILEIROS: Pe. Anchieta

José de Anchieta nasceu em 19/3/1534, nas Ilhas Canárias, Espanha. Padre jesuíta, gramático, dramaturgo, poeta, historiador e patrono da cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Música. Reconhecido como o Apóstolo do Brasil e um dos fundadores das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, foi declarado co-padroeiro do Brasil, em 2015, na 53ª Assembleia Geral da CNBB-Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e canonizado em 2014, após um processo que durou 417 anos, contando as interrupções.

Criado numa rica família basca, seu pai fazia oposição ao imperador Carlos V e por isto teve que se refugiar nas Ilhas Canárias. Aos 14 anos ingressou no curso de filosofia, na Universidade de Coimbra, e entrou na Companhia de Jesus em 1551. Foi enviado para o Brasil, em 1553, pelo próprio (santo) Inácio de Loyola, o fundador da Companhia. Aportou em Salvador e 3 meses depois foi para a capitania de São Vicente encontrar-se com o Pe. Manoel da Nóbrega. Juntos chegaram ao planalto de Piratininga em 24/1/1554 e no dia seguinte celebraram a primeira missa no povoado, que contava com apenas 130 pessoas. Assim deu-se a fundação de São Paulo na data comemorativa da conversão deste Apóstolo.

Aí foi criado o primeiro colégio dos jesuítas na América, onde passou a viver e trabalhar bastante na catequização dos índios. Ensinou-lhes a língua portuguesa e aprendeu linguagem tupi-guarani; compôs uma gramática própria; escreveu um catecismo e várias peças de teatro e hinos. Consciente da forte impressão que a música produzia nos índios, utilizava-se de canções para a catequese. Escrevia nos idiomas português, latim e tupi-guarani e sua primeira obra Arte da gramática da língua mais falada na costa do Brasil, foi publicada em Coimbra, em 1595. Em 1563, junto com o Pe. Nóbrega negociou a paz entre portugueses e os índios tamoios, que invadiram a colônia de São Vicente. Como prova de seu desejo de paz, entregou-se como refém aos índios e ficou alguns meses entre eles, enquanto a paz era negociada pelo Pe. Nóbrega com a Confederação dos Tamoios. Foi nesse período que escreveu seu famoso Poema à Virgem Maria nas areias da praia, em Ubatuba.

Conseguida a “Paz de Iperoig” com os índios, retomou às missões, sempre atento à educação e saúde dos índios e colonos. Ele mesmo padecia de tuberculose óssea, que lhe causou uma escoliose, agravada durante o noviciado. Além da atividade religiosa, teve participação política na luta contra os franceses que invadiram a baía da Guanabara. Em 1566 foi à Salvador convencer o governador Mem de Sá a enviar tropas para o Rio de Janeiro. Sobre este embate, escreveu “De gestis Mendi de Saa” (Os feitos de Mem de Sá), livro publicado em Coimbra, em 1563. Na ocasião foi ordenado sacerdote na Catedral de Salvador, aos 32 anos. No ano seguinte, partiu com o Pe. Nóbrega para o Rio de Janeiro para fundar mais um colégio, do qual foi reitor no período 1570-1573.

Em seguida retornou à São Vicente para catequisar os índios tapuias. Nesse meio tempo redigiu longos relatórios aos superiores sobre sua atividades, repletos de informações sobre os costumes indígenas, a flora, a fauna, o clima e a geografia brasileira. Tais escritos levaram-no a ser considerado um dos primeiros antropólogos e naturalistas do Brasil. Sua vasta obra só foi totalmente publicada no Brasil em meados do século XX. Em 1997, nas comemorações do IV Centenário do seu falecimento, foi publicado o catálogo “Anchieta: obras na Biblioteca Nacional”, onde constam as referências bibliográficas de 42 títulos de sua autoria, 88 títulos de ensaios e biografias e 190 artigos de periódicos sobre ele, excluindo as obras raras e musicais.

Em 1577 foi nomeado superior provincial da Companhia de Jesus no Brasil, onde permaneceu até 1588, e empreendeu diversas viagens pelo País, desde Cananeia até o Recife, para acompanhar as várias missões já instaladas. Tais missões se estenderam até o Paraguai e Argentina. Na época havia 140 missionários da Companhia no Brasil, os quais Anchieta visitava duas vezes por ano enquanto ia criando escolas e casas de caridade, como a Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro, fundada em 1582, para dar assistência aos doentes e às vítimas das frequentes epidemias. Após deixar o cargo de superior provincial, foi reitor do Colégio dos Jesuítas de Vitória até 1595. Com a saúde abalada, pediu dispensa de suas funções e foi viver em Reritiba (atual Anchieta), onde veio a falecer em 9/6/1597 e sepultado em Vitória.

Durante as solenidades do funeral foi reconhecido como o “Apóstolo do Brasil” e iniciado o processo de canonização, interrompido em 1634, quando foi decretado a espera de 50 anos para tal. Em 1647 o processo é retomado e 5 anos após foi declarado “Servo de Deus” pelo papa Inocêncio X. Novas interrupções surgem até 1736, quando suas “Virtudes Heróicas” foram declaradas pelo papa Clemente. Em 1773 a Companhia de Jesus é suspensa por 100 anos, devido a perseguição do Marquês de Pombal. O processo só foi reaberto no século seguinte e, finalmente, foi beatificado em 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco, através de uma “canonização equivalente”. Isto se dá quando o Papa reconhece e ordena culto público universal a um Servo de Deus, sem passar pelo processo regular de canonização formal, porque a veneração ao santo já vem sendo feita desde os tempos antigos e continuamente pela Igreja.

Na homilia, o papa Francisco disse: “ele, juntamente com Nóbrega, é o primeiro jesuíta que Inácio de Loyola envia para a América. Um jovem de 19 anos… Era tão grande a alegria que ele sentia, era tão grande o seu júbilo, que fundou uma Nação: lançou os fundamentos culturais de uma Nação em Jesus Cristo”. O Santo Pe. Anchieta conta com 2 santuários: um na cidade onde nasceu, em San Cristóbal de La Laguna, Ilhas Canárias e outro na cidade de Anchieta, no estado do Espírito Santo, fundada por ele. Em 2015 o local, formado pela Igreja Nossa Senhora da Assunção e pelo Museu Nacional São José de Anchieta, foi declarado “Santuário Nacional”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 05 de outubro de 2020

AS BRASILEIRAS: SANTA PAULINA

 

 

AS BRASLEIRAS: Santa Paulina

Amabile Lúcia Visintainer nasceu em Vigolo Vattaro, Trento, Itália, em 16/12/1865. Religiosa fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, canonizada em 2002. Veio para o Brasil aos 10 anos e tornou-se a primeira santa brasileira, recebendo o nome de Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus.

Criada numa família humilde de 14 filhos, que em 1875 emigrou para o sul do Brasil e passou a viver na região de Santa Catarina no vilarejo de Vigolo, atual cidade de Nova Trento, onde ficaram todos os tiroleses. Desde jovem dedicou-se aos serviços religiosos de sua paróquia, sempre junto a sua amiga Virginia Rosa Nicolodi e fizeram a primeira comunhão em 1877. As duas amigas atraíram a atenção do padre jesuíta Augusto Servanzi, pela dedicação à paróquia e presteza no atendimento aos mais necessitados. Logo passaram a lecionar o catecismo às crianças, ajudar os doentes e na manutenção da capela. Em pouco tempo Amabile e Virginia passaram a ficar conhecidas de todos os tiroleses da região. Aos 14 anos, numa conversa com o Padre Servanzi, foi-lhe perguntado se gostaria de ser irmã. A resposta foi objetiva: “é a minha mais ardente aspiração”.

O padre se comprometeu a ajudá-la em seu empenho e tornou-se seu guia vocacional. Sua amiga Virginia logo foi envolvida no sonho de se dedicarem ao ideal religioso e se influenciaram mutuamente. Em pouco tempo as duas tornaram-se catequistas, sacristãs e enfermeiras, na condição de “freiras-leigas” no período 1880-1890. Em 1887, com o falecimento da mãe, sua jornada de trabalho foi redobrada com o serviço caseiro, sem abrir mão do serviço assistencial. No ano seguinte teve um sonho, onde a Virgem Maria lhe apareceu e ordenou que fizesse uma obra, na qual “trabalharás pela salvação de minhas filhas”. O sonho ocorreu mais duas vezes e ela se comprometeu com Nossa Senhora em “se esforçar o máximo que eu puder”. Em seguida, conversou com seu pai sobre os sonhos, envolveu o pároco na empreitada e construíram um barracão ao lado da capela, onde improvisaram um “hospital” e as duas amigas passaram a cuidar de doentes desamparados e da instrução de crianças carentes.

Logo surgiu uma mulher com câncer, em estado terminal, que foi amparada pelas amigas em 12/7/1890. A data marcou a fundação do “Ospedaletto di San Vigilio” (Hospitalzinho de São Virgilio), que viria a se tornar a primeira congregação religiosa feminina do Brasil. Em 1894, o “hospitalzinho” foi transferido para a cidade de Nova Trento, num terreno doado pelos benfeitores João Valle e Francisco Sgrott e a obra prossegue em bases mais sólidas ampliando o número de atendimentos. Em seguida as amigas fizeram um retiro espiritual de 8 dias, uma espécie de estágio seguindo instruções de Santo Ignácio de Loyola, antes de se dedicar à vida religiosa. Em 1895 a entidade foi reconhecida como instituição religiosa, social e assistencial pelo bispo de Curitiba e no mesmo ano juntou-se outra jovem –Teresa Maule-, que juntas fizeram os votos religiosos. Na ocasião Amabile adotou o nome de irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus e foi nomeada superiora da instituição. O trabalho e a dedicação destas jovens atraíram outras para o trabalho assistencial, que evoluiu para um orfanato e uma pequena indústria de seda como forma de sobrevivência e manutenção das obras de caridade.

A congregação logo passou a ser reconhecida na região e foi se espraiando. Pouco depois, o padre Luigi Maria Rossi, pároco de Nova Trento e amigo das irmãs, foi transferido para São Paulo e passou a envidar esforços para trazer madre Paulina e suas irmãs afim de dar continuidade a incipiente congregação. Para isso, fez contatos com o bispo de São Paulo e figuras da sociedade paulista, tal como José Vicente de Azevedo, que tinha planos de criar uma instituição de auxílio às crianças descendentes de negros e idosos inválidos ex-escravos. Contatou também as irmãs da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor. Em 1903 as irmãs chegaram em São Paulo e foram instaladas no bairro do Ipiranga para estabelecer a congregação. Logo iniciaram a obra com o “Asilo Sagrada Família”, abrigando ex-escravos e suas famílias jogadas nas ruas após a abolição, em 1888. A obra progrediu bastante e rápido, dado o crescente número de famílias desamparadas. O progresso da Congregação foi se consolidando com a chegada de mais jovens religiosas.

Em meados da primeira década de 1900 entra em cena uma importante senhora da sociedade paulista, viúva, rica e disposta a se tornar benemérita da Instituição Sagrada Família, que mantém o Asilo. Trata-se de Ana Brotero de Barros, que passa a ajudar a instituição com recursos próprios e do governo, onde mantinha contatos políticos. Além disso, contribuiu para inserir a recente congregação no seio da sociedade paulistana. Com apoio do bispo Dom Duarte Leopoldo e Silva e do padre Rossi, mentor das irmãs da congregação, tornou-se presidente da Instituição Sagrada Família, em 1908, A partir daí surgiram divergências entre a madre-superiora da congregação (Madre Paulina) e a presidente da instituição, que estava mais interessada em ampliar as instalações físicas da entidade. Tais divergências levaram ao exilio da Madre Paulina, em 1909, pelo bispo de São Paulo, Dom Duarte, que a mandou para Bragança Paulista, onde foi atuar na Irmandade Santa Casa de Misericórdia e lá ficou por 9 anos.

No entanto não se desligou da congregação por completo, e passou a ajudar a substituta no cargo de madre superiora, sua amiga Irmã Vicenza. Claro que tal ajuda se fazia de modo informal, por cartas, sem que o bispo de São Paulo soubesse. Pois sua determinação era firme em manter a congregação independente de sua pessoa, como ficou confirmado numa destas cartas: “Só tenho a dizer isto: Estou contentíssima de que os outros consigam fazer o que eu, por justos planos divinos, não pude conseguir, sejam louvadas e eu fique à sombra e seja esquecida”. Após 9 anos de “exílio”, foi criado o Colégio Sagrada Família, junto a congregação como forma de subvencionar a instituição, em 1918. Nesta época a Sra. Ana Brotero não estava mais em cena; a congregação encontrava-se noutro patamar e exigindo uma administração mais condizente com seus objetivos. Neste instante, o mesmo bispo que a exilou, chama-a de volta à comandar os destinos da congregação.

Enquanto isso, sua doença (diabetes) progride até 1938, quando tem inicio um período de grandes sofrimentos físicos. Seu braço direito teve que ser amputado, seguido de outras amputações até ficar cega. Foram 4 anos de sofrimentos e de testemunho de fé. Ela permaneceu firme, louvando ao Senhor por tudo e sendo cada vez mais admirada pelas irmãzinhas. Por fim, veio a falecer em 9/7/1942. O papa João Paulo II celebrou sua beatificação em 8/10/1991, em visita a Florianópolis. A canonização se deu em 19/5/2002 pelo mesmo Papa. O Santuário Santa Paulina, em Nova Trento, foi idealizado logo após a beatificação. A construção numa área de 9 mil m² iniciou em 2003 e foi inaugurado em 22/1/2006, com um templo de 6.740 m². com capacidade para 3 mil pessoas sentadas e 3 mil em pé. Uma boa hagiografia da santa foi escrita pela Irmã Célia B. Cadorin: Ser para os outros: perfil biográfico de Madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus (Amábile Visintainer) 1865-1942, publicada pelas Edições Loyola, em 2001.

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 28 de setembro de 2020

OS BRASILEIROS: FREI GALVÃO

 

MEMORIAL DOS BRASILEIROS: Frei Galvão

Antônio de Sant’Ana Galvão nasceu em Guaratinguetá, SP, em 10/5/1739. Frade e primeiro santo brasileiro, conhecido pelo seu poder de cura, é o padroeiro dos engenheiros, arquitetos e construtores. Sua canonização, em 11/5/2007, foi postulada pela Irmã Célia Cadorin, da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, com apoio do Cardeal-Arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns. Além de religioso, foi pioneiro como acadêmico ao integrar a “Academia dos Felizes”, a primeira academia de letras do Brasil, em São Paulo, em 1770.

Criado numa família da aristocracia colonial portuguesa, seu pai – Antonio Galvão de França- era Capitão-Mor e comerciante. A mãe – Isabel Leite de Barros – era filha de fazendeiros, descendente do bandeirante Fernão Dais Paes. Passou a infância em Guaratinguetá e, aos 13 anos, foi estudar no Colégio de Belém (jesuíta) em Cachoeira (BA), onde já estudava seu irmão. Aí ficou até 1756 e queria ser padre jesuíta, mas a perseguição do Marquês de Pombal contra esta Ordem, acabou levando-o ao Convento Franciscano de Taubaté. Abdicou de um futuro promissor, tendo em vista a influência política e econômica da família, e entrou no Convento de São Boaventura de Macacu, em Itaboraí, RJ.

Aluno brilhante durante o noviciado, fez sua profissão de fé em 16/4/1761 e defendeu o título de “Imaculada” da Virgem Maria, na época um tema polêmico. Ordenou-se sacerdote no ano seguinte e mudou-se para São Paulo, onde continuou os estudos de teologia e filosofia no Convento de São Francisco. Na viagem, fez uma parada em Guaratinguetá e celebrou sua primeira missa na Matriz de Santo Antônio, onde foi batizado. Em 1768 foi nomeado professor e porteiro do Convento, importante cargo. Era também respeitado pela Câmara Municipal e admirado pelo governador da Capitania Dom Luis Antônio de Sousa Botelho e Mourão.

Em 1770, o governador querendo copiar as academias literárias que iniciavam na Europa, fundou a “Academia dos Felizes”, nossa primeira instituição dedicada às letras. Frei Galvão foi um dos primeiros convidados a integrá-la, onde declamou, em latim, 16 peças, 2 hinos, 1 ode e 12 epigramas de sua autoria louvando Santa Ana e o governador da Capitania de São Paulo. Tal participação foi registrada no artigo de Enio Aloisio Fonda – Academia dos Felizes (1770) e a poesia latina de Frei Antônio de Sant’Ana Galvão, religioso franciscano -, publicado na Revista de Estudos Brasileiros, nº 13, 1972. Como se vê, Frei Galvão também tinha seus dotes literários.

Por essa época, atuou como confessor no “Recolhimento de Santa Teresa”, onde conheceu a freira Irmã Helena Maria do Espirito Santo, que afirmava ter visões onde Jesus lhe pedia para fundar um novo “Recolhimento” Frei Galvão estudou as mensagens, consultou outros religiosos e concluíram como validas tais visões. A partir daí, contando com seus amigos no governo da província, projetou e deu inicio a construção do novo Recolhimento, chamado “Nossa Senhora da Luz”, fundado em 2/2/1774. Era um lar para meninas que queriam levar uma vida sem fazer votos. No ano seguinte tornou-se diretor e líder espiritual das irmãs. Pouco depois o governo da Província foi substituído, provocando o fechamento do convento. Mas as freiras se recusaram a abandonar o local e, devido à pressão popular e da igreja, o convento foi reaberto. Com a reabertura recebeu crescente número de novas irmãs, obrigando o Frei a fazer uma ampliação, incluindo a construção de uma igreja, inaugurada em 1802. Tal conjunto resultou no “Mosteiro da Luz”, que hoje abriga o Museu de Arte Sacra, uma das maiores coleções do País.

Tempos depois o filho do Capitão-mor da Província foi ofendido por um soldado, que foi condenado a morte. O Frei saiu em sua defesa e por isso foi expulso da cidade. Mais uma vez, a pressão popular revogou a ordem e trouxe o Frei de volta ao Mosteiro. Em 1781, foi nomeado mestre dos noviços em Macacu (RJ). Mas, o bispo de São Paulo, Manuel da Ressurreição, escreveu ao superior provincial: “nenhum dos habitantes desta cidade será capaz de suportar a ausência deste religioso por um único momento”. Assim, ele foi mandado de volta para São Paulo. Em seguida foi nomeado guardião do Convento de São Francisco (1798), sendo reeleito em 1801. Em princípios do século XIX esteve em Sorocaba numa reunião com os religiosos da cidade e foi constatado o progresso da cidade com seus tropeiros. Na ocasião foi lhe solicitado a erguer ali mais um convento e em 1811 fundou o Convento de Santa Clara, onde passou quase um ano.

De volta ao Convento de São Francisco, já idoso, pediu permissão ao bispo Mateus de Abreu Pereira e ao seu tutor para ficar no Mosteiro que ajudou a criar. Veio a falecer em 23/12/1822 e foi sepultado na igreja do Mosteiro, onde seu túmulo até hoje é visitado pelos fiéis favorecidos pela sua intercessão. Na época, a fama de santo já havia se espalhado por todo o País. As pessoas que foram ao seu velório, na ânsia de obter uma relíquia, foram cortando pedaços de seu hábito, que ficou reduzido até a altura dos joelhos. A primeira lápide do túmulo teve o mesmo destino, sendo aos poucos levada pelos devotos. As pedras da lápide eram colocadas em copos d’água para tratar os enfermos.

Alguns fenômenos místicos lhe são atribuídos, como telepatia, premonição, levitação e bilocação. Consta que ele se fazia presente em dois lugares diferentes ao mesmo tempo para cuidar de enfermos que pediam sua ajuda. Certa vez escreveu num pedaço de papel uma frase em latim do Ofício de Nossa Senhora (“Após o parto, permaneceste virgem: Ó Mãe de Deus, intercedei por nós”). Enrolou o papel no formato de uma pílula e deu-o a uma jovem com fortes dores renais. Logo após tomar a “pílula”, a jovem expeliu certa quantidade de cálculo renal e a dor cessou Imediatamente. Noutra ocasião deu outra “pílula” de papel à uma mulher que passava por um parto difícil e a criança nasceu sem maiores complicações. As “pílulas do Frei Galvão” ficaram famosas e ele ensinou as irmãs do Mosteiro a fabricá-las para distribuição gratuita, o que é feito até hoje no Mosteiro. Mas o local de peregrinação do fieis fica em Guaratinguetá, no Santuário Frei Galvão, inaugurado em 12/10/1983.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 21 de setembro de 2020

OS BRASILEIROS: MATTA E SILVA

 

 

OS BRASILEIROS: Matta e Silva

Woodrow Wilson da Matta e Silva nasceu em 18/7/’1916, em Garanhuns, PE. Médium umbandista e fundador da primeira “Escola Iniciática de Umbanda Esotérica” do Brasil. Considerado codificador da religião, escreveu alguns tratados mediúnicos com o objetivo de esclarecer e unificar a doutrina religiosa. O adjetivo “esotérica” busca se diferenciar das ramificações existentes na umbanda, sem confrontá-las, realizando um estudo de seus componentes e estrutura.

Seu pai, admirador do presidente dos EUA na época, deu-lhe o nome que ninguém sabia pronunciar. Aos 5 anos a família mudou-se para o Rio de Janeiro e aos 9 a mediunidade começa a se manifestar através de visões de entidades. Nada compreendia do que via e/ou sentia, pois até ali nunca teve formação religiosa; os pais não seguiam religião alguma. Ao 15 anos, morando no centro do Rio e trabalhando como auxiliar de serviço num jornal carioca, teve as primeiras manifestações do Preto-velho “Pai Cândido”. Pouco depois, as incorporações foram regularizadas e passou a atender as pessoas com conselhos e orientações. Pouco depois, já familiarizado com as “visitas” semanais de “Pai Cândido”, os fenômenos e visões desapareceram.

Em 1933, aos 17 anos, foi orientado a encontrar um local para desenvolvimento de sua mediunidade. Passou a visitar diversas “Tendas Espíritas” já existentes na época. Porém, seu mentor espiritual dizia-lhe que deveria ter sua própria casa de auxílio espírita. Em seu 7º livro – Umbanda e o poder da mediunidade – relata que “sempre tive uma tendência irrefreável, desde muito jovem, 16, 17 anos de idade, que me impulsionava a ver as chamadas ‘macumbas cariocas’. Claro está que não estava ainda conscientizado do “por que” de semelhantes impulsos”. Em 1937 mudou-se para o bairro Pavuna, montou um pequeno “Terreiro” e tornou-se “Pai-de-Santo”, com o nome de “Mestre Yapacani”. A partir de 1954, a entidade “Pai Guiné” passou direcionar sua vida mediúnica. Recebeu deste Preto-velho a mensagem “7 Lágrimas de Pai Preto”, que viria a se tornar um dos marcos da renovação da Doutrina Umbandista. Trata-se de uma oração mostrando a realidade do dia-a-dia de um Terreiro e as diferentes pessoas que o procuram em busca de auxílio espiritual. Pouco depois passou a escrever para o “Jornal de Umbanda”, artigos como “A lei dentro da umbanda”, “A magia da umbanda”, “A ponta do véu”, Aos aparelhos umbandistas: Alerta!”, Invocação de umbanda” etc.

Tais artigos preparavam, sem que ele tivesse uma clara consciência do que estava por vir: a obra que viria transformar todo o entendimento que se tinha até então sobre a umbanda. Por essa época teve visões mediúnicas, onde via um “Velho Payé” folheando um grande livro, junto a um colegiado de mentores espirituais, indicando que o momento de escrever obras doutrinárias se aproximava. Assim, em 1956 foi publicada a obra Umbanda de todos nós (A lei revelada), numa edição bancada por ele mesmo. O livro sacudiu o meio umbandista e teve a 1ª edição de 3.500 exemplares esgotada em pouco tempo. A 2ª edição saiu por uma editora conceituada, a Livraria Freitas Bastos. Até aí Seu Matta ainda não sabia que estava iniciando sua missão como escritor codificador da Umbanda.

No ano seguinte publicou Umbanda: sua eterna doutrina, trazendo complexos mapas explicativos e conceitos esotéricos nunca divulgados. A obra é uma continuidade, um aprofundamento da anterior. “Seu Matta” era um pai-de-santo incomum naquele ambiente: tinha convicções firmes, opiniões contundentes e era um crítico severo de alguns rituais praticados na Umbanda. Combatia os rituais de matança de animais, uso de bebidas alcoólicas em excesso nos terreiros e as vaidades fetichistas. Em 1958 “recebeu” um preto-velho, chamado “Pai Guiné de Angola”, que veio para auxiliar seu guia espiritual “Pai Cândido”. Na ocasião foi riscado o ponto com as “Ordens e Direitos de Trabalho”

O 3º livro – Lições de Umbanda (e Quimbanda) na palavra de um preto-velho – veio em 1961 e foi mais bem sucedido junto ao público que os anteriores. Apresenta o diálogo entre um discípulo chamado Cícero com o Preto-Velho. O estilo do livro na forma de diálogo certamente ficou mais compreensível para o público e ocasionou a necessidade de mais esclarecimentos. Desse modo, Seu Matta continuou sua missão com o 4º livro, publicado em 1963: Mistérios e Práticas da Lei de Umbanda, aprofundando os conceitos referentes a magia, mediunidade e oferendas numa linguagem mais acessível. No ano seguinte veio a 5ª obra: Segredos da Magia de Umbanda e Quimbanda (1964), onde apresenta uma abordagem prática de alguns rituais da magia de umbanda. No mesmo ano lançou a 6ª obra: Umbanda e o poder da mediunidade, explicando a necessidade de restauração da umbanda no Brasil e mostrando suas verdadeiras origens.

Após breve período de descanso, retornou em 1966 com outra obra sob orientação de uma corrente astral liderada por uma entidade que se identificou como “Caboclo Velho Payé”. A complexidade da obra levou mais de um ano para ser melhor explicada pelos mentores com imagens, quadros, diagramas e informações por via intuitiva. Em 1967 saiu a edição da Doutrina Secreta da Umbanda, complementando e ampliando conceitos tratados no livro Umbanda: sua eterna doutrina, publicado em 1957. Em seguida adquiriu um terreno contíguo a sua casa, em Itacuruçá, e instalou a “Tenda de Umbanda Oriental (TUO)”, onde seus “filhos-de-fé” passaram a frequentar por mais de 20 anos. Alguns destes filhos tornaram-se conhecidos em todo o País e um deles deu continuidade ao seu trabalho de aprofundar os estudos e procurar a unificação da umbanda como religião. Trata-se do paulista Francisco Rivas Neto, que também publicou alguns tratados e fundou a Faculdade de Teologia Umbandista-FTU, em São Paulo, em 2003, mantida pela Ordem Iniciática Cruzeiro do Sul.

Em 1969 veio à tona mais uma obra, segundo ele mesmo “de fôlego”: Umbanda no Brasil. São 368 páginas sintetizando os 7 livros anteriores. Em pouco tempo, o livro esgotou e Seu Matta se consolida como um dos autores mediúnicos mais respeitados no Brasil. Em 1970 publicou seu último livro: Macumbas e Condomblés na Umbanda, trazendo muitas fotos e o registro de vivências místicas e ritualísticas dos cultos afro-brasileiros. Mudou-se para Volta Redonda e passou a dar consultas e palestras na TUO 2 vezes por semana. Em 1977 foi convidado pelo cineasta Rogério Sganzerla para participar do documentário “Ritos Populares: Umbanda no Brasil”, exibido no 23º Festival de Cinema de Turim – Tribute to Rogério Sganzerla, (2005), na Mostra Cinema do Caos CCBB, no Rio de Janeiro (2005) e na “Ocupação Rogério Sganzerla” no Itau Cultural, em São Paulo (2010).

Não tão idoso, mas com a saúde abalada, decidiu voltar a morar em Itacuruçá, em 1984, junto a sua Tenda (TUO) e veio a falecer em 17/4/1988, aos 72 anos. Seus livros e sua trajetória mediúnica redefiniram a Umbanda e deram à religião fundamentos, normas e um sistema de ordenação lógico e racional, sedimentando o conhecimento dos devotos e fiéis que nela expressam sua fé. Além dos devotos, muitos umbandistas e Chefes de Terreiro de várias partes do Brasil procuravam sua Tenda em busca de ajuda ou de uma filiação espiritual que legitimasse a sua própria Entidade.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 14 de setembro de 2020

AS BRASILEIRAS: SANTA DULCE

 

AS BRASILEIRAS: Santa Dulce

Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes nasceu em Salvador, BA, em 26/5/1914. Religiosa, adotou o nome de Irmã Dulce ao se tornar freira, em 1933, em homenagem a sua mãe falecida quando tinha 7 anos. O pai, Dr. Augusto Lopes Pontes, era dentista e professor da UFBA-Universidade Federal da Bahia. Ainda criança manifestou vocação religiosa e pedia orientação a Santo Antônio para saber se deveria casar ou ser freira. Aos 13 anos, tendo ajudado mendigos, enfermos e desvalidos, decidiu pela vida religiosa e procurou o Convento de Santa Clara do Desterro, mas, não foi aceita devido a dade. Voltou a estudar e foi transformando a casa dos pais num centro de atendimento aos necessitados.

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A casa passou a ficar conhecida como “Portaria de São Francisco”. Em 1932 formou-se professora do curso primário e no ano seguinte entrou para a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição, em São Cristovão, Sergipe. Em 13/8/1933, fez profissão de fé e recebeu o hábito de freira. Voltou à Salvador, passou a lecionar no colégio da Congregação e dar assistência aos pobres. Suas atividades não se restringiam apenas a ajudar. Tinha como objetivo criar instituições de auxílio e cooperação. Junto com o frei Hildebrando Kruthaup, fundou a União Operária São Francisco, em 1936, que deu origem ao Círculo Operário da Bahia. A finalidade da União era difundir cooperativas, promover a cultura dos operários e defender seus direitos. Era mantido com o dinheiro arrecadado por três cinemas construídos a partir de doações.

A inciativa deu suporte à inauguração do Colégio Santo Antônio, em 1939, para atender os operários e seus filhos. Hoje o Centro Educacional Santo Antônio (CESA) abriga mais de 300 crianças de 3 a 17 anos, com acesso a cursos profissionalizantes. No mesmo ano invadiu umas casas na Ilha dos Ratos para abrigar os doentes recolhidos nas ruas. Mas logo foram despejados e ela passou a perambular por lugares mais distantes na busca de lugar para abrigá-los. Sem outro espaço, encontrou um local desocupado no Convento, em 1949. Era um galinheiro desativado, que ela transformou em albergue, no qual alojou 70 pessoas. Em apenas 10 anos, esse galinheiro deu origem a Associação Obras Sociais Irmã Dulce-OSID, inaugurada em 1959 e no ano seguinte foi inaugurado o Albergue Santo Antônio. Hoje a OSID é um dos maiores complexos hospitalar com atendimento gratuito do Brasil, com 3,5 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano a usuários do SUS-Sistema Único de Saúde.

Em 1983 foi ampliado, contando com 400 leitos. O Hospital Santo Antônio atende mais de cinco mil pessoas por dia. Para conseguir mão-de-obra especializada no atendimento, fundou a Associação Filhas de Maria Serva dos Pobres. Em 1980, na visita do Papa João Paulo II, foi convidada a subir ao altar para receber uma bênção especial. O Papa retirou do bolso um rosário, ofereceu-lhe e impulsionou seu trabalho: “Continue, Irmã Dulce, continue!”. Em fins de 1990, passou a sofrer com problemas pulmonares e enfrentou 16 meses de agonia. Foi internada no Hospital Português; em seguida foi transferida para uma UTI do Hospital Aliança, quando ordenou: “Quero morrer ao lado dos pobres”. Assim, foi para o Hospital Santo Antônio, onde passou toda a vida. Em 20/10/1991, recebeu a segunda visita do Papa João Paulo II, que lhe deu a extrema unção. Em 13/3/1992 veio a falecer aos 77 anos e foi sepultada no alto do Santo Cristo, na Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia.

Posteriormente, foi transferida para a Capela do Hospital Santo Antônio, em cumprimento ao seu desejo. Considerada uma das mais importantes e influentes ativistas humanitárias do século XX, foi indicada pelo presidente José Sarney e pela rainha Silvia da Suécia, para receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1988. Em 2001, foi eleita a “Religiosa do Século XX” numa eleição promovida pela revista “Istoé”. Em 2012, ficou entre as 12 maiores personalidades brasileiras de todos os tempos, numa pesquisa feita pelo SBT-Sistema Brasileiro de Televisão. Em 2014, o Governo da Bahia instituiu a data de 13 de agosto como o Dia Estadual em Memória à Bem Aventurada Dulce dos Pobres. Em 2018 as “Obras Sociais Irmã Dulce-OSID” foi considerada a melhor organização não governamental da Região Nordeste e uma das melhores do Brasil.

No ano seguinte foi canonizada pelo Papa Francisco, mas para o povo de Salvador já era Santa Dulce desde o falecimento, em 1992. O processo de beatificação iniciou em 2000 e passou a tramitar na Congregação para as Causas dos Santos do Vaticano. A validação jurídica do virtual milagre presente no processo foi emitida pela Santa Sé em junho de 2003, quando ela recebeu o título de Serva de Deus, outorgado pelo Papa João Paulo II. Em 2009, a Congregação anunciou voto favorável reconhecendo-a como ”Venerável”. Tal votação obteve a unanimidade do colégio de cardeais, bispos e teólogos após a análise da “Positio”, um relato biográfico e resumos dos testemunhos dos milagres relatados no processo. Em seguida o Papa Bento XVI aprovou decreto de reconhecimento de suas virtudes. Em 2010 foi realizada a exumação e transferência das “relíquias” para sua capela definitiva, na Igreja da Imaculada Conceição, ao lado da OSID.

A beatificação se deu em maio de 2011, pelo mesmo Papa, por intermédio de Dom Geraldo Magella, em Salvador, último passo para a canonização. A partir daí passará a se chamar “Santa Dulce dos Pobres”, um adjetivo bem apropriado agregado ao seu nome. A canonização se deu em 13/10/2019, com base em 2 milagres certificados. O 1º ocorreu em 2001. Uma paciente, após o parto, apresentava um quadro de hemorragia não controlável e passou por 3 cirurgias num período de 18 horas sem que o sangramento estancasse. Só estancou ao término de uma corrente de orações, proposta por um sacerdote, pedindo a intercessão de Irmã Dulce. O 2º milagre foi a cura de um homem que passou 14 anos cego e passou a sentir fortes dores, devido a uma conjuntivite. Pouco antes de dormir, pediu a Irmã Dulce para que a dor fosse aliviada. Acordou no dia seguinte não apenas aliviado da dor, mas enxergando normalmente. O milagre intrigou os médicos, devido ao fato de mesmo após voltar a enxergar, os exames apontaram lesões que deveriam impedir o sentido da visão.

São quatro as exigências do Vaticano para reconhecimento do milagre e consequente canonização: (1) o fato tem que ser “preternatural”, ou seja, a ciência não consegue explicar; (2) instantâneo, ocorrer logo após a oração/pedido; (3) duradouro e (4) perfeito. A OSID, através de sua Assessoria de Memória e Cultura, contabilizou o recebimento de cerca de 10 mil relatos de graças alcançadas por intermédio da Irmâ Dulce. Sua canonização foi a terceira mais rápida da História (27 anos), atrás apenas de Madre Teresa de Calcutá (19 anos) e do Papa João Paulo II (9 anos). A celebração e festa da canonização em Salvador ocorreu num domingo ensolarado (20/10/2019) na Arena Fonte Nova. No ano seguinte e em todos os outros seu nome é festejado na Bahia todo dia 13 de agosto. Logo após a cerimônia, foram criados o Santuário Santa Dulce dos Pobres, no bairro Roma e a Paroquia de Santa Dulce dos Pobres, no bairro do Saboeiro, em Salvador.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 07 de setembro de 2020

OS BRASILEIROS: CHICO XAVIER

 

OS BRASILEIROS: Chico Xavier

Francisco de Paula Cândido Xavier nasceu em 3/4/1910, Em Pedro Leopoldo, MG. Médium, filantropo e reconhecido como o maior líder espírita, contribuiu para tornar o Brasil a pátria do Espiritismo no mundo. Criado numa família humilde de 8 irmãos, ficou órfão da mãe – Maria João de Deus- aos 5 anos. Sem condições de criar os filhos, o pai – João Cândido Xavier- distribuiu-os entre os parentes. Chico foi entregue à sua madrinha, que se mostrou bastante cruel com surras e garfos encravados na barriga, alegando que o “menino tinha o diabo no corpo”. Nesse período já manifestava mediunidade de vidência e teve momentos de consolo em conversas com o espírito de sua mãe católica, que recomendava paciência, resignação e fé.

O pai se casou de novo e a família voltou a se reunir. Na escola escreveu redação para concurso comemorando o centenário da Independência, em 1922, e ganhou menção honrosa. Valeria muito agora sabermos como Chico faria outra redação agora no bicentenário da Independência. Em 2022. As pessoa que têm contato com ele, bem poderiam lhe pedir uma “redação”. Concluiu o curso primário em 1924 e nunca mais frequentou escola. Ainda criança trabalhou em diversas atividades no comércio e continuou tendo visões e comunicações espirituais O pai, não sabendo lidar com o “caso”, encaminhou-o ao pároco, que se tornou conselheiro na solução dos “problemas”, reforçando seu catolicismo. Porém, sem abdicar da religião católica, as visões/comunicações solidificaram o caráter espírita das comunicações mediúnicas.

Em 1927 passou a ler e estudar Kardec e logo fundou o Centro Espírita Luiz Gonzaga. Por essa época começaram a se manifestar alguns poetas da língua portuguesa. No ano seguinte tais poemas foram publicados n’O Jornal, do Rio de Janeiro, e Almanaque de Notícias, de Portugal. Em 1930 prestou concurso e ingressou no serviço público federal como auxiliar de escrevente no Ministério da Agricultura. Em 1931 encontrou seu mentor espiritual Emmanuel, que o informou de sua missão: publicar uma série de 30 livros e que para isso lhe seriam exigidas 3 condições: disciplina, disciplina e disciplina. Em seguida publicou o primeiro livro: Parnaso de além túmulo (1932) pela FEB-Federação Espírita Brasileira. A coletânea de poemas ditados por grandes autores brasileiros e portugueses causou grande repercussão na imprensa e opinião pública.

Na introdução do livro, deixou claro suas intenções: “Não venho ao campo da publicidade para fazer um nome, porque a dor há muito já me convenceu da inutilidade das bagatelas que ainda são estimadas neste mundo”. A partir daí sua fama atravessou fronteiras. O presidente da FEESP-Federação Espírita do Estado de São Paulo, Teodoro Sacco, contou que ele recusou oferta da União soviética, em 1938, interessada em fazer uma conotação do aspecto social da doutrina espírita ao aspecto socializante do marxismo. Ele ficaria lá durante 6 meses e seria remunerado com 500 mil contos de réis, uma fortuna na época. Chico consultou Emmanuel e a resposta foi sucinta: “Se você quiser pode ir, mas eu vou ficar por aqui”. Receber propostas e ajudas foi uma constante em sua vida. Em fins da década de 1940 recebeu vultosa quantia (repassada à FEB para uso caritativo) do empresário Fred Figner, fundador da Casa Edison, pioneiro das gravações de música no Brasil, com o qual manteve amizade. Em 1949, Chico psicografou o livro “Voltei”, ditado pelo “Irmão Jacob”, o espírito de Figner, falecido em 1948. O livro teve várias reedições.

Uma de suas psicografias foi parar nos tribunais e resultou no livro Psicografia perante os tribunais, do advogado Miguel Timponi. Em 1937 publicou o livro Crônicas de além-túmulo, ditado pelo espírito de Humberto de Campos, sem problema algum com a família do escritor. No ano seguinte publicou Brasil: coração do mundo, pátria do evangelho, ditado pelo mesmo autor, numa tiragem de 200 mil exemplares. O sucesso de vendas aguçou o interesse da família em receber os direitos autorais, levando o caso para a Justiça. Após muita discussão jurídica ficou decidido que não cabia ao tribunal se pronunciar sobre a existência ou não da mediunidade. Para concluir, alegou uma obviedade: os direitos autorais só têm validade para as obras escritas pelo autor em vida. Após esse quiproquó, publicou mais alguns livros ditados pelo autor, que passou a se chamar apenas “Irmão X”.

Vale ressaltar que ele foi o “autor” brasileiro de maior sucesso comercial da história com quase 500 títulos publicados, alguns deles traduzidos em diversos idiomas. São mais de 50 milhões de exemplares vendidos, sobre os quais não tinha direito autoral, pois ele não era o autor, reiterava. Tais direitos foram cedidos, em cartório, e encaminhados para cerca de 2 mil instituições de caridade. Em 1943 foi publicado o mais vendido: Nosso Lar, o primeiro de uma série, ditados pelo espírito do médico André Luiz, um clássico da literatura espírita com mais de 2 milhões de exemplares É também o espírito mais conhecido “recebido” pelo médium e um divisor de águas em sua vida. Devido ao fato de ter sido médico em vida, suas obras tratam da saude humana, explicitando mecanismos e reflexões sobre as causas das doenças, fazendo com que a Ciência fosse mobilizada para verificar a veracidade das informações. O resultado da investigação foi publicado na revista “Neuroendocrinology Letters” vol. 34(8):745-755, 2013. Os 5 autores do artigo compararam o conhecimento médico recente com 12 obras de André Luiz, identificando nelas várias informações corretas altamente complexas sobre a fisiologia da glândula pineal, que só puderam ser confirmadas cientificamente cerca de 60 anos após a publicação das obras. Os cientistas ressaltaram que o fato de o médium possuir baixa escolaridade e não ter envolvimento no campo da saúde levanta questões profundas sobre as obras serem ou não fruto de comunicação espiritual.

A vidência do médium suscitou também casos engraçados, como o ocorrido com os repórteres David Nasser e Jean Manzon, em 1944, numa reportagem para a revista “O Cruzeiro”. Fingindo serem estrangeiros e com nomes falsos, foram entrevistar e testar se Chico era ou não um farsante. Foram bem atendidos e receberam, de presente, dois livros com dedicatória, que nem repararam. Ao chegarem em casa, Manzon telefonou para Nasser: “Você já viu o livro que o Chico nos deu?”. Foi ver a dedicatória: “Ao meu irmão David Nasser, de Emmanuel”. O mesmo foi escrito no livro dedicado à Jean Manzon. Em 1959 mudou-se para Uberaba, MG, onde passou a atender no centro “Comunhão Espírita Cristã” até 1975, quando fundou o “Grupo Espírita da Prece”. Por essa época conheceu o médium e médico Waldo Vieira, com quem estabeleceu parceria na publicação de 17 livros. Em 1965 os dois viajaram para Washiinton, EUA, afim de diulgar o espiritismo. Auxiliados pelo presidente do “Christian Spirit Center”, Salim Salomão Haddad, estudaram inglês e lançaram o livro The word of the spirits (tradução de Ideal espírita).

Na década de 1970 seu nome já era conhecido em todo o território nacional. A fama foi alavancada com uma entrevista ao vivo na TV Tupi, em 28/7/1971, no programa “Pinga-Fogo”, com diversos jornalistas e estudiosos, muitos deles, não adeptos do espiritismo. O programa, famoso pelo teor de inquirição feita aos entrevistados, teve a maior audiência na história da TV brasileira, obrigando a emissora a continuar a entrevista noutro programa em 21/12/1971. Nesta época sua saúde, já prejudicada com problemas no pulmão, passou a sofrer de angina. Na década seguinte, com mais de 10 mil cartas psicografadas, recebia todos que vinham em caravanas de todos os cantos do País e do exterior para ter notícias de seus parentes falecidos. Algumas destas cartas desvendaram crimes cometidos e foram aceitas como provas judiciais, livrando inocentes da prisão.

Com sua simplicidade e altruísmo tornou-se mitificado em vida. Em 1981 e 1982 foi indicado para receber o Prêmio Nobel da Paz através de uma lista encabeçada por Augusto César Vanucci, então diretor da Rede Globo, contando com a adesão de 2 milhões de assinaturas. Mesmo doente do pulmão, agravado com a angina, viveu até os 92 anos e faleceu em 30/6/2002. Costumava dizer que iria “desencarnar” num dia alegre em que o País estivesse em festa para que não sentissem sua partida. De fato, o País estava em ebulição naquele dia com a conquista da Copa do Mundo. Faleceu 9 horas após o Brasil vencer a Alemanha num placar de 2 x 0, tornando-se pentacampeão mundial de futebol. Mesmo assim, 120 mil pessoas não comemoraram o título e foram ao seu velório em Uberaba.

Foi homenageado em vida e pós-morte em diversas ocasiões. Recebeu título de cidadão honorário de mais de 100 cidades. Em 1999, o Governo de Minas Gerais instituiu a “Comenda da Paz Chico Xavier”, outorgada anualmente aos que trabalham pela paz e pelo bem estar social. As casas onde morou foram transformadas em museus. Em 2006, numa votação popular através da revista Época, foi eleito o “O Maior Brasileiro da História“. Em 2009, a rodovia BR 050 recebeu seu nome. Em 2010, ano do seu centenário, recebeu selo e cartão postal dos Correios; a Casa da Moeda do Brasil lançou “Medalha Comemorativa”; a Câmara dos Deputados realizou sessão solene; foi lançado “Chico Xavier – O Filme”, baseado na biografia As vidas de Chico Xavier, de Marcel Souto Maior. Em 2016, a Prefeitura de Uberaba criou o “Memorial Chico Xavier”, aberto a visitação publica. Trata-se de um prédio com galerias de exposição, biblioteca, auditório e praças contemplativas.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 31 de agosto de 2020

OS BRASILEIROS: FAUSTINO ESPOSEL

 

OS BRASILEIROS: Faustino Esposel

Faustino Monteiro Esposel nasceu em 24/10/1888, no Rio de Janeiro. Médico sanitarista, neurologista, psiquiatra, professor e esportista na condição de presidente do Flamengo em 3 mandatos e 5 vezes campeão do futebol carioca. Foi um dos pioneiros na pesquisa e estudos da neurologia, além de esportista e conseguir um lugar privilegiado para estabelecer a atual sede e uniforme do Flamengo. É surpreendente tal disposição e maior ainda ao vermos sua reaparição em Espírito 10 anos após na “pele” de André Luiz, conforme certificado por meio do médium – vale a redundância- Chico Xavier.

Filho de João Paiva dos Anjos Esposel e de Maria Joaquina Monteiro Esposel, realizou os primeiros estudos na Escola Alemã; no externato do Mosteiro de São Bento e diplomou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1910, defendendo a tese “Arteriosclerose Cerebral”, obtendo a nota máxima. Pouco depois foi contemplado com uma viagem à Europa, onde foi aluno de Joseph Babinski e Jules Déjerine, dois “papas” da neurologia. Por essa época, candidatou-se a médico do Hospital Nacional de Alienados, dirigido por Juliano Moreira e foi classificado em 1º lugar.

Participou ativamente da Sociedade Brasileira de Neurologia e Psiquiatria em seus primórdios e integrou a “Missão Médica” brasileira, composta por 86 médicos, que foi à Europa em 1918 para auxiliar os feridos na I Guerra Mundial. Representou o Brasil em diversos congressos e reuniões de médicos na Europa e América do Sul e foi secretário-geral da 2ª Conferência Latino-Americana de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, realizada em 1931, no Rio de Janeiro.

Era um estudioso da mente e, ao mesmo tempo, adepto da educação física e aficionado pelo esporte. Assim, encontrou tempo para, além da dedicação à medicina e ao magistério, dedicar-se também aos esportes como dirigente de associações atléticas. Na época em que o futebol ainda não era uma “paixão nacional”, foi presidente do Flamengo em 3 mandatos (1920-1922; 1924-27 e 1928) e venceu 5 campeonatos cariocas. Como dirigente e com algum trânsito político, conseguiu dos prefeitos Antônio Prado Jr. e Alaor Prata, uma área de 34 mil m² às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas para instalar a nova sede do clube. O uniforme que o Flamengo veste hoje foi criado em sua gestão.

De vez em quando licenciava-se do cargo para outros afazeres, como em setembro de 1926, numa viajem à Europa para uma série de conferências. No ano seguinte, entrou para a Academia Nacional de Medicina, apresentando memória intitulada “Em torno do sinal de Babinsky”. Como professor, destacou-se nos cargos de livre-docente e assistente de Clínica de Doenças Nervosas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; professor substituto da Seção de Neurologia e Psiquiatria da mesma; professor de Neurologia na Faculdade Fluminense de Medicina; professor substituto de Medicina Pública na Faculdade de Direito Teixeira de Freitas e docente de Higiene da Escola Normal do Rio de Janeiro.

Como médico esteve à frente de cargos como chefe de Serviço na Policlínica e Sanatório de Botafogo; adjunto do Hospital da Misericórdia; médico da Associação dos Empregados do Comércio. Um velhinho, zelador de um prédio do Rio, que o conheceu, disse agora há pouco que ele era um médico prestativo que atendia gratuitamente pessoas carentes. Na condição de católico, militou na União Católica Brasileira e foi congregado mariano.

Após o falecimento, em 16/9/1931, passou por uns perrengues no plano espiritual e reapareceu como o Espírito de André Luiz. Amargou a “vida” no “umbral” por uns 8 anos; aprendeu um bocado de coisas; trabalhou outro bocado e foi promovido a “Cidadão do Nosso Lar”. Nesta condição foi-lhe concedida a missão de esclarecer os viventes como a vida continua no plano espiritual, como se organiza e como se dão as relações sociais no “outro mundo”, digamos assim.

Seu reaparecimento se deu em 1941, “recebido” (incorporado) pelo médium Chico Xavier. Pouco depois foi publicado o “romance” contando como se dão as coisas no “Nosso Lar” O fato gerou enorme celeuma no meio espírita. Cogitava-se que André Luiz, em vida, seria Oswaldo Cruz; depois cogitou-se que seria Carlos Chagas entre outros. Porém, após exaustiva pesquisa conduzida pelo jornalista e ex-dirigente de um centro espírita no Rio de Janeiro, Luciano dos Anjos, o espírito denominado André Luiz, médico carioca em vida, foi o Dr. Faustino Monteiro Esposel. Tal informação foi confirmada pelo médium Chico Xavier, que tornou-se um dos maiores “receptores” do espírito André Luiz.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 17 de agosto de 2020

OS BRASILEIROS: FRANCO DA ROCHA

 

OS BRASILEIROS: Franco da Rocha

Francisco Franco da Rocha nasceu em Amparo, SP, em 23/8/1864. Médico psiquiatra, escritor, jornalista, ornitólogo e um dos pioneiros no tratamento de doenças mentais no Brasil. Foi também precursor da psicanálise, tendo inspirado e amparado Durval Marcondes, considerado fundador do movimento psicanalítico brasileiro, além de ter idealizado, fundado e dirigido o Hospital Psiquiátrico do Juqueri, durante 25 anos (1898-1923).

Diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1890, concluiu o curso como interno (médico-residente) na Casa de Saúde Doutor Eiras. Vale ressaltar que Juliano Moreira e ele foram os primeiros médicos a se dedicarem integralmente à pesquisa e tratamento das doenças mentais no Brasil e construírem as duas primeiras instituições permanentes de tratamento destas doenças no Rio de Janeiro e em São Paulo respectivamente. Tais instituições foram criadas quase ao mesmo tempo em dezembro de 1852: “Hospício D. Pedro II”, no dia 5, no Rio de Janeiro e “Asilo Provisório de Alienados da Capital de São Paulo”, no dia 14. No Rio de Janeiro, o “hospício” logo foi instalado em majestoso prédio próximo ao centro da cidade; já em São Paulo foi instalado provisoriamente e só veio a ter sede definitiva em 1896, através do empenho de Franco da Rocha.

Com apoio dos governos de Cerqueira César e Bernardino de Campos, Dr. Franco conseguiu instalar a sede projetada pelo arquiteto Ramos de Azevedo, num amplo espaço de 170 hectares às margens do Rio Juqueri nos arredores da zona norte da capital. A construção e o desenvolvimento do Hospício Juqueri transformou radicalmente a região, tornando-a no Município de Franco da Rocha, criado em 1934. Em meados do século XX chegou a ser o maior hospital psiquiátrico da América Latina. O “Hospício” foi inaugurado em 1898 e no ano seguinte ele se mudou para o local junto com a esposa -Leopoldina Lorena Ferreira- e tiveram 6 filhos. Passou boa parte da vida residindo naquele espaço bucólico, onde desenvolveu o gosto pela ornitologia, vindo a escrever um opúsculo sobre o pássaro tico-tico. Foi o primeiro professor de Neuriatria e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo, proferindo sua aula inicial, em 1919, sobre a psicanálise freudiana. Assim, foi pioneiro na introdução de Freud no Brasil. No ano seguinte publicou o livro O Pansexualismo da Doutrina de Freud, republicado em 1930 como A Doutrina de Freud. O tema despertou o interesse de seu aluno Durval Marcondes, que obteve seu apoio na iniciativa de fundar, em 1927, a primeira instituição latino-americana voltada ao estudo e a divulgação da psicanálise: a Sociedade Brasileira de Psicanálise-SBP, da qual, além de cofundador, foi o primeiro presidente. Mais tarde, quando se aposentou, as relações entre Marcondes e o meio psiquiátrico tornaram-se mais difíceis, o que veio favorecer posteriormente que a SBP acolhesse membros não médicos.

No Juqueri, instituiu o regime de liberdade para os doentes mentais. Na rotina hospitalar, introduziu a terapêutica ocupacional laborativa nas diversas modalidades, especialmente no setor agrícola. Implantou pela primeira vez na América do Sul, em 1908, o sistema de assistência familiar, com a instalação de pacientes em ambiente doméstico, aos cuidados de sitiantes da região no perímetro do hospício. Pouco depois acrescentou 5 colônias autônomas, um pavilhão para menores anormais e um laboratório de Anatomia Patológica. Depois insistiu para que fosse construído um Manicômio Judiciário, reservado aos alienados criminosos, concretizado mais tarde, em 1927. Na área de estudos, pesquisou a psicose maníaca-depressiva e a paranoia, também estudada por Juliano Moreira e Afrânio Peixoto. Passou em revista o quadro da epilepsia psíquica, na ausência de crises motoras, acarretando tantas vezes reações violentas e anti-sociais e as manifestações polimorfas da histeria.

Segundo os colegas, “tinha pelos insanos uma profunda meiguice, uma ilimitada paciência, uma enorme dose de simpatia e piedade”. Segundo ele próprio: “Desdobrar a minha atividade em proveito dos infelizes que carecem de conforto, foi para mim um grande prazer durante a parte mais forte da minha existência”. Costumava advertir: “Nunca se deve contrariar o delírio dos doentes. Devemos sempre nos adaptar ao seu meio, a fim de lhes inspirar confiança. Às vezes é até de boa técnica delirar com eles”. Certa vez, uma paciente delirante, no saguão do Hospício, relutava em ser internada. Declarava que ”daquele salão de baile na Corte, onde se encontrava, ela, uma princesa, só poderia retirar-se dançando ao som daquela música que a orquestra executava”. Ele atendeu-a pacientemente e com uma reverência, pediu-lhe: “Dá-me a honra, alteza, desse minueto?. A paciente satisfeita e feliz, de braço dado com ele, em movimentos de dança, entrou no Hospício. Em 1928, por iniciativa de discípulos e amigos, foi erguido seu busto de bronze no saguão do Hospital. Conta-se, que um velho negro, dos mais antigos do Hospital, sempre se ajoelhava e orava diante do busto de Franco da Rocha. Quando o advertiram de que o busto não era de um santo, mas do diretor, respondeu: “Bem sei disso. Mas é isso mesmo, ele é santo e é o nosso santo. Por isso, não deixo de rezar cada vez que posso junto dele”.

Alguns estudiosos afirmam que, embora muito citado, poucos se debruçaram sobre sua produção intelectual, limitando-se a uma análise superficial de sua biografia, a qual teria sido marcada pela fundação e administração do Hospital do Juqueri. Porém, é na sua produção de livros, artigos e ensaios publicados em revistas nacionais e estrangeiras que se encontra uma fértil seara emblemática de sua eloquência e sagacidade, a qual sugere sua atuação como mais um pensador social dentre os nomes da medicina brasileira na passagem do século XIX para o XX. Segundo Yolanda C. Forghieri, ele foi um dos pioneiros da Psicologia Social no Brasil, tendo estudado as desordens mentais das multidões, os transtornos psíquicos relacionados à raça negra, as epidemias de loucura religiosa. É considerado, também, um dos formuladores da nossa Psiquiatria Forense, pontificando acerca das questões médico-legais relacionadas com os distúrbios da mente. Tais contribuições ficaram registradas no livro Esboço de psiquiatria forense, publicado em 1904 e traduzido para o alemão.

Como escritor não deixou muitos livros; preferia uma comunicação mais direta com o público. Era um jornalista vocacionado e divulgou noções de psiquiatria e áreas correlatas, através de numerosos artigos na imprensa leiga, colaborando nos jornais “O Estado de São Paulo” e “Correio Paulistano”, durante 30 anos. Mas não descuidava da área científica e contribuiu com um capitulo no Tratado Internacional de Psicopatologia, organizado por P. Marie, publicado em princípios do século passado, além de inúmeros artigos nas revistas técnicas nacionais e estrangeiras. Após sua aposentadoria, em 1923, passou a colaborar mais permanente com os jornais e revistas e faleceu em 8/11/1933.

Era um homem culto, dominava diversos idiomas e leitor voraz de obras literárias e sociológicas. Manteve contatos com a turma de Semana de Arte Moderna de 1922 e chegou a receber Mario de Andrade no Juqueri para umas experiências musicais com os pacientes. Foi através desse convívio com os escritores e artistas que ingressou Academia Paulista de Letras em 1930. O sociólogo Paulo Silvino Ribeiro publicou em 2010, nos “Cadernos de História da Ciência” extenso artigo: Franco da Rocha e publicação de suas ideias: uma análise do meio social na explicação etiológica da loucura, onde sintetiza sua atuação e sua representatividade no cenário nacional: “Se a medicina contribuiu para a institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, é certo que a Psiquiatria seria um dos ramos que a representou neste processo, tendo na figura de Franco da Rocha um dos principais nomes nos estudos psiquiátricos na passagem do século XIX para o XX”.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 10 de agosto de 2020

OS BRASILEIROS: JULIANO MOREIRA

 

OS BRASILEIROS: Juliano Moreira

Juliano Moreira nasceu em Salvador, BA, em 6/1/1872. Médico psiquiatra e pioneiro ao incorporar a teoria psicanalítica no ensino da medicina. Reconhecido como “fundador da psiquiatria brasileira” por ter revolucionado as concepções e métodos da psiquiatria no Brasil. A revista alemã “Psychiatrische Neurologische Wochenschritf” nº 27, de out./1910, publicou a galeria dos grandes psiquiatras do mundo, onde ele foi o único americano participante.

Filho do português Manuel Moreira do Carmo Jr. e da descendente de escravos Galdina Joaquim do Amaral, empregada doméstica do Barão de Itapuã -Luís Adriano Alves de Lima Gordilho-, renomado médico baiano. São escassas as informações sobre sua infância, mas sabe-se que desde o nascimento conviveu com a família do Barão, um dos diretores da FAMEB-Faculdade de Medicina da Bahia. Na condição de “afilhado” do Barão, pode ingressar no curso de medicina aos 14 anos. No 5º ano (1890) foi interno da Clínica Dermatológica e Sifilográfica e no ano seguinte graduou-se com a tese “Sífilis maligna precoce”, divulgada e elogiada no exterior, no “Journal des Maladies Cutanées et Syphilitiques” e nos “Annales de Dermatologie e Syphiligraphie”. Foi o primeiro pesquisador a identificar a leishmaniose cutâneo-mucosa,

No período 1893-1903 foi alienista e médico-adjunto do Asilo São João de Deus, vinculado à Santa Casa. Em 1896 participou do concurso para professor da FAMEB, enfrentando uma banca examinadora composta de escravocratas. Sob aplausos, apresentou sua tese oral “Disquinesias Arsenicais” e o texto sobre “Meopatias Progressivas”. As provas foram acompanhadas com a presença maciça de estudantes que temiam algum ato que o impossibilitasse de vencer o concurso. No dia do resultado do concurso, o Terreiro de Jesus fervilhava de gente à frente dos portões da Faculdade. Quando viram o resultado, ele obteve 15 notas máximas. Com apenas 24 anos superou concorrentes poderosos e tornou-se o mais jovem professor da FAMEB. A festa de comemoração do mérito sobre o preconceito se estendeu até o Pelourinho.

Participou da “Escola Tropicalista da Bahia” e contribuiu por 10 anos na redação da revista “Gazeta Médica da Bahia”. Liderou uma turma de jovens médicos na fundação da Sociedade de Medicina e Cirurgia e da Sociedade de Medicina Legal da Bahia, numa luta constante conta o “racismo científico”. Acreditava-se que a miscigenação era a causa da degeneração do brasileiro; que essa mistura e o clima tropical eram causadores das doenças, incluindo as mentais. Juliano combatia tais ideias evolucionistas dominantes, afirmando a necessidade de eliminar preconceitos de cor e casta, e promover um trabalho de higienização mental dos povos. Chegou a ter duros embates com seu colega Nina Rodrigues, que seguia o pensamento vigente. Defendia suas ideias de forma educada e cortês utilizando a ciência em defesa das minorias excluídas, sem o sentimento de inferioridade que sua mestiçagem pudesse sugerir. Mantinha um ritmo de trabalho intenso além de contribuir com diversas revistas nacionais e estrangeiras especializadas.

No período 1895-1902 fez uma série de viagens à Europa para tratar de uma tuberculose crônica, aproveitando a ocasião para alguns estágios e visitas à clinicas psiquiatras e manicômios. Em 1900 participou do Congresso Médico Internacional, em Paris, e no ano seguinte foi eleito, mesmo ausente, Presidente de Honra do IV Congresso Internacional de Assistência aos Alienados, em Berlim. Em 1903, tendo Rodrigues Alves como presidente, foram empreendidas profundas reformas no País. O baiano José Joaquim Seabra foi nomeado Ministro do Interior e Justiça; o Barão do Rio Branco assume a pasta das Relações Exteriores. O País passava por mudanças estruturais.

Pereira Passos, prefeito do Rio, iniciou uma “revolução” urbanística e sanitária na Capital Federal, tendo Oswaldo Cruz na linha de frente, impondo a vacinação obrigatória, que resultou na “Revolta da Vacina” em 1904. Foi nesse contexto que ele esteve no Rio de Janeiro e não voltou mais à Salvador. Numa articulação de Afrânio Peixoto com o Ministro Seabra, foi convidado, aos 30 anos, para dirigir o Hospital Nacional de Alienados. Dá inicio a uma nova fase na história da saúde mental no Brasil. Enquanto Oswaldo Cruz comanda uma “revolução” na saúde contra as epidemias, ele comanda outra na saúde mental contra o tratamento desumano praticado nos asilos. Sua primeira providência foi mudar a vetusta sala do Diretor para uma simples sala no térreo e passa a morar no Hospital. Recebia todos que o procuravam, sem cerimônia. Em 1914 recebeu um paciente famoso -o escritor Lima Barreto-, de quem recebeu o comentário: “Na 2ª feira, antes que meu irmão viesse, fui à presença do Dr. Juliano Moreira. Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não me admoestou, fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar. Disse-lhe que na seção Calmeil. Deu ordens ao Santana e, em breve, lá estava eu.”

Como medida institucional, manteve contatos com o Ministro Seabra no intuito de garantir assistência aos necessitados. Com isto foi promulgado o Decreto nº 1132, de 22/12/1903, (Lei Federal de Assistência a Alienados). No âmbito interno do hospital, promoveu mudanças significativas: retirou grades das janelas e eliminou as camisas de força; implantou oficinas artísticas; construiu um pavilhão dedicado ao trabalho dos internos; organizou uma biblioteca para uso dos pacientes e funcionários; mudou o foco da psiquiatria francesa, copiada integralmente, para a alemã, adaptada à nossa cultura etc. Com dedicação integral e intensa ao trabalho, descuidava-se de sua saúde comprometida por uma tuberculose crônica.

Em 1905, junto com Afrânio Peixoto e outros, fundou a revista “Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins”. 2 anos após, junto com 40 colegas, fundou a Sociedade Brasileira de Neurologia Psiquiatria e Medicina Legal, cujo objetivo era “fazer uma grande propaganda em favor da melhora da sorte dos alienados”. Em seguida representou o Brasil no Congresso de Medicina de Portugal, onde manteve contatos com Julio Dantas, médico que defendeu a tese “Pintores e Poetas Rilhafoles”, inspirado nas manifestações artísticas dos pacientbes em hospitais psiquiátricos. Trouxe estas experiências para o Brasil, que mais tarde viriam incentivar os trabalhos de Nísia da Silveira.

Participou de diversos congressos médicos na Europa: Milão (1907), Ansterdam (1908), Viena (1908), Londres (1909) Budapeste (1910) Em 1911 foi nomeado diretor da Assistência Médico-Legal de Alienados e na sua gestão (acumulada com a direção do Hospital) criou o Manicômio Judiciário e envidou esforços para a aquisição do terreno, construção e fundação da Colônia Juliano Moreira. Em 1925 comandou uma comitiva recepcionando Albert Einstein em Visita ao Hospital. Em 1928 foi convidado por 4 universidades japonesas para fazer conferências e foi condecorado com a “Ordem do Tesouro Sagrado” pelo Imperador Hiroito. No mesmo ano criou a Seção Rio de Janeiro da Sociedade Brasileira de Psicanálise, fundada em 1927 pelo Neuropsiquiatra Franco da Rocha, em São Paulo

Impressionante sua capacidade de trabalho, mesmo doente. Dirigiu o Hospital durante 27 anos, até 1930 e ainda encontrou tempo para fundar e dirigir a Academia Brasileira de Ciências no período 1926-29. Com a instauração do “Estado Novo”, em 1930, foi destituído da direção do hospital e aposentado. Seu legado é de 112 artigos científicos publicados no âmbito nacional e internacional, comprovados na dissertação de Vera Portocarrero “Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria” (2003) e na pesquisa realizada pelo IFB-Instituto Franco Basaglia “Fontes primárias e secundárias relativas a Juliano Moreira”. Faleceu em 2/5/1933, pobre, contando com ajuda de amigos na tentativa de sobreviver a doença que o castigara durante anos. Em sua homenagem, o Governo da Bahia criou em 1936 o Hospital Juliano Moreira, onde é mantido um projeto de museu dedicado à sua memória: “Memorial Prof. Juliano Moreira”.

No dia seguinte ao falecimento, o Jornal do Brasil publicou o necrológio “O Brasil (…) não pode avaliar o que perde com o desaparecimento, ontem, do sábio Juliano Moreira. Grande entre os maiores psiquiatras do país, com um renome e uma fama que ultrapassaram as fronteiras brasileiras para fulgurar nos centros científicos mais adiantados do mundo. Juliano Moreira devotou à ciência toda a sua vida e toda a sua dedicação (…) mais tarde, teremos então ideia de quanto perdemos com a sua morte”. Nas biografias que temos publicado aqui, é comum reclamarmos a falta de uma filmografia sobre os ilustres brasileiros. No caso de Juliano Moreira, reclamamos, também, a falta de uma biografia.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 03 de agosto de 2020

AS BRASILEIRAS: ANÁLIA FRANCO

 

AS BRASILERIAS: Anália Franco

Anália Franco Bastos nasceu em 1/2/1853, em Resende, RJ. Educadora, jornalista, escritora, dramaturga, poeta e filantropa destacada nas áreas da educação e assistência social. Dedicou toda a vida a criação de instituições assistenciais e de ensino: mais de 74 escolas. 23 orfanatos, 2 albergues, creches, orquestra, grupo teatral e diversas oficinas manufatureiras dedicadas às mulheres carentes.

Teve os primeiros estudos em casa, com a mãe professora. Em 1861, a família mudou-se para o interior de São Paulo. Aos 15 anos entrou no magistério como professora auxiliar de sua mãe e pouco depois recebeu permissão para lecionar como professora primária. Em 1872, aos 19 anos, foi aprovada pela Câmara Municipal de São Paulo, num concurso para professora, mas decidiu ficar no interior. Tal decisão selou seu destino de assistencialista pelo resto da vida. Devido a “Lei do Ventre Livre”, de 28/9/1871, que tornava livre os filhos de escravas nascidos a partir daquele ano, as crianças ficavam sob a custódia das famílias, onde nasciam até os 8 anos.

O Estado delegou aos senhores de escravos esta tarefa sem compensação alguma, ocasionando abusos, descaso e até expulsão dos escravos, com os filhos, de suas terras. Sem condições de se manterem, muitos deles se tronavam mendigos perambulando pelas ruas com suas crianças. Anália passou a redigir cartas para as senhoras fazendeiras, pedindo que amparassem essas crianças, ao mesmo tempo em que criou sua primeira instituição assistencial: a “Casa Maternal”, em Jacareí, uma escola pública. O local foi oferecido por uma das fazendeiras à quem ela pediu para amparar as crianças. A oferta trazia no bojo uma condição explicitada pouco depois: não misturar negros e brancos. Anália não aceitou a proposta, recusou a oferta e passou a pagar aluguel pela casa. A fazendeira não gostou da ousadia e providenciou sua expulsão do local.

Em seguida mudou-se para a capital, onde criou uma escola pública e abrigo para crianças. Depois, com o apoio dos abolicionistas e republicanos, conseguiu implantar mais algumas dessas instituições em São Paulo. Com a abolição da escravatura (1888) e proclamação da República (1889), seu trabalho avançou com a criação de dois colégios gratuitos para meninos e meninas. Em 1898 criou sua própria revista –“Álbum das Meninas”-, a partir das colaborações que já fazia para outras revistas: “A Família”, “A Mensageira” e “O Eco das Damas”. Era uma revista mensal literária e educativa voltada às jovens. Em 1901, junto com 20 senhoras, fundou a AFBI-Associação Feminina Beneficente e Instrutiva, destinada a apoiar mulheres e crianças em condições precárias. Com isso, conseguiu criar mais escolas públicas e o “Albergue Diurno para os Filhos de Mães Jornaleiras”, um dos braços da AFBI. Logo, pode se dizer que foi a pioneira na criação de creches públicas. Seu lema era “A verdadeira caridade não é acolher o desprotegido, mas promover-lhe a capacidade de se libertar”.

Com ajuda de alguns políticos paulistas, notadamente do Senador Paulo Egídio, conseguiu adquirir a Chácara Paraíso, 75 alqueires de terra na Zona Leste de São Paulo, ao lado do bairro Tatuapé, que pertenciam ao padre Diogo Antônio Feijó, regente do Império no período 1835-37. Neste espaço, instalou a AFBI e fundou a Colônia Regeneradora Dom Romualdo, afim de abrigar e regenerar centenas de mulheres consideradas “desviadas”, como prostitutas ou que engravidavam fora do casamento. 6 anos após fundada, a instituição mantinha 22 escolas maternais e 2 noturnas na capital e 5 no interior. Cerca de 2 mil crianças pobres estavam matriculadas em todas as unidades. Após seu falecimento, o local passou por alguns melhoramentos, foi encampado pela Prefeitura e foi sendo ocupado pela população que para lá se estendia, tornando-se numa das regiões mais habitadas da capital. Pouco depois, foi criado o Jardim Anália Franco, que a partir da década de 1980 recebeu grandes investimentos imobiliários e tornou-se uma “área nobre” residencial na Zona Leste.

Seu empreendimento educacional precisava de muitas professores. Em 1902, criou o “Liceu Feminino”, afim de instruir e preparar professoras para a direção e ensino nas escolas que iam sendo criadas. Nesse meio tempo, publicou diversos livros, folhetos e tratados sobre o processo pedagógico, como o “Novo Manual Educativo”, contendo capítulos especiais sobre a juventude e adolescência. No ano seguinte, passou a colaborar na revista mensal “A Voz Feminina”. Vale ressaltar que tais atividades não tinham cunho religioso. Diziam que ela professava a religião espírita, mas isto era questão de foro íntimo, não estava explícito em seus trabalhos assistenciais. Mesmo assim, foi combatida por jornais católicos da época, dizendo que seu trabalho era algo “perigoso para o sentimento religioso das crianças”.

Seu legado bibliográfico é composto de obras pedagógicas e 3 romances: “A Égide Materna”“A Filha do Artista” e “A Filha Adotiva”; peças teatrais; e várias poesias, como “Hino a Deus”, “Hino à Ana Nery”, “Hino a Jesus”, “Minha Terra” entre outras. Sua última obra assistencial foi o Asilo Anália Franco, no Rio de Janeiro, concluído pelo marido –Francisco Antônio Bastos- após seu falecimento, em 20/1/1919, vitimada pela gripe espanhola de 1918. “Não teve filhos, mas foi uma grande mãe”. Assim foi descrita por Adalzira Bittencourt no livro “A mulher paulista na história”, publicado em 1954. Dentre suas biografias, vale ressaltar o livro “Anália Franco: a grande dama da educação brasileira”, extenso trabalho de pesquisa realizado por Eduardo Carvalho Monteiro e publicado em 2004, na comemoração dos 450 anos de São Paulo.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 27 de julho de 2020

OS BRASILEIROS: GASPAR VIANNA

 

OS BRASILEIROS: Gaspar Vianna

Gaspar de Oliveira Vianna nasceu em Belém, PA, em 11/5/1885. Médico sanitarista e cientista descobridor da cura da leishmaniose. Foi um dos primeiros jovens pesquisadores, arregimentado por Oswaldo Cruz na criação do Instituto Soroterápico, que resultou na FioCruz. Devido as circunstâncias em que veio a falecer, é considerado mártir da ciência.

Filho de Manoel Gomes Vianna e Rita Nobre Vianna, ficou órfão de pai ainda criança. Teve sólida formação educacional e aos 15 anos já havia concluído os cursos primário e secundário no colégio São José e no Lyceu Paraense. Mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1903, a fim de estudar medicina e encontrou a cidade envolta em duas “revoluções” que se alimentavam reciprocamente: uma urbanística e outra sanitária. Uma sob o comando do prefeito Pereira Passos e outra comandada pelo médico Oswaldo Cruz, ambos designados pelo presidente Rodrigues Alves

Concluiu o curso, em 1909, com a apresentação da tese “Estrutura da célula de Schwann nos vertebrados”, estudo pioneiro na área de pesquisas histolológicas sobre “neurofibrilas”. Durante o curso chamou a atenção do professor de histologia Eduardo Chapot Prévost, tornando-se seu assistente informal, ajudando os colegas em dificuldades na matéria. Lá encontrou seu conterrâneo Bruno Álvares da Silva Lobo, com quem publicou o livro “Estrutura da célula nervosa”. No 4º ano do curso abriu, junto com o irmão, um laboratório de análises próximo â Santa Casa, cuja enfermaria passou a frequentar e realizar necropsias em seu laboratório. Em 1906, quando Rocha Lima deixou o Instituto Soroterápico e voltou à Alemanha para aprofundar seus estudos, ele foi convidado por Oswaldo Cruz para remediar esta ausência, trabalhando na Seção de Histopatologia.

No ano seguinte ingressou, por concurso, no Hospital Nacional de Alienados, dirigido por Juliano Moreira. Logo após a formatura, foi promovido a chefe da Seção de Anatomia Patológica do Instituto Oswaldo Cruz e prosseguiu na carreira acadêmica. Conquistou o título de Livre Docência em Anatomia Patológica, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1913, e passou a reger a cadeira de Histologia Normal da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária do Ministério da Agricultura.

Em 1909, foi convidado por Carlos Chagas para fazer a caracterização histopatológica do recém-descoberto Trypanosoma cruzi. Tal estudo da anatomia patológica da doença de Chagas era essencial para a confirmação do quadro clínico da doença e sua aceitação como nova entidade nosológica. A importância desse estudo ficou na penumbra devido ao sucesso da descoberta da Doença de Chagas. Mas, felizmente, foi publicado em 1911 e até hoje permanece como exemplo de descrição minuciosa ainda atual no estudo do sistema nervoso central na fase aguda da doença.

Pesquisou, também, os Trypanosoma gambiense, T. equinum, T. equiperdum e T. congolense. Com base nestas pesquisas, descreveu uma nova espécie de Leishmania, denominando-a braziliensis, em 1911, responsável pela úlcera de Bauru ou leishmaniose tegumentar americana. Em 1912, propôs um tratamento específico pela injeção venosa do tártaro emético ou antimonial, que era eficaz para conter a enfermidade, abrindo caminho para o uso da substância também no granuloma venéreo e na esquistossomose. Com isto se deu o início da quimioterapia anti-infecciosa. O trabalho foi publicado em alemão e teve repercussão mundial. Em sua tese de livre docência – Moléstia de Posadas-Wernicke. Lesões apendiculares -, descreveu a “blastomicose brasileira” ou paracoccidioidomicose (doença de Lutz, Splendore & Almeida) e não a coccidioidomicose (doença de Posadas & Wernocke), numa época em que o próprio Adolfo Lutz (1908), incorrera neste engano, ao descrever a doença. Pela primeira vez, ele traçou todo o quadro clínico e anatomopatológico da doença de Lutz.

Como se vê, era um jovem e promissor cientista. Em apenas 6 anos (1908-1914) publicou 23 trabalhos científicos de envergadura nas áreas: histologia, protozoologia, zoopatologia, microbiologia e anatomia patológica, micologia e quimioterapia. Em abril de 1914, enquanto fazia necropsia do cadáver de uma vítima de tuberculose, fez uma incisão no tórax em ponto onde, ele não sabia, havia grande quantidade de líquidos contaminados sob grande pressão torácica. Aberta a incisão, um jato contaminado atingiu sua boca, causando grave infecção tuberculosa que evoluiu para granulia e meningite, vindo a falecer 2 meses depois em 14/6/1914, aos 29 anos.

Em Belém, um decreto estadual celebrou o seu nascimento, 5 de maio, como “Dia de Gaspar Vianna” e, em 2001, nas comemorações do 25º aniversário da TV Liberal, de Belém, ele foi eleito “Paraense do Século XX”, pela descoberta da cura da Leishmaniose, que ajudou a salvar milhões de pessoas em todo o mundo. Em âmbito nacional, a “Revista do Hospital das Clínicas de São Paulo” inscreveu-o em uma lista dos dez maiores nomes da medicina brasileira no século XX, após enquete entre entidades médicas, científicas e educacionais. Em maio de 2016, a Assembleia Legislativa do Pará em parceria com a Fundação Hospital de Clinicas Gaspar Vianna, lançou um selo postal em comemoração ao seu aniversário. Na ocasião foi lançada, também, uma revista em quadrinhos contando sua curta e profícua trajetória – “Gaspar Vianna: legado de um herói” – para distribuição aos alunos de ensino médio. Um breve ensaio biográfico – “Opera Omnia de Gaspar Vianna – foi escrito por Edgar de Cerqueira Falcão e publicado, em 1962, pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 20 de julho de 2020

AS BRASILEIRAS: AUTA DE SOUZA

 

AS BRASILEIRAS: Auta de Souza

Auta de Souza nasceu em Macaíba, RN, em 12/9/1876. Poeta, professora e figura destacada na religião espírita. Integrante da segunda geração romântica, com alguma influência simbolista, foi considerada por Luís da Câmara Cascudo, a “maior poetisa mística do Brasil”. Seu nome encontra-se estampado em diversas instituições espíritas em todo o País. Sua vida constitui-se numa bela história de superação ocorrida no País.

Filha de Elói Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina Rodrigues, ficou órfã aos 3 anos, com a morte da mãe e aos 4 do pai, vitimados por uma epidemia de tuberculose que assolava o País. Foi criada pela avó materna Silvina Maria Paula Rodrigues, numa chácara no Recife, Aos 11 anos ingressou no Colégio São Vicente de Paula, dirigido por freiras francesas, e tornou-se ledora compulsiva de Victor Hugo, Lamartine, Chateaubrind e Fenélon no original, além de muita literatura religiosa. Em 1890 retornou com sua avó para Macaíba.

Aos 14 anos foi também atingida pela epidemia de tuberculose e interrompeu os estudos no Colégio, mas prosseguiu estudando como autodidata. Participou da “União Pia das Filhas de Maria” e ministrou aulas de catecismo, ao mesmo tempo em que escrevia poemas religiosos. Na opinião do crítico Jackson Figueiredo, era uma das mais altas expressões da poesia católica nas letras femininas do Pais. Começou a publicar seus poemas aos 16 anos, quando passou a frequentar o “Club do Biscoito”, associação de amigos que promovia reuniões dançantes e saraus, recitando Casimiro de Abreu, Castro Alves, Gonçalves Dias e autores potiguares.

Em 1894 passou a colaborar com a revista “Oásis” e 2 anos depois já colaborava com “A República”, jornal de maior circulação e que lhe deu visibilidade na imprensa nacional, incluindo O Paiz, do Rio de Janeiro. No ano seguinte, passou a escrever assiduamente para A Tribuna, de Natal.. Entre 1899 e 1900, assinou seus poemas com os pseudônimos de Ida Salúcio e Hilário das Neves, prática comum naquela época. Colaborava também nos jornais “A Gazetinha”, de Recife, no jornal religioso “Oito de Setembro”, de Natal, e na “Revista do Rio Grande do Norte”.

Em 1895 conheceu o promotor público de Macaíba, João Leopoldo da Silva, de quem ficou enamorada durante um ano. Mas ele veio a falecer devido a tuberculose, que acompanhava seus passos desde a infância. Tal frustração amorosa, junto à orfandade e à religiosidade ficaram marcadas em sua obra poética. Seu único livro – Horto -, publicado em 1900, foi prefaciado por Olavo Bilac e foi republicado diversas vezes, inclusive em Paris. O livro foi bem recebido pela crítica e pelo público, cuja edição esgotou-se em 2 meses. A edição de 1936 foi prefaciada por Alceu de Amoroso Lima e boa parte dos (14) poemas foram musicados.

Faleceu em 7/2/1901, vitimada pela tuberculose, e foi sepultada no cemitério do Alecrim, em Natal.. Em 1904 seus restos mortais foram transferidos para o jazigo da família, na parede da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Macaíba. Em 1936, a Academia Norte-Riograndense de Letras dedicou-lhe a cadeira nº 20, em reconhecimento à sua obra. Em 12/9/2008, na comemoração de seu nascimento, foi laçado o documentário “Noite Auta, Céu Risonho”, dirigido por Ana Laurentina Ferreira Gomes, produzido pela TV Universitária em parceria com o Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Riograndenses.

Em 1953, foi criada em São Paulo, por Nympho de Paulo Corrêa, a Campanha de Fraternidade, que mais tarde passou a se chamar “Campanha de Fraternidade Auta de Souza’, realizada em centenas de centros espíritas em todo o País e no exterior. O espiritismo tem cultivado sua obra composta de poemas póstumos. Chico Xavier psicografou o livro Auta de Souza, com sonetos atribuídos ao seu espírito, além de outros poemas publicados no livro Parnasso de além-túmulo (1932). Em 2016 foram musicados, por Carlinhos Santa Rosa, 11 sonetos de sua autoria, psicografados por Chico Xavier e gravados no CD “Presença do Amor”. Sua vida e obra foi escrita em algumas biografias, das quais destacam-se A vida breve de Auta de Souza (1961), de Luís da Càmara Cascudo; Auta de Souza (1991), de Diniz Ferreira da Cruz e Auta de Souza (1924), de Jackson de Figueiredo.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 13 de julho de 2020

OS BRASILEIROS: ROCHA LIMA

 

OS BRASILEIROS: Rocha Lima

Henrique da Rocha Lima nasceu no Rio de Janeiro em 24/11/1879. Médico sanitarista, patologista, bacteriologista, cientista e descobridor da bactéria Rickettsia prowazekii (causadora da doença tifo). Junto com Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz e Carlos Chagas, entre outros, ajudou a criar a Fundação Oswaldo Cruz. Dirigiu o Instituto Biológico (SP) e foi o principal incentivador das relações médico-científicas entre o Brasil e a Alemanha. Considerado o “Embaixador da Medicina Brasileira” na Europa, projetou o Brasil no cenário científico internacional.

Filho do famoso médico Carlos Henrique da Rocha Lima, um dos fundadores da Policlínica do Rio de Janeiro; estudou no Colégio Brasil-Alemão, em Petrópolis e graduou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1901, com a tese “Esplenomegalia nas infecções agudas”. Ainda estudante conheceu o Instituto Soroterápico; foi seduzido pelo carisma de Oswaldo Cruz e pela “Revolução Pasteuriana”, com o advento do microscópio. Em 1903 foi estagiar na Alemanha, no Instituto de Higiene de Berlim, nas áreas de microbiologia e anatomia patológica. Na volta, foi trabalhar no Instituto Soroterápico, em 1903, e tonou-se o principal colaborador de Oswaldo Cruz, que acumulava o cargo de Diretor Geral da Saúde Publica. Nesse período, enquanto Cruz se digladiava com os políticos no combate à epidemia de febre amarela, ele substitui-o na direção do Instituto nas suas ausências. Lembremos que em 1904, deu-se a “Revolta da Vacina”

Em 1906 voltou à Alemanha e ficou sabendo do Congresso Internacional de Higiene e Demografia, à realizar-se em 1907. Convenceu Oswaldo Cruz a levar o Instituto Soroterápico para participar do Congresso e conquistou mais espaço e melhor apresentação junto aos organizadores do Congresso. Assim, o Brasil foi premiado com a “Medalha de Ouro” na exposição. Não foi fácil para Oswaldo Cruz conseguir recursos para a participação junto ao governo brasileiro, nem para ele convencer os alemães, que tinham uma visão pouco satisfatória dos avanços da medicina no Brasil. Tal participação fez com que o Brasil ficasse conhecido no exterior por suas realizações em saúde publica e pesquisas científicas na área médica, projetando o Instituto Soroterápico no cenário internacional. A premiação foi crucial para que o governo brasileiro visse o Instituto com outros olhos e conseguisse os recursos necessários para sua restruturação e ampliação, que andavam emperradas na burocracia estatal. Logo após a reforma, em 1908 a entidade passou a chamar-se “Instituto Oswaldo Cruz”. Em tais condições Rocha Lima pode dedicar-se mais ao estudo da febre amarela, permitindo o diagnóstico da doença pos-mortem e a criação de um quadro histopatológico, posteriormente denominado “Lesão de Rocha Lima”, utilizado nas viscerotomias em casos suspeito.

Em 1909 foi convidado para lecionar na Universidade de Jena e pouco depois foi convidado pelo Prof. Stanislas von Prowazeki para trabalhar no Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo, onde lecionou por 18 anos. Em 1914 foi designado, junto com Prowazeki, para estudar o tifo epidêmico na Turquia. Os dois foram contaminados e só ele sobreviveu. De volta a Hamburgo, prosseguiu nas pesquisas sobre o tifo e descobriu seu agente causador, em 1916, que recebeu o nome de Ricketsia prowazeki em memória de Howard Ricketts e Prowazeki, dois cientistas vitimados pelo tifo. Apresentou a descoberta no Congresso Alemão de Medicina Interna em maio de 1916 e passou a ser melhor considerado entre os colegas alemães. Mais tarde, em 1928, retornou ao Rio, em companhia do Prof. Alfons Jakob, que veio ministrar um curso de histopatologia do sistema nervoso no Instituto Oswaldo Cruz. Em seguida, foi convidado pelo Governo de São Paulo para dirigir uma Divisão do Instituto e 5 anos depois assume a direção geral até 1949. Imprimiu um ritmo de trabalho no estilo alemão; reestruturou sua organização e fez do Instituto uma entidade modelar em termos de desenvolvimento científico nas áreas agrícola e pecuária, alavancando o progresso do Estado de São Paulo e do País nestas áreas. Além de renomado cientista, teve destacada atuação na criação de instituições dedicadas às ciências: SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Escola Paulista de Medicina (atual UNIFESP) e Faculdade de Medicina da USP.

Foi homenageado com diversas horarias: “Cruz de Ferro”, concedida pelo Imperador Guilherme II, por iminente perigo de vida em prol da Ciência. “Medalha de Benemerência” do Papa Pio XI, “Medalha Bernard Notch”, do Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo, “Insígnias de Honra da Cruz Vermelha Alemã” e “Cavaleiro da Ordem da Águia Alemã”. No Brasil, as homenagens foram escassas, mas a Sociedade Paulista de História da Medicina, no cinquentenário da descoberta do tifo, conseguiu do governador Adhemar de Barros, em 1966 com o decreto nº 46.088, a criação da “Medalha Cultural Rocha Lima”, outorgada anualmente aos médicos destacados na ciência. Outra homenagem foi seu nome atribuído ao Centro Acadêmico e Associação Atlética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).

No entanto, sofreu algumas frustrações na carreira científica: sua descoberta das lesões hepáticas da febre amarela não foi devidamente reconhecida pelos próprios colegas do Instituto Oswaldo Cruz. Mesmo sua descoberta do causador do tifo epidêmico foi preterida num congresso realizado em Varsóvia, cujo tema central era a etiologia dessa doença. Ele e H. Topfer estavam inscritos para falar da descoberta e embora seu trabalho figurasse em primeiro lugar no programa, coube a Topfler fazer antes sua comunicação. Coube a ele fazer apenas breve resumo sem projeções ilustrativas. Indignado, pediu ao presidente do congresso a retirada de seu trabalho. O pedido não foi aceito e publicaram na íntegra sua comunicação nos anais do congresso.

Mas a maior decepção se deu em 1928, quando o prêmio Nobel de Medicina foi atribuído a Charles Nicole, que também estudou o transmissor do tifo, sem que ele fosse citado. Toda a comunidade científica considerou a premiação injusta e que ele deveria, ao menos, partilhar o prêmio com Nicole. Tal como ocorreu com Carlos Chagas e a descoberta da tripanossomíase americana, o Brasil foi mais uma vez prejudicado pelos critérios de julgamento da Fundação Nobel. Sobre este episódio, ele declarou num artigo publicado em 1951: “Mesmo na literatura científica, mesmo nessa atmosfera em que se pressupõe um sacerdócio voltado exclusivamente à procura da verdade nem sempre a verdade histórica é encontrada pura e livre da máscara convencional falseadora imposta pela influência das preponderâncias pessoais, regionais ou internacionais”.

Na tese de doutoramento (menção honrosa da Capes em 2012) “A trajetória científica de Henrique da Rocha Lima e as relações Brasil-Alemanha (1901-1956)”, o historiador André Felipe Cândido Silva afirma que, não obstante a importância de Rocha Lima na Ciência, ele permanece praticamente desconhecido da maior parte dos brasileiros. “Sua identificação com a Alemanha e ligação com a medicina germânica num momento em que ela se ligou às terríveis atrocidades do nazismo pode ter contribuído para esse ‘silenciamento’”. Vale dizer que não se tem notícia alguma de seu envolvimento com a politica alemã e que seu único “crime” foi ter recebido das mãos do próprio Hitler a medalha de “Cavaleiro da Ordem da Águia Alemã”, em 1938. Pagou caro por ter nascido num meio “germanófilo” e ter desenvolvido sua carreira científica na Alemanha. Por tal ato involuntário, sua descoberta da causa da doença tifo e contribuição decisiva para tornar a FioCruz o que é hoje, também caíram no esquecimento dos brasileiros logo após o falecimento em 26/4/1956. Sua vida e legado foram descritas na biografia escrita por Santos Moraes Dois cientistas brasileiros (Rocha Lima e Gaspar Viana), publicada em 1968, pela Edições Tempo Brasileiro.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 06 de julho de 2020

AS BRASILEIRAS: CLARA CAMARÃO

 

 

AS BRASILEIRAS: Clara Camarão

Clara Felipe Camarão nasceu em princípios do século XVII, no Nordeste, às margens do rio Potengi, atual bairro do Igapó, em Natal, RN. Indígena potiguara, catequizada pelos Jesuítas junto com o marido Antônio Felipe Camarão (Poti), conhecido herói da Batalha dos Guararapes, na expulsão dos holandeses de Pernambuco. É reconhecida como uma das primeiras heroínas brasileiras, com destacada atuação na Batalha de Tejucupapo, em 1646.

Sua atuação não se dava apenas junto ao marido, que liderava um grupo de índios em batalhas em Olinda e Recife. Há registros sobre sua participação na escolta de algumas famílias de colonos, fugindo do ataque holandês, em 1637, na cidade de Porto Calvo. A história conta que ela liderava um pelotão feminino de indígenas. Conta também que naquela época, algumas tribos Tupi, incluindo os potiguares, treinavam suas mulheres nos combates.

Sua história pessoal é repleta de lendas, como todas desse período, mas seu nome consta num poema de José da Natividade Saldanha, em 1822, quando cursava Direito na Universidade de Coimbra, publicado num livro de poesias dedicado aos amantes do Brasil, exaltando a coragem de Clara Camarão. Os livros “Brasileiras célebres”, de J. Norberto de S.S, publicado em 1862 pela Livraria Garnier, e “Anno Biographico Brasileiro”, de Joaquim Manoel de Macedo, publicado em 1876 pela Typografia e Litografia do Imperial Instituto Artístico, trazem verbetes relatando seus feitos. Era uma mulher que tinha pleno domínio do arco e flecha, da lança e do tacape, e que investia contra os inimigos montada em seu cavalo.

Um de seus feitos memoráveis e comemorado até os dias atuais é a “Batalha de Tejucupapo”. O episódio ocorreu em 1646, quando a tropa holandesa decidiu invadir o povoado (próximo a Goiana, PE) em busca de comida. A vila era grande produtora de farinha de mandioca e os homens se dirigiam, aos domingos, à feira do Recife para vender o produto. Os holandeses aproveitaram a ocasião para invadir a vila. Os poucos homens que restavam formaram uma barreira de contenção, mas foram abatidos. Ao entrar na vila, a tropa holandesa foi surpreendida por um batalhão de mulheres armadas de arco e flecha e enormes tachos de água fervente misturada com pimenta, jogada nos olhos dos invasores, pelo batalhão feminino comandado por Clara Camarão e mais 3 mulheres (Maria, Quitéria e Joaquina). O elemento surpresa inutilizou os flamengos para o combate e deixou mais de 300 mortos. Pouco depois, o casal Felipe e Clara Camarão, foi agraciado com o hábito de Cristo e gozaram as regalias dos títulos de ”Dom” e “Dona”, concedidos pelo rei Felipe IV devido aos serviços prestados à Portugal.

O episódio ficou marcado na História do Brasil e vem sendo comemorado até hoje, todo último domingo de abril, no distrito de Tejucupapo, em Goiana, PE. Na festa é apresentada um espetáculo teatral, ao ar livre no Morro das Trincheiras, onde se deu a batalha, com a participação de 220 atores, num espetáculo dirigido por Dona Luzia Maria desde 1993. A “Batalha de Tejucupapo” vem sendo contada em livros, filmes e peças de teatro, bem como em teses acadêmicas. O primeiro registro histórico do episódio se deu em 1648, dois anos após ocorrido, pelo frei português Manuel Calado, que presenciou o conflito e publicou o livro “O Valeroso Lucideno”, em Lisboa, e republicado em 1987 pela Editora Itatiaia. Trata-se de uma crônica relatando a resistência portuguesa ao invasor holandês.

Em 1984, a jornalista Marilene Felinto publicou o romance “Mulheres de Tejucupapo”, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti de escritora-revelação e foi traduzido em diversos idiomas. O professor de comunicação da Universidade Católica de Pernambuco, Claudio Bezerra, empreendeu vasta pesquisa e publicou o livro “Tejucupapo: História, Teatro, Cinema” pela Editora Bagaço, em 2004. Tais relatos sobre o episódio garantiu à sua protagonista Clara Camarão, a inscrição no “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria”, através da Lei nº 13.422, de 27/3/2017, além de seu nome estampado na Refinaria de Petróleo em Guamaré, RN. Sua última luta se deu ao lado do marido na Batalha dos Guararapes, em 1648, quando ele faleceu pouco depois e ela recolheu-se à vida privada, não sendo conhecidos o local e data de sua morte.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 29 de junho de 2020

OS BRASILEIROS: EMÍLIO RIBAS

 

OS BRASILEIROS: Emílio Ribas

Emílio Marcondes Ribas nasceu em Pindamonhangaba, SP, em 11/4/1862. Médico sanitarista, pioneiro no combate da febre amarela entre outras epidemias e na criação de instituições de pesquisas na área da saúde pública, junto Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz, Vital Brasil e Carlos chagas. Após os primeiros estudos em escola pública, foi estudar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e graduou-se em 1887, com a tese “Morte aparente de recém-nascidos”, ressaltando os cuidados com o cordão umbilical.

Em seguida casou com Maria Carolina Bulcão e passou a clinicar em Santa Rita do Passa Quatro, SP. Pouco depois mudou-se para Tatuí, onde foi nomeado inspetor sanitário, em 1895. No ano seguinte, como auxiliar do Dr. Diogo Teixeira de Faria, no “Desinfetório Central”, combateu várias epidemias guiado sobretudo pela intuição. Exterminou o mosquito transmissor (Aedes aegyptii) em São Caetano, Jaú, Pirassununga, Pilar, Rio Claro, Araraquara e Campinas, onde foi promovido a chefe da comissão sanitária e permaneceu até 1898. Ajudou Vital Brasil na criação do Instituto Soroterápico, os primórdios do Instituto Butantan, e foi nomeado diretor do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, cargo ocupado até se aposentar em 1917.

Publicou, em 1901, o artigo “O mosquito considerado como o agente de propagação da Febre amarela” e sofreu forte oposição dos colegas, que não acreditavam na transmissão da doença pelo mosquito. Afim de aprofundar o assunto, foi para Cuba acompanhar o trabalho dos médicos Carlos Juan Finlay e Walter Reed, que estavam mais adiantados na pesquisa. Em princípios do século passado Cuba era um celeiro do mosquito e os surtos febre amarela eram recorrentes. No ano seguinte foi para São Simão, afim de deter a 3ª epidemia de febre amarela e só saiu de lá quando conseguiu, com ajuda de outros médicos e voluntários, acabar com a epidemia, limpando o rio que corta a cidade e instalando serviços de saneamento básico.

Retornando â São Paulo, decidiu fazer uma experiência semelhante a realizada pelos colegas cubanos, junto com Adolfo Lutz e mais dois voluntários: deixaram-se picar por mosquitos que estiveram em contatos com doentes de febre amarela, no Hospital de Isolamento de São Paulo (atual Instituto de Infectologia Emílio Ribas), em 1903. Foi a partir da contaminação de Ribas que Oswaldo Cruz empreendeu a eliminação dos focos de mosquito no Rio de Janeiro. A experiência foi repetida mais duas vezes, sendo a última com 3 imigrantes italianos pagos para ficarem junto a secreções e lençóis usados por doentes de febre amarela. Os resultados provaram que a transmissão não se dava pelo contágio e sim pela picada de mosquitos infectados por pessoas portadoras dessa moléstia.

Ainda em 1903 a experiência foi apresentada no 5º Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, onde ele defendeu o combate com a eliminação do mosquito e não dos meios defendidos pelos “contagionistas”. No mesmo ano a febre amarela foi declarada extinta no estado de São Paulo. Pouco depois uma nova epidemia começa a preocupar os paulistas: a tuberculose. O Governo encarrega-o com a missão de viajar aos EUA e Europa para estudar a profilaxia dessa doença. Trouxe na bagagem algumas ideias que alavancaram a cidade que ficou conhecida como a “Suiça Brasileira”. Campos de Jordão já era famosa pelo seu clima, como um lugar propício ao tratamento da tuberculose. Mas, para chegar lá os enfermos tinha que subir a serram da Mantiqueira em lombo de burros e cavalos. Uma de suas primeiras providências, junto com Victor Godinho, foi a construção da Estrada de Ferro Campos de Jordão, inaugurada em 1914.

O projeto era indispensável não só para o transporte das pessoas, mas para o envio de materiais para a urbanização e construção de hospitais, como o primeiro Dispensário de Tuberculose. A dedicação à este trabalho lhe rendeu honrosa homenagem ainda em vida: seu nome foi dado à praça central de sua cidade. Rendeu também 200 contos de réis, dado pela Câmara Municipal, em 1917, quando se aposentou. Mas, esta “comenda” ele recusou. Como se vê, foi um exímio administrador, além médico dedicado a várias doenças. De seus cuidados no tratamento da lepra, surgiu o “Sanatório de Santo Ângelo”, em Mogi das Cruzes. O primeiro centro de tratamento mais humano de assistência aos hansenianos no Brasil, iniciado em 1917 e inaugurado em 1928.

Seu envolvimento no projeto, junto com o colega Joaquim Riberio de Almeida resultou na construção de uma cidade em miniatura, com igreja, teatro, campo de futebol, praça etc. No conceito da época, o isolamento era um benefício para os doentes e para a sociedade. O sanatório deu origem ao grande “Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti Cavalcanti”, que ainda mantém uma ala dedicada aos hansenianos. Em 1922 deu sua última conferência sobre febre amarela no Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina de São Paulo, que leva o nome de seu amigo Oswaldo Cruz, e veio a falecer em 19/12/1925. Na celebração dos 150 anos de seu nascimento, realizada em 2012 no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, foi apresentada uma exposição audiovisual sobre a vida e legado do médico e administrador.

Na ocasião, o governador Geraldo Alckmin concedeu-lhe o título póstumo de “Patrono da Saúde do Estado de São Paulo”. Foi também lançada sua biografia: “Emílio Ribas, o guerreiro da saúde”, escrita pelo seu colega José Lélis Nogueira. Trata-se de um vasto levantamento das batalhas travadas por este guerreiro em combate com diversas epidemias. Seu caráter batalhador foi realçado no artigo “Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo,” publicado por Marta de Almeida na revista “História, Ciências, Saúde – Manginhos”, vol. VI(3): 577-607, fev. 2000. Clique aqui para acessar.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 22 de junho de 2020

AS BRASILEIRAS: LUÍZA GRIMALDI

 

AS BRASILEIRAS: Luiza Grimaldi

Luíza Grimaldi Correa nasceu em Portugal, em 1541. Fidalga real portuguesa da antiga Casa de Grimaldi, de descendencia italiana e segunda “capitoa” do Brasil. A primeira foi Brites de Albuquerque, da Capitania de Pernambuco. Casada com Vasco Fernandes Coutinho Filho, segundo donatário da Capitania do Espírito Santo, ficou viúva em 1589 e recebeu como herança a propriedade da Capitania, na época em que Portugal estavasob o dominio español.

Governou a Capitania até 1593, quando, por orden do Rei, o governo foi transferido para seu sobrino Francisco de Aguiar Coutinho. Na condição de terceira donatária, manteve a defesa da terra contra os indígenas e enfrentou o corsário inglês Thomas Cavendish, que já havia saqueado diversos povoados do litoral brasileiro, além de traficantes de escravos e açucar. Auxiliada pelo cunhado Miguel de Azeredo e numa aliança com o cacique Jupi-açu, conseguiu fortificar o povoado e enfrentar os invasores, que tentaram desembarcar ali em 1592.

Na construção dos Fortes de São Marcos e São Miguel, em Vitória, foi orientada pelo seu confessor e amigo Padre José de Anchieta, a quem ajudou na catequese do território capíxaba. Em seu governo, incentivou a vinda de religiosos beneditinos e franciscanos, os quais receberam como doação o Morro das Palmeiras, onde foi erguido o Convento da Penha, uma das joias da arquitetura religiosa colonial. Foi ela quem recepcionu o primeiro bispo do Ro de Janeiro, Dom Bartolomeu Simões Pereira. Foi Também uma grande incentivadora da imigração ao territorio capixaba de espanhóis, judeus, portugueses e colonos de outras capitanías.

Em 1593 retornou à Portugal, onde se recolheu no Convento Paraíso, em Évora e veio a falecer em 1626, aos 85 anos, com o nome Soror Luiza das Chagas. Na Europa, foi uma das pessoas que deporam no processo de beatificação do padre José de Anchieta. A escritora capixaba Bernadete Lyra, doutora em História, passou 4 anos pesquisando sobre sua vida em Espirito Santo e Portugal e escreveu o romance biográfico “A Capitoa”, publicado pela Editora Leya, em 2014. Com base nesta pesquisa, o escultor Hippólito Alves conseguiu esculpir a estátua da “Capitoa” (foto acima), inaugurada em 23/5/2016 e localizada em frente a Casa da Memória, em Vila Velha, no exato local onde nasceu o Estado do Espírito Santo. Na escultura ela aprecia a vista do Convento da Penha.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 15 de junho de 2020

OS BRASILEIROS: ADOLFO LUTZ

 

OS BRASILEIROS: Adolfo Lutz

Adolfo Lutz nasceu no Rio de Janeiro, em 18/12/1855. Médico sanitarista, zoologista, cientista e pioneiro da medicina tropical e saúde pública brasileiras. Junto com Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Emílio Ribas e Carlos Chagas, entre outros, estabeleceu as bases de combate às epidemias e doenças urbanas, bem como a criação de sólidas instituições de pesquisas na área da saúde.

Criado numa tradicional família de Berna, Suíça, seu avô –Friedrich Bernard Jacob Lutz- chefiou o serviço médico do exército da Confederação Helvética. Seus pais –Gustav Lutz e Mathilde Oberteuffer chegaram ao Rio de Janeiro em 1850, no auge de uma epidemia de febre amarela. Em 1855, a cidade, passou por outra epidemia, agora, de cólera. Tanto o pai, que trabalhava no comércio, como a mãe eram grandes empreendedores. Dona Mathilde abriu uma escola, que veio a se tornar o Colégio Suiço-Brasileiro, no bairro Botafogo. Na época, o Rio era conhecido como o “túmulo dos imigrantes”. Isto fez com que a família voltasse à Suíça 2 anos depois. Mas, em 1864, os pais retornaram ao Rio, devido aos negócios, e deixaram os 3 filhos maiores em Basiléia para concluir os estudos. Adolfo contava com 9 anos e desde cedo demonstrava certa precocidade e segurança ao afirmar, aos 6 anos, que queria dedicar-se ao estudo da Natureza. Aos 13 anos já era leitor habitual da bíblia da biologia moderna: A origem das espécies, de Charles Darwin. Graduou-se médico na Universidade de Berna, em 1879 e, no ano seguinte, aos 25 anos, doutorou-se com tese sobre Os Efeitos Terapêuticos do Quebracho. Em seguida, fez cursos de especialização em medicina experimental em Londres, Viena, Praga e Paris, onde foi aluno de Louis Pasteur.

Retornou ao Brasil, em 1881, e foi trabalhar em Limeira (SP), como clínico geral por 6 anos. Interessado na área de pesquisa médica, foi estudar na Alemanha, especializando-se em doenças infecciosas e medicina tropical. Trabalhou junto a Paul Gerson Unna, “papa” da Dermatologia, e publicou seu primeiro trabalho sobre o micróbio da lepra (1886) na conceituada revista (atual) “Dermatologische Wochenschrift”. Foi uma grande contribuição ao caráter não contagioso da doença, motivo pelo qual foi convidado para o cargo de diretor do Hospital Kahili, no Havaí. onde passou a estudar in loco a hanseníase. Aí conheceu Amy Marie Gertrude Fowler, enfermeira inglesa voluntária, destacada pelo destemor com que entrava em contato com os leprosos. Trabalharam duro para demonstrar que a lepra não era uma doença contagiosa. Ao enfrentarem o preconceito dos colegas, suas afinidades se ampliaram e vieram a casar em 11/4/1891. Após breve período na Califórnia (EUA), foi convidado pelo governador de São Paulo, em 1893, como diretor interino do Instituto de Bacteriologia, que mais tarde foi rebatizado com seu nome. O instituto foi criado para estudar e combater as epidemias, endemias e epizootias mais comuns no estado. Com uma pequena equipe, ele foi a alma, o cérebro e a força de trabalho do instituto. Com sua dedicação, foi efetivado no cargo de diretor em 1895, onde permaneceu por 15 anos.

Por essa época, a cidade de Santos sofreu uma grande epidemia de peste bubônica e ele foi para lá junto com outros dois jovens médicos: Emílio Ribas e Vital Brasil, de quem ficou amigo e deu-lhe suporte às pesquisas sobre antídotos para picadas de cobra. Suas pesquisas tornaram-no o primeiro cientista latino-americano a confirmar os mecanismos de transmissão da febre amarela pelo Aedes aegypti, o mosquito vetor dessa doença. Sua dedicação à saúde pública, levou-a pesquisar várias epidemias, como a cólera, peste bubônica, febre tifoide, malária, ancilostomíase, esquistossomose e leishmaniose. Além de pioneiro na área da Entomologia, pesquisou as propriedades terapêuticas das plantas brasileiras. Como zoologista, descreveu várias espécies de insetos e anfíbios. Nesta área, sua filha, a bióloga Bertha Lutz (1894-1976) tornou-se conhecida com a descoberta de 10 espécies de anfíbios e famosa como pioneira na luta pelo voto da mulher. Em 1899, ingressou como membro honorário na Academia Nacional de Medicina. Seu nome passou a ser uma referência nacional na área da bacteriologia, que adquiria papel fundamental na saúde pública, com os surtos de cólera, febre tifoide, disenterias, febre amarela etc.

Neste período publicou dezenas de artigos nas principais revistas do mundo e mantinha contato com diversos cientistas em âmbito internacional. No contato profissional com os brasileiros, seu estilo alemão encontrou algumas dificuldades. Certa vez reclamou que os principais obstáculos não residiam nas condições externas e sim no caráter do brasileiro: “A pontualidade, solidez e sinceridade científica lhe são estranhas, e ele se sente completamente satisfeito em manter as aparências. As antipatias e simpatias pessoais frequentemente tomam o lugar da lei e do direito. O protecionismo e nepotismo são quase um cancro que não se pode exterminar.” Aposentado em 1908, aos 53 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro e foi ajudar seu amigo Oswaldo Cruz a erguer o Instituto de Manguinhos. Aí encontrou espaço para se dedicar integralmente à sua vocação de cientista. Pode, enfim, retomar as pesquisas em zoologia e botânica que não puderam ser realizadas a contento enquanto esteve em São Paulo.

Era um homem mais afeito ao trabalho solitário de laboratório e não um líder ou chefe aglutinador e formador de talentos. Não apreciava a publicidade inerente à condição de homem público. Mesmo em São Paulo, sempre deixou à Emilio Ribas o encargo, e louros, das grandes ações públicas. Dizia-se que não era um timoneiro do porte de Oswaldo Cruz. Certamente a união dos dois foi determinante para o sucesso da empreitada em fazer da FioCruz uma instituição respeitada na ciência mundial. Após a morte de Oswaldo Cruz, em 1917, continuou em estreita ligação com o novo diretor -Carlos Chagas- dotando o instituto de uma excelência técnica até 6/10/1940, quando veio a falecer. Em menos de um mês foi inaugurado o Instituto Adolfo Lutz (29/10/1940), a partir de uma fusão do Instituto Bacteriológico com o Laboratório Bromatológico, localizado ao lado da Faculdade de Medicina da USP.

Trata-se de uma das mais renomadas instituições cientificas no mundo. Conta hoje com 11 laboratórios regionais no interior do Estado e foi credenciado pelo Ministério da Saúde como Laboratório Nacional em Saúde Pública e Laboratório de Referência Macroregional. É também o Centro Controlador da OPS-Organização Pan-Americana de Saúde, nas áreas de arbuvírus e vírus influenza. É reconhecido como o principal centro de controle de qualidade de alimentos, bebidas, águas, medicamentos, cosméticos, produtos de higiene etc. Quanto ao legado, toda sua obra (21 livros) foi compilada e organizada pelo historiador Jaime Benchimol e pela bióloga Magali Romero Sá, editada em 4 volumes pela FioCruz em 2004. O mesmo autor escreveu também extenso esboço biográfico, publicado na revista da FioCruz “História, Ciências, Saúde-Manguinhos”, em 2003. Para acessar basta clicar aqui.

Sua filha Bertha Lutz se empenhou na preservação de sua memória e legado ao ponto de projetar um Museu no Rio de Janeiro, com apoio de instituições internacionais, mas não foi concluído. Em 1955 foram realizadas as celebrações do centenário de seu nascimento, registradas no documento “Comissão do centenário de Adolfo Lutz. Adolfo Lutz: vida e obra do grande cientista brasileiro, publicado pelo Conselho Nacional de Pesquisas, em 1956. Seu sobrenome foi homenageado com a denominação científica de uma espécie de perereca (Aplastodiscus lutzorum) e de um mosquito (Anopheles lutzi).]

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 08 de junho de 2020

AS BRASILEIRAS: ANA PIMENTEL

 

AS BRASILEIRAS: Ana Pimentel

Ana Pimentel nasceu em Salamanca, Espanha, em princípios de 1500. Colonizadora, esposa de Martim Afonso de Souza, dama de honra e prima da Rainha Dona Catarina (irmã de Carlos V, Rei da Espanha). Diz-se que era uma mulher de aspecto frágil, mas de grande autonomia. Casou-se em 1524 e no ano seguinte o casal mudou-se para Lisboa, levando Dona Catarina, que se tornou esposa de Dom João III, Rei de Portugal.

Em 1530, o marido foi designado a colonizar a Brasil e combater os franceses, que andavam de olho naquelas terras. Passou 3 anos no Brasil; fundou a vila de São Vicente e retornou à Lisboa em 1533. O Capitão-mór era um fidalgo português, navegante e explorador de territórios d’além mar, que não dispunha de tempo para cuidar da Capitania. Assim, a história conta que seu único ato relativo àquela parte do Brasil, foi providenciar uma procuração à sua mulher para administrar a Capitania. Em 1533 ele foi nomeado Capitão-mór do mar da Índia e depois tonou-se governador da Índia.

Consta que ela passou a cuidar da administração política e administrativa da Capitania por mais de 10 anos, até 1544. Realizou a distribuição das terras em sesmarias, designou alguns dirigentes e introduziu na selva brasileira, o cultivo da laranja, arroz e trigo e mandou vir da Ilha de Cabo Verde, bois e vacas para criar. Assim, pouco depois, os colonos já comiam carne bovina com arroz e trigo, algo nunca visto em terras brasileiras. São tarefas incomuns para uma mulher naquela época, mas que se deram a contento. Além de manter a administração da Capitania a distância, manteve a família de 8 filhos, que teve com o marido entre uma missão e outra, designada pela coroa portuguesa. As más línguas falavam que ela, na condição de dama de honra da Rainha, tinha alguns privilégios que lhe possibilitava contatos furtivos com alguns ordenanças. Mas, tais fofocas partiam de inimigos do marido, que vivia viajando. Logo, é fofoca que não importa na história.

Em 1536 providenciou carta de doação de uma sesmaria para Braz Cubas. 10 anos após, a sesmaria foi elevada a condição de Vila, que tornou-se a cidade de Santos e veio a prosperar mais que São Vicente. Outro de seus feitos foi desobedecer a ordem do marido, que proibia aquele povo de transpor a Serra do Mar, com acesso ao planalto paulista. onde se encontrava terras mais férteis e um clima mais ameno. A proibição devia-se a acordos mantidos em Lisboa, que tinha o planalto destinado a criação da Vila de São Paulo. Desse modo, foi a precursora da ligação do interior com o litoral, propiciando o surgimento dos Bandeirantes e o consequente desenvolvimento posterior da região.

Os primeiros anos da Capitania de São Vicente encontram-se registrados no documento manuscrito, transformado em livro, “O testamento de Martim Afonso de Sousa e de Dona Ana Pimentel”, publicado pela Editora da UFMG-Universidade Federal de Minas Gerais, em 2015. Dona Ana Pimentel administrou a Capitania até 1544 e veio a falecer em 1571.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 01 de junho de 2020

OS BRASILEIROS: TEODORO SAMPAIO

 

OS BRASILEIROS: Teodoro Sampaio

Teodoro Fernandes Sampaio nasceu em Santo Amaro, BA, em 7/1/1855. Engenheiro, geógrafo, escritor e historiador. O local onde nasceu -Engenho Canabrava- hoje é o município que leva seu nome. Filho da escrava Domingas da Paixão do Carmo e Francisco Antonio da Costa Pinto, que não o reconheceu como filho. Alguns dizem que seu pai foi o padre Manuel Fernandes Sampaio, que o batizou e alforriou. Ele mesmo nunca declarou sua paternidade.

Aos 2 anos foi entregue a uma senhora da sociedade, D. Inês Leopoldina, que o criou até os 9. Em 1865 foi levado para o Rio de Janeiro e internado no colégio São Salvador. Ainda estudante, deu aulas de Matemática, Filosofia, História, Geografia e Latim no mesmo colégio a partir de 1871. Ingressou no curso de Engenharia do Colégio Central e passa a trabalhar como desenhista do Museu Nacional. Após formado em Engenharia Civil (1876), estabeleceu como meta adquirir a alforria de seus 3 irmãos: Martinho (1878), Ezequiel (1882) e Matias (1884). Em 1879, integrou a “Comissão Hidráulica do Imperio”, nomeada por D. Pedro II, com o objetivo de melhorar os portos de navegação interior dos rios do Brasil. Seu nome não apareceu no Diário Oficial junto aos demais integrantes, por ser o único negro. Somente após interferência do Senador Viriato de Medeiros é que ele foi incluído.

A Comissão, comandada pelo engº norte-americano William Milnor Roberts, percorreu mais de 2 mil km. pelo Nordeste e Teodoro teve uma atuação destacada pelo seu trabalho. No relatório final da Comissão foi citado como “the best Brazilian engineer in mister Robert’s staff”. Em 1881 foi contratado para trabalhar no prolongamento da linha férrea de Salvador ao São Francisco e no ano seguinte foi nomeado engenheiro chefe da Comissão de Desobstrução do Rio São Francisco. Devido ao trabaho realizado na Comissão Hidráulica, foi convidado, em 1886, por um de seus menbros, -Orville Derby- para integrar a Comissão Geográfica e Geológica da Província de São Paulo, encarregado de elaborar a carta geológica da Província. O acervo de documentos desta comissão deu origem ao Museu Paulista (Museu do Ipiranga), criado em 1891.

Assim, passou a residir em São Paulo por mais de 20 anos e ocupou destacados cargos em órgãos públicos. Participou da criação da Companhia Cantareira, como engenheiro-chefe e, junto com Francisco Sales Gomes, ajudou a fundar a Escola Politécnica, em 1893. No ano seguinte foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e no período 1898-1903 chefiou o Departamento de Águas e Esgoto de São Paulo, além de consolidar sua carreira profissional e intelectual. Não por acaso, seu nome denomina uma das principais ruas da cidade, no bairro de Pinheiros.

Em 1904 retornou Salvador e realizou diversos projetos na área de saneamento básico; construção da cidade satélite, que chamou de “Cidade da Luz”, hoje Parque Nossa Senhora da Luz, em Pituba; represa de Pituaçu e os prédios da Maternidade Climério de Oliveira e da Faculdade de Medicina. Além das contribuições como engenheiro deixou um legado bibliográfico na geografia e história. Seu apego a estes temas, possibilitou uma aproximação com Euclides da Cunha, de quem se tornou amigo e ajudou-o no conhecimento sobre o sertão baiano na elaboração do livro Os Sertões.

Sua obra mais importante: O Tupi na Geographia Nacional (1901) ainda hoje é relevante no conhecimento do papel dos bandeirantes na difusão de topônimos de origem Tupí. Publicou diversos livros sem deixar os trabalhos de engenharia e geógrafo, e presidir o V Congresso Brasileiro de Geografia, em 1912. Principais obras: O rio São Francisco e a chapada Diamantina (1906), Atlas dos Estados Unidos do Brasil (1908), Dicionário histórico, geográfico e etnográfico do Brasil (1922). Tais publicações lhe renderam a Medalha de Prata, ortorgada pela Academia de História Internacional da França, em 1911.

Em 1917 participou da fundação da Academia de Letras da Baihia, ocupando a cadeira nº 32. Como patrono escolheu o engenheiro e também negro André Rebouças. Prestigiado na cidade, teve uma curta carreira política como deputado federal (1921-1923), não pleiteando a reeleição. Foi considerado um dos maiores engenheiros do País, além de eminente historiador e notável tupinólogo. Atuou como sócio efetivo de honra do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; sócio fundador do Instituto Histórico de São Paulo e do Instituto Geográfico e Hitórico da Bahia, que presidiu por 14 anos (1923-1937). Foi também socio correspondente dos institutos históricos e geográficos de Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe, Rio Grande do Norte e Ceará, além do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.

Nos últimos anos de vida, dedicou-se ao livro História da Fundação da Cidade da Bahia, publicado postumamente em 1949. Faleceu antes de concluir o último capítulo, em 15/10/1937. Seu nome consta hoje em dois municípos (São Paulo e Bahia) e em diversos logradouros do País. A homenagem mais recente foi a exposição “Teodoro Samaio: um sábio negro entre os brancos”, realizada em São Paulo, no Museu Afro Brasil, em 2007, sob a curadoria de Emanuel Araújo.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 25 de maio de 2020

AS BRASILEIRAS: BÁRBARA HELIODORA

 

AS BRASILEIRAS: Bárbara Heliodora

Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira nasceu em São João del Rey (MG), em 3/12/1759. Poeta, mineradora e Inconfidente Mineira. Seu nome às vezes é confundido com a crítica teatral Heliodora Carneiro de Mendonça, também conhecida como Bárbara Heliodora, certamente em homenagem à poeta e “Heroína da Inconfidência Mineira”. Coincidentemente foi contemporânea de Bárbara de Alencar (1760-1832), revolucionária pernambucana de 1817 e avó do romancista José de Alencar.

Criada numa tradicional família de mineradores, sua mãe Maria Josefa Bueno da Cunha era descendente do paulista Amador Bueno, aclamado rei de São Paulo, em 1641. Casada com o Inconfidente e poeta Alvarenga Peixoto, fez questão de manter o nome de solteira. Em 1860, seu biógrafo Aureliano Leite, deixou registrado: “ela foi a estrela do norte que soube guiar a vida do marido, foi ela que lhe acalentou o seu sonho da inconfidência do Brasil… quando ele, em certo instante, quis fraquejar, foi Bárbara que o fez reaprumar-se na aventura patriótica. Disso e do mais que ela sofreu com alta dignidade, fez com que a posteridade lhe desse o tratamento de Heroína da Inconfidência”.

Na condição de esposa de um dos líderes da Inconfidência Mineira, manteve algumas reuniões dos revoltosos em sua casa. E se não há provas de seu envolvimento na conjuração, é porque o marido resguardou a esposa nos interrogatórios dos “Autos da Devassa”. Assim, ela e sua xará pernambucana, foram as primeiras mulheres brasileiras a participar de uma revolta política. Após o fracasso do movimento, o marido foi preso, teve os bens confiscados e foi deportado para Angola, onde veio a falecer. No entanto, ela reclamou junto a Coroa ser casada em regime de comunhão de bens e, assim, conseguiu ficar com metade dos bens. Parou de escrever, dedicou-se a criação dos 4 filhos e a cuidar de sua propriedade. Infelizmente seus poemas não foram publicados na época e muitos deles foram destruídos durante as devassas na sua casa. Só restaram As Sextilhas ou Conselhos a meus filhos. Veja alguns versos deste poema:

Meninos, eu vou ditar
As regras do bem viver;
Não basta somente ler,
É preciso ponderar,
Que a lição não faz saber,
Quem faz saber é o pensar.

Neste tormentoso mar
De ondas de contradições,
Ninguém soletre feições
Que soletre feições,
Que sempre se há de enganar,
De caras e corações
Há muitas léguas que andar.

Sempre vos deveis guiar
Pelos antigos conselhos,
Que dizem que ratos velhos
Não há modos de os caçar;
Não batais ferros vermelhos,
Deixai um pouco esfriar.

O poema foi publicado equivocadamente em 1830 pelo Cônego Januário da Cunha Barbosa, com o título Conselhos de Alvarenga Peixoto a seus filhos, na Coleção das melhores poesias do Brasil. A correção só ocorreu em 1862, com a publicação do livro Brasileiras célebres, de Joaquim Norberto dos Santos e Silva, onde foram publicadas 9 das 12 sextilhas, cuja autoria é atribuída a ela. Em 1795 sua primeira filha, aos 15 anos, faleceu em decorrência de uma queda de cavalo. Pouco depois e, talvez, devido a estes perrengues, foi criada uma lenda sobre seu enlouquecimento; que vagava pelas ruas de São João del Rey falando coisas sem nexo. Tal lenda chegou a alguns livros publicados mais tarde. Mas a verdade foi restabelecida pelo seu biógrafo Aureliano Leite, em 1860, com a publicação do livro A vida heroica de Bárbara Heliodora.

Na biografia, o autor certifica que ela viveu seus últimos anos em perfeito juízo; cuidou dos negócios da família; foi admitida na Ordem 3ª do Carmo e faleceu aos 60 anos, vitimada por uma tuberculose, em 24/5/1819. Foi sepultada na Igreja Matriz, ”envolta no hábito de Nossa Senhora do Carmo e acompanhada até a sepultura por 9 sacerdotes que lhe fizeram ofício de 9 lições e missa de corpo presente”. O biógrafo conclui que “a uma louca e indigente não se dedicaram exéquias dessa pompa”. Tempos depois, em 11/10/1931, o capitão Alberto Carlos da Rocha explicou a origem da lenda de sua loucura, num artigo publicado no periódico “A Opinião de São Gonçalo de Sapucaí”. Em 27/7/1809, ela “vendeu”, por escritura todos os bens ao filho mais velho, temendo uma expropriação. Como a transação prejudicava a Fazenda Real e diante da necessidade de anular a escritura, ela foi declarada demente.

Seu nome tem sido lembrado em diversas homenagens ao longo da história, como no poema intitulado Romance LXXV ou De Dona Bárbara Eliodora, integrante do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Na música, Almeida Prado compôs a “Lira de Dona Bárbara Heliodora”, cantata colonial para soprano, barítono (ou tenor) coro misto & orquestra. No cinema, teatro e TV, também foi retratada em diversas ocasiões. Em 1909, quando foi criada a Academia Paulista de Letras, sua bisneta Presciliana Duarte de Almeida, escritora, jornalista e poeta, escolheu-a como patrona da cadeira nº 8. Assim, Bárbara Heliodora foi a primeira mulher a ocupar esta posição acadêmica no Brasil. Em 1952, Henriqueta Lisboa escreveu o belo poema “Drama de Bárbara Heliodora”, publicado em seu livro Madrinha Lua, que pode ser lido clicando aqui.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 18 de maio de 2020

OS BRASILEIROS: CARLOS CHAGAS

 

 

OS BRASILEIROS: Carlos Chagas

Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas nasceu em Oliveira, RJ, em 9/7/1878. Médico, sanitarista, bacteriologista, cientista descobridor da “Doença de Chagas’ e um dos pioneiros da saúde pública. Junto com Oswaldo Cruz e Vital Brasil entre outros, consolidou a medicina experimental no Brasil e teve 4 indicações ao Prêmio Nobel de Medicina, em 1921, ano em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Harvard, nos EUA.

Órfão de pai aos 4 anos, concluiu os primeiros estudos em Itu (SP) e São João del Rey (MG). Aos 19 anos entrou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde ficou conhecido como o “estudante de duas velas”. Como na época estudava-se à luz de velas, ele gastava duas. Em 1902 dirigiu-se ao Instituto Soroterápico, com uma carta de apresentação de seu professor, Dr. Miguel Couto, a Oswaldo Cruz, afim de elaborar sua tese de doutoramento. Concluiu o curso em 1903, com a tese “Estudos hematológicos no impaludismo’. Assim deu-se o contato com seu grande mestre, que o convidou para permanecer em Manguinhos. Atraído pela clínica, recusou o convite; montou consultório no ano seguinte e casou-se com Iris Lobo, com quem teve 2 filhos.

Em 1905 foi à Itatinga (SP), designado por Oswaldo Cruz, para combater a malária. Foi a primeira campanha bem sucedida de combate a malária. De volta ao Rio, em 1906, passa a integrar o grupo de pesquisadores de Manguinhos. No ano seguinte foi designado para combater epidemias em diversas cidades, iniciando uma série de expedições pelo País, cuidando do saneamento básico e saúde pública. Numa expedição à Lassance (MG), descobriu um novo protozoário no sangue de um sagui, que deu o nome “Trypanosoma Minasense”. Em seguida, percebeu vários insetos nas frestas das casas de pau-a-pique, que se alimentavam à noite com o sangue dos moradores, atacando o rosto. Por isto foi chamado de “barbeiro”. Identificou no intestino do inseto um protozoário semelhante ao encontrado no sagui, levando-o a crer que poderia ser uma fase evolutiva do “Trypanosoma Minasense”. Enviou amostras do inseto para Oswaldo Cruz, pedindo-lhe que desse como alimento aos saguis do laboratório. Pouco depois recebeu a noticia que os saguis adoeceram e que havia a presença do Trypanosoma no sangue. Animado, voltou para o Rio e desvenda o ciclo evolutivo do novo protozoário, que recebeu o nome de “Trypanosoma Cruzi”, em homenagem ao amigo Oswaldo Cruz.

Em seguida voltou à Lassance convencido que o parasito descoberto poderia ser causador de doença em animais e humanos. Em 14/2/1909 examinou o sangue de uma criança febril e identifica a presença do parasito. A menina Berenice torna-se o primeiro caso de moléstia provocada pelo novo protozoário. A descoberta consolidou o surgimento de um novo ramo da parasitologia, a “protozoologia”, dedicada ao estudo dos protozoários. Em 15/4/1909 foi publicada uma nota prévia, na revista “Brasil-Médico”, sobre a nova doença. No mesmo dia Oswaldo Cruz fez o anúncio formal à ANM-Academia Nacional de Medicina, da descoberta de uma nova doença: a “Tripanosomíase americana”. Uma comissão dirigiu-se à Lassance para confirmar as provas referentes à descoberta. O presidente da comissão, Dr. Miguel Couto, propôs que a doença fosse chamada “Moléstia de Chags”. A divulgação da descoberta se fez através de revistas científicas estrangeiras e despertou o interesse de cientistas europeus. Em 1909, ele publicou no 1º volume das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz um estudo completo sobre o protozoário, seu ciclo evolutivo e a doença, garantindo-lhe prestigio e a promoção a “chefe de serviço” do instituto, em 1910. Logo foi realizada na ANM sua primeira conferência sobre a moléstia, quando foi reconhecida a importância de seu trabalho.

Junto com Oswaldo Cruz e outros pesquisadores, realizou uma expedição no vale do Amazonas, em 1912, para amplo levantamento médico-sanitário da região, relatando o abandono daquela população e enfatizando a necessidade de medidas sanitárias. No mesmo ano recebeu o “Prêmio Schaudim”, conferido por um júri internacional, através do Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo, ao melhor trabalho na área de Protozoologia. Em 1916 se empenhou na campanha pelo saneamento rural do País até 11/2/1917, quando se dá o falecimento de Oswaldo Cruz. 3 dias depois assume a direção do Instituto de Manguinhos. No cargo, buscou consolidar o modelo estabelecido à semelhança do Instituto Pasteur, com autonomia administrativa e financeira e estreita ligação entre a pesquisa, ensino e fabricação de remédios. Com isso garantiu a renda própria do Instituto. Em 1918 criou a “Liga pro-Saneamento do Brasil”, movimento reunindo médicos, cientistas, intelectuais e políticos numa mobilização em prol da reforma dos serviços de saúde pública. No mesmo ano publicou o livro O saneamento dos sertões e foi nomeado diretor Serviço de Profilaxia Rural. Em seguida foi requisitado pelo Governo para chefiar a campanha contra a epidemia de gripe espanhola. O sucesso de sua atuação pesou na escolha de seu nome para comandar a reforma dos serviços públicos de saúde do País.

Em 1919 foi nomeado pelo presidente Epitácio Pessoa para reorganizar a saúde pública. Assumiu a direção do DNSP-Departamento Nacional de Saúde Pública, acumulando com seu trabalho em Manguinhos. No período 1920-1922, ampliou os serviços de saneamento rural, com a instalação de postos de profilaxia em vários Estados. Dedicou-se à formação de profissionais com o Curso Especial de Higiene e Saúde Pública, além de criar a Escola de Enfermagem Anna Nery e o Hospital São Francisco de Assis, como modelo à modernização dos serviços hospitalares do País. Em 1921 fez uma série de conferências nos EUA e tornou-se o primeiro brasileiro a receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Havard. A mesma distinção foi concedida em 1926 pela Universidade de Paris. Conquistou, também, os títulos de membro honorário da Société de Pathologie Exotique (Paris), da Royal Society of Tropical Medicine (Londres) e das Academias de Medicina de Paris, Bruxelas, Roma e Nova York.

De novembro de 1922 a dezembro 1923 a ANM foi palco de uma polêmica envolvendo a doença de Chagas. Um grupo de médicos (Afrânio Peixoto, Henrique Figueiredo de Vasconcelos e Parreiras Horta) contestou a autoria da descoberta do trypanosoma Cruzi, questionaram sua importância e afirmaram não haver provas concretas de sua extensão para além do limites de Lassance. Uma comissão reconheceu o autor da descoberta, mas manteve a dúvida quanto à distribuição da doença no País. Só na década de 1930 a questão foi resolvida. Os médicos argentinos Salvador Mazza e Cecilio Romaña detectaram centenas de casos, comprovando que a doença não estava restrita apenas ao Brasil. Ao mesmo tempo, alguns pesquisadores empenharam-se em comprovar a ampla distribuição da doença de Chagas. Em 1935, seu filho Evandro Chagas criou, em Manguinhos, o Serviço de Estudos de Grandes Endemias, para promover investigações sobre a doença. Finalmente, em 1959, foi realizado o I Congresso Internacional de Doença de Chagas, colocando um ponto final na polêmica. Foi o primeiro e, até hoje permanece, o único cientista na história da medicina a descrever completamente uma doença infecciosa: o patógeno, o vetor, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia.

Nomeado professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1925, criou a cadeira de Medicina Tropical e estabeleceu as bases desta área no País. Por esta época, representou o Brasil em vários comitês internacionais, como membro do Comitê de Higiene da Liga das Nações. Em 1928 passou a coordenar o Serviço de Propaganda e Educação Sanitária, do DNSP, percorrendo diversos Estados até 1930. Faleceu em 8/11/1934, vitimado por um infarto do miocárdio. Foi homenageado com diversas condecorações em vida e pós-morte, aqui e no exterior: Cavaleiro da Ordem da Coroa da Itália, Comendador da Coroa da Bélgica, Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra da França; Oficial da Ordem de São Tiago, Portugal; Comendador da Ordem de Afonso XXI, Espanha; Comendador da Ordem de Isabel, a Católica da Espanha; Cavaleiro da Ordem da Coroa da Romênia. Teve 4 indicações para receber o Prêmio Nobel de Medicina. Hoje admite-se que o desconhecimento de suas descobertas pelo membros do Comitê Nobel foi decisivo, além do fato de naquela época haver uma preferência pelos cientistas europeus e norte-americanos.

Entre nós, seu nome denomina diversos logradouros, instituições, uma cidade em Minas Gerais e um navio-hospital da Marinha, que presta serviços no Rio Amazonas. Seu legado científico, além das descobertas, é composto de poucos livros. Não dispunha de tempo para escrevê-los, mas deixou uma dúzia de artigos publicados nas principais revistas científicas do mundo. Sua vida e obra foram registradas em algumas biografias, com destaque para o livro de seu colega e romancista Moacyr Scliar “Oswaldo Cruz & Carlos Chagas: o nascimento da ciência no Brasil”, publicado em 2002, e do excelente “Carlos Chagas: um cientista do Brasil”, publicado pela FioCruz em 2009, organizado por Simone Petraglia Kropf e Aline Lopes de Lacerda. Trata-se de um levantamento iconográfico e compilação de expressivos documentos referentes à sua vida, obra e legado. O CNPq mantém a “Plataforma Integrada Carlos Chagas”, uma base de dados e informações disponíveis ao público através do site Carlos Chagas. Em 2019, a Academia Nacional de Medicina realizou o Simpósio “Homenagem a Carlos Chagas: a doença, o homem e a história”, com diversas conferências sobre seu legado.

Carlos Chagas – 130 anos – De lá pra cá

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 11 de maio de 2020

AS BRASILEIRAS: MARIA QUEIROZ DA SILVA

 

AS BRASILEIRAS: Maria Queiroz da Silva

Maria Queiroz da Silva nasceu em Grossos, RN, em 30/3/1929. Professora, economista, pedagoga, oradora e política na condição de deficiente física de nascença, desprovida das pernas e do braço direito. Pode parecer inacreditável que uma pessoa nestas condições pudesse realizar empreendimentos tais como ministrar aulas, fundar uma escola, construir uma igreja, viajar pelo mundo e assumir o cargo de vereadora na capital de seu Estado. No entanto, é tudo verdade e se constitui num dos casos de superação mais fabulosos em todo o mundo.

De origem humilde numa família de 9 irmãos, era uma criança alegre, comunicativa e dotada de uma inteligência privilegiada. Mas isto não impediu que sofresse preconceito em sua comunidade. Aprendeu a andar sozinha, utilizando joelheiras e queria estudar como fazia os irmãos e colegas, mas sua mãe não estimulava, temendo a discriminação que sofreria na escola. Passou a frequentar uma escola particular em Areia Branca e logo aprendeu a ler e escrever. Uma de suas brincadeiras era ler para as amigas e contar o que aprendeu na escola. Assim foi moldada sua vocação para o magistério. Era dotada de uma vivacidade incomum e rejeitava os sentimentos de preconceito ou compaixão diante de sua deficiência. Ao seu modo conseguiu relativa independência de mobilidade.

Aos 12 anos concluiu o Curso Primário no Educandário Padre Anchieta e decidiu ser professora quando crescesse. Como em Areia Branca não havia ginásio, a família mudou-se para Mossoró onde os filhos poderiam cursar o ginasial. Mas ela não foi aceita em nenhum ginásio, devido a deficiência e tiveram que se mudar para Natal na esperança de continuar os estudos. Passou no “Exame de admissão” ao ginásio, no Colégio Atheneu, mas foi impedida de se matricular. Não acatou a decisão da Diretoria e foi reclamar junto ao Secretário da Educação. Comovido com seu problema, o secretário determinou que sua matrícula fosse aceita.

Concluído o curso ginasial, entrou na Escola Normal do Estado para cursar pedagogia e se formar professora do curso primário. No 2º ano do curso, foi editada a Lei nº 2.889, de 11/1/1961, cujo artigo 21 dispunha: “Os candidatos a exame de seleção deverão apresentar diploma de conclusão de Curso Ginasial… bem como satisfazer os seguintes requisitos: a) Sanidade física e mental; b) Ausência de defeito físico ou distúrbio funcional que contraindique o exercício da função docente. Ou seja, a Lei exigia a sanidade física e reforçava, reiterava a necessidade de “ausência de defeito físico” para que não restassem dúvidas. Como se vê os legisladores da época eram muito “precisos” na sua função “social”.

Mas, como já estava no 2º ano, concluiu o curso em 1962 e foi escolhida como oradora da turma. Pouco antes da formatura, a diretora da escola entrou na classe e perguntou quem gostaria de receber o diploma com o nome escrito em letras góticas. Maria foi a primeira a aceitar. Mas para espanto das colegas, a diretora disse-lhe: “Você não, Maria! Você não receberá o diploma! A sua condição física não permite!” Ela retirou-se da sala em lágrimas e dirigiu-se ao Palácio do Governo. O governador, comovido com sua “via crucis”, revogou a decisão da diretora. O problema agora está em encontrar uma escola onde possa dar aulas. Não encontrou e para realizar sua vocação teve que fundar uma escola, o “Externato Santa Terezinha”, assumindo o cargo de professora e diretora.

Na administração de sua escola, passou a se interessar por economia e ingressou na UFRN-universidade Federal do Rio Grande do Norte. Diplomada em Ciências Econômicas, em 1967, passou a ficar conhecida em Natal como “Baía”. Era seu nome caseiro pronunciado pelos irmãos pequenos, que não sabiam falar Maria. Assim adquiriu popularidade, admiração e respeito na cidade. Em 1976 foi estimulada a candidatar-se a vereadora de Natal, pelo MDB, partido de oposição ao governo militar, e obteve 1636 votos, ficando na 1ª suplência e assumiu o mandato em 1978. Além destes trabalhos, manteve intenso trabalho social na Igreja ao lado do Padre Lucas Batista Neto em viagens internacionais. Comandou, na Praia de Areia Preta, uma campanha de arrecadação de fundos para a construção da Igreja de São Francisco.

Em 19/10/1981, após submeter-se a uma cirurgia cardíaca, veio a falecer. Como é nosso (mal) costume de se reconhecer os valores das pessoas somente após a morte, os políticos de Natal deram seu nome à uma escola pública, em maio de 1982, transformada num estabelecimento de ensino fundamental e ensino médio, em 2002. Mais uma homenagem póstuma lhe foi prestada pela Prefeitura com a inauguração da Rua Vereadora Maria Queiroz, no bairro de Lagoa Nova, bairro nobre de Natal. Em 2019 sua vida e legado foi registrado na biografia “Maria Queiroz BAÍA – Exemplo de superação e luta contra o preconceito”, escrita por Lúcia Eneida Ferreira Moreira, publicada pela Offset Editorial.

Obs.: Este relato biográfico foi realizado a partir da crônica de Violante Pimentel – “A superação” -, publicada neste jornal em 21/2/2020, e alguns dados e informações enviados posteriormente.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 04 de maio de 2020

OS BRASILEIROS: VITAL BRASIL

 

OS BRASILEIROS: Vital Brasil

Vital Brazil Mineiro de Campanha nasceu em 28/4/1865, em Campanha, MG. Médico, cientista, sanitarista, descobridor do soro antiofídico e um dos pioneiros da medicina experimental no Brasil. Seu nome parece título geográfico e é. Foi dado por um costume do pai em denominar os filhos conforme o lugar onde nasceram. Ajudou a criar o Instituto Oswaldo Cruz; criou o Instituto Butantã e o Instituto Vital Brasil: 3 grandes instituições renomadas, necessárias e vitais nesta época subjugada pela pandemia do coronavírus.

Foi parente distante de Tiradentes e, mais próximo, do presidente Venceslau Brás e do mecenas Oscar Americano. No entanto, sua família era humilde e passou a infância no interior de Minas Gerais, trabalhando desde os 9 anos. Aos 15 a família mudou-se para São Paulo onde permanece até os 21. Ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1886 e formou-se em 1891, com a tese “Funções do baço”. No ano seguinte foi estagiar no Instituto Pasteur, em Paris. Médico no interior de São Paulo, presenciou a morte de vários lavradores, vítimas de picadas de serpentes. Como sanitarista, participou das brigadas de combate a febre amarela e a peste bubônica junto com Oswaldo Cruz.

Deixou registro destas experiências publicado em 2 livros: O ofidismo no Brasil (1906) e A defesa contra o ofidismo (1911), traduzido para o francês em 1914. Viúvo em 1913, casou-se de novo em 1920 e constituiu uma família de 18 filhos, alguns destacados na medicina, farmacologia, veterinária, música, psicanálise, arquitetura, aviação. Convidado pelo governador de São Paulo, foi trabalhar no Instituto Bacteriológico, em 1897, dirigido por Adolfo Lutz. Realizou pesquisas científicas e trabalhou junto com Emílio Ribas, Carlos Chagas e Oswaldo Cruz no combate à peste bubônica, tifo, varíola e febre amarela.

Em 1901 recebeu do presidente Rodrigues Alves a Fazenda Butantã, para instalar uma “fabrica de soro”, tal como o Instituto Soroterápico Federal, instalado no Rio de Janeiro, em 1900. Em apenas 4 meses foram produzidos os primeiros tubos de soro antipestoso e antiofídico. Em 1925, o Instituto Soroterápico foi rebatizado como Instituto Butantã. Seu trabalho não se limitava a área científica, criou caixas de madeira para captura de cobras e manteve convênios com as ferrovias para o transporte até São Paulo. Realizou duas campanhas públicas simultâneas: numa trocava soro por cobras vivas e noutra esclarecia a população sobre as cobras venenosas.

Em 1903 conseguiu enunciar cientificamente o soro antiofídico, a partir de anticorpos produzidos no sangue dos cavalos, usando o veneno da própria cobra. Em seguida foram produzidas vacinas contra tifo, varíola, tétano etc. As picadas de aranhas venenosas, escorpião e lacraias deram origem a novos soros. Em 1913 voltou ao Instituto Pasteur para novos cursos e visitar outros países. Em 1915 participou do Congresso Científico Pan-Americano, nos EUA, adquirindo projeção internacional. No ano seguinte preparou a patente do soro antiofídico e ao recebê-la, fez sua doação ao governo brasileiro, pois considerava a ciência como um bem público.

Deixou a direção do Instituto Butantã, em 1919, e foi para o Rio de Janeiro criar mais um instituto, apesar de convidado por Carlos Chagas para trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz. Dizia que o Brasil necessitava de mais instituições científicas. Assim, fundou em Niterói, com apoio do governador Raul de Moraes Vieira, o instituto que leva seu nome. As atuais instalações, uma joia da arquitetura moderna, foram projetadas por seu filho, o arquiteto Ãlvaro Vital Brasil. Ocupa uma área de 100 mil m² e edificação de 20 mil m², inauguradas em 1943 no bairro Vital Brasil. Por um breve período voltou a dirigir o Instituto Butantã (1924), mas logo reassumiu a direção do Instituto Vital Brasil (1927), onde permaneceu até o fim da vida.

Faleceu em 8/5/1950, vitimado por uma uremia, agravada por uma peste bubônica e febre amarela, as doenças que combateu em toda sua vida. Deixou um legado considerável e instituições solidas no estudo e combate das moléstias urbanas e doenças tropicais. Recebeu homenagens de todo tipo e figura no “Livro dos Heróís da Pátria”, além de denominar diversos logradouros e escolas em todo o País. Dois museus cuidam da preservação de sua memória e divulgação de seus trabalhos: um no Instituto Butantã, expondo seu laboratório, inaugurado em 1981, e outro na casa onde nasceu, inaugurado em 1988. Seu nome foi dado à aranha caranguejeira, Vitalius sorocabae. Em 2014 recebeu uma placa alusiva aos 120 anos da descoberta do soro antiofídico, no Museu Nacional de História Natural, em Paris.

Foi o primeiro cientista brasileiro a ter uma biografia dirigida às crianças, realizada por Nereide Schilaro Santa Rosa e publicada pela Duna Dueto Editora. O cientista foi biografado em vários livros, mas sua vida e obra completa recebeu justamente esse título: Vital Brazil: Obra Científica Completa (2002), organizada por André de Faria Pereira Neto e publicada pela FioCruz. Faleceu na época em que o Brasil passou a ser visto como o “Pais do Futuro”, e assim se mantém até hoje, quando enfrenta uma pandemia mundial e seus institutos são chamados a colaborar no enfretamento dessa moléstia que assola o mundo. Como se vê, temos pedigree para realizar esta proeza.

 


José Domingos Brito - Memorial domingo, 26 de abril de 2020

AS BRASILEIRAS: IMPERATRIZ LEOPOLDINA

 

AS BRASILEIRAS: Imperatriz Leopoldina

Carolina Josefa Leopoldina nasceu em Viena, Áustria, em 22/1/1797. Esposa de D. Pedro I e Imperatriz do Brasil. Filha do imperador Francisco I da Áustria e Maria Teresa das Duas Sicílias, chegou no Brasil em 1817 para se unir ao marido, em cumprimento ao acordo familiar de seu pai com o rei D. João VI, resultado de uma aliança entre as monarquias de Portugal e Áustria. A Europa foi redesenhada com a queda de Napoleão Bonaparte, em 1814, e no ano seguinte deu-se o Congresso de Viena, criando uma nova ordem mundial, onde o Brasil entra como reino unido de Portugal.

Nesse contexto ela teve atuação destacada no processo de independência do Brasil. Porém, a história contada nos livros escolares desconhece completamente seu papel. Tal omissão foi denunciada pelo historiador Paulo Rezzutti, autor do livro D. Leopoldina – A história não contada: a mulher que arquitetou a Independência do Brasil (2017). Sua tese é que foi em grande parte graças a ela que o Brasil se tornou uma nação. Afirma que ela “abraçou o Brasil como seu país, os brasileiros como o seu povo e a Independência como a sua causa”. Devido ao fato de reger o País diversas vezes, enquanto o marido viajava pelas províncias, é considerada a primeira mulher chefe de estado de um país americano.

Pertencia à Casa de Habsburgo, uma das mais antigas e poderosas dinastias da Europa, que reinou sobre a Áustria de 1282 a 1918. Órfã de mãe aos 10 anos, foi educada pela madrasta Maria Luísa, musa e amiga pessoal do poeta Goethe. Sua infância foi marcada pela rigidez com os estudos, estímulos culturais diversos e aprendizado de línguas (falava 6 idiomas). O casamento se deu por procuração, em 13/5/1817 em Viena e recebeu a bênção nupcial em 6/11/1817, dia seguinte ao seu desembarque no Brasil. A viagem foi dificil e durou 86 dias com uma parada em Florença enquanto esperavam o restabelecimento da ordem monárquica, abalada pela Revolução Pernambucana de 1817. Ao chegar no Rio de Janeiro, o casal foi instalado numa casa de campo na Quinta da Boa Vista.

Ainda adolescente demonstrava interesse pelas ciências naturais, particularmente geologia e botânica. Assim, empenhou-se para que viesse junto com a comitiva uma grande expedição científica integrada por expressivos cientistas e artistas: Carl Friedrich Phillip von Martius, Johann Baptist von Spix, Jean Baptiste Debret, Thomas Ender entre outros. O interesse em conhecer o Brasil já havia despertado com a publicação do livro Viagem às regiões equinociais do novo continente feita de 1799 a 1804, por Alexnder von Humboldt. O processo de independência apresentava-se como fato concreto desde que os pernambucanos se rebelaram com esse intento e conseguiram, mesmo que por apenas 74 dias. Era preciso a independência antes que os brasileiros fizessem. A Revolução Liberal do Porto (1820), em Portugal, e o retorno forçado da Corte, em 1821, à Lisboa vieram acelerar o processo.

D. Pedro, aos 23 anos, ficou no Brasil como príncipe regente com amplos poderes e incapaz de dominar o caos instalado na colonia dominada pelas tropas portuguesas. A oposição entre portugueses e brasileiros tornou-se cada vez mais evidente. A partir daí Leopoldina, culta e escolada na diplomacia e politica, passa a interferir, junto com seu amigo José Bonifácio, decisivamente no processo de independência antes mesmo do marido. Quando foi exigido seu retorno à Lisboa, sua participação no ´Dia do Fico`, em 9/1/1822, foi decisiva. Neste dia ficou sentenciada sua permanência no Brasil e passou a agir nos bastidores, orientando uns e influenciando outros a aconselharem o marido, já que ele não lhe dava ouvidos. Pouco depois D. Pedro, enquanto viajava para São Paulo, é rebaixado a mero auxiliar da Corte Portuguesa. Ela, na condição de Princesa Regente do Imperio e aconselhada por José Bonifácio, reuniu, em 2/9/1822, o Conselho de Ministros e assina o decreto da Independência.

Ato contínuo, escreve uma carta ao marido: “É preciso que volte com a maior brevidade. Esteja persuadido de que não é só o amor que me faz desejar mais que nunca sua pronta presença, mas sim as circunstâncias em que se acha o amado Brasil. Só a sua presença, muita energia e rigor podem salvá-lo da ruína”. E adverte: “O pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece”. A carta chegou às maos de D, Pedro nas margens do riacho Ipiranja, em 7 de setembro, e a Independencia foi proclamada. Pouco antes, ela idealizou a bandeira do Brasil, misturando o verde, da família Brajança, e o amarelo ouro da família Habsbsburgo, com a ajuda do pontor Debret. Essa história que o verde representa nossas matas e o amarelo nosso ouro foi inventada depois. Por fim, se empenhou a fundo no reconhecimento do novo País pelas cortes europeias, escrevendo cartas ao pai, imperador da Áustria, e ao sogro, rei de Portugal.

Foi aclamada imperatriz, em 1/12/1822, na coroação e sagração de D. Pedro e apartir daí assistimos seu martírio conjugal junto ao marido e suas amantes. Passou por uns perrengues com a amante oficial –Domitila- tendo que aceitá-la como dama de companhia, promovida a Marqueza de Santos, e o reconhecimento público da filha bastarda, promovida a Duqueza de Goiás. Até viagens junto com o marido e a amante teve que suportar, como a realizada no inicio de 1826 à Bahia. Bem antes disso já se via o abatimento físico e psicológico a que ficou reduzida, devotada apenas a parir um herdeiro para o trono.

Em meados de 1826, com a saúde abalada, enfrentou mais uma gravidez e enviou carta à irmã Maria Luísa, mencionando um terrível atentado que sofrera de seu marido. Em seguida foi definhando rápido, agravado com o aborto da criança, poucos dias antes de falecer em 11/12/1826. Há controvérsia sobre a causa mortis. Para uns sua morte decorreu de uma septicemia puerperal. Mas foi muito difundida a versão que teria sido as agressões físicas que sofreu durante um acesso de raiva do marido, em 20/11/1826. Tal versão foi defendida por historiadores, como Gabriac, Carl Seidler, John Armitage e Isabel Lustosa. Sua morte causou grande comoção popular e paralizou o Rio de Janeiro. Carlos H. Oberacker Jr., seu biógrafo, afirma na obra A Imperatriz Leopoldina: sua vida e sua época (1973), que “raras vezes uma estrangeira foi tão querida e reconhecida por um povo como ela”. Além dessa biografia oficial, muitas outras reconhecem seu papel e importância na História do Brasil, tais como os livros de Glória Kaiser, Dona Leopoldina, uma Habsburg no trono brasileiro (1997) e Johanna Prantner com Imperatriz Leopoldina do Brasil (1998).

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José Domingos Brito - Memorial segunda, 20 de abril de 2020

OS BRASILEIROS: OSWALDO CRUZ

 

OS BRASILEIROS: Oswaldo Cruz

Oswaldo Gonçalves Cruz nasceu em São Luiz do Paraitinga (SP), em 5/8/1872. Médico, cientista, sanitarista, fundador da medicina experimental no Brasil e pioneiro no estudo e combate das moléstias tropicais. No curso de medicina não demonstrou interesse pela clínica, mas ficou fascinado pelo mundo microscópico que surgia com a “revolução pasteuriana”, conduzida por Louis Pasteur, Robert Koch entre outros, que transformou a medicina.

Foi criado numa família de cariocas, que retornou ao Rio de Janeiro em 1877. Ingressou na Faculdade de Medicina aos 14 anos e formou-se médico, em 1892, com a tese A vehiculação microbiana pelas águas. Ainda estudante, publicou artigos na revista “Brasil Médico”. No ano seguinte casou-se com Emília Fonseca, com quem teve 6 filhos, e foi trabalhar na Policlínica Geral. Em meados de 1896, foi estagiar no Instituto Pasteur, em Paris, tendo como orientador o Dr. Émile Roux, e na Alemanha. De volta ao Brasil, em 1899 enfrentou um surto de peste bubônica em Santos e noutras cidades portuárias. Junto com Vital Brasil, Adolfo Lutz, Emilio Ribas e Carlos Chagas concluiu-se que a epidemia não podia ser controlada sem um soro adequado. Diante da grave situação foi proposto ao Governo a criação de uma “fábrica” de soro. Assim, foi criado o “Instituto Soroterápico Federal”, em 1900, e 6 meses depois o “Instituto Butantan”, em São Paulo, dirigido por Vital Brasil. Oswaldo Cruz assumiu a direção do Soroterápico em 1902.

Neste ano foi empossado o presidente Rodrigues Alves, que encontrou o Rio de Janeiro na condição de uma das cidades mais sujas do mundo e infestada de doenças tropicais, como a varíola, febre amarela e peste bubônica. Naquela época não era a “cidade maravilhosa”. Era conhecida como o “túmulo dos imigrantes”. O Governo federal Implementou uma série de reformas urbanas e sanitárias, que mudaram a geografia da cidade e a vida da população. Para isso designou Pereira Passos, como prefeito do Distrito Federal e Oswaldo Cruz, que assumiu a Diretoria Geral de Saúde Pública, em 1903. Daí em diante deu-se uma “revolução” urbana no Rio de Janeiro, com a derrubada de morros na área central; construção de grandes avenidas e parques; demolição de sobrados antigos e cortiços etc.. No plano do saneamento a mudança também foi radical, com a lei de vacinação obrigatória, isolamento de doentes e as famosas “brigadas de matamosquiros”.

O saneamento urbano empurrou os pobres para os morros, consolidando as favelas, e para longe do centro, criando a baixada fluminense. Tal politica junto com a vacinação obrigatória deu na “Revolta da vacina”, triste capitulo da nossa História. Durante uma semana (10 a 16 de novembro de 1904), o Rio de Janeiro se viu diante de uma guerra, com bondes, virados, postes derrubados e prédios incendiados pela multidão rebelada. A oposição à vacina contava com apoio dos militares, que viram ali uma chance de derrubar o governo; de políticos oportunistas e da imprensa que massacrava Oswaldo Cruz através de artigos e chacotas em charges nos jornais. Ele suportou tudo sem retroceder, graças ao apoio do presidente Rodrigues Alves.

A rebelião foi contida e em 1906 foi registrado apenas 39 casos de febre amarela; 4 casos em 1907 e nenhum caso em 1908. Outras epidemias surgiram, como a varíola em 1907, mas a povo procurou os postos de vacinação e logo foi debelada. O Governo empreendeu uma expedição, sob seu comando, a 30 portos marítimos e fluviais em todo o País, afim de estabelecer um código sanitário. A luta contra as doenças tropicais foi reconhecida em nível mundial e ele recebeu a “Medalha de Ouro” no 14º Congresso Internacional de Higiene e Demografia, realizado em Berlim, em 1907. Além da implantação do “Código Sanitário”, ele reestruturou todos os órgãos de saúde e higiene do País. No ano seguinte já era reconhecido como herói nacional e o Instituto Soroterápico foi reinaugurado com modernas instalações e jovens pesquisadores e rebatizado com seu nome em 1909.

Em 1912 viajou pela região norte no combate de epidemias em Rondônia, Manaus e Belém. Junto com Carlos Chagas, trabalhou no saneamento do vale amazônico, No ano seguinte foi Indicado para a Academia Brasileira de Letras-ABL e foi recebido por Afrânio Peixoto, que discursou na posse: “Vós sois como os grandes poetas que não fazem versos; nem sempre estes têm poesia, e ela sobeja na vossa vida e na vossa obra.” Com a saúde precária, mudou-se para Petrópolis em busca de ares mais amenos, mas sem deixar a atividade científica. Em 1916, junto com os amigos cientistas, se empenhou na criação da Academia Brasileira de Ciências e no mesmo ano foi eleito prefeito. Traçou vasto plano de urbanização da cidade, que não pode ver concluído, pois cada vez mais doente, renunciou em janeiro de 1917.

Abatido por uma crise de insuficiência renal, faleceu em 11/2/1917, Seu legado foi reconhecido com homenagens ainda em vida, como o nome dado ao instituto que dirigiu; ao protozoário causador da “Doença de Chagas”: Trypanosoma cruzi, em 1909; e ao Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da USP, em 1913. Após a morte inúmeros logradouros, uma cidade e diversas instituições receberam seu nome. Sua vida foi retratada em diversas biografias, romances e filmes, como Sonhos tropicais, do medico e escritor Moacyr Scliar, e o documentário “Oswaldo Cruz: o médico do Brasil”, realizado por Silvio Tendler, em 2003. Entre as biografias, temos Oswald Cruz (1940), de Egídio Sales Guerra; Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira, (1995), de Nara Britto; e o excelente Oswaldo Cruz – o médico do Brasil (2003), editado pela Fiocruz. Trata-se de amplo painel do “Projeto Memória” em homenagem ao cientista. Um “almanaque” ilustrado, fonte de pesquisa segura, completa e agradável, disponível gratuitamente na Internet clicando aqui, cujo resumo pode ser visto no vídeo abaixo.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 13 de abril de 2020

AS BRASILEIRAS: LINA BO BARDI

 

AS BRASILEIRAS: Lina Bo Bardi

Achillina Bo nasceu em Roma, em 5/12/1914. Arquiteta, designer, cenógrafa, editora, ilustradora e projetista do Museu de Arte de São Paulo-MASP. Ainda jovem estudou no Liceu Artístico e em 1940 formou-se na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma. Veio para o Brasil em 1946, naturalizou-se em 1951 e se empenhou com afinco no projeto e construção de destacadas obras da arquitetura brasileira. “Eu não nasci aqui, escolhi esse lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, é minha pátria de escolha”, declarou.

Na faculdade recebeu orientação tradicionalista, privilegiando, segundo ela, uma “nostalgia estilístico-áulica”, ao gosto do fascismo. Discordando dessa tendência, mudou-se para Milão e foi trabalhar com Gió Ponti, líder do movimento de valorização do artesanato italiano, diretor das Trienais de Milão e da Revista “Domus”. Em seguida, passou a dirigir a revista e pouco depois fundou, junto com Bruno Zevi, o semanário “A Cultura dela Vita”. Filiou-se ao Partido Comunista Italiano; integrou a resistência à ocupação alemã durante a II Guerra Mundial e teve seu escritório bombardeado em 1943.

Em 1946 casou-se com o crítico e historiador da arte Pietro Maria Bardi. Ao organizar a “Exposição de pintura italiana moderna”, Bardi conheceu Assis Chateaubriand, que o convidou para fundar um museu de arte em São Paulo. O casal alugou um porão de navio, encheram de obras de arte e uma boa biblioteca e partem para o Brasil. Chegaram no Rio de Janeiro e ela ficou encantada com o lugar e as possibilidades oferecidas com a arquitetura que ali se desenvolvia com o jovem Lucio Costa e o moderno Edifício Gustavo Capanema. Por ela, o casal viveria no Rio, mas tiveram que mudar para São Paulo.

Em São Paulo foram morar no bairro do Morumbi, na “Casa de Vidro” (1951), que se tornou um marco da arquitetura moderna brasileira e mais tarde na sede do “Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi”. Enquanto o MASP é burilado, fundou em 1948, junto com Giancarlo Palanti, o Studio d’Arte Palma, voltado à produção de móveis de madeira compensada e produtos do artesanato popular, utilizando o couro e o tecido “chita”. Sua inserção no meio intelectual e arquitetônico nacional se dá com a criação da revista “Habitat”, em 1950. O projeto do MASP foi impulsionado a partir de seu empenho pessoal no contato com pessoas poderosas para convence-las de sua competência em arquitetar o edifício. “Aproveitei uma viagem de Pietro… fui falar diretamente com (o governador) Adhemar de Barros e mostrei meu projeto”.

Iniciou o trabalho em 1957 e o prédio foi inaugurado em 1968. O resultado foi surpreendente e o arrojo da obra ganhou fama internacional. O museu manteve a praça-belvedere no piso térreo, suspendendo o edifício num vão de 70 metros. “Eu nunca quis fazer o maior vão-livre do mundo, mas a doação do terreno impunha como condição criar um belvedere com vista para a cidade”. Em 1958 foi convidada pelo governador Juracy Magalhães para dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia. Residindo em Salvador, projetou a restauração do “Solar do Unhão”, um conjunto arquitetônico do século XVI, tombado na década de 1940. Passou a conviver com os artistas de vanguarda: Pierre Verger, Glauber Rocha e o casal Jorge Amado/Zélia Gattai entre outros. Viajou pelo Nordeste e projetou a “Casa de Cultura” do Recife (1963), antiga casa de detenção. Mais tarde declarou: “importante na minha vida foi a Bahia, o Nordeste. Lá eu conheci a liberdade”.

Após o Golpe Militar de 1964, voltou a São Paulo e passou a incorporar a seus trabalhos certa influência nordestina, uma “simplificação da linguagem” ou “arquitetura pobre”, conforme se dizia. Exemplos dessa fase encontram-se na exposição “A Mão do Povo Brasileiro” (1969), o edifício do SESC Pompeia (1977), Teatro Oficina (1984). Em meados da década de 1980, voltou a Salvador para elaborar alguns projetos, como o plano de recuperação do centro histórico da cidade, projeto da “Casa do Benin”, no Pelourinho, e recuperação das encostas da Ladeira da Misericórdia.

Realizou o sonho de morrer trabalhando, em 20/3/1992, e não concluiu a reforma do “Palácio das Indústrias”, para abrigar a Prefeitura de São Paulo. Hoje todos os documentos, fotos, desenhos, maquetes, croquis, objetos, e filmes de projetos construídos e não construídos encontram-se no acervo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi e podem ser acessados pela Internet clicando aqui. Seu amigo Bruno Zevi definiu-a de forma concisa: “Lina foi uma herética em vestes aristocráticas, uma esfarrapada elegante, uma subversiva circulando em ambientes luxuosos”.

Ela também se definiu como arquiteta: “Eu tenho projetado algumas casas, mas só para pessoas que eu conheço. Tenho horror em projetar casas para madames, onde entra aquela conversa insípida em torno da discussão de como vai ser a piscina, as cortinas… Gostaria muito de fazer casas populares”. Existem alguns ensaios biográficos sobre a arquiteta e artista, com destaque para: Lina Bo Bardi: sutis substâncias da arquitetura (2006) e Lina Bo Bardi: obra construída/Built work (2014), ambos publicados por Olivia de Oliveira pela Editora Gustavo Gill, e o belo trabalho editorial organizado por Silvana Rubino e Marina Grinover – Lina por escrito: textos escolhidos de Lina Bo Bardi -, publicado pela Cosac Naify, em 2009.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 06 de abril de 2020

OS BRASILEIROS: GRACILIANO RAMOS

 

OS BRASILEIROS: Graciliano Ramos

Graciliano Ramos de Oliveira nasceu em Quebrangulo (AL), em 27/10/1892. Escritor, jornalista e tradutor. Aos 2 anos, a família mudou-se para Buíque (PE), onde realizou os primeiros estudos. Em 1904, muda-se para Viçosa (AL), continua os estudos e cria um jornalzinho “O Díluculo”, dedicado às crianças. Em seguida passa a redigir outro jornal “Echo Viçosense”. Depois a família mudou-se para Maceió e, em 1909, passou a colaborar no “Jornal de Alagoas” usando pseudônimos diferentes para poesia e prosa. Em 1910, mudou-se para Palmeira dos Índios (AL) e continua suas colaborações com o “Correio de Maceió” e a revista “O Malho”, do Rio de Janeiro.

Concluído o 2º grau, em 1914, mudou-se para o Rio de Janeiro, e passa a trabalhar como revisor nos jornais “Correio da Manhã”, “A Tarde” e “O Século”, enquanto mantém a colaboração com o “Jornal de Alagoas”. Em setembro de 1915, ocorreu uma epidemia de peste bubônica em Palmeira dos Índios e vitimou 3 de seus irmãos e um sobrinho. O fato fez com que voltasse àquela cidade, onde passou a viver como jornalista e comerciante junto com o pai. No mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que veio a falecer 5 anos depois, deixando-lhe 4 filhos.

Passou a ficar conhecido na cidade; entrou para a Política; foi eleito prefeito em 1927 e exerceu o cargo até abril de 1930. Realizou uma grande reforma no ensino público e soltava os presos para construírem estradas. Tendo que prestar contas ao governador Álvaro Paes, enviou um “Resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928”, que foi publicado pela Imprensa Oficial de Alagoas. O texto do relatório revela a verve do escritor ao abordar assuntos rotineiros. No ano seguinte, envia outro relatório com texto mais apurado. Os relatórios chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar seu primeiro romance, Caetés (1933), um livro que vinha escrevendo desde 1925. Em seguida, renunciou ao cargo e passou a viver em Maceió, nomeado diretor da Imprensa Oficial. Aí encontrou mais tempo para se dedicar a literatura e também para namorar e casar com Heloisa Medeiros.

O “Mestre Graça”, como era conhecido, não era de “esquentar cadeira”. Logo após o casamento, pediu demissão e voltou a morar em Palmeira dos índios. Criou uma escola na sacristia da Igreja Matriz e iniciou os primeiros capítulos do segundo romance – São Bernardo -, publicado em 1934. Quando estava para sair o terceiro romance, foi preso em março de 1936, acusado de participar da “Intentona Comunista de 1935”. A prisão durou 10 meses e foi profícua em termos literários. Ali foram gestados o livro Angústia, seu romance mais profundo; o conto Baleia, que daria origem ao romance Vidas Secas, seu livro mais conhecido e sua obra autobiográfica Memórias do Cárcere, publicado postumamente em outubro de 1953. Trata-se do mais contundente relato das violências ocorridas nas prisões da ditadura Vargas.

Nelson Pereira dos Santos, que já havia filmado Vidas Secas em 1963, fez um levantamento de nada menos que 237 personagens, com os quais ele dividiu celas no navio-prisão “Manaus”, com destino ao Rio de Janeiro; na Colônia Correcional de Ilha Grande e na Casa de Detenção. O levantamento foi utilizado para a filmagem de Memórias do Cárcere, em 1984, uma das obras primas do cineasta. São 237 nomes de presos políticos e comuns retirados do anonimato. O livro chegou a causar problemas com a cúpula do Partido Comunista, cujo relato expunha alguns procedimentos não recomendados praticados pelo “partidão” e teve a interferência da família para manter a obra tal como foi escrita pelo autor.

Solto em 1937, passou a viver no Rio de Janeiro, publicou Vidas Secas (1938) e voltou ao magistério como inspetor federal de ensino. Trabalhou também como copidesque em alguns jornais do Rio de Janeiro. Em maio a “Revista Acadêmica” dedicou-lhe uma em edição especial (ano 3, nº 27) com 13 artigos. No mesmo ano recebeu o prêmio “Literatura Infantil”, do Ministério da Educação, com o livro A terra dos meninos pelados. Em 1940, entrou em contato com o Partido Comunista, através da revista “Diretrizes”, junto com Álvaro Moreira, Joel Silveira e José Lins do Rego. Em 1942, o romance Brandão entre o mar e o amor, escrito em parceria com Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz, foi publicado pela Livraria Martins. No mesmo ano, reaparece o memorialista com o lançamento do livro Infância. Por essa época, Antônio Cândido publicou uma série de 5 artigos sobre sua obra no jornal “Diário de São Paulo”, obtendo uma resposta do autor. O material transformou-se no livro Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos.

Em 1951 foi eleito presidente da UBE-União Brasileira de Escritores e, no ano seguinte, junto com a esposa, empreende uma viagem pela Europa, que se estende até a Rússia. Tais viagens foram relatadas no livro de crônicas: Viagem, publicação póstuma da Ed. José Olympio em 1954. Em seguida viajou até Buenos Aires, onde foi submetido a um tratamento de pulmão. Foi operado, mas os médicos não ficaram otimistas com o resultado. O aniversário de 60 anos foi lembrado em sessão solene da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, onde foi representado por sua filha Clara Ramos. Em janeiro de 1953, foi hospitalizado e veio a falecer em 20 de março. Mestre Graça recebeu muitas homenagens e prêmios postumamente. Vale destacar: Prêmio da Fundação William Faulkner (EUA), tendo Vidas Secas, como livro representativo da literatura brasileira contemporânea (1962); Prêmios “Catholique International du Cinema” (Paris) e “Ciudad de Valladolid (Espanha), concedidos a Nelson Pereira dos Santos, pela adaptação do romance (1964); Personalidade Alagoana do Século XX (2000); Prêmio Nossa Gente, Nossas Letras (2003) e em 2013 foi escolhido pelo Governo Federal para O PNBE-Programa Nacional Biblioteca da Escola, com o livro Memórias do Cárcere.

Ainda em 2013, em comemoração os 120 anos de nascimento, a Editora Record publicou toda sua obra e um livro inédito: Garranchos, com mais de 80 textos produzidos entre 1910-1950. Ao mesmo tempo, a editora realizou, em São Paulo, Belo Horizonte e Recife, seminários sobre o autor. No ano seguinte, a mesma editora publicou o livro Conversas, com 45 entrevistas, enquetes, ”causos” e depoimentos do autor, permitindo uma visão de outro Graciliano Ramos, para além da imagem de um homem sisudo e avesso ao convívio social. No mesmo ano, foi o autor homenageado na FLIP-Festa Literária Internacional de Parati

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 30 de março de 2020

AS BRASILEIRAS: CATARINA PARAGUAÇU

 

AS BRASILEIRAS: Catarina Paraguaçu

Catarina Álvares Paraguaçu nasceu na Bahia, supõe-se, em 1503. Indígena Tupinambá, esposa do português Diogo Álvares Correia, o ´´Caramuru´´ e primeira mulher a constituir família, em termos de civilização cristã ocidental, no Brasil. Confome certidão de batismo, realizado em 30/7/1528, na França, seu nome verdadeiro era “Guaibimpará“, segundo registro de Frei Santa Rita Durão em seu poema Caramuru. Neste sentido, exerceu papel fundamental na integração dos povos que formaram o povo brasileiro, constituindo-se no esteio e origem da família no País.

Ao naufragar na Bahia, Caramuru adquiriu proeminência entre os Tupinambás e recebeu-a como esposa oferecida pelo seu pai, o cacique Taparica. A história de sua vida é repleta de lendas, mas conta com documentos e um testamento existente até hoje no Mosteiro de São Bento da Bahia, no qual seus bens foram doados aos monges beneditinos e seus restos mortais encontram-se na Abadia de Nossa Senhora da Graça, em Salvador. Seu marido prosperou no negócio da troca de pau-brasil por utensilios de ferro com os navegantes, expandindo a aldeia com índios de outras tribos vizinhas.

Os negócios de Caramuru progridem ao ponto de permitir uma viagem do casal para conhecer a França, no navio comandado por Jacques Cartier (futuro descobridor do Canadá). Na cidade de Rouen, a esposa do comandante, Catherine des Granches, foi sua madrinha de batismo, cujo registro na certidão recebeu o nome de Cararina do Brasil. Pouco depois adotou o nome Catarina Paraguaçu, pelo qual ficou conhecida e famosa em sua terra. A viagen permitiu-lhe não apenas o conhecinebto de outra cultura tão diferenciada da sua. Aprendeu também a lidar com os conceitos de família e negocios dos ocidentais. De volta ao Brasil, bem estabelecidos, criam filhos e ela passa a ajudar o marido nos negócios da colônia.

Em 1536 surge o português Francisco Pereira Coutinho com uma carta do rei de Portugal designando-o senhor das terras ali existentes. Conta a história (ou lenda) que o cacique Taparica comandou sua expulsão de volta a Portugal. Mais tarde, em 1548, o rei Dom João III reconhece Caramuru como autoridade naquelas plagas e pede-lhe apoio na instalação do governo-geral. Assim, Tomé de Souza vem para cá já instruido de manter boas relações com a familia Caramuru. Os filhos homens são alçados a postos de comando na organização do governo e as filhas são encaminhadas por Catarina a se casarem com os portugues recém chegados, indicados pelo governador.

A familia Caramuru passa a ter certa importância no, digamos, métier social da colônia. Uma das filhas, casada com o português Afonso Rodrigues, ficou conhecida por deununciar práticas de violência contra os índios e propor a criação de uma escola para as crianças. Chegou a escrever uma carta dirigida ao Padre Manoel da Nóbrega, pedindo que as crianças indígenas escravizadas, “sem conhecerem Deus, sem falarem a nossa língua e reduzidas a esqueletos“, fossem tratadas com dignidade.

O padre ficou comovido com o pedido e intercedeu junto a Coroa pedindo permissão para a criação de escolas para crianças indígenas. Mas a rainha Catarina de Bragança indeferiu o pedido. Desse modo, entrou para a história, junto com a mãe, como precursora na defesa dos direitos humanos. Seu nome -Madalena Caramuru- foi lembrado séculos depois (em 2001), em homenagem prestada pelos Correios num selo de R$ 0,55.

Em 1557, com o falecimento de Caramuru, Catarina herdou não apenas a fortuna, mas o poder adquirido pela família desde os primórdios da organização do governo colonial. Com sua habilidade aprendida de seu povo Tupinambá e diplomacia aprendida com os europeus, passou a gerir os negócios da família, tiornando-se figura central na já afluente sociedade baiana. Sua atuação foi relevante no finanancimento de obras sociais e na fundação da Igreja da Graça. O casamento do neto de Catarina com o filho da família Garcia D’Avila resultou na construção da Casa do Castelo Garcia D’Avila, na Praia do Forte, considerado a primeira edificação portuguesa de arquitetura residencial militar no Brasil. Lá se encontra a Capela de São Pedro dos Rates, chamada hoje de Capela de Todos os Santos.

Catarina faleceu em 1583 e deixou um legado pouco reconhecido entre os brasileiros. Segundo Jorge Caldeira, em seu livro 101 brasileiros que fizeram história (2016), o reconhecimmento do “grande empreedimentio dessa mulher Tupinambá“ pelos historiadores, deve-se a méritos apenas ocidentais, desonhecendo sua origem indígena. E conclui seu verbete com uma denúncia: “Até que os modos de ser Tupinambá fossem estudados, apagou-se da história o papel essencial das mulheres nativas na construção de uma sociedade nova.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 23 de março de 2020

OS BRASILEIROS: GREGÓRIO DE MATTOS

 

OS BRASILEIROS: Gregório de Mattos

Gregório de Mattos e Guerra nasceu em 23/12/1636, em Salvador (BA). Advogado e poeta conhecido como “Boca do Inferno”, devido ao caráter satírico e sarcástico de seus poemas. É considerado um dos maiores poetas do barroco em Portugal e no Brasil. Foi criado numa família de proprietários rurais, donos de engenhos e funcionários da administração da colônia. Seus primeiros estudos se deram no Colégio dos Jesuítas, em Salvador (1642) e complementados em Lisboa (1650).

Entrou na Universidade de Coimbra em 1652, formando-se em Direito em 1661 e no mesmo ano casou com Michaela de Andrade. 2 anos após, foi nomeado Juiz de Fora de Alcácer do Sal, ao ser atestado como “puro sangue”. No período 1665-66 foi provedor da Santa Casa de Misericórdia, em Alentejo. Em 1668, representou a Bahia na Cortes de Lisboa, seguido do cargo de Procurador da Bahia. Em 1674 foi novamente representante da Bahia nas cortes. Em 1678 faleceu sua esposa, com a qual teve um filho.. Em 1679 retornou à Salvador e foi nomeado Desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia, pelo arcebispo Gaspar Barata de Mendonça.

Em 1683, o Rei de Portugal, Dom Pedro II, nomeou-o tesoureiro-mor da Sé, logo após receber as Ordens Menores, tornando-se clérigo tonsurado. No Brasil já se sabia de sua reputação como poeta satírico e improvisador, adquirida em Portugal. No ano seguinte foi destituído dos cargos pelo novo arcebispo, frei João Madre de Deus, por não querer usar batina nem aceitar as imposições eclesiásticas. Por essa época surge o poeta satírico, cronista impiedoso dos costumes, ridicularizando as autoridades civis e religiosas. Satirizava todas as classes sociais chamando-as de “canalha infernal” e apelidando os nobres de “caramurus”. Sua poesia é corrosiva, erótica e até pornográfica, não obstante escrever, também, poemas líricos e até sagrados.

Em 1685, foi denunciado à Inquisição por seus hábitos e modos pouco cristãos. Mas a denúncia não prosperou. O que prosperou foi sua produção poética eivada de críticas e ironias contra os poderosos da colônia. Assim, as inimizades foram crescendo até atingir o governador Antonio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho. Correndo o risco de ser assassinado, seus amigos conseguem uma condenação mais leve: a deportação para Angola, em 1694. Lá manteve um relacionamento amigável com o governo local, chegando a colaborar no combate a uma conspiração militar. Como recompensa, seu exílio durou apenas um ano, recebendo o benefício de retornar ao Brasil, porém longe de seus desafetos em Salvador. A partir de 1695 passou a residir no Recife, onde veio a falecer em 26/11/1696.

Em 1831, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen publicou 39 dos seus poemas na coletânea Florilégio da Poesia Brasileira. A obra restante foi publicada por Afrânio Peixoto de 1923 a 1933, em seis volumes a cargo da Academia Brasileira de Letras, reunidos nos códices existentes na Biblioteca Nacional e na Biblioteca Varnhagem, do Ministério das Relações Exteriores, exceto a parte pornográfica que aparecerá publicada, por fim, em 1968, por James Amado. Em 1972, Caetano Veloso gravou a música “Triste Bahia”, na qual as duas primeiras estrofes são extraídas de um soneto de Gregório de Mattos:

Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante

Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante

Em 1986, foi criada em Salvador a Fundação Gregório de Mattos, instituição municipal responsável pela administração de espaços culturais soteropolitanos, como o Museu da Cidade, a Casa do Benin, o Arquivo Histórico Municipal e o Espaço Cultural da Barroquinha.. Em 1990, a escritora Ana Miranda publicou o romance Boca do Inferno, pela editora Cia. das Letras, e ganhou o Prêmio Jabuti de Revelação no mesmo ano e a inclusão do livro na lista dos 100 melhores romances em língua portuguesa do século XX. Além da obra ter sido traduzida para diversos países, foi apontada como uma boa fonte de pesquisa para estudos sobre o Barroco no Brasil. Em 2002, Ana Carolina realizou o filme “Gregório de Mattos”, uma cinebiografia tendo Waly Salomão no papel principal, que pode ser visto na íntegra clicando aqui.

Finalmente, temos em 2014 sua obra completa publicada em 5 volumes pela Editora Autêntica. Trata-se de um conjunto de poemas coletados no Códice Asensio-Cunha que circularam em Salvador nas últimas décadas do século XVII e na primeira metade do século XVIII sob o nome “Gregório de Mattos e Guerra”, então a mais importante autoridade poética local.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 16 de março de 2020

AS BRASILEIRAS: BRANCA DIAS

 

AS BRASILEIRAS: Branca Dias

Branca Dias nasceu em Viana da Foz do Lima, Portugal, em 1515. Considerada uma das heroínas do Brasil colonial, foi pioneira em diversas áreas: primeira “Senhora de Engenho”, primeira mulher a manter uma “esnoga” (sinagoga clandestina) nas américas e primeira professora de meninas no Brasil. Não obstante sua existência no Brasil encontrar-se mesclada entre lenda e história, consta no Processo nº 5736 do Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, que ela foi presa acusada de judaísmo e condenada a dois anos de prisão, em 12/9/1543.

Vivia com os 7 filhos e era casada com Diogo Fernandes, que se encontrava no Brasil cuidando da sesmaria que recebeu na Capitania de Pernambuco. Ao sair da prisão, embarcou para o Brasil encontrar-se com o marido, passando a viver numa região entre Camaragibe e Olinda. Com a morte do marido, em 1565, ela passou a comandar o engenho de açúcar, ampliando suas atividades. Criou uma escola para meninas, aconselhada por Bento Teixeira, autor da Prosopopeia; criou uma “esnoga”; reformou a “casa grande” de Camaragibe e construiu sua casa urbana na Rua dos Palhares, em Olinda, ainda hoje existentes. Certamente manteve contatos com Brites de Albuquerque, esposa de Duarte Coelho e “capitoa” de Pernambuco.

Os anos seguintes são carentes de dados precisos sobre sua vida, sendo preenchidos pelas lendas e histórias que chegaram ao século XX. Mas, fato é que passado mais de 50 anos, em fins do século XVI, na primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, a Inquisição voltou a investigar sua família. Conta-se, não sabemos se é lenda ou história, que ao saber que seria presa, de novo, e que teria seus bens confiscados, ela jogou toda sua prataria num afluente do Rio Camaragibe, hoje conhecido como Riacho da Prata. Os dados sobre esta prisão são difusos, mas consta que suas filhas e neta foram presas acusadas pela prática do judaísmo em Olinda. No processo nº 4580 (de 25/8/1595), do Tribunal do Santo Ofício, sua filha Beatriz Fernandes foi presa.

Em 31/1/1599 foi presa outra filha, Andresa, junto com a neta Brites de Souza. Ambas foram sentenciadas nos processos nº 4273 e 6321, tiveram seus bens confiscados e ficaram presas por 3 anos. Sua vida foi e tem sido tema de inspiração para romances, teatro e canções No teatro, a peça O Santo inquérito, de Dias Gomes (em 1966), recria sua história perseguida pela Inquisição, numa alegoria sobre a ditadura militar instalada no Brasil em 1964. Outra peça sobre seu martírio, apresentada no Recife foi Senhora de Engenho: entre a cruz e a torá, Na canção foi homenageada por Nana Caymmi e Fortuna Safdie com duas músicas, sucessos de público e crítica. No universo das histórias em quadrinhos, ela aparece como personagem na obra Assombrações do Recife antigo, da roteirista Roberta Cirne e na HQ A máscara da morte branca, do roteirista e filósofo Alexey Dodsworth.

Consta que deixou vasta descendência no Brasil, conforme decreto (nº 30-A) de Portugal, em 2015, que concede naturalização portuguesa aos judeus sefarditas. Em decorrência deste decreto, vários brasileiros foram reconhecidos como portugueses, após certificação da Comunidade Israelita de Lisboa de que descendiam de Branca Dias. Dentre alguns descendentes ilustres destacam-se os políticos João Felipe de Saboia Ribeiro, Ciro Gomes, o escritor Alexey Dodsworth e a cantora Marisa Monte.

Segundo o Instituto Morashá de Cultura (São Paulo) não se deve confundir esta Branca Dias com duas outras homônimas. Em princípios do século XVIII houve um personagem com este nome retratado no romance Branca Dias de Apipucos, publicado por Joana Maria de Freitas Gamboa, em 1879, e descrita como protagonista na Guerra dos Mascates, em 1710. Outra Branca Dias na Paraíba, também judia, em meados do século XIX, foi perseguida por um clérigo local e foi queimada pela Inquisição. O mesmo instituto diz que esta foi a Branca Dias retratada na peça de Dias Gomes e talvez seja a mesma que dá nome a uma sinagoga em João Pessoa. Isto só faz aumentar o caráter lendário dessa história.

Mas há um consenso quando se fala em Branca Dias como sendo aquela portuguesa que viveu em Pernambuco de 1543 a 1589, quando faleceu em Olinda, segundo o Instituto Morashá. A Wikipedia assinala a data de seu falecimento em 1558, o que não parece razoável, pois em apenas 15 anos seria impossível realizar todos seus empreendimentos na capitania de Pernambuco.

Sua biografia foi esboçada em diversos textos, incluindo um livro psicografado em 1905 e publicado por José Joaquim de Abreu, intitulado Livro de Branca Dias. Em 2002 Miguel Real, pseudônimo de Luis Martins, publicou o romance histórico Memorias de Branca Dias, baseado em vasta documentação biográfica. Este livro foi reeditado em 2009 pela Editora Quidnovi. Outro livro bastante documentado foi publicado por José Joffily, pela Editora Pé Vermelho, de Londrina (PR), em 1993, intitulado Nos tempos de Branca Dias. É impressionante, e até paradoxal, que com tantas encenações em teatro, histórias em quadrinhos e vasta documentação, os cineastas brasileiros não tenham se interessado na filmografia dessa mulher. Isto é fruto do nosso descaso com a memória e a nossa história, que mesmo em Pernambuco não consta um busto, rua ou praça com seu nome. Existe em Duque de Caxias (RJ) uma avenida Branca Dias, mas certamente ninguém sabe de quem se trata.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 09 de março de 2020

OS BRASILEIROS: CLÓVIS BEVILÁQUA

 

OS BRASILEIROS: Clóvis Beviláqua

Clóvis Beviláqua nasceu em Viçosa do Ceará, em 4/10/1859. Jurista, filósofo, escritor, crítico literário, jornalista, historiador e autor do projeto do Código Civil Brasileiro, que vigorou de 1916 a 2002. Filho do padre e político José Beviláqua e Martiniana Maria de Jesus, teve os primeiros estudos em sua cidade natal. Em seguida, estudou em Sobral e Fortaleza, onde concluiu os estudos no Liceu do Ceará.

Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro, e passa estudar no Mosteiro de São Bento. Aos 17 anos, junto com Silva Jardim e Paula Ney, fundou o jornal “Laborum Literarium”, dando início a carreia literária. Dois anos após, mudou-se para o Recife e ingressa na Faculdade de Direito, passando a integrar a famosa “Escola do Recife”, seleto grupo de filósofos e intelectuais da época, destacada na filosofia do direito. Em 1882, ao receber o diploma de advogado, foi escolhido como orador da turma. Atuou com desenvoltura entre os filósofos positivistas ao lado de Tobias Barreto, Farias Brito, Capistrano de Abreu, Silvio Romero e Rocha Lima entre outros. Em 1889 passou num concurso público para lecionar Filosofia e pouco depois assumiu a cátedra de Legislação Comparada na Faculdade de Direito do Recife.

Em 1883 publicou A filosofia positivista no Brasil, onde manifesta sua adesão ao “monismo evolucionista”, uma corrente científica do positivismo contrária a tendência mística. Assim, torna-se partidário do “evolucionismo”, inspirado mais em Spencer e Haeckel do que em Auguste Comte, que prevalecia no sul do País. Por essa época colaborou com artigos publicados na “Revista de Estudos Livres”, dirigida por Teófilo Braga, divulgador do positivismo em Portugal. Casou-se, aos 25 anos (1884), com Amélia de Freitas e passou a colaborar com diversos jornais e revistas: “Revista Contemporânea”, “Revista Brasileira”, “Vigílias Literárias”, “A Ideia Nova”, “O Pão”, publicação do movimento literário “Padaria Espiritual”, do Ceará.

Com a proclamação da República, em 1889, foi eleito deputado da Assembleia Constituinte. Mudou-se para Fortaleza e participou na elaboração da Constituição do Ceará. Foi o único mandato político que exerceu não obstante os convites para a Câmara dos Deputados e para o Senado. Foi indicado para governador do Ceará, mas declinou do convite. Segundo Hermes Lima “A política não o seduziu. Não o seduziu a advocacia. Desde moço ocupa-se de questões gerais de filosofia, de sociologia, de direito e de literatura”. Em 1894 incursionou pela ficção mesclada com filosofia e publicou o livro Frases e fantasia.

Com esta incursão, foi convidado como sócio fundador da Academia Brasileira de Letras-ABL, em 1897. Sem abandonar a literatura, atuou em diversas áreas jurídicas e politicas: promotor público, membro da Assembleia Constituinte do Ceará e do Instituto Histórico e Geográfico, secretário de Estado (Piauí). Em 1899 foi convidado pelo Ministro da Justiça, Epitácio Pessoa, para redigir o projeto do Código Civil Brasileiro. No ano seguinte, mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro e concluiu o trabalho de próprio punho em 6 meses. Mas, o Congresso Nacional precisou de mais 15 anos para análises e emendas, sendo promulgado em 1916. Na tramitação, o projeto recebeu críticas de Rui Barbosa quanto a linguagem apresentada, mas foi rebatido pelo filólogo Carneiro Ribeiro.

Ente os mais de 30 livros publicado, esta foi a obra que deixou-o imortalizado no cenário jurídico nacional. Em 1906, o Barão do Rio Branco convidou-o para dar consultoria jurídico do Ministério das Relações Exteriores, cargo exercido por 28 anos. Convidado, em 1920, para integrar o Comitê dos Juristas no Conselho da Sociedade das Nações, não pode comparecer, mas enviou um projeto de organização da Corte de Justiça Internacional. Continuou publicando na área literária e no Direito, sobretudo os Comentários ao Código Civil, em 6 volumes. Além disso, deu uma substancial contribuição ao estudo do Direito da Família, das Obrigações e das Coisas. Conta, também, com uma sólida contribuição, principalmente em livros de Direito Civil e Legislação Comparada.

O jurista adorava animais e sua casa era repleta de gato, cachorro, aves, tartaruga etc., que viviam em harmonia com uma biblioteca de mais de 20 mil livros espalhados em todos os quartos. Era um “epicentro do saber jurídico” na cidade. Sua neta conta que às vezes alguém se dirigia à sua casa para pegar algum parecer e ele pedia para aguardar porque um gato estava dormindo sobre a pilha de papéis: “Vamos esperar o gatinho acordar”. Sua vida foi modesta e se manteve em relativo conforto devido a receita provinda dos diversos pareceres que elaborava para o público em geral. Em 1930, sua mulher também escritora, candidatou-se a uma vaga na ABL, mas foi recusada pelo fato de ser mulher. O casal ficou ressentido com o fato e ele nunca mais retornou à ABL.

Em 26/7/1944, sua filha encontrou-o caído em seu escritório sobre a mesa de trabalho cheia de folhas de papel com textos manuscritos e incompletos. Faleceu em plena atividade e deixou um legado precioso ao estudo e aplicação do Direito. Seu nome e estátua passou a constar em diversos logradouros públicos, particularmente nas praças de sua cidade natal, Fortaleza e São Paulo, onde se encontra o Palácio da Justiça, no centro da cidade, contigua a Praça da Sé.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 02 de março de 2020

AS BRASILEIRAS: MARIA BADERNA

 

AS BRASILEIRAS: Maria Baderna

Marietta Baderna Giannini nasceu em 1828, na Itália. Famosa bailarina veio para o Brasil em 1849 e causou tamanho rebuliço na dança e costumes da época, fazendo com que seu sobrenome familiar entrasse no vocabulário brasileiro como sinônimo de bagunça, confusão, desordem. Já em 1889 o dicionário de Antônio Joaquim Macedo Soares registrava a palavra “Baderna” como “súcia dançante”. Depois a palavra perdeu a referência a dança e passou a designar bagunça em geral, até tornar-se um insulto, conforme registra o Dicionário Brasileiro de Insultos. Baderneiro é quem “gosta de aprontar confusão. Vem do nome próprio ‘Baderna’, pelo qual era conhecida uma bailarina que esteve no Rio de Janeiro em 1851. Essa senhora chamada Baderna, por certo, provocou alguma estrepolia envolvendo várias pessoas e tornando sua ação muito visível. O seu papel de provocadora de bagunça foi mais forte do que seu trabalho de atriz”.

Esta é a história da bailarina italiana, bem sucedida na carreira artística nos palcos da Europa, que, no Brasil foi alijada do palco e caiu no conceito da elite na mesma proporção em que crescia no gosto popular. Conquistou um séquito de admiradores chamados de “badernistas”, logo rebaixados a “baderneiros”. que delirava com sua dança e gritava “baderna!, baderna!”, junto aos aplausos, deixando as damas e cavalheiros da colônia ainda mais furiosos. É também a história de uma palavra antiga e usada apenas no Brasil, além de ensejar uma reflexão sobre a origem das palavras, dos sentidos que algumas adquirem conforme seu uso e circunstâncias.

Ainda criança manifestou inclinação para a dança e teve a sorte de ser estimulada pelo pai nessa arte. Estreou cedo nos palcos da cidade de Piacenza e pouco depois entrou para o corpo de baile do Teatro Scala de Milão. Aos 19 anos apresentou-se numa temporada de sucesso no Teatro Covent Garden, de Londres e aos 21 já era uma “prima ballerina assoluta”. Pertencia a uma família da alta burguesia da Lombardia. Seu pai -Antônio Baderna- era médico, músico amador e revolucionário do movimento republicano, que enfrentou a ocupação austríaca na Itália. Após o fracasso da revolução de 1848, ela recebeu um convite para se apresentar no Rio de Janeiro. Seu pai, com dificuldades de viver na Itália, aproveitou a oportunidade e vieram para o Brasil.

No Rio de Janeiro, a estreia no Teatro São Pedro de Alcântara se deu em 29/9/1849, com o balé “Il ballo dele fate” (O balé das fadas). foi um sucesso retumbante, tal como ocorria na Europa. O jornal “Correio Mercantil” deu-lhe matéria, chamando-a “a rainha das fadas. Mas a moça, como o pai, era rebelde não apenas na política, mas também nos costumes. Aos poucos, ela passou a gostar dos ritmos afro-brasileiros dos escravos e do povo: lundu, umbigada e cachucha, incorporando-os ao seu balé. Aqui começa a radical transformação da palavra. Segundo seu biógrafo Silverio Corvisieri: “No começo, os cariocas usavam o termo baderna para indicar coisas muito belas. Somente depois de a dança ser considerada fator de corrupção da juventude, a palavra assume os significados atuais”.

A bailarina foi se aclimatando aos costumes da sociedade carioca que se formava. Gostava de festejar, de beber, namorar e, por mais que dançasse nos salões tradicionais, apreciava bastante as manifestações culturais dos negros e do povo da rua. Foi nas ruas que conheceu a resistência dos escravos, e se apaixonou pelas danças e festejos. A sensualidade e a força dos ritmos e danças africanas rapidamente foram assimilados pela bailarina, que passou a incorporar à delicadeza do balé os passos das danças populares Ao término das apresentações, seu fã clube, os baderneiros, saiam pelas ruas batendo os pés e gritando o nome da bailarina.

O interesse pela sua história se deu em 1987, com a curiosidade do jornalista Moacyr Werneck de Casto ao consultar a palavra “Baderna” no dicionário e ver a menção sobre a bailarina. Escreveu um artigo fantasiando a vida da bailarina e “sem querer, acertei no essencial. Baderna foi mesmo ativa politicamente. Coloquei-a lutando ao lado de Bento Gonçalves e como subversiva nas ruas do Rio. Mas sua história real é mais interessante”. Em Milão, o escritor (e ex-deputado) Silverio Corvisieri também achou a história interessante e iniciou uma pesquisa de fôlego sobre a bailarina. Tal pesquisa resultou no livro Maria Baderna: a bailarina de dois mundos, publicado pela Editora Record em 2001.

O livro faz uma reconstrução histórica do Rio de Janeiro; do seu cotidiano em meados do século XIX. Relata que a bailarina era bastante conhecida do público; foi amiga do ator João Caetano e era elogiada por escritores e jornalistas, como José de Alencar e José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Traça o perfil de uma autêntica heroína que enfrentou o preconceito com sua dança “subversiva” e revolucionou os costumes da época. O autor diz que Marietta, de personalidade rebelde, vivia de maneira excessivamente liberal para o Brasil de D. Pedro II. Há registros de que, certa vez, tendo havido atrasos de pagamento da companhia de danças, ele organizou uma greve e promoveu agitações que foram identificadas como “da turma da Baderna e seus baderneiros”.

Consta que em 1851 ela se apresentou no Recife num balé misturado com o “lundu”, obtendo grande sucesso mesmo sob os protestos da elite local. Não existem muitos dados sobre sua vida familiar. Mas, sabe-se que o pai faleceu numa epidemia de febre amarela que assolou o Rio de Janeiro em 1850 e que ela constitui família, casou-se e teve 4 filhos. Em 1863 viajou para a França, onde fez sua despedida dos palcos. De volta ao Rio de Janeiro, passou a levar uma vida mais pacata até seu falecimento em 4/1/1892.

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 24 de fevereiro de 2020

OS BRASILEIROS: CHACRINHA

 

OS BRASILEIROS: Chacrinha

José Abelardo Barbosa de Medeiros nasceu em Surubim, PE, em 30/09/1917. Locutor de radio e apresentador de TV. Na infância gostava de brincar montando “teatrinhos”, habilidade que o levou a trabalhar como vitrinista da loja do pai em Caruaru. Aos 10 anos mudou-se para Campina Grande, onde o pai foi buscar negócios mais promissores. Ao completar 17 anos, foi estudar no Recife e logo entrou na Faculdade de Medicina. Dotado de certa desenvoltura, teve uma breve experiência como locutor na Rádio Clube do Recife aos 18 anos. No ano seguinte foi dar palestras sobre alcoolismo na Radio Clube de Pernambuco, ampliando seus contatos com o mundo da comunicação.

Por essa época tocava bateria no “Bando Acadêmico” junto com seus colegas de faculdade e não demonstrava interesse pela Medicina. Aos 21 anos decidiu dar uma guinada na vida e como músico e embarcou no navio Bagé rumo à Alemanha. Porém, naquele ano (1939) estourou a II Guerra Mundial, impedindo o prosseguimento da viagem. Foi obrigado a ficar no Rio de Janeiro, onde passou a viver e trabalhar como locutor. Passou por diversas Rádios, mas o carregado sotaque nordestino e a voz não combinavam com a função de locutor comercial. Na Rádio Clube de Niterói, deu-se conta que sua “praia” não era aquela e pediu à direção da emissora para fazer um programa de música carnavalesca tarde da noite. A Rádio funcionava numa chácara próxima ao Cassino de Icaraí.

O programa “O Rei Momo na Chacrinha” entrou no ar em 1942 e foi um sucesso. Ganhou fama de “doido” e o programa passou a se chamar “O Cassino da Chacrinha”. Irreverência era o que não faltava no programa, dando origem ao personagem que ficaria famoso. No programa ele simulava entrevistas com gente famosa e recriava a atmosfera de uma chácara com diversos efeitos sonoros, incluindo galos e outros bichos. Ao mesmo tempo em que comandava o programa gravou diversas músicas de carnaval, enquanto a fama se alardeava. O programa foi efetivado como “Cassino do Chacrinha”. Em 1945 passou a trabalhar na grande Rádio Nacional apresentando os programas “Noite dançante” aos sábados, e “Tarde Dançante Melhoral” aos domingos, quando não havia futebol. Mas não deu certo; seu talento encontrava-se mesmo na “chacrinha”. Assim, o programa voltou ao ar em outras rádios até chegar na Rádio Globo, em 1947.

Nos anos seguintes trabalhou em outras rádios e gravou marchinhas de carnaval até 1956, quando estreou na TV Tupi com o programa “Rancho alegre”. Mas como estava predestinado ao papel de “doido”, voltou a apresentar o “A Discoteca do Chacrinha” e a “Hora da buzina” nas TVs Rio, Excelsior, Tupi e Globo. Em 1959 já era considerado o programa mais popular da TV brasileira. Mesmo fazendo sucesso na TV não abandonou o Rádio, o que só veio acontecer em 1967 quando foi contratado pela TV Globo para apresentar dois programas: “Discoteca do Chacrinha” às quartas-feiras, e “A Hora da Buzina”, aos domingos, rebatizado em 1970 como “Buzina do Chacrinha”. Chegou também a trabalhar no cinema na década de 1960, atuando nos filmes: Três Colegas de Batina (1962), Na Onda do Iê Iê Iê (1966), A Opinião pública (1967) e Pobre Príncipe Encantado (1969). Tudo indica que o contrato com a Globo não ia tão bem quanto o sucesso, e ele voltou para a TV Tupi em 1972.

Anos depois passou a atuar na TV Bandeirantes (1978) e só voltou à TV Globo em março de 1982 para apresentar seu maior sucesso, o “Cassino do Chacrinha” nas tardes de sábado. Era uma mistura de programa de auditório, atrações musicais –lançou diversos cantores de grande sucesso- e show de calouros, dirigido pelo filho José Aurélio “Leleco” Barbosa. Apresentando-se sempre com roupas espalhafatosas, rodeado de belas “chacretes” e atirando bacalhau, abacaxis e pepinos na plateia. O programa tornou-se uma poderosa atração da TV atingindo altos índices de audiência. Era reverenciado como um gênio da comunicação pelo Diretor da Rede Globo, José Bonifácio Sobrinho, devido ao sucesso e as frases e bordões que soltava no ar: “Na televisão nada se cria, tudo se copia”; “Eu vim para confundir, não para explicar!”; “Quem não se comunica, se trumbica!” ou “Não sou psicanalista, nem analista. Sou vigarista”.

Ao fim do programa, já cansado, concluía: “Graças a Deus o programa acabou”. Não era um “palhaço” como seu traje poderia sugerir; tinha plena consciência de seu trabalho: “No meu modesto pensamento, levei para a televisão justamente o que eu tinha: a alegria. Queria dar alegria ao povo e oportunidade para quem realmente tinha valor”. Nomes como Raul Seixas, Fábio Júnior e Alcione, entre tantos outros, foram projetados em seu programa de auditório televisivo. Foi bastante importunado pela censura oficial, que não apreciava as câmeras mostrando o corpo escultural das chacretes nem suas frases de duplo sentido. No auge de sua carreira surgiu o “Tropicalismo”, e ele passou a ser adorado pelos seus protagonistas. Gilberto Gil via no apresentador um fenômeno: ”De repente, a gente pôs os olhos e os ouvidos naquele homem com aquele traje e aquela irreverência”. Involuntariamente, tornou-se um dos ícones do “Movimento Tropicalista”. Posteriormente, Gil deu-lhe o apelido de “Velho Guerreiro” em sua música “Aquele abraço”.

Em 1986 recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”, da Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro. Carnavalesco, todos os anos lançava uma marchinha, sucesso garantido no carnaval. Em 1987 foi homenageado pela Escola de Samba Império Serrano, com o enredo “Com a boca no mundo: quem não se comunica se trumbica”. Em 1988 foi descoberto um câncer no pulmão e teve que se ausentar do programa alguns sábados, quando foi substituído pelos humoristas Paulo Silvino e João Kleber. Em 2 de junho voltou a comandar o programa ainda não totalmente restabelecido. Ninguém sabia que aquela seria a última apresentação do programa. Adorava o palco e disse que gostaria de morrer em serviço.

Por pouco isto não chegou a acontecer: faleceu 28 dias depois, em 30/9/1988, aos 70 anos. Cerca de 30 mil pessoas foram dar adeus ao “Velho Guerreiro” no saguão da Câmara dos Vereadores, no Rio de Janeiro. Em 2014 foi lançada uma alentada biografia: “Chacrinha: a biografia” pela Editora Leya. Segundo um dos autores, Denilson Monteiro, seu diferencial é que ele não tinha a vaidade de achar que o público era algo irrelevante no seu programa e, por isso dava-lhe importância. “O Chacrinha sabia o que o povo gostava e, por isso, sabia agradá-lo”. Em 2018 foi homenageado, de novo, no Carnaval, pela Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, com o enredo “Vai para o trono ou não vai”. No mesmo ano foi lançado o filme “Chacrinha, o velho guerreiro”, dirigido por Waddigton Andrucha, com Stepan Nercessian no papel principal. O filme ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e foi reapresentado em janeiro de 2020, na TV Globo, no formato minissérie.

Clique na imagem abaixo para assistir ao vídeo Chacrinha – POR TODA MINHA VIDA

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 17 de fevereiro de 2020

AS BRASILEIRAS: CACILDA BECKER

 

 

AS BRASILEIRAS: Cacilda Becker

Cacilda Becker Yáconis nasceu em Pirassununga, SP, em 6/4/1921. Atriz das mais destacadas do teatro brasileiro. Filha de Edmondo Iaconis e Alzira Becker, separados quando ela tinha 9 anos. Junto com a mãe e duas irmãs, foram morar em Santos, onde concluiu os primeiros estudos, um curso de ballet e foi diplomada professora. Aí manteve contatos com o circuito boêmio e de vanguarda da cidade. Pouco depois foi viver em São Paulo, montou sua companhia e sofreu um aneurisma cerebral no palco.

Disposta a seguir a carreira de atriz, mudou-se para o Rio de Janeiro, aos 20 anos, e foi acolhida pelo grupo do “Teatro do Estudante”, dirigido por Paschoal Carlos Magno. Em seguida foi trabalhar na companhia de Raul Roulien e passa a afirmar-se como atriz com a peça Trio em lá menor, de Raimundo Magalhães Jr. ao lado de Raul e Laura Suarez. Dois anos após, regressa a São Paulo e integra-se ao Grupo Universitário de Teatro-GUT, fundado por Décio de Almeida Prado, onde participa de 3 montagens: Auto da barca do inferno, de Gil Vicente; Irmãos das almas, de Martins Pena e Pequeno serviço em casa de casal, de Mario Neme. Por essa época conheceu Zbgiev Zienbinski, um polonês fugido da II Guerra Mundial e experiente ator, disposto a revolucionar o teatro brasileiro.

Pouco depois voltou ao Rio, convidada para trabalhar no famoso grupo “Os Comediantes” na remontagem da peça Vestido de noiva, em 1946, de Nelson Rodrigues e dirigida por Zienbinski. Enquanto isso, em São Paulo, o GUT se junta ao Grupo Experimental de Teatro, dirigido por Alfredo Mesquita, em 1948, para fundar o Teatro Brasileiro de Comédia-TBC. No mesmo ano é fundada a Escola de Arte Dramática-EAD junto a USP. Pode-se dizer que este é o inicio do teatro profissional no Brasil, comandado pelo industrial italiano Franco Zampari. Cacilda e Zienbinski são contratados ao mesmo tempo em que ela passa a lecionar interpretação na EAD. Pela primeira vez atores e diretores têm um contrato profissional.

A partir daí o teatro brasileiro teve extraordinário desenvolvimento, com o TBC realizando 4 a 5 montagens anuais. Cacilda atuou em boa parte das peças até 1955, quando os diretores italianos regressaram à Europa e o TBC começou a entrar em declínio. Por essa época, os atores mais famosos passaram a fundar suas próprias companhias teatrais. Cacilda e Walmor Chagas, já casados, alugaram o teatro da Federação Paulista de Futebol e inauguraram o Teatro Cacilda Becker, em 1958, contando com a participação de Zienbinski, sua irmã Cleide Yáconis e o cenógrafo Fredi Kleemann. A primeira peça encenada foi O santo e a porca, de Ariano Suassuna. Aí o casal atuou em diversas peças, incluindo Quem tem medo de Viginia Woolf?, em 1965, uma das melhores interpretações de Cacilda.

Durante os “anos de chumbo” da ditadura militar, em1968, suspendeu as atividades da Companhia e foi presidir o Conselho Estadual de Teatro, um cargo não remunerado, cuja função era mediar a difícil relação dos artistas com o governo militar, ou seja, encarar a censura e a repressão policial, como na invasão do Teatro Ruth Escobar, enquanto era encenava a peça Roda Viva, de Chico Buarque. No mesmo ano, no lançamento do espetáculo Primeira Feira Paulista de Opinião, que sofreu 71 cortes da censura, com os censores e agentes federais presentes, ela surge no proscênio e se responsabiliza pela apresentação do texto na íntegra, num ato de rebeldia e desobediência civil.

No ano seguinte foi convidada pelo diretor Flavio Rangel para interpretar o vagabundo “Estragon”, na peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. Atuou ao lado do marido Walmor e do filho Luís Carlos Martins, em sua estreia. A peça era citada como importante fato cultural daquele ano. No intervalo da apresentação de 6/5/1969, em seu teatro, sofreu um aneurisma cerebral e não voltou ao palco. Foi levada para o Hospital São Luís ainda vestida como seu personagem. Ficou 38 dias em coma, e veio a falecer em 14/6/1969. O velório causou uma comoção no meio artístico em todo o País e contou com a presença de diversas autoridades. O Governador Abreu Sodré esteve presente e soltou uma nota: “Perco uma grande amiga. Os artistas perdem uma grande líder e o povo brasileiro uma grande interprete. Extingue-se um grande talento. Fica um grande exemplo”. E determinou que seu nome fosse dado ao teatro-auditório da TV Cultura.

Ao longo da carreira, encenou 68 peças, 3 filmes e uma telenovela, em 1966, na TV Tupi. E como é o costume de se reconhecer os grandes talentos somente após a morte, seu nome vem sendo lembrado com certa frequência. Em 1988, a Prefeitura de São Paulo inaugurou o Teatro Cacilda Becker, na Lapa. Em 1994, quando se deu o 25º ano de sua morte, a Cia. de Teatro Uzina Uzona, celebrou a vida da atriz encenando a peça Cacilda!!!, de José Celso Martinez Corrêa. Esta celebração foi ampliada e reapresentada mais duas vezes no Teatro Oficina em 2009 e 2013. Foi também retratada como personagem no cinema (Brasília 18%, 2006) e na TV com a minissérie Um só coração (2004). Agora há pouco, em 14/6/2019, no cinquentenário de sua morte, a família Yáconis abriu as portas de sua casa, no Itaim Bibi, ao público e conta com um projeto para torná-la um espaço cultual dedicado à sua memória, pesquisa e estudo.

Os interessados em conhecer melhor a “grande dama do teatro” brasileiro, podem acessar dois bons ensaios biográficos: Uma atriz – Cacilda Becker, de Nanci Fernandes, publicada pela Editora Perspectiva, em 1984, onde se apresenta uma “Cacilda por ela mesma”, com depoimentos seus, de seus colegas e seu legado. Seu amigo e conceituado crítico teatral Décio de Almeida Prado, também deixou suas impressões no capitulo Cacilda: paixão e morte, inserido no livro Peças, pessoas e personagens, publicado pela Cia. das Letras, em 1993.

 


José Domingos Brito - Memorial domingo, 09 de fevereiro de 2020

OS BRASILEIROS: JUSCELINO KUBITSCHEK

 

OS BRASILEIROS: Juscelino Kubitschek

Juscelino Kubitschek de Oliveira nasceu em Diamantina, MG, em 12/9/1902. Médico, militar, politíco, governou o País (1956-60) e fundou Brasília, quando o Brasil vivia uma onda de entusiasmo com seu futuro: o surgimento da “bossa nova”, do “cinema novo” e de um novo tempo. Os anos de seu governo são lembrados como “Os Anos Dourados”. Prometeu transformar o mandato de 5 anos em 50 de desenvolvimento e cumpriu em boa parte. É considerado um dos mais admiráveis presidentes do Brasil.

De origem humilde, estudou no Seminário de sua cidade e mudou-se para Belo Horizonte em 1920. Trabalhou como telegrafista dos Correios e. formou-se médico pela UFMG, em 1927. Foi estudar em Paris e especializou-se em urologia em 1930. No ano seguinte casou-se com Sara Lemos e ingressou na Força Pública, como capitão-médico. Participou da Revolução Constitucionalista de 1932, quando fez amizade com Benedito Valadares, governador de Minas Gerais, de quem foi chefe de gabinete em 1933, sem desativar o consultório. Disse que entrou na política por uma “imposição” de seu amigo Valadares. Mas, deu-se o envolvimento politico e desistiu de seguir a carreira acadêmica. Eleito deputado federal em 1934, passou a morar no Rio de Janeiro sem esquecer sua base eleitoral. Como secretário do Partido Progressista, organizou o partido no interior de Minas. Em 1937 foi dado o autogolpe de Vargas, inicio do Estado Novo, que deixou-o desiludido com a política, mas foi convencido, de novo, por Valadares a assumir a prefeitura de Belo Horizonte, em 1940, e aceitou o cargo sem apoiar o regime ditatorial. Cauteloso, não abandonou a medicina e chegou ao posto de tenente-coronel da Polícia Militar.

A cidade contava muitos poblenas e poucos recursos. Mesmo assim, costruiu avenidas e pontes, canalizou córregos, integrou o centro ao suburbio, criou a rede subterrânea de luz e telefone e o Conjunto Arquitetônico de Pampulha, projetado por Oscat Niemayer. Ficou conhecido como o “prefeito furacão”. Manteve-se na prefeitura até 1945; deixou a medicina; engajou-se criação do PSD-Partido Social Democrático e foi eleito deputado federal. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1946. Nas viagens que fez pelo norte do País, ficou encantado com as belezas do local e triste com precariedade do seu povo, “com o drama daquelas populações deserdadas, perdidas nos desvãos de um território imenso e quase sem um vínculo afetivo com a capital da República”. Em 1948, viajou para os EUA e conheceu várias idades. Tais viagens exerceram grande influência em sua visão política. Ficou convencido de que o Brasil só alcançaria o desenvolvimento através de uma industrialiação intensa e diversificada.

Em 1950 foi eleito governador de Minas, pelo PSD-Partido Social Democrático. Criou a CEMIG-Companhia Energética de Minas Gerais e 5 usinas hidreléticas, estimulando a industrialização. Em 1954 trouxe a Manesmann, siderúrgica alemá, e tirou o estado da condição agropastoril. Foram construídos mais de 3 mil km. de estradas; 251 pontes; 160 centros de saúde e quase dobrou o nº de alunos na escola primária. No mesmo ano lançou canditatura à presidência, tendo João Goulart como vice, numa aliança com 6 partidos. Antes de tomar posse, viajou por diversos países para apresentar seus planos, obter apoio e investimentos. Nos EUA não conseguiu muita coisa, devido a desconfiança com os boatos sobre o apoio que recebeu dos comunistas. A oposição tentou anular a eleição, mas o General Lott garantiu a posse em janeiro de 1956. Seu “Plano de Metas”, assessorado por Celso Furtado, tinha o objetivo de alcançar “50 anos de desenvolvimento em 5 de mandato”. Era composto de 31 metas, distribuidas em 5 grupos: (1) enegia, (2) transportes, (3) alimentação, (4) indústria de base, (5) educação e a meta principal: a construção de Brasília.

Mais de 2 bilhões de dólares foram destinados às metas; insentou de impostos a importação de máquinas e equipamentos; liberou a entrada de capitais externos em investimentos de risco, associados ao capital nacional e propiciou uma generosa política de crédito ao consumidor, visando ampliar o mercado interno. Afim de melhorar a condição do Nordeste, criou a SUDENE, em 1959, sob a direção de Celso Furtado. Implantou a indústria automobilística, com a vinda da Vokswagem, Ford, Mercedes Benz, General Motors; incrementou a indústria naval e siderúrgica; construiu hidrelétricas, como Furnas e Três Marias; criou rodovias: Belém-Brasília, Régis Bittencourt e Fernão Dias; amumentou a produção da Petrobrás etc. A crítica que se fez ao seu governo, é que para propiciar tanto desenvolvimento, o Brasil aumentou a dívida externa de U$ 87 milhões em 1955, para U$ 297 milhões em 1959. Com a constução de Brasília, a inflação passou de 19,2% em 1956, para 30,9% em 1960 e chegou a 81% em 1963. Conhecido como “pé de valsa”, enquanto construia a caoital, levou diversos artistas e cantores para animar o ambiente. Telefonou pessoalmente, convidando Inezita Barroso, mas quando ela ouviu o nome de quem estava falando, retrucou: “e aqui é a Rainha da Inglaterra” e bateu o telefone achando que era trote. Ele teve que ligar de novo.

Brasília era um antigo projeto para promover o desenvolvimento e a integração do País. Para justificar o feito, deixou dois livros publicados pela Bloch Editora: Meu caminho para Brasília (1974) e Por que construi Basília? (1975). Passou a faixa presidencial a Jânio Quadros em 1961 e no ano seguinte elegeu-se senador por Goiás. Tinha pretensões de voltar à presidência em 1965. Sua candidatura foi lançada em 20/3/1964, com o slogan ”JK-65 A vez da agricultura” Mas, 11 dias depois veio o Golpe Militar de 1964. Foi cassado e teve os direitos políticos suspensos. A partir daí entrou num exílio voluntário e passou a percorrer cidades dos EUA e Europa. Em 1967 voltou ao Brasil e uniu-se a Carlos Lacerda e João Goulart numa “Frente Ampla”, em oposição à ditadura militar. A intenção era retornar à política após os 10 anos de cassação de seus direitos. Porém, foi dissuadido pelos militares, que ameaçavam prosseguir nas investigações de corrupção e aliança com os comunistas. A intenção era desmoralizá-lo politicamente

Com o recrudescimento da ditadura, em 1968, veio o AI-5 e o sonho acabou. Foi preso, respondeu aos IPMs-Inquéritos Policiais Militares e ficou proibido de entrar em Brasília. Em 1975 tentou uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas uma articulação dos militares impediu sua eleição. Faleceu num acidente de carro na Via Dutra em 22/8/1976. O funeral em Brasília se deu ao som da música “Peixe vivo”, cantada por mais de 300 mil pessoas, que não deixaram o caixão ser levado pelo carro do Corpo de Bombeiros. Tomaram-o nas mãos e levaram até o cemitério.

Sua vida e carreira política foram retratadas no cinema, TV e livros. Silvio Tender realizou dois documentários: Os anos JK: uma trajetória política (1980) e JK: o menino que sonhou um país (2002). Em 2006 foi apresentada na TV Globo a minissérie JK. Em 2009 foi realizada a filmografia Bela noite para voar, dirigida por Zelito Viana. No centenário de seu nascimento foi montada a peça JK 1902-2002, apresentada no Museu da Repúbica. Dentre as biografias, destaque para JK, o artista do impossível (2001), de Claudio Bojunga; JK, o presidente bossa nova (2005), de Marlene Cohen; A saga de um herói (2006), de Francisco Viana; Juscelino Kubitschek (2011), de Ronaldo Costa Couto. Em 1981 foi inaugurado o Memorial JK, em Brasília, onde se encontra seu túmulo, constituindo-se num dos pontos turísticos mais visitados da cidade.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 03 de fevereiro de 2020

AS BRASILEIRAS: TARSILA DO AMARAL

 

 

AS BRASILEIRAS: Tarsila do Amaral

Tarsila do Amaral nasceu em 1/9/1886, em Capivari, SP. Pintora e protagonista do Movimento Modernista no Brasil, é reconhecida entre as grandes artistas do mundo. Filha de uma rica família de fazendeiros do 2º Império. sua mãe tocava piano e contava histórias dos romances que lia para as crianças e seu pai recitava versos em francês. Legítima representante da oligarquia, que passou por uma transformação radical na vida com a Semana de Arte Moderna, em 1922.

Os primeiros estudos se deram nos tradicionais colégios de São Paulo e foram concluídos no Colégio Sacre-Coeur, em Barcelona. Casou-se, aos 20 anos com o médico André Teixeira Pinto, mas o casamento acabou no ano seguinte com o nascimento da única filha Dulce. Voltou a morar com os pais até 1917, quando mudou-se para a capital e passou a estudar pintura com Pedro Alexandrino Borges, conceituado pintor. Em 1920 foi viver em Paris, com a filha, e frequentou a Academia Julien e estuduu na Academia de Emile Renard. Manteve contato com a vanguarda artística europeia e aderiu ao modernismo com a volta ao Brasil, em 1922. Foi apresentada por Anita Malfatti a Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Pichia, que passaram a frequentar seu ateliê. Em seguida formaram o “Grupo dos Cinco”, que organizou a Semana de Arte Moderan, em 11-18 de fevereiro de 1922. No fim do ano, junto com Oswald de Andrade, embarcou para a Europa; coloca a filha num colégio interno e o casal passa a viajar pela Europa em lua de mel, estudos e contatos com artistas.

Passaram uma temporada em Paris e conheceu Constantin Brancuse, Blaise Cendrars, Erik Satie e Jean Cocteau entre outros. Aí frequentou diversas academias de pintura, mantendo contato com Picasso e amizade com Fernand Léger, o mestre do cubismo, que influenciou seu estilo. Já à vontade como artista e ciente do que “quer ser quando crescer”, escreve para os pais: “Sinto-me cada vez mais brasileira. Quero ser a pintora da minha terra. Como agradeço ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando cada vez mais preciosas para mim. Quero ser, na arte, a caipirinha de São Paulo”. Em 1923 surge a primeira expressão de sua arte, no quando “A Negra”. O crítico Segio Milliet vê alí o prenúncio do movimento antropofágico, que surgiria 5 anos depois. O quadro impacta os artistas e intelectuais de Paris, com sua originadade e exuberância.

Em 1924, de volta à São Paulo, o casal fez uma viagem de “redescoberta do Brasil” junto com alguns modernistas e o poeta Blaise Cendrars. Era o que faltava para iniciar sua fase artística “Pau-Brasil”. São cores e temas tropicais; os bichos nacionais; a exuberância da fauna e da flora brasileira e simbolos da modernidade urbana (máquinas, trilhos etc.). Dois anos após, legalizou o casamento com Oswald e no mesmo ano realizou sua primeira exposição individual em Paris, na Galeria Percier. Em 1928, enquanto Oswald elaborava o “Manifesto Antropfágico”, ela pintou o “Abaporu”, quadro (de 85x73cm.) que tornou-se o símbolo do “Movimento Antropofágico” e hoje é sua obra mais conhecida e o quadro mais valioso da arte brasileira. O quadro foi um presente de aniversário ao marido, que, entusiasmado, viu ali um índio canibal. Ela, animada com a visão, procurou um dicionário de tupi-guarani e encontrou as palavras “aba” e “poru”, i.é, “homem que come carne humana”. Assim, foi batizado o quadro, que se tornou símbolo do Movimento Antropofágico, que “propunha a digestão de influências estrangeiras para que a arte nacional ganhasse uma feição mais brasileira”.

Em 1929, teve sua primeria exposição no Brasil, Rio de Janeiro. Não foi um ano favorável para as artes ou para qualquer coisa. A crise mundial 1929 abalou a economia e sua família perdeu a fazenda. Para piorar, no ano seguinte Oswald decide separar-se para casar com Patricia Galvão, a conhecida Pagu. Tais perdas deixaram-na bastante abalada, fazendo com que se entregasse ainda mais ao trabalho artístico. Em 1930 assumiu o cargo de conservadora da Pinacoteca de São Paulo, e deu inicio à organização da coleção do primeiro museu de arte paulista. Mas, não pode dar continuidiade, devido a queda de Julio Pretes e o advento da ditadura Vargas. Em 1931 vendeu alguns quadros e viajou pela União Soviética com o novo marido, o psiquiatra Osório César. Na volta, passou nova temporada em Paris e decidiu “assumir a causa social”, digamos assim para não complicar. Sem dinhiero, trabalhou como pintora de portas e paredes e conseguiu dinheiro para retornar ao Brasil.

Aqui, envolta com a causa social e ligada aos intelectuis de esquerda, foi presa, acusada de subversão. Em 1933, inicia uma fase de temática social, demonstrada nos quadros “Operários” e “Segunda Classe”. Inicia, também, novo relacionamento com o escritor Luis Martins, com quem se casou após serparar-se de Osório. A partir dos anos 1940, passou a consolidar seu estilo com base em fases anteriores. Participou das 1ª e 2ª Bienais de São Paulo e ganhou uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1960. Em seguida, foi tema de uma sala especial na Bienal de São Paulo de 1963 e no ano seguinte, apresentou-se na 32ª Bienal de Veneza. Sua apreciação pelos críticos sempre foi superlativa. Para Joaquim Inojosa “se a música da nossa raça -índole e costumes- deve sua divulgação lá fora a Villa-Lobos, a pintura renderá esta homenagem a Tarsila do Amaral”. Mário da Silva Brito, achava “Tarsila, um capítulo da história da pintura brasileira. Um monumento criativo do modernismo. Uma vida dentro da arte”.

Em 1966, já separada de Luis Martins, passou a sentir dores na coluna, submeteu-se a uma cirurgia e, devido a erro médico, ficou paralítica, tendo que se virar como cadeirante. Pouco depois, ficou desesperada com a morte da única filha e passou a se interessar pelo espiritismo. Com o dinheiro obtido com a venda dos quadros, ajudou a instituição mantida por Chico Xavier, de quem tornou-se amiga; trocaram correspondência e visitas. Faleceu em 17/1/1973, aos 84 anos, e foi sepultada no Cemitério da Consolação.

Duas alentadas biografias contam sua trajetória. Uma foi realizada por sua prima Aracy Amaral – Tarsila: sua obra e seu tempo -, resultado da pesquisa de tese de doutorado, publicada em 1975. Outra foi escrita por Nádia Battela Gotlib –Tarsila do Amaral, a modernista -, lançada em 2003 pela Editora SENAC , um livro de arte. Ambos contam com várias reedições. Sua memória ficou foi preservada, também, na peça teatral Tarsila, escrita por Adelaide Amaral, encenada em 2003 e publicada em livro em 2004. Foi homenageada, em 2008, pela União Astronômica Internacional com seu nome dado a uma cratera do planeta Mercúrio. No mesmo ano, foi lançado o Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral, contemplando toda sua obra em 3 volumes, realizado pela Base 7 Projetos Culturais e publicado numa parceria entre a Petrobrás e a Pinacoteca do Estado do Estado de São Paulo. Toda sua obra pode ser vista, também, em seu site oficial (clique aqui para acessar)

Agora, em 2022, com o centenário da Semana de Arte Moderna, São Paulo é devedor de um tributo especial a sua grande artista. Imagino que os “responsáves” pela Cultura estão atentos, pensando e, talvez, já fazendo o que deve ser feito no Centenário do Movimento Modernista, planejado e realizado pelo “Grupo dos Cinco”(Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Pichia), onde 40% eram mulheres: Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. Sua indusão agora no Memorial marca o início das devidas comemorações que certamente virâo.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 27 de janeiro de 2020

OS BRASILEIROS: BURLE MARX

 

 

OS BRASILEIROS: Burle Marx

Roberto Burle Marx nasceu em São Paulo, em 4/8/1909. Artista plástico, pintor, designer, arquiteto, tapeceiro, e um dos paisagistas mais renomados do mundo. Filho da recifense Cecília Burle e de Wilhelm Marx, judeu alemão, parente de Karl Marx. Aos 4 anos, a família se mudou para o Rio de Janeiro e logo que os negócios (exportação e importação de couros) do pai prosperaram, foram morar num casarão do Leme, onde ele, aos 8 anos, começou a cultivar mudas de plantas e iniciar sua própria coleção.

Em 1928, teve um problema nos olhos e a família foi procurar tratamento na Alemanha, onde permaneceram até 1929. Lá entrou em contato com as vanguardas artísticas e conheceu o Jardim Botânico de Dahlen. Lá encontrou a vegetação brasileira numa estufa e ficou encantado com a beleza das plantas tropicais. Gostou, também, da pintura, com as visitas que fez às exposições de Pablo Picasso, Henri Matisse, Paul Klee e Van Gogh e passou a estudar pintura no ateliê de Degner Klem. De volta ao Brasil, seu amigo e vizinho Lucio Costa incentivou-o a entrar na Escola Nacional de Belas Artes. Aí fez amizade com alguns nomes que se destacariam na moderna arquitetura brasileira: Oscar Niemayer, Hélio Uchoa, Milton Ribeiro etc. Seu primeiro projeto paisagístico se deu em 1932, a pedido de Lúcio Costa, para o jardim da família Schwartz. O primeiro projeto público se deu em 1934, no Recife, projetando 5 praças, todas tombadas pelo IPHAN. Foi designado Diretor de Parques e Jardins do famoso DAU-Departamento de Arquitetura e Urbanismo, da Prefeitura do Recife e trabalhou com Joaquim Cardoso, que viria a ser calculista de Oscar Niemayer.

Neste cargo projetou diversos logradouros, fazendo uso intensivo da vegetação nativa. Em 1935, projetou a Praça Euclides da Cunha, que ficou conhecida como “Cactário Madalena”, devido a ornamentação com plantas da caatinga e do sertão. A partir daí passou a imprimir um caráter de brasilidade ao seu trabalho, livrando-se da influência europeia, com predomínio das azaleias, camélias, magnólias e nogueiras. Para isso contava com o apoio de Luiz Nunes, Diretor do DAU e Atilio Correa Lima, gestor do Plano Urbanístico da cidade, e de simpatizantes como Gilberto Freyre, Cícero Dias e Joaquim Cardoso. O projeto do primeiro Parque Ecológico do Recife ficou a seu cargo. Até hoje é celebrada anualmente no Recife a “Semana Burle Marx”, em agosto. Em 1937 retornou ao Rio de Janeiro e foi convidado para projetar os jardins do Edifício Gustavo Capanema (na época Ministério da Educação e da Saúde). Idealizou um terraço-jardim que é considerado um marco de ruptura no paisagismo brasileiro. Com vegetação nativa e formas sinuosas, o jardim apresentava uma configuração inédita no país e no mundo.

Por essa época tomou aulas de pintura com Cândido Portinari, de quem se tornaria assistente, e Mario de Andrade, no Instituo de Arte da Universidade do Distrito Federal. No final da década de 1930 sua obra paisagística já estava perfeitamente integrada à arquitetura moderna, uma tendência mundial. Assim, passou a integrar o grupo de arquitetos adeptos da escola alemã Bauhaus, influenciados pela corrente francesa liderada por Le Corbusier. Trata-se de um estilo humanista e integrador de todas as artes. Em 1949 adquiriu o Sitio Santo Antônio da Bica, em Campo Grande (RJ), com 365.000 m², e passou a viajar pelo Brasil, junto com botânicos, em busca de plantas tropicais. O objetivo foi coletar e catalogar exemplares para reproduzir, no sitio, a diversidade fitogeográfica brasileira.

Seu papel na definição da Arquitetura Moderna Brasileira foi fundamental, tendo atuado nas equipes responsáveis por diversos projetos célebres. A partir daí, passou a trabalhar com uma linguagem bastante orgânica e evolutiva, identificando-a com vanguardas artísticas como a arte abstrata, o concretismo, o construtivismo. Como é, também, pintor, as plantas baixas de seus projetos lembram em muitas vezes telas abstratas, nas quais os espaços criados privilegiam a formação de recantos e caminhos através dos elementos de vegetação nativa. Daí em diante sua parceria em trabalhos com Oscar Niemayer e Lúcio Costa toma impulso. Como arquiteto, inclui em seus parques e jardins elementos arquitetônicos como colunas e arcadas, encontrados em demolições; utiliza ainda mosaicos e painéis de azulejos, recuperando a tradição portuguesa.

A partir da década de 1950, passou a utilizar em seus trabalhos uma ordenação mais geometrizante, como ocorreu na Praça da Independência (João Pessoa), no Parque do Flamengo (RJ) ou Parque Ibirapuera (SP). Em 61 anos de carreira, assinou mais de dois mil projetos em todo o mundo e recebeu inúmeras honrarias. Mas a homenagem que mais apreciou foi ver seu nome designando uma espécie de planta tropical: a Calathea Burle Marxii”, conhecida popularmente como “Calatea Burle Marx” ou “Maranta de Burle Marx”. Foi contratado para projetar parques públicos em diversas cidades: Parque Generalíssimo Francisco de Miranda (Caracas, 1950); Jardins da Cidade Universitária da Universidade do Brasil (Rio de Janeiro, 1953); Jardim do Aeroporto da Pampulha (Belo Horizonte, 1953); Balneário Municipal de Águas de Lindóia (SP, 1954); Paisagismo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1955); Paisagismo da Praça da Cidadania da Universidade Federal de Santa Catarina (1960); Paisagismo para o Eixo Monumental de Brasília (1961); Paisagismo do Aterro do Flamengo (1968); Paisagismo da Embaixada do Brasil em Washington, USA, 1970); Paisagismo do Palácio Karnak (Teresina, 1970); Paisagismo do aterro da Bahia Sul em Florianópolis (1971) etc.

Tais atividades não o afastaram da pintura, e desde a década de 1930 participou de 74 exposições individuais, 71 coletivas e 22 póstumas. Seu traço revela influências de Pablo Picasso e dos muralistas mexicanos. Nos retratos, aproxima-se de Candido Portinari e Di Cavalcanti. Segundo os críticos de arte, a partir de década de 1950 “a tendência para a abstração consolida-se e a paleta muda, passando a incluir muitas nuances de azul, verde e amarelo mais vivos. Em suas telas o trabalho com a cor está associado ao desenho, que se sobrepõe e estrutura a composição. Nos anos 1980, passou a realizar composições geométricas em acrílico, os contornos são desenhados com a cor, as telas adquirem um aspecto fluído, flexível e ganham leveza. Dedicou-se mais à pintura com a mudança para o sítio Santo Antônio da Bica (RJ), em 1972 e passou a cultivar 3.500 espécies de plantas de todo o mundo, criando um verdadeiro “Éden Tropical”.

Em 1985, o sítio Santo Antônio da Bica foi doado ao governo federal, passando a chamar-se Sitio Burle Marx, mantido pelo IPHAN e aberto a visitação pública. Trata-se de num valioso patrimônio paisagístico, arquitetônico e botânico, além de uma escola para jardineiros e botânicos. Além disso, é mantido em São Paulo, desde 1994, o Parque Burle Marx, no bairro do Morumbi, com 168.000 m² e administrado pela Fundação Aron Birmann em parceria com a Prefeitura da cidade. Em 1982, recebeu o título Doutor honoris causa da Academia Real de Belas Artes de Haia, e do Royal College of Art, em Londres. Sua obra pode ser contemplada nos diversos livros publicados sobre suas contribuições ao paisagismo e nos livros de sua autoria: Arte e paisagem: conferências escolhidas. São Paulo: Nobel, 1987 e Arte e paisagem: a estética de Burle Marx. São Paulo: MAC/USP, 1997. Alguns livros sobre sua vida e obra: I Giardini tropical di Burle Marx (1964), de Pietro Maria Bardi; Roberto Burle Marx: Il giardino del novecento (1992), de G. Giulio Rizzo; Nos jardins de Burle Marx (1994), de Jacques Leehardt; Arte e paisagem: Roberto Burle Marx (2004), de José Tabacow Faleceu em 4/6/1994.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 20 de janeiro de 2020

AS BRASILEIRAS: CHICA DA SILVA

 

 

AS BRASILEIRAS: Chica da Silva

Francisca da Silva de Oliveira nasceu em 1732, no Arraial do Tijuco, atual Diamantina, MG. Escrava alforriada transformada em mito devido ao fato de pertencer a nobreza colonial em pleno regime escravista. Sua história ganhou notoriedade 72 anos após sua morte, através do livro “Memórias do Distrito Diamantino”, publicado em 1868, por Joaquim Felício dos Santos. Filha de Antônio Caetano de Sá, português e capitão das ordenanças e Maria da Costa, africana da Costa da Mina (Benim) e escrava.

Aos 22 anos foi comprada pelo contador de diamantes João Fernandes de Oliveira, com quem viveu 15 anos e teve 13 filhos. Todos receberam sobrenome do pai e foram educados nos padrões da elite da época, fato incomum naquela época. Entre 1755 e 1770 a família viveu num belo casarão situado no que hoje é a praça Lobo de Mesquita, nº 6, em Diamantina. Em 1770 ele retornou à Portugal e levou os 4 filhos, que lá tiveram educação superior e tornaram-se nobres da corte portuguesa. Ela ficou junto com as filhas e a posse das propriedades. Assim, a família conseguiu manter um elevado padrão de vida com distinção social e respeito na sociedade escravocrata do século XVIII. Integrou-se às Irmandades de São Francisco e do Carmo, exclusiva de brancos, mas também às irmandades das Mercês, composta por mulatos, e do Rosário, reservada aos negros. Sua riqueza permitiu que parte da riqueza fosse doada às quatro irmandades religiosas.

Como se vê, era uma mulher experiente e sábia na administração dos bens, dividindo-os de forma a contemplar todas as classes. Mantinha a posse de mais de 100 escravos negros e mulatos e vivia basicamente da exploração dessa mão-de-obra, alugada e empregada nas minas, agricultura e pecuária. Não existe evidência documental de que ela tenha concedido alforria a seus escravos, exceto a algumas escravas domésticas com quem convivia. A união consensual entre um branco e uma negra era comum na época. O caso Chica da Silva distinguiu-se por ter sido público, intenso e duradouro, além de envolver um dos ricaços da região. Suas filhas foram educadas semelhante às moças da aristocracia local: enviadas para o Recolhimento de Macaúbas, onde as filhas da elite mineira eram recolhidas. Algumas seguiram a vida monástica e outras só saíram em idade de se casar. Os filhos, já adultos, retornaram ao Brasil e um deles – José Agostinho – recebeu a patente de capitão de milícias no Tijuco; outro – Simão Pires Sardinha – participou do movimento que eclodiu na Inconfidência Mineira e tornou-se nobre, amigo do príncipe regente D. João VI.

Falecida em 15/2/1796, tinha o direito de ser sepultada em qualquer uma das quatro irmandades a que pertencia. Foi escolhida a de São Francisco de Assis, a mais importante. O fato em si revela que ela se manteve na mais alta condição social, mesmo vários anos após a partida do marido para Portugal. Sua história ficou relegada ao esquecimento durante muito tempo até o surgimento do livro de Joaquim Felício dos Santos (1872) e quase tudo que se sabe a respeito de sua vida é baseado neste livro. Desse modo, sua história distancia-se bastante da realidade, caindo na ficção e transformando-a num mito, conforme as intenções de cada escritor. E são muitas as publicações que ensaiaram textos biográficos e históricos sobre o mito Chica da Silva.

A historiadora Júnia Ferreira Furtado, que escreveu sua biografia em 2009, (Chica da Silva e o contratador de diamantes: O outro lado do mito. Editora Companhia das Letras) fez críticas contundentes a esses trabalhos. Segundo ela, a história foi contada sem a devida preocupação com a construção da realidade, distanciando-se da real trajetória de vida e caindo na ficção. Em consequência, o que o grande público conhece dela é um mito no qual realidade e fantasia se misturam. Critica principalmente a telenovela Xica da Silva, exibida pela extinta TV Manchete entre setembro de 1996 e agosto de 1997, responsável pela massificação do mito, asseverando que “os limites do erótico e do mau gosto foram ultrapassados, sem nenhum compromisso com a realidade do século XVIII, que tem sido revelada na sua multiplicidade e complexidade pela pesquisa histórica”. Antes disso, em 1976, Cacá Diegues, havia dirigido um filme com o mesmo título da novela e protagonizado por Zezé Motta, onde o aspecto erótico também foi privilegiado, não obstante o cineasta ter afirmado que “construí meu filme como uma fábula política”.

Cecília Meirelles fez uma premonição em seu Romanceiro da Independência (1953): “Ainda vai chegar o dia de nos virem perguntar: quem foi Chica da Silva que viveu neste lugar?”. Este dia chegou em meados de 2015, quando houve a intenção de se contar sua verdadeira história através de um documentário de longa metragem, produzido por Rosi Young, Tathiana Mourão e Jonas Klabin, com direção de Zezé Motta, intitulado “A Rainha das Américas”. O projeto cinematográfico, de grande envergadura, contou com a exumação de seus restos mortais realizada em 23/11/2015 para saber suas verdadeiras características físicas. O projeto conta também com a reconstrução do seu rosto em 3D, a construção de uma escultura em Diamantina e a criação de um holograma em tamanho real. Esta imagem seria projetada durante o desfile de uma escola de samba em 2018.

Seria se o projeto fosse concluído a tempo. Mas ainda não foi devido a problemas ocorridos na exumação de sua ossada. Tais problemas chegaram a causar um incidente diplomático entre o Brasil e EUA. A exumação envolveu a contratação de dois especialistas norte-americanos, da Arizona State University, responsáveis pela reconstituição do crânio de Chica. A ossada foi levada para os EUA e o trabalho demorava bastante para ser realizado, mesmo sendo cobrado pela produtora Rosi Young. Em seguida ela viu no site na Universidade um vídeo com a manchete: “Professores descobrem escrava brasileira”. Os professores contratados agiram como se eles fossem os autores da pesquisa original. O caso foi noticiado aqui como “o sequestro de Chica da Silva”.

O fato é que o “imbróglio” levou mais de um ano na resolução do problema e devolução da ossada, que só retornou ao Brasil em 5/5/2017, envolvendo o Iphan, a Interpol e o Consulado do Brasil nos EUA. O trabalho científico acabou sendo concluído aqui mesmo e a reconstituição do rosto ficou a cargo do designer Everton da Rosa. A filmagem só poderá iniciar após a conclusão dessa parte e a previsão era que o documentário fosse lançado em 2019. Infelizmente ainda não se deu o tal lançamento, e torçamos para que seja possível ver este importante capítulo da nossa história na telona ou na telinha. A História do Brasil está repleta de bons “causos”, que a indústria cinematográfica brasileira tem ignorado sistematicamente. A preferência dos nossos cineastas têm recaído mais sobre os heróis/bandidos do sertão ou dos morros cariocas.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 13 de janeiro de 2020

OS BRASILEIROS:CELSO FURTADO

 

 

OS BRASILEIROS: Celso Furtado

Celso Monteiro Furtado nasceu em 26/7/1920, em Pombal, PB. Jornalista, advogado, memorialista e economista dos mais conceituados no mundo. Estudou no Ginásio Pernambucano e aos 19 anos mudou-se para o Rio de Janeiro. Foi estudar na Faculdade Nacional de Direito e começou a trabalhar na “Revista da Semana”. Em 1943, foi aprovado no concurso do DASP-Departamento de Administração do Serviço Público, como assistente administrativo. Em seguida foi convocado pelo Exército para lutar na II Guerra Mundial e segue para a Itália como aspirante a oficial da FEB-Força Expedicionária Brasileira.

Em 1946 ganhou o “Prêmio Franklin D. Roosevelt”, do Instituto Brasil-EUA, com o ensaio Trajetória da democracia na América e ingressou no curso de doutorado em economia da Universidade de Paris-Sorbonne, concluído em 1948, com a tese “L’économie coloniale brésilienne”. De volta ao Brasil, retomou o trabalho no DASP e junta-se ao quadro de economistas da Fundação Getúlio Vargas, passando a trabalhar na revista “Conjuntura Econômica”. Em 1949, mudou-se para Santiago do Chile, integrando a recém-criada CEPAL-Comissão Econômica para a América Latina, onde passa a cumprir missões em diversos países na condição de Diretor da Divisão de Desenvolvimento. Por esta época, passou a receber convites de universidades norte-americanas para dar palestras sobre os aspectos teóricos do desenvolvimento. Seu primeiro ensaio Características gerais da economia brasileira, foi publicado na “Revista Brasileira de Economia”, da FGV, em 1950, seguido de seu primeiro artigo de circulação internacional: Formação de capital e desenvolvimento econômico, traduzido para o “International Economic Papers”, da Associação Internacional de Economia.

Em 1953, presidiu o Grupo Misto CEPAL-BNDE, enfatizando as técnicas de planejamento e elabora um estudo sobre a economia brasileira. Tal estudo serviu como base do Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek, em 1956. No ano anterior, junto com um grupo de amigos, criou o Clube de Economistas, que lança a “Revista Econômica Brasileira” e publicou A economia brasileira, seu primeiro livro sobre a teoria do desenvolvimento e subdesenvolvimento. Passou a morar na Cidade do México, em missão da CEPAL, e publicou o segundo livro: Uma economia dependente. No ano seguinte mudou-se para a Inglaterra e passou a lecionar no King’s College da Universidade de Cambridge. Aí escreveu seu livro mais conhecido: Formação econômica do Brasil, que lhe dará projeção internacional. De volta ao Brasil, assumiu uma diretoria do BNDE; foi nomeado pelo presidente Kubitschek, para dirigir o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, que dará a SUDENE-Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, em 1959. Encontrou-se com o presidente Kennedy, em 1961, cujo governo decide apoiar um programa de cooperação com a SUDENE e, semanas depois, com o ministro Che Guevara, chefe da delegação cubana à Conferência de Punta del Este. Em 1962 foi nomeado para o Ministério do Planejamento, quando elabora o Plano Trienal apresentado ao país pelo presidente João Goulart. No ano seguinte deixa o Ministério do Planejamento e retorna à SUDENE afim de implantar a política de incentivos fiscais para os investimentos na região.

Com o golpe militar de 1964, teve os direitos políticos cassados por 10 anos. No exílio, foi morar em New Haven (USA) e fazer pesquisas no Instituto de Estudos do Desenvolvimento da Universidade de Yale. Publicou o livro Dialética do desenvolvimento (1965) e mudou-se para a França e assume a cátedra de Desenvolvimento Econômico da Sorbonne por 20 anos. Em 1968 veio ao Brasil, a convite da Câmara dos Deputados, e publicou o livro Um projeto para o Brasil, seguido de Formação econômica da América Latina (1969). No correr da década de 1970, viajou pela África, Ásia e América Latina, em missão de agências da ONU. Foi também professor-visitante da American University, da Columbia University, da Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de Cambridge. Em 1973 publicou A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina, cujo título deixa claro uma relação de causalidade entre os dois fenômenos. Considera o subdesenvolvimento como uma forma de organização social no interior do sistema capitalista, sendo contrário à ideia de que seja uma etapa para o desenvolvimento, como podem sugerir os termos de país “emergente” e “em desenvolvimento”.

O interesse pela área editorial o faz juntar-se a um grupo liderado pelo deputado Fernando Gasparian na compra da Editora Paz e Terra, em 1974. Uma destacada editora na área das ciências sociais. Nos anos 1978-81, integrou o Conselho Acadêmico da recém-criada Universidade das Nações Unidas, em Tóquio. Na mesma época, integrou o “Commitee for Development Planning”, da ONU. Entre 1982-85, como diretor de pesquisas da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, coordenou seminários sobre a economia brasileira e internacional. A partir de 1979, com a Lei da Anistia, retorna com frequência ao Brasil, retoma a vida política e é eleito membro do Diretório Nacional do PMDB. Em 1985 foi convidado pelo presidente Tancredo Neves para integrar a Comissão do Plano de Ação do Governo, mas não pode assumir com a morte de Tancredo. Foi nomeado embaixador do Brasil junto à futura União Europeia, e integrante da Comissão de Estudos Constitucionais, presidida por Afonso Arinos, para elaborar o projeto da nova Constituição. No governo José Sarney, foi nomeado ministro da Cultura. Uma de suas primeiras medidas foi a aprovação da lei de incentivos fiscais à cultura. Em julho de 1988 pediu demissão do cargo, retomando suas atividades acadêmicas no Brasil e no exterior.

Memorialista nato, decidiu fazer uma autobiografia e publicou o 1º volume A fantasia organizada (1969); o 2º A fantasia desfeita, veio em 1989 e o 3º, Os ares do mundo, em 1991. No período 1987-90 integrou a “South Commission”, formada por países do Terceiro Mundo para formular uma política para o Hemisfério Sul. Entre 1993-95 atuou no grupo dos 12 membros da Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento, da ONU/UNESCO, presidida por Javier Pérez de Cuellar. Entre 1996-98 integrou a Comissão Internacional de Bioética da UNESCO. Foi homenageado, em 1997, com um congresso internacional em Paris, organizado pela Maison des Sciences de l’Homme e a UNESCO, intitulado “A contribuição de Celso Furtado para os estudos do desenvolvimento”, reunindo especialistas do Brasil, Estados Unidos, França e outros países. No mesmo ano foi criado pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo (Itália), o “Prêmio Internacional Celso Furtado”, conferido a cada dois anos ao melhor trabalho no campo da economia política. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa pelas universidades de Lisboa, Brasília, Campinas, Rio Grande do Sul, Paraíba e Grenoble, na França. Junto a estes títulos, junta-se a Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago da Espada de Portugal.

Entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1997. No discurso de posse, declarou: “O fundador desta Cadeira número 11 foi um antepassado meu, Lúcio Furtado de Mendonça, de quem possivelmente herdei os pendores memorialísticos, o gosto mal sucedido pela ficção literária e uma irreprimível sensibilidade social. Esse socialista declarado empenhou-se na criação desta Academia e certamente a ele mais do que a ninguém devemos a existência desta nobre Instituição”. Em 2009, a ABL inaugurou a “Biblioteca Celso Furtado”, contendo parte dos livros que lhe pertenceram. 10 anos após, sua esposa Rosa Freire D’Aguiar decidiu doar toda a biblioteca do casal, de 14 mil livros, junto com os arquivos pessoais ao IEB-Instituto de Estudos Brasileiros, da USP.

Publicou mais de 40 livros, além de inúmeros artigos. Seu último livro não poderia ter outro título: Raízes do subdesenvolvimento (2003). Dias antes de falecer, foi surpreendido com uma distinção que o comoveu: recebeu a comenda “Casa Avelino de Queiroga Cavalcante”, outorgada pela Câmara Municipal de Pombal pelos relevantes serviços prestados a humanidade. Pode falecer tranquilo, em 20/11/2004, reconhecido em sua terra natal. Em 2019, sua esposa organizou e publicou seus Diários intermitentes: 1937-2002, um relato dos momentos decisivos de sua vida, diálogos, desabafos, perfis biográficos, impressões diversas, além de fotos, documentos e registros inéditos.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 06 de janeiro de 2020

AS BRASILEIRAS: BRITES ALBUQUERQUE

 

 

AS BRASILEIRAS: Brites de Albuquerque

Brites de Albuquerque nasceu em Portugal, em 1517. Colonizadora, donatária da Capitania de Pernambuco e esposa do primeiro donatário Duarte Coelho, é reconhecida como a primeira governante das Américas. Integrante da família dos Albuquerque, incluídos entre os “barões assinalados”, no poema Os Lusíadas, de Camões. Uma das poucas mulheres que sabiam ler e escrever naquela época. Desembarcou no Brasil em 1535, junto com o marido, o irmão Jerônimo de Albuquerque e extensa comitiva para colonizar o Brasil. “Dama do Paço Real” em Lisboa, passou a viver numa choupana em terras  brasileiras.

 

Foram morar no “Sítio dos Macacos”, próximo de Igarassu, numa fortaleza improvisada para se proteger de alguns índios e dos franceses na espreita para explorar aquelas terras. Pouco depois encontraram um lugar mais seguro, em Olinda, no local onde hoje se encontra a Igreja da Sé. Em 1553 Duarte Coelho retornou à Portugal – junto com os filhos Duarte e Jorge, que foram estudar em Lisboa – para prestar contas junto a Coroa. Dona Brites, junto com a filha Inês de Albuquerque, assumiu interinamente o governo da capitania, tendo como assistente seu irmão, que viria a ser conhecido como o “Adão Pernambucano”, dado a vastíssima descendência que deixou no Nordeste.

Em 1554 Duarte Coelho faleceu em Portugal e ela passou a ocupar o cargo de “capitoa”. Governou a capitania de Pernambuco até 1560, quando Duarte Coelho Filho atingiu a maioridade e retornou ao Brasil para assumir o governo sob sua supervisão. Em 1572, os filhos Duarte e Jorge são chamados pela coroa portuguesa e incorporados a armada do rei Dom Sebastião, que avançava sobre a África. Ambos são feridos e mortos na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Dona Brites voltou a comandar a capitania até 1584, quando veio a falecer em Olinda. Sob seu comando Pernambuco tornou-se a mais próspera capitania, onde o poder politico é exercido em sua plenitude.

A história registra que no seu governo, manteve a ordem e a paz; legislou e controlou os assuntos dos colonos; construiu e urbanizou núcleos; viu surgir o Recife e acompanhou o lento progresso de Igarassu; promoveu a expansão verde dos canaviais e o florescimento dos primeiros coqueiros introduzidos no Brasil pelo marido e que deram nova fisionomia às praias pernambucanas. Foi ela quem mais distribuiu terras no sistema de sesmaria, que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção agrícola. Dessa forma, distribuiu o poder e manteve a estabilidade politica e econômica na região. Em resumo, alentou com a sensibilidade de mulher o progresso da capitania que mais prosperou no Brasil. “Dona Brites” ficou conhecida como a “mãe dos pernambucanos”, segundo o historiador Frei Vicente do Salvador.

Consta que foi uma excelente administradora e que nutria uma relação de afeto com os filhos dos principais chefes indígenas. Dona Brites viveu 50 anos de sua vida em Pernambuco. Passou 30 anos governando a capitania desde os primeiros anos atribulados da colonização, mas pouco se ouve falar dela. Seu marido governou a capitania por 18 anos e é o único lembrado quando se fala das origens de Pernambuco. Não obstante todo esse tempo no comando da capitania, ela continua sendo uma ilustre desconhecida, não havendo sequer um retrato ou imagem de sua feição.

O desconhecimento não é apenas de seu rosto. Para ela não restou nem a lembrança de seu nome numa rua, praça ou qualquer logradouro para mitigar o esquecimento. Apenas em Olinda consta seu nome numa pequena escola publica e numa maternidade, mas ninguém sabe de quem se trata. Sua dimensão histórica tem sido negligenciada até hoje e foi inteiramente ofuscada por uma estrutura patriarcal que apaga as mulheres da nossa memória política. Hoje, quando tanto se fala em resgate da memória e “empoderamento” da mulher, os pernambucanos bem poderiam clarear mais a história e pleitear sua presença no panteão dos fundadores da pátria.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 30 de dezembro de 2019

OS BRASILEIROS: PAULO FREIRE

 

 

OS BRASILEIROS: Paulo Freire

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife, PE, em 19/9/1921. Advogado, escritor, filósofo e educador. Idealizador do movimento “Pedagogia Crítica”, é também o Patrono da Educação Brasileira e um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. Graduado pela Faculdade de Direito do Recife, em 1947, e oriundo de uma família de classe média, vivenciou a pobreza e a fome na infância durante a depressão de 1929, uma experiência que o levaria a se preocupar com os mais pobres e o ajudou a construir seu revolucionário método de alfabetização.

Casou-se, em 1944, com a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem teve cinco filhos. Após a morte de sua primeira esposa, casou-se com Ana Maria Araújo Freire, uma ex-aluna. Foi professor de Língua Portuguesa do Colégio Oswaldo Cruz e diretor do setor de Educação e Cultura do SESI (Serviço Social da Indústria) de 1947-1954 e superintendente do mesmo de 1954-1957. Ao lado de outros educadores e pessoas interessadas na educação escolarizada, fundou o Instituto Capibaribe.

Sua filosofia educacional expressou-se primeiramente em 1958 na sua tese de concurso para a universidade do Recife, e, mais tarde, como professor de História e Filosofia da Educação daquela universidade, bem como em suas primeiras experiências de alfabetização, como a de Angicos (RN), em 1963. Ensinou 300 adultos a ler e a escrever em 45 dias. A partir daí, criou um método inovador de alfabetização, adotado primeiramente em Pernambuco. Seu projeto educacional estava vinculado ao nacionalismo desenvolvimentista do governo João Goulart.

A metodologia por ele desenvolvida foi muito utilizada no Brasil em campanhas de alfabetização e, por isso, ele foi acusado de subverter a ordem instituída, sendo preso após o Golpe Militar de 1964. Depois de 72 dias de reclusão, foi convencido a deixar o país. Exilou-se primeiro no Chile, onde desenvolveu alguns programas de educação de adultos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária (ICIRA). Foi aí que escreveu sua obra mais conhecida: Pedagogia do oprimido (1968). Trata-se do terceiro livro mais citado mundialmente nas área das Ciências Sociais, conforme uma pesquisa da London School of Economics, segundo dados do Google Acadêmico. Outras obras: Educação como prática da liberdade (1967), Cartas à Guiné-Bissau (1975), Pedagogia da esperança (1992), À sombra desta mangueira (1995) e Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (1997).

O fundamento de sua prática didática encontra-se na crença de que o educando assimilaria o objeto de estudo fazendo uso de uma prática dialética com a realidade, em contraposição à por ele denominada educação bancária, tecnicista e alienante: o educando criaria sua própria educação, fazendo ele próprio o caminho, e não seguindo um já previamente construído; libertando-se de chavões alienantes, o educando seguiria e criaria o rumo do seu aprendizado. Este método de alfabetização dialético, se diferenciou do “vanguardismo” dos intelectuais de esquerda tradicionais e sempre defendeu o diálogo com as pessoas simples, não só como método, mas como um modo de ser realmente democrático.

Em 1969, trabalhou como professor na Universidade de Harvard, em estreita colaboração com numerosos grupos engajados em novas experiências educacionais. Durante os dez anos seguintes, foi Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra. Nesse período, deu consultoria educacional junto a vários governos do Terceiro Mundo, principalmente na África. Em 1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil para “reaprender” seu país. Lecionou na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Na política, integrou o Partido dos Trabalhadores e foi Secretário de Educação da Prefeitura Municipal de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). Durante seu mandato, fez um grande esforço na implementação de movimentos de alfabetização, de revisão curricular e empenhou-se na recuperação salarial dos professores.

Em 1991 foi criado o IPF-Instituto Paulo Freire com a finalidade de reunir pessoas e instituições que, movidas pelos mesmos sonhos de uma educação humanizadora e transformadora, pudessem aprofundar suas reflexões, melhorar suas práticas e se fortalecer na luta pela construção de “um outro mundo possível”. Atualmente vem desenvolvendo uma série de projetos educacionais além de manter e divulgar o legado de seu criador, conforme pode ser visto no site Instituto Paulo Freire. Foi reconhecido mundialmente pela sua prática educativa através de numerosas homenagens. É cidadão honorário de várias cidades no Brasil e no exterior; recebeu o título de doutor Honoris Causa de 35 universidades em todo o mundo, além das premiações: Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento (Bélgica, 1980); Prêmio UNESCO da Educação para a Paz (1986) e Prêmio Andres Belloda da Organização dos Estados Americanos, como Educador do Continente (1992). Em 13/4/2012 foi sancionada a lei 12.612, nomeando-o “Patrono da Educação Brasileira”. Faleceu em 2/5/1997. As críticas ao seu método de alfabetização e filosofia pedagógica vêm sendo contaminadas pela polarização ideológica intensificada a partir de 2018.

Recentemente foram publicadas duas biografias visando dirimir dúvidas sobre seu legado e esclarecer sobre suas reais contribuições à pedagogia: Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica (2019), de Walter Kohan e O educador: um perfil de Paulo Freire (2019), de Sergio Haddad. Aos interessados num relato mais completo de seus trabalhos vida e concepções filosóficas, temos a biografia Paulo Freire: uma história de vida (2017), de Ana Maria Araújo Freire.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 16 de dezembro de 2019

OS BRASILEIROS: BARÃO DO RIO BRANCO

 

 

OS BRASILEIROS: Barão do Rio Branco

José Maria da Silva Paranhos Jr., mais conhecido como Barão do Rio Branco, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 20/4/1845. Advogado, geógrafo, jornalista, historiador, político, professor e “Patrono da Diplomacia Brasileira”. Filho do senador e diplomata Visconde do Rio Branco, estudou no Colégio Pedro II e formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo, tendo concluído o curso na Faculdade de Direito do Recife, em 1866.

Aos 18 anos teve seu primeiro texto publicado na revista “Popular”, uma biografia de Luís Barroso Pereira. Aos 21 publicou seu primeiro artigo no jornal francês “L’Illustration”, sobre a guerra do Paraguai. Foi a primeira manifestação do diplomata, que se anunciava. Em 1868 foi nomeado promotor público em Nova Friburgo e, no ano seguinte, deputado geral pelo Partido Conservador. No mesmo ano, acompanhou o pai, na condição de secretário da Missão Especial, ao Rio da Prata e ao Paraguai. Nos dois anos seguintes exerceu a mesma função nas negociações de paz entre os Aliados e o Paraguai. Assim, o exercício da diplomacia se fez na prática, tendo o pai como exemplo.

Como jornalista, dirigiu o jornal “A Nação”, junto com Gusmão Lobo, e colaborou no Jornal do Brasil. Em 1876, entrou na diplomacia e foi nomeado cônsul-geral em Liverpool, Inglaterra, onde permaneceu até 1893. Em 1888 recebeu o título de “Barão”, concedido pela Princesa Isabel. mas continuou a usá-lo junto ao nome “Rio Branco” mesmo após a proclamação da República, reafirmando sua convicção de monarquista e homenageando seu pai, Visconde do Rio Branco. Neste período, após a proclamação da República, exerceu a função de superintendente, em Paris, dos serviços de imigração para o Brasil (1889) e ministro plenipotenciário em Berlin (1900). Em 1898 entrou para a Academia de Letras, que ajudou a fundar.

Logo no início da República, contribuiu substancialmente para o alargamento das fronteiras, com a incorporação de 900 mil km² ao território nacional. Em 1895 conseguiu assegurar boa parte do território dos estados de Santa Catarina e Paraná, em litígio com a Argentina. Em 1900 ganhou a disputa com a França, no estabelecimento da fronteira do Amapá com a Guiana Francesa, que foi definida no rio Oiapoque. Com tais conquistas, foi conduzido, pelo presidente Rodrigues Alves, ao Ministério das Relações Exteriores, em 3/12/1902, e ocupou o cargo ao longo de 4 mandatos presidenciais A nomeação ocorreu no momento em que o Brasil se envolvia noutra disputa territorial com a Bolívia.

Parte daquela região era ocupada por colonos brasileiros que resistiam às tentativas bolivianas de expulsá-los, episódio conhecido como “Revolução Acriana”. Em 17/11/1903, assinou o Tratado de Petrópolis, pondo fim ao conflito mediante a compensação econômica de 2 bilhões de libras esterlinas e algumas concessões territoriais. Esta é sua obra diplomática mais conhecida, que deu seu nome à capital do Estado. O caso criou tensões, também, com o governo do Peru, resolvidas em 1909 com o Tratado Velaverde-Rio Branco, consolidando a posse brasileira do Acre. Outro de seus méritos, foi a negociação sobre o uso do Rio Jaguarão e a Lagoa Mirim, que serviam de canais ao Uruguai. Tal concessão lhe conferiu o nome de “Rio Branco”, dado à antiga cidade de Puerto Artigas, pelo povo uruguaio. Foi homenageado, também, em Mato Grosso do Sul, com seu nome dado ao município de Paranhos. Certamente é o brasileiro com o nome dado ao maior número de cidades, instituições e logradouros.

Poucos sabem, mas o Bondinho do Pão de Açúcar é mais uma obra de sua lavra. Em 1908, chamou o Engº Augusto Ferreira Ramos para projetar um sistema teleférico que desse acesso ao cume do Morro da Urca, inaugurado em 1912. Sua presença não apenas na área diplomática fez com que seu nome fosse sugerido, em 1909, para a sucessão presidencial que se daria no ano seguinte. Mas, ele declinou de qualquer candidatura que não fosse de unanimidade nacional. Sofrendo de problemas renais, veio a falecer em 10/2/1912, durante o carnaval, alterando o calendário da festa, devido as inúmeras homenagens que lhe foram prestadas. O necrológio da “Gazeta de Notícias” disse que “ele foi o dilatador do Brasil, alargando-o e aumentando-o em terras graças ao seu engenho, sem um leve ataque à justiça e ao seu direito”.

O “Jornal do Commercio”, emendou: “Só os conquistadores dos tempos dos descobrimentos e os grandes capitães da idade heroica deram às suas pátrias respectivas territórios tão vastos quanto o Sr. Rio Branco deu ao seu país bem amado. Com o seu talento, a sua habilidade, a sua força de persuasão e a sua erudição formidável conseguiu ir anexando ao Brasil trechos litigiosos e territórios contestados.”. O Barão, não obstante ser jornalista, não era muito de escrever livros, mas deixou 3 obras publicadas em muitos volumes: Efemérides brasileiras, 1893-1918; A questão de limites entre o Brasil e a República Argentina, em 6 vols. e A questão de limites entre o Brasil e a Guiana Francesa, em 7 vols. A Fundação Alexandre de Gusmão do MRE dispõe de toda a obra em seu site com download gratuito. Basta clicar aqui para acessar.

Em 1945, nas comemorações do centenário de seu nascimento, foi criado o Instituto Rio Branco, a escola de diplomacia do Ministério das Relações Exteriores. O “Patrono da Diplomacia Brasileira” foi biografado por diversos autores, com destaque para: Rio Branco, de Álvaro Lins (1945); Perfil de um estadista (ensaio biográfico sobre o Barão do Rio Branco) de Antônio Carlos Villaça (1946); A vida do Barão do Rio Branco, de Luís Viana Filho (2008) e Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco de Luís Claudio Villafãne G. Santos (2018). Este diplomata e historiador escreveu mais dois relatos sobre Rio Branco: O dia em que adiaram o carnaval: política externa e a construção do Brasil (2010) e O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira (2012).

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 09 de dezembro de 2019

AS BRASILEIRAS: ANA NERY

 

 

AS BRASILEIRAS: Ana Nery

Anna Justina Ferreira Nery nasceu em Cachoeira, BA, em 13/12/1814. Pioneira da enfermagem no Brasil. Oriunda de uma família de militares, casou-se aos 23 anos com o Capitão-de-Fragata Isidoro Antônio Nery, com quem teve três filhos: Justiniano, Antônio Pedro e Isidoro Antônio Filho. Criou os filhos quase sozinha, visto que o marido passou boa parte do tempo viajando a serviço da Marinha. Em 1844, o marido faleceu aos 43 anos e ela, viúva aos 29 anos, teve que cuidar dos filhos ainda crianças, o mais velho com cinco anos.

Nestas condições passou a ter uma vida autônoma e independente. Com o intuito de prover melhor educação para os filhos, mudou-se para Salvador. Justiniano e Isidoro dedicaram-se à medicina e Antonio Pedro, o mais novo, seguiu carreira militar. Em 1865, quando o Brasil entrou na Guerra do Paraguai, os três foram convocados juntos com o tio e embarcaram para o Sul. Com isso, ela tomou uma decisão que viria a torná-la numa das principais heroínas do País. Em 8/8/1865 escreveu uma carta ao Presidente da Província da Bahia, Manuel Pinto de Souza Dantas:

IIImo. Exmo. Sr.

Tendo já marchado para o exército dois de meus filhos, além de um irmão e outros parêntes, e havendo se offerecido o que me restava nesta cidade, alluno do 6º anno de Medicina, para também seguir a sórte de seus irmãos e parêntes, na defesa do país, offerecendo seus serviços médicos, – como brasileira, não podendo ser indifferênte aos sofrimêntos dos meus compatriótas, e, como mãe, não podendo resistir à separação dos objectos que me são caros, e por uma tão longa distância, desejava acompanhal-os por toda a parte, mesmo no theatro da guerra, si isso me fosse permittido; mas opondo-se a este meu desejo a minha posição e o meu séxo, não impédem, todavia, estes dois motivos, que eu offereça os meus serviços em qualquer dos hospitais do Rio Grande do Sul, onde se façam precisos, com o que satisfarei ao mêsmo tempo os impulsos de mãe, e os deveres da humanidade para com aquelles que óra sacrificam suas vidas pela honra e brio naciónais e intégridade do Império. Digne-se V. Ex. de acolher benigno este meu espontâneo offerecimênto, ditádo tão sómente pela vóz do coração.

A resposta veio rápida junto com ordens expressas ao Conselheiro Comandante das Armas para que ela fosse contratada como enfermeira do Exército. Em 13/8/1865, embarcou para o Rio Grande do Sul e fez um curso rápido de enfermagem com as Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo e um estágio em Salto, na Argentina, onde se localizavam os hospitais dedicados aos sodados feridos. Atuou, também, nos hospitais militares de Corrientes, Humaitá e Assunção. Alguns autores afirmam que aí ela montou uma enfermaria em sua residência. Durante os combates, viu morrer na batalha o filho mais velho, o que não a impediu de continuar atuando com bravura entre as mulheres que ali prestavam serviços. Recebeu dos soldados o título de “Mãe dos Brasileiros”, estampado no poema de Rozendo Muniz Barreto.

Além do poema, recebeu homenagens ainda no campo de batalha: Diploma de Sócia Honorária da Sociedade de Socorro, em Corrientes e Sócia Instaladora da Sociedade de Beneficência Portuguesa, em Assunção. Quando acabou a Guerra em 1870, retornou ao Brasil, trazendo consigo seis órfãs. Em 6/5/1870 chegou ao Rio de Janeiro, e foi recebida por um grupo de conterrâneas, que lhe entregaram um “Diploma” guarnecido de madrepérola e prata com as inicias AJFN e uma dedicatória: “Tributo de admiração à caridosa baiana por alguns compatriotas”. Do governo imperial recebeu a Medalha Geral de Campanha e a Medalha Humanitária de primeira classe e uma pensão anual de um conto e duzentos réis. Os conterrâneos providenciaram um quando pintado por Victor Meireles, no qual ela aparece no campo de batalha com uma coroa de louros na cabeça.

Ao chegar em Salvador, em 5/6/1870, foi recebida pela banda de música do Corpo da Polícia e uma coroa de louros cravejada de brilhantes. Três anos após o quadro de Victor Meireles foi exposto no Salão do Paço Municipal de Salvador, onde se encontra até hoje. Pouco depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde seu filho Antonio Pedro, então Capitão do Exército, foi prestar serviço. Em 1880 foi acometida de uma doença grave e veio a falecer em 20 de maio. Foi sepultada no Cemitério São Francisco Xavier, em jazigo perpétuo, com a inscrição na lápide: “Aqui descansam os restos mortais de Da. Ana Néri, denominada Mãe dos Brasileiros, pelo Exército, na campanha do Paraguai”

Em 31/3/1926, por decreto presidencial, foi dado seu nome à Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, integrada a Universidade do Brasil, como ensino superior em 1945. Outro decreto de Getúlio Vargas, em 1938, instituiu o “Dia do Enfermeiro”, quando devem ser prestadas homenagens em sua memória em todos os hospitais e escolas de enfermagem do País. Em 1979, uma comissão governamental realizou a exumação do seu corpo; os despojos foram colocados numa urna de jacarandá e prata e sepultado no centro da nave principal da Igreja Matriz de Cachoeira. A homenagem mais recente ocorreu em 2/12/2009, com a inclusão de seu nome no “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria”.

Um importante ensaio biográfico foi publicado na Revista Brasileira de Enfermagem (v. 52, nº 3, set. 1999) republicado no site da revista Scielo: Anna Justina Ferreira Nery: um marco na história da enfermagem brasileira, por Maria Manuela Vila Nova Cardoso e Cristina Maria Loyola Miranda. Clique aqui para ler.

 

 

 


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